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Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” - UNESP
MARCELA APARECIDA CUCCI SILVESTRE
PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO E
REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA
EM CONTOS DE KATE CHOPIN
ARARAQUARA
2007
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MARCELA APARECIDA CUCCI SILVESTRE
PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO E
REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA
EM CONTOS DE KATE CHOPIN
Tese apresentada junto ao Programa de Pós-
graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Araraquara,
para a obtenção do título de Doutora em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Clara Bonetti Paro
ARARAQUARA
2007
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Silvestre, Marcela Aparecida Cucci
Processos de construção e representação da identidade
feminina em contos de Kate Chopin / Marcela Aparecida Cucci
Silvestre – 2006
261 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de
Araraquara
Orientadora: Maria Clara Bonetti Paro
l. Chopin, Kate, 1851-1904. 2. Identidade. 3. Feminismo.
4. Crítica literária feminista. I. Título.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que é, tomando as palavras de Paulo Leminski, “tudo
aquilo (ou aquilo tudo) que faz a gente viver, com plenitude mental e espiritual,
vida boa de ser vivida: chame-se Ra, Amon, Aton, Zeus, Iavé, Jesus, Xangô,
Buda ou Revolução. O sentido: a interpretação final do gesto de existir. O para
quê. E o por quê”.
Ao Arnaldo, companheiro de todas as horas, boas e ruins, pela
alegria de viver, apoio e compreensão incondicionais, amor sincero, cúmplice e
verdadeiro.
A toda minha família que, mesmo de longe, apoiou, acreditou, deu
força nesse difícil e árduo caminho e, sobretudo, compreendeu a minha
ausência.
À Profª. Drª. Maria Clara Bonetti Paro, pela valiosa orientação,
pelas discussões edificantes e pela amizade que, com certeza, será para a vida
inteira.
Aos professores que participaram da banca de qualificação, Profª
Drª. Márcia Valéria Zamboni Gobbi e Prof. Dr. Alcides Cardoso dos Santos,
pelas idéias e contribuições a este trabalho.
Aos professores Eliana Nagamini, Magda Colcioni, Carlos
Francisco de Moraes e Patrícia Leite Di Iório, pela amizade, pelas sugestões e
pela ajuda na correção do texto.
À Luciana Colucci, pela ajuda nas questões burocráticas e pela
amizade nos momentos difíceis dessa nossa caminhada.
Aos amigos da Unicsul, meus companheiros de jornada, que me
acompanharam nesses anos todos e me incentivaram durante o trabalho.
À Vilma Moreno Agunso, bibliotecária da Unicsul – Anália Franco,
à Sílvia Helena de Oliveira e demais funcionários da biblioteca da Unesp de
Araraquara, e à Maria Clara Bombarda de Brito, da Secretaria de Pós-
graduação, pelo auxílio com a bibliografia e com os assuntos burocráticos,
respectivamente.
RESUMO
Esta tese discute o caráter feminista da obra de Kate Chopin (1851-1904) ao
abordar determinados aspectos da condição da mulher do final do século XIX,
principalmente no que diz respeito a temas como casamento, família, liberdade,
trabalho, submissão e emancipação. A escritora americana levanta questões
polêmicas sobre a identidade da mulher, por meio da caracterização das
personagens femininas na narrativa, quer em situações ligadas à identidade
social, quer em relacionamentos amorosos. Embora, muitas vezes, utilize-se de
recursos que, aparentemente, negam uma discussão direta a respeito dessas
questões, Kate Chopin acaba revelando seu descontentamento com as
opressões sofridas pela mulher, quase sempre associadas às diferenças
sexuais e às tradições e cria, para isso, uma estrutura narrativa em que a luta
pela identidade feminina se faz presente, seja de forma explícita ou indireta.
Além de um estudo aprofundado da temática dos contos, são observados e
analisados, entre outras coisas, elementos textuais importantes como o foco
narrativo, a caracterização e representação das personagens (principalmente
as femininas), bem como as relações de tempo e espaço e o uso da ironia. A
crítica literária feminista, mais especificamente a Ginocrítica, que tem Elaine
Showalter como principal representante, também faz parte do referencial
teórico da tese.
Palavras chave: Kate Chopin, Feminismo, Identidade, Representação,
Ginocrítica, Estratégias Narrativas.
ABSTRACT
The present study aims to discuss Kate Chopin’s (1851-1904) feminist view
about some aspects related to the condition of women at the end of the
nineteenth century, especially concerning themes such as marriage, family,
freedom, work, submission and emancipation. The American writer raises these
polemic issues about feminine identity through the character’s representation in
the narrative, as in situations related to social identity, as when they are
involved in love relationships. Although she has often used narrative devices
that apparently deny a direct discussion of these questions, Kate Chopin
reveals her dissatisfaction with the oppression suffered by women, due to
sexual differences and traditional values, creating a narrative structure in which
the struggle for a feminine identity is presented, explicitly or implicitly. Thus,
besides an analysis of the themes in Chopin’s short stories, some important
devices are observed, such as point of view, character portrayal (mainly the
feminine ones), as well as time and space relations and the use of irony.
Feminist criticism, especially Elaine Showalter’s Ginocritics, is also used as part
of theoretical framework.
Key words: Kate Chopin, Feminism, Identity, Representation, Ginocritics,
Narrative Strategies.
KATE CHOPIN (1851-1904)
To the Author of “Bayou Folk”
Madam, your work is destined to receive
Still wider recognition; in these days,
Among the writers whom we justly praise,
Few pens such triumphs as your own achieve.
Witness the stories which you richly weave
Of Creole life, wherein your art portrays
Real men and women, and in charming ways,
Constrains us with them to rejoice or grieve.
This book of yours which I have read to-night
Pleases me much: my words but feebly tell
How I have followed with intense delight
The fortunes that these bayou folk befell;
The pen most truly is a thing of might
In hands like yours that wield its power so well.
R. E. Lee Gibson
SUMÁRIO
Página
INTRODUÇÃO
8
CAPÍTULO 1: O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN 20
CAPÍTULO 2: A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA POR “UM
TETO TODO SEU”
44
CAPÍTULO 3: A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO SÉCULO XX NO
“TERRITÓRIO SELVAGEM”
61
CAPÍTULO 4: MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS FEMININO
EM CONTOS DE KATE CHOPIN
78
4.1- “The Story Of An Hour” (1894) 100
4.2 - “Madame Celéstin’s Divorce” (1893) 116
4.3 - “A Respectable Woman” (1894) 130
4.4 - “A Shameful Affair” (1891) 143
4.5 - “Wiser Than A God” (1889) 152
4.6 - “A Pair Of Silk Stockings” (1896) 162
4.7 - “A Point At Issue” (1889) 175
4.8 - “The Storm” (1898) 187
CONCLUSÃO
195
BIBLIOGRAFIA
206
ANEXOS
216
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
9
escritora americana Kate Chopin (1851-1904) pode ser
considerada uma daquelas notáveis mulheres que sempre
estiveram à frente de seu tempo. Ela pautou seus escritos num realismo crítico,
utilizando como mote principal a luta da mulher em busca de sua identidade,
enfrentando assim os rígidos preceitos da tradição patriarcal vigente no século
XIX. Sua obra, além de catorze ensaios críticos e vinte poemas, consiste dos
romances At Fault (que foi publicado em 1890 pela própria escritora) e The
Awakening (publicado em 1899), e noventa e nove short stories, parte delas
reunida nas coletâneas Bayou Folk (contendo vinte e três contos escritos entre
1888 e 1894) e A Night in Acadie (com vinte e um contos escritos entre os
anos de 1891 e 1896). Uma terceira coletânea, A Vocation and a Voice, que
não chegou a ser publicada, conteria provavelmente mais vinte e dois contos,
incluindo um que levaria o mesmo nome do livro. Apesar disso, muitos desses
contos, juntamente com outros produzidos entre 1889 e 1903, tiveram sua
publicação nos mais diversos jornais e revistas americanos da época como a
Vogue, a Atlantic Monthly e o Philadelphia Musical Journal, enquanto
alguns como “The Storm”, que foram produzidos no final de sua carreira, só
foram publicados muitos anos depois da morte da escritora.
A
De toda essa importante obra, o enfoque escolhido para este
trabalho recai sobre os contos, uma vez que os romances, principalmente The
Awakening, foram e têm sido mais estudados pela crítica, sobretudo a partir
da década de 60 nos Estados Unidos, o que mostra a necessidade de um
estudo mais atento das narrativas curtas da escritora, que foram influenciadas
pelo estilo direto e simples do escritor francês Guy de Maupassant.
Kate Chopin passou a ser mais conhecida, principalmente
quando, ainda em vida, fez parte de um grupo de escritores que recebeu o
nome de local colorists. Os principais representantes do grupo foram, além da
própria Kate Chopin, Bret Harte (1836-1902), Joel Chandler Harris (1848-1908),
Mark Twain (1835-1910) e Harriet Beecher Stowe (1811-1896), que, por meio
de seus textos, retrataram aspectos e costumes típicos de determinadas
regiões dos Estados Unidos. O movimento atingiu seu auge por volta de 1880,
INTRODUÇÃO
10
mas entrou em declínio justamente pelas próprias limitações impostas pela
repetição dos temas por parte dos escritores.
Kate Chopin elaborou sua obra utilizando os mais diversos temas
de referências regionalistas, e a maioria de suas histórias foi ambientada na
região de St. Louis, na qual viveu boa parte de sua vida de solteira, assim
como na de Louisiana, onde ela se instalou mais tarde com o marido. Sua
produção é marcada por referências a lugares como Bayou St John, Cane
River e Avoyelles, enquanto nomes de personagens como Madame Verchette,
Marse Chouchoute, Doudouce e Bobinôt remetem o leitor à região do sul dos
Estados Unidos, que foi colonizada por franceses.
A escritora, porém, não se limitou ao rótulo de local colorist e, com
o passar dos poucos anos de sua produção literária, foi manifestando e
desenvolvendo uma série de características que contribuíram para tornar mais
abrangente o caráter de sua obra. Assim, pela diversidade de temas e técnicas
empregados na produção de seus textos, Kate Chopin foi uma autora que
contemplou, de maneira ampla, vários conflitos do ser humano, mais
especificamente, os problemas do homem em sociedade, chegando a discutir
os principais preconceitos de seu tempo – os de raça e de gênero. Hoje,
Chopin é lembrada como a escritora que, indo além dos conteúdos
regionalistas, abordou de maneira clara e objetiva temas ligados à condição
humana, principalmente a feminina, demonstrando uma conscientização acerca
dos rigores ideológicos da sociedade de sua época.
Entendendo que a literatura pode ser considerada uma ideologia,
uma vez que “guarda as relações mais estreitas com questões de poder social”
(EAGLETON, 1994, p. 25), deve-se ter em mente que uma das atribuições da
arte é a reflexão sobre uma determinada realidade, e que, sobretudo a estética
realista, da qual Kate Chopin é representante, visa descrever aspectos da
sociedade reveladores de uma visão de mundo. Assim, percebe-se que sua
obra pode ser considerada como registradora
de insatisfações vagas, de temores difusos, de desejos e
aspirações de um grupo social ainda não formulados – em
suma, a expressão do conteúdo latente de uma época. Não
se trata propriamente de uma clarividência excepcional, mas
INTRODUÇÃO
11
sim de sensibilidade privilegiada – como a tem todo artista -,
sempre atenta e disponível para detectar melhor os sintomas
do inconsciente coletivo que ainda não afloraram à superfície
das coisas (FREITAS, 1989, p.115).
Partindo do princípio de que, como afirma Lukács (1967, p.176) “o
artista – queira ou não – se apóia numa determinada concepção do mundo,
que ele exprime igualmente em seu estilo”, a principal questão que se
apresenta nesta tese é a de se poder ou não afirmar que, por tratar das
questões da mulher do seu tempo, Kate Chopin deve ser considerada uma
escritora feminista. Para tanto, faz-se necessária uma discussão a respeito do
conceito de feminismo, bem como dos principais fundamentos da Crítica
Literária Feminista, que serão utilizados como base do estudo.
Inicialmente, parafraseando as palavras dos historiadores
Georges Duby e Michelle Perrot (1991, p. 7-8), deve-se recusar qualquer
formulação estereotipada sobre o feminismo, que designa importantes
mudanças estruturais na sociedade e deve ser entendido na medida em que se
situa em uma perspectiva igualitária, que tem como objetivo a igualdade entre
os sexos e cuja prática é a de um movimento coletivo, social e político. Assim,
é importante que se compreenda a palavra feminismo em suas várias
acepções, ou seja, tanto como uma doutrina que preconiza o aprimoramento e
a ampliação do papel dos direitos das mulheres na sociedade, como uma teoria
que sustenta a igualdade política, social e econômica de ambos os sexos, ou,
ainda, como uma atividade organizada em favor dos direitos e interesses das
mulheres (HOUAISS ELETRÔNICO, 2001).
E para que o trabalho alcance seu objetivo principal, que é discutir
a atuação de Kate Chopin como escritora feminista, é necessário estabelecer
uma conceituação do feminismo também em uma dimensão mais abrangente e
atemporal, já que a palavra quase sempre nos remete ao movimento político
das mulheres que teve início na segunda metade do século XX. Trata-se de
uma ampliação do sentido do termo, a fim de que seja possível utilizá-lo fora
desse contexto histórico em que está inserido, também podendo ser visto
como:
todo gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão
e a discriminação da mulher, ou que exija a ampliação de seus
INTRODUÇÃO
12
direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual, seja de
grupo. Somente então será possível valorizar os momentos
iniciais desta luta – contra os preconceitos mais primários e
arraigados – e considerar aquelas mulheres, que se
expuseram à incompreensão e à crítica, nossas primeiras e
legítimas feministas (DUARTE, 2003, p. 3).
Dessa forma, uma feminista deve ser vista não somente no papel
de militante radical das causas das mulheres a partir da década de 60, mas
também como aquela que, à sua maneira, conseguiu visualizar e denunciar as
condições de desigualdade entre os sexos, mesmo tendo vivido muito tempo
antes de ter sido cunhado o termo “Feminismo”. Também é importante
enfatizar que o conceito de feminismo não está sendo utilizado nesse estudo
como uma maneira preconceituosa de rotular a escritora ou como algo que a
diminua em sua arte. Ao contrário, o termo é empregado no sentido de
destacar sua habilidade em desnudar aspectos da sociedade capazes de
questionar as relações entre sexo e poder, e de conduzir, quase que
invariavelmente, a uma reflexão a respeito dos papéis desempenhados por
homens e mulheres.
Já a Crítica Literária Feminista, mais especificamente a de origem
anglo-americana, representada nesta tese pelas idéias de Sandra Gilbert,
Susan Gubar e Elaine Showalter (em particular a Ginocrítica), que serão
estudadas mais adiante nos capítulos 3 e 4, preocupa-se, em sua essência,
com a valorização dos textos escritos por mulheres e seus respectivos temas,
estilos e estruturas, tendo sempre em mente a idéia de que esses textos
tendem a apresentar um caráter codificado a fim de responder às influências
masculinas, como forma de protesto aos valores patriarcais.
Este trabalho dará maior ênfase ao enfoque social da Ginocrítica,
que servirá de base no estudo dos papéis femininos e sua representação nos
textos literários produzidos por mulheres, valorizando as suas especificidades.
Os demais enfoques possíveis como o psicanalítico, o marxista e o semiótico
não serão abordados de forma direta, uma vez que extrapolam o âmbito
proposto pela tese em questão. Pela mesma razão, o enfoque lingüístico, que
procura analisar o discurso como sistema que apresenta diversas formas de
INTRODUÇÃO
13
sexismo e questiona as evidências de diferenças entre os discursos do homem
e da mulher, também não terá lugar neste estudo.
É importante ressaltar que, mesmo tendo sido escolhida uma
abordagem feminista de origem anglo-americana como base teórica da tese e
considerando a existência de diferenças entre as abordagens francesa e anglo-
americana do feminismo (enquanto as francesas procuram características
próprias na linguagem das mulheres e possuem uma tendência de análise mais
abstrata e a-histórica, a teoria anglo-americana opta pelo estudo de textos e
situações mais específicos e pontuais), não está descartada a utilização de
conceitos propostos por representantes do feminismo francês como Hélène
Cixous e Catherine Clément, bem como das idéias das principais precursoras
do movimento, como Olympe de Gouges, Mary Wollstonecraft e Simone de
Beauvoir.
A Ginocrítica, que é utilizada como veículo para resgatar várias
obras escritas por mulheres que se mantiveram esquecidas por longos
períodos de tempo, tem denunciado a presença de aspectos arbitrários da
ideologia patriarcal durante o processo de escolha dos textos que compõem o
cânone literário, o que favoreceu enormemente a presença quase que
exclusiva de textos escritos por homens através da história. Trata-se, nas
palavras de Hollanda (1994, p.12), de um compromisso
com o desenvolvimento de uma arqueologia literária que
resgate os trabalhos das mulheres que de diversas formas
foram silenciados ou excluídos da história da literatura. Neste
sentido, engaja-se no trabalho de recuperação de uma
“identidade feminina” que aponte para as diversas formas de
sua experiência, (...).
Nesse processo de recuperação da identidade feminina, a
pesquisa concentra-se principalmente na forma com que a obra de Kate
Chopin é capaz de revelar o questionamento das relações entre os sexos e
denunciar uma necessidade, por parte das mulheres, de se apresentarem não
mais como vítimas da dominação masculina histórica, e sim numa posição de
sujeitos na sociedade. Trata-se, por um lado, de discutir se o fato de existirem
marcas de uma contestação do status feminino em sua obra é suficiente para
INTRODUÇÃO
14
torná-la uma escritora feminista e, por outro, de refletir a respeito dessas
marcas, procurando, ao mesmo tempo, revelar as condições da mulher no final
do século XIX nos Estados Unidos, inclusive daquela que se dedica ao ofício
da escrita, com suas dificuldades e desafios. O presente estudo visa, então,
explicitar a visão de Kate Chopin sobre os assuntos relacionados à mulher do
seu tempo, principalmente no que diz respeito ao casamento, à família, à
liberdade, ao trabalho, à submissão e à emancipação.
É necessário acrescentar que o tratamento desses temas de
cunho social, como a condição da mulher, adquire um ar de particularidade nos
textos de Kate Chopin, pois demonstra sua tendência em elaborá-los a partir de
situações e questões individuais, preferindo escolher um acontecimento ou fato
isolado. Essa atitude, apesar de aparentemente contrastar com a idéia do
feminismo como prática de um movimento coletivo e político, faz com que suas
personagens femininas sejam capazes, muitas vezes, de transcender sua
condição, a ponto de conseguirem representar a vida das mulheres na
sociedade.
Suas histórias são conhecidas por abordarem questões polêmicas
sobre a identidade feminina, explorando essencialmente a caracterização e a
representação das personagens na narrativa, principalmente as femininas,
quando envolvidas em relacionamentos amorosos ou em situações ligadas à
identidade social. E, embora muitas vezes utilize-se de recursos que
aparentemente negam uma discussão mais direta a respeito dessas questões,
a autora acaba revelando o seu descontentamento com as opressões sofridas
pela mulher, que quase sempre estão associadas às diferenças sexuais e às
tradições, criando uma estrutura narrativa em que a luta pela identidade
feminina se faz presente, seja de forma explícita ou implícita. Assim, utilizando
os principais conceitos da Ginocrítica, que também se referem à mulher como
escritora, o presente trabalho de pesquisa propõe-se a trazer uma contribuição
para o desvendamento dessas estruturas e recursos, a fim de que se revelem
alguns dos processos de construção e representação da identidade feminina
em textos produzidos por mulheres.
INTRODUÇÃO
15
Por sua vez, a questão da identidade também ocupa posição
central neste estudo, pois parte-se do princípio de que é o questionamento
dessas identidades pessoais e culturais que coloca “em questão uma série de
certezas tradicionais, dando força ao argumento de que existe uma crise da
identidade nas sociedades contemporâneas” (Woodward, 2004, p. 67). Com
isso, os textos literários, como os produzidos por escritoras como Kate Chopin,
revelam-se um importante meio para a renovação de certos valores que
sempre geraram preconceitos em relação à mulher. Esses textos promovem
uma possibilidade de construção de novas identidades femininas, já que, a
partir de representações das personagens femininas e da construção de seu
discurso, produzem “os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se
posicionar e a partir dos quais podem falar” (Ibidem, p. 17).
Com o intuito de explorar e discutir os principais aspectos dessa
busca por uma identidade feminina, Kate Chopin faz desfilar em sua obra
vários retratos femininos de seu tempo, que vão desde a mulher que desafia as
tradições com atitudes emancipadas e críticas, até aquela que aceita e
desempenha o papel esperado por toda a sociedade, o que pode ser entendido
da seguinte maneira:
the most likely explanation for Kate Chopin’s various writings
on woman’s position is that she had indeed loved her husband
deeply and had fully accepted him, as all reports indicate, but at
the same time had had secret emancipationist urges (William
Schuyler’s observation from 1894 that she might have
developed earlier as a writer had her environment been
different very probably originated from herself), and felt so
hemmed in by marriage that she kept a continuous internal
discussion already then. Such a supposition would explain in
part why she in her work frequently opposes a woman who
stays home and one who strikes out, and why she advocates
no “best way” to live for a female, evidently understanding and
sympathizing with all her different heroines. It also helps to
explain why she welcomes both sexuality and men and shows
no sexual antagonism and yet demonstrates a questioning
attitude toward the marriage institution (SEYERSTED, 1980, p.
173).
a explicação mais provável para os vários escritos de Kate
Chopin sobre a posição da mulher é que ela tenha de fato
amado profundamente seu marido e que o tenha aceitado por
inteiro, como indicam todos os registros, mas que, ao mesmo
INTRODUÇÃO
16
tempo, tenha tido desejos secretos de emancipação
(observação de William Schuyler de 1894 de que ela poderia
ter se revelado antes como escritora, se o seu ambiente
tivesse sido diferente daquele que provavelmente a originou), e
se sentido tão enclausurada pelo casamento que ela manteve
uma contínua discussão interna já nesse tempo. Tal suposição
explicaria em parte porque em sua obra ela freqüentemente
opõe uma mulher que fica em casa e uma que toma seu
próprio rumo, e porque ela não defende uma maneira melhor
de viver para a mulher, evidentemente entendendo e
simpatizando com todas as suas diferentes heroínas. Isso
também ajuda a explicar porque ela acolhe sem restrições a
sexualidade e os homens e não mostra nenhum antagonismo
sexual e ainda demonstra uma atitude questionadora em
relação à instituição do casamento
1
.
Considerando, a partir de tal afirmação, que a obra de Kate
Chopin contempla diferentes abordagens da condição feminina, a tese propõe
uma análise de suas diversas formas de representação, tanto daquelas que
quebram declaradamente os estereótipos da mulher em relação a temas como
casamento, sexualidade, trabalho e família, como as que, fazendo uso de
recursos narrativos mais sutis como a ironia, apenas expõem a condição da
mulher. E embora esse último tipo de texto pareça conter, em uma leitura mais
superficial, um grau de comprometimento menor com as reflexões acerca das
opressões sofridas pelas mulheres, percebe-se muitas vezes, em uma análise
mais criteriosa, além da mesma preocupação com a temática, um rigor ainda
maior em relação à forma. Isso ocorre porque nesse tipo de texto, a
contestação se manifesta em um nível mais profundo, que é o nível da sua
própria construção, fruto de um trabalho mais elaborado e consciente da autora
e igualmente capaz de revelar a necessidade de questionamento acerca da
problemática feminina e da luta da mulher por sua identidade.
Pensando nisso, o corpus compõe-se tanto por contos que
expressam uma aparente concordância com os preceitos sociais vigentes,
como em “The Story of an Hour”, “Madame Célestin’s Divorce”, “A Respectable
Woman” e “A Shameful Affair”, quanto por outros que transmitem opiniões
desafiadoras a esses preceitos de maneira mais clara e objetiva. É o caso de
“Wiser than a God”, “A Pair of Silk-Stockings”, “A Point at Issue” e “The Storm”.
1
Todas as passagens em inglês utilizadas na tese foram traduzidas pela autora da tese.
INTRODUÇÃO
17
O mais importante é que, de uma forma ou de outra, todos os contos têm como
protagonista uma figura feminina que, apesar da influência patriarcal exercida
pela sociedade, atua como sujeito de sua história, representando a mulher na
busca pela identidade.
A tese está dividida em cinco capítulos. O primeiro enfoca
aspectos importantes da vida e da obra de Kate Chopin, uma vez que se trata
de uma escritora não muito conhecida pelo público brasileiro. O segundo
capítulo é composto por um breve levantamento dos contextos social, político,
histórico, econômico e literário americano e europeu na segunda metade do
século XIX, nos quais a autora e sua obra se encontram inseridas. Por se tratar
de um estudo que enfoca a obra literária produzida por uma mulher, optou-se
também por incluir um terceiro capítulo, estabelecendo um panorama da Crítica
Literária Feminista (sobretudo a de origem anglo-americana) e seus principais
conceitos e objetivos, bem como importantes pontos da Ginocrítica de Elaine
Showalter, que propõe uma revisão dos textos literários escritos por mulheres,
a fim de que sejam reavaliados certos aspectos relativos à identidade feminina
e aos papéis atribuídos às mulheres. O quarto capítulo faz uso de conceitos-
chave das teorias de Sandra Gilbert e de Susan Gubar, para identificar a
utilização de certas estratégias e estruturas narrativas na obra de Kate Chopin,
como uma maneira de apresentar novas e diferentes formas de representação
da mulher. Partindo de um breve estudo de tais estratégias, que vão desde a
escolha do gênero narrativo, do foco narrativo, do tempo e do espaço ficcionais
até a caracterização das personagens e o uso da ironia, o capítulo também traz
uma análise aprofundada dos oito contos escolhidos, a fim de que sejam
desvendadas e entendidas as marcas de contestação do status feminino.
Finalmente, a conclusão traz uma discussão a respeito dessas marcas, na
tentativa de explicar a atitude da autora em relação aos temas abordados,
mostrando se os textos analisados revelam uma abordagem feminista por parte
de Kate Chopin e se propõem uma revisão dos papéis femininos e das
questões a respeito da identidade da mulher.
Dessa forma, o presente estudo parte principalmente de uma
análise das estruturas e das principais estratégias utilizadas pela autora em
INTRODUÇÃO
18
seus textos para mostrar como se dá a mediação entre sua obra e
determinados aspectos sociais e históricos, numa tentativa de desvendar
certos procedimentos narrativos e, assim, explicitar seu posicionamento diante
das questões humanas de sua época, procurando demonstrar o caráter social
de sua arte e definir as bases de seu suposto feminismo.
Juntamente com as questões formais a serem discutidas na tese,
torna-se necessário também ressaltar o seu caráter revisionista, ou seja, trata-
se de uma nova forma de analisar a obra de Kate Chopin. Por fazer parte da
literatura escrita por mulheres no século XIX, muitos de seus textos podem
apresentar características não reveladas em seu nível mais superficial,
principalmente de ordem ideológica, necessitando de uma abordagem que as
investigue, decifre e interprete sob aspectos pouco explorados pela crítica de
cunho patriarcal existente até então.
A Crítica Literária Feminista é, por essa razão, responsável por
analisar um grande número de obras escritas por mulheres no sentido de
revisar alguns conceitos advindos da sociedade patriarcal, favorecendo o
surgimento de novos significados textuais e questionando os papéis sociais
presentes neles. Com isso, faz-se uma revisão do próprio cânone literário que,
por muitos anos, tendo ignorado ou julgado de forma inadequada obras de
escritoras que hoje estão sendo redescobertas, expressou somente os
interesses e costumes estabelecidos pelos padrões masculinos vigentes. Esse
tipo de abordagem revela a necessidade de se adicionar uma nova visão às
demais leituras de textos escritos por mulheres, que seja capaz de denunciar e
discutir a condição feminina com maior propriedade, não tendo, porém,
nenhuma pretensão de assumir uma posição de leitura definitiva ou mais
correta das obras.
Dessa forma, ao estabelecer uma nova leitura para a obra de
Kate Chopin, pretende-se fornecer mais uma contribuição à vertente
revisionista da crítica feminista, que procura reescrever e recriar a história da
literatura, inserindo nela textos escritos por mulheres que foram esquecidos ou
relegados ao segundo plano, além de repensar e ampliar o campo de atuação
INTRODUÇÃO
19
da mulher na sociedade e na história, questionando antigos valores e resistindo
à dominação masculina tradicional.
Este trabalho parte, portanto, do princípio de que os textos
escritos por mulheres são capazes de transcender sua condição a ponto de
poder representar a vida das mulheres na sociedade e que os questionamentos
e as denúncias presentes nesse tipo de arte atuam como um espelho da
prática social, demonstrando o caráter ideológico da literatura.
Pensando assim, a relevância da tese reside no fato de que, ao
serem reavaliadas tais obras literárias, contribui-se para a elaboração de um
novo retrato da sociedade do final do século XIX, mais fiel e amplo, em que são
incluídos, além daqueles elementos presentes na visão tradicional masculina,
também os aspectos da trajetória feminina. Acredita-se que, por meio de
estudos como este, que procuram desvendar as múltiplas manifestações de
representação do feminino em textos literários escritos por mulheres,
contrapondo-as aos modelos pré-estabelecidos pela sociedade patriarcal e
desconstruindo antigos padrões comportamentais exigidos ao sexo feminino,
contribui-se para uma reflexão a respeito dos papéis atribuídos às mulheres na
sociedade, bem como para uma proposição de novos papéis, que levem em
consideração a sua identidade, num movimento de reorganização social.
CAPÍTULO 1
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
I am so proud to know ‘the artist with the
courageous soul that dares and defies’.
Kate Chopin in The Awakening.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
21
atherine O’Flaherty nasceu em 8 de fevereiro de 1850 em
St. Louis e sua mãe, Eliza Faris O’Flaherty, foi uma genuína
creole
2
de ascendência francesa, pertencendo a uma das famílias que
ajudaram a fundar a colônia de Louisiana. Por conviver com pessoas que
utilizavam o francês como meio de expressão dentro de casa, Kate Chopin
pronunciou suas primeiras palavras na língua francesa, mas logo se apropriou
do inglês, que veio a ser a única língua utilizada em suas obras. Sobre sua
infância sabe-se também que, com apenas cinco anos de idade, foi mandada
para um internato, aparentemente contra a vontade da mãe, onde recebeu
rígida formação religiosa.
C
A notícia da morte do pai, Thomas O’Flaherty, num acidente
ferroviário em novembro de 1855, trouxe a menina de volta para casa, já que,
como viúva, a mãe adquiriu direitos jamais imaginados para uma esposa como,
por exemplo, o de ter controle sobre sua propriedade e seus filhos. O fato deu
início a uma convivência maior com a família que era composta, além dos
irmãos e da mãe, da avó e da bisavó. Assim, Kate Chopin foi criada num
mundo predominantemente de mulheres que, sendo viúvas, adquiriram o
direito de administrar seus bens, educar seus filhos e ser responsáveis pelas
próprias vidas, sem a interferência direta de um homem. Esse episódio,
juntamente com a atitude da mãe de levar a filha de volta para casa pode ter se
constituído, aos olhos da menina, numa das primeiras percepções da condição
das mulheres e um reflexo da sociedade patriarcal que mais tarde a escritora
procuraria combater.
Suas biografias mais respeitadas baseiam-se na influência dessa
convivência com mulheres como um fato de inquestionável importância para a
formação de Kate Chopin não só como mulher, mas principalmente como
escritora, já que em sua obra se faz presente o caráter questionador e
reivindicatório das mulheres fortes e independentes de sua família. Segundo
Seyersted (1980, p. 149), Kate Chopin estava, sem dúvida, familiarizada com a
existência de matriarcados antigos e de seu próprio tempo, e, dessa maneira,
2
Creoles são os descendentes diretos dos colonizadores franceses e espanhóis na América.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
22
mostrava-se consciente de que o patriarcado não representava nenhuma lei da
natureza.
Essa influência se intensificou quando Madame Charleville, a
bisavó e matriarca da família, ficou responsável pela educação da menina, que
cresceu ouvindo suas histórias sobre o período de colonização do território da
Louisiana e as famílias que habitaram o lugar nos primeiros anos. Tais
histórias, que ficaram conhecidas por fazer parte do imaginário de Kate Chopin
desde sua infância e por exercerem grande influência em sua carreira literária
posterior, mesclavam ficção e realidade e tratavam principalmente de temas
relacionados ao casamento e a mulheres fortes e determinadas que se viam
divididas entre o dever e o desejo.
(...) Madame Charleville’s best subject for tutoring was one
Kate’s father could never have taught her. No man could have.
Madame Charleville gave her young charge a subject for
intense, lifelong fascination, contemplation, and delight: the
lives of women. Madame Charleville loved gossip (TOTH,
1999, p. 13).
(...) o principal conteúdo de Madame Charleville na educação
de Kate era algo que seu pai nunca poderia ensinar. Nenhum
homem poderia. Madame Charleville deu à sua pequena
protegida um assunto para fascinação, contemplação e
encanto profundos para toda a vida: as vidas das mulheres.
Madame Charleville amava uma fofoca.
Para Toth (1999, p. 15), porém, a lição mais importante deixada
por Madame Charleville para a pequena Kate foi a de que a mulher tinha que
ser independente, tema presente em boa parte da obra da escritora.
Em 1860, Kate Chopin ingressou pela segunda vez na Academy
of Sacred Heart, escola onde conheceu sua melhor amiga até a idade adulta,
Kitty Garesché. Lá, segundo Seyersted (1980, p. 21) as meninas tiveram uma
educação baseada na religião católica e, como em todos os colégios da época,
adquiriram habilidades ligadas ao lar e estudaram música, línguas e etiqueta, o
que as prepararia como futuras esposas e mães. O diferencial da escola ficava
por conta do toque francês, que acrescentaria às disciplinas tradicionais,
algumas outras que introduziram as alunas em assuntos como descobertas
científicas e eventos de seu tempo.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
23
O horror da Guerra Civil americana trouxe muita dor e sofrimento
para a jovem Kate que, simpatizante das causas sulistas, quase chegou a ser
presa por roubar uma bandeira dos Yanks. Foi a época em que morreu seu
irmão George, vítima da febre tifóide em sua viagem de retorno para casa,
depois de lutar na guerra. O luto da família foi grande, pois, um mês antes da
morte do irmão, em janeiro de 1863, a menina já havia perdido sua querida
bisavó que, com idade avançada, não conseguiu suportar os rigores do inverno
daquele ano.
Assim, com apenas doze anos de idade, Kate Chopin procurou se
voltar para a leitura de obras como Ivanhoe, de Walter Scott, na tentativa de
esquecer a tristeza e o pesar que essas perdas lhe impuseram. A literatura
sempre fez parte da formação da futura escritora, que preferia ler autores
franceses e alemães no original e cujo interesse recaía não só sobre as obras,
mas também sobre a vida de autores como Dante, Cervantes, Corneille,
Racine, Molière, Mme. de Staël, Chateaubriand, Goethe, Coleridge, Jane
Austen, Charlotte Brontë e Longfellow (SEYERSTED, 1980, p. 25). Além disso,
Kate Chopin já se dedicava a escrever poemas e textos, colocando-os em um
diário que incluía memórias, citações e outros escritos de sua autoria.
Dentre todos os livros que leu, desde muito cedo Kate Chopin
apontou sua preferência por obras que tratavam da condição feminina, como
os romances de Mme. de Staël Delphine e Corinne e é evidente que sua
formação educacional diferenciada, juntamente com a influência das mulheres
de sua família e com a natural rebeldia da adolescência viessem a lhe causar
uma certa dúvida quanto ao comportamento ideal feminino, proposto pela
sociedade em que vivia.
Esse aspecto mais contestador de sua personalidade aparece de
forma mais clara em maio de 1869 quando, após uma viagem a New Orleans,
ela escreveu um artigo em seu diário, questionando o que as mulheres
poderiam fazer com suas vidas. Também durante essa viagem Kate Chopin
aprendeu a fumar, ato impensável para as mulheres do século XIX,
principalmente as que pertenciam à sua condição social. É aparentemente
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
24
nessa mesma época que, influenciada por uma escritora que havia conhecido
na viagem, escreveu seu primeiro conto: “Emancipation: A Life Fable”.
Mais tarde, quando a jovem Kate encontrou Oscar Chopin, logo
soube que ele seria seu marido e no dia de seu casamento, ela descreveu em
seu livro um sentimento que mesclava alegria, medo e tristeza por ter de deixar
sua família e se mudar para uma nova cidade. Também de família creole
francesa, Oscar Chopin levou a esposa, em outubro de 1870, para morar em
New Orleans, após uma longa lua-de-mel, em que visitaram boa parte da
Europa.
Mas, apesar do bom relacionamento com o marido, Kate Chopin
encontrou grande resistência e chegou a sofrer preconceito por parte da
sociedade local. Seu comportamento, porém, não era de quem se importava
com as opiniões alheias e seguiu sua vida, agora marcada pelas preocupações
domésticas, conservando seus velhos hábitos de fumar e de caminhar sozinha
pelas ruas da cidade, observando características peculiares de seus
habitantes.
Oscar was a rare man who preferred an original woman, one
who was neither quiet nor stay-at-home. Possibly Kate had no
idea how odd it was to take her long, solitary strolls around
New Orleans, smoking her Cuban cigarettes. In New Orleans,
ladies rarely went about unescorted – and, of course, no lady
smoked at all. During her walks, she also jotted down
descriptions of what she saw, and was particularly interested in
the colorfully painted mule cars that served as rapid transit
(TOTH, 1999, p.67).
Oscar era um homem raro que preferia uma mulher autêntica,
uma que não fosse nem quieta nem caseira. Possivelmente
Kate não tinha idéia de como era excêntrico fazer seus longos
e solitários passeios por New Orleans, fumando seus cigarros
cubanos. Em New Orleans, as senhoras raramente saíam
desacompanhadas – e, é claro, nenhuma senhora fumava.
Durante suas caminhadas, ela também anotava descrições do
que via, e era particularmente interessada nas carroças
coloridas que serviam como transporte rápido.
Kate Chopin, no isolamento de seu casamento, fez de New
Orleans um lugar propício para suas observações pessoais e seu principal
interesse era a variedade de raças que lá havia, desde os próprios americanos,
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
25
os creoles e outros descendentes de europeus, até os cajuns
3
, os negros e
mulatos, tipos que seriam utilizados mais tarde pela escritora na composição de
suas personagens.
Mais tarde, com o fracasso de Oscar nos negócios, a família
Chopin decidiu se mudar para um pequeno povoado de imigrantes franceses na
Louisiana chamado Cloutierville, lugar que também inspirou muitos de seus
contos. Ali, Kate chocou igualmente a comunidade local com um
comportamento mais urbano, sua maneira diferente de se vestir e seu hábito de
fumar.
Durante os doze anos em que permaneceu casada, os afazeres
domésticos, juntamente com a criação de seus seis filhos, preencheram quase
que completamente seus dias. Mesmo assim, não deixava de revelar em cada
gesto seu caráter de mulher forte, oferecendo conselhos, remédios e até
comida para a vizinhança necessitada.
Seguindo o destino das mulheres de sua família, Kate Chopin
perdeu o marido ainda muito jovem, aos trinta anos de idade e, apesar da dor e
da tristeza, resolveu assumir as plantações e os negócios familiares. Depois de
um ano de sucesso à frente dos negócios, decidiu pagar as dívidas deixadas
por Oscar e partir com os filhos de volta a St. Louis para morar com a mãe que,
dois anos depois, em 1885 também morreu, deixando a filha inconsolável e
solitária.
Influenciada pelo doutor Kolbenheyer, médico da família, Kate
Chopin partiu para a leitura de textos científicos e seu interesse por biologia e
antropologia a conduziu ao conhecimento das obras de Darwin, Huxley e
Spencer (Seyersted, 1980, p. 49). Mas a influência do amigo foi mais longe,
pois, elogiando as qualidades literárias da viúva, incentivou-a a começar a
escrever textos de ficção, acreditando que essa atitude poderia preencher o
vazio deixado pelas perdas das pessoas mais queridas, além de garantir um
ganho extra para as despesas com os filhos.
Kolbenheyer is probably the one who introduced Kate Chopin
to Pulitzer and to his partner John Dillon, and theirs was the
3
Cajun ou Acadian são os descendentes dos colonizadores franceses no Canadá.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
26
first daily newspaper to publish a Chopin story. But his most
important contribution was to repeat to Kate Chopin what
Madam O’Meare, her beloved Sacred Heart teacher, had told
her more than twenty years earlier: You have a talent, and you
must write (TOTH, 1999, p. 106).
Kolbenheyer é provavelmente aquele que apresentou Kate
Chopin para Pulitzer e seu sócio John Dillon, donos do primeiro
jornal diário a publicar uma história de Chopin. Mas sua
contribuição mais importante foi repetir para Kate Chopin o que
Madame O’Meare, sua amada professora do Sacred Heart,
havia dito a ela mais de vinte anos antes: Você tem um talento,
e deve escrever.
Kate Chopin só começou sua carreira literária depois dos trinta e
cinco anos e, como não poderia deixar de ser, levou para os seus textos toda a
maturidade que já havia adquirido com seus anos de sofrimentos e perdas, em
que teve que demonstrar sua força e coragem. Inicialmente escreveu alguns
poemas que revelavam a tristeza e a dor de sua solidão, e um deles “If It Might
Be” foi publicado na revista America, de Chicago, em 1889, época em que já
estava trabalhando na produção de dois contos que, por uma ou outra razão,
foram deixados de lado ou nem mesmo chegaram a ser conhecidos.
É nesse momento que a influência do escritor Guy de Maupassant
sobre as idéias de Kate Chopin apareceu de maneira mais intensa. Seyersted
(1980, p. 51) cita um trecho do manuscrito “Confidences”, datado de 1896, em
que a admiração da americana pelo escritor francês é notória:
he was a man who had escaped from tradition and authority,
who had entered into himself and looked out upon life through
his own being and with his own eyes; and who, in a direct and
simple way, told us what he saw. When a man does this, he
gives us the best that he can; something valuable for it is
genuine and spontaneous. He gives us his impressions
(SEYERSTED
4
apud SEYERSTED, 1980, p. 51).
ele foi um homem que fugiu da tradição e da autoridade, que
entrou em si mesmo e olhou para a vida através de seu próprio
ser e com seus próprios olhos; e que, de uma maneira simples
e direta, disse-nos o que viu. Quando um homem faz isso, ele
nos dá o melhor que pode; algo valioso por ser genuíno e
espontâneo. Ele nos dá suas impressões.
4
Seyersted, Per. (org.). Complete Works of Kate Chopin. Baton Rouge, 1969, p. 700-701.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
27
Logo a partir de seus primeiros contatos com os textos de
Maupassant, principalmente aqueles que tratavam de temas como sexo,
solidão e suicídio, Chopin demonstrou sua decisão por tentar definir tanto sua
técnica de escrita, como os elementos que viriam compor seu leque temático,
sua marca registrada.
Após algumas tentativas frustradas, a escritora conseguiu
publicar, no ano de 1889, duas novas short-stories, “Wiser Than a God” e “A
Point at Issue”, a primeira no Philadelphia Musical Journal e a outra no Post-
Dispatch. Dois anos depois, terminou de escrever At Fault, romance que trata
de temas como o casamento e o divórcio que, tendo sido recusado por um
primeiro editor, foi lançado e distribuído por conta da própria escritora. Apesar
de alguns críticos mencionarem passagens e personagens consideradas
moralmente incorretas, o livro teve repercussão positiva, com elogios à
habilidade artística da autora.
De acordo com Emily Toth (1999, p. 110-1), os editores
americanos da época não se mostravam interessados no sofrimento das
esposas, mas preferiam as “New Women”. Essas mulheres se auto definiam
como solteiras que tinham uma profissão e que viviam sozinhas ou com uma
outra mulher naquilo que chamavam de “Boston marriage”. Assim, nos anos de
1890, uma grande parcela da população feminina permaneceu solteira por
escolha própria e para muitos tradicionalistas, as “New Women” eram criaturas
fascinantes e ameaçadoras.
Toth (Ibidem, p. 178) acrescenta que Kate Chopin conviveu de
perto com uma representante dessa nova classe de mulheres, a jornalista
Florence Hayward:
Eliza might also have been intrigued by Kate’s friend Florence
Hayward, the New Woman journalist who traveled frequently to
London and sent back dispatches to the St. Louis Globe-
Democrat. The word “feminist” had not yet been invented (it
first appeared in print in 1895), but Hayward was one. She
supported votes for women; insisted on respect for professional
women; and presented herself as both humorous and intrepid.
In her assertive style, mingled with gawkiness and singular
independence, she anticipates Mademoiselle Reisz in The
Awakening. Hayward and Kate Chopin liked to smoke
cigarettes together, which was a great bond for women in the
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
28
days when ladies supposedly did not smoke. Men withdrew to
smoking rooms for their cigars; ladies had to find their own,
often secret spots (TOTH, 1999, p. 178).
Eliza poderia também ter ficado fascinada pela amiga de Kate,
Florence Hayward, a jornalista representante da Nova Mulher
que viajava freqüentemente para Londres e despachava para o
Globe-Democrat de St. Louis. A palavra “feminismo” ainda não
havia sido inventada (ela apareceu impressa pela primeira vez
em 1895), mas Hayward era uma delas. Ela defendia o voto
para as mulheres; insistia no respeito para mulheres
profissionais; e apresentava-se como bem-humorada e
intrépida. No seu estilo positivo, mesclado com uma
independência simplória e singular, ela antecipou
Mademoiselle Reisz em The Awakening. Hayward e Kate
Chopin gostavam de fumar cigarros juntas, o que era um
grande elo para as mulheres nos tempos em que as mulheres
supostamente não fumavam. Os homens afastavam-se para as
salas de fumantes com seus charutos; as mulheres tinham que
achar seus próprios locais, geralmente secretos.
Apesar de ter escrito sobre essa nova mulher, uma vez que se
tratava de um assunto pelo qual o mercado estava aparentemente interessado,
a escritora não parecia muito à vontade no início de sua carreira, pois temia
que seus textos não fossem aceitos pelos homens que eram os principais
editores das revistas. Mesmo assim, por meio de suas “New Women”, como a
protagonista do conto “A Point at Issue”, Chopin já promovia uma redefinição
do casamento como uma relação entre iguais, bem como uma reavaliação do
papel da mulher na sociedade.
Estimulada pelos elogios e logo depois de destruir um possível
romance, Kate Chopin lançou-se nos três anos seguintes à produção de
contos, que tiveram fácil aceitação das revistas especializadas da época.
Seyersted (1980, p. 54) nos conta que um deles, “Boulôt and Boulotte”, rendeu
até uma carta de William Dean Howells, então editor da Harper’s Young
People, elogiando e incentivando a autora a produzir contos do mesmo tipo.
Entretanto, comprovando os temores da escritora em relação à crítica, o
interesse do mercado editorial em contos, como o acima mencionado, que trata
da história de duas crianças pobres que, ao comprarem seus primeiros pares
de sapatos, retornam para casa descalços para não gastá-los, não se
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
29
confirmou em relação aos contos que traziam os questionamentos mais
profundos da autora a respeito da temática feminina.
Segundo Seyersted (1980, p.54-55), “A Shameful Affair” e “Mrs.
Mobry’s Reason” foram constantemente recusados pelos editores das revistas,
até serem finalmente publicados pela Times-Democrat de New Orleans,
enquanto que outras histórias tiveram que esperar até cinco anos pela
publicação, como é o caso de “Miss McEnders”. Apesar disso, a maioria de
seus contos escritos até esse período não apresentava grande dificuldade de
serem aceitos pelos editores e, em março de 1894, Kate Chopin conseguiu
lançar Bayou Folk, uma coletânea de vinte e três histórias ambientadas na
Louisiana, incluindo contos como “Désireé’s Baby”, “Madame Célestin’s
Divorce”, “At the ‘Cadian Ball” e “La Belle Zoraïde”.
Com a boa recepção do livro nos meios literários locais, Kate
Chopin entrou para o rol dos local colorists, grupo de escritores que mesclavam
elementos românticos às descrições realistas e eram interessados em
descrever os dialetos, a região e os costumes do povo.
Like the authors of this school, she concentrated on the
characters of a very definite part of the country, painting them in
their physical and social setting. Though only lightly suggested
in her writings, the enchanting southern atmosphere creeps into
our senses, and though discreetly represented, the peculiarities
of the Creoles, Cajuns, and Negroes are clearly evoked. The
musical and mimic gifts of this acute observer helped her to
give an entirely correct rendering of the dialects of these
groups, and the close contacts she had had with the high and
low of her region, as society woman or shopkeeper, enabled
her to portray intimately their lives and their idiosyncrasies
(SEYERSTED, 1980, p. 75).
Assim como os autores dessa escola, ela se concentrou em
personagens de uma parte definida do país, pintando-as em
seu cenário físico e social. Apesar de estar somente sugerido
em seus escritos, a encantadora atmosfera sulista causa
arrepios em nossos sentidos, e embora discretamente
representadas, as peculiaridades dos Creoles, dos Cajuns e
dos Negros são claramente evocadas. Os dons musicais e
imitativos desta observadora crítica auxiliaram-na a dar uma
versão inteiramente correta dos dialetos desses grupos, e os
contatos estreitos que ela havia tido com todos os tipos de
pessoas de sua região, fosse mulher da sociedade ou lojista,
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
30
habilitaram-na a retratar intimamente suas vidas e suas
idiossincrasias.
A maior parte de suas histórias foi ambientada na Louisiana,
principalmente na região do Cane River, retratando, por exemplo, os mais
diversos representantes da raça negra, que sempre foram muito bem tratados
em sua casa. Essa atitude pode ser explicada pelo fato de Kate Chopin, de
família branca de classe média, ter sido criada por negras e ter vivido em uma
casa repleta de criados negros. Apesar de nunca ter criticado de forma mais
contundente a questão da escravidão, muitos de seus personagens negros são
caracterizados como pessoas de bom caráter, que sofrem com as
conseqüências de sua condição. Para a escritora, os brancos não poderiam
conhecer verdadeiramente os negros, pois tanto o sofrimento como a opressão
os tinha separado (TOTH, 1999, p. 12). Em alguns de seus contos como “La
Belle Zoraïde” e “Désirée’s Baby”, ela aborda os temas da escravidão e da
miscigenação.
Chopin was the first white American woman to describe a dark
black man as beautiful, and one of the first to show the
thoughtless white world through the eyes of a woman of color –
at a time when her Louisiana contemporaries, Grace King and
Ruth McEnery Stuart, were writing about happy slaves and
tragic octoroons (TOTH, 1999, p. 139).
Chopin foi a primeira escritora americana branca a descrever
um homem negro como belo, e uma das primeiras a mostrar o
mundo branco imprudente através dos olhos de uma mulher
negra – numa época em que suas contemporâneas da
Louisiana, Grace King e Ruth McEnery Stuart, estavam
escrevendo sobre alegres escravos e trágicos oitavões
5
.
Nesse sentido, nota-se que a autora adota uma postura focada
mais em questões individuais do que sociais, evitando muitas vezes criticar e
condenar atitudes ou manifestar abertamente suas opiniões no que dizia
respeito à moral da época. Em vez disso, prefere manter certa imparcialidade,
criando personagens que, individualmente, desafiam as convenções e as
situações pelas quais eles são submetidos, funcionando como veículos para
reflexão do leitor.
5
Segundo o dicionário eletrônico Aurélio, oitavão é aquele que tem um oitavo de sangue negro.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
31
Para Seyersted (1980, p. 96), por estar muito mais interessada no
ser humano do que nas especificidades das raças, a visão contestadora de
Kate Chopin sempre valorizou pessoas que, assim como os cajuns e os
creoles, e mais ainda os negros, não demonstravam ter muitas ambições de
ascensão social e financeira e apresentavam características como a
espontaneidade e a naturalidade, vivendo para o prazer do presente. Assim, o
tratamento dado por Chopin a essas diferentes raças e classes sociais é
sempre realista e isento de opiniões preconceituosas, manifestando a
preocupação de encará-los a partir de dentro, simplesmente como seres
humanos.
Mas apesar de ter apresentado muitas características que
confirmam a sua identificação com o local colorism, é importante ressaltar que
Kate Chopin não fez uso desses aspectos como forma de exaltar a região da
Louisiana e seu povo, uma vez que esse não consistia no principal enfoque de
sua obra.
Though the local color of Kate Chopin’s Louisiana stories is
unmistakable, they could be set almost anywhere. Her interest
was universal human character rather than the local per se, and
it is significant that she refused to be considered a local colorist
and resented being compared as such to Cable and Grace
King
6
. That her vision went far beyond the regional or topical
can be clearly seen in her very first piece of critical writing
(SEYERSTED, 1980, p. 83).
Apesar de o regionalismo das histórias de Kate Chopin ser
inconfundível, estas poderiam estar estabelecidas em qualquer
lugar. Seu interesse era a personagem humana universal mais
do que a personagem local em si, e é importante que ela tenha
se recusado a ser considerada uma local colorist e tenha se
ressentido ao ser comparada a Cable e Grace King. Que a sua
visão ia muito além do regional ou do local pode ser
claramente percebida em seu primeiro texto crítico.
No mesmo ano da publicação de Bayou Folk, Chopin escreveu
um de seus contos mais famosos “The Story of an Hour” que, segundo Emily
Toth (1999, p. 10), utiliza em sua temática o episódio da morte de seu pai num
acidente ferroviário. Nessa história, a protagonista Mrs. Mallard descobre que
6
Entrevista de Kate Chopin em RANKIN, D. S. Kate Chopin and her Creole Stories.
Philadelphia, 1932.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
32
seu marido morre (nas mesmas condições em que o pai da escritora),
deixando-a livre para ser dona de sua própria vida. Num final surpreendente, o
marido reaparece e quem acaba não suportando a volta à condição anterior é a
protagonista, que morre do coração.
Kate Chopin geralmente batizava suas personagens com nomes
parecidos com aqueles que inspiraram as histórias, como é o caso da
protagonista Louise Mallard. Seu nome lembra a pronúncia francesa de Eliza,
nome da mãe da escritora, enquanto o sobrenome se assemelha muito a
Bullard, que é um dos homens que também morreu no acidente de trem que
matou seu pai, quando Kate ainda era criança. O conto pode, então, ser lido
como uma crítica ao casamento de Eliza O’Flaherty, e à submissão da esposa
às vontades do marido. Para torná-lo publicável, porém, a escritora precisou se
decidir pela morte da personagem principal, justamente no momento em que se
vê livre para escolher seu próprio caminho, já que não poderia reproduzir
perante a sociedade a situação real que inspirou o conto e mostrar a felicidade
de Eliza e da própria Kate com a morte de Thomas O’Flaherty (TOTH, 1999, p.
10).
Assim, é relevante destacar a posição da autora no desfecho do
conto, pois, consciente da situação social da mulher de sua época, percebe a
impossibilidade de um final feliz para a protagonista e discute a hipocrisia da
sociedade patriarcal, representada pelas demais personagens, ao creditar sua
morte à euforia de rever o marido.
O conto revela também que, após o lançamento de seu primeiro
livro, Kate Chopin se sentiu mais à vontade para mostrar maior interesse pelos
aspectos psicológicos de suas personagens e tratar de temas que sempre
fizeram parte de suas inquietações e que só vieram à tona depois que passou
a ser reconhecida, não só como uma local colorist, mas como uma escritora em
nível nacional.
Ainda mais influenciada e fascinada pela naturalidade e franqueza
com que Maupassant tratava das relações entre os sexos e da vida íntima das
mulheres, passou também a abordar tais temas com maior freqüência e
intensidade, trazendo como alicerce a consciência que tinha da situação social
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
33
da mulher de seu tempo e questionando a ordem vigente. A esse respeito,
Seyersted (1980, p. 98) afirma que:
after having in a manner formulated her opinions on idealism,
moralism, and certain Southern problems, she turned to what
she really wanted to write about: the impulses which are found
in men and women all over the globe, especially love and
sexuality. Her particular ambition was to describe woman, to
give a true picture of the fundamentals of her existence, and to
apply to it a more powerful realism than that introduced by
Mme. de Staël and George Sand.
depois de ter, de certa forma, formulado suas opiniões no
idealismo, no moralismo, e em certos problemas do sul, ela se
voltou para o que realmente queria escrever: os impulsos que
são encontrados em homens e em mulheres por todo o mundo,
especialmente o amor e a sexualidade. Sua particular ambição
era descrever a mulher, dar um retrato verdadeiro dos
fundamentos de sua existência, e aplicar a ele um realismo
mais poderoso do que o que foi introduzido por Mme. de Staël
e George Sand.
Segundo Toth (1999, p. 170), com o sucesso da primeira
coletânea de contos, Kate Chopin começou a procurar novos mercados para
essas histórias menos tradicionais. Mas a tradição local, representada pelo
poderoso editor da The Atlantic, o escritor William Dean Howells, o mesmo
que havia elogiado um conto de Chopin, não se mostrou nem um pouco
favorável à sua visão a respeito da mulher.
(...) Howells preferred “the more smiling aspects of life, which
are the more American,” rather than the tragic or melancholy
themes treated by such Europeans as Guy de Maupassant. In
particular, Howells insisted that American authors avoid “certain
facts of life which are not usually talked of before young people,
and especially young ladies.” No American, Howells said,
would write anything like Madame Bovary or Anna Karenina,
novels about “guilty love” (he would not say adultery). And if an
American writer tried to do so, Howells asked, “What editor of
what American magazine would print such a story?” (TOTH,
1999, p. 170-1).
(…) Howells preferia “os aspectos mais alegres da vida, que
são mais americanos,” em vez de temas trágicos e
melancólicos tratados por europeus tais como Guy de
Maupassant. Em particular, Howells insistia que os autores
americanos evitassem “certos fatos da vida que são
geralmente comentados diante dos jovens, e especialmente de
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
34
jovens moças.” Nenhum americano, Howells disse, escreveria
nada como Madame Bovary ou Anna Karenina, romances
sobre “o amor culpado” (ele não diria adultério). E se um
escritor americano tentasse fazer isso, Howells perguntou,
“Qual editor de qual revista americana publicaria tal história?”
Mesmo assim, depois de Bayou Folk, Chopin chegou a escrever
cerca de quarenta short-stories até 1897, ano de publicação de seu segundo
livro A Night in Acadie
7
que continha, entre outros contos, “Athénaïse”, “A
Respectable Woman”, “A Matter of Prejudice” e “A Sentimental Soul”. Graças
ao sucesso desse livro, muitos contos de Kate Chopin conseguiram ser
publicados em revistas renomadas como a Atlantic e a Century, mas a
ousadia no tratamento da temática impediu a publicação de muitos outros
como “Two Portraits”, que foi recusado por todos os editores da época. O caso
de “Lilacs” e de “A Vocation and a Voice” foi um pouco diferente, pois
conseguiram ser publicados, mas depois de muitas tentativas frustradas. O
título desse último conto seria também o de sua terceira coletânea que, apesar
de estar com edição garantida, não chegou a ser lançada por causa das
repercussões negativas que teve seu romance mais famoso, The Awakening,
em 1899.
Considerada sua obra-prima, esse romance revela uma grande
preocupação com a clareza de estilo, dando a impressão de que a autora está
expressando exatamente o que ela quer dizer, sem, contudo, forçar o leitor a
aceitar seus pontos de vista, a exemplo de um autor maduro. Em seu texto,
como nos de Poe, tudo contribui para o efeito, ou seja, o cenário, as
personagens, os símbolos, a atmosfera, o tom, bem como os paralelismos e os
contrastes (SEYERSTED, 1980, p. 162-163).
Podendo ser comparado a Madame Bovary, livro de Flaubert tão
criticado por Howells, o segundo romance de Kate Chopin trouxe a história de
Edna Pontellier, que abandona os compromissos como mãe e esposa, num
casamento sem amor e se entrega a uma trajetória de emancipação e
aventuras amorosas. Essas atitudes conduzem a protagonista primeiramente à
perda das ilusões e à conscientização da imutabilidade de sua condição e,
7
Acadie ou Acadia nos remete ao sul da Louisiana, embora Kate Chopin tenha escolhido a
região de Cane River, mais ao norte, como cenário para vinte e uma das histórias do livro.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
35
mais tarde, ao inevitável suicídio, visto como única saída válida para uma
mulher demasiado avançada para a moral vitoriana. Com isso, Kate Chopin
deu à protagonista do romance uma necessidade de liberdade, acompanhada
por um desejo de emancipação sexual, completamente incompatíveis com a
conduta moral esperada para uma mulher do século XIX, pois:
if the process of existential individuation is taxing on a man and
freedom a lonely and threatening thing to him, it is doubly so for
a woman who attempts to emancipate herself from the state of
immanence to which our patriarchal world has assigned her for
millenniums (SEYERSTED, 1980, p. 148).
se o processo de individuação existencial é cobrado de um
homem e a liberdade é uma coisa solitária e ameaçadora para
ele, é em dobro para uma mulher que tenta se emancipar do
estado de imanência em que nosso mundo patriarcal
determinou para ela por milênios.
E, se por um lado, seu trabalho foi elogiado pelo perfeito domínio
de forma e linguagem, por outro, a hostilidade da crítica recaía sobre a
utilização e discussão menos velada de temas polêmicos como o divórcio e a
infidelidade feminina. Talvez este também tenha sido o motivo de uma maior
aceitação dos primeiros textos de Kate Chopin, não por revelarem um menor
comprometimento com a realidade, mas pelo fato de este comprometimento ter
se mostrado expresso de maneira menos direta e objetiva do que em seus
trabalhos posteriores.
Esperava-se que uma local colorist apenas retratasse a vida das
comunidades creole e da aristocracia sulista católica e qualquer desvio em
relação a esse padrão seria desaprovado tanto pela crítica como pelo público.
Em vez disso, Kate Chopin escreveu, em 1898, um de seus últimos contos,
“The Storm” que, ao tratar abertamente do tema sexo e descrevê-lo de maneira
direta e sem reservas, demonstrou sua coragem e ousadia estilística,
rompendo completamente com os preceitos morais vigentes. Por esse motivo,
contrariando a todas as expectativas do público e da crítica, a escritora revelou
estar à frente de seu tempo, dedicando-se à questão da sexualidade feminina a
fim de discutir a representação de sua identidade, inaugurando assim um novo
campo na literatura americana.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
36
She was the first woman writer in her country to accept passion
as a legitimate subject for serious, outspoken fiction. Revolting
against tradition and authority; with a daring which we can
hardly fathom today; with an uncompromising honesty and no
trace of sensationalism, she undertook to give the unsparing
truth about woman’s submerged life. She was something of a
pioneer in the amoral treatment of sexuality, of divorce, and of
woman’s urge for an existential authenticity. She is in many
respects a modern writer, particularly in her awareness of the
complexities of truth and the complications of freedom. With no
desire to reform, but only to understand; with the clear
conscience of the rebel, yet unembittered by society’s massive
lack of understanding, she arrived at her culminating
achievements, The Awakening and “The Storm” (SEYERSTED,
1980, p. 198).
Ela foi a primeira mulher em seu país a aceitar a paixão como
assunto legítimo para uma ficção séria e franca. Revoltando-se
contra a tradição e a autoridade, com uma ousadia que nós
dificilmente compreenderíamos hoje, com uma honestidade
descompromissada e nenhum traço de sensacionalismo, ela se
encarrega de fornecer a dura verdade sobre a vida submersa
da mulher. Ela foi pioneira no tratamento amoral da
sexualidade, do divórcio, e do anseio por uma autenticidade
existencial. Ela é, em muitos aspectos, uma escritora moderna,
particularmente em sua consciência das complexidades da
verdade e complicações da liberdade. Sem nenhum desejo de
reformar, mas apenas de entender; com a nítida consciência
do rebelde, apesar de amargurada pela falta de entendimento
massivo da sociedade, ela atinge seus feitos mais elevados,
The Awakening e “The Storm”.
Quanto às críticas que recebeu, estas tinham sempre o tom
moralizador encontrado, por exemplo, na edição do dia 1º de junho de 1899 do
Chicago Times Herald, que deixava clara a preferência pela criadora de doces
e amáveis personagens, afirmando não achar necessário para uma escritora
de tão grande refinamento e graça poética entrar no campo do sexo
(SEYERSTED, 1980, p. 177).
Apesar de todas essas críticas, Kate Chopin, que era conhecida
por levar muito a sério a arte, raramente pedia opinião ou conselho sobre seus
escritos, fazendo muito poucas alterações depois de considerá-los prontos.
Além disso, a temática polêmica sobre as questões femininas continuou a ser
utilizada por ela, o que contribuiu sensivelmente para que essas críticas se
intensificassem ainda mais no final de sua carreira. Seu romance mais famoso
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
37
havia sido censurado, considerado indecente, escandaloso e alguns críticos
chegaram a desejar que Kate Chopin nunca o tivesse escrito, pois a
protagonista Edna Pontellier não poderia ter se rebelado contra o casamento,
mas deveria se sentir satisfeita com ele, já que o marido lhe dava tudo o que
queria, inclusive liberdade.
Para Annette Kolodny (1980, p. 455) os motivos que levaram o
romance a tal rejeição do público devem-se principalmente ao fato de que Kate
Chopin se desviou das normas aceitas pela sociedade, penetrando no campo
proibido e polêmico do sexo.
The appearance of Kate Chopin’s novel The Awakening in
1899, for example, perplexed readers familiar with her earlier
(and intentionally “regional”) short stories not so much because
it turned away from themes or subject matter implicit in her
earlier work, nor even less because it dealt with female
sensuality and extramarital sexuality, but because her
elaboration of those materials deviated radically from the
accepted norms of women’s fiction out of which her audience
so largely derived its expectations.
O surgimento do romance de Kate Chopin “The awakening” em
1899, por exemplo, perturbou leitores acostumados com seus
primeiros (e intencionalmente “regionais”) contos não tanto
porque desviou dos temas ou assuntos implícitos em sua obra
inicial, nem porque tratou da sensualidade feminina e da
sexualidade extraconjugal, mas porque sua elaboração desses
materiais afastou-se radicalmente das normas aceitáveis da
ficção feminina, fora da qual sua audiência tão amplamente
originou suas expectativas.
Mesmo tendo recebido várias manifestações de consolo por parte
de amigos, a escritora deixou-se abalar pelas críticas negativas e pelos fortes
ataques a The Awakening. Suas últimas histórias revelavam uma clara
amargura em relação ao mundo, enquanto seus temas remetiam quase sempre
à solidão, à tristeza, à cegueira, à deslealdade e à morte (TOTH, 1999, p. 229)
e até em sua aparência se operou uma transformação: a “nova Kate Chopin
traz o cabelo em um penteado asseado e usa um vivo terno de trabalho do tipo
comumente usado pelas sufragistas, professoras e outras New Women
(TOTH, 1999, p. 233).
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
38
Por outro lado, a sociedade, a crítica e o público em geral
demonstraram claramente não estarem preparados para encarar a temática da
emancipação e do despertar da mulher presente em sua obra, defendendo a
permanência de velhas normas sociais e revelando a maneira condicionada
com que esses valores faziam parte de suas convicções. Tal fato ocorreu
devido à necessidade de conservação de certos padrões por parte do público
leitor que, ao agir dessa maneira, expressa uma atitude de conformidade frente
aos valores vigentes e uma dificuldade “de manifestar um juízo livre de
injunções diretas do meio em que vivemos” (CANDIDO, 2002, p. 36). É o que o
crítico explica ao afirmar que, além da obra e do autor, há ainda um terceiro
elemento que participa dessa relação inextricável do ponto de vista sociológico,
que é o público. Para ele,
o público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não
se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua
imagem enquanto criador. Os artistas incompreendidos, ou
desconhecidos em seu tempo, passam realmente a viver
quando a posteridade define afinal o seu valor. Desse modo, o
público é fator de ligação entre o autor e a sua própria obra
(Ibidem, p. 38).
E apesar de as idéias feministas já se mostrarem relativamente
adiantadas nos Estados Unidos, tal abordagem polêmica revelou-se ainda
bastante perturbadora para os leitores americanos da virada do século, que
reagiram de forma a conduzir tanto a obra quanto a autora a um completo
isolamento da sociedade. Seus livros foram banidos das bibliotecas e rotulados
como veneno para a moral da época, enquanto que Kate Chopin foi afastada
até do St Louis Fine Arts Club, do qual fazia parte, permanecendo inconsolável
e solitária até sua morte em 1904. A escritora, que sempre foi conhecida pelo
senso de humor apurado e pela força com que encarava as adversidades, não
conseguiu suportar o peso das críticas desfavoráveis em relação à sua obra,
principalmente por perceber que o escândalo destruía sua carreira e abalava
sua reputação:
Mrs. Chopin’s closest friends realized that the scandal had
frozen the author’s creativity and hurt her to the core of her
being. They were also convinced that she had much more to
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
39
say and could go beyond The Awakening (SEYERSTED, 1980,
p. 179).
os amigos mais chegados da senhora Chopin perceberam que
o escândalo tinha paralisado a criatividade da autora e ferido a
essência de seu ser. Eles também estavam convencidos de
que ela tinha muito mais a dizer e poderia ir além de The
Awakening.
Somente a partir de 1953, alguns críticos renomados como
Edmund Wilson e Larzer Ziff retomam o estudo da vida e da obra de Kate
Chopin, tirando-a do esquecimento e estabelecendo uma nova relação com a
crítica, até que em 1969, época da efervescência do movimento de liberação
da mulher nos Estados Unidos, Per Seyersted publica o livro The Complete
Works of Kate Chopin, que inclui seu primeiro romance, At Fault, ensaios,
poemas e uma grande quantidade de contos inéditos.
Condenada a um esquecimento que durou mais de cinqüenta
anos, tanto a escritora como sua obra foram redescobertas graças ao
movimento feminista do final dos anos sessenta, com seu trabalho de
reavaliação e revalorização da obra de escritoras do passado. Com essa
revalorização, Kate Chopin ressurge como uma escritora que soube tratar de
maneira direta os temas relativos às questões femininas, sendo muitas vezes
chamada de feminista, pois, ao se referirem a The Awakening, por exemplo,
the early student rediscoverers in the 1970s saw Edna as a
precursor of their own Sexual Revolution (…). American
readers in 1980s saw Edna as a Baby Boom heroine, an
independent woman who moves out of her husband’s house,
lives on her own, and makes a living from her art (TOTH, 1999,
p. xx).
as novas pesquisadoras redescobridoras dos anos 70 viam
Edna como uma precursora de sua própria Revolução Sexual
(...). Leitores americanos nos anos 80 viam Edna como uma
heroína do Baby Boom, uma mulher independente que se
muda da casa de seu marido, vive sozinha, e ganha a vida com
sua arte.
Contrariamente, há críticos, como Per Seyersted (1980, p. 169),
que defendem a idéia de que, apesar de ter escrito algumas histórias com
caráter feminista, a maior parte de sua obra não carrega a carga ideológica
referida, devendo ser a escritora entendida como aquela que escreve sobre
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
40
ambos os sexos, utilizando um alto grau de imparcialidade e objetividade. Para
ele:
Kate Chopin was never a feminist in the dictionary sense of the
term, that is, she never joined or supported any of the
organizations through which women fought to get “political,
economic, and social rights equal to those of men.” Not only did
she shy away from societies and issues in general, but she
probably regarded the New World feminists as unrealistic when
they so closely allied themselves with efforts to elevate men to
their own supposedly very high level of purity; she undoubtedly
concurred with the early George Sand, who felt that woman
largely had the same drives as man and therefore also should
have his “rights”
8
(Seyersted, 1980, p. 102).
Kate Chopin nunca foi uma feminista no sentido literal do
termo, ou seja, ela nunca ajudou ou se associou a nenhuma
das organizações por meio das quais as mulheres lutaram para
conseguir “direitos políticos, econômicos e sociais iguais aos
dos homens”. Nem tampouco se esquivou de comunidades e
discussões em geral, mas ela provavelmente considerava as
feministas do Novo Mundo irrealistas ao se aliarem tão
firmemente a esforços para elevar os homens ao seu próprio
suposto alto nível de pureza; ela indubitavelmente concordava
com a jovem George Sand, que sentia que a mulher tinha em
abundância os mesmos impulsos que o homem e, portanto,
também deveria ter os direitos deles.
Na opinião de Seyersted, que não nega a presença de um
protesto em relação à condição feminina em The Awakening, Kate Chopin não
fala conscientemente como mulher em sua obra, mas sim como um indivíduo e
afirma que a individualidade de suas heroínas era sempre mais importante que
sua feminilidade (1980, p. 168). O que interessa mais especificamente para
Kate Chopin, ainda segundo Seyersted (1988, p. 2), são “os aspectos da
psiquê feminina” e o interesse particular da escritora é o despertar da
verdadeira natureza da mulher, seja ela tradicional, emancipada ou moderna.
Isso ocorre porque:
just as Mrs. Chopin saw that the problems confronting her sex
were too complicated to admit of easy solutions, she was also
well acquainted with the manifold tendencies in the women
themselves. It seems more than an accident that her three
earliest extant stories are each in turn devoted to one of what
8
Parafraseado de Webster’s New World Dictionary of the American Language. College
Edition Cleveland and New York, 1956.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
41
we might call the three main types of women: the “feminine,”
the “emancipated,” and the “modern” (to use the terminology of
Simone de Beauvoir’s The second sex), and that the tension
between the two leading components of this triad was to
reverberate through her whole oeuvre (SEYERSTED, 1980, p.
103).
assim como a senhora Chopin via que os problemas
enfrentados pelo seu sexo eram complicados demais para
admitir soluções fáceis, ela também estava inteirada a respeito
das diversas tendências das próprias mulheres. Parece mais
do que um acidente que suas três primeiras histórias tenham
sido sucessivamente devotadas a um dos que podemos
chamar de os três principais tipos de mulher: a “feminina”, a
“emancipada” e a “moderna” (para usar a terminologia de O
segundo sexo de Simone de Beauvoir), e que a tensão entre
os dois componentes principais desta tríade repercutiu através
de toda a obra.
Assim, pode-se afirmar que não há uma visão única em relação à
mulher na obra de Kate Chopin, pois, enquanto algumas de suas heroínas já
conseguem transcender suas condições limitadas e tomar atitudes mais
arrojadas e revolucionárias, outras ainda ficam divididas entre seguir as leis
impostas pela sociedade ou agir de maneira a respeitar sua individualidade.
Diante dessa atitude, pode-se entender que a escritora não tenha se revelado
abertamente como uma feminista, uma vez que seus textos apontam para a
necessidade de liberdade de escolha de qualquer ser humano,
independentemente de raça ou sexo.
Entretanto, o fato de ter vivenciado as dificuldades da condição
feminina de sua época faz com que Kate Chopin não esconda sua postura
crítica em relação à instituição do casamento e aos próprios homens que, na
maior parte de sua obra, são representados por personagens que demonstram
um completo desconhecimento das reais necessidades da mulher. Além disso,
a abordagem da temática da sexualidade das personagens femininas aparece
em sua obra como um traço definidor da sua identidade. Por essa razão, seus
contos ficaram conhecidos principalmente por enfocar a importância de se
descobrir a verdadeira identidade da mulher do século XIX, enquanto seus
principais enredos revelam um interesse especial pelo despertar de uma nova
mulher. De acordo com Toth (1999, p. 194), esse despertar é manifestado
quase sempre internamente em suas personagens femininas, pois as
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
42
mudanças do coração, responsáveis pelo crescimento interior do ser humano
são as que realmente importam para Chopin.
Sua visão singular em relação às mulheres e a maneira com que
incluiu a sexualidade em sua obra como parte do processo de liberação
feminina mostram que era fácil perceber que a escritora fazia parte de um
movimento, ou pelo menos do zeitgeist
9
(TOTH, 1999, p. xxi). Sabe-se, porém,
que Kate Chopin nunca se declarou ativista. Também é sabido que o conceito
de feminismo (que apareceu impresso a partir de 1895) esteve quase sempre
atrelado a esse ativismo político. Apesar disso, é possível que a escritora seja
vista como uma feminista, não só por manifestar em sua obra um interesse
peculiar pelas questões da mulher do seu tempo, mas principalmente por ter
enfrentado, em sua própria vida e carreira, todas as dificuldades de uma
profissão tipicamente masculina em uma sociedade que não aceitava o
trabalho feminino remunerado.
Certainly the women in Kate Chopin’s family did work within the
home, administering mammies, nurses, cooks, laundresses,
maids, and yard men. But the ladies of Chopin’s social class
did not work for wages, nor did their names appear in
newspaper and magazines until the advent of society columns
in the 1870’s. Chopin, though, had decided to step outside that
familiar private realm. She would earn money from her work,
and she would be written about, and promoted and criticized,
just as men were. There were, of course, career women – New
Women – in St. Louis, but most were single (…). But there
were no local women who aspired to be literary artists (TOTH,
1999, p. 121-2).
Certamente as mulheres da família de Kate Chopin
trabalharam dentro de casa, administrando as criadas negras,
as amas, as cozinheiras, as lavadeiras, as empregadas, e os
jardineiros. Mas as mulheres da sua classe social não
trabalhavam por salários, nem tinham seus nomes nos jornais
e revistas até o advento das colunas sociais nos anos de 1870.
Chopin, entretanto, havia decidido se afastar daquele domínio
familiar privado. Ela ganharia dinheiro com seu trabalho, e
escreveriam sobre ela, e a favoreceriam e a criticariam, assim
como eram os homens. Havia, é claro, mulheres com carreira –
as New Women – em St. Louis, apesar de a maioria ser
solteira (...). Mas não havia mulheres da região que
aspirassem ser artistas literárias.
9
Do alemão, zeitgeist pode ser traduzido aqui como “o espírito de seu tempo”.
O “DESPERTAR” DE KATE CHOPIN
43
Assumindo ou não o rótulo de feminista, o fato é que o caráter
precursor da escritora manifestou, tanto em sua vida como em sua obra, uma
preocupação em expressar os anseios e aspirações femininas da segunda
metade do século XIX, estabelecendo como tema central de seus contos a
independência da mulher e desafiando as convenções sociais com atitudes
pessoais pouco recomendadas pelos costumes vitorianos tradicionais.
Cabe aqui discutir os principais aspectos da problemática feminina
na obra de Kate Chopin a fim de afirmar em que medida a escritora propõe
uma desconstrução dos valores patriarcais vigentes em seu tempo,
questionando a ideologia da sociedade tradicional. Vale ressaltar que essa
discussão tem lugar principalmente a partir da análise das principais
estratégias utilizadas pela escritora em sua obra, que são responsáveis pela
representação de figuras femininas dos mais diversos tipos, bem como por
situações narrativas em que a construção da identidade da mulher na ficção
seja capaz de refletir a necessidade de um processo de recodificação de seu
papel na sociedade.
CAPÍTULO 2
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA POR
“UM TETO TODO SEU”
11
Toda arte é condicionada pelo seu
tempo e representa a humanidade
em consonância com as idéias e
aspirações, as necessidades e as
esperanças de uma situação
histórica particular. Mas, ao mesmo
tempo, a arte supera essa limitação
e, dentro do momento histórico, cria
também um momento de
humanidade que promete constância
no desenvolvimento.
Ernest Fischer
11
Em alusão ao livro A Room of One’s Own, de Virginia Woolf.
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
45
necessidade de uma perspectiva histórica no presente
estudo surge ao se perceber que o conhecimento dos
principais aspectos históricos, sociais, políticos, econômicos e literários da
segunda metade do século XIX permitirá compreender melhor os textos
produzidos pelas mulheres desse período, bem como a crítica literária feminista
que surge no século seguinte, tornando possível uma reavaliação desses
textos, sob uma nova perspectiva, de maneira a questionar as leituras
realizadas a partir da visão masculina tradicional. Por essa razão, os principais
preceitos da Crítica Literária Feminista conduzem o leitor, mesmo que de
maneira inconsciente, a analisar as obras escritas por mulheres sob um ponto
de vista histórico e a refletir sobre a condição feminina através dos tempos, a
fim de estabelecer uma relação dialógica, em que se tenta explicar a influência
do meio social na obra e, ao mesmo tempo, a influência da obra sobre o meio
social. Para Souza (2002, p. 45):
A
a noção fundamental de que a literatura é tanto produto quanto
prática social é uma das correntes das mais frutíferas da crítica
literária. No que diz respeito a críticas “engajadas”, tais como a
feminista, ela propicia um vínculo importantíssimo ao revelar
como a ficção, em nosso caso a literatura, é parte fundamental
da formação da subjetividade ao mesmo tempo em que nasce
de um dado momento histórico.
Dessa forma, o artista é responsável por transmitir em sua obra,
além de um conjunto ideológico que representa os valores da sociedade em
que vive, os seus valores pessoais e a concepção que tem do mundo,
escolhendo temas e recursos em meio aos vários tipos de experiência,
estabelecendo assim “o jogo dialético entre a expressão grupal e as
características individuais do artista” (CANDIDO, 2000, p. 23). O crítico
brasileiro acredita que a obra de arte seja produto de uma confluência entre a
iniciativa individual do artista e as condições sociais de sua produção, ou seja,
a obra de arte desempenha o papel de condutor das idéias e concepções do
artista a respeito do mundo que o cerca, sejam elas pessoais ou coletivas, fruto
de reflexão e questionamento desse meio ou resultado da aceitação dos
padrões estabelecidos. Assim,
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
46
as formas literárias são maneiras determinadas de ver o
mundo e, como tais, têm relações com a forma dominante de
ver o mundo que é a “mentalidade social” ou ideologia de uma
época. Essa ideologia é, por sua vez, produto das relações
concretas que os homens estabelecem entre si num tempo e
lugar determinados (WANDERLEY, 1996, p. 26).
Entende-se por ideologia, num sentido amplo, um conjunto de
idéias e representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as
condições de vida do homem e as relações que ele mantém com os outros
(FIORIN, 2004, p. 28). Ela “é uma ‘visão de mundo’, ou seja, o ponto de vista
de uma classe social a respeito da realidade, a maneira como uma classe
ordena, justifica e explica a ordem social” (Ibidem, p. 29).
Nesse sentido, o autor é aquele que “utiliza a obra, assim
marcada pela sociedade, como veículo das suas aspirações individuais mais
profundas” (CANDIDO, 2002, p. 25) e, ao mesmo tempo, é também aquele que
exibe os princípios ideológicos de seu tempo, atitude que pode revelar certa
conformidade com as situações vividas, mas que na maioria das vezes tem a
intenção de questionar tais princípios de forma a suscitar no público uma
reflexão a respeito de determinada questão. Candido (Ibidem, p. 21) afirma
também que as principais influências dos fatores socioculturais na obra de arte
são aquelas que se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias e às
técnicas de comunicação.
A fim de situar o momento histórico vivido por Kate Chopin, bem
como estabelecer e discutir relações entre esse contexto e sua obra, é
necessário que se remeta à segunda metade do século XIX e se revele a
posição das mulheres em meio às grandes transformações desse período,
expondo as suas principais reivindicações, que contribuíram de forma decisiva
nesse processo de ruptura com as estruturas sociais vigentes. Dessa maneira,
torna-se possível não só entender a condição em que viviam as mulheres da
época, mas também interpretar de que forma essa condição foi digerida e
interpretada pelas próprias mulheres.
O espaço de tempo compreendido entre as últimas décadas do
século XIX até o ano de 1914, que marca o início da 1ª Guerra Mundial,
representa um período de extrema importância para o desenvolvimento do
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
47
mundo moderno, principalmente no que diz respeito à política, à economia, à
ciência e à cultura. Trata-se de uma era de grandes transformações, entre elas
a dos movimentos trabalhistas e socialistas, do chamado imperialismo, do
declínio econômico britânico, que coincide com o crescimento e expansão da
nação americana. Caracterizada por sofrer com uma profunda crise de
identidade, é também a época do surgimento das vanguardas modernas,
responsáveis pelo prenúncio, não apenas de uma vida cultural e intelectual
nova, mas também de um mundo novo. Para Hobsbawm (2002, p. 24), a era
dos Impérios é marcada e dominada por contradições.
Foi uma era de paz sem paralelo no mundo ocidental, que
gerou uma era de guerras mundiais igualmente sem paralelo.
Apesar das aparências, foi uma era de estabilidade social
crescente dentro da zona de economias industriais
desenvolvidas, que forneceram os pequenos grupos de
homens que, com uma facilidade que raiava a insolência,
conseguiram conquistar e dominar vastos impérios; mas uma
era que gerou, inevitavelmente, em sua periferia, as forças
combinadas da rebelião e da revolução que a tragariam.
É necessário valer-se das informações acima para perceber as
intrincadas relações de causa e efeito entre o mundo moderno e um passado
onde se encontram suas raízes, baseado no início de um questionamento dos
preceitos ideológicos capitalistas que representavam a sociedade burguesa
dessa época. Assim, surgem pela Europa movimentos revolucionários,
formados por massas de trabalhadores que foram influenciados pela expansão
dos direitos garantidos pela suposta democracia burguesa, que exigiam uma
maior participação da população nas instituições políticas e defendiam a
emancipação dos desprivilegiados.
As idéias de emancipação feminina, ainda que modestas, surgem
nesse exato contexto histórico, embasadas e fortalecidas pela ascensão
desses movimentos que pregavam oportunidade e direitos iguais a todos.
Entretanto, trata-se de um momento histórico em que, na contramão desses
ideais de igualdade entre os seres humanos que foram inspirados pelas
revoluções burguesas do século XIX, o espaço das mulheres passa a ser ainda
mais reduzido do que aquele determinado pelas tradições feudais.
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
48
Mesmo antes, ainda no século XVIII, que é marcado pelo início
desses movimentos igualitários e que culminaram com a ascensão da
burguesia, percebeu-se que as chamadas minorias, como os negros e as
mulheres, viam-se excluídos desse processo democrático. Conseqüentemente,
esses ideais que aspiravam ao rompimento dos padrões patriarcais
perpetuados ao longo da história já tiveram suas manifestações antes mesmo
do aparecimento das primeiras feministas, pois se tem conhecimento de várias
mulheres, principalmente algumas que eram conhecidas como importantes
escritoras de suas épocas que, conscientes de seu papel secundário na
sociedade, compartilharam da necessidade de uma representação feminina
mais respeitada. Sabe-se que as dificuldades das mulheres para se tornarem
escritoras foram inúmeras e que muitas precisaram escrever utilizando
pseudônimos masculinos para escapar da crítica.
Mas, apesar de tudo e todos, algumas superaram os
obstáculos escrevendo e publicando, num flagrante desafio à
ordem que as restringia à esfera privada. E nesse momento
uma outra e nova dificuldade tinha início: como enfrentar o
público e a crítica, normalmente tão pouco receptivos para com
os livros de autoria feminina. Mesmo aquelas que tivessem
incentivo por parte da família, uma educação sólida e a
oportunidade de publicar, a crítica se encarregava de mostrar
que aquele não era seu lugar (DUARTE, 1995, p. 84).
Como exemplo dessas mulheres que exerceram grande influência
sobre os ideais do movimento feminista posterior, lutando pelos seus direitos
desde o século XVIII pode-se citar, na França, a presença de Olympe de
Gouges, que publicou um texto em 1791, intitulado Os direitos da mulher e da
cidadã, em que reivindica direitos naturais para ela, como a liberdade e a
propriedade, e propõe uma sociedade com igualdade de condições para
homens e mulheres, com igual participação na política e na vida civil, tendo os
mesmos direitos e deveres.
Além de Olympe de Gouges, que recebeu severa punição por sua
atitude em defesa dos direitos das mulheres, Mary Wollstonecraft, em seu livro
Vindication of the Rights of Woman publicado em 1792, discutiu a
inferioridade feminina e propôs igualdade de oportunidades em relação à
educação, alegando que as diferenças entre os homens e as mulheres não
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
49
seriam naturais, mas uma conseqüência da diferenciação no tratamento
dispensado a eles, que sempre privilegiava o sexo masculino. Segundo Duarte
(2002, p. 17), nessa obra, Mary Wollstonecraft, que foi considerada a primeira
feminista inglesa e também se apresentava como filósofa e moralista, dialoga
com pensadores do passado e do seu tempo, enfrentando-os de forma
audaciosa e inédita para uma mulher.
A recomendação de Wollstonecraft era simples: as mulheres
devem ser educadas como os homens. Devem ler filosofia,
lógica e matemática. Devem ser estimuladas à ginástica;
qualquer fragilidade física que tenham deve ser superada e
não agravada. Quando tiverem medo, não devem ser
afagadas, mas chamadas de covardes. Desse modo, as
mulheres se tornarão economicamente independentes e
plenamente capazes de participação política. Se as mulheres
na sua atual situação são criaturas degradadas, a razão disso
não está na natureza da mulher, mas nas atitudes e práticas
intimamente interligadas que, especialmente para as meninas,
formam sentimentos, pensamento e caráter nas estreitas linhas
traçadas por uma lascívia masculina nanica. Quando as
mulheres forem tratadas de modo diferente, farão, por outro
lado, esposas e cidadãs eficientes, fiéis e castas (NYE, 1995,
p. 26).
Mas foi a “era industrial, com sua economia capitalista, que dividiu
a sociedade em duas partes separadas e sustentadas por uma ideologia em
que uma fosse privada e correspondesse às mulheres e a outra fosse pública e
correspondesse aos homens” (STREY, 1997, p. 11-12). E é por causa dessa
completa exclusão da mulher na sociedade que o movimento feminista adquire
um perfil político, uma vez que as mulheres, principalmente as francesas do
final do século XVIII, que participaram das lutas revolucionárias desse período,
ficaram impossibilitadas de colher seus frutos e usufruir dessas conquistas.
Assim, as discriminações contra as mulheres, principalmente no que diz
respeito à sua limitação no mercado de trabalho, também passaram a ser
encaradas como base das relações de exploração na sociedade capitalista.
Segundo Alves (2003, p. 26), a maioria das profissões em que as mulheres
atuavam livremente na Idade Média, passa a ser de domínio dos homens
durante o Renascimento, ao mesmo tempo em que a reintrodução da
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
50
legislação romana restringe os direitos civis das mulheres e diminui o seu
direito à propriedade.
É justamente durante este período, quando o trabalho se
valoriza como instrumento de transformação do mundo pelo
homem, que o trabalho da mulher passa a ser depreciado.
Alijada concretamente de determinadas profissões, tece-se
também toda uma ideologia de desvalorização da mulher que
trabalha (ALVES, 2003, p. 26).
A conscientização a respeito da exploração nas relações de
produção deu origem aos principais movimentos revolucionários do século XIX,
dos quais fazem parte as reivindicações feministas que puseram em
questionamento a condição da mulher na sociedade capitalista moderna. A fim
de combater essa situação de exclusão e exploração feminina e defender a
existência de uma sociedade baseada na igualdade entre homens e mulheres,
a teoria feminista construiu suas bases na prática política, por meio da qual são
discutidas as relações de poder entre os sexos.
Nye (1995, p. 55) afirma que, embora na prática, os feitos das
organizações trabalhistas e dos partidos tenham sido desencorajadores, havia
elementos da teoria marxista que pareciam promissores às feministas,
oferecendo uma alternativa aos ideais democráticos. Essa aproximação se deu
graças ao tratamento dado pela crítica marxista às questões feministas,
comparando a sujeição da mulher à da classe operária no capitalismo e
atribuindo a origem dessa sujeição ao sistema econômico, utilizando para isso
conceitos da dialética de Hegel, que procuram explicar as relações de poder
entre o homem e a mulher, baseando-se principalmente na luta das forças
contrárias como o positivo e o negativo, o explorado e o explorador. Assim,
segundo Alves (2003, p. 40-41), é a partir da análise das relações de produção
do sistema capitalista que se passou a entender a condição da mulher como
parte das relações de exploração na sociedade de classes, concluindo que,
utilizando as idéias de Engels e Bebel, a base da inferiorização da mulher
encontra-se no surgimento da propriedade privada e que o casamento e a
sujeição feminina surgiram como garantia para a transmissão da propriedade.
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
51
Sem os direitos de propriedade que substituíram o título de
posse feudal, sem a capacidade de integrar as relações
contratuais que tomaram o lugar das responsabilidades e
direitos feudais, sem acesso à educação que permitia aos
homens competir, sem acesso ao mercado de trabalho que
assegurava à mão-de-obra qualificada e aos trabalhadores
braçais a obtenção de empregos, a situação das mulheres na
sociedade capitalista dificilmente era melhor do que havia sido
no feudalismo. A participação nas instituições democráticas,
direitos de propriedade, direitos contratuais, educação pública,
mercados competitivos e todos os mecanismos do
funcionamento democrático estava agora vedada às mulheres,
e quanto mais seguro o estabelecimento das novas
instituições, mais completa era a exclusão das mulheres (NYE,
1995, p. 24).
Entretanto, apesar de terem sido consideradas algumas propostas
teóricas de reforma social que beneficiassem a condição feminina, Nye (1995,
p. 57) afirma que os marxistas acreditavam que essas reformas podiam
amenizar, mas não mudariam a situação das mulheres, principalmente se
permanecesse a economia do casamento, já que elas, não tendo propriedade e
nem acesso ao mercado de trabalho, precisavam se casar para sobreviver. “O
marxismo propunha uma estratégia alternativa; as feministas podem voltar-se
das estreitas preocupações com voto e casamento para a revolução socialista.
Eliminado o capitalismo, a opressão das mulheres desaparecerá” (NYE, 1995,
p. 58).
Mais tarde, já no século XX, essas idéias são contestadas por
Simone de Beauvoir, em seu livro O segundo sexo, apresentando uma visão
existencialista do feminismo, que procurava situar a dinâmica de uma opressão
que não era específica do socialismo nem do capitalismo (NYE, 1995, p. 97).
Para ela, não havia no marxismo discussão proveitosa de dois conceitos de
fundamental importância para as mulheres que eram a opressão e a libertação,
pois a definição marxista de opressão econômica era simplista e, assim, a
libertação oferecida era ilusória (NYE, 1995, p. 101).
A grande questão, dizia ela, não era, afinal, quem possui os
meios de produção, mas como se pode viver com outros e
ainda continuar sendo nós mesmos. As feministas cometeram
o erro de concentrar-se no voto, em conquistar inimigos
externos quando os verdadeiros inimigos estavam em suas
próprias mentes: os bloqueios preconceituosos, os temores,
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
52
que as impedem de viver plenamente. A feminista devia cuidar
de si mesma e não tanto da imoralidade dos outros (NYE,
1995, p. 97-98).
Alves (2003, p. 52) afirma que a análise de Beauvoir, em relação
ao desenvolvimento psicológico da mulher e dos condicionamentos que ela
sofre durante o período de sua socialização, constitui um marco na medida em
que delineia os fundamentos da reflexão feminista que ressurgirá a partir da
década de 60. De acordo com a pensadora francesa, o homem se afirma
através de sua identificação com seu sexo, e esta auto-afirmação, que o
transforma em sujeito, é feita sobre a sua oposição com o sexo feminino,
transformado em objeto, e visto através do sujeito. Assim, Beauvoir acredita
que, para que se entenda a mulher torna-se necessária uma análise profunda
sobre a forma pela qual ela realiza o aprendizado de sua condição, passando
por questões relativas a aspectos biológicos, à história, à psicanálise e à
educação.
Para Hobsbawm (2002, p. 276-279), o problema maior das
mulheres do século XIX consistia na impossibilidade de separar as funções
familiares e o trabalho, uma vez que o seu principal papel era o de mãe de
família. A discussão que se apresenta nesse momento da história da mulher,
principalmente nos Estados Unidos, é em relação à postura que ela assumiria
diante dos seus deveres como mãe e dona de casa se lhe fossem concedidas
oportunidades iguais às dos homens. Uma das soluções encontradas por
essas mulheres foi aproveitar as inovações tecnológicas que surgiam a cada
dia, responsáveis por facilitar o trabalho doméstico, a fim de que não
deixassem de realizar suas funções, mesmo trabalhando fora.
Os fogões a gás alastravam-se, não muito depressa, desde
1880, e os fogões elétricos, mais rapidamente, desde os
últimos anos precedentes à guerra. O termo “aspirador de pó”
apareceu em 1903 e os ferros elétricos foram empunhados a
um público cético a partir de 1909, mas seu triunfo teria lugar
no futuro, durante o intervalo entre as duas guerras. As
lavanderias – não ainda as das casas – foram mecanizadas; o
valor da produção de máquinas de lavar, nos EUA, quintuplicou
entre 1880 e 1910.
12
Os socialistas e anarquistas, com igual
entusiasmo pela utopia tecnológica, preferiam arranjos
12
GIEDION, S. Mechanization Takes Command. Nova Iorque, 1948, pp. 529-521.
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
53
coletivos, e concentraram-se igualmente em escolas infantis,
berçários e o fornecimento ao público de alimentos já
preparados (dos quais as merendas escolares foram um dos
primeiros exemplos) que dariam às mulheres a capacidade de
combinar a maternidade com o trabalho e outras atividades
(HOBSBAWN, 2002, p. 302).
Ainda assim, dentre as raras mulheres emancipadas desse tempo
que fizeram a opção pela carreira, a maioria precisou abrir mão do casamento
e da maternidade, devido às dificuldades de combinar atividades fora e dentro
do lar.
No que diz respeito às mulheres casadas, mesmo que
conseguissem contribuir com seu trabalho para o aumento da renda da casa,
essa contribuição deveria ter sempre um caráter complementar. Com isso,
essas mulheres foram vítimas da tradicional crença de que deveriam receber
menos, já que seus ganhos não poderiam representar a totalidade da renda da
família. Para Alves (2003, p. 38) a “justificativa ideológica para esta
superexploração era de que as mulheres necessitavam menos trabalho e
menos salários do que os homens porque, supostamente, tinham ou deveriam
ter quem as sustentasse”. A situação é agravada quando se percebe que, com
um salário inferior, elas se tornam grandes concorrentes para os homens
trabalhadores, que poderiam ter seus rendimentos reduzidos ou até serem
dispensados devido à presença delas, reforçando a necessidade de exclusão
das mulheres do mercado de trabalho.
Aliada à questão da perda de espaço no ambiente de trabalho, a
restrição das mulheres à educação também se torna um fator de insatisfação,
sendo que, até meados do século XIX, não existem registros de mulheres
cursando universidades no ocidente.
Diante das condições que a impossibilitava de garantir sustento
por si mesma, a única saída para a mulher era o casamento que, por sua vez,
contribuía ainda mais para o seu afastamento do mercado de trabalho. É o que
explica Hobsbawm (2002, p. 280):
mas o casamento tornava-lhe extremamente difícil sair de casa
a fim de ganhar dinheiro, mesmo que ela o quisesse, em parte
porque os trabalhos domésticos e os cuidados aos filhos e ao
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
54
marido a mantinham amarrada à casa e, em parte, a própria
suposição de que um bom marido devia ser, por definição, um
bom arrimo de família, intensificando a convencional
resistência dos homens e das mulheres à idéia de que a
esposa trabalhasse. O fato de ela não precisar trabalhar era a
prova visível, perante a sociedade, de que a família não estava
pauperizada. Tudo conspirava para tornar dependente a
mulher casada. As mulheres, quase sempre, trabalhavam
antes de casar. Com freqüência eram obrigadas a trabalhar
quando enviuvavam ou seus maridos as abandonavam. Mas
não costumavam trabalhar quando casadas.
No casamento ocidental moderno, que surgiu algumas décadas
antes da segunda metade do século XIX, a importância dada para o amor na
escolha de uma esposa ou esposo já era grande, apesar de ainda serem
levados em conta fatores como a propriedade, o status social e a família.
Segundo Yalom (2002, p. 209), as conseqüências do casamento, mesmo
quando movido pelo amor, eram completamente diferentes para o homem e
para a mulher: enquanto os homens se mostravam ativos tanto em público
quanto em particular, a esfera da mulher ficava cada vez mais restrita ao
âmbito privado, o que a mantinha longe de seu verdadeiro potencial.
Mesmo assim, as idéias feministas ainda não se mostravam
profícuas e o que se via era um grande número de livros destinados a
direcionar a conduta doméstica das mães e esposas desse período. Cabia às
mulheres, além da responsabilidade de criar e educar os filhos, a necessidade
de propiciar em suas casas um ambiente saudável e de bem-estar e “o poder
de inspirar os homens na direção de uma posição social melhor” (Ibidem, p.
210).
No final do século XIX, algumas revisões legais levaram em
conta as alterações que tinham acontecido durante as duas
gerações anteriores. Como Hendrik Hartog mostrou em seu
imperioso livro Man & wife in America [Homem e esposa na
América], os livros de registro da escola de Direito de 1890
incorporaram os novos estatutos das relações domésticas sem
deixar de lado as antigas noções das responsabilidades
conjugais. Uma mulher casada ainda precisava cumprir com
seus deveres tradicionais, como realizar as tarefas domésticas
e fazer sexo com seu marido. Um homem casado ainda devia
dar à esposa proteção e sustento. Fossem quais fossem os
novos direitos adquiridos por ela em relação à sua capacidade
de cuidar da propriedade, dos rendimentos e dos filhos, sua
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
55
identidade como esposa ainda prevalecia sobre toda e
qualquer noção de autonomia (Ibidem, p. 221).
Um fato importante que veio dar início ao processo de
transformação da condição da mulher foi o declínio nos índices de natalidade a
partir de 1875, principalmente em meio a mulheres pertencentes a classes
mais altas da sociedade. Não se sabe ao certo os motivos que ocasionaram tal
fato, que podem ser atribuídos principalmente à percepção de que nas famílias
das cidades, um número grande de filhos significava a impossibilidade de
acesso a bens de consumo e melhoria de vida das pessoas.
Em decorrência desse fato, uma grande mudança cultural começa
a operar nessas sociedades, que passaram a ter maior consciência em relação
à educação e dedicação dos pais aos filhos, permitindo certa penetração de
novos valores e perspectivas para as mulheres. Os efeitos dessas
transformações culturais podem ser vistos antes mesmo do final do século XIX,
principalmente entre as mulheres pertencentes aos níveis mais altos da
sociedade que
became the nation’s dominant culture force, a position they
have never relinquished. Ladies’ journalism began to flourish. In
1891, The Ladies Home Journal (founded in 1883) became the
first American magazine to exceed a circulation of half a million;
by 1905 its circulation had reached a million. A new generation
of women authors appeared whose poetry and fiction enlivened
the pages of popular tencent monthly and weekly magazines
(McMICHAEL, 1985, p. 894).
tornaram-se a força cultural dominante da nação, uma posição
à qual elas nunca renunciaram. O jornalismo feminino começou
a prosperar. Em 1891, o Ladies Home Journal (fundado em
1883) tornou-se a primeira revista a ultrapassar a tiragem de
meio milhão; em 1905, sua circulação tinha atingido um milhão.
Uma nova geração de mulheres escritoras apareceu, cuja
poesia e ficção animou as páginas de revistas populares
semanais e mensais.
Ainda em relação à educação, nota-se um sensível aumento no
número de mulheres que passaram a freqüentar as escolas secundárias e
universidades nas últimas décadas do século XIX, muito embora o nível do
ensino não tenha sido declaradamente tão bom quanto o dedicado aos
rapazes.
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
56
Enquanto isso, as mulheres de classes mais baixas começaram a
sentir os efeitos das evoluções tecnológicas e estruturais, o que viria, mais
tarde, contribuir para uma melhor perspectiva de emprego para elas,
principalmente em ocupações como vendedoras de lojas e funcionárias de
escritórios, além do crescente número de empregos como educadoras, devido
ao desenvolvimento da educação primária nos países europeus e nos Estados
Unidos.
Hobsbawm (2002, p. 288) aponta como outro sintoma de
mudança na posição das mulheres uma maior liberdade de movimentos:
pois ainda que a moda feminina não expressasse
dramaticamente a emancipação até uma época posterior à
Primeira Guerra Mundial, o desaparecimento das armaduras
de tecidos e barbatanas que encerravam o corpo feminino em
público já era antecipado pelas roupas soltas e flutuantes,
popularizadas no final do período, pelas vogas do esteticismo
intelectual da década de 1880, do art-nouveau e da alta-
costura pré-1914.
Contudo, essa maior liberdade de movimentos ainda não parecia,
de forma alguma, ter implicado num aumento proporcional da liberdade sexual
das mulheres, principalmente quando se tratava daquelas pertencentes às
classes sociais menos favorecidas. Nesse sentido, questões como o divórcio e
o adultério, por exemplo, continuavam a ser tratadas com o devido rigor de
antes, embora entre os mais abastados, essas práticas tenham tido um peso e
uma importância menores, desde que fossem mantidas as aparências diante
da sociedade.
Já nos esportes, a evolução da mulher pode ser representada por
essa observação de Hobsbawm (Ibidem, p. 292):
não devemos, igualmente, deixar de considerar a emergência
das mulheres como realizadoras individuais nos esforços
competitivos, de que o esporte, outra vez, oferece um exemplo
notável. A criação das simples femininas em Wimbledon,
depois de seis anos das simples masculinas, e também, num
mesmo intervalo, nos campeonatos franceses e norte-
americanos, era uma inovação mais revolucionária, na década
de 1880, do que é reconhecido hoje.
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
57
Para Yalom (2002, p. 299), a questão da mulher alcançou seu
apogeu na Inglaterra durante as décadas de 1880 e 1890, quando surge a
Nova Mulher, reconhecida pela educação, independência e tendência a
desprezar antigos valores familiares e mudar os limites entre os
comportamentos femininos e masculinos. Por um lado, ela se tornou admirada
e responsável por conceder benefícios à sociedade, enquanto que, “aos olhos
de seus detratores, ela não era mais do que uma mulher digna de censura,
uma aberração destinada a destruir a abençoada separação das esferas
masculina e feminina e a arruinar instituições sagradas como o casamento e a
maternidade”. Também na América, as Novas Mulheres surgiram para
questionar os valores do matrimônio e da família e, até o início do século XX,
muitas mudanças começaram a ser sentidas na vida das mulheres, graças à
sua participação efetiva nos assuntos feministas.
Tichi (1988, p. 590) acredita que a participação das Novas
Mulheres tenha tido um alcance ainda maior, pois foram responsáveis por uma
mudança no próprio cânone literário americano, afetando as vidas das
escritoras e revigorando a literatura nacional com um novo design ficcional de
personagens, formas e temas.
É importante destacar aqui a existência de uma sensível diferença
entre as manifestações feministas e até mesmo da postura dessas Novas
Mulheres da América em relação às da Europa que, para Duby e Perrot
favorecem as americanas. Isso ocorre porque,
criadores desde a guerra da Independência, os Estados
Unidos cedo se tornam portadores de modelos radicados nos
revivals protestantes, inventores de práticas democráticas; ao
que se acrescenta a experiência da expansão para Oeste e as
contribuições dos migrantes. O continente norte-americano
constitui em si mesmo um universo de novas relações entre os
sexos, de que encontraremos aqui um primeiro eco. A ‘New
Woman’ nasce da experiência das Bostonianas, assim como
da das Judias de Nova Iorque. Faz um glorioso retorno na
Europa e impõe interrogações sobre a identidade dos dois
sexos (DUBY, 1991, p. 15).
Apesar de ter obtido relativo sucesso em relação às suas
expectativas no mercado de trabalho, ao acesso à educação e até à liberdade
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
58
de movimento, é notável que algumas das principais necessidades das
mulheres ainda não haviam sido sequer consideradas.
Dentre essas necessidades, pode-se destacar o direito ao voto,
defendido por aquelas mulheres que são tidas como as pioneiras do
movimento feminista. Tal reivindicação teve início efetivamente em 1848,
quando aconteceu uma das primeiras manifestações concretas do movimento
sufragista dos Estados Unidos: a Convenção dos direitos da mulher, realizada
em Seneca Falls com participantes que reclamavam o direito do voto para as
mulheres, que só foi conquistado setenta e dois anos depois. A convenção
tomou tamanha importância que gerou vários outros movimentos de cunho
semelhante, inclusive na Europa, além de ter causado muitas manifestações de
repúdio não somente entre os homens, mas igualmente por parte de mulheres
que preferiam colocar seus direitos individuais à frente dos ideais feministas.
Muitas vezes confundido com o próprio movimento feminista, o
sufragismo serviu principalmente para demonstrar a força política de sua
organização, muito embora os primeiros resultados de sua ação só tenham
sido observados no período posterior à Primeira Guerra Mundial. Além disso, o
sufragismo recebeu críticas por se constituir, em sua essência, de
reivindicações próprias de uma determinada classe social, a média, enquanto
que
a maioria das mulheres da classe operária lutava contra
incapacidades muito mais urgentes que a privação do voto
político, as quais provavelmente não seriam removidas
automaticamente pelo direito ao voto; e que não ocupavam o
primeiro plano nas mentes da maioria das sufragistas da classe
média (HOBSBAWM, 2002, p. 284).
É evidente que o direito ao voto não constituía a única questão
das atividades dessas ativistas e os movimentos de emancipação feminina se
destacaram, já no século XX, por defender os direitos das mulheres e
questionar a sua sujeição em relação ao homem, refutando argumentos
ultrapassados e até mesmo absurdos, que procuravam reafirmar a sua
condição de submissão. Tais argumentos estavam embasados em teorias
científicas tendenciosas e em comparações entre as diferenças da natureza
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
59
feminina e masculina e procuravam explicar a exclusão e discriminação das
mulheres a partir de questões como a falta de força física, o reduzido tamanho
do cérebro e a aptidão para a maternidade. A religião também constituía um
outro fator de influência sobre as mulheres, já que procurava incutir valores que
visavam reafirmar os papéis femininos de esposa dedicada e mãe exemplar.
Além disso, as mulheres, conhecidas por uma maior identificação com o
sentimento e a emoção, eram tidas como inferiores, enquanto que os homens,
por serem mais racionais, consideravam-se seres superiores.
A partir da década de 60, o feminismo incorpora portanto
outras frentes de luta pois, além das reivindicações voltadas
para a desigualdade no exercício de direitos – políticos,
trabalhistas, civis – , questiona também as raízes culturais
destas desigualdades. Denuncia, desta forma, a mística de um
‘eterno feminino’, ou seja, a crença na inferioridade ‘natural’ da
mulher, calcada em fatores biológicos. Questiona assim a idéia
de que homens e mulheres estariam predeterminados, por sua
própria natureza, a cumprir papéis opostos na sociedade: ao
homem, o mundo externo; à mulher, por sua função
procriadora, o mundo interno. Essa diferenciação de papéis na
verdade mascara uma hierarquia, que delega ao homem a
posição de mando (ALVES, 2003, p. 54-55).
Ao questionar a respeito da inferioridade natural das mulheres, a
doutrina feminista estabelece uma revisão dos papéis femininos e masculinos
tradicionalmente atribuídos pela sociedade, além de pregar uma participação
maior da mulher no espaço público, já que, a partir desse longo afastamento da
esfera pública, a história das mulheres tem sido contada somente a partir de
fragmentos colhidos aqui e ali, em meio a discursos masculinos tendenciosos e
parciais e referências que igualmente remetem ao mundo dos homens. Assim,
o feminismo contribuiu largamente para a recriação de uma identidade
feminina, “identidade esta em que as diferenças entre os sexos sejam de
complementaridade e não de dominação” (ALVES, 2003, p. 57) e para que a
história das mulheres pudesse começar a ser resgatada e posicionada não
mais como um aspecto marginal da história, mas como uma parte importante
de um todo que é a história da humanidade.
Pode-se afirmar, então, que o século XIX
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
60
repensou a vida das mulheres como o desenrolar de uma
história pessoal submetida a uma codificação colectiva precisa
e socialmente elaborada. Seria, porém, errado pensar que
essa época é apenas o tempo de uma longa dominação, de
uma absoluta submissão das mulheres. De facto, esse século
assinala o nascimento do feminismo, palavra emblemática que
tanto designa importantes mudanças estruturais (trabalho
assalariado, autonomia do indivíduo civil, direito à instrução)
como o aparecimento colectivo das mulheres na cena política.
Por isso, será preferível dizer que esse século é o momento
histórico em que a vida das mulheres se altera, ou mais
exactamente o momento em que a perspectiva de vida das
mulheres se altera: tempo da modernidade em que se torna
possível uma posição de sujeito, indivíduo de corpo inteiro e
actriz política, futura cidadã. Apesar da extrema codificação da
vida quotidiana feminina, o campo das possibilidades alarga-se
e a aventura não está longe (DUBY, 1991, p. 9).
A partir desses questionamentos, também a sexualidade feminina,
que foi durante muito tempo uma das formas de limitação de sua
potencialidade, passa a ser vista sob um outro prisma, uma vez que a
reprodução deixa de ser encarada como o principal objetivo das relações
sexuais. Assim, tabus como o desejo e o prazer sexual feminino começam a
ser mais respeitados e discutidos em pé de igualdade com a sexualidade
masculina.
Devido ao fato de lidar com questões polêmicas e importantes, e
dado o seu caráter reivindicatório e crítico, por muitas vezes o conceito de
feminismo teve e tem que carregar consigo a carga do radicalismo com que foi
defendido por suas primeiras manifestantes. Acredita-se, porém, na
necessidade desse radicalismo inicial como única forma de resistir àqueles que
defendiam a conservação dos valores tradicionais patriarcais e de manter
acesos os ideais de igualdade entre os sexos. Passada a fase da presença do
necessário radicalismo do feminismo, que pretendeu romper com as estruturas
sólidas de uma sociedade na qual a mulher era tratada como um ser inferior, as
feministas não mais pregam as idéias de igualdade entre os sexos, passando
para uma nova fase. A partir da idéia de que “a hierarquia sexual não é uma
fatalidade biológica e sim fruto de um processo histórico e, como tal, pode ser
combatida e superada (ALVES, 2003, p. 56)”, há nessa nova fase uma
valorização das diferenças entre o sexo masculino e feminino, no sentido de
A MULHER DO SÉCULO XIX E SUA BUSCA
POR “UM TETO TODO SEU”
61
exaltar a identidade própria de cada um deles, buscando o tão sonhado
equilíbrio entre os dois.
CAPÍTULO 3
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO SÉCULO
XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
13
UMA ONDA
E assim cada um de
nós tem que ficar sozinho,
consciente do outro.
Até o dia em que a guerra
nos absolva das nossas
diferenças.
John Ashberry
13
Em alusão ao texto “Feminist Criticism in the Wilderness”, de Elaine Showalter.
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
62
abendo que a literatura nasce de um dado momento histórico
e se apresenta como um produto da sociedade desse mesmo
momento pode-se claramente perceber o seu caráter ideológico, uma vez que
a arte funciona como “um dos veículos de disseminação das crenças de uma
determinada sociedade e uma das ferramentas utilizadas para conduzi-la a um
ideal abraçado por sua classe dominante” (SCHWANTES, 2003, p. 393).
Partindo do princípio de que a literatura deveria seguir fielmente a ideologia
dominante de sua época, esperava-se que os textos escritos pelas mulheres do
século XIX fossem caracterizados
S
pela delicadeza das imagens, pela leveza dos temas
abordados, pela elegância das palavras escolhidas e por uma
absoluta ausência de tratamento da chamada “matéria baixa”,
ou seja, de envolvimento com as paixões ignóbeis que
atormentam a natureza humana, e mais especificamente com
as paixões sexuais. Quanto mais espiritualizada e fina fosse a
escrita, mais adequada à fonte feminina de onde jorrava.
Embora não se lhes obstruísse a estrada da auto-realização
pela via literária – e a considerável presença da mulher no
romance do século XIX é prova disso – não se lhes permitia
enveredar pelos caminhos selvagens da expressão exuberante
de sentimentos apaixonados, vistos como pouco nobres. Tudo
devia ser calmo, tranqüilo e suave como a própria imagem da
mulher que a sociedade vitoriana produzia e cultivava
(SCHWANTES, 2003, p. 52).
Um dos motivos para que muitas escritoras adotassem esse
comportamento, além da ausência de modelos femininos anteriores a serem
seguidos nos textos narrativos (PINTO, 1990, p. 24-25), é a necessidade de
reconhecimento por parte do público e da crítica, bem como a consciência de
que a abordagem de determinados temas como o divórcio e o adultério de
forma mais direta exigiria um cuidado redobrado no tratamento, em função do
preconceito da sociedade em relação a eles. Para Duarte (1995, p. 86), os
críticos despertavam, ao mesmo tempo, um respeito e um temor sobre as
escritoras, bem mais do que sobre seus pares masculinos, causando nelas
uma autocensura na hora de determinar a escolha de gêneros, temas e na
própria construção das personagens, “numa tentativa de se aproximar dos
padrões literários desejados e permitidos a uma mulher, ou seja: os padrões
masculinos dominantes”. Dessa forma, em concordância com esses conceitos
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
63
pré-estabelecidos, o que se viu, muitas vezes, foram escritoras que, movidas
pelo medo de se colocar em uma posição marginal ou ainda na falta de um
modelo diferente do tradicional a ser seguido, construíram suas obras, ainda
que inconscientemente, aceitando os papéis sociais impostos pela sociedade e
sendo responsáveis por reforçar as condições vividas pela mulher.
Trata-se de uma atitude que
não partiu apenas do sexo masculino – ameaçado pela larga
estrada que se prenunciava aberta às mulheres na conquista
de poderes em várias áreas – mas também de mulheres com
falsa consciência a respeito de si próprias. Essa espécie de
“identificação com o agressor” que, segundo Anna Freud,
levava as mulheres a adotar a opinião dos homens, decorria
das “tensões que uma mulher experimenta por ver-se em
minoria e por repudiar os valores tradicionais que lhe haviam
ensinado a aceitar desde a infância”
14
. É assim que muitas
mulheres inteligentes e instruídas do século XIX se colocaram
contra a luta empreendida por seu sexo em favor de seus
próprios direitos (WANDERLEY, 1996, p. 56-57).
Muitas delas, inclusive, chegam a assumir experiências
masculinas como se fossem suas, sem questionar a existência de uma
identidade essencialmente feminina, que deveria ser definida de forma
diferente daquele padrão de pureza e ingenuidade imposto para as mulheres.
Nesse sentido, percebe-se que muitas escritoras reproduziam em suas obras,
situações e comportamentos socialmente aceitos e não pareciam estar
dispostas a correr o risco de utilizar temáticas polêmicas que poderiam abalar
suas carreiras. Assim, assumiam uma atitude que tinha como conseqüência o
fortalecimento dos padrões patriarcais vigentes, mesmo quando se mostravam
incomodadas com eles. É o que explica Pinto (1990, p. 23-24):
insegura quanto à sua situação como autora, quanto à sua
autoridade para afirmar e expressar determinada(s)
realidade(s), a mulher que escreve demonstra, com poucas
exceções, certa dificuldade em definir-se pessoal e
textualmente. [...] Essa indefinição reflete-se inclusive na
criação das suas personagens e no fato de que tantas vezes a
conclusão da narrativa expressa, ainda que só
inconscientemente, conformidade social.
14
GAY, Peter. A experiência burguesa – da Rainha Vitória a Freud: A educação dos sentidos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 142.
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
64
Levando em conta tal fato, nota-se que muitas autoras que
demonstraram essa necessidade de definição acima mencionada acabavam,
por exemplo, estabelecendo finais infelizes ou trágicos para suas personagens
mais rebeldes. Para Pinto (1990, p. 24-25), essa impossibilidade de determinar
finais felizes para suas personagens femininas “vem da inexistência de um
precedente literário, da falta de ‘mães poéticas’, surgindo então na escritora a
dúvida sobre sua autoridade para criar, para levar sua protagonista à auto-
realização completa”.
A própria Kate Chopin, em alguns dos seus contos, opta pela
loucura, suicídio ou qualquer outro tipo de morte de suas protagonistas menos
convencionais, como forma de punição para o seu comportamento socialmente
inaceitável, a fim de que, no final de suas histórias, suas reivindicações e
críticas não sejam tão levadas a sério pelos leitores, procurando camuflar
certos conteúdos expressos por meio de recursos como a ironia, por exemplo.
Em The Awakening, a protagonista Edna Pontellier é conduzida ao suicídio
por não adotar um tipo de comportamento condizente com sua posição e não
ter sido capaz de assumir o papel feminino a ela destinado:
it is difficult for a modern reader, for example, to understand the
extent to which Edna Pontellier flouts social convention on
almost every page. But a glance at etiquette books of the
period shows Edna consistently disregarding her ‘duties’ to her
husband, her children, and her ‘station’ in life. She does not
‘manage’ the servants; she forms questionable cross-class
friendships; she ignores her reception day to walk about the city
alone; she attends public places of amusement (the races) with
a ‘gentleman’ other than her husband and without a chaperone;
she hosts an elaborate dinner party in her husband’s absence;
she rents and moves into a small house of her own; she has
taken a lover (CULLEY, 1994, p. 121-122).
é difícil para o leitor moderno, por exemplo, entender a
gravidade dos insultos de Edna Pontellier às convenções
sociais em quase todas as páginas. Mas um olhar nos livros de
etiqueta do período mostra Edna consistentemente
desconsiderando seus ‘deveres’ para com o seu marido, seus
filhos e sua ‘posição social’ na vida. Ela não ‘controla’ os
empregados; ela forma amizades questionáveis misturando
classes sociais; ela ignora os dias de recepção para caminhar
pela cidade sozinha; ela freqüenta lugares públicos de diversão
(competições) com um ‘cavalheiro’ que não o seu marido e
sem uma dama de companhia; ela oferece um jantar festivo na
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
65
ausência do marido; ela aluga e se muda para uma pequena
casa sozinha; ela arruma um amante.
Muitas vezes, essa forma de punição das personagens não se
mostrou um recurso suficiente para que a obra fosse socialmente aceita,
deixando transparecer que, na verdade, muitos desses textos escritos por
mulheres não apresentavam de maneira explícita o referido caráter feminino
necessário para seu reconhecimento perante a sociedade e, por terem rompido
com uma tradição de comportamento da mulher, passaram por situações de
discriminação e foram objetos de avaliações tendenciosas e preconceituosas.
Assim, contrariando os preceitos da ideologia dominante, um
grande número de escritoras, principalmente no século XIX, foi responsável por
essa resistência e sofreu com “a tensão entre o seu desejo de pensar e
escrever e as proibições e inibições contra esse desejo
15
” (STIMPSON, 1992,
p. 255). E se hoje, “escritoras podem, com energia e autoridade, desempenhar-
se de seu ofício, é porque suas predecessoras, nos dois últimos séculos
lutaram, no isolamento, na obscuridade, para vencer a endêmica ansiedade
que cercava a autoria.” (CAMPOS, 1992, p. 120-121).
Muitos dos textos produzidos por essas escritoras do passado
estão sendo reavaliados pela Crítica Literária Feminista, a fim de que sejam
enfocados sob um ponto de vista diferente daquele que vinha sendo utilizado
até então, sempre ao gosto das regras socialmente aceitas. Trata-se de
estabelecer novos padrões de interpretação para essas obras literárias e de
deslocar o eixo da crítica da perspectiva masculina para a feminina, procurando
sempre discutir a respeito da condição da mulher e atribuir a ela o papel de
sujeito e não mais de simples objeto dentro da sociedade em que vive.
De fato, pode-se apontar como principal característica dos textos
escritos por mulheres a abordagem de temas que discutem a sua condição,
bem como as suas experiências e pontos de vista a respeito dos assuntos que
lhes dizem respeito como o sexo, o trabalho, a maternidade e o amor,
permitindo pelo menos uma abertura para a discussão acerca daquilo que
chamamos de identidade feminina. Principalmente a partir de meados do
15
Tradução minha.
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
66
século XIX, esses textos enfocam a realidade sob uma perspectiva feminina e
procuram descobrir a verdadeira identidade da mulher, que se manteve
escondida por trás de uma série de convenções impostas pela sociedade.
Sabe-se que, apesar de transmitirem experiências essencialmente femininas e
serem expressos a partir de uma visão feminina, esses textos não foram
interpretados de acordo com tais características, que precisaram ficar
escondidas por trás de uma forma menos contestadora e mais condizente com
os preceitos da sociedade patriarcal.
Inicialmente, a questão da identidade feminina deve ser discutida
a partir de uma aceitação da existência de uma outra visão de mundo, que não
seja a masculina. Trata-se de uma forma de desmistificar o ponto de vista
masculino como universal, trazendo à tona todo um ideário até então
escondido por causa da exclusão das mulheres dos assuntos da sociedade.
Nesse imaginário, o amor, a sexualidade, o corpo, o desejo, o
trabalho, a maternidade, a amizade, a memória, a história e a
nacionalidade adquirem novos sentidos, traçam novas
paisagens, recompondo o outro lado da história e levantando,
nesse processo, a questão da relação entre linguagem, poder
e resistência (SCHMIDT, 1999, p. 32).
Valendo-se de novas possibilidades de interpretação desses
textos percebe-se, na maioria dos casos em que as autoras conseguem
ultrapassar esses limites impostos pela sociedade, uma grande necessidade,
por parte delas, de disfarçar tais reflexões, fazendo uso de certas estratégias
narrativas. Nesse sentido, Pinto (1990, p. 27) afirma que a literatura feminina é
subversiva “ao adaptar ou reescrever temas e enredos tradicionalmente
masculinos, invertendo a relação entre personagens, jogando o foco narrativo
sobre um aspecto novo, estabelecendo perspectivas incomuns ou oferecendo
uma visão alternativa da realidade”.
No processo de reinterpretação de obras escritas por mulheres, a
crítica feminista se vale das várias possibilidades de leitura que o texto literário
feminino oferece, proporcionando interpretações que podem revelar não só o
caráter ambíguo dessas obras, como também as estratégias utilizadas por
suas autoras para que certas opiniões e situações se façam presentes nos
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
67
textos, mesmo quando camufladas sob uma aparente estrutura de
conformidade com os padrões sociais vigentes. É o que Gilbert & Gubar (1984,
p. 73) chamam de texto palimpsesto, que será discutido mais adiante.
Dessa forma, a narrativa feminina, quando se utiliza de técnicas
alternativas e dispõe de novas formas na composição dos textos, consegue
expor, ainda que de maneira codificada, as indignações das mulheres em
relação aos padrões patriarcais que regem a sociedade, procurando promover
uma revisão não só desses conceitos, como também da própria história,
sobretudo para denunciar a dominação que sofreram por parte dos homens
através dos tempos.
Elaine Showalter (1987, p. 39) afirma que a Crítica Feminista, ao
mapear o território da imaginação feminina e as estruturas da trama feminina,
estava realizando algo completamente diferente, rompendo com as formas
antigas de pensar sobre os escritos femininos. Para ela, uma das rupturas mais
importantes, além da reescritura da história literária das escritoras, foi a
hipótese de que os escritos femininos do século XIX eram uma resposta
codificada às imagens, influências e textos masculinos, ou seja, uma forma de
protesto contra a autoridade literária patriarcal.
Pensando nisso, os principais preceitos da Crítica Literária
Feminista, que surgiu com o desenvolvimento do movimento feminista, a partir
do fim dos anos 60, giram em torno de uma reinterpretação da ordem social
presente nas obras como um reflexo da vida real, que prega a supremacia do
homem e reforça a imagem da mulher como subordinada e inferior. De acordo
com Eagleton (1994, p. 161), a mensagem do movimento feminista não era
apenas de que as mulheres deveriam ter igualdade de poder e de condição
com os homens, mas sim de um questionamento desse poder e dessa
condição, uma vez que, “sem a ‘feminização’ da história humana, é improvável
que o mundo sobreviva”.
É o que Stimpson (1987, p. 1-2) afirma, ao estabelecer os
princípios da Crítica Feminista, defendendo a idéia de que não se pode
entender a história, a política e a cultura sem o reconhecimento da influência
das estruturas de gênero e das diferenças sexuais. Para ela, ainda, é de
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
68
acordo com essas diferenças e em nome delas que os homens vêm
controlando a história, a política e a cultura e decidem sobre quem tem o poder
ou não, que realidades devem ser representadas e ensinadas e quais não
devem. E, ao tomar tais atitudes, os homens têm relegado a mulher para as
margens da cultura, se não para o silêncio e para a invisibilidade. Por isso, não
basta para as críticas feministas simplesmente estudar essas idéias, mas deve-
se atuar política e culturalmente para repensar a história tradicional.
Para Campos (1992, p. 116), “a crítica feminista deu condições
para que se compreendesse de uma nova forma a conexão entre duas das
formas de rebaixamento a que a mulher esteve sujeita, o social e o literário”.
Assim,
analisando o processo de estabelecimento do cânon literário, a
crítica feminista ataca o sistemático desprezo pela contribuição
da mulher, desprezo este que assume a forma da exclusão de
determinadas escritoras e da distorção ou da incompreensão
relativamente às poucas dentre elas incluídas nele. A
predominância masculina resultaria, no caso, tanto da própria
assimetria social entre ambos os sexos quanto da ideologia
sexista mesma, enquanto propagadora e fundamento do papel
tradicional da mulher. Equacionar alternativas à tal
predominância e propor atitudes críticas face ao cânon vigente
são desafios à critica feminista (CAMPOS, 1992, p. 116).
Com isso, procura-se também questionar, num nível mais
profundo, as relações entre sexo e poder, reavaliando até mesmo os padrões e
os conceitos tidos como tipicamente femininos, que podem ser desde a
natureza de seu caráter submisso até o suposto dom para a maternidade e
para o cuidado com as tarefas domésticas, pois,
embora a opressão das mulheres seja uma realidade material,
uma questão de maternidade, de trabalho doméstico, de
discriminação de empregos e de salários desiguais, ela não
pode ser reduzida a esses fatores: trata-se também de uma
questão de ideologia sexual, das maneiras pelas quais os
homens e mulheres se concebem e concebem o outro em uma
sociedade dominada pelos homens, de percepções e
comportamento que vão da brutalidade explícita à brutalidade
inconsciente (EAGLETON, 1994, p. 160).
Percebe-se, então, a necessidade de repensar a questão da
identidade feminina, desempenhando os textos escritos por mulheres um papel
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
69
muito importante, principalmente por enfocarem experiências propriamente
femininas e por apresentarem diferentes representações das mulheres,
“criando novas imagens femininas, sugerindo possibilidades, abrindo diferentes
perspectivas – enfim, contribuindo para o desenvolvimento e o melhoramento
pessoal e social da mulher” (PINTO, 1990, p. 31). Assim,
no tocante ao estabelecimento dos conceitos de feminilidade e
masculinidade, a literatura também exerce um papel relevante.
No tocante à feminilidade, a literatura desempenha a função de
modelo a ser seguido, ou evitado, com uma freqüência
inusitada. Ao contrário de outras minorias pouco freqüentadas,
as mulheres (brancas, de classe média, heterossexuais)
desempenham o papel de protagonistas de uma variedade de
títulos que abrange vários gêneros literários em diversos
sistemas literários (SCHWANTES, 2003, 393).
É principalmente no século XIX que a maioria das obras de
autoria feminina foi recusada pelo cânone e, não tendo recebido uma avaliação
imparcial em relação às habilidades artísticas de suas autoras, tornou-se vítima
de um julgamento de olhar masculino, baseado na presença ou ausência de
valores socialmente aceitos. Foram excluídas desse rol, por exemplo, obras
que expressavam as inquietações e preocupações com a condição da mulher
na sociedade e que, ao mesmo tempo, estabeleciam novas formas de
representação tanto da figura feminina quanto da masculina, desmistificando a
imagem da mulher como frágil e inferior e a do homem como ser viril e
superior, em uma atitude que desafiava os princípios da ideologia dominante.
A exclusão de muitas escritoras do cânone literário é decorrente
da exclusão da própria mulher da sociedade e o papel da Crítica Literária
Feminista é rever esses textos escritos por mulheres, a fim de que sejam
trazidos à luz, admitindo a contribuição das mulheres no cânone e viabilizando
uma reestruturação não só deste como também da história da literatura.
Aceitando a participação das vozes das chamadas minorias (das mulheres e
dos negros, por exemplo) como partes constitutivas do processo histórico e
estabelecendo uma fusão entre essas vozes e a dominante, pretende-se atingir
uma ampliação e um aprimoramento da própria história. Somente assim, a
história das mulheres seria parte integrante e teria igual importância na história
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
70
da humanidade, estabelecendo uma relação não mais de oposição
masculino/feminino, mas de complementaridade entre os sexos.
Trata-se de uma história articulada sob o ponto de vista
existencial, ou seja, que aceita ampliar seu universo de
interesse em função das diferentes perspectivas do real, de
modo que suas interpretações não se limitem a contornar o
pensamento dominante, mas se desloquem para o
conhecimento dos, até então, “desconhecidos” (MENDONÇA,
1999, p. 57).
Entende-se que a exclusão ou simplesmente incompreensão dos
textos escritos por mulheres ocorreu principalmente em decorrência de uma
necessidade de perpetuação e propagação dos valores tradicionais patriarcais,
o que, muitas vezes, não correspondia às verdadeiras intenções da maioria das
escritoras, que procuravam não utilizar o ponto de vista masculino como
referência. Por meio da Crítica Literária Feminista, o estudo da literatura de
autoria feminina pretende ampliar seu espaço dentro do cânone, incluindo
obras que não tiveram o devido valor na época em que foram escritas,
principalmente por causa da condição das próprias autoras, muitas vezes
forçadas a fazer uso de temas mais amenos em detrimento de outros mais
revolucionários, que subvertiam a ordem vigente e questionavam papéis
sociais pré-estabelecidos. A partir do resgate de escritoras e obras do passado
torna-se possível, por um lado, reconhecer o seu caráter pioneiro e perceber as
dificuldades pelas quais ambas foram submetidas em seu tempo e, por outro,
esclarecer certas questões relativas às mulheres e ao feminismo no presente.
Hoje em dia, por exemplo, sabe-se que as escritoras têm consciência de sua
autonomia para tratar de temas que envolvem a condição feminina, graças aos
movimentos e atitudes de escritoras pioneiras do passado.
A Crítica Feminista, logo quando surgiu como parte do movimento
de emancipação e reivindicação dos direitos das mulheres, não dispunha de
uma base teórica sólida e, tendo ficado conhecida pelo espírito contestador em
relação à estrutura patriarcal de poder, suas primeiras representantes
constataram [...] a impossibilidade de se investigar tanto a
escrita de mulheres quanto as imagens femininas veiculadas
na literatura com os aportes teóricos disponíveis, todos
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
71
marcados pela convicção de que o gênero é irrelevante –
porque só existe um gênero passível de investigação, o
masculino, é claro. A primeira tarefa que se impôs, portanto, foi
a elaboração de um arsenal teórico que possibilitasse o estudo
desse objeto, o feminino, no âmbito da literatura
(SCHWANTES, 2003, p. 394).
Schwantes (2003, p. 394) esclarece ainda que os primeiros
estudos tiveram início ao mesmo tempo na França, na Inglaterra e nos Estados
Unidos e logo se manifestou uma aproximação entre as linhas desses dois
últimos países, muito provavelmente pelo fato de falarem a mesma língua e
terem utilizado bases teóricas compatíveis, de matiz sociológico, muitas vezes
marxistas. Para Schmidt (1999, p.25), podem ser apontados certos
antagonismos entre a corrente anglo-americana, “voltada à questão da
representação da identidade feminina a partir do conceito de opressão, oriundo
da história social” e a francesa, “perspectivada pela teoria psicanalítica e que
coloca em relevo a repressão do feminino dentro da economia libidinal
patriarcal, em que o feminino é associado ao princípio de negatividade,
ausência, falta”. Dessa forma, pesquisadoras francesas como
Annie Leclerc e Hélène Cixous exploram a introdução do corpo
na arte, a partir de um ângulo distintivo. Para Cixous a
escritura feminina significa ‘escrever o corpo’, pois para ela o
corpo feminino representa ‘impulsos instintivos e um desejo
que surge do inconsciente’, para Leclerc ‘uma linguagem
uterina’. Kristeva avança um pouco e considera o corpo como
‘gozo’ e como ‘força semiótica na escritura capaz de quebrar a
ordem simbólica restritiva,’ já Luce Irigaray com o pressuposto
de que ‘feminino’ significa mais que ‘mulher’, procura-o através
dos discursos filosófico e psicanalítico (DUARTE, 1990, p. 73).
De acordo com Schwantes (2003, p. 394), as pesquisadoras
francesas “optaram por um aporte teórico que, a longo prazo, revelou-se
problemático” e que “sua prática acadêmica não se apoiou em lutas políticas
que garantissem espaços sociais para a mulher”. Schwantes acredita também
“que o confronto direto não é a opção adotada pelas teóricas feministas
francesas”, uma vez que, tendo uma orientação psicanalítica, essa teoria “parte
do princípio de que a própria estrutura da linguagem depende, para funcionar,
do silenciamento do feminino”, não sendo a experiência feminina, “passível de
representação”.
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
72
Por outro lado, utilizando conceitos principalmente da sociologia e
da história, a influência dos fatores sociais nas obras literárias, bem como as
questões de funcionamento da linguagem transformaram-se nas maiores
preocupações da Crítica Literária Feminista de origem anglo-americana. Assim,
Lobo (1999, p. 46) afirma que essa perspectiva histórica dos estudos sobre a
mulher parece ter sido menos valorizada na Crítica Feminista francesa,
representada pelos estudos de linguagem de Kristeva, Cixous e Irigaray, do
que na anglo-americana, que logo passou a ser chamada de estudos de
gênero. Para Schwantes (2003, p. 396-397), os estudos de gênero partem de
uma ampla operação de revisão do cânone literário, tentando demonstrar que
os textos escritos por mulheres foram rejeitados porque, “para tornarem-se
capazes de expressar uma experiência especificamente feminina, recusada no
contexto de uma instituição literária falologocêntrica” traíram e subverteram os
pressupostos que, aparentemente, abraçavam.
Schwantes (2003, p. 396) também acredita que a evolução da
Crítica Literária Feminista, até atingir tal status, deu-se graças a uma mudança
na concepção da palavra gênero, quando foi estabelecida a diferença básica
entre gênero e sexo, uma vez que
gênero não é apenas o sexo biológico, é toda uma construção
identitária, desenvolvida no seio de uma determinada
sociedade, centrada no sexo biológico. Em primeiro lugar,
conclui-se que não apenas “feminino” é gênero. “Masculino”,
“gay”, “lésbica” também são e podem ser pesquisados a partir
do mesmo aparato teórico – e estão sendo. Em segundo lugar,
a utilização de conceitos e ferramentas de outras áreas
aproximou os estudos de gênero dos estudos multiculturais, ou
interdisciplinares, conforme se prefira chamá-los. Dessa forma,
seu estatuto de ciência se consolidou.
Para Marodin (1997, p. 10), o conceito de gênero é aquele que
nos remete a um conjunto de aspectos psicológicos, sociais e culturais de
feminilidade ou masculinidade, características e expectativas tidas como
masculinas ou femininas, designadas pelos padrões da estrutura social vigente
num determinado tempo e espaço. Dessa forma, o gênero determina quais os
papéis que devem ser desempenhados pelo homem e pela mulher, bem como
a posição do homem como dominante e a da mulher como de subordinada,
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
73
excluindo a possibilidade de igualdade e reciprocidade entre os sexos. Nesse
sentido, acredita-se que o conceito de gênero esteja estreitamente ligado ao de
ideologia, que é assim definido em Caldas (1987, p. 831):
“ideologia”, de acordo com Althusser (1971) é um sistema
nunca bem articulado de suposições pelo qual uma sociedade
opera, e manifesta-se pela maneira com que nos
representamos uns aos outros (e somos representados). Uma
ideologia sexual determina, por exemplo, que comportamento
feminino, masculino ou homossexual é socialmente aceito. A
ideologia sexista, ou a ideologia de dominância masculina,
opera reprimindo o que não deve ser reprimível e isolando o
que não deve ser isolado, produzindo assim, resoluções falsas
e contradições em uma dada cultura.
Com isso, a pesquisa feminista revela duas preocupações
centrais: “revisar conceitos previamente tidos como universais e restaurar uma
perspectiva feminina ampliando o conhecimento da mulher em geral e sua
contribuição para a cultura como um todo” (CALDAS, 1987, p. 832).
Elaine Showalter, uma das mais renomadas representantes da
crítica literária feminista anglo-americana, afirma que a Crítica Feminista não
possui um pai fundador, embora tenha enriquecido valendo-se de teorias
importantes como a de Michel Foucault e suas práticas discursivas, a
semiologia de Roland Barthes, o desconstrutivismo de Jacques Derrida e a
psicologia Lacaniana. Showalter também é responsável por sugerir uma
evolução dos estudos da Crítica Feminista em três fases distintas: a primeira
delas (1840-1880), a feminina, é a fase da imitação dos modelos da tradição
masculina dominante, em que a escritora procura internalizar os assuntos que
se referem à natureza feminina, a segunda (1880-1920) é a fase do protesto
contra esses valores patriarcais e uma defesa dos direitos da mulher e a
terceira, a partir dos anos 20, é a fase da auto-descoberta e da busca pela
identidade feminina (SHOWALTER, 1985, p. 254-255).
Para ela, ainda, a Crítica Feminista está dividida em dois tipos:
the first type is concerned with woman as reader – with woman
as the consumer of male-produced literature, and with the way
in which the hypothesis of a female reader changes our
apprehension of a given text, awakening us to the significance
of its sexual codes. (…) The second type of feminist criticism is
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
74
concerned with woman as writer – with woman as the producer
of textual meaning, with the history, themes, genres, and
structures of literature by women (Showalter, 1985, p. 245).
o primeiro tipo refere-se à mulher leitora – à mulher como
consumidora da literatura produzida por homens, e ao modo
com que a hipótese de uma leitura muda a nossa apreensão
de um dado texto, despertando-nos para o significado de seus
códigos sexuais. (...) O segundo tipo de crítica feminista refere-
se à mulher escritora – à mulher como produtora de significado
textual, com a história, os temas, os gêneros e as estruturas da
literatura feminina.
Enquanto o primeiro tipo se baseia na história e trabalha com as
questões ideológicas na obra literária, além de estudar as imagens e os
estereótipos femininos, o segundo, a que Showalter dá o nome de “Ginocrítica”,
inclui principalmente a psicodinâmica da criatividade feminina e o estudo da
trajetória de escritoras e suas obras. Para Showalter, a utilização do termo
Ginocrítica é preferível ao de Crítica Feminista, pois “este último considera
apenas as imagens e estereótipos das mulheres na literatura, as omissões e
concepções errôneas sobre as mulheres na crítica e a mulher como signo nos
sistemas semióticos”, enquanto que a Ginocrítica refere-se mais amplamente à
cultura feminina, que “incorpora idéias sobre o corpo, a linguagem e a psique
da mulher, que são interpretadas em relação aos contextos sociais em que
ocorrem” (LOBO, 1999, p. 45-46).
Showalter (1985, p. 248) propõe a construção de uma crítica
capaz de analisar textos escritos por mulheres a partir de um olhar
essencialmente feminino, o que contribui para a interpretação de determinados
temas e estruturas próprias de escritoras. Tal crítica propõe novos modelos
baseados no estudo da experiência feminina, livres, na medida do possível, da
influência da história literária masculina. Assim, por se tratar de uma crítica
engajada, a “Ginocrítica”, defende a idéia de que a obra literária escrita por
mulheres carrega conotações sociológicas, políticas e ideológicas próprias do
gênero, partindo do princípio
de que a linguagem, embora não seja transparente, é
determinada pelas vivências dos sujeitos que usam. Assim, a
escrita de mulheres, não importa se convencional ou
revolucionária quanto à forma, independentemente de suas
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
75
opções estéticas e programáticas, será sempre marcada pela
experiência de ser mulher em uma sociedade falologocêntrica
– centrada no falo e no logos, e, portanto, marginalizadora do
feminino, do pathos, da emoção (SCHWANTES, 2003, p. 395).
É importante destacar que, apesar de ser discutida pela Crítica
Feminista francesa, a questão da existência de uma linguagem
especificamente feminina parece muito longe de estar definida. Para Duarte
(1990, p. 73-74), essa questão continua suscitando várias reflexões, pois, ainda
que fosse estudada toda a literatura escrita por mulheres, seria muito difícil
estabelecer essa especificidade. Além disso,
a própria tentativa de caracterizar a escrita feminina a partir de
um ‘típico natural’, enraizado na ‘essência’ do ‘feminino’,
terminaria por incorrer num sexismo às avessas, antes
criticado com respeito à visão excludente do patriarcalismo,
apenas em sentido inverso (LOBO, 1999, p. 47).
Em virtude dessa dificuldade em se estabelecer uma linguagem
essencialmente feminina, toma-se a busca pela identidade feminina como a
principal questão da Crítica Feminista, principalmente no que diz respeito às
novas formas de representação da mulher. A identidade pode ser vista “como
tendo algum núcleo essencial que distinguiria um grupo de outro (...)” ou,
principalmente, como algo “contingente; isto é, como o produto de uma
intersecção de diferentes componentes, de discursos políticos e culturais e de
histórias particulares” (WOODWARD, 2004, p. 38).
Para Silva (1999, p. 210), a construção da identidade da mulher é
“um processo penoso de afirmação de um ser que se deseja livre”, uma vez
que esse conceito de identidade feminina apareceu, ao longo do tempo, ligado
de maneira indissociável à condição social da mulher, sendo necessária a
destruição de certos padrões de comportamento e questionadas antigas formas
de representação da figura feminina, enfatizando
(...) a importância da conscientização feminina sobre a
necessidade de subverter os costumes e os mitos tradicionais,
tais como as costumeiras inferioridade e subserviência
femininas, a discriminação no estabelecimento dos papéis
sociais, o eterno feminino e a tradição tão cara aos românticos
referente à idealização da mulher. Dessa maneira, ela poderá
superar o papel subalterno a que sempre foi condicionada e
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
76
conquistará, enfim, a tão ambicionada igualdade de
oportunidades, mantendo, entretanto, a especificidade de seu
gênero, o que significa adquirir igualdade, valorizando a
diferença (ZINANI, 2006, p. 21).
É o que Woodward defende ao afirmar que as identidades “são
formadas relativamente a outras identidades, relativamente ao ‘forasteiro’ ou ao
‘outro’, isto é, relativamente ao que não é” (2004, p. 49). Nesse sentido, Silva
(1999, p. 209-210) explica que, ao discutir o gênero, as escritoras, quando
analisadas pela Crítica Feminista, “apontam para a complexidade do enlace
entre o ‘eu’ e o ‘nós’, para a necessidade de unir conceitos até então
compartimentados segundo paradigmas de separação e/ou de disfunção”. De
fato,
As identidades são fabricadas por meio da marcação da
diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio
de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de
formas de exclusão social. A identidade, pois, não é o oposto
da diferença: a identidade depende da diferença. (Woodward,
2004, p. 40).
Assim, por meio de seus textos, muitas escritoras procuram
desconstruir certos papéis sociais atribuídos à mulher através dos tempos, num
processo de ampliação dos universos femininos que estiveram sempre
atrelados aos domínios do doméstico e da família. Tal atitude é decorrente da
chamada “crise da identidade” proposta em Woodward, uma vez que
os processos históricos que, aparentemente, sustentavam a
fixação de certas identidades estão entrando em colapso e
novas identidades tais como se expressam, por exemplo, nos
conflitos nacionais e étnicos e no crescimento dos ‘novos
movimentos sociais’, estão fortemente baseadas na construção
da diferença (Ibidem, p. 39).
Sabendo que a identidade é formada a partir de uma interação
entre as convicções individuais e os valores sociais que englobam as diversas
experiências da mulher, ela deve adquirir seu espaço a partir de um
questionamento a respeito das tradicionais representações da imagem
feminina ao longo dos tempos. Dessa forma, o conceito de identidade deve ser
entendido como estreitamente ligado à idéia de representação, que
A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DO
SÉCULO XX NO “TERRITÓRIO SELVAGEM”
77
inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por
meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-
nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas
representações que damos sentido à nossa experiência e
àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses
sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo
no qual podemos nos tornar. (Ibidem, p. 17).
Para tanto, é preciso ressaltar, mais uma vez, a importância dos
textos literários produzidos por mulheres, que possibilitam a construção de
novas identidades femininas, a partir de uma negação dos estereótipos
atribuídos à mulher e de uma aceitação de outras concepções da figura
feminina, bem como de uma valorização de suas experiências individuais. Esse
processo torna-se importante na medida em que contribui para o entendimento
das novas relações sociais, favorecendo uma maior aceitação da idéia de
complementaridade entre os sexos.
CAPÍTULO 4
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
Não era à toa que ela entendia os que
buscavam caminho. Como buscava
arduamente o seu! E como hoje buscava
com sofreguidão e aspereza o seu melhor
modo de ser, o seu atalho, já que não
ousava mais falar em caminho.
Clarice Lispector
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
79
ndependentemente da ambigüidade que é inerente a toda obra
literária, sabe-se que, muitas vezes, os conceitos e idéias de
um texto dessa natureza não são apresentados de maneira clara e direta, pois,
por diversas razões, o autor não quer ou não pode fazê-lo, optando assim por
usar procedimentos técnico-narrativos de codificação que amoldam o discurso
ao conteúdo a ser expresso. No caso específico de Kate Chopin, nota-se a
dificuldade em abordar o descontentamento com a condição feminina ou a
necessidade de emancipação da mulher, sem o uso de certas estratégias
capazes de camuflar tais conceitos e idéias que eram considerados uma
afronta para a ideologia patriarcal dominante no final do século XIX, pois, como
foi visto, a sociedade da época não se mostrava preparada e muito menos
disposta a tratar de determinados tabus como a sexualidade feminina e o
divórcio. Isso ocorre porque
I
ao romper o silêncio em que sempre foi colocado, o ‘feminino’
iguala-se também com o revolucionário, o subversivo, porque
se propõe a sair da posição secundária em que se achava.
Esse processo de subversão dá-se, pois, através de recursos
narrativos como a ironia, o humor, o texto em palimpsesto. As
questões que mais diretamente concernem à mulher podem
jazer escondidas por temas mais ‘importantes’ ou mais aceitos
pela comunidade literária (que tradicionalmente representa um
ponto de vista masculino); ou podem, muitas vezes, ser
colocadas pela voz de uma personagem homem, num modo
de distanciamento por parte da autora (PINTO, 1990, p. 26).
Tais procedimentos são chamados de estratégias textuais, uma
vez que estabelecem uma relação dialógica entre a abstração das idéias do
autor e o pragmatismo da construção do discurso. Elas são responsáveis pela
expressão discursiva das convicções ideológicas do autor com o propósito de
produzir determinados efeitos no leitor. É interessante notar como essa
atualização discursiva das concepções do autor se dá num nível concreto da
escrita, mesmo quando o discurso apresenta-se sob uma forma que
aparentemente as recusa.
Na tentativa de promover certa isenção e impessoalidade em
relação às opiniões expostas nos textos, Kate Chopin acaba por evidenciar, por
meio dos próprios elementos constitutivos da narrativa, aspectos significativos
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
80
da temática da emancipação feminina, embora de maneira mais velada. Nesse
processo de adoção de determinadas estratégias narrativas, a autora se
preocupa com situações que vão desde a opção pelo gênero literário mais
adequado a seu propósito até mesmo a valorização de certos signos literários
em detrimento de outros para a construção do texto. Assim, acredita-se que
somente a partir do pressuposto de que a subjetividade textual é expressa
principalmente pela escolha do gênero mais adequado, por meio do narrador,
da construção das personagens, bem como do espaço e do tempo e do jogo
narrativo-enunciativo da escritura “que é possível detectar, (...), as pistas que
podem revelar uma visão de mundo coerente com os postulados da crítica
feminista” (VILLAÇA
16
apud ZINANI, 2006, p. 38).
A fim de revelar os processos de construção e de representação
da identidade feminina propostos por Kate Chopin em seus contos, privilegia-se
a realização de um estudo capaz de desvendar a importância de certas
estratégias utilizadas em sua produção, juntamente com uma breve discussão
acerca de algumas das principais teorias desenvolvidas para uma melhor
sistematização desses elementos que compõem a estrutura narrativa. Sua
importância reside no fato de que
no one is in a position to recognize the difficulty of even the
simplest choices among fictional techniques better than one
(and there must be very many) who has imagined himself a
potential novelist, has tried writing fiction, and has given it up
for an easier trade. What does one develop and what does one
summarize? In which directions should one develop? Does the
appearance of the characters matter? Must one imagine and
report their exact words? How much of the physical
surroundings is it essential to show? Of two more-or-less
equally develop passages, why does one seem thin while the
other seems cluttered? How does one make time pass? Where
do motives begin and how far back is one obliged to analyze
them? How does one get the characters from one place to
another? What is the relation between the complexity of the
situation one starts with and the texture of the finished action?
(STEVICK, 1967, p. 45).
ninguém está na posição de reconhecer a dificuldade, mesmo
que das mais simples escolhas dentre as técnicas ficcionais,
melhor do que aquele (e deve haver muitos) que tenha se
16
VILLAÇA, N. Paradoxos do pós-moderno: sujeito e ficção. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
81
imaginado um romancista em potencial, tenha tentado escrever
ficção, e tenha desistido por uma profissão mais fácil. O que
desenvolver e o que resumir? Em quais direções se deve
desenvolver? A aparência das personagens importa? Deve-se
imaginar e reportar de forma exata suas palavras? Quanto é
necessário mostrar em relação à ambientação física? Em duas
passagens do texto mais ou menos igualmente desenvolvidas,
por que uma parece escassa e a outra confusa? Como fazer o
tempo passar? Onde surgem os motivos e até que ponto do
passado deve-se ir para analisá-los? Como levar as
personagens de um lugar para outro? Qual é a relação entre a
complexidade do início da situação e a textura do seu final?
Por isso, ao mesmo tempo em que se faz um estudo da temática
dos contos, devem ser observados e analisados também alguns aspectos
textuais importantes como o gênero narrativo utilizado, o foco narrativo, a
caracterização, o posicionamento e as atitudes das personagens
(principalmente as femininas), além das relações espaço-temporais e o papel
da ironia. Tais aspectos devem ser entendidos não somente como veículos
para expressão da ideologia feminina, mas, principalmente, como elementos
que estabelecem uma ligação indissociável com a própria estrutura que
compõe a narrativa. Trata-se de um argumento defendido por Adorno (1988, p.
16) em que “[o]s antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras
de arte como os problemas imanentes de sua forma. É isto, e não a trama dos
momentos objetivos, que define a relação da arte à sociedade”. Essa afirmação
aponta para a necessidade de se observar as referências ao social a partir da
própria estrutura da obra, pois, conforme assevera o próprio Adorno (2003, p.
66), as emoções e experiências pessoais “só se tornam artísticas quando,
justamente em virtude da especificação que adquirem ao ganhar forma
estética, conquistam sua participação no universal”.
Para Stevick (1967, p. 46), a realização desse tipo de estudo, que
desvenda e discute a utilização de certos recursos nos textos literários, requer
que se tenha em mente que tais técnicas narrativas não têm existência além de
seu emprego em textos particulares e que não se pode começar a julgar a
efetividade de uma maneira de contar a história sobre outra sem julgar as
relações entre essas técnicas e o todo da estrutura do texto em que elas
aparecem. Assim,
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
82
a theory of technique also requires that the critic assume that
the subject matter of a novel – its ideas, its themes, its system
of values – cannot be separated from its technique, since it is
only by means of technique that these themes and values have
any existence at all (STEVICK, 1967, p. 46).
uma teoria da técnica também requer que o crítico assuma que
o assunto de um romance – suas idéias, seus temas, seus
sistemas de valores – não podem ser separados da sua
técnica, uma vez que é somente por meio da técnica que
esses temas e valores têm alguma existência.
Pensando nisso, e levando-se em conta que “o romance expressa
o caráter prosaico da vida moderna e a revolta dos homens contra estas
circunstâncias prosaicas, na tentativa de mudá-las” (ANTUNES, 1998, p. 193),
pode-se afirmar que a opção pelo gênero narrativo constitui uma das escolhas
mais importantes de Kate Chopin.
Antes, porém, da discussão a respeito de tal opção, deve-se levar
em consideração a existência de uma estreita relação entre os gêneros
literários, cujas fronteiras são representadas por linhas quase imperceptíveis
que permitem uma interpenetração entre eles. Por essa razão, os gêneros não
devem ser encarados como formas fixas, uma vez que nessa interpenetração
podem ocorrer fenômenos que envolvem desde uma troca de valores estéticos
até uma adaptação de técnicas. Há quem entenda, por exemplo, que as
origens do conto e do poema são as mesmas, ou então que o conto tenderia a
se basear numa tensão dramática, a exemplo do teatro, ou ainda que o conto,
enquanto narrativa, não pode ser desvinculado de uma teoria da narrativa em
geral. Por isso, Cortázar (1999, p. 350) afirma que, para entender o caráter
peculiar do conto costuma-se compará-lo ao romance, que é um gênero muito
mais popular e sobre o qual proliferam preceitos. De fato, apesar de ser
considerada a existência de características próprias do conto, gênero utilizado
por Kate Chopin e que será alvo do presente estudo, reconhece-se que muitos
dos conceitos aqui observados para a sua caracterização encontram
fundamentação nas principais teorias do romance.
Assim, considerando-se que a forma de um texto reflete o seu
caráter social, o romance tornou-se o gênero mais adequado para a
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
83
representação da vida privada dos indivíduos pertencentes à sociedade
burguesa, bem como de suas convenções e relações, revelando o processo de
cisão entre o “eu” e o mundo que caracteriza essa sociedade, ou seja,
expressando o conflito entre os objetivos individuais e sociais, numa luta em
que o herói se mostra em oposição à sociedade, tentando modificá-la. Assim,
o romance é o gênero literário mais típico da sociedade
burguesa. Há sem dúvida, obras da Antigüidade, da Idade
Média e do mundo oriental que apresentam algumas
semelhanças com o romance, mas os seus traços
característicos só aparecem depois que ele se torna a forma de
expressão da sociedade burguesa. É no romance, ademais,
que as contradições específicas da sociedade burguesa têm
sido figuradas do modo mais adequado e mais típico. As
contradições da sociedade capitalista fornecem, assim, a
chave para a compreensão do romance enquanto gênero
(LUKÁCS
17
apud NETTO, 1992, p.177).
Em sua Teoria do romance (2000), Lukács estabelece relações
entre a ascensão do gênero romance e a história material do homem,
afirmando que o herói romanesco, diferentemente do herói épico, passa a ser
um herói problemático, uma vez que não concorda mais com o mundo em que
vive, num conflito que não comporta reconciliação. Com base em uma
concepção historicista do romance, Lukács também procura explicar os
aspectos formais do gênero narrativo a partir de sua inserção nos contextos
social, político e econômico de seu tempo ou, mais especificamente, a partir da
evolução do modo de produção capitalista, pois, para ele, as formas artísticas
têm sua origem e sua explicação nas relações econômicas e sociais da
sociedade em que aparecem. Assim, o romance é, para ele, o gênero que
reflete certas contradições da sociedade como:
o caráter antagônico das classes sociais; o caráter fetichizado
das relações humanas (relações entre pessoas que se
apresentam como relações entre coisas), que torna difícil
conhecer sua verdadeira natureza; contraste inconciliável entre
a vida individual e a vida social; a ambivalência inerente ao
desenvolvimento do modo de produção capitalista, o qual,
mesmo na fase progressista de sua formação, de um lado
desenvolve as forças produtivas sociais libertando-as das
17
LÚKACS, G. Écrits de Moscou. Paris, Éditions Sociales, 1974.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
84
relações feudais, de outro, produz fatores de degradação do
homem (ANTUNES, 1998, p. 185).
Diferentemente do herói da epopéia clássica, a figura do herói
romanesco não funciona mais como porta-voz dos valores coletivos, sendo
representante muitas vezes somente de seus próprios interesses ou, no
máximo, da classe à qual pertence, o que favorece a valorização das questões
da vida privada como sendo o principal material do romance. Bakhtin (1993, p.
400) afirma que o romance (podendo perfeitamente ser aplicado para o conto)
é o principal personagem do drama da evolução literária moderna, uma vez
que expressa as tendências evolutivas do novo mundo, estabelecendo de
forma inovadora relações particulares com a vida corrente. A preferência pelo
gênero tem sua razão de ser pelo fato de o romance ser a forma mais
adequada para exprimir o rompimento entre a dimensão individual e a
dimensão social característica das sociedades burguesas ocidentais,
principalmente na segunda metade do século XIX. Assim, para Lukács, como
principal conteúdo desses gêneros narrativos tem-se:
a experiência que o indivíduo faz de si mesmo na ampla
riqueza de sua vida na sociedade e – através da mediação dos
traços essencialmente novos das relações humanas assim
reveladas – da sua existência como parte e momento do
desenvolvimento da humanidade, como seu compêndio
concentrado (NETTO, 1992, p. 197).
Tais características do romance, principalmente as que dizem
respeito à cisão permanente entre o indivíduo e os valores coletivos da
sociedade e a uma busca por valores individuais, mostram-se ideais para
serem utilizadas por uma escritora como Kate Chopin, que manifesta um
interesse especial em retratar as reflexões acerca das questões femininas na
sociedade do século XIX, uma vez que as mulheres correspondem a figuras
que se encontram em constante conflito com a situação dominante e em
constante busca de suas identidades. Isso ocorre porque, diante do processo
de ruptura do sujeito com a sociedade, essa busca pela identidade individual
torna-se necessária, já que o mundo deixa de ser concebido como na
Antigüidade clássica, ou seja, como uma unidade. Com isso, a adoção do
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
85
romance (ou do conto) como gênero propicia a valorização de características
individuais e subjetivas do herói, favorecendo o desenvolvimento de uma
temática de cunho crítico, como é o caso da maioria dos textos escritos por
mulheres.
Como reflexo dessa insatisfação em relação à condição feminina
na sociedade ao longo da história, são comumente abordados temas referentes
à luta das protagonistas pelo reconhecimento de sua identidade “e,
conseqüentemente, sua relação conflituosa com a realidade exterior, pois a
personagem toma consciência de que seu desejo de afirmação e realização e
os desejos e exigências da sociedade em que vive atuam como forças em
oposição” (PINTO, 1990, p.148).
Vale ressaltar que, por se tratar de um gênero literário que
representa os valores da burguesia em seu conteúdo, quase sempre o leitor se
vê diante de personagens femininas envolvidas em problemas relacionados a
essa classe social, ou seja, o casamento, o amor, a maternidade e as
convenções sociais. O fato de representarem a mulher burguesa nos textos
literários faz com que essas personagens femininas desempenhem, tanto de
forma explícita ou velada, o papel de herói problemático proposto por Lukács,
uma vez que são apresentadas em situações de constante conflito com a
sociedade em que vivem. Como foi visto anteriormente, a inadequação do
homem ao seu destino e à sua situação consiste num dos principais temas do
romance, manifestando, principalmente por meio das personagens, um
descontentamento diante de sua posição na sociedade. Essa informação é
fundamental para que se compreenda de que maneira as relações sociais
tendem a se refletir nos textos literários, principalmente no que tange a era
burguesa, pois
o homem adquire no romance uma iniciativa ideológica e
lingüística que modifica a sua figura (um tipo novo e superior
de individualização do personagem) [...] O personagem do
romance, como regra, é um ideólogo em maior ou menor grau
(BAKHTIN, 1993, p. 426).
Além disso, Lukács discute, diante de uma impossibilidade de
reconciliação do homem com a sociedade, que esse conflito se dá “devido à
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
86
desproporção entre as aspirações da alma e a objetividade da organização
social.” (ANTUNES, 1998, p. 183). Isso ocorre porque, sendo a literatura o
produto de uma prática social, o herói romanesco pode, por exemplo,
transformar-se no representante de uma ideologia em vigência na época em
que o texto foi escrito, principalmente naquela personagem cujos ideais
estabelecem uma relação de conflito com seu tempo, defendendo interesses
menos coletivos e mais individuais. Assim, ao contrário da epopéia, que atua
como um poema sobre o passado e que não diz respeito ao leitor e ao seu
tempo, o romance estabelece relações com o extra literário, revelando um
caráter ideológico. Utilizando-se do conceito proposto por Lukács, Bakhtin
afirma ainda que, diferentemente do que ocorria com o herói da epopéia, em
que o ponto de vista do homem a respeito de si mesmo coincidia plenamente
com o ponto de vista dos outros (seu meio, sua coletividade, seu cantor e seus
ouvintes) sobre ele, no romance:
uma importante dinâmica foi introduzida na representação do
homem, a dinâmica da incompatibilidade e da discrepância
entre seus diversos aspectos: o homem deixou de coincidir
consigo mesmo e, portanto, também o enredo deixou de
revelar o homem por inteiro (BAKHTIN, 1993, p. 424).
O romance passa, então, a estabelecer relações particulares com
a vida corrente e a ideologia, sendo que, a partir dessa nova orientação
temporal, dá-se uma reestruturação da representação do homem no romance.
Para Antunes (1998, p. 202), “no mundo burguês, o homem é um indivíduo
isolado que vê o conjunto social e os outros homens como meios para realizar
seus interesses, segundo uma relação de antagonismo”. Assim, as
personagens do romance, ao representarem o homem burguês e sua vida
privada, passam a revelar os problemas decorrentes dessa dissociação com a
sociedade, principalmente as questões de identidade pessoal.
No tocante à evolução do personagem, ao herói burguês bem-
sucedido em seus empreendimentos, protagonista de muitos
romances do século XVIII – embora esse sucesso seja
marcado, desde logo, pela mediocridade burguesa – sucedem-
se personagens que têm um campo de ação cada vez mais
restrito, derrotados em seus empreendimentos em
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
87
conseqüência da organização mais rigorosa da sociedade,
representados nos romances de Goethe, Balzac, Flaubert e
Tolstoi. A personagem mais emblemática da derrota é Madame
Bovary (ANTUNES, 1998, p. 204).
A passagem acima explicita que, em meio aos vários novos
heróis surgidos a partir da ruptura do sujeito com a sociedade, encontra-se em
destaque a figura feminina, numa clara referência à impossibilidade de
reconciliação entre a mulher e o mundo moderno, enfatizando a necessidade
de revisão dos antigos valores e papéis atribuídos a ela. Com isso, o romance
instaura-se como o veículo ideal para tratar das questões acerca da visão de
mundo burguesa em que se insere a problemática feminina, por ser uma forma
que expressa conteúdos contraditórios do desenvolvimento da sociedade
humana a partir do século XVIII, bem como de suas conseqüências
irrevogáveis.
Já no que diz respeito às características próprias do conto
18
,
responsáveis por expressar o caráter desse gênero, destacam-se a questão da
intensidade e da brevidade. Graças a essas características, que propiciaram
uma maior facilidade de divulgação do texto literário, e graças também ao
processo de expansão da imprensa, o conto começa a ser produzido mais
maciçamente até se tornar a forma literária predominante nos Estados Unidos
do final do século XIX. Suas dimensões reduzidas combinavam (e até hoje
ainda combinam) perfeitamente com o ritmo de vida acelerado que o crescente
progresso impunha, o que explica a sua utilização como uma forma de
expressar a rapidez com que as transformações se processavam no mundo
naquela época.
Partindo dessas considerações, acredita-se que a visão
fragmentada que se revela por meio do conto também pode ser explicada
como um reflexo dos novos valores e concepções da vida, adquiridos
juntamente com as inovações trazidas pelo progresso e pela evolução da
ciência, como explica Gotlib (1991, p. 30):
18
Para discutir a teoria do conto são utilizados alguns pontos do estudo realizado em
SILVESTRE, Marcela. A personagem feminina como vítima ou agente da ironia no conto
de Kate Chopin: Dissertação de Mestrado, 1997.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
88
com a complexidade dos novos tempos, e devido em grande
parte à Revolução Industrial que vai progressivamente se
firmando desde o século XVIII, o caráter de unidade da vida e
conseqüentemente, da obra, vai se perdendo. Acentua-se o
caráter da fragmentação dos valores, das pessoas, das obras.
Mas, para que este teor fragmentário, proposto na estrutura do
conto através do detalhe, seja capaz de produzir os efeitos de abertura e
intensidade próprios do gênero, é necessário que o tema a ser escolhido
transcenda o seu próprio significado, “de modo que um vulgar episódio
doméstico, (...), se converta no resumo implacável de uma certa condição
humana, ou no símbolo candente de uma ordem social ou histórica”
(CORTÁZAR, 1993, p.153). Com efeito, a principal temática abordada por Kate
Chopin em seus contos, a da condição feminina na sociedade de seu tempo,
tem o poder de manifestar tal capacidade de transcender o seu próprio
significado, podendo servir inclusive como reflexo do pensamento de muitas de
suas contemporâneas, ainda que de maneira velada e proibida.
Também para que seja conservado o efeito de intensidade no
conto é apontada uma necessidade, já descrita por Poe (1967, p. 461) na
resenha crítica a Twice told tales de Nathaniel Hawthorne e na própria
Filosofia da composição (2000, p. 40), de que a obra literária tenha o
tamanho ideal para emocionar e elevar a alma do leitor, ou seja, deve ser breve
o suficiente para ser lida em uma única assentada, a fim de conservar o caráter
de unidade ou totalidade.
Conseqüentemente, graças às dimensões reduzidas do conto,
que o impedem de conter descrições pormenorizadas e tramas complicadas,
esse gênero caracteriza-se principalmente pela representação de um aspecto
particular de maneira intensa e objetiva, que só se alcança por meio de uma
unidade de construção.
Para Moisés (2000), essa unidade de construção presente no
conto condiciona as suas demais características. Assim,
começando pela noção de espaço, verificamos que o lugar
onde as personagens circulam, é sempre de âmbito restrito. No
geral, uma rua, uma casa, e, mesmo, um quarto de dormir ou
uma sala de estar basta para que o enredo se organize.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
89
Raramente os protagonistas se movimentam para outros
lugares (MOISÉS, 2000, p. 43).
Parece interessante observar que o espaço restrito e privado, que
é ocupado pelas mulheres na sociedade burguesa americana do final do século
XIX e que corresponde ao cenário da maioria dos contos de Kate Chopin, pode
ser, com facilidade, retratado a partir das reduzidas proporções do ambiente de
um conto, caracterizando assim, um indicador importante das limitações
femininas. Além disso, pode-se observar que, em muitas de suas histórias, as
personagens femininas manifestam o desejo e as dificuldades de ultrapassar
os limites desse ambiente restrito que lhe é destinado, a fim de desbravar o
espaço público tradicionalmente atribuído ao masculino. Partindo dessas
considerações, o elemento espacial passa a assumir uma dimensão simbólica
importante na narrativa, ou seja, estabelece-se uma relação estrita entre a
caracterização das personagens femininas e sua posição no cenário da
história. “Em tais cenários, cria-se um microcosmo em função do qual vão se
definindo as condições históricas e sociais das personagens, onde é possível
detectar a correlação funcional entre os ambientes, as coisas e os
comportamentos” (SANTOS, 2001, p.79).
Parafraseando e interpretando as palavras de Reid (1977, p. 55-
56)
19
, retoma-se a idéia de que o conto normalmente focaliza uma única
personagem em um único episódio e, em vez de traçar o seu desenvolvimento
na história, procura revelá-la num momento particular, em que essa
personagem passa por uma transformação decisiva em relação às suas
atitudes ou compreensão de determinada situação. Trata-se de um movimento
normalmente desenvolvido pelas protagonistas em direção ao seu
autoconhecimento, que consiste em um dos temas mais recorrentes e
importantes da obra de Kate Chopin, principalmente quando essa personagem
principal é uma mulher que, ao vivenciar o conflito entre seus valores e desejos
pessoais e os valores sociais vigentes, desperta para a sua verdadeira
condição.
19
Citando BARNET, Sylvan et al. (ed.) A dictionary of Literary terms. London, 1964.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
90
Assim como a noção de espaço e ação se manifestam de
maneira mais limitada, também a de tempo é condicionada a partir da unidade
do conto, pois “os acontecimentos narrativos (...) podem dar-se em curto lapso
de tempo: já que não interessam o passado e o futuro, o conflito se passa em
horas, ou dias” (MOISÉS, 2000, p. 44). Muitas vezes, o tempo utilizado nessas
narrativas curtas não é o cronológico, mas refere-se exclusivamente às
vivências subjetivas das personagens, sendo apreendido a partir dos seus
pensamentos e sensações a respeito do mundo que o cerca. Isso contribui
grandemente para que o conto escrito por mulheres adquira um caráter
denunciador da problemática feminina, uma vez que sua condição é muitas
vezes expressa a partir das impressões e pensamentos das personagens
femininas.
Além disso, Piglia (1994, p. 37-39) aponta para o caráter duplo da
forma do conto, no sentido de que um conto sempre narra duas histórias como
se fossem uma só e que o efeito de surpresa é produzido quando o final da
história secreta se revela na superfície. Ainda de acordo com essa teoria, deve-
se levar em consideração que os pontos de cruzamento entre as duas histórias
contadas constituem a base da construção do conto, a partir dos quais, muitas
vezes, também é evidenciado o seu caráter irônico.
Com isso, o conto parece constituir uma forma muito apropriada
para Kate Chopin na abordagem de temas como a condição da mulher,
principalmente pelo fato de a escritora necessitar, muitas vezes, camuflar
certos conceitos mais polêmicos. Portanto, ao utilizar a idéia de que “[a] história
secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão” (PIGLIA,
1994, p. 39), pode-se afirmar que, no caso dos contos de Chopin, enquanto a
história visível tende a expressar conceitos que estão em concordância com os
valores tradicionalmente aceitos pela sociedade, a história secreta pretende
discutir, num nível mais profundo, os principais conflitos do universo feminino
do século XIX.
A partir dessas considerações, a teoria acima citada constitui um
importante instrumento de análise dos contos desta tese, e deve ser
diretamente relacionada ao conceito de texto palimpsesto, adotado
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
91
principalmente por escritoras do século XIX como estratégia narrativa, numa
tentativa de subverter certos padrões patriarcais e que será abordado, com
mais detalhes, no final deste capítulo.
Há também a necessidade de ressaltar a importância da escolha
de determinadas perspectivas narrativas para que tais impressões e
pensamentos das personagens femininas sejam expressos, uma vez que a
questão do foco narrativo passa, principalmente, pela discussão a respeito da
posição de onde a ação é observada, ou seja, a posição do narrador em
relação às personagens da trama e aos fatos narrados. Em uma análise mais
ampla, pode-se dizer que é a partir do uso de determinados pontos de vista
que as opiniões e os valores do autor são transmitidos em sua obra, seja de
forma direta ou indireta.
As teorias que se propõem a refletir sobre o narrador de textos
ficcionais fazem uso, com freqüência, de um vocabulário que
privilegia a visualidade. Não por acaso, as palavras
designativas da posição do narrador são: foco, visão, ponto de
vista, perspectiva. Com isso, tem-se a impressão de que se
deseja destacar justamente um determinado modo de
relacionamento com as coisas, a presença de um sujeito capaz
de delimitar e controlar o seu campo perceptivo ao imprimir sua
subjetividade na matéria narrada. Esse encaminhamento
teórico – que pressupõe uma direção que vai do olho para o
olhar, do olhar para o perceber, e do perceber para o ser – é a
estratégia encontrada para reconhecer, na ficção, o sujeito
(SANTOS, 2001, p.4).
E para que o teor dessa relação de proximidade entre sujeito e
conteúdo narrado seja explicitado, torna-se necessário um olhar mais
aprofundado para o foco narrativo utilizado nos contos estudados, bem como
para as principais teorias que tentam sistematizar esse importante elemento da
estrutura narrativa. Para a realização de tal estudo serão utilizadas
principalmente as nomenclaturas presentes nas teorias de Norman Friedman
(1967), por estabelecer uma classificação que parte de modelos menos
objetivos para os mais objetivos (que seria a ausência total de narrador) e de
Wayne Booth (1967), por conter importantes conceitos como o do ‘autor
implícito’ e da ‘distância’. A escolha dessas teorias, porém, não exclui a
utilização de conceitos propostos por outros estudiosos do tema como Gérard
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
92
Genette (quanto à distinção entre ‘voz’ e ‘visão’ narrativa), Jean Pouillon (visão
‘com’ ou ‘por detrás’), Henry James (com a idéia de ‘personagem refletor’) e
Percy Lubbock (apresentação ‘cênica’ ou ‘panorâmica’).
Com relação à ironia, largamente utilizada nos contos de Kate
Chopin, pode-se dizer que constitui um recurso necessário para que as idéias
da autora possam ser transmitidas para o texto literário de forma menos direta
e objetiva, causando uma quebra de isotopia e favorecendo o aparecimento da
ambigüidade característica. Segundo Daghlian (1987, p. 12), um dos primeiros
componentes da ironia é justamente uma ‘inocência’ ou ‘ignorância convicta’ da
personagem sobre a qual ela incide, que é responsável por criar um contraste
entre realidade e aparência. Há, portanto, no texto irônico, um contraste
marcante entre a expectativa e a realização, que pode se dar principalmente
por um desentendimento entre as personagens ou pela quebra de expectativa
do leitor. De acordo com Muecke (1995, p. 76),
em iguais circunstâncias, as ironias serão mais ou menos
poderosas proporcionalmente à quantidade de capital
emocional que o leitor ou o observador investiu na vítima ou no
tópico da ironia. Dizer isso não significa abandonar os reinos
da arte e da ironia e entrar nos da pura subjetividade e
preferência individual; as áreas de interesse que mais
prontamente geram ironia são, pela mesma razão, as áreas em
que se investe mais capital emocional: religião, amor,
moralidade, política e história. A razão é, naturalmente, que
tais áreas se caracterizam por elementos inerentemente
contraditórios: fé e fato, carne e espírito, emoção e razão, eu e
o outro, dever-ser e ser, teoria e prática, liberdade e
necessidade. Explorar estes ironicamente é adentrar uma área
em que o leitor já está envolvido.
Nesse sentido, a condição feminina consiste numa área de
interesse que favorece a utilização do recurso da ironia como forma de
contraste entre o significado literal do texto e a intenção irônica implícita nele,
num jogo de palavras que pode revelar as idéias do autor sob um texto que
aparentemente as negue. Sendo assim, o papel do leitor passa a ser o de
desvendar os conflitos entre mensagem e conteúdo, que foram, na maioria das
vezes, intencionalmente apontados pelo autor no momento da escrita. É o que
Muecke (1995, p. 54) defende ao afirmar que “na ironia o significado real deve
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FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
93
ser inferido ou do que diz o ironista ou do contexto em que o diz; é ‘sonegado’
apenas no fraco sentido de que ele não está explícito ou não pretende ser
imediatamente apreensível”.
A partir dos conceitos até aqui observados e de sua aplicação no
estudo, é possível entrever nos contos de Kate Chopin uma alternância entre
dois modos de construção dos conflitos femininos. Apesar de ambos os modos
se referirem a situações que refletem os conflitos do “herói problemático” em
relação à sociedade, o primeiro apresenta uma personagem que manifesta um
caráter de enfrentamento mais direto e crítico, assumindo uma posição
claramente contrária aos preceitos impostos a ela. Enquanto isso, o outro
modo, ao sugerir uma aparente conformidade da personagem feminina com os
valores patriarcais opressores sob uma estrutura mais elaborada, deixa mais a
cargo do leitor o desvendamento de um sentido mais profundo do texto,
subentendido em meio a estratégias mais sutis como a ironia.
É também importante notar que tais conflitos não ocorrem
somente no nível da construção de determinadas situações narrativas, mas
também, e, principalmente, na representação das personagens femininas
envolvidas nas tramas. Assim, entre as mais importantes personagens
femininas de sua obra estão, de um lado, aquelas que se rebelaram
abertamente contra a sociedade que as reprimia, procurando viver em um
mundo à margem dessa sociedade e construindo suas próprias regras e
limites, e, de outro, as que aparentemente concordaram com a sua condição de
inferioridade, mas que, quando observadas mais atentamente, aparecem
quase sempre inseridas numa narrativa de cunho irônico que camufla e sufoca
os verdadeiros sentimentos e pensamentos da mulher em nome da tradição
patriarcal vigente.
Apesar de mostrar a maestria na arte de escrever justamente por
meio desse segundo tipo de texto, em que há uma aparente aceitação dos
valores sociais, é possível que Kate Chopin, assim como muitas outras
escritoras de seu tempo, tenha tomado esse tipo de atitude para poder
sobreviver no meio literário essencialmente dominado pelos homens. Isso
ocorre porque todas as referências a serem utilizadas pelas escritoras para a
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
94
composição de suas obras encontram-se em um universo essencialmente
masculino, ou seja, da linguagem até os meios de representação do mundo,
tudo foi criado pelos homens, demonstrando o seu poder de dominação sobre
esse mundo e conseqüentemente sobre as mulheres.
Para Gilbert & Gubar (1984, p. xi), a imagem da mulher escritora
em meio a toda essa dominação é a de um ser enclausurado:
both in life and in art, we saw, the artists we studied were
literally and figuratively confined. Enclosed in the architecture of
an overwhelmingly male-dominated society, these literary
women were also, inevitably, trapped in the specifically literary
constructs of what Gertrude Stein was to call ‘patriarchal
poetry’. For not only did a nineteenth-century woman writer
have to inhabit ancestral mansions (or cottages) owned and
built by men, she was also constricted and restricted by the
Palaces of Art and Houses of Fiction male writers authored.
tanto na vida como na arte, nós vimos, que as artistas que
estudamos estavam literal e figurativamente confinadas.
Enclausuradas na arquitetura de uma sociedade
opressivamente dominada pelos homens, essas escritoras
estavam também, inevitavelmente, presas nos construtos
especificamente literários que Gertrude Stein chamou de
‘poesia patriarcal’. Não somente por ter habitado mansões
ancestrais (ou chalés) possuídos e construídos por homens, a
escritora do século XIX foi também reduzida e restrita pelos
Palácios da Arte e Casas da Ficção que os escritores criaram.
Ainda segundo Gilbert & Gubar (1984), o que se percebe a partir
do século XIX é que as escritoras conseguiram desenvolver uma literatura e
uma cultura próprias, havendo, por conseqüência, uma necessidade de
autodefinição por parte delas, não mais a partir dos critérios construídos pelos
homens, apesar de manifestarem ter uma noção real da dificuldade de tal feito,
mas a partir de suas próprias experiências. Sendo assim, a primeira coisa a se
fazer era tentar construir novas formas de representação da mulher que não
estivessem contaminadas pela visão tradicional masculina, uma vez que os
homens têm manifestado ao longo dos tempos, principalmente por meio de
seus representantes escritores, um completo desconhecimento da figura
feminina, bem como das reais necessidades e anseios da mulher.
Em Leal (2004, p. 43), são exibidas algumas imagens femininas
construídas em várias culturas e crenças, desde os períodos mais remotos
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
95
como a criação do homem, que remetem a figuras destruidoras como Eva,
Hecate e Pandora, sempre associadas a características como a sensualidade,
a dissimulação, a astúcia e a matreirice que, por também serem atribuídas ao
demônio, eram responsáveis pela falta de credibilidade dos homens em relação
às mulheres. Leal (2004, p. 44-48) também afirma que todos os monstros
realmente perigosos que aparecem na Mitologia Grega são femininos, e vão
desde a Esfinge que propunha o enigma ‘Decifra-me ou devoro-te’, as sereias
que eram o mais perfeito símbolo da sedução feminina, até a Medusa, que
tinha o poder de petrificar com o olhar e Circe que transformava homens em
animais. Além disso, na tradição judaico-cristã aparece também Lilith, que teria
formado com Adão o primeiro casal da Humanidade e por ter sido igualmente
criada do barro e se achar igual a ele, não aceitava obedecer às suas ordens,
passando então a ser conhecida como um demônio que devorava crianças ou
como a Lua Maldita. Por essa razão, “o judeu também considerava a mulher
não a companheira, a amiga com a qual deveria compartilhar as dores e os
prazeres do dia-a-dia, mas a inimiga, o espírito maligno e perigoso contra o
qual deveria se acautelar.” (LEAL, 2004, p. 57).
A fim de comprovar a visão distorcida da figura feminina nos
textos literários tradicionalmente escritos por homens ao longo dos tempos,
quase sempre associada ao mal e à destruição, podem-se buscar vários
exemplos como as madrastas de Branca de Neve e Cinderela, Lady Macbeth e
as bruxas da tragédia shakespeariana, bem como Miss Havisham e a própria
Estella do romance mais famoso de Charles Dickens, Great Expectations.
Por outro lado, a figura feminina também já foi relacionada à
imagem do anjo, referência principalmente a partir da estética romântica e do
período vitoriano inglês que, ao contrário da mulher-demônio, era conhecida
por possuir características como a candura, a submissão, a devoção, a
fraqueza e a delicadeza, bem como o sacrifício pessoal e a dedicação à família
e ao lar. Surgem, entre várias outras, figuras como Lenore, do poema “The
raven” de Edgar Allan Poe, a própria Beatrice em “Rappaccini’s daughter”, de
Nathaniel Hawthorne, além de Lavínia e Hermíone, personagens de
Shakespeare que se submetem à dominação masculina. Tal imagem
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
96
prejudicou igualmente o seu caminho em direção à emancipação ou
simplesmente do reconhecimento de seu valor por parte da sociedade, já que
vinha quase sempre acompanhada por uma aura de infantilidade,
superficialidade e futilidade.
Sendo assim,
o ‘anjo do lar’, a mulher dócil, contida e assexuada vista como
pura e sem mácula (sendo o sexo raramente abordado
explicitamente na literatura da época) ou a pervertida, livre e
má, são as duas únicas manifestações possíveis (e
antagônicas) da condição feminina (WANDERLEY, 1996, p.
55).
E é para que essas imagens distorcidas e repletas de
preconceitos, frutos do imaginário masculino que tanto prejudicaram a trajetória
da mulher, pudessem ser apagadas, ou pelo menos revistas, tornava-se
necessário um novo foco, uma nova luz, que seriam lançados a partir de textos
das escritoras do século XIX.
Specifically, as we will try to show here, a woman writer must
examine, assimilate, and transcend the extreme images of
‘angel’ and ‘monster’ which male authors have generated for
her. Before we women can write, declared Virginia Woolf, we
must ‘kill’ the ‘angel in the house’. In other words, women must
kill the authentic ideal through which they themselves have
been ‘killed’ into art (GILBERT & GUBAR, 1984, p. 17).
Especificamente, como nós iremos tentar mostrar aqui, uma
escritora deve examinar, assimilar, e transcender as imagens
extremas do ‘anjo’ e do ‘monstro’ que os escritores produziram
para ela. Antes que nós mulheres consigamos escrever,
declarou Virginia Woolf, devemos ‘matar’ o ‘anjo da casa’. Em
outras palavras, as mulheres devem matar o autêntico ideal
por meio do qual elas mesmas têm sido ‘mortas’
artisticamente.
Para Gilbert & Gubar (1984, p. 48), as escritoras precisaram,
então, criar novas formas de representação da mulher que fossem diferentes
das apresentadas até então pelos homens, e o seu maior obstáculo nesse
sentido foi a incapacidade de encontrar modelos femininos com os quais
pudesse se identificar, uma vez que seus precursores eram quase que
exclusivamente esses homens, com diferenças significativas em relação a elas.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
97
Isso ocorre porque a literatura, como veículo de transmissão da ideologia
dominante, foi responsável por criar e conservar valores e crenças masculinos
na sociedade, a fim de que fossem utilizados como verdadeiros modelos a
serem seguidos. Entretanto, os precursores masculinos, apesar de
simbolizarem a autoridade do homem, falharam em definir as maneiras com
que a mulher experimentava sua própria identidade como escritora. Assim,
as escritoras que, a partir dos anos 40, se insurgiram contra os
modelos tradicionais de personagens de que são exemplos as
figuras comportadas e desapaixonadas de Jane Austen,
procuraram criar heroínas que combinassem força e
inteligência com qualidades femininas como ternura, tato e
experiência doméstica. Ao mesmo tempo se viam a si próprias
e às suas heroínas como inovadoras que poderiam fornecer
modelos para as novas gerações (SHOWALTER
20
apud
WANDERLEY, 1996, p. 58).
Wanderley (1996, p. 60) afirma ainda que essa atitude desafiou os
padrões de comportamento das personagens femininas de seu tempo,
“transformando-as em heroínas verdadeiramente solitárias em luta constante
pela liberdade, pela sobrevivência e pela auto-realização num universo
inteiramente hostil a tais reivindicações”.
A escritora do século XIX precisou, então, desenvolver uma
maneira de rejeitar a autoridade masculina, atacando imagens cujo ponto de
vista tendencioso não deixava revelar os verdadeiros pensamentos e
sentimentos femininos. Tal atitude evoca o que Gilbert & Gubar (1984, p. 77)
chamam de madwoman, uma mulher louca e furiosa que emerge do silêncio,
tentando destruir todas as estruturas patriarcais que tanto a autora como a
própria heroína submissa do texto parecem aceitar como inevitáveis.
Of course, by projecting their rebellious impulses not into their
heroines but into mad or monstrous women (who are suitably
punished in the course of the novel or poem), female authors
dramatize their own self-division, their desire both to accept the
strictures of patriarchal society and to reject them. What this
means, however, is that the madwoman in literature by women
is not merely, as she might be in male literature, an antagonist
or foil to the heroine. Rather, she is usually in some sense the
20
SHOWALTER, Elaine. A literature of their own: British Women novelists from Brontë to
Lessing. New Jersey, Princeton University Press, 1977, p. 100.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
98
author’s double, an image of her own anxiety and rage. Indeed,
much of the poetry and fiction written by women conjures up
this mad creature so that female authors can come to terms
with their own uniquely female feelings of fragmentation, their
own keen sense of the discrepancies between what they are
and what they are supposed to be (GILBERT & GUBAR, 1984,
p. 77-78).
É claro que, projetando os seus impulsos rebeldes não em
suas heroínas, mas em mulheres más e monstruosas (que são
convenientemente punidas no decorrer do romance ou
poema), as escritoras dramatizam a própria autodivisão, seus
desejos tanto de aceitar as censuras da sociedade patriarcal
como de rejeitá-las. O que isso significa, entretanto, é que a
louca na literatura feminina não é meramente, como pode ser
em textos escritos por homens, uma antagonista ou um realce
para a heroína. Em vez disso, ela é de certa forma, o outro eu
da autora, uma imagem de sua própria ansiedade e ira. De
fato, muito da poesia e da ficção escrita por mulheres evoca
essa criatura louca, de forma que as escritoras possam chegar
a um acordo em relação a seus próprios e exclusivos
sentimentos femininos de fragmentação, seus próprios e
aguçados sensos de divergência entre o que elas são e o que
elas devem ser.
De acordo com Gilbert e Gubar (1984, p. 73), uma das principais
estratégias adotadas por essas escritoras para tentar destruir as estruturas
patriarcais foi a utilização do texto palimpsesto
21
, que camuflava suas opiniões
mais íntimas sob uma estrutura que aparentemente as escondia.
In short, like the twentieth-century American poet H. D., who
declared her aesthetic strategy by entitling one of her novels
Palimpsest, women from Jane Austen and Mary Shelley to
Emily Brontë and Emily Dickinson produced literary works that
are in some sense palimpsestic, works whose surface designs
conceal or obscure deeper, less accessible (and less socially
acceptable) levels of meaning. Thus these authors managed
the difficult task of achieving true female literary authority by
simultaneously conforming to and subverting patriarchal literary
standards (GILBERT, 1984, p. 73).
Em resumo, assim como H. D., poeta americana do século XX,
que declarou sua estratégia estética intitulando um de seus
romances de Palimpsesto, mulheres como Jane Austen e Mary
Shelley a Emily Brontë e Emily Dickinson produziram obras
literárias que são de alguma forma palimpsestos, obras cuja
superfície designam níveis de significação ocultos ou
21
Palimpsesto significa papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a
outro (HOUAISS ELETRÔNICO).
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
99
profundamente obscuros, menos acessíveis (e menos
socialmente aceitos). Dessa maneira, essas autoras lidaram
com a difícil tarefa de atingir a verdadeira autoridade literária
feminina por meio de uma atitude simultânea de conformidade
e subversão dos padrões literários patriarcais.
Em outras palavras, a escritora é aquela que, contraditoriamente,
mostra-se em suas idéias e, ao mesmo tempo camufla-as por trás de
personagens, discursos ou estruturas narrativas que expressam uma
concordância com os preceitos da sociedade patriarcal.
Nesse sentido, o trabalho do crítico é desvendar certas questões
observadas somente de forma velada por essas escritoras, bem como o papel
de certas personagens e situações narrativas que constituem a chave do
entendimento dos textos escritos por mulheres e sua maneira ambígua de
criticar a sociedade.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
100
4.1 – “THE STORY OF AN HOUR”
22
Datado de 1894, o conto apresenta um conflito que é gerado a
partir da notícia da morte do marido de Mrs. Mallard em um acidente ferroviário.
Preocupados com a reação da esposa, que sofria de problemas cardíacos,
amigos e familiares demonstram grande cuidado para lidar com a difícil
situação. Ao saber da notícia, a primeira reação de Mrs. Mallard é um choro
desolado nos braços da irmã. Depois desse breve momento de sofrimento,
tranca-se em seu quarto e passa a observar através de sua janela tudo o que
acontece do lado de fora e, em meio a uma confusão de pensamentos e
sentimentos desencadeados pela notícia, tenta lutar contra uma força que
crescia dentro dela. Quando finalmente ela se entrega a essa força, vê-se
sussurrando a palavra free e só então começa a entender o seu significado,
vislumbrando, sem a presença do marido, um futuro repleto de novidades, em
que viveria por si mesma e de acordo com sua própria vontade. Nesse
momento, chega a analisar o relacionamento que tinha vivido com o marido, e
pensa na opressão, na falta de igualdade entre os sexos e até mesmo no amor.
Enquanto isso, familiares e amigos chamam insistentemente por ela do lado de
fora da porta do quarto, pois, preocupados com o seu estado de saúde, sequer
poderiam imaginar aquilo que realmente se passava com ela. Finalmente, a
heroína resolve sair do quarto e com olhar confiante começa a descer as
escadas, no exato momento em que alguém abre a porta da frente de sua
casa. Surge então o marido que, desconhecendo até mesmo a notícia do
acidente do qual teria sido vítima, vê a esposa sofrer um ataque do coração e
morrer. Após a chegada dos médicos é finalmente explicada a causa da morte:
euforia.
O conto, que integra o livro A Night in Acadie, tornou-se
conhecido pelo tratamento crítico ao tema do casamento e a história gira em
torno da distância entre os anseios individuais e as convenções sociais que
norteavam o mundo das mulheres do século XIX.
22
Nesta análise são utilizados alguns pontos do estudo realizado em SILVESTRE, Marcela. A
personagem feminina como vítima ou agente da ironia no conto de Kate Chopin:
Dissertação de Mestrado, 1997.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
101
Dentre os vários componentes da narrativa utilizados para
compor o conflito em questão, destaca-se o valor das noções de espaço,
tempo e foco narrativo, além da presença da ironia no conto.
O espaço representa uma categoria que, muitas vezes, aparece
como secundária, mas que pode ter sua função diretamente ligada aos demais
elementos da narrativa. Trata-se de um elemento do conto em que a oposição
entre esses anseios individuais da protagonista e as convenções sociais
representadas pela família se manifestam de forma mais aparente. Para Dimas
(1994, p. 33) este é o ponto central que orienta a discussão em torno do
espaço nos textos literários, uma vez que, no caso específico desse conto, os
signos verbais não se limitam “apenas a caracterizar ou a ornamentar uma
dada situação”, mas eles “a ultrapassam, atingindo uma dimensão simbólica e,
portanto, útil àquele contexto narrativo”.
Tendo em vista a utilidade dos elementos espaciais e suas
articulações funcionais no processo narrativo, devemos ressaltar e discutir a
existência de um espaço único no conto que é o interior da casa de Mrs.
Mallard, denotando, logo de início, as limitações da mulher na sociedade em
que vive. O confinamento da mulher ao espaço doméstico consiste num dos
principais indicadores de que Kate Chopin se mostrava consciente da condição
feminina na sociedade da época, que exigia uma dedicação exclusiva aos
assuntos da vida privada e não aceitava a participação das mulheres no âmbito
público.
Conseqüentemente, toda a ação do conto que gira em torno de
uma personagem feminina se passa dentro da casa, símbolo da proteção, da
estabilidade, da imobilidade e da fragilidade, o que, por si só, já reproduz o
modelo das relações desejáveis numa sociedade patriarcal, ou seja, enquanto
o lugar do marido é representado pelo espaço público, o campo de atuação da
mulher fica essencialmente restrito ao território privado, confirmando a
oposição básica proposta anteriormente. Assim, no século XIX:
a mulher se tornou o símbolo da fragilidade que devia ser
protegido do mundo exterior (o público); tinha se convertido no
símbolo do privado. As mulheres só podiam ficar confinadas
em espaços privados, devido à sua fragilidade biológica, e o
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
102
próprio privado se revelara frágil frente à politização e à
transformação pública do processo revolucionário (PERROT,
1999, p. 51).
Não se pode afirmar, entretanto, que o conto apresenta em toda a
sua extensão uma unidade de lugar. Isso quer dizer que, mesmo dentro de um
espaço restrito que é a sua casa, a protagonista consegue promover
deslocamentos que se apresentam como imprescindíveis para a sua
transformação interna no decorrer da história.
Verifica-se, dessa forma, a presença de uma macro-oposição
espacial entre o exterior e o interior da casa, que representam respectivamente
o público e o privado, o masculino e o feminino, reafirmando os
comportamentos aceitos pela sociedade. Além dessa, dentro da casa,
encontramos também uma micro-oposição indivíduo X sociedade,
representada, de um lado, pelo quarto de Mrs. Mallard, que se apresenta como
o único lugar onde a protagonista consegue de fato se ver como indivíduo e
respeitar seus pensamentos e sentimentos, e de outro, pelo resto da casa que,
ocupado pela família e pelos amigos, representa as opressões da sociedade
patriarcal.
Essa oposição indivíduo X sociedade reflete ainda mais a
situação de invasão da individualidade de nossa protagonista por parte da
sociedade, o que confirma o conflito básico entre o indivíduo e a sociedade
proposto pela figura do herói problemático de Lukács. Já vimos que a
inadequação do homem ao seu destino e à sua situação consiste num dos
principais temas do romance, e no conto em questão isso se manifesta na
medida em que a personagem feminina demonstra descontentamento diante
de sua posição de passividade e infelicidade numa sociedade em que a mulher
não desempenhava papel social relevante.
Nesse processo, o espaço assume um papel preponderante, pois,
logo após tomar conhecimento da morte do marido, a protagonista se afasta
dos familiares e procura isolamento no andar de cima da casa, realizando um
movimento de subida que simboliza, entre outras coisas, uma busca por
claridade, racionalidade e liberdade. É lá que Mrs. Mallard reflete sobre sua
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
103
antiga condição de casada e se prepara para uma nova vida, em que seria
dona de seus próprios atos e livre para pensar e agir, alterando, ainda que de
forma temporária e ilusória, as relações de poder ao seu redor.
De acordo com a teoria de Bachelard (2003) os diversos andares
da casa simbolizam os estados da alma. Assim, a escada indica um movimento
de ascensão para um outro plano e é exatamente o que acontece com Mrs.
Mallard que, ao subir para o quarto, passa a uma fase evolutiva de seu ser.
Nesse sentido, o quarto e, mais especificamente a poltrona na qual a
protagonista se senta, podem ser comparados a um útero, uma vez que
representam os ambientes onde são gerados novos padrões de conduta para
ela, e que serão responsáveis pelo nascimento de uma nova mulher. A idéia de
renascimento da protagonista também é exemplificada pela seguinte
passagem:
she sat with her head thrown back upon the cushion of the
chair, quite motionless, except when a sob came up into her
throat and shook her, as a child who has cried itself to sleep
continues to sob in its dreams (353)
23
.
ela sentou-se com a cabeça para trás sobre a almofada da
cadeira, completamente imóvel, exceto quando um soluço
subia pela sua garganta e a sacudia, como uma criança que
tinha chorado até dormir, mas que continuava a soluçar em
seus sonhos.
E é ironicamente de dentro desse seu espaço mais privado que
Mrs. Mallard consegue ter acesso ao mundo exterior pela janela aberta, sendo
o ponto da narrativa em que se estabelece a fusão entre as descrições da
natureza externa com as de natureza emocional e psicológica da protagonista.
Tal fusão se confirma inicialmente na descrição do modo como ela reage à
notícia da morte do marido, pois, ao usar a frase: “when the storm of grief had
spent itself she went away to her room alone (352)”
24
, Kate Chopin compara
sua reação a uma tempestade interior. Logo adiante na narrativa, percebe-se
que essa tempestade realmente aconteceu no espaço exterior e é confirmada
23
Todas as citações dos contos de Kate Chopin serão feitas a partir de SEYERSTED, Per
(ed.). The Complete Works of Kate Chopin. Louisiana: Louisiana State University Press,
1988.
24
“Quando a tempestade de pesar passou, ela foi para seu quarto sozinha”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
104
ao leitor quando Mrs. Mallard, ao entrar em seu quarto, afirma ainda sentir o
cheiro da chuva e descreve seus sinais. Há uma clara menção de que a
protagonista passou por um momento tempestuoso de sua vida, mas que,
assim como o tremular das árvores visto de sua janela aberta anunciava a
chegada da primavera, também sua vida se preparava para uma
transformação.
Surge a partir daí uma oposição entre o ambiente social,
representado pelas convenções e regras impostas a Mrs. Mallard, e o ambiente
físico, com a caracterização de elementos da natureza vistos através da janela
de seu quarto. Nesse processo, é necessário analisar algumas imagens e
símbolos presentes na narrativa, começando pela própria janela aberta, que
sugere a receptividade de Mrs. Mallard para aquilo que estava por vir e remete
justamente ao mundo que fica do lado de fora de sua casa, um novo horizonte,
pronto para ser explorado. Através dessa janela são revelados elementos
sinestésicos como imagens, odores e sons, indicando as sensações primitivas
que estavam sendo experimentadas pela protagonista como se fosse pela
primeira vez:
She could see in the open square before her house the tops of
trees that were all aquiver with the new spring life. The
delicious breath of rain was in the air. In the street below a
peddler was crying his wares. The notes of a distant song
which some one was singing reached her faintly, and countless
sparrows were twittering in the eaves (352).
Ela podia ver através da vidraça na frente de sua casa os
cumes das árvores que tremulavam com a nova vida que
nascia. O delicioso cheiro de chuva estava no ar. Na rua de
baixo, um vendedor gritava seus produtos. As notas de uma
canção distante que alguém estava cantando a atingiram
vagamente, e inúmeros pardais estavam cantando nos beirais.
Dessa forma, Chopin explora imagens referentes à natureza que
evocam a esperança de uma nova vida para Mrs. Mallard. Dentre elas pode-se
destacar a chuva, que comporta o simbolismo da fertilidade e da revivificação
(CHEVALIER, 1995, p. 236); a árvore, simbolizando ao mesmo tempo a vida
em perpétua evolução e o aspecto cíclico da evolução cósmica: morte e
regeneração (Ibidem, p. 84), confirmando uma importante oposição semântica
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
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morte/vida presente no conto; e finalmente as manchas azuis no céu em meio
às nuvens, que manifestam a crença de que apesar das situações nebulosas, o
sol voltaria a brilhar no céu, ou seja, havia esperança para Mrs. Mallard.
Também é interessante discutir o significado simbólico do trem na
história que, por andar nos trilhos, pode ser comparado à maneira de viver da
protagonista, ou seja, sempre respeitando e seguindo o caminho que foi
traçado para ela e que, ao descarrilar, transforma de forma irreversível uma
vida tão acostumada a obedecer.
A presença desses símbolos se faz importante na medida em que
eles prenunciam o início de uma visão diferente para a vida da protagonista.
Mas, a exemplo do que ocorre com essa personagem, Lukács explica que há
uma impossibilidade de reconciliação do homem com a sociedade e que isso
se dá “devido à desproporção entre as aspirações da alma e a objetividade da
organização social.” (ANTUNES, 1998, p. 183).
Por isso, ao sair do quarto e descer as escadas depois da
insistência da irmã, a protagonista já não é mais a mesma pessoa, e essa
mudança radical na sua maneira de pensar acarretará na mesma
impossibilidade de reconciliação com a sociedade, culminando no desfecho
trágico do conto. Com o ato de descer as escadas, ela realiza o movimento
inverso ao anterior, voltando, mesmo que inconscientemente, ao espaço
representado pelas suas velhas limitações, já que o ato de descer remete à
irracionalidade, à obscuridade, ao medo e à própria morte.
Deve ser destacada, nesse momento da análise, a eficiência da
utilização conjunta dos recursos de caracterização do espaço e a onisciência
do narrador, que permite o acesso do leitor aos pensamentos e desejos da
protagonista e veta esse conhecimento às demais personagens da trama.
Dessa forma, a onisciência do narrador em relação à protagonista se revela
como uma estratégia poderosa por meio da qual a crítica aos valores sociais
vigentes é feita.
O leitor presencia, a partir do momento em que Mrs. Mallard entra
em seu quarto sozinha, um processo de transformação da protagonista que,
num primeiro momento, poderia ser confundido com uma confusão mental, já
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que há uma tentativa do narrador de explicar suas reações e uma preocupação
em camuflar os pensamentos da protagonista, procurando reduzir sua
credibilidade diante do leitor. Trata-se da passagem em que, na busca pela
origem e categoria dos pensamentos que indicavam o surgimento de um
espírito de rebeldia de Mrs. Mallard, são expressas as seguintes palavras: “It
was not a glance of reflexion, but rather indicated a suspension of intelligent
thought (353)”
25
.
O mais interessante é que, tendo ultrapassado esse momento de
resistência na narrativa, em que o próprio narrador tenta desvalorizar as
declarações que viriam a seguir, o que se vê é, na verdade um momento de
iluminação dos pensamentos da protagonista, que funciona como um divisor de
águas no conto. A partir daí, a protagonista adquire uma postura
completamente diferente em relação à sua própria vida e passa a travar uma
luta em busca de sua individualidade. Nesse processo, em vez da
racionalidade, representante das convenções sociais e da antiga forma de lidar
com o mundo, Mrs. Mallard consegue dar vazão aos seus sentimentos e
sensações mais primitivos. Com isso, ela percebe que, com a morte do esposo,
está livre para ser o sujeito de sua própria história e não mais a sombra de seu
marido e de seu casamento.
Nesse momento da narrativa passa, então, a ser chamada por
Louise, seu primeiro nome, e não mais pelo seu nome de casada e, num tom
que mescla sua necessidade social de sofrer e suas reflexões mais recentes, a
voz narrativa manifesta suas opiniões a respeito de seu marido, do casamento
e da liberdade pessoal:
she knew she would weep again when she saw the kind, tender
hands folded in death; the face that had never looked save with
love upon her, fixed and gray and dead. But she saw beyond
that bitter moment a long procession of years to come that
would belong to her absolutely. And she opened and spread
her arms out to them in welcome (353).
ela sabia que choraria de novo quando visse as gentis e
delicadas mãos cruzadas na morte; o rosto que nunca tinha
olhado para ela a não ser com amor, fixo e cinza e morto. Mas
25
“Não foi somente um lampejo de consciência, mas indicava, em vez disso, uma suspensão
do pensamento inteligente”.
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ela via além daquele momento um longo desfile de anos que
estavam por vir e que pertenceriam somente a ela. E ela abriu
e estendeu seus braços para eles dando as boas vindas.
Trata-se de uma maneira de mostrar o contraste entre aquilo que
a sociedade espera da mulher e o que realmente representa os seus
pensamentos e sentimentos, pois, quando reflete em seu quarto sozinha, reage
de uma maneira completamente incompatível com a sua condição, não
condizendo com o comportamento esperado para uma mulher nessa situação
de luto.
Com a ajuda do recurso irônico, a protagonista reflete inclusive a
respeito de seu amor pelo marido e conclui: “And yet she had loved him –
sometimes. Often she had not. What did it matter! (353)”
26
. O que importava
para ela naquele momento era que não haveria mais ninguém para viver em
seu lugar ou para impor sua vontade sobre a dela, criticando o que chamou de
persistência cega com que tanto homens como mulheres acreditam que têm
direito de impor seu próprio desejo sobre o do cônjuge e afirmando que pouco
importava com que intenção tais atos eram cometidos, já que, “a kind intention
or a cruel intention the act seem no less a crime (353)”
27
.
Também é a partir da onisciência em relação à protagonista que a
ironia final do conto faz sentido, no momento em que a sociedade,
representada pelos parentes e amigos de Mrs. Mallard, tenta dar uma
explicação socialmente aceita para a sua morte, ou seja, que ela se trancou em
seu quarto para sofrer com a morte do marido e que acabou não resistindo à
alegria de revê-lo. Mais uma vez é importante ressaltar o uso desse recurso
que propicia ao leitor uma visão mais abrangente da história, habilitando-o a
perceber a verdadeira reação de Mrs. Mallard e impedindo as demais
personagens de terem acesso aos seus verdadeiros pensamentos, já que o
processo de transformação da protagonista não lhes é revelado.
Assim, valendo-se de uma nova perspectiva do narrador que
permite entender a protagonista por dentro, o leitor tem a certeza de que,
utilizando mais uma vez a teoria de Bakhtin (1993, p. 425), a personagem
26
“E ela o havia amado – algumas vezes. Muitas vezes, não. Mas o que isso importa!”
27
“(...) uma doce intenção ou uma cruel intenção não torna o ato menos criminoso.”
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principal “é superior ao seu destino”, ou seja, não se encaixa naquele modelo
de mulher desejado pela sociedade da qual faz parte e com isso não consegue
suportar a volta do marido e morre, apesar de as demais personagens da
trama terem atribuído a morte à euforia do momento. Trata-se da ironia
cósmica, que transforma a alegria e a esperança da protagonista em decepção,
tristeza e desconsolo e que pode ser vista como uma visão fatalista da autora
em relação à condição feminina, ao se deparar com a total impotência do ser
humano diante de seu destino.
Nesse sentido, é importante também refletir a respeito da morte
da protagonista no sentido de questionar se ela, depois de ter vivido, mesmo
que por pouco tempo, uma condição completamente diferente da que vinha
tendo durante toda sua vida, teria lugar nesse mundo novamente. Sem poder
usufruir da liberdade sonhada, Mrs. Mallard talvez não conseguisse retornar
aos seus velhos hábitos e, principalmente, à sua velha forma de ver o mundo,
sempre pelos olhos do outro. Levando em conta que o título original do conto
era “The Dream of an Hour”, foi possível perceber que a euforia de Mrs. Mallard
não passou mesmo de um sonho ou de uma ilusão, uma vez que a sensação
de liberdade foi idealizada e não pôde ser concretizada. Assim, a morte teria
sido uma forma de fuga da dura realidade que a esperava com a volta do
marido. De fato, a maior ironia do conto se encontra no seu desfecho, quando
os médicos, representando a visão tradicional patriarcal que a sociedade tem
em relação à mulher, afirmam que a morte de Mrs. Mallard teria sido causada
por um sentimento de “joy that kills”. De acordo com eles, o que teria
acontecido à protagonista foi decorrente da enorme alegria de ter visto o
marido de volta.
O leitor sabe, porém, que a sua morte deve ser atribuída
justamente à decepção pelo retorno do marido e por saber que, com isso,
voltaria à condição anterior de submissão e falta de liberdade que o casamento
lhe impunha. Trata-se de uma maneira de mostrar o contraste entre aquilo que
a sociedade espera da mulher e o que realmente se passa no interior de seus
pensamentos e sentimentos. Porém, essa idéia também pode ser encontrada
logo no início da narrativa, quando a irmã Josephine e Richards, amigo da
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família, revelam um cuidado excessivo ao dar a terrível notícia a Mrs. Mallard.
Sabe-se que esse cuidado se justifica pelo fato de a protagonista sofrer de
complicações no coração, mas fica claro que a preocupação maior dos
parentes e amigos era que ela não suportasse o sofrimento pela perda do
marido.
Assim, a representação da figura feminina no conto se dá, num
primeiro momento, em concordância com os preceitos patriarcais tradicionais,
já que as demais personagens vêem a protagonista como uma mulher frágil e
submissa, que sofre de problemas cardíacos. Essa visão decorre de uma
focalização de elementos que a caracterizam externamente, observações
obtidas essencialmente a partir de suas palavras e atitudes diante da
sociedade. Por outro lado, através de uma outra forma de focalizar a
protagonista, ou seja, a partir de seu interior, têm-se a idéia de que Mrs.
Mallard manifesta uma atitude muito mais corajosa e confiante diante de sua
vida. Há, portanto, uma diferença significativa entre o seu comportamento
enquanto está isolada e aquele diante da sociedade.
Pensando nisso, pode-se entender a sua doença no coração de
duas maneiras diferentes, pois, além de ser um mal físico que levará Mrs.
Mallard à morte, a escolha do órgão afetado tem seu significado metafórico por
representar “o homem interior, sua vida afetiva, a sede da inteligência e da
sabedoria.” (CHEVALIER, 1995, p. 282).
Dessa forma, ao escolher como protagonista e portadora de
idéias revolucionárias uma personagem fragilizada por uma doença grave e
que necessitava de cuidados especiais, em outras palavras, uma personagem
acima de qualquer suspeita, condição justificada pela perturbação causada
pelos acontecimentos, a escritora consegue aparentemente se isentar das
opiniões emitidas no conto, que podem muito bem coincidir com as suas
próprias opiniões a respeito do casamento e das convenções sociais.
De fato, ao receber a notícia no início do conto, Mrs. Mallard se
entrega àquilo que chamou de choro desolado. Mas, logo a seguir, passada a
“storm of grief”, a protagonista, acompanhada somente pelo olhar do leitor, vai
até o seu quarto e manifesta sua euforia diante da nova vida que passaria a ter
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com o estado de viuvez, reação completamente incompatível com a sua
condição, não condizendo com o que se espera ainda hoje da figura feminina
diante da morte do marido.
A felicidade de Mrs. Mallard se deve ao fato de que, de acordo
com as regras impostas pela sociedade do século XIX, a mulher, ao ficar viúva,
passava a ter uma liberdade maior, tendo o direito à propriedade e o de
administrar os negócios da família, podendo chegar até mesmo, guardadas as
devidas proporções, a ter uma maior participação na vida social.
Mais ainda do que isso, Mrs. Mallard manifesta uma crítica clara à
instituição do casamento que tolhia a liberdade da mulher e a confinava aos
limites da casa. Junto à natureza, porém, a protagonista percebe a naturalidade
da vida e das relações em contraste com a superficialidade dos contratos
sociais e questiona a sua condição.
Bender (1974, p. 264) confirma o tom de crítica ao casamento
que Kate Chopin impõe a vários de seus contos e ressalta:
in other stories, some of which were not published during her
lifetime, she writes more openly and perhaps more truthfully of
socially unacceptable feelings about marriage and of equally
unconventional developments from these feelings.
em outras histórias, muitas das quais não foram publicadas
durante sua vida, ela escreve mais abertamente e talvez mais
sinceramente sobre sentimentos inaceitáveis em relação ao
casamento e sobre os desdobramentos não convencionais
desses sentimentos.
Esses sentimentos são transmitidos para o leitor por meio da
figura a que Wayne Booth (apud CINTRA, 1981, p. 29) chama de autor
implícito, “o qual governa visões interiores como o ponto de vista integrado à
consciência da personagem (em terceira pessoa) e o monólogo interior”. É
como se, nesse momento da narrativa, os pensamentos da protagonista
estivessem sendo contados em primeira pessoa, num tom confessional capaz
de expressar um processo de reflexão interior a respeito de sua condição
feminina diante dos valores patriarcais.
Um outro fator que contribuiu para que se compreendessem
melhor as razões que levaram a protagonista a agir dessa maneira foi o fato de
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se encontrar sozinha em seu quarto, o que dá a ela a possibilidade de se
revelar inteiramente, ainda que seja somente para si, e mesmo que suas idéias
estejam em desacordo com os preceitos sociais. Assim, a protagonista também
percebe a necessidade de manter sua descoberta e seus sentimentos
guardados somente para ela. Isso ocorre porque, em contraste com as demais
personagens do conto, ela não mais concorda com as imposições sociais que
foram colocadas em nome do casamento.
Em “The Story of an Hour” percebe-se claramente a existência de
duas visões a respeito da mulher, evidenciadas por meio da mudança de foco
narrativo quando a protagonista vai ao seu quarto sozinha e passa a pensar e
sentir por si só, sem a intervenção das demais personagens, o que implica em
uma falta de influência da sociedade sobre seus pensamentos mais secretos.
Nesse sentido, pode-se afirmar que, adotando a teoria de Piglia
(1994, p. 37-38) abordada anteriormente, o conto está narrando duas histórias
ao mesmo tempo, sendo que a primeira delas parte da perspectiva da
protagonista, pois atinge sua interioridade, enquanto a outra, em outro nível,
retrata a visão que a sociedade tem de Mrs. Mallard, representada
principalmente pela ironia causada pela fala do médico no final do conto, ponto
onde as duas histórias entraram em contato. Com isso, há um distanciamento
entre a imagem que a sociedade faz de Mrs. Mallard e a imagem que ela faz de
si mesma, principalmente depois de suas descobertas a respeito da liberdade.
Assim, as descrições feitas pelo narrador onisciente a partir da
própria protagonista representam quase que a totalidade daquelas presentes
no conto a seu respeito, enquanto as descrições feitas a partir da visão que as
demais personagens têm dela se mostram escassas e insuficientes para que
se tenha uma exata noção de sua personalidade. Com isso, a imagem que se
faz de Mrs. Mallard é fruto de concepções contaminadas por idéias pré-
concebidas sobre as mulheres da sociedade, sempre em função daquilo que é
esperado delas. Em outras palavras, essa imagem distorcida que se tem da
protagonista também é produzida devido à presença de pontos de cruzamento
entre as duas histórias do conto.
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Por causa desse recurso, a sociedade, representada aqui pela
irmã e pelo amigo da família, conserva a idéia de que Mrs. Mallard está em seu
quarto sofrendo com a morte do marido, como se espera de uma esposa
dedicada e amorosa. Assim, o comportamento feminino aceito pela sociedade
é revelado essencialmente por meio da visão que as outras personagens,
escolhidas intencionalmente por fazerem parte de seu convívio social, têm a
seu respeito e não se questiona o que realmente se passou no quarto da
protagonista. Dá-se então um conflito entre a imagem interna que se tem da
personagem principal e a imagem que as demais personagens fazem dela, a
partir de modelos apresentados pela sociedade, estabelecendo um contraste
mais amplo entre a sua aparência e a sua essência. Isso ocorre quando,
de acordo com Stephen Cornell e Douglas Hartmann em sua
obra Ethnicity and race – making identities in a changing world
(1998), a definição de identidade se dá por meio de um
processo dinâmico e contínuo em que duas forças agem
simultaneamente: o que os autores denominam de
“assignment”, ou seja, aquilo que os “outros” dizem a respeito
de um grupo social ou indivíduo, e o que denominam
“assertion”, isto é, o que o próprio grupo ou indivíduo afirma em
relação a si (SOUZA, 2002, p. 46).
Assim, a estranheza do comportamento de Mrs. Mallard seria
facilmente interpretada pelas demais personagens da trama como uma
conseqüência do agravamento de seu estado de saúde, causado pelo
sofrimento pela morte do marido. Mas, para que esse efeito se concretize na
narrativa, mais uma vez é necessário ressaltar a importância da escolha do
narrador em terceira pessoa onisciente que, ao focalizar os pensamentos de
Mrs. Mallard torna visível para o leitor o seu verdadeiro comportamento,
deixando as demais personagens numa posição de completo desconhecimento
sobre o que se passa em seu quarto e principalmente em sua mente.
O leitor, por sua vez, tem acesso desde o início do conto a alguns
índices de que a personalidade de Mrs. Mallard não era tão comum quanto
parecia, que é revelada logo depois pela posição tomada diante da morte do
marido. Como exemplo dessa antecipação de seu verdadeiro caráter podemos
citar a seguinte passagem: “She did not hear the story as many women have
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heard the same, with a paralyzed inability to accept its significance (352)”
28
. Por
meio dessa passagem, percebe-se que as suas primeiras reações diante da
morte do marido já demonstravam uma forma de ver o mundo diferente
daquela que era esperada para uma mulher em sua sociedade, mesmo antes
de ter sido dado ao leitor uma descrição mais detalhada de sua verdadeira
personalidade. Com isso, o leitor é capaz de perceber a ironia da situação
narrada e captar nas entrelinhas o desfecho que fica subentendido sob o texto
literal, como forma de sustentar um discurso que concorde com as idéias
dominantes.
No que diz respeito à questão do tempo no conto, pode-se afirmar
que existe uma estreita ligação entre esse elemento da narrativa com a
temática da denúncia da condição da mulher. A relação é fruto da curta
duração dos momentos em que Mrs. Mallard pôde usufruir, ainda que em
pensamento, de sua liberdade e de sua nova vida sem a presença do marido.
Sabe-se que o título do conto já nos remete à brevidade da história,
anunciando que a euforia da protagonista teria hora certa para acabar. Há em
“The Story of an Hour” uma discrepância entre o tempo cronológico e o tempo
interior, uma vez que cronologicamente, o tempo transcorrido foi de apenas
uma hora entre o anúncio da morte do marido de Mrs. Mallard e o seu
reaparecimento em casa. Por outro lado, o leitor tem a sensação de que o
tempo transcorrido durante a narração da transformação da protagonista foi
muito superior. Isso se explica pelo fato de que ela, focalizada a partir de seu
interior, realiza uma profunda reflexão a respeito de sua vida passada, presente
e futura, cuja densidade e profundidade ultrapassam os limites do tempo
cronológico.
Assim, acreditando que “não se pode pensar a mulher como uma
entidade abstrata, mas como um ser dotado de historicidade que procura traçar
novos caminhos, estabelecendo elos entre a história passada e a vida
presente” (ZINANI, 2006, p. 93), percebe-se que a busca pela identidade
feminina se manifesta nesse conto a partir de uma valorização dos elementos
constitutivos da experiência feminina ao longo dos tempos através da memória.
28
“Ela não ouviu a história como muitas outras mulheres ouvem, com uma incapacidade
paralisante de aceitar seu significado”.
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Durante esse processo de conhecimento íntimo constituído de lembranças e
reflexões, ao mesmo tempo em que o presente é descrito, os tempos passado
e futuro se mesclam e até se confundem, pois a protagonista lembra de seu
passado reprimido pelo casamento e projeta, cheia de esperança, um futuro
repleto de liberdade e alegria. Assim, as experiências pessoais vividas através
do resgate da memória da protagonista funcionam como uma maneira eficaz
para questionar a condição da mulher no conto. O tempo futuro caracteriza-se,
então, como o mais importante da história, já que o passado é tratado como um
período difícil e duro, marcado pelo sentimento de insatisfação com o
casamento, enquanto o presente representa a tomada de consciência de sua
condição. Mas o futuro, que seria repleto de esperança de uma vida mais feliz
e plena, é visto como uma visita bem-vinda, para a qual Mrs. Mallard abre os
braços como forma de aceitação e reverência.
Partindo do princípio de que a escritora necessitava camuflar
suas verdadeiras intenções no texto, pode-se associar a morte da protagonista
ao seu comportamento nada convencional em relação à postura da mulher
diante do fim do casamento. Como que numa punição a esse ato de rebeldia,
Kate Chopin não permite que Mrs. Mallard permaneça viva e deixa
transparecer, através do final da história e das técnicas utilizadas, a sua
consciência diante da condição feminina, bem como a vontade de denunciá-la
para a sociedade.
Trata-se de um conto em que, sendo a protagonista submetida a
conflitos com o universo dominante e focalizada a partir de seu interior, são
reveladas suas reais vontades e idéias em relação à sua condição, mesmo que
contrariando os padrões da ideologia masculina vigente. Com isso, além da
perspectiva patriarcal, comum em quase todos os textos escritos no século
XIX, verificou-se, utilizando o princípio revisionista da crítica feminista, que a
história também pode ser narrada sob a ótica feminina, o que eleva a mulher
ao status de sujeito. Assim, a partir de um olhar feminino que valoriza a
experiência da mulher, contribui-se para a interpretação de determinados
temas e estruturas próprias de escritoras como Kate Chopin.
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Por outro lado, verificou-se também que, enquanto a participação
das personagens masculinas se restringe a meras citações de seus nomes ou
funções, além de uma única manifestação de opinião dada pelos médicos no
final da história, à personagem feminina é dada a chance de se revelar por
completo. Tendo sido caracterizado a partir da visão de uma mulher, o homem,
aqui representado pelo marido de Mrs. Mallard, além de aparecer em completo
silêncio, característica mais comumente atribuída às mulheres, é visto como
uma figura completamente alienada a respeito das questões femininas.
A alternância entre as perspectivas masculinas e femininas,
juntamente com a presença mais efetiva e relevante da figura feminina no
conto em questão são conseqüências de uma valorização do universo feminino
por parte da escritora e manifesta uma mudança de perspectiva em relação à
imagem da mulher.
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4.2 – “MADAME CÉLESTIN’S DIVORCE”
29
Escrito em 1893, o conto, como o próprio título sugere, trata da
questão do divórcio e de suas implicações na sociedade americana do século
XIX. A protagonista é uma jovem senhora que, tendo sido abandonada por seu
marido, compartilha seus problemas com o advogado e amigo Paxton. Em
suas conversas, a senhora revela uma insatisfação com a difícil situação em
que o marido deixou a família, bem como com o tratamento que recebia dele
enquanto ainda estavam juntos e é incentivada pelo advogado a pedir o
divórcio. Motivado por essa possibilidade, o advogado passa a manifestar um
interesse pessoal no possível divórcio de Madame Célestin que, apesar de
parecer convencida, expressa certa indecisão em relação ao assunto e sente-
se pressionada pela sociedade, necessitando do aconselhamento de pessoas
da família e da Igreja que, naturalmente, desaprovam a idéia. Diante das
demonstrações de interesse no divórcio, Madame Célestin alimenta as
esperanças do advogado sem perceber, até que, surpreendentemente o
marido retorna e ela aceita viver de novo com ele apesar de tudo, deixando
desconsolado o amigo apaixonado.
O tema do divórcio é discutido no conto sob dois pontos de vista
diferentes: o de um homem apaixonado, que a priori se mostra mais livre de
preconceitos, e o de uma mulher casada, sempre sufocada pelos valores
sociais tradicionais do século XIX. Nota-se uma clara diferença entre as visões
do advogado e as de Madame Célestin diante desta questão.
Por um lado, há uma aceitação maior por parte de Mr. Paxton
que, devido ao fato de ter uma mente mais aberta e de ser um homem das leis,
parecia estar mais acostumado com essa situação do que a maioria das
pessoas da comunidade à qual pertencia Madame Célestin. Além disso, a
visão masculina na época mostra-se aparentemente mais livre das pressões da
sociedade, o que pode ter refletido numa forma mais liberal de encarar o
29
Nesta análise são utilizados alguns pontos do estudo realizado em SILVESTRE, Marcela. A
personagem feminina como vítima ou agente da ironia no conto de Kate Chopin:
Dissertação de Mestrado, 1997.
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divórcio. É importante ressaltar que o advogado se mostra envolvido
emocionalmente com a protagonista, manifestando um interesse pessoal em
seu divórcio, o que certamente lhe daria a possibilidade de se casar com ela
mais tarde.
Contrariamente, a visão feminina do divórcio, representada aqui
pelas idéias da protagonista, parece envolver muito mais do que uma simples
questão legal ou um desejo particular, já que também estão em jogo as
conseqüências que o ato acarretaria na vida de uma mulher daquela época,
principalmente quando relacionadas ao preconceito, à reputação, e à aceitação
na sociedade. Em outras palavras, pode ser que a visão da personagem
feminina a respeito do divórcio tenha sido parecida com a do advogado do
conto, mas, como mulher, ela precisava levar em consideração fatores
externos à sua vontade, a fim de não sofrer com tal atitude. E é essa
necessidade de aceitação que induz a protagonista a pedir conselhos a
parentes e pessoas da Igreja, numa atitude que revela suas inseguranças a
respeito dessa questão.
Também é importante destacar que, valendo-se de um discurso
essencialmente coloquial e rústico, marcado por erros e contrações, Madame
Célestin revela sua origem humilde e uma possível dificuldade em impor seu
pensamento, ato que exige certa estrutura emocional, familiar, educacional e
social. Além disso, a própria forma de tratamento que ela utilizava com Mr.
Paxton, chamando-o de Judge, já denota as diferenças entre o advogado e ela,
também podendo, mais amplamente, denunciar o distanciamento entre os
universos masculino e feminino no século XIX:
“You right, Judge. Not a picayune, not one, not one, have I lay
my eyes on in the pas’fo’months that I can say Célestin give it
to me or sen’it to me” (276).
“Você tá certo, Juiz. Nem um tostão, nem um, nem um, eu vi
nos últimos quatro meses que eu posso dizer que foi Célestin
que me deu ou que mandou pra mim.”
A fim de analisar as características da personagem feminina
verifica-se que, diferentemente de muitos contos de Kate Chopin, como “The
Story of an Hour”, por exemplo, a focalização não foi feita a partir de seu
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interior. Ao contrário, o narrador condiciona as informações a respeito da
protagonista à escolha de uma visão que não é a dela, ou seja, a
caracterização de Madame Célestin é feita a partir da perspectiva de uma outra
personagem que, no caso específico desse conto, mostra-se emocionalmente
envolvido com ela. Trata-se de um recurso em que o narrador empresta sua
voz a uma personagem refletora, o advogado Paxton, que capta as
informações a respeito das demais personagens da narrativa, levando em
consideração suas próprias características cognitivas, emotivas e psicológicas,
uma vez que as imagens deles são criadas em sua mente.
Por isso, o fato de ter sido escolhida uma personagem
apaixonada pela protagonista para ser refletor de suas atitudes, torna-a menos
confiável aos olhos do leitor, pois suas emoções tendem não somente a
contaminar a caracterização de Madame Célestin, como também podem
deturpar os próprios acontecimentos da história, de acordo com seus anseios
pessoais. Isso pode ser confirmado quando se percebe que, à medida em que
cresce o interesse do advogado por Madame Célestin, verifica-se uma
modificação na maneira de encarar seu relacionamento com ela, passando de
uma visão mais geral e desinteressada no início do conto, para uma visão mais
particular e comprometida, como mostram os seguintes fragmentos extraídos
de momentos diferentes da narrativa:
Sometimes he stopped and leaned over the fence to say good-
morning at his ease; or admire her rosebushes; or, when he
had time enough, to hear what she had to say (276).
His heart beat in a strangely irregular manner as he neared
Madame Célestin’s house one morning, and discovered her
behind the rosebushes (…) (278).
De vez em quando ele parava e encostava-se à cerca para
dizer um bom dia informal; ou admirar suas roseiras; ou
quando tinha tempo, para ouvir o que ela tinha a dizer.
Seu coração batia de uma maneira estranhamente irregular
quando ele se aproximou da casa de Madame Célestin numa
manhã, e a encontrou atrás das roseiras.
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Além disso, o recurso da personagem refletora pode resultar,
como explica Carlos Reis (1988, p. 251), “na restrição dos elementos
informativos a relatar, em função da capacidade de conhecimento dessa
personagem”. Dessa forma, o leitor não tem acesso aos reais pensamentos e
sentimentos da protagonista e os únicos elementos que são fornecidos a seu
respeito provêm, ou dessa visão de Mr. Paxton, marcada pelo interesse
pessoal, ou de sua própria fala nos vários diálogos presentes nas cenas do
conto que, apesar de expressarem em discurso direto as opiniões da
protagonista, também não garantem a veracidade dos fatos narrados, devido à
influência da personagem refletora. Assim, valendo-se de qualquer dessas
duas fontes, o leitor só tem acesso à caracterização externa da protagonista,
ou seja, aos elementos que descrevem sua aparência física, maneira de se
vestir e seu comportamento diante da sociedade, impossibilitando o
conhecimento de sua subjetividade.
Também é importante notar que a personagem escolhida para ser
o refletor da história é do sexo masculino, o que proporciona a visão limitada e
unilateral em relação à protagonista e suas atitudes, denunciando, no final
irônico do conto, um completo desconhecimento de sua parte a respeito da
natureza feminina.
Por outro lado, logo no início do conto, são fornecidas algumas
informações a respeito da personagem principal, que servem para criar um
contraste importante entre aquilo que se imaginava a seu respeito e suas reais
intenções e reações na trama. Tais informações, que descrevem o
comportamento de Madame Célestin no começo da trama, demonstram estar
isentas de qualquer interesse da personagem refletora, já que o advogado
ainda não se mostrava apaixonado por ela, o que passa a acontecer no
decorrer da história. De acordo com essas informações, a protagonista tende a
manifestar certa regularidade de comportamento, que pode ser observada por
meio de seus hábitos, pela maneira de se vestir, pela rotina das atividades
domésticas, e até mesmo pela forma de agir. Essa afirmação pode ser
verificada nas seguintes passagens do texto:
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
120
Madame Célestin always wore a neat and snugly fitting calico
wrapper when she went out in the morning to sweep her small
gallery (276).
She was always sweeping her gallery when lawyer Paxton
passed by in the morning on his way to his office in St. Denis
Street (276).
...and with which she invariably wore a bow of pink ribbon at
the throat (276).
Madame Célestin usually had a good deal to say (276) (grifos
meus).
Madame Célestin sempre usava um limpo e confortável robe
de tecido fino quando saía de manhã para varrer sua pequena
varanda.
Ela estava sempre varrendo sua varanda quando o advogado
Paxton passava de manhã no seu caminho para o escritório na
Rua St. Denis.
...e com o qual ela invariavelmente usava um laço de fita cor-
de-rosa no pescoço.
Madame Célestin geralmente tinha muita coisa para falar.
Os advérbios de freqüência presentes nesses trechos são sinais
de que a protagonista obedecia a certos hábitos e costumes, atitude que pode
facilmente conduzir ao seu comportamento no desfecho do conto, quando ela
aceita o marido de volta e acaba com as ilusões do advogado. Assim, tais
sinais devem ser utilizados como índices, ou seja, uma maneira de alertar o
leitor para o fato de que Madame Célestin não tende a mudar seu padrão de
comportamento e que a idéia do divórcio, apesar de aparentemente ser bem
aceita por ela, não poderia ser concretizada naquela sociedade.
Nesse sentido, um outro aspecto do conto que merece destaque é
que, diferentemente da heroína de “The Story of an Hour”, que em determinado
momento da história deixa de ser Mrs. Mallard e passa a ser chamada pelo seu
primeiro nome, a protagonista de “Madame Célestin’s Divorce”, em nenhum
momento do conto recebe outro nome que não o do marido, o que também
pode ser um indício para o leitor de que o divórcio não passava de uma
impossibilidade para ela.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
121
Também deve ser considerado um índice a tagarelice da
protagonista, pois, em outra passagem do conto, revela-se que ela fala demais
e para qualquer pessoa a respeito de seus problemas: “Of course she had
talked to him of her troubles. Every one knew Madame Célestin’s troubles”
30
(276) (grifo meu). Aqui, o leitor está sendo alertado para o fato de que o
advogado Paxton, contrariamente ao que ele pensava, não era o único a
compartilhar das histórias da jovem senhora. Verifica-se, então, um contraste
entre as características e atitudes da heroína fornecidas no início do conto, que
aparentam ser mais confiáveis e coerentes com suas ações no desenrolar da
narrativa e aquilo que é visto pela lente apaixonada do advogado. Isso ocorre
porque,
o olhar de uma personagem da história em situação de
observação (...) implica uma focalização externa sobre aquilo
que esse observador limitada e exteriormente pode apreender
e deduzir, não se isentando tal observador de manifestar juízos
subjetivos acerca do que vê (REIS, 1988, p. 250).
Dessa forma, pode-se afirmar que o interesse do advogado por
Madame Célestin contribuiu para que a confiabilidade do foco narrativo fosse
comprometida, pois as ações da protagonista, a partir de um determinado
momento da narrativa, passam a ser percebidas de maneira a alimentar as
ilusões da personagem refletora e, conseqüentemente, do próprio leitor, que
toma partido do advogado e espera que o divórcio aconteça. Assim, por muitas
vezes, a personagem refletora distorce os acontecimentos da história, como
em: “A day or two later, she was there waiting for him again
31
(277) (grifo
meu). Isso acontece porque, a partir do momento em que o advogado se
envolve emocionalmente com a situação do divórcio de Madame Célestin,
aquelas atitudes, que antes eram corriqueiras na vida da heroína do conto,
passam a ser vistas, aos olhos de seu apaixonado, como propositais e
intencionais, numa tentativa de insinuar ao leitor que o seu interesse estava
sendo correspondido por ela, o que não se comprova pelo final da história.
30
“É claro que ela havia falado com ele sobre seus problemas. Todo mundo sabia dos
problemas de Madame Célestin.”
31
“Um dia ou dois depois, ela estava lá, esperando por ele novamente”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
122
Por isso, é importante que a confiabilidade dos fatos narrados seja
questionada, pois, a partir de um determinado ponto da narrativa, a
personagem refletora deixa de ter uma visão isenta dos fatos, o que diminui
sua isenção e objetividade. Isso ocorre porque a esses fatos foi adicionada
toda a expectativa pessoal do advogado, chegando ao ponto de fantasiar as
reações de Madame Célestin, como em: “... and she hastened towards him with
an empressement that could not but have been flattering”
32
(278). Pode-se
perceber, porém, ao ser examinado todo o contexto no qual a frase está
inserida, que a reação da protagonista foi distorcida.
“Well, Madame Célestin! And the bishop!” Lawyer Paxton was
standing there holding to a couple of the shaky pickets. She
had not seen him. “Oh, it’s you, Judge?” and she hastened
towards him with an empressement that could not but have
been flattering (278) (grifo meu).
“Bem, Madame Célestin! E o bispo!” O advogado Paxton
estava parado lá segurando duas ripas soltas da cerca. Ela
não o tinha visto. “Oh, é você, Juiz?” e se lançou na direção
dele com uma ânsia que só podia demonstrar que estava
interessada.
Além disso, ao ser adotado o ponto de vista da personagem
refletora para a caracterização da protagonista, sabe-se que somente será
revelado aquilo que ela é capaz de saber, o que, na opinião de Gérard Genette
(1995, p. 199), “permite deixar numa completa obscuridade os sentimentos do
outro, e, desse modo, constituir-lhe sem grandes custos uma personalidade
misteriosa e ambígua”.
A própria Madame Célestin deixa transparecer essa falta de
conhecimento do advogado sobre sua personalidade ao dizer a seguinte frase:
“You don’t know me yet, Judge”
33
(278), revelando que qualquer tentativa de
prever suas atitudes poderia ser frustrada. Assim, é possível perceber a
maestria de Kate Chopin na utilização de tal recurso de construção da
32
“E ela se lançou na direção dele com uma ânsia que só podia demonstrar que estava
interessada”.
33
“Você não me conhece ainda, Juiz”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
123
protagonista, que permite levantar a questão do completo desconhecimento da
verdadeira identidade feminina por parte dos homens.
Pode-se afirmar que isso só é possível porque, paralelamente às
informações fornecidas pela personagem refletora, o leitor tem acesso a outros
dados, encarregados de alertá-lo a desconfiar daquela visão mais limitada a
respeito da protagonista. Surge, então, a figura do autor implícito,
imprescindível num texto escrito por mulheres, já que ele é o representante do
autor dentro da obra, ou seja, aquela entidade que questiona a fidedignidade
do narrador, tentando anular sua simpatia e sua credibilidade. Para Wayne
Booth (CINTRA, 1981, p. 20), o autor implícito é uma “espécie de diretor de
cena que permanece nos bastidores do romance, não se deixando ver, a não
ser através de uma série de índices como a escolha e as constantes alterações
do foco narrativo, a ordem da narração, etc”. Com esses recursos e seu saber
ilimitado, o autor implícito garante uma visão mais crítica em relação à história
contada, podendo causar um sentimento de desconfiança no leitor.
Por isso, o fato de a protagonista não ter sido focalizada a partir
de seu interior, a ponto de seus pensamentos e sentimentos permanecerem
obscuros, permite que sejam questionadas as tentativas da personagem
refletora de influenciá-la a respeito do divórcio. Nesse sentido, Madame
Célestin pode ter sido interpretada como uma mulher sem opinião própria,
ingênua e influenciável, o que também é sugerido pela intenção das demais
personagens em manipular suas idéias, uma vez que elas representam, em
muitos aspectos, os valores da sociedade patriarcal do século XIX, que não
incluíam a consideração da voz da mulher:
“You won’t let the bishop dissuade you, I trust,” stammered the
lawyer more anxiously than he could well understand (278).
“Ah, he’s an eloquent man. It’s not a mo’ eloquent man in
Natchitoches parish. I was forced to cry, the way he talked to
me about my troubles; how he undastan’s them, an’ feels for
me. It would move even you, Judge, to hear how he talk’ about
that step I want to take; its danga, its temptation” (278).
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
124
“Você não vai deixar o bispo dissuadir você, eu creio,”
gaguejou o advogado mais ansiosamente do que poderia
compreender.
“Ah, ele é um homem eloqüente. Não é o mais eloqüente da
paróquia de Natchitoches. Eu fui forçada a chorar, pelo modo
como ele falou comigo sobre os meus problemas; como ele os
compreende, e sente por mim. Iria derreter até você, Juiz, se
ouvisse como ele falou sobre aquele passo que eu queira dar;
um perigo, uma tentação”.
Assim, além da influência que o próprio advogado Paxton
procurou exercer sobre as opiniões de Madame Célestin, é importante
considerar que, contrariamente, mostrava-se a influência dos valores familiares
e dos preceitos da religião católica sobre a tomada de decisão da protagonista
a respeito do divórcio. É o que comprova o trecho a seguir, em que Madame
Célestin relata ao advogado a conversa que teve com o bispo:
“How it is the duty of a Catholic to stan’ everything till the las’
extreme. An’ that life of retirement an’ self-denial I would have
to lead, - he tole me all that” (278).
“Como é o dever de um católico agüentar tudo até o último
extremo. E a vida de isolamento e abnegação que eu teria que
levar – ele me disse tudo isso”.
Por outro lado, apesar de ter sido transmitida essa visão de
Madame Célestin como uma mulher manipulável e frágil, também se pode
observar claramente a sua força e coragem diante das adversidades, como
mostra a seguinte passagem do conto, em que o advogado Paxton expõe a
incansável capacidade de trabalho da protagonista:
“(...) Here you are, working your fingers off” – she glanced
down at two rosy finger-tips that showed through the rents in
her baggy doeskin gloves – “taking in sewing; giving music
lessons; doing God knows what in the way of manual labor to
support yourself and those two little ones” – Madame Célestin’s
pretty face beamed with satisfaction at this enumeration of her
trials (276).
“(…) Aí está você, trabalhando duro” – ela deu uma olhada
para as pontas dos dedos rosadas que se mostravam pelas
fendas de suas grandes luvas de couro – “costurando, dando
aulas de música; fazendo Deus sabe o que no campo das
artes manuais para sustentar você e os dois pequenos” – O
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
125
rosto de Madame Célestin se iluminou de satisfação diante da
lista de seus esforços.
O fato de a protagonista também ter sido representada como uma
mulher forte, capaz de superar o abandono do marido e conseguir sustentar
sua família com o seu esforço pessoal, pode ter sido não só um motivo da
admiração do advogado por ela, mas uma esperança de que, com essa força,
ela também enfrentaria as conseqüências de um divórcio diante da sociedade
daquela época. Acontece, porém, que essa força interior não se mostrou
suficiente para enfrentar tal situação e a atitude de Madame Célestin, aceitando
o marido de volta no final da história, representa a dificuldade de a mulher
tomar decisões por si próprias, ou seja, sem levar em consideração a opinião
da sociedade. Isso ocorre porque
“(...) as protagonistas não se sentem seres individualizados,
são pessoas que não se reconhecem mais, tamanho o
distanciamento do verdadeiro eu, soterrado ao longo dos anos
de domesticação, de introdução às leis patriarcais. O eu
refletido no espelho e com o qual se relacionam com o mundo,
na verdade é um outro, construído pela ação ‘socializadora’
das instituições familiares, escolares e religiosas” (SILVA,
1999, p. 216-217).
Outro ponto de interesse do conto em questão refere-se à posição
das personagens em relação ao espaço, que é definida a partir do seu papel na
sociedade, ou seja, enquanto o topos da mulher é o privado e se limita à casa,
o do homem é o público. Pode-se verificar que toda a ação da protagonista fica
restrita aos limites de sua casa, pois, em momento algum da história, é descrita
uma cena em que Madame Célestin se encontra em outro lugar que não fosse
esse local. Levando em consideração a idéia de que, para Bachelard “a casa é
um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade”
(2003, p. 36), pode-se afirmar, que a posição da personagem feminina, sempre
protegida pelos limites de sua casa, indica uma necessidade de se manter
estável, ainda que de forma ilusória, sugerindo mais uma vez a idéia de que ela
não aceitaria o divórcio.
Diante desse comportamento, a protagonista manifesta suas
ações de acordo com aquilo que Gilbert (1984, p. 70) chama de agoraphobia,
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
126
que é o medo de ficar sozinho em lugares abertos, ou seja, um desejo por
muros, por segurança, por amor e por certezas. É importante notar, porém, que
o espaço ocupado pela protagonista na narrativa não é o de dentro de sua
casa, mas no caminho entre a casa e o portão, a partir do que se pode
interpretar que ela parecia também desejar a liberdade, o que para Gilbert
(1984, p.70) pode ser chamado de claustrophobia, que é o medo dos muros e
das trancas que lembram um lugar fechado, uma prisão.
Essa alternância entre o desejo e o medo daquilo que representa
a segurança e a liberdade caracteriza o conflito básico da mulher em sociedade
e é o que possibilita o caráter ambíguo do comportamento da protagonista no
conto em questão, já que ela se encontrava em uma situação intermediária
entre a casa e a rua, entre o casamento e o divórcio, entre a estabilidade e o
risco.
Igualmente interessante é a posição do advogado Paxton que,
apesar de não ter chegado a entrar na casa de Madame Célestin, sempre que
foi visto conversando com ela estava encostado à cerca, numa atitude que
indicava uma tentativa de transpor os limites impostos simbolicamente pela
sociedade. Nesse sentido, a cerca pode representar uma proteção contra as
influências externas, uma forma de segurança e, ao mesmo tempo, uma prisão
para Madame Célestin e uma espécie de separação entre as duas
personagens da trama.
Já o papel da ironia no desfecho do conto, que se manifesta
quando a protagonista contraria todas as expectativas, serve para mostrar que
a vontade da mulher não poderia prevalecer sobre os valores sociais, apesar
da esperança do advogado e do próprio leitor, contagiado pela focalização a
partir de Mr. Paxton. Assim, é interessante refletir sobre a atitude de Madame
Célestin no final da história que, ao recusar a idéia do divórcio e receber de
volta o marido que a abandonara em situação tão ruim, deixa evidente que ela
não tinha condições de contrariar os valores da sociedade, ainda que a lei
estivesse a seu favor.
Simbolicamente, a figura do advogado Paxton, ao manifestar
interesse por Madame Célestin, pode ser interpretada, mais amplamente, como
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
127
a representação da lei que se mostra do lado da mulher. O advogado não
somente expressa simpatia pelo caso da protagonista do conto, como apóia e
defende a causa do divórcio. Em outras palavras, isso quer dizer que, apesar
de aparentemente poder contar com o respaldo legal para o divórcio, a mulher
do século XIX, representada por Madame Célestin, dificilmente conseguiria
concretizá-lo de fato, pois a sociedade, que aparece aqui sob a forma de
instituições, como a família e a Igreja, posicionava-se declaradamente contrária
à sua causa. Assim, embora a lei atribuísse esse direito à mulher, a sociedade
continuava a não admitir o divórcio, além de condenar aqueles (e
principalmente aquelas) que se mostravam favoráveis.
Tal situação pode ser comparada ao período pós-abolição da
escravatura quando, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, os escravos,
mesmo tendo sido libertos, não conseguiam usufruir a liberdade, já que a
sociedade simplesmente não os tratava como seres livres e preparados para o
trabalho, preferindo empregar qualquer trabalhador branco em vez dos negros
recém-libertados e deixando-os, economicamente, em pior situação do que
estavam antes da Abolição.
A correlação entre a situação das mulheres e a vida dos escravos
também pode ser encontrada em vários outros textos da obra de Kate Chopin.
Um exemplo muito interessante é “Athénaïse”, publicado em 1896, em que a
autora, ao abordar o tema do casamento, discute a falta de liberdade da mulher
e expressa, dando voz à protagonista, todo o desconforto de sua condição:
“It’s jus’ being married that I detes’ an’ despise. I hate being
Mrs. Cazeau, an’ would want to be Athénaïse Miché again. I
can’t stan’ to live with a man; to have him always there; his
coats an’ pantaloons hanging in my room; his ugly bare feet –
washing them in my tub, befo’ my very eyes, ugh!” (431).
“É justamente o fato de ser casada que eu detesto e desprezo.
Eu odeio ser a senhora Cazeau, e gostaria de ser Athénaïse
Miché novamente. Eu não agüento viver com um homem; tê-lo
sempre ali; seu casaco e suas calças penduradas em meu
quarto; seus horríveis pés descalços – lavá-los na minha
banheira, bem diante dos meus olhos, ugh!”
Ao analisar o desabafo de “Athénaïse” verifica-se que, em outros
contos de Kate Chopin, muitas personagens femininas criticam mais
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
128
abertamente a instituição do casamento, manifestando inclusive sentimentos
tidos como inaceitáveis pela sociedade em relação à condição de esposa e
mãe.
Já em “Madame Célestin’s Divorce”, percebe-se uma maneira
diferente de abordar o assunto, menos declarada e direta, uma vez que tanto o
marido como os filhos da personagem principal são apenas mencionados, e
não chegam nem mesmo a ser caracterizados na história, apenas sugerindo
que o grau de importância dado pela protagonista (e até mesmo pela escritora,
representada pela figura do narrador) a eles parecia ser inferior à discussão da
condição da mulher diante de questão tão polêmica como o divórcio.
O aspecto irônico fica por conta da decisão inesperada de
Madame Célestin que, apesar de demonstrar grande força e coragem para
superar os obstáculos, como o abandono do marido e as dificuldades para
sustentar os filhos sozinha, não consegue enfrentar as conseqüências de um
possível divórcio, preferindo aceitar os maus tratos do marido e um casamento
arruinado a enfrentar os preconceitos da sociedade, como mostra sua última
fala no conto: “(...) You see, Judge, Célestin came home las’ night. An’ he’s
promise me on his word an’ honor he’s going to turn ova a new leaf”
34
(279).
De acordo com a teoria de Piglia (1994), a ironia final ocorre
graças ao cruzamento das duas histórias narradas no conto, sendo que uma
delas, justamente a que seria encarregada de focalizar Madame Célestin a
partir de seu interior, permaneceu secreta, ou seja, o mais importante, que era
a impossibilidade de aceitação do divórcio da mulher naquela época, não foi
contado e ficou subentendido sob a forma de alguns índices presentes na
história visível.
Com isso, ao leitor não foi permitido tomar conhecimento prévio
das verdadeiras intenções da protagonista porque, durante o processo de
busca por sua identidade, pelo qual essa personagem passou na história,
houve uma valorização maior da influência externa exercida pela sociedade do
que da interna. Sendo assim, a postura de resignação e aparente ingenuidade
da protagonista diante de sua situação decorreram, sobretudo, da influência
34
“Veja, Juiz, o Célestin voltou pra casa ontem à noite. E ele me prometeu com sua palavra e
em nome de sua honra que ia levar uma vida nova.”
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
129
dos valores vitorianos, a partir dos quais deve-se, acima de tudo, manter as
aparências diante da sociedade e da coerção dos princípios religiosos.
Isso quer dizer que, nessa busca pela identidade, não foi possível
para Madame Célestin considerar seus valores pessoais, tendo que aceitar
como seus os valores impostos pela sociedade, o que demonstra como tais
imposições acabam por destruir muitas tentativas de estabelecimento de novas
posturas diante de questões polêmicas como o divórcio. Assim, por meio de um
discurso aparentemente simples, mas de grande habilidade na exploração dos
recursos narrativos e na caracterização das personagens, Kate Chopin discute
as principais questões femininas de seu tempo, submetendo suas personagens
a conflitos com o universo dominante masculino e revelando a condição da
mulher na sociedade da época em que viveu.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
130
4.3 – “A RESPECTABLE WOMAN”
Escrito em 1894, o conto narra a história de Mrs. Baroda, uma
senhora aparentemente bem casada, que se apaixona pelo amigo de seu
marido. Tudo começa quando Gaston avisa a esposa de que seu amigo de
infância, Gouvernail, vai passar uns dias na casa deles. Aborrecida pela
mudança nos planos de ficar a sós com o marido, Mrs. Baroda começa a
imaginar o visitante como uma pessoa antipática e cínica antes de conhecê-lo.
Entretanto, quando finalmente o amigo chega, ela se apaixona
instantaneamente por ele, contrariando todas as suas expectativas e iniciando
um período de grande confusão na mente da protagonista. Mrs. Baroda
curiosamente manifesta a atração que começa a sentir por Gouvernail por meio
de uma atitude de repulsa, que culmina na fuga para a casa de parentes em
outra cidade, sempre na tentativa de dominar a situação constrangedora pela
qual estava passando. O amigo finalmente vai embora e Mrs. Baroda retorna à
casa sem que, nem o marido e nem o próprio Gouvernail, pelo menos
aparentemente, desconfiassem dos verdadeiros sentimentos que a heroína
precisou sufocar por se considerar uma mulher respeitável.
O narrador desempenha um papel fundamental para a elucidação
do conto e de seus aspectos irônicos, uma vez que é graças à sua atuação,
que o leitor tem acesso à subjetividade da personagem principal. Trata-se de
uma técnica que Norman Friedman (1967) chama de onisciência seletiva, muito
utilizada em narrativas curtas devido à escassez de tempo para que se
apresentem os processos mentais de várias personagens.
Esse tipo de onisciência é a do próprio autor implícito que, ao
penetrar os pensamentos e descrever as experiências da personagem feminina
a partir de sua própria perspectiva, revela a voz da escritora, manifestando
suas opiniões a respeito da condição feminina. É como se a história estivesse
sendo narrada em primeira pessoa pela protagonista num tom quase
confessional, valendo-se do seu ponto de vista para analisar a situação em que
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
131
ela se encontra. Tal recurso aparece com freqüência em textos escritos por
mulheres, em que o
tom confessional chega a confundir o leitor: narradora ou
autora? Ficção ou autobiografia? Quando isso não ocorre, a
intimidade entre narradora e personagem é tão grande que a
introspecção fica garantida. Suas personagens têm dificuldade
em sair de si mesmas, estão em busca de sua identidade, à
procura de um espaço de auto-realização (XAVIER, 1990, p.
236).
É possível reconhecer a utilização dessa estratégia narrativa no
conto em questão a partir do momento em que são revelados ao leitor somente
os aspectos relativos à interioridade de uma única personagem: a protagonista
Mrs. Baroda. Dessa forma, os acontecimentos da história passam por uma
espécie de filtro, que é a mente da heroína, revelando traços íntimos daquilo
que pode representar o pensamento da mulher da época no que diz respeito a
temas como o desejo, a paixão, o casamento e a infidelidade.
Com esse recurso, que não permite que as demais personagens
tenham acesso aos verdadeiros pensamentos, sentimentos e intenções da
protagonista, sugere-se a existência de um gigantesco abismo entre os
universos feminino e masculino, causado principalmente pela incompreensão e
pela falta de interesse em relação à mulher. Essa questão fica mais evidente
num dos poucos momentos de diálogo no conto, envolvendo Mrs. Baroda e o
marido:
“You are full of surprises, ma belle,” he said to her. “Even I can
never count upon how you are going to act under given
conditions.” He kissed her and turned to fasten his cravat
before the mirror. (334)”
“Você é cheia de surpresas, minha bela,” ele disse para ela.
“Mesmo eu nunca posso prever como você vai agir sob
determinadas condições.” Ele a beijou e voltou a apertar sua
gravata diante do espelho.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
132
Nesse diálogo pode-se notar que, apesar de existir um bom
relacionamento entre o casal, há claramente uma dificuldade por parte do
marido em entender melhor o comportamento da esposa diante do amigo.
Também é importante ressaltar que não há empenho para que isso ocorra, já
que logo retorna à sua atividade anterior, que é apertar o nó da gravata diante
do espelho. Sendo assim, o espelho apresenta um importante valor simbólico,
já que pode revelar, além da falta de interesse dos homens pelo universo
feminino, uma atitude egoísta e autocentrada da personagem masculina em
relação à esposa.
Enquanto isso, a visão do leitor a respeito das demais
personagens fica reduzida às impressões que a protagonista tem a respeito
deles, uma vez que ela desempenha a função de personagem refletora. Isso
quer dizer que essa visão pode não ser tão confiável ao leitor, pois pode estar
contaminada pelos seus sentimentos, o que impede uma caracterização isenta
e racional. A principal conseqüência disso é que, partindo das impressões da
protagonista, somente pode-se fazer uma focalização externa das demais
personagens, principalmente de Gouvernail, já que Mrs. Baroda não tem
acesso à verdadeira natureza dos pensamentos e sentimentos do amigo de
infância de seu marido. Sendo assim, para a caracterização dessa personagem
masculina são utilizados verbos como to seem (parecer) e should (dever), que
denotam essa falta de dados para um julgamento mais apurado e um
conhecimento reduzido a seu respeito, como pode ser observado em:
once settled at the plantation he seemed to like to sit upon the
wide portico in the shade of one of the big Corinthian pillars,
smoking his cigar lazily and listening attentively to Gaston’s
experience as a sugar planter (333-334) (grifo meu).
uma vez instalado na plantação, ele parecia gostar de ficar
sentado diante da ampla entrada à sombra de um dos grandes
pilares coríntios, fumando seu charuto lentamente e ouvindo
com atenção as experiências de Gaston como um produtor de
açúcar.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
133
Com isso, a partir da visão da personagem refletora estabelece-
se uma imagem antipática de Gouvernail no início do conto, que foi certamente
influenciada pelos comentários elogiosos do marido e, principalmente, pelo
preconceito gerado pelo estado de descontentamento de Mrs. Baroda em
relação à visita indesejada. Surge, então, um contraste entre a imagem do
amigo do marido, criada por Mrs. Baroda antes de conhecê-lo e as suas
primeiras impressões ao ver o homem, pois
(…) she unconsciously formed an image of him in her mind.
She pictured him tall, slim, cynical; with eye-glasses, and his
hands in his pocket; and she did not like him (SEYERSTED,
1988, p. 333).
ela inconscientemente formou uma imagem dele em sua
mente. Ela o imaginou alto, magro, cínico; com óculos, e com
as mãos nos bolsos; e não gostou dele.
É possível verificar o tom irônico do conto a partir desse
contraste, uma vez que Mrs. Baroda torna-se vítima de sua própria ironia ao
tentar, a princípio, formar uma imagem ridícula e antipática de Gouvernail, e
vindo a se apaixonar por ele logo em seguida:
Gouvernail was slim enough, but he wasn’t very tall nor very
cynical; neither did he wear eye-glasses nor carry his hands in
his pockets. And she rather liked him when he first presented
himself (SEYERSTED, 1988, p. 333).
Gouvernail era adequadamente magro, mas não era muito alto
nem muito cínico; nem usava óculos ou colocava as mãos nos
bolsos. E ela gostou muito dele quando ele se apresentou.
Nesse caso, a ironia acontece justamente pela improbabilidade
inicial de que Mrs. Baroda viesse a se apaixonar por Gouvernail, primeiramente
por ser uma mulher casada e, como o título do conto aponta, respeitável. A
ironia também se revela pelo fato de a heroína ter manifestado repulsa pela
idéia da visita, além da antipatia em relação ao visitante mesmo antes de
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
134
conhecê-lo, ou seja, a ironia aparece no conto a partir de uma “disparidade
entre o que se pode esperar e o que acontece realmente” (MUECKE, 1982, p.
74).
Com a utilização da estratégia da personagem refletora, ao leitor
é dada a capacidade de perceber a ironia da situação, principalmente quando
consegue observar as reações da protagonista diante desse conflito interno,
bem como suas dúvidas e lutas contra uma ameaça às suas convicções,
notando claramente sua necessidade em se manter racional. Mrs. Baroda
demonstrava uma necessidade imensa de controlar tudo o que estava à sua
volta e o seu mau humor diante do fato de ter aparecido alguém em sua casa
sem que ela estivesse preparada, ilustra essa necessidade. Pode-se afirmar, a
partir dessa caracterização da protagonista, que ela era uma mulher que
certamente se sentia atormentada e confusa diante de uma situação que
fugisse de seu controle e dos limites da racionalidade. Tal constatação se
confirma quando Mrs. Baroda percebe que o controle dos seus sentimentos e a
estabilidade de sua vida estavam sendo ainda mais ameaçados pela presença
de Gouvernail em sua casa, o que pode ser exemplificado com as seguintes
passagens:
But why she liked him she could not explain satisfactorily to
herself when she partly attempted to do so (333).
Gouvernail’s personality puzzled Mrs. Baroda, but she liked
him (334).
She had never known her thoughts or her intentions to be
confused (335).
Mas porque gostou dele, ela não conseguiu explicar
satisfatoriamente para si mesma quando tentou, em parte,
fazê-lo.
A personalidade de Gouvernail desconcertava Mrs. Baroda,
mas ela gostava dele.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
135
Ela nunca tinha percebido seus pensamentos e suas
intenções de maneira tão confusa.
Nesse ponto, nota-se que a visão interior a partir da protagonista
não é suficiente para decifrar a situação ambígua do final do conto, por
expressar precisamente essa confusão de sentimentos em que ela se
encontrava mergulhada. Isso quer dizer que suas reações inesperadas e
repentinas diante da confusão mental da qual estava sendo vítima indicam uma
certa imprevisibilidade em seu comportamento no restante da trama.
Diante dessa visão instável a que o comportamento de Mrs.
Baroda remete, pode-se perceber a existência de um outro contraste
importante no conto, entre a caracterização das figuras feminina e masculina.
Enquanto a figura do homem, representada pela personagem Gouvernail, deixa
transparecer uma imagem de racionalidade, segurança, controle, serenidade e
convicção de seus atos, a da mulher, que tem como base a heroína, revela
traços de ansiedade, emoção, insegurança e descontrole aparentes,
principalmente no que diz respeito aos sentimentos, como em:
(...) he sat rather mute and receptive before her chatty
eagerness to make him feel at home (...). His manner was as
courteous toward her as the most exacting woman could
require; but he made no direct appeal to her approval or even
esteem (333).
“Here you are,” he went on, “taking poor Gouvernail seriously
and making a commotion over him, the last thing he would
desire or expect.” (334).
(…) ele se sentou um tanto mudo e receptivo diante de sua
ansiedade tagarela de fazê-lo sentir-se em casa (...). Seus
modos eram corteses em relação a ela como a mais exigente
das mulheres poderia esperar; mas ele não fez nenhum apelo
direto para sua aprovação ou mesmo estima.
“Aí está você,” ele continuou, “levando o pobre Gouvernail a
sério e fazendo uma confusão por causa dele, a última coisa
que ele desejaria ou esperaria.”
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
136
Tal contraste tende a conceber as características e os papéis das
personagens em conformidade com os valores da sociedade patriarcal, ou
seja, o que se vê nas suas atitudes é o reflexo das situações previstas nas
relações sociais, em que o homem, ao menos aparentemente, consegue ser
mais racional e controlado do que a mulher, quase sempre mais emocional e
ansiosa diante dos conflitos. É aquilo que Cixous sugere, ao afirmar que “as
mulheres estão associadas com a natureza e não com a cultura, com o
‘coração’ e as emoções e não com a ‘cabeça’ e a racionalidade” (apud SILVA,
2004, p. 52).
De fato, Gouvernail, como o próprio nome sugere, é o estereótipo
do homem sedutor que domina e controla tudo à sua volta. Com essa atitude
distante e indiferente, ele chega a causar até um certo desconforto em Mrs.
Baroda que, sem conseguir representar sequer seu papel de mulher dedicada,
sente-se completamente sem função e, por conseqüência, acredita que nada
significa para ele, apesar de suas tentativas para chamar sua atenção.
Observa-se claramente essa situação no seguinte diálogo entre a protagonista
e o marido:
“When is he going – your friend?” She one day asked her
husband. “For my part, he tires me frightfully.”
“Not for a week yet, dear. I can’t understand: he gives you no
trouble.”
“No. I should like him better if he did; if he were more like
others, and I had to plan somewhat for his comfort and
enjoyment. (334)”
“Quando ele parte – seu amigo? Ela um dia perguntou a seu
marido. “A mim, ele me desagrada tremendamente.”
“Nem uma semana ainda. Eu não consigo entender: ele não te
dá nenhum trabalho.”
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
137
“Não. Eu gostaria mais dele se ele desse trabalho; se ele
fosse mais como os outros, e eu tivesse que programar algo
para o seu conforto e prazer.”
Num outro ponto interessante dessas conversas com o marido,
Mrs. Baroda critica o comportamento de Gouvernail, afirmando que o amigo
não parecia ser tão esperto como o marido havia dito, numa alusão à
indiferença dele diante da paixão que sentia por ele. O que aparentemente Mrs
Baroda não percebia, por estar abalada com a presença de Gouvernail em sua
casa e preocupada demais com os seus próprios sentimentos, é que a atração
que ela sentia por ele poderia estar sendo correspondida.
Somente com o avançar da leitura é que se percebe com que
sutileza a ambigüidade da situação das personagens foi elaborada, pois, de
fato, o desejo de Gouvernail pela protagonista também é manifestado, embora
de maneira codificada, durante um encontro entre os dois numa certa noite.
Conforme declara Joyce Dyer (1981, p. 222), as descrições e as referências a
respeito da noite em vários contos de Kate Chopin representam os mistérios
obscuros, as regiões vagas da emoção humana e são símbolos de paixões
primitivas. Em seu artigo “Night images in the work of Kate Chopin”, Dyer
(1981, p. 222-223) afirma que Gouvernail, ao fazer uma apologia à noite, está,
ao mesmo tempo, revelando seus próprios sentimentos e despertando os
desejos de Mrs. Baroda. Nessa apologia, a personagem masculina cita alguns
versos do poema “Song of myself” de Walt Whitman (1819-1892): “Night of
south winds – night of the large few stars! Still nodding night –”
35
(335), com os
quais o clima entre as personagens do conto é inundado pela sensualidade do
momento.
Ainda de acordo com Dyer, não somente pelos versos citados por
ele, mas, sobretudo pelo conhecimento que se tem dessa personagem
masculina em participações em outros textos de Chopin (“Athénaïse” e The
awakening), sempre aparecendo como um esperto e ardente solteiro, pode-se
inferir que ele parecia estar apreciando a proximidade de Mrs. Baroda, ao
35
“Noite de ventos sul! Noite de poucas e imensas estrelas! Noite ainda sonolenta!” (trad. de
Rodrigo Garcia Lopes).
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
138
exaltar o calor e a sensualidade da noite descrita por Whitman. Dyer (1988, p.
223) também assevera que as imagens com conotações sexuais, presentes
nas expressões “south winds” e “stillness”, penetram em seus pensamentos e
indicam ao leitor que a personagem pode estar experimentando sentimentos
que não ousava comunicar a uma “respeitável” mulher casada. No artigo
analisado, há inclusive uma referência de Lewis Leary
36
, defendendo a idéia de
que, ao acrescentar os trechos dos versos que foram suprimidos da fala de
Gouvernail, que são: “Press close bare-bosom’d night...”
37
e “mad naked
summer night”
38
, fica ainda mais clara a sugestão da presença de elementos
que remetem ao caráter sensual e sexual de seus pensamentos, que
evidentemente não poderiam ser revelados à heroína.
Mais uma vez imersa em seus próprios pensamentos e
sentimentos, Mrs. Baroda parece não perceber as intenções escondidas por
trás da apologia de Gouvernail à noite. Nesse sentido, Dyer relata que, apesar
de a protagonista achar que os versos não eram direcionados a ela, eles
acabaram exercendo grande influência em seu comportamento, já que é a
partir desse momento da trama, sob a luz sensual da noite, que Mrs. Baroda
expõe seus desejos mais íntimos diante de si mesma e do leitor, despertando
para a sua própria sexualidade:
her mind only vaguely grasped what he was saying. Her
physical being was for the moment predominant. She was not
thinking of his words, only drinking in the tones of his voice.
She wanted to reach out her hand in the darkness and touch
him with the sensitive tips of her fingers upon the face or the
lips. She wanted to draw close to him and whisper against his
cheek – she did not care what – as she might have done if she
had not been a respectable woman (335).
sua mente compreendia vagamente o que ele estava dizendo.
Seu ser físico predominava naquele momento. Ela não estava
pensando nas palavras dele, só bebendo nos tons de sua voz.
Ela queria alcançar sua mão na escuridão e tocá-lo com as
sensíveis pontas de seus dedos no rosto ou nos lábios. Ela
queria puxá-lo para perto e sussurrar contra sua face – ela não
36
LEARY, Lewis. “Introduction” in: CHOPIN, Kate. The awakening and other stories. New
York: Holt, Rinehart and Winston, Inc., 1970, p. xiii.
37
“Me abrace, noite nutritiva e magnética!” (trad. Rodrigo Garcia Lopes).
38
“Noite de verão nua e maluca!” (trad. Rodrigo Garcia Lopes).
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
139
se importava com o que – o que ela teria feito se não fosse
uma mulher de respeito.
Sendo assim, o leitor é confrontado com uma personagem
feminina diante da escolha entre a satisfação de seus desejos mais íntimos e a
obediência aos valores da sociedade.
O fato de se referirem à protagonista somente pelo sobrenome do
marido é um indício da necessidade de preservação desses preceitos
tradicionais, além de enfatizar a idéia de que ela era uma senhora de respeito.
Faz-se necessário ressaltar que Mrs. Baroda é uma personagem
branca que, em outras histórias de Kate Chopin como “A Shameful Affair”, por
exemplo, sempre parece ter mais problemas com as questões morais do que,
por exemplo, as negras, reforçando os preconceitos a sociedade burguesa. E
é, sobretudo, graças à onisciência seletiva em relação à protagonista que o
leitor também pôde perceber o esforço que essa personagem teve que fazer
para conseguir resistir a seus desejos, justamente por se julgar uma mulher
respeitável, pois quanto mais se sentia atraída por Gouvernail, ou quanto mais
suas garras, ou “nails” a governavam, mais ela procurava se afastar do objeto
de seu desejo.
Diante desse dilema, a heroína se vê num doloroso processo de
escolha em que, pelo menos aparentemente, opta pela atitude que lhe traria
mais segurança naquele momento e a única que ela poderia assumir, fugindo
de casa nas primeiras horas da manhã seguinte do encontro com Gouvernail.
Mrs. Baroda escolhe o trem como meio de transporte que, a
princípio, parece sustentar o significado simbólico de uma condição imutável e
irreversível em que a protagonista se encontrava, devido à presença dos trilhos
que determinam o caminho a ser seguido, dando a entender que ela jamais
aceitaria viver em discordância com os valores sociais. Entretanto, à maneira
da significação dada anteriormente na análise de “The Story of an Hour”, o trem
reflete uma “evolução, (...) que simboliza uma evolução psíquica, uma tomada
de consciência que prepara a uma nova vida” (CHEVALIER, 1995, p. 897). A
partir de tais considerações, o leitor é capaz de perceber, por meio do
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
140
significado ambíguo do desfecho do conto, a mudança de opinião e atitude,
pela qual deve ter passado a heroína.
É igualmente interessante destacar o fato de que a protagonista,
embora tenha confessado que se sentiu tentada, não revelou a ninguém o que
estava sentindo por Gouvernail. Esse comportamento deve-se, principalmente,
a uma excessiva preocupação dos sulistas, apontada por Toth
39
(apud KUNF,
1991, p. 9), em relação às aparências, a ponto de raramente revelarem
segredos do coração ou se envolverem com sentimentos e emoções pessoais.
Com efeito, Mrs. Baroda reflete sobre a vontade de contar sua “loucura” ao
marido, mas logo desiste, concluindo que, além de ser uma mulher respeitável,
também era sensível, e sabia que havia batalhas na vida em que um ser
humano deveria lutar sozinho.
Nesse ponto da análise, é necessário discutir uma questão de
extrema importância no conto, que são as escolhas feitas por Mrs. Baroda,
uma vez que, a fim de manter as aparências de um casamento estável com
Gaston, ela parece renunciar ao desejo por Gouvernail. Na verdade, ao se
fazer uma comparação entre o relacionamento de Mrs. Baroda com o marido
que, como foi visto, era pautado por uma grande amizade e cumplicidade, e a
paixão avassaladora que sentiu por Gouvernail, o que parecia estar em jogo
era, além de um sentimento de insatisfação em relação ao casamento, a
necessidade de satisfação sexual por parte da protagonista, já que esse
aspecto não foi sequer mencionado durante a caracterização de sua vida
conjugal com Gaston.
O breve momento vivido por Mrs. Baroda, em que ela se deixa
levar pelo sentimento de desejo por Gouvernail, é explicado por Bender (1974,
p. 257) como uma situação típica da obra de Kate Chopin, em que uma
personagem desperta para um conhecimento extático de seu próprio ser
sexual, ou uma esposa, tendo se tornado consciente de que ela se ressente da
presença restritiva do marido e dos filhos a quem nunca amou, experimenta
pelo menos rápidos momentos dessa liberdade extática.
39
TOTH, Emily. Kate Chopin’s New Orleans years. In: New Orleans Review. 15.1, 1988, p. 53-
60.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
141
Sabe-se que a insatisfação feminina em relação ao casamento
também constitui um tema freqüente para a escritora, já que
her stories openly criticize the unnaturalness of institutionalized
marriage, but her characters do not contend with marriage in a
uniform way. Some accept it after considerable anguish; some
flee from it (even, like Edna Pontellier in “The awakening”, into
death), and some manage to find illicit but naturally innocent
nourishment outside of the marriage (BENDER, 1974, p. 262).
suas histórias criticam abertamente a falta de naturalidade do
casamento institucionalizado, mas suas personagens não
encaram o casamento da mesma maneira. Algumas o aceitam
depois de considerável sofrimento; outras fogem dele (até
mesmo, como Edna Pontellier em “The awakening”, por meio
da morte), e algumas tentam encontrar conforto ilícito, mas
naturalmente inocente, fora do casamento.
Reafirmando a noção de que é diante dos conflitos pessoais que
a mulher consegue construir sua identidade, apesar de parecer que o
comportamento da protagonista no desfecho do conto seria de aceitação e
conformismo com os preceitos sociais, seu discurso irônico e ambíguo na fala
final com o marido permite que o leitor o interprete como uma nova maneira de
encarar sua situação:
“I am glad, chère amie, to know that you have finally overcome
your dislike for him; truly he did not deserve it.”
“Oh,” she told him, laughingly, after pressing a long, tender kiss
upon his lips, “I have overcome everything! You will see. This
time I shall be very nice to him” (336).
“Eu estou feliz, cara amiga, em saber que você finalmente
superou sua antipatia por ele; ele verdadeiramente não merece
isso.”
“Oh,” ela disse a ele, sorridente, depois de dar um longo e
terno beijo em seus lábios, “eu superei tudo! você vai ver.
Dessa vez eu vou ser muito agradável com ele”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
142
É como se Mrs. Baroda deixasse sugerido que a sua escolha, a
partir dali, seria aquela que corresponde à terceira opção da passagem acima,
dando a entender que ela poderia ter optado por viver o romance com
Gouvernail e, dessa vez, estaria livre de pensamentos repressores que haviam
impedido tal atitude num momento anterior.
De acordo com esse argumento, é possível que, ao afirmar ter
superado tudo, a heroína poderia estar insinuando que estava disposta a
relevar, mais do que a aparente antipatia por Gouvernail (que corresponde a
uma leitura politicamente correta do conto), as objeções morais que a
impediam de vivenciar um romance extraconjugal e o medo de desrespeitar as
expectativas da sociedade a respeito da conduta de uma mulher casada. Em
outras palavras, ela poderia ter superado tanto a tentação como a inibição.
Tal possibilidade pode ser considerada devido ao fato de que a
estrutura do conto em questão revela-se narrando duas histórias como se
fossem uma só, entrelaçando-se de tal maneira que, enquanto uma delas
focaliza somente as atitudes da protagonista que são moralmente aceitas pela
sociedade, a outra se incumbe de revelar os verdadeiros pensamentos de Mrs.
Baroda, a partir da onisciência do narrador. O efeito de surpresa e a
ambigüidade do desfecho do conto aparecem exatamente quando os
conhecimentos do leitor, adquiridos por meio da história que não é socialmente
aceita, entram em confronto com a situação final da outra história, ou seja,
ambos podem ser utilizados para explicar o comportamento da protagonista.
Assim, a personagem feminina, ao assumir sua sexualidade e
considerar racionalmente a possibilidade de adultério, passaria a desempenhar
um papel diferente daquele que é aceito pelos valores sociais vigentes naquela
época, ou seja, ela deixaria de representar a mulher submissa que até então
fazia parte do comportamento feminino padrão e estabeleceria uma nova forma
de encarar as questões polêmicas que lhe dizem respeito, o que corrobora com
uma visão feminista de tais questões.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
143
4.4 – “A SHAMEFUL AFFAIR”
O conto, publicado pela primeira vez em 1891 no Times-
Democrat de New Orleans, conta a história de Mildred Orme, uma jovem bela
e inteligente que, ao passar uns dias na fazenda de parentes, sente-se atraída
por um trabalhador rude chamado Aber. Depois de algumas trocas de olhares,
Mildred vai até onde ele está pescando e ele a beija de forma ardente. Mildred
se deixa levar pelo desejo e até perde a noção de quantos beijos foram
trocados. Ela se sente culpada por ter gostado dos beijos e ele se desculpa por
seu atrevimento. Mas ela diz que gostaria de esquecer todo o episódio e que
só o perdoaria quando ela própria se perdoasse. Nesse conto, que foi recusado
por várias vezes antes de sua publicação, verifica-se, pela primeira vez, o
desejo feminino como tema central na obra de Kate Chopin, bem como o
sentimento de culpa que pode decorrer da situação.
A fim de revelar todas as nuances desse desejo feminino no
conto, um narrador onisciente faz a focalização a partir da perspectiva de
Mildred, mostrando o interesse inicial que ela começa a sentir pelo colono da
fazenda e desnudando, desde o início, a atração física que movia esse
interesse, como indica o seguinte fragmento:
He was young, and brown, of course, as the sun had made
him. He had nice blue eyes. His fair hair was disheveled. His
shoulders were broad and square and his limbs strong and
clean. A not picturesque figure in the rough attire that bared his
throat to view and gave perfect freedom to his every motion
(131).
ele era jovem e bronzeado, é claro, como o sol o tinha feito.
Ele tinha belos olhos azuis. Seus lindos cabelos estavam em
desalinho. Seus ombros eram largos e definidos e seus
membros fortes e bem formados. Uma figura nada pitoresca
nas vestes rústicas que mostravam o pescoço e davam
perfeita liberdade para cada movimento dele.
Com isso, Mildred mostra-se uma personagem feminina que
rompe com os padrões de comportamento socialmente aceitos, pois é ela
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
144
quem passa a observar o colono com atenção e a mostrar um interesse por
aquela figura tão atraente e intrigante:
Mildred did not make these several observations in the half
second that look at him in courteous acknowledgement. It took
her as many days to note them all. For she signaled him each
time that he passed her, meaning to give him a condescending
little smile, as she knew how (132).
Mildred não fez essas observações durante a fração de
segundo que olhou para ele em agradecimento cortês. Levou
vários dias para reparar em tudo. Ela fazia um sinal para ele
cada vez que ele passava por ela, com a intenção de dar um
pequeno sorriso condescendente, como ela sabia fazer.
A protagonista mostra-se uma mulher de atitudes avançadas para
seu tempo, indicando uma mudança de paradigmas, já que, numa sociedade
em que o papel da mulher era de passividade, não era comum uma jovem de
sua condição social demonstrar algum tipo de interesse por um homem rude
como Aber, mas sim, o contrário. Além disso, é ela quem toma a iniciativa de ir
conversar com ele mais adiante no desenrolar da trama, reforçando a idéia de
que a protagonista agia de maneira diferente das jovens de sua época.
É o que acontece logo no início do conto, no episódio em que o
narrador, focalizado na personagem feminina, comenta que os homens que
trabalhavam na fazenda chegavam para fazer a refeição na casa principal, e
Mildred nunca olhava para eles: “Why should she? Farmhands are not so nice
to look at, and she was nothing of an anthropologist”
40
(130). Esse trecho
também revela que, no início da história, Mildred tratava Aber com arrogância e
superioridade, procurando diminuir o interesse que sentia por ele, através de
pré-julgamentos em relação à sua condição social e financeira.
Também quando os pensamentos da protagonista evidenciam a
atração por Aber e a indignação por não estar sendo correspondida, um
discurso paralelo surge para disfarçar ou até mesmo negar tais sentimentos,
como nesta passagem em que o narrador comenta algumas prerrogativas e
características de uma garota como Mildred:
40
“Por que ela deveria? Os colonos não são tão bonitos de se olhar, e ela não era nenhuma
antropóloga”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
145
to be sure, clever young women of twenty, who are handsome,
besides, who have refused their half dozen offers and are
settling down to the conviction that life is a tedious affair, are
not going to care a straw whether farmhands look at them or
not (132).
para falar a verdade, as jovens de vinte anos, que são bonitas,
e que recusaram dúzias de propostas e que estão se
convencendo de que a vida é uma ocupação tediosa, não
estão nem aí se os colonos olham para elas ou não.
É evidente que o trecho permite entrever, com certa dose de
sarcasmo e ironia que, tanto para o narrador quanto para a própria autora,
aqueles que costumavam agir de modo a respeitar cegamente determinadas
regras sociais, acabavam por mostrar grande insatisfação com a própria vida,
encarando-a como algo tedioso. Esse comentário irônico permite verificar a
utilização concomitante de duas vozes distintas do narrador, sendo que uma
delas expõe as obrigações e expectativas que a sociedade procura incutir no
comportamento feminino, enquanto a outra está encarregada de revelar a
interioridade dos pensamentos e sentimentos da protagonista.
Levando em conta a presença dessas duas vozes, a idéia do
caráter duplo do conto também é visível em “A Shameful Affair”, pois, enquanto
os pensamentos e atitudes de Mildred são revelados em uma história, o que se
vê, ao mesmo tempo, na outra, é o julgamento moral que a sociedade faz das
situações do conto, evidenciando, muitas vezes em um mesmo parágrafo, a
influência dos valores da sociedade sobre os anseios pessoais da protagonista.
Trata-se do que Piglia (1994, p. 38) chamou de pontos de cruzamento entre as
duas histórias que compõem o conto que, nesse caso específico, expressam o
principal conflito da personagem feminina.
Paralelamente ao que se sabe sobre a sua intimidade mostra-se,
por exemplo, a forma com que Mildred pergunta à dona da fazenda sobre o
referido rapaz, manifestando uma impossibilidade de revelar o que ela estava
sentindo para qualquer outro membro daquela sociedade. Assim, a
protagonista procura mostrar sua antipatia por Aber, sentimento exatamente
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
146
oposto ao que sentia: “Well, he’s an extremely disagreeable-looking man. I
should think you’d be afraid to have him about, not knowing him”
41
(132).
Nesse confronto entre os valores pessoais e os sociais, o narrador
precisa encontrar meios para amenizar os sentimentos de Mildred em relação a
Aber, atribuindo o seu comportamento à influência de Satã e a elementos
naturais do ambiente da fazenda que, de acordo com essa visão, favoreceram
o clima de romance entre os dois:
and Mildred did not care, and the thing would not have
occupied her a moment if Satan had not intervened, in offering
the employment which natural conditions had failed to supply. It
was summer time; she was idle; she was piqued, and that was
the beginning of the shameful affair (132).
e Mildred não se importou, e aquilo não teria ocupado sua vida
nem um minuto se Satã não interviesse, oferecendo a
ocupação que as condições naturais não conseguiram suprir.
Era verão; ela estava desocupada; ela estava ressentida, e
aquilo parecia o começo de um romance vergonhoso.
Com o próprio título do conto sugere, “A Shameful Affair” faz parte
de um jogo de palavras com a expressão “love affair”, que é comumente
designada para se referir a um caso amoroso, tendo sido utilizada neste conto
como uma forma de depreciar a relação amorosa entre Mildred e Aber, uma
vez que, em um “shameful affair”, são considerados e até mesmo valorizados
certos aspectos relativos ao desejo e à sensualidade femininos que repercutem
negativamente para a moral da época.
O curioso é que, enquanto ela procurava, a todo o momento,
chamar a atenção do colono para si e menosprezar a sua figura, Aber nunca
havia sequer olhado para Mildred, o que a incomodava muito. Até que um dia,
ela vai ao seu encontro no rio onde ele pescava, tomando uma atitude que
violava as leis convencionais do comportamento feminino.
Simbolicamente, o rio representa, ao mesmo tempo, um
instrumento de liberação e a purificação preparatória à fecundidade
(CHEVALIER, 1995, p. 781). De certa forma, esse símbolo, juntamente com os
demais elementos da natureza que aparecem na história, como o trigo, por
41
“Ele é um homem de aparência extremamente desagradável. Eu acho que você deveria ter
medo de tê-lo por perto, sem conhecê-lo”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
147
exemplo, criaram toda uma aura de sensualidade para o encontro das duas
personagens do conto.
A simbologia do trigo parece ser ainda mais interessante para a
interpretação daquele momento único na vida de Mildred, em que vai beijar
alguém pela primeira vez, já que esse grão remete a Deméter, deusa da
fecundidade e iniciadora dos mistérios da vida (CHEVALIER, 1995, p. 906).
Sendo assim, o fato de o espaço do conto ser uma fazenda, lugar que
sabidamente simboliza a natureza em sua harmonia, desperta, principalmente
na personagem feminina, um sentimento de liberdade e, como conseqüência, a
descoberta de sua sexualidade: “In the woods it was sweet and solemn and
cool”
42
(133).
Nesse momento da narração, a personagem feminina é
representada por meio de palavras que remetem ao clima de sensualidade
daquele momento, exercendo, ao mesmo tempo, o papel crítico ao
comportamento desregrado da protagonista: “Her straw hat had slipped
disreputably to one side, over the wavy bronze-brown bang that half covered
her forehead. Her cheeks were ripe with color that the sun had coaxed there; so
were her lips”
43
(133). Em contraste com a caracterização da figura feminina,
Aber é retratado como forte, viril e seguro de si, além de quase não falar nada,
características que muito se aproximam do protótipo masculino ideal pregado
pela sociedade.
Ao observar o rapaz pescando, Mildred passa, então, a refletir
sobre o aparente estado de passividade de Aber naquele momento, divagando
sobre quanto tempo ele seria capaz de ficar sentado ali, à espera de um peixe
que fisgasse seu anzol. Tal reflexão remete à situação em que a protagonista
deveria se encontrar na história, já que ela, como representante da mulher no
conto, seria aquela a esperar passivamente pela abordagem da personagem
masculina.
42
“No mato estava agradável e misterioso e fresco”.
43
“Seu chapéu de palha tinha escorregado para um lado de maneira pouco decente, sobre a
ondulada franja castanho-acobreada que em parte cobria-lhe a testa. As maçãs de seu rosto
estavam vermelhas com a cor que o sol havia colocado lá; seus lábios também estavam
vermelhos”.
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FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
148
Mas o leitor, com a ajuda das descrições dos pensamentos da
protagonista, já foi anteriormente alertado para o seu anticonvencionalismo,
que torna, nesse trecho da história, a fazer parte de seu comportamento: “For
her part, the situation began to pall, and she wanted to change it at last”
44
(133).
Assim, por meio de um gesto que fugia completamente dos padrões previstos
para uma mulher, Mildred aproxima-se de Aber e toma a vara de pescar para
tentar pegar um peixe ou, em outras palavras, reconhece seu desejo e toma a
iniciativa de chegar até o rapaz, a fim de que o romance aconteça.
Nesse exato momento da narrativa, o leitor não conhece os
pensamentos de Mildred, mas percebe claramente que sua atitude foi
proposital, revelando uma habilidade para arquitetar um plano e se aproximar
do rapaz. Também é interessante destacar que Mildred, ao se aproximar de
Aber na beira do rio, abandona o livro que carregava até então, num ato que
sugere um abandono daquilo que a remetia à civilização e um avanço em
direção aos seus impulsos mais primitivos.
Também é interessante acrescentar que, nesse conto, a
protagonista lê autores como o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-
1906) e Browning, que pode ser Elizabeth Barret Browning (1806-1861), por
meio dos quais Kate Chopin estabelece um diálogo com o leitor. Tais escritores
também são conhecidos por abordar a condição feminina em suas obras, já
que Ibsen, principalmente em A Doll’s House, trata das obrigações familiares
e da vida de sacrifício das mulheres, enquanto Elizabeth Browning exalta,
principalmente em The Sonnets from the Portuguese, o amor pelo marido e
também poeta, Robert Browning (1812-1889). Assim, são apresentadas duas
atitudes femininas diferentes: de um lado uma personagem que abandona o lar
e de outro uma dedicada e apaixonada poeta, retratando pontos de vista
distintos a respeito da postura da mulher e revelando o principal conflito
presente no conto.
Sabendo que o ato de pescar representa, no sentido psicanalítico,
deixar jogar as forças espontâneas e colher seus resultados fortuitos
(Chevalier, p. 714), a atitude de Mildred também indica a necessidade de se
44
“De sua parte, a situação começou a ficar sem graça, e ela queria mudar aquilo de uma vez
por todas”.
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FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
149
viver o momento, com liberdade de ação, sem maiores preocupações com as
expectativas que os papéis sociais pré-concebidos impõem. Enquanto isso, a
conotação sexual que a vara de pescar carrega representa simbolicamente o
forte desejo que a aproximação entre essas duas personagens resultou. Assim:
he sprang to her side. With his eyes eagerly fastened on the
tense line, he grasped the pole to prevent her drawing it, as her
intention seemed to be. That is, he meant to grasp the pole, but
instead, his brown hand came down upon Mildred’s white one.
He started violently at finding himself so close to a bronze-
brown tangle that almost swept his chin – to a hot cheek only a
few inches away from his shoulder, to a pair of young, dark
eyes that gleamed for an instant unconscious things into his
own (134).
ele pulou para o lado dela. Com seus olhos impacientemente
fixos na linha esticada, ele agarrou a vara para impedir que ela
a puxasse, como parecia ser sua intenção. Na verdade, ele
pretendia agarrar a vara, mas, em vez disso, sua mão morena
desceu sobre a mão branca de Mildred. Ele se sentia tão
intensamente envolvido num corpo a corpo que quase foi
atingido no queixo – por uma face quente a apenas poucos
centímetros de seu ombro, e por um par de olhos negros e
inexperientes que cintilavam, por um instante, coisas
inconscientes dentro dos seus (134).
E quando eles finalmente se beijam, ela não recusa, nem resiste.
Mildred não soube nem dizer quantas vezes eles se beijaram. Ela apenas se
deixou levar pelo momento e não pensou em mais nada, mostrando que,
embora fosse uma jovem inocente, não conseguiu resistir aos seus instintos
mais primitivos, entregando-se aos beijos de Aber.
É interessante observar que é ele quem vai embora apressado e
deixa a protagonista sozinha com seus pensamentos confusos. Sua reação,
porém, não foi de indignação por ter sido beijada, como muitas jovens teriam
tido, e sim de vergonha de seu próprio desejo. Por outro lado, também pode-se
dizer que, aparentemente, essa vergonha tenha sido decorrente de seu
comportamento socialmente reprovável, motivo pelo qual ela resolveu guardar
segredo a respeito de tudo que havia vivido naquele lugar, até que pudesse se
esquecer dessa experiência tão marcante.
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FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
150
Na verdade, com a ajuda do narrador onisciente, o leitor sabe que
Mildred temia nunca mais se esquecer daquele momento, chegando a achar
que estava ficando louca, ao admitir ter adorado a sensação daquele beijo:
“Else why was that kiss the most delicious thing she had known in her twenty
years of life? The sting of it had never left her lips since it was pressed into
them. The sweet trouble of it banished sleep from her pillow”
45
(135).
O trecho também mostra que, de acordo com os valores sociais
vigentes, aquele que desafia as regras de conduta, como fez Mildred ao aceitar
seus impulsos e seu desejo pelo colono, passa por um processo de sofrimento,
decorrente da reflexão e do sentimento de culpa.
Apesar disso, pelo menos aparentemente, Mildred não deixou de
viver a sua vida e procurou fazer tudo como sempre havia feito na fazenda.
Esse comportamento mostra, mais uma vez, o movimento circular que as
personagens femininas realizam na obra de Kate Chopin, já que a jovem,
saindo de um estado de inocência e após ter passado por uma experiência de
amadurecimento pessoal tão rica e excitante, manifesta a necessidade de
retomar a rotina, mesmo sabendo que não era mais a mesma pessoa.
Seu comportamento só se alterava quando via Aber, pois nunca
mais ergueu os olhos ao avistá-lo, embora se sentisse como que bêbada em
sua presença. E nem mesmo após receber uma carta, que esclarecia a
verdadeira identidade de Aber que, na verdade, chamava-se Fred Evelyn e se
tratava de um aventureiro excêntrico procurando fazer coisas diferentes na
vida, Mildred não conseguia esquecer a vergonha que a torturava.
Com a utilização desse recurso, o narrador e, provavelmente, a
própria autora buscam meios de amenizar a situação da personagem perante o
público leitor, tentando aliviar sua culpa e justificando sua atração pelo rapaz, já
que Aber não era um vagabundo qualquer, mas sim um aventureiro que queria
experimentar um novo jeito de levar a vida. Isso ocorre porque, além do tabu
que envolve a sexualidade feminina, existiam também outros impedimentos
para o romance das duas personagens do conto.
45
“Por que aquele beijo foi a coisa mais deliciosa que ela havia conhecido nos vinte anos de
sua vida? A marca dele não havia deixado seus lábios em nenhum momento desde que
sentiram a pressão daquele beijo. Esse doce problema tirou o sono de seu travesseiro”.
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FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
151
Um desses impedimentos, que já foi mencionado nesta análise,
diz respeito à diferença de classes entre Mildred e Aber que, até determinado
ponto da história, constituiu, juntamente com o preconceito racial, uma
importante forma de discriminação entre as personagens do conto. O curioso é
que, depois de ter passado por toda essa experiência, Mildred deixa de tratar
Aber, ou Fred, com arrogância, o que permite confirmar o amadurecimento da
jovem protagonista. Na verdade, o fato de ter havido uma forte atração entre
Mildred e Aber já denota que nenhum desses preconceitos presentes na
sociedade foi suficiente para afastá-los, revelando que as idéias da escritora
em relação ao assunto reafirmam que o desejo fala mais alto do que as
convenções sociais.
Finalmente, quando os dois se reencontram, sem querer, em meio
ao campo de trigo, o rapaz se desculpa pelo ocorrido, afirmando ser a pessoa
mais desprezível da face da terra e perguntando se algum dia ela iria perdoá-
lo, ao que Mildred responde: “’Some day,’ she repeated, almost inaudibly,
looking seemingly through him, but not at him – ‘some day – perhaps; when I
shall have forgiven myself’ “
46
(136). Ao utilizar essas palavras, a protagonista
revela, em um desfecho ambíguo, que ela não se perdoava por ter gostado dos
beijos e não por ter ficado com o colono. Com isso, a jovem assume
igualmente a responsabilidade do ocorrido, e não nega ter tomado
determinadas atitudes que contribuíram para o desfecho do caso.
O conto focaliza o desejo feminino, expresso de maneira um
pouco mais avançada do que em “A Respectable Woman”, já que nessa
história a atração chega a ser concretizada em forma de beijos ardentes. Por
outro lado, o pedido de desculpas de Aber e o sentimento de culpa que ambos
manifestaram diante da situação funcionam, mais uma vez, como a obrigação
social de obedecer às regras impostas, configurando um importante conflito
entre o respeito aos sentimentos e desejos pessoais e a aceitação das regras
da sociedade.
46
“’Um dia,’ ela repetiu, quase inaudível, olhando aparentemente através dele, mas não para
ele – ‘um dia – talvez; quando eu conseguir perdoar a mim mesma’”.
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152
4.5 – “WISER THAN A GOD”
Um dos primeiros contos escritos por Kate Chopin, “Wiser Than a
God” foi publicado em 1889 pelo Philadelphia Musical Journal, e é
considerado por muitos críticos como um exemplo de feminismo declarado,
pois “contém sua mais sincera demonstração de mulher auto-suficiente”
(SEYERSTED, 1980, p. 117). A personagem principal é Paula Von Stoltz, uma
talentosa pianista clássica que precisa trabalhar fora, tocando música popular
nas casas mais ricas da cidade para sustentar a mãe viúva. Em uma noite fria
de novembro, Paula vai tocar piano na casa de George Brainard, que se
apaixona por ela. Apesar de pertencer a uma família muito rica (o que
resolveria os problemas de Paula quanto à falta de dinheiro) e de deixar claras
as suas intenções de permitir que ela seguisse a carreira após o casamento,
George não consegue convencer a jovem a aceitá-lo como marido. Ela, que
também demonstra estar apaixonada pelo rapaz, prefere ignorar seus próprios
sentimentos e partir para Leipsic para dedicar-se à carreira, juntamente com
seu eterno apaixonado professor, que também espera pacientemente que ela
mude de idéia a respeito do casamento.
Logo de início, é importante destacar que esse conto, talvez por
ter sido um dos primeiros da carreira da escritora, não apresenta a mesma
preocupação em relação à construção de uma estrutura mais elaborada, capaz
de disfarçar certas situações polêmicas da história, como os contos estudados
anteriormente. Trata-se de uma narrativa mais simples, direta, sem muitos
recursos visando camuflagens ou ambigüidades, que conta com uma
caracterização de personagens menos rica, principalmente no que diz respeito
aos aspectos psicológicos. Por outro lado, a ênfase da narrativa recai sobre o
desenvolvimento do tema proposto, que é a postura da personagem feminina
diante da escolha entre a carreira e o casamento.
Paula é uma personagem feminina que representa um
rompimento com os paradigmas tradicionais, pois se comporta de maneira
bastante peculiar para uma mulher de seu tempo, privilegiando sua carreira
acima de qualquer sentimento ou imposição social e conseguindo exercer
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
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153
controle total sobre sua vida, tendo, inclusive, que abrir mão do amor para
poder se entregar ao trabalho. Há em seu comportamento, um misto de
independência e espírito de iniciativa, que contrasta com os modos da maioria
das moças de sua idade, como em:
The rooms commenced to fill with the pretty hub-bub that a
bevy of girls can make when inspired by a close masculine
proximity; and Paula, not waiting to be asked, struck the
opening bars of an inspiring waltz (42-43).
As salas começaram a encher com o agradável tumulto que
um pequeno grupo de garotas fazem quando inspiradas por
uma aproximação masculina; e Paula, sem esperar uma
solicitação, começou a tocar os compassos iniciais de uma
valsa inspiradora.
Tais atitudes são responsáveis por caracterizá-la como uma
mulher à frente de seu tempo, numa alusão à sua tendência a desobedecer às
regras e agir conforme sua própria vontade. Dessa forma, diferentemente das
demais, ela é descrita como uma jovem bastante dedicada ao trabalho e
disposta a fazer sacrifícios para sustentar a casa e a mãe doente. Sua postura
diante da vida reflete muita racionalidade, frieza e determinação, características
muitas vezes associadas ao masculino pela sociedade tradicional e que podem
ser verificadas nas seguintes passagens, em que Paula expõe suas idéias
sobre sua profissão à mãe (duas primeiras citações) e a George:
“And to what purpose, Mutterchen? The task is not entirely to
my liking, I’ll admit; but there can be no question as to its
results, which you even must concede are gratifying” (39).
“The pot must be kept boiling at all hazards, pending the
appearance of that hoped for career. And you forget that an
occasion like this gives me the very opportunities I want” (39).
“You forget,” she said, smiling into his face, “that I was trained
to it. I must keep myself fitted to my calling. Rest would mean
deterioration.” (45)
“E qual é o propósito, mamãe? A tarefa não é inteiramente do
meu gosto, eu admito; mas não se deve questionar quanto aos
seus resultados, que até mesmo você reconhece que são
gratificantes”.
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FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
154
“Precisamos manter a panela cheia a qualquer custo, mas
tendo sempre em mente a carreira sonhada. E você se
esquece que uma ocasião como essa me dá as oportunidades
que eu quero”.
“Você se esquece,” ela disse, sorrindo para ele, “que eu fui
treinada para isso. Eu devo me manter preparada para a minha
vocação. Descanso significa deterioração”.
Talvez por serem reveladas de forma clara e objetiva certas
características da personalidade da protagonista que remetem à idéia de um
excessivo racionalismo de sua parte, ou pelo fato de ela precisar, a todo o
momento, demonstrar sua força e coragem diante das adversidades da vida,
Paula tenha se tornado, aos olhos do leitor, uma personagem um tanto fria,
sem muito brilho e quase artificial, diferente das demais protagonistas
abordadas anteriormente. Tal visão a seu respeito deve-se, principalmente,
pelo fato de sua caracterização ter sido feita muito mais a partir de suas ações
e discurso na história do que por seus pensamentos e sentimentos, que
permaneceram inexplorados no decorrer de quase toda a narrativa.
Isso ocorre porque, especificamente nesse conto, o narrador
onisciente permanece um pouco mais oculto do que na maioria das histórias
analisadas, priorizando o uso do recurso da cena, que tem a função de
reproduzir exatamente o discurso das personagens e a partir da qual o leitor
passa a ver a história de maneira direta, fator que praticamente elimina o
acesso aos estados mentais das personagens. Com efeito, a narrativa é
pautada por uma grande quantidade de diálogos, que “é a forma mais mimética
de representação da voz das personagens” (REIS, 1988, p. 237), mas que
quase não fornece elementos a respeito da interioridade dessas personagens,
a não ser aqueles que podem ser percebidos por meio de suas falas,
permitindo somente uma caracterização indireta delas. Tal estratégia é utilizada
não somente nos diálogos entre mãe e filha no início do conto, mas, sobretudo,
naqueles que envolvem Paula e George, quando são reveladas as principais
diferenças entre eles no modo de encarar a vida, o amor e a carreira.
Segundo Dyer (1981, p. 218), também a imagem da noite que,
simbolicamente falando, aparece representada no conto como sombria e fria,
funciona como um complemento artificial para a descrição da pobre, triste e
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
155
melancólica vida de Paula e sua mãe. Dessa maneira, a alusão à noite de
novembro, quase sempre associada a elementos lúgubres, serve como uma
maneira de reforçar a condição de carência das duas personagens e de
estabelecer um contraste com a riqueza e o modo de vida refinado da família
de George, sugerindo que um casamento com o rapaz asseguraria o futuro da
jovem.
Há, porém, alguns momentos importantes da narrativa em que os
diálogos são substituídos pelo uso da onisciência seletiva que, naturalmente
ilumina a personagem feminina principal e sua subjetividade. Quando isso
ocorre, é possível, por exemplo, perceber mais intimamente a boa impressão
que Paula teve a respeito de George na primeira vez em que se encontraram e
a admiração que sentiu por ele nessa mesma noite, enquanto caminhavam
lado a lado em direção à casa da jovem pianista.
The situation was new. It gave her a feeling of elation to be
walking through the quiet night with this handsome young
fellow. He talked so freely and so pleasantly. She felt such a
comfort in his strong protective nearness. In clinging to him
against the buffets of the staggering wind she could feel the
muscles of his arms, like steel (44).
A situação era nova. Deu a ela uma sensação de alegria
caminhar através da noite tranqüila com esse jovem e belo
rapaz. Ele falava tão livre e agradavelmente. Ela sentiu um
certo conforto com sua presença forte e protetora. Ao se
segurar a ele para se proteger contra as fortes rajadas do
vento cortante, ela pôde sentir os músculos de seus braços,
como aço.
Antes de discutir a citação propriamente dita, é importante
ressaltar a alusão feita a partir da visão da personagem refletora (que também
é a protagonista Paula) em relação à rigidez dos músculos dos braços do
rapaz, que pressupõe um significado de conotação sexual evidente, sugerindo
a atração e a sensação de desejo físico que Paula estaria sentindo por George
naquele momento. Mais uma vez, Kate Chopin dá a uma de suas personagens
femininas a capacidade de acordar para a própria sexualidade.
Essa clara demonstração de interesse e admiração da
protagonista pelo rapaz contrasta com a determinação e a frieza evidenciadas
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
156
por suas atitudes no início da história, desenvolvendo um tipo de
comportamento que pode ser mais uma vez traduzido pela presença de um
sentimento duplo, caracterizado na nomenclatura de Gilbert (1984, p. 70) pela
claustrophobia (the desire for walls, for reassurance, for love and certainty) e
pela agoraphobia (the fear of prisonlike walls and locks)
47
.
Tal duplicidade, que também aparece na análise do conto
“Madame Célestin’s Divorce” (p. 125-126) desta tese, pode ser explicada pelo
fato de Paula, ao mesmo tempo em que desejava ser livre para se dedicar à
sua carreira, também manifestava uma vontade de se sentir protegida e amada
por George. Diante de tal constatação, pode-se afirmar que, aparentemente
concordando com os papéis sociais impostos, a caracterização da figura
masculina no conto procura ressaltar, de certa maneira, atributos que lhe
conferem força e capacidade de proteção, bem ao gosto da sociedade
patriarcal, enquanto, mais uma vez, tenta-se evidenciar a mulher por sua
fragilidade e necessidade de se sentir protegida.
Apesar disso, o que se vê é que, mesmo tendo assumido esse
sentimento em relação a George, Paula descarta completamente a
possibilidade de aceitar a proposta de casamento e parte para uma carreira de
sucesso, revelando-se uma personagem feminina que representa a mulher que
atua fora dos padrões da sociedade do século XIX, pois nega a manutenção
dos valores tradicionais que tolhem a liberdade das mulheres em relação ao
seu próprio destino. Assim, o conto enfoca a mulher independente que, assim
como Paula, é capaz de se manter fora do casamento, da mulher que não se
distancia do seu objetivo de vida e que vê a carreira acima de qualquer coisa,
inclusive do amor. Esse argumento pode ser comprovado em vários diálogos
entre a protagonista e George:
“I can’t marry you,” she said shortly, disengaging his hand from
her waist.
“Why?” he asked abruptly. They stood looking into each other’s
eyes.
“Because it doesn’t enter into the purpose of my life” (46).
47
Agoraphobia é o desejo por muros, por segurança, por amor e certezas; claustrophobia é o
medo dos muros e trancas que representam a prisão.
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FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
157
“What do you know of my life,” she exclaimed passionately.
“What can you guess of it? Is music anything more to you than
the pleasing distraction of an idle moment? Can’t you feel that
with me, it courses with the blood through my veins? That it’s
something dearer than life, than riches, even than love?” with a
quiver of pain (46).
“Would you go into a convent, and ask to be your wife a nun
who has vowed herself to the service of God?”
“Yes, if that nun loved me; she would owe to herself, to me and
to God to be my wife” (47).
“Eu não posso me casar com você,” ela disse de maneira
direta, livrando seu pulso da mão dele.
“Por quê?” ele perguntou abruptamente. Eles ficaram se
olhando nos olhos.
“Porque isso não faz parte do propósito da minha vida”.
“O que você sabe da minha vida?” ela exclamou
veementemente.
“O que você pode supor a respeito dela? A música é pra você
algo mais do que a distração agradável de um momento de
lazer? Você não percebe que, para mim, ela corre junto com o
sangue nas minhas veias? Que ela é algo mais precioso do
que a vida, do que riquezas, até mesmo do que o amor?” com
um estremecimento de dor.
“Você iria a um convento, e pediria para ser sua esposa uma
freira que fez votos para o serviço de Deus?”
“Sim, se essa freira me amasse; ela deveria a ela mesma, a
mim e a Deus para ser minha esposa”.
Tendo em vista as passagens acima citadas, em que a posição de
Paula diante de seu objetivo profissional é vista como mais importante do que
qualquer outra coisa, inclusive o amor que sentia por George, é importante
evidenciar que há duas formas de se interpretar tal situação.
A primeira delas pode ser entendida como uma maneira de tornar
a história menos impactante para o público, já que o tema da mulher
emancipada era pouco aceito na época, a escritora procura amenizar a frieza e
o excesso de racionalidade demonstrados inicialmente pela protagonista,
fazendo com que ela se apaixonasse e sofresse por não poder viver o seu
amor em nome da carreira. Isso precisa funcionar como uma espécie de
punição para a protagonista que, de acordo com os valores tradicionais, deve
pagar um alto preço por escolher a profissão e abdicar do casamento. É como
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
158
se, quando finalmente é retratada uma personagem feminina que consegue
sobrepor sua vontade à da sociedade, ela necessite parecer triste, amarga e
sem brilho, já que representa o tipo de mulher que, por conseguir a realização
pessoal, não deve fazer parte do quadro social e merece viver uma vida
solitária.
Nesse sentido, também vale ressaltar a forma com que a
personagem Paula é retratada em certos momentos cruciais da narrativa, em
que sempre se busca mostrar um desequilíbrio emocional de sua parte. É o
caso da passagem na qual George, ao discutir com Paula sobre a possibilidade
de conciliar casamento e carreira, chega a afirmar que ela estava falando como
uma louca, insinuando a total falta de controle sobre seus sentimentos.
Também quando o rapaz, depois de uma semana de espera, chega à casa de
Paula para ouvir sua decisão final de casar-se ou não com ele e descobre que
ela havia fugido para Leipsic, também revelando um comportamento um tanto
precipitado e irracional. Tais exemplos são tentativas de desvalorização da
figura da protagonista, de torná-la menos simpática, além de amenizar o seu
anticonvencionalismo e de questionar a respeito de suas razões para tomar
determinadas atitudes, a fim de que o enredo da história se mostre mais
adequado ao público leitor da época, acostumado com a leitura de textos em
que as personagens que não agem de acordo com os valores sociais é
castigada.
De certa forma, também a escolha da profissão de Paula, ligada à
arte, pode ter sido proposital no sentido de tornar um pouco mais leve essa
decisão da protagonista em optar pela carreira, já que tal atitude se mostraria
muito mais difícil se a profissão em questão fosse qualquer outra. Isso pode ser
ilustrado no conto pela maneira com que Paula foi incentivada por seus pais e
professores a praticar seu talento ao piano, pois, mesmo representando uma
época em que a maioria das mulheres não tinha acesso aos estudos, ela
conseguiu seguir adiante na carreira e obter sucesso.
Por outro lado, numa leitura mais feminista, a atitude de Paula
pode ser entendida como um ato consciente em relação ao preço que a mulher
tem que pagar por sua liberdade e pela satisfação de seus desejos, já que,
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FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
159
para Kate Chopin, “(...) the freedom and ecstasy of self-affirmation are
necessarily accompanied by isolation”
48
(BENDER, 1974, p. 260). Partindo
dessas considerações, a expressão “quiver of pain” representa a dor da
protagonista, ao saber que teria que abdicar de seu amor por George em nome
de sua carreira profissional.
Nature and man dictate the life of a woman, and independence
is much harder to obtain and much more of a curse for her than
for the man, because she must justify an untraditional existence
against the heaviest possible odds (SEYERSTED, 1988, p. 29).
A natureza e o homem ditam a vida de uma mulher, e a
independência é muito mais difícil de obter e muito mais uma
desgraça para ela do que para o homem, porque ela deve
justificar uma existência não tradicional contra as mais
pesadas e possíveis desigualdades.
Partindo dessas considerações, o conto em questão reforça, mais
uma vez, a idéia de que o conflito entre os desejos pessoais e os valores
sociais aparece como tônica da obra de Kate Chopin. Nesse caso em
particular, o conflito manifesta-se pela existência de uma forte oposição entre
carreira e casamento, bem como pela impossibilidade de uma mulher
conseguir harmonizar tais interesses já no século XIX. Como foi visto no
capítulo 2, o maior problema das mulheres era justamente essa dificuldade em
conciliar as funções familiares e o trabalho, pois para a sociedade, os papéis
de esposa e de mãe deveriam ser os mais importantes. Dessa forma, após o
casamento e, principalmente com a maternidade, a mulher tenderia a ficar
completamente envolvida com os assuntos domésticos e não teria condições
de se dedicar à vida profissional.
Tal questão surge no enredo do conto, durante uma discussão
entre as personagens principais, pois, enquanto George afirma que Paula seria
capaz de lidar com as duas coisas ao mesmo tempo, a jovem protagonista,
mesmo sem verbalizar abertamente, recusa essa possibilidade, por acreditar
ser incompatível a conciliação entre amor e trabalho, principalmente quando se
trata do sexo feminino. Essa visão, que fica apenas sugerida em suas palavras,
48
“(...) a liberdade e o êxtase da auto-afirmação estão necessariamente acompanhadas pelo
isolamento”.
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160
pode ser comprovada no final do conto, quando o narrador descreve a vida
conjugal de George, algum tempo depois da decepção amorosa com Paula:
George Brainard is as handsome as ever, though growing a
little stout in the quiet routine of domestic life. He has quite lost
a pretty taste for music that formerly distinguished him as a
skilful banjoist. This loss his little black-eyed wife deplores;
though she has herself made concessions to the advancing
years, and abandoned Virginia break-downs as incompatible
with the serious offices of wifehood and matrimony (47).
George Brainard está belo como sempre, apesar de estar
ficando um pouco mais robusto com a rotina silenciosa da vida
doméstica. Ele perdeu completamente o gosto pela música que
antes o destacava como um habilidoso tocador de banjo. Essa
perda foi muito sentida por sua pequena esposa de olhos
negros; apesar de ela própria também ter feito concessões
com o passar do tempo, e abandonado as danças folclóricas
da Virgínia por não serem compatíveis com a seriedade da
condição de esposa e do casamento.
A citação acima permite que o leitor reflita sobre a referência à
rotina silenciosa de George sem Paula. É como se ele, ao ter sido rejeitado por
ela, tivesse perdido o gosto não só pela música, já que parou de tocar o banjo,
mas também pelo amor e pela vida.
Também é importante frisar que a atitude da esposa de George,
de abandonar a dança a que se dedicava antes de se casar, expressa
exatamente essa impossibilidade de conciliação entre carreira e casamento,
descrita no decorrer da história e defendida pela personagem principal com
tanto vigor.
Recorde-se que o fato de a própria escritora ter iniciado
tardiamente sua carreira, com mais de 35 anos, somente depois de ter ficado
viúva e de ter criado os seis filhos que teve, pode ter sido determinante para a
concepção de certos valores relativos ao casamento e à maternidade no conto
em questão, uma vez que, também para Kate Chopin parece ter sido
impraticável exercer, ao mesmo tempo, o papel de mãe, de esposa e ser uma
escritora de sucesso.
É importante destacar que cabe ao próprio título do conto, assim
como à epígrafe (“To love and be wise is scarcely granted even to a god.” Latin
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161
proverb)
49
, expressar a idéia da dificuldade em escolher entre a carreira e o
amor, deixando transparecer, inclusive com uma dose de ironia, que a decisão
da protagonista teria sido sábia, ao abrir mão do casamento e da maternidade
para privilegiar sua carreira. Vale ressaltar também que, com essa postura
decidida diante do futuro, Paula consegue atingir o sucesso e despertar a
admiração de duas personagens masculinas da história, mostrando a
consciência da escritora de que a mulher precisava ter seus próprios interesses
para se tornar um ser humano completo, sem esperar que outros fizessem algo
para a sua felicidade ou que tomassem as rédeas de sua vida.
Apesar de ser um dos primeiros contos de Kate Chopin, “Wiser
Than a God” já antecipava a tendência temática da escritora em seus últimos
textos, abordando uma representante da “New woman” americana, uma mulher
solteira e emancipada, que vive sozinha e tem profissão, que sabe o que quer
e segue seu caminho, independentemente de um marido.
49
“Conseguir amar e ser sábio é dificilmente permitido, até mesmo para um deus.” – Provérbio
latino.
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162
4.6 – “A PAIR OF SILK STOCKINGS”
Publicado pela primeira vez na revista Vogue, em setembro de
1897, o conto relata a história de Mrs. Sommers, uma pobre e dedicada mãe
que, ao se ver em posse de quinze dólares que, para ela, representava uma
boa quantia em dinheiro, começa a imaginar o que poderia comprar para seus
filhos. Porém, seu instinto de auto-sacrifício é superado por uma necessidade
de satisfação pessoal, e ela acaba gastando todo o dinheiro, comprando meias
de seda e outros objetos para si, fazendo uma boa refeição em um restaurante
e assistindo a uma peça de teatro.
Assim como no conto anteriormente analisado, Kate Chopin opta
pelo desenvolvimento de um tema polêmico por meio de uma estrutura
narrativa que o discute de maneira mais direta. Ao trabalhar a questão da
necessidade socialmente aceita de que a mulher tem de cuidar dos outros,
esquecendo-se de si mesma, a escritora cria uma personagem que desafia os
padrões de comportamento feminino.
Com a ajuda do narrador, mais uma vez onisciente em grande
parte da história, como será visto posteriormente, o leitor tem acesso à maioria
dos pensamentos da protagonista, principalmente aqueles que são moralmente
aceitos pela sociedade, enquanto que outros permanecem obscuros,
promovendo certo mistério em relação a essa personagem. Inicialmente, seus
pensamentos revelam uma grande preocupação de sua parte em gastar o
dinheiro de maneira consciente, para que não houvesse arrependimento mais
tarde:
the question of investment was one that occupied her greatly.
For a day or two she walked about apparently in a dreamy
state, but really absorbed in speculation and calculation. She
did not wish to act hastily, to do anything she might afterward
regret (500).
a questão do investimento era uma que a absorvia por inteiro.
Por um dia ou dois ela andou aparentemente em um estado de
devaneio mas estava, na realidade, absorvida pela
especulação e pelos cálculos. Ela não queria agir
apressadamente, fazer algo de que pudesse se arrepender
depois.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
163
Seu objetivo era gastar o dinheiro em roupas para os filhos, já que
as antigas estavam muito usadas e até remendadas. Mrs. Sommers havia
escolhido mentalmente cada peça, de acordo com a necessidade das crianças.
Assim, a mãe planejou comprar um par de sapatos para Janie, metros e metros
de tecido de algodão para fazer novas camisas para os meninos e para as
meninas, um vestido novo para Mag e dois pares de meia para cada um deles,
além de bonés para os meninos e chapéus de marinheiro para as meninas.
É interessante notar que, a princípio, Mrs. Sommers mostra-se
muito excitada ao imaginar sua família vestindo roupas elegantes e novas pela
primeira vez, já que a situação da família era bem precária e a simples visão do
futuro chegava a amedrontar essa mãe, que não parecia ter esperanças em
uma vida melhor.
Quanto ao seu passado, tudo indicava que a heroína já havia tido
uma condição financeira diferente, uma vez que os comentários da vizinhança
remetiam a dias melhores: “The neighbors sometimes talked of certain ‘better
days’ that little Mrs. Sommers had known before she had ever thought of being
Mrs. Sommers”
50
(500). Entretanto, como a própria Mrs. Sommers evitava
pensar no passado que, para ela, significava uma “morbid retrospection”, as
informações sobre esse período de sua vida permaneceram obscuras,
deixando uma atmosfera misteriosa a respeito da protagonista e dando
margem para que o leitor desconfie de suas atitudes na história. Também não
há qualquer menção à presença do marido de Mrs. Sommers, o que pode
indicar que a heroína do conto poderia estar viúva ou mesmo separada.
O mistério em torno dessa personagem também é reforçado pelo
fato de terem sido utilizadas aspas na expressão “dias melhores” para
descrever a antiga situação da jovem senhora. Além disso, as circunstâncias
em que Mrs. Sommers conseguiu o dinheiro não ficam claras na história, fato
que contribui para a permanência desse mistério a seu respeito. Isso ocorre
porque o leitor só tem acesso ao que o narrador permite mostrar a respeito da
intimidade dessa personagem e, como não foi possível conhecê-la a fundo,
50
Os vizinhos às vezes comentavam sobre certos “dias melhores” que a pequena senhora
Sommers tinha conhecido antes de ter sequer imaginado tornar-se a senhora Sommers.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
164
torna-se arriscado inferir mais do que aquilo que foi dito a respeito de seu
passado ou de seu futuro.
A passagem acima citada somente permite afirmar que, por ter
vivido dias melhores, Mrs. Sommers já havia tido contato com as coisas boas
da vida e que, depois de casada e, principalmente depois de ter os filhos,
passou a pensar somente no bem-estar de sua família, fazendo todo tipo de
sacrifício pessoal para eles e deixando, inclusive, de pensar em si mesma. É
também o que se pode depreender quando se lê: “She had swallowed a light
luncheon – no! when she came to think of it, between getting the children fed
and the place righted, and preparing herself for the shopping bout, she actually
forgotten to eat any luncheon at all!
51
” (501).
O narrador utiliza essa informação com dupla finalidade: como
uma forma de mostrar a preocupação de Mrs. Sommers com a família e,
sobretudo, para justificar as atitudes nada convencionais que a protagonista irá
tomar logo mais, uma vez que, por não ter se alimentado, ela passa a se sentir
zonza e um pouco fora de si. Com a frase: “But that day she was a little faint
and tired”
52
(501), o narrador procura atribuir os comportamentos da
protagonista a esse estado de torpor e de tontura, visto que, mais uma vez, é
preciso aliviar o peso de suas atitudes, pois não se espera que uma mulher
tenha o pensamento mais voltado para sua auto-satisfação do que para sua
família, como fez Mrs. Sommers.
O leitor é, então, conduzido a observar uma espécie de gradação
no comportamento da heroína, que vai desde o altruísmo até a satisfação de
seus desejos pessoais. Suas atitudes começam a mudar quando a
protagonista deixa-se levar por essa onda de torpor, senta-se no banco de uma
loja, tentando encontrar forças para entrar no meio de uma multidão de
pessoas que querem comprar mercadorias em liquidação, e começa a sentir
um abandono de suas forças, até que, sem querer, toca um objeto macio,
numa cena assim descrita:
51
“Ela havia engolido um lanche rápido – não! Quando ela pensou nisso, entre alimentar as
crianças e arrumar a casa, e preparar-se para a peleja nas lojas de liquidação, ela na realidade
havia esquecido de tomar o lanche!”
52
“Mas naquele dia ela estava um pouco zonza e cansada”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
165
An all-gone limp feeling had come over her and she rested her
hand aimlessly upon the counter. She wore no gloves. By
degrees she grew aware that her hand had encountered
something very soothing, very pleasant to touch. She looked
down to see that her hand lay upon a pile of silk stockings
(501).
Um sentimento de entrega e fraqueza tinha tomado conta dela,
que soltou seu braço relaxadamente sobre o balcão. Ela não
estava usando luvas. Aos poucos, percebeu que sua mão
havia encontrado alguma coisa muito suave, muito agradável
ao toque. Ela olhou para baixo para ver que sua mão estava
sobre uma pilha de meias de seda.
Como o próprio título do conto sugere, essas meias de seda
exercem um papel fundamental na história, pois funcionam como um elemento
provocador da onda de auto-satisfação que toma conta de Mrs. Sommers e o
contato com o objeto macio desencadeia a necessidade de sentir pelo tato (que
é o sentido em que se usa o corpo), conduzindo-a a uma redescoberta do seu
corpo e, conseqüentemente, despertando-a para a própria existência e para a
importância de sua figura. Essa sensação de importância já havia sido
mencionada no início do conto, quando, a partir da visão do narrador, é
descrita a satisfação e a euforia da protagonista em relação à posse dos quinze
dólares, podendo também ser comprovada, um pouco mais adiante na história,
pelo fato de que, ao ser atendida pela vendedora do departamento de lingerie,
Mrs. Sommers sente-se como se estivesse examinando uma tiara de
diamantes, tamanho o prazer daquele momento.
Nesse ponto da narrativa, é notória a preocupação do narrador (e
da própria escritora) em suavizar a sensualidade do momento, bem como de
amenizar a atitude incomum da protagonista ao valorizar demais um objeto de
consumo e tratá-lo com tamanho deslumbramento e excitação. Por isso, logo
aparece a voz encarregada de representar a sociedade, sobretudo aquela que
prega os valores judaico-cristãos de desapego aos bens materiais e auto-
sacrifício. Nesse sentido, Kunf (1991, p. 8) confirma que as caracterizações de
Chopin desafiaram não só as limitações sulistas tradicionais e as expectativas
impostas à mulher, mas também aquelas limitações influenciadas pela Igreja
Católica Romana.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
166
Baseado nesses valores, a meia de seda, que por si só já pode
ser considerada como um símbolo fálico, é comparada a uma serpente e o
comportamento da heroína é visto como pecaminoso, haja vista a conotação
sexual que a palavra serpente também traz neste trecho:
But she went on feeling the soft, sheeny luxurious things – with
both hands now, holding them up to see them glisten, and to
feel them glide serpent-like through her fingers.
Two hectic blotches came suddenly into her pale cheeks (501).
Mas ela continuou tateando esses objetos macios e
luxuriosamente brilhantes – agora com as duas mãos,
segurando-as no alto para vê-las cintilar, e sentindo-as deslizar
como serpentes por entre seus dedos.
Duas manchas vermelhas de excitação apareceram de repente
em suas pálidas maçãs do rosto.
Em Chevalier (1995, p. 814), o simbolismo da serpente vem
confirmar a aura de mistério a respeito dos pensamentos da protagonista nesse
momento da trama, já que o réptil, apesar de sua simplicidade, encarna a
psique inferior, o psiquismo obscuro e misterioso. Nesse sentido, ainda em
Chevalier (1995, p. 815), a serpente é vista como enigmática e secreta, sendo
impossível prever-lhe as decisões, que são tão súbitas quanto as suas
metamorfoses. Dessa forma, a serpente está sendo utilizada como uma
maneira de atribuir a culpa pelas atitudes da protagonista a algo exterior a ela e
desviar o foco da necessidade de auto-satisfação da mulher, já que a serpente
pode ser interpretada como o símbolo da tentação e da sedução.
Essa idéia de pecado, que o uso da palavra serpente sugere na
citação, é intensificada pelo emprego em conjunto com um outro vocábulo,
“luxurious”, que remete a um dos sete pecados capitais, justamente aquele que
repudia o “comportamento desregrado com relação aos prazeres do sexo”
(HOUAISS ELETRÔNICO, 2001). Tudo indica que o simbolismo da serpente
no conto, deve estar associado mesmo à luxúria, uma vez que esse animal,
“tendo sido o mais esperto de todos os animais e tendo seduzido o pudor
virginal de Eva, inspirou-lhe o desejo do coito bestial e de toda a impudência e
de toda a prostituição bestial dos homens”
53
(apud CHEVALIER, 1995, p. 824).
53
BOEHME, Jacob. Mysterium magnum. Trad. N. Berdiaeff, 2 vols., Paris, 1945, p. 250.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
167
Com isso, o texto sugere que Mrs. Sommers, ao tocar esse
objeto macio que evoca a maçã do pecado original, é despertada para sua
condição de indivíduo e, sobretudo de mulher, esquecendo-se de suas
obrigações como mãe por um breve período de tempo. Tais evidências revelam
que a protagonista passou a se ver como uma pessoa e sentir-se realmente
viva, o que coincide com o único momento da história em que ela pronuncia
algumas palavras: “Do you think there are any eights-and-a-half among
these?”
54
Mas, como “a serpente acusada de todos os pecados é a
orgulhosa, a egoísta, a avarenta” (CHEVALIER, 1995, p. 824), a utilização
dessa palavra em um discurso que deve ser socialmente aceito, pelo menos
em sua aparência, precisa sugerir que tais características negativas sejam
atribuídas a Mrs. Sommers, principalmente depois que ela sucumbiu ao desejo
de comprar o objeto tão cobiçado.
É muito importante ressaltar que as meias escolhidas por ela são
pretas que sugerem, além de um aspecto de obscuridade e impureza, a
imagem da morte, que está ligado “à promessa de uma vida renovada, assim
como a noite contém a promessa da aurora, e o inverno a da primavera”
(CHEVALIER, 1995, p. 743). A cor preta também está diretamente associada à
sensualidade e, para corroborar a idéia de pecado original presente na história,
diz-se que, “o Adão e a Eva do Zoroastrismo, enganados por Arimã, vestem-se
de preto, quando são expulsos do Paraíso” (CHEVALIER, 1995, p. 741). Numa
alusão a esse processo de autoconhecimento e redescoberta da sexualidade
pelo qual a protagonista estava passando, também é interessante associar o
preto ao momento em que se entra em contato com o próprio universo
instintivo primitivo (CHEVALIER, 1995, p. 744).
O narrador, entretanto, não parece tecer julgamentos em relação
à protagonista e seu ato de comprar as meias de seda pretas. Além disso, a
intimidade criada a partir da visão desse narrador permite que o leitor tenha
simpatia por ela, pois tem acesso à sua situação e às suas necessidades de
satisfação pessoal. Esse processo de convencimento do leitor se dá por meio
54
Você acha que há algumas meias oito e meio entre essas?
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
168
de passagens como: “She seemed for the time to be taking a rest from that
laborious and fatiguing function and to have abandoned herself to some
mechanical impulse that directed her actions and freed her of responsibility”
55
(502).
Obviamente, a questão da maternidade recebe uma atenção toda
especial nesse trecho do conto, em que é expresso o sentimento de
descontentamento de Mrs. Sommers com sua condição de mãe, bem como as
dificuldades em estar sozinha nessa árdua tarefa e a vontade de se ver livre
dessa imensa responsabilidade. Mesmo sem ter sido mencionada a palavra
maternidade, o desabafo da protagonista deixa entrever uma crítica a respeito
da idéia de que ser mãe representa todo um estado de completude e
contentamento para a mulher, como pregam os valores da sociedade
tradicional, visto que:
historically, women have found identity in marriage and
motherhood, but only in the nineteenth century did American
women start to express that this was not enough to fulfill them,
and that they wanted more than a domestic role (KUNF, 1991,
p. 43-44).
historicamente, as mulheres encontraram identidade no
casamento e na maternidade, mas somente no século XIX é
que as mulheres americanas começaram a expressar que isso
não era suficiente para completá-las, e que elas queriam mais
do que um papel doméstico.
Dessa forma, o conto discute o lado negativo da maternidade, que
surge, sobretudo, quando a mulher deixa de olhar para si mesma e para seus
próprios interesses e passa a viver exclusivamente para os filhos, perdendo
sua individualidade.
Além disso, a história expõe uma nítida oposição entre a
maternidade e a sexualidade, sendo que, de acordo com os valores morais da
época, a primeira deveria simbolizar a santidade da mulher e a segunda evocar
o proibido e o pecaminoso, referindo-se aos conceitos do sagrado e do profano
a que tradicionalmente foi associada a figura feminina ao longo dos tempos.
55
“Ela parecia ter tirado um descanso por um tempo daquela função trabalhosa e fatigante e
ter se deixado abandonar a algo como um impulso mecânico que direcionava suas ações e a
libertava de sua responsabilidade”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
169
A partir do desabafo da personagem principal, a análise de sua
trajetória na história leva o leitor a acompanhar um processo de mudança
significativa no seu comportamento, que é precedida e indicada por uma
mudança de espaço, já que a protagonista sobe de elevador para um outro
andar da loja, realizando um movimento de ascensão para uma nova fase de
sua vida, pois, como já foi visto na teoria de Bachelard, esses andares
simbolizam os diferentes estados da alma.
Inicialmente, por já estar usando as meias novas que comprou,
seu olhar em relação a si mesma passa a ser de admiração, pois a heroína
começa a se observar melhor e a gostar daquilo que vê: “Her foot and ankle
looked very pretty. She could not realize that they belonged to her and were a
part of herself”
56
(502).
Nesse ponto, Mrs. Sommers deixou definitivamente de pensar em
como iria gastar o seu dinheiro, pois, além das meias de seda, também
comprou botas e um par de luvas. O interessante é que ela, ao pedir esses
produtos à vendedora, chegou a dizer que não importava se a diferença de
preço fosse de um dólar ou dois, desde que ela tivesse aquilo que a agradasse.
Também não pediu que embrulhassem as duas revistas caras que comprou,
justamente aquelas a que estava acostumada a ler nos seus áureos tempos,
dando mostras de que ela não havia se arrependido de tê-las adquirido.
Um misto de auto-confiança e uma sensação agradável de fazer
parte do grupo das pessoas bem vestidas na multidão tomou conta de seu ser,
quando continuou a agir seguindo seus impulsos e entrou em um restaurante
para fazer uma refeição leve e tomar uma boa taça de vinho. O preço da conta
também não fez a mínima diferença para ela, que deixou até uma moeda de
gorjeta para o garçom.
O passo seguinte foi assistir a uma peça de teatro, em meio a
mulheres elegantes que estavam ali para matar o tempo. Com essa atitude, o
narrador reforça a idéia de que Mrs. Sommers estava vivendo um momento
todo especial, já que, ao ir ao teatro, o espectador se esquece de sua própria
vida e mergulha num mundo completamente diferente do seu:
56
“Seus pés e tornozelos pareciam muito bonitos. Ela nem podia imaginar que eles pertenciam
a ela e eram uma parte dela.”
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
170
She gathered in the whole – stage and players and people in
one wide impression, and absorbed it and enjoyed it. She
laughed at the comedy and wept – she and the gaudy woman
next to her wept over the tragedy. And they talked a little
together over it (504).
Ela assimilou tudo – palco e atores e pessoas em uma
impressão geral, e absorveu e deleitou-se com tudo. Ela riu na
comédia e chorou – ela e a mulher toda enfeitada que estava
perto choraram com a tragédia. E elas falaram um pouco sobre
aquilo.
Esse fenômeno ocorre porque o teatro simboliza a necessidade
de se viver uma outra vida, assim como “o alívio da alma pela satisfação real
ou imaginária de uma necessidade moral” (CHEVALIER, 1995, p. 871-872). É
como se, assistindo a essa peça de teatro e ampliando o seu conhecimento de
mundo, Mrs. Sommers desse mais um passo em direção à auto-descoberta.
O sentimento da protagonista ao término da peça é de desolação
e desamparo, como se o seu sonho tivesse acabado juntamente com a peça, já
que, dado o avançar da hora, ela deveria retornar à realidade e à sua vida
anterior, deixando de lado as ilusões daquele dia tão especial. Tal pensamento
remete a Artaud
57
, para quem o teatro representa o mundo e manifesta-o aos
olhos do espectador, mexendo com o manifestado. “E porque o representa, faz
perceber o seu caráter ilusório e transitório” (apud CHEVALIER, 1995, p. 871-
872).
Por isso, assim como a peça de teatro chega ao fim e todos os
espectadores vão viver suas vidas reais, também a heroína precisa retomar
sua história, mesmo depois de ter passado por esse momento único, quando
despertou para a sua individualidade e percebeu seus desejos mais íntimos.
Um importante aspecto a ser destacado no conto refere-se à
marcação do tempo, que não coincide com as medidas temporais objetivas
(NUNES, 2003, p. 18), mas evolui de acordo com a maneira com que a
protagonista o vê passar, ou seja, a partir de seus pensamentos, de suas
impressões e da forma como essa personagem apreende os acontecimentos à
sua volta. Assim, a figura do narrador é responsável por dosar o andamento
57
ARTAUD, A. Le théâtre et son double. Paris, 1938.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
171
desses acontecimentos de modo a conduzir o leitor no ritmo das descobertas
da protagonista, o que favorece a aproximação entre eles.
O tempo psicológico predomina nesse conto, sobretudo pelo fato
de que, ao representar a figura do herói problemático, a protagonista necessita
manifestar suas insatisfações com a sociedade. Como já foi visto
anteriormente, tal manifestação deve ocorrer, por se tratar de um texto escrito
por mulher, preferencialmente, de maneira indireta. Assim, a utilização da
focalização a partir do interior dessa personagem, em conjunto com a
marcação psicológica do tempo, favorece o processo de propagação desse
confronto da subjetividade com o mundo, procurando isentar a escritora de
algumas idéias difundidas por meio de suas personagens.
Pode-se afirmar que a trajetória temporal da protagonista durante
aquela tarde realiza um movimento circular, que volta ao ponto de partida, pois
ela, embora tenha passado por um importante processo de transformação
pessoal e não parecer ser e pensar como costumava, precisa retomar sua vida
anterior e encarar sua realidade, já que, aparentemente, não tem coragem
suficiente para abandonar tudo à sua volta e agir de acordo com sua nova
maneira de pensar e de se ver.
Esse movimento de retorno ao ponto de origem é um recurso
muito observado em outros contos de Kate Chopin, como por exemplo, “The
Story of an Hour” e parece ter o propósito de denunciar a dificuldade ou até a
impossibilidade de uma mulher de seu tempo em conseguir mudar o seu
destino. E, mesmo que essa mudança tenha ocorrido por um determinado
momento dessas narrativas, o tão esperado final feliz, na maioria das vezes,
fica somente sugerido e não chega a se concretizar.
Um aspecto simbólico importante na composição dessa
personagem feminina que passa por um processo de transformação pessoal,
mas deve retornar à sua vida anterior, fica por conta do bondinho no qual a
protagonista volta para sua casa. Embora o bonde realize um movimento
parecido com o do trem, que evoca a idéia de evolução da protagonista do
conto, como visto em “A Respectable Woman”, esse meio de transporte tem a
sua linha limitada e definida, e que, ao retornar ao seu ponto de partida, à
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
172
maneira do ocorrido com Mrs. Sommers na história, também desenvolve um
movimento circular.
O leitor vê-se diante de uma protagonista que se mostra dividida
entre a satisfação de seus anseios pessoais e as obrigações morais e sociais
impostas pelos valores tradicionais, sendo que, no conto em questão, essa
personagem feminina consegue, mesmo que por um breve período de tempo,
satisfazer seus próprios desejos em detrimento das imposições sociais. O que
se vê, entretanto, é que depois desse processo de auto-valorização pelo qual
Mrs. Sommers passa, volta a prevalecer a necessidade de agir de acordo com
as expectativas que a sociedade tem em relação à mulher.
É interessante acrescentar, ainda, que a protagonista ainda
conseguiu despertar o interesse de uma personagem masculina durante sua
viagem no bonde, que se mostrou extremamente intrigado por sua figura e
curioso para entender o que se passava nos pensamentos daquela mulher. A
passagem reforça a idéia de que a admiração da personagem masculina
acontece somente quando a protagonista passa a olhar para si mesma,
valorizando-se e tendo consciência de si mesma como mulher e não só como
mãe ou esposa.
Trata-se, porém, de um momento da narrativa em que não é
possível, nem mesmo ao leitor, ter acesso por inteiro aos pensamentos da
protagonista, embora o narrador deixe sugerida a idéia de que ela não queria
voltar mais para sua vida anterior:
It puzzled him to decipher what he saw there. In truth, he saw
nothing – unless he were wizard enough to detect a poignant
wish, a powerful longing that the cable car would never stop
anywhere, but go on and on with her forever (504).
Ele se esforçou em decifrar o que via ali. Na verdade, ele não
viu nada – a não ser que fosse mago o suficiente para detectar
um desejo intenso, uma vontade poderosa de que o bonde
nunca parasse em lugar algum, mas que ficasse andando com
ela para sempre.
Na verdade, o desfecho do conto também pode ser visto como
ambíguo, pois a voz do narrador revela somente a vontade de Mrs. Sommers
de que aquele momento nunca acabasse, e mesmo o recurso da onisciência
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
173
não deixa transparecer completamente os pensamentos da protagonista no
final dessa história, o que pode dar margem a mais de uma interpretação sobre
aquilo que ela estava sentindo no veículo. A leitura que parece mais aceitável
socialmente é a de que Mrs. Sommers arrependeu-se de ter gasto todo o
dinheiro consigo mesma e, envergonhada, não desejava voltar para casa e
encarar a difícil situação de sua família.
Por outro lado, levando em conta que, em nenhum momento do
conto esse arrependimento foi mencionado, pode-se inferir, numa leitura
feminista, que a personagem feminina expressou, mesmo que de maneira
velada, sua vontade de ser protagonista em sua própria vida e não apenas uma
coadjuvante, cuja missão é facilitar a vida de seus familiares. Tudo indica que,
após a sua redescoberta, Mrs. Sommers passa a revelar a claustrophobia
anteriormente citada em outras análises, já que a protagonista rejeita a prisão
do lar e a idéia de voltar a viver a rotina medíocre, que contrastava com aquela
vida que havia vivenciado no passado e naquela tarde.
Porém, para que um conto com esse teor fosse aceito, tornou-se
necessária a utilização da estratégia do texto palimpsesto que, como
mencionado anteriormente, é elaborado a partir de níveis de significado menos
acessíveis, a fim de que sejam escondidos certos significados polêmicos
abordados na história.
Isso é possível porque, mais uma vez, está-se diante de um conto
que narra duas histórias ao mesmo tempo, sendo uma delas encarregada de
revelar as atitudes e os pensamentos da protagonista que estão em acordo
com os valores morais da sociedade. Tal situação ocorre no início do conto,
quando Mrs. Sommers resolve que vai gastar seu dinheiro com os filhos, ou por
meio da idéia do pecado associada à meia de seda. Paralelamente, a outra
história tem a incumbência de revelar a descoberta da individualidade da
personagem feminina e a consciência a respeito de sua auto-satisfação.
Levando em conta que há duas histórias sendo narradas como se
fossem uma só também é possível afirmar que as atitudes da protagonista ao
longo do conto não parecem totalmente surpreendentes aos olhos do leitor, já
que, logo no início estabelece-se um ponto de cruzamento entre as histórias,
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
174
quando os comentários da vizinhança a respeito de sua antiga condição
sugeriram que a protagonista havia conhecido, antes de se casar, um universo
diferente daquele do qual fazia parte, constituindo um importante índice para
que essas atitudes da protagonista fossem interpretadas de outra maneira.
Nesse sentido, o narrador discorre sobre a necessidade de Mrs.
Sommers em gastar o dinheiro da maneira mais sensata para não se
arrepender depois. Tal fato deve ser retomado nesse momento final da análise,
a fim de discutir que, apesar de não ter usado o dinheiro da forma como havia
planejado anteriormente, Mrs. Sommers não manifesta nenhum tipo de
arrependimento, caracterizando o aspecto irônico do conto. Essa atitude revela
ainda que a necessidade da protagonista em satisfazer seus desejos
prevaleceu sobre sua obrigação social de cuidar dos outros.
Neste conto, Chopin criou mais uma personagem feminina que
rompe com os códigos tradicionais e não demonstra nenhum tipo de
arrependimento ou vergonha por seu comportamento, abordando um conflito
entre o prazer pessoal e as exigências sociais, principalmente no que diz
respeito aos papéis de esposa e mãe, havendo inclusive uma necessidade de
auto-valorização da protagonista, numa luta pela identidade individual além dos
limites estabelecidos pelo patriarcalismo.
O que mais chama a atenção em textos de Kate Chopin como
este, não é o fato de ser simplesmente mostrada a condição da mulher em seu
tempo, mas sim, por essa condição ter sido revelada, principalmente a partir do
interior das personagens femininas, que assumiram suas vontades e desejos,
mesmo contrariando os padrões da ideologia patriarcal masculina vigente no
século XIX e infelizmente, ainda, vigentes em muitas culturas até hoje.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
175
4.7 – “A POINT AT ISSUE”
Publicado pelo Philadelphia Musical Journal em 1889, este foi
um dos primeiros contos escritos por Kate Chopin. Logo no início de sua
carreira, a escritora já propagava, por meio de seus textos, idéias avançadas
sobre o questionamento do papel das mulheres na sociedade e sobre o
casamento como uma relação entre iguais, que é o caso da história em
questão. Tudo começa quando Eleanor se casa com Charles Faraday sem as
devidas pompas e formalidades, provocando um verdadeiro frenesi na cidade
onde moravam. A situação piora quando, depois da lua-de-mel, Charles retorna
sem a esposa, que resolve ficar em Paris para estudar francês. Apesar da
distância, o casamento resiste, pois o casal sempre se comunica por cartas
apaixonadas, além de cultivar um sentimento mútuo de confiança e fidelidade.
Depois de certo tempo e de um pequeno incidente envolvendo uma situação de
ciúme entre eles, Charles vai ao encontro de Eleanor e a leva de volta para
casa para viverem juntos.
Trata-se de uma narrativa em que a valorização da temática da
mulher emancipada é desenvolvida de maneira direta e objetiva, por meio de
uma estrutura mais simples e uma caracterização de personagens menos
elaborada do que a dos demais contos analisados neste estudo.
Logo de início, o leitor tem acesso à visão de um narrador
onisciente, que percebe os olhares de reprovação da sociedade para Eleanor,
uma vez que ela não se preocupou em fazer os anúncios de seu casamento
exatamente de acordo com os costumes de sua cidade e de seu tempo. Com
isso, ela já manifesta suas idéias contrárias às convenções sociais, que vão ser
a tônica de toda a história.
O comportamento da protagonista é visto como demasiadamente
inovador para a sociedade e o fato de não ter sido utilizado, durante toda a
narrativa, o sobrenome de seu marido para referir-se a ela, e sim o seu
primeiro nome, comprova tal inovação, revelando um espírito que prega a
liberdade de escolha e a individualidade, características que são facilmente
percebidas em passagens como:
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
176
She hoped now that the period for making concessions was
ended. She had endured long and patiently the trials that beset
her path when she chose to diverge from the beaten walks of
female Plymdaledom. Had stood stoically enough the
questionable distinction of being relegated to a place amid that
large and ill-assorted family of “cranks”, feeling the discomfit
and attending opprobrium to be far outbalanced by the
satisfying consciousness of roaming the heights of free thought,
and tasting the sweets of a spiritual emancipation (48).
Ela esperava que o período de concessões tivesse terminado.
Ela tolerou por muito tempo e pacientemente os obstáculos
que bloqueavam seu caminho, quando escolheu divergir da
conduta usual das mulheres de Plymdale. Havia sido estóica
suficiente a questionável distinção de ser relegada a um lugar
em meio àquela grande e desajustada espécie de
“excêntricos”, sentindo o desconforto e a vergonha serem em
muito superados pela consciência tranqüila de percorrer as
alturas do pensamento livre, e experimentar as delícias de uma
emancipação espiritual.
Para essa sociedade, que prezava tanto as regras, o casamento
de Eleanor e Charles tinha tudo para dar errado, dado o seu início nada
convencional. Conseqüentemente, as manifestações de reprovação já são
expressas desde as primeiras linhas da narrativa, como se pode notar em:
”Whichever way she turned her eyes, it glowered at her with scornful
reproach”
58
(48).
Parece interessante explorar o fato de que o pequeno proclama
do casamento entre Eleanor e Faraday, que foi publicado por ela no jornal
Promulgator, ficou escondido entre um anúncio escrito com grandes letras
pretas e a notícia de que uma empresa estava carregando um grande
sortimento de mármore e granito. O contraste entre o negro e o branco
presente no conteúdo do jornal parece antecipar as diferenças entre os
pensamentos desse casal e a sociedade da qual eles faziam parte. Além disso,
a solidez do mármore e do granito da notícia acima citada podem sugerir,
também, a força e o peso dos valores morais e sociais vigentes, podendo
igualmente indicar as dificuldades de se enfrentar tais valores tradicionais.
Aparentemente, o casal não esboça qualquer tipo de reação ou
sofrimento com esse tratamento reprovador, pois, para eles, o casamento
58
“Para qualquer lugar que ela voltasse seus olhos, sentia sobre ela um olhar ameaçador com
uma desdenhosa censura”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
177
deveria obedecer a valores pessoais, o que, decididamente, não coincidia com
as convicções que a sociedade tinha sobre o matrimônio. O conceito que as
personagens faziam a respeito do casamento sugere uma total falta de
preocupação com as aparências que essa instituição exigia perante a
sociedade da época.
De acordo com Faraday, que pode ser compreendido por meio da
focalização da onisciência do narrador sobre essa personagem, o casamento
deveria ser uma maneira de oferecer à sua esposa uma oportunidade para
conhecer e explorar todo um universo cultural ao qual ela não teve acesso
quando criança. Para ele, o casamento, que muitas vezes marca o fim das
possibilidades intelectuais de uma mulher, seria para Eleanor como “(...) the
open portal through which she might seek the embellishments that her strong,
graceful mentality deserved”
59
(50).
Sendo assim, o casamento era visto por eles sob uma ótica toda
especial, pois,
in entering upon their new life they decided to be governed by
no precedential methods. Marriage was to be a form, that while
fixing legally their relation to each other, was in no wise to
touch the individuality of either; that was to be preserved intact.
Each was to remain a free integral of humanity, responsible to
no dominating exactions of so-called marriage laws. And the
element that was to make possible such a union was trust in
each other’s love, honor, courtesy, tempered by the reserving
clause of readiness to meet the consequences of reciprocal
liberty (50).
ao entrar nessa nova vida, eles decidiram ser guiados por
regras sem precedentes. O casamento era para ser um
sistema que, enquanto prende legalmente as relações mútuas,
não deveria, de forma alguma, mexer na individualidade de
cada um; que era para ser preservada intacta. Cada um era
para permanecer um ser integralmente livre, responsável pelo
não controle das exigências das leis do chamado casamento.
E os princípios que deveriam tornar possível tal união seriam a
confiança no amor do outro, a honra, a cortesia, temperados
por uma condição extra de disposição para encontrar as
conseqüências da liberdade recíproca.
59
“(...) o portal aberto através do qual ela poderia buscar os ornamentos que a sua firme e
graciosa mentalidade merecia”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
178
Radicalmente contrária a essas idéias revolucionárias, a
sociedade local, mais especificamente as pessoas com quem ele tinha mais
contato, passou a proferir críticas ainda mais contundentes ao casal, quando,
logo após a lua-de-mel, Charles volta para casa sozinho e deixa a esposa em
Paris estudando francês, em uma decisão de comum acordo com ela:
It was uncalled for!
It was improper!
It was indecent!
He must have already tired of her idiosyncrasies, since he had
left her in Paris.
And in Paris, of all places, to leave a young woman alone! Why
not at once Hades? (51).
Aquilo era indesejado!
Aquilo era impróprio!
Aquilo era indecente!
Ele já deveria estar cansado de excentricidades dela, já que a
deixou em Paris.
E justamente Paris, de tantos lugares, para deixar uma jovem
sozinha! Por que não Hades logo de uma vez?
A ausência de preocupação diante desses comentários maldosos
tem origem, como foi dito anteriormente, na maneira diferente com que
Faraday parece encarar a vida, o casamento e, principalmente, as mulheres. A
principal demonstração desse modo de perceber o universo feminino é a
própria caracterização que o narrador faz da protagonista, uma vez que ela é
descrita a partir da perspectiva dessa personagem masculina.
É interessante verificar que essa caracterização não se realiza
somente pela descrição dos dotes físicos da jovem, mas também e, sobretudo,
pela exaltação de suas capacidades intelectuais. De certa forma, isso
constituía um avanço para a época em que o conto foi escrito, já que a
sociedade não manifestava tanto interesse pela mulher no papel de sujeito da
história e da ciência, preocupando-se mais com a aparência física ou, ainda,
com o seu desempenho como mãe e esposa. Parte desse avanço deve-se à
ação e influência do pioneirismo das verdadeiras “New women” americanas,
que inspiraram muitas idéias de Kate Chopin desde o início de sua carreira,
como já foi visto no capítulo1. Partindo dessas considerações, pode-se afirmar
que, a princípio, por ter sido retratada de maneira diferente, Eleanor pode ser
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
179
considerada uma representante desse grupo de mulheres desbravadoras,
afirmação que será retomada mais adiante nesta análise:
And the longer he knew his wonder at the beautiful revelations
of her mind that unfurled itself to his, like the curling petals of
some hardy blossom that opens to the inviting warmth of the
sun. It was not that Eleanor knew many things. According to
her own modest estimate of herself, she knew nothing. There
were school girls in Plymdale who surpassed her in the amount
of their positive knowledge. But she was possessed of a clear
intellect: sharp in its reasoning, strong and unprejudiced in its
outlook. She was that rara avis, a logical woman – something
which Faraday had not encountered in his life before (49).
E quanto mais ele conhecia sua admiração pelas belas
revelações da mente dela que se abriam para ele, como as
pétalas onduladas de alguma flor resistente que se abre
receptiva ao sol. Não é que ela conhecia muitas coisas. De
acordo com seu modesto julgamento de si mesma, ela não
sabia nada. Havia muitas estudantes in Plymdale que a
superavam na quantidade de conhecimento positivo. Mas ela
possuía uma inteligência clara: na agudeza da razão, na
firmeza e imparcialidade do ponto de vista. Ela era aquela avis
rara, uma mulher lógica – algo que Faraday não havia
encontrado em sua vida antes.
A citação revela que a personagem masculina manifesta um
sentimento de admiração por Eleanor, exaltando suas qualidades e
habilidades. É importante acrescentar que essa exaltação se dá tanto em
relação àquelas características que, muitas vezes, ainda hoje, são
culturalmente atribuídas aos homens, como é o caso do raciocínio lógico acima
citado, como também às que são conhecidas por serem tradicionalmente
femininas, como a intuição, o que pode ser verificado no seguinte exemplo do
texto: “He found Eleanor ready to take broad views of life and humanity; able to
grasp a question and anticipate conclusions by a quick intuition which he
himself reached by the slower, consecutive steps of reason”
60
(49).
É evidente que o discurso do narrador aponta a protagonista
como diferente da maioria das demais mulheres de seu tempo. Mas, além dela,
o conto também retrata outras personagens femininas interessantes que, ao
60
“Ele encontrou Eleanor pronta para obter amplas visões da vida e da humanidade; capaz de
compreender uma questão e antecipar conclusões graças a uma rápida intuição que ele
mesmo alcançou por meio dos lentos e consecutivos passos da razão”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
180
serem confrontadas, favorecem o surgimento de um importante contraste entre
elas. Assim, enquanto Mrs. Beaton, esposa do melhor amigo de Faraday,
representava a típica mulher do século XIX, cujas aspirações não iam além da
satisfação em ver a felicidade e o bem-estar de sua família, a filha mais velha,
Margaret, já dava mostras de uma inclinação para a participação em protestos
que reivindicavam, por exemplo, o voto para as mulheres.
Ao recordar o fato de que “A Point at Issue” foi um dos primeiros
contos de Kate Chopin, esse contraste no comportamento das personagens
femininas revela que, desde o início de sua carreira, a escritora já se mantinha
informada a respeito da evolução da mulher de seu tempo, sobretudo em
relação à consciência de seus direitos, mostrando, por exemplo, a diferença de
postura frente às questões feministas nas duas gerações retratadas na história
e manifestando simpatia por aquelas que defenderam os ideais femininos.
Entretanto, ao observar mais atentamente o comportamento de
Eleanor, o leitor é capaz de perceber que, por representar uma mulher à frente
de seu tempo, ela precisou agir de maneira muito mais séria do que qualquer
outra pessoa da sociedade à qual pertencia, pagando um preço bastante alto
por sua postura emancipada, com sua felicidade e sua espontaneidade. Tal
afirmação pode ser comprovada na seguinte passagem: “Her earnestness and
intensity in such matters were extreme; but happily, Faraday brought to this
union humorous instincts, and an optimism that saved it from a too monotonous
sombreness”
61
(52).
Estruturalmente falando, nota-se que, no conto em questão, a
presença de duas histórias que estão sendo contadas ao mesmo tempo, já
que, algumas vezes, os mesmos acontecimentos podem ser vistos sob duas
perspectivas diferentes. É o caso em que o leitor tem acesso às vidas de
Faraday e de Eleanor, mesmo quando eles estão longe um do outro, pois,
enquanto se sabe que o marido leva uma vida social normal com os amigos da
família Beaton, a esposa aparece triste e solitária em seu quarto em Paris.
Essa segunda história é vista de modo elíptico e fragmentário, já que os
61
“Sua seriedade e intensidade em tais assuntos eram extremos; mas felizmente, Faraday
trouxe a esta união instintos bem-humorados, e um otimismo que o salvou de uma monótona
melancolia”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
181
pensamentos e sentimentos de Eleanor não são completamente revelados,
como por exemplo, o motivo de seu choro num determinado ponto da narrativa,
enquanto que a primeira história conta a visão de Faraday a respeito de seu
casamento, de suas amizades e de sua esposa.
Assim, há uma alternância intencional na focalização, pois, no
início da narrativa, os fatos contados pelo narrador parecem partir mais do
ponto de vista de Faraday do que da protagonista. Talvez por esse motivo, o
leitor tenha a sensação de que ele, apesar de se mostrar como o marido ideal,
exaltar a todo o momento as qualidades da esposa e respeitar a individualidade
no casamento, deixa transparecer certa arrogância e superioridade, o que pode
ser comprovado com a seguinte passagem: “But his nature was genial. He
invited companionship from his fellow beings, who, however short that
companionship might be, carried always away a gratifying consciousness of
having made their personalities felt”
62
(52). Tal constatação deve servir como
um índice de que o comportamento e os pensamentos de Faraday podem não
ser tão confiáveis como parecem, o que imediatamente remete o leitor ao
discurso final no conto.
Mais tarde, no decorrer da narrativa, embora a visão do narrador
esteja encarregada de revelar as experiências da personagem feminina,
percebe-se que seus pensamentos não são completamente desnudados,
causando a ambigüidade característica das histórias de Kate Chopin. É o caso
do episódio em que Eleanor chora copiosamente em seu quarto em Paris,
sugerindo ao leitor, que faz uso daquilo que não é dito e do subentendido, que
o verdadeiro motivo de seu desequilíbrio emocional teria a ver com a solidão
que sentia naquele lugar:
Alone in her room, the hour had come when she meant to
succeed by the unaided force of reason – proceeding first to
make herself bodily comfortable in the folds of a majestic
flowing gown, in which she looked a distressed goddess (54).
Sozinha em seu quarto, o momento havia chegado quando ela
dispôs-se a superar sem a força da razão – primeiramente
62
“Mas a sua natureza era amável. Ele atraía a companhia de seus colegas, que, por menor
que tivesse sido o contato, levava sempre uma consciência de ter afetado suas
personalidades”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
182
fazendo se sentir fisicamente confortável nas dobras de uma
esvoaçante camisola, com a qual ela parecia uma deusa
angustiada.
Talvez isso também tenha a ver com o peso das cobranças
sociais em relação ao comportamento anti-convencional do casal, que recaem
sobre o homem e a mulher de maneiras diferentes, pois, como foi visto
anteriormente, enquanto os homens, representados por Faraday, poderiam
conduzir normalmente a vida social, as mulheres, como no caso de Eleanor,
estavam condenadas a viver uma vida mais isolada, dada a incompreensão de
suas idéias. Além disso, o desequilíbrio emocional pode indicar que, embora
quisessem a liberdade e a independência, as mulheres não sabiam, algumas
vezes, o que fazer com ela, ou não estavam preparadas para assumir isso tudo
e enfrentar o próprio meio em que viviam e no qual tinham sido criadas.
Tudo parece indicar ainda que, nesse momento da trama, Eleanor
se vê diante de um dilema, que é escolher entre a liberdade tão almejada, mas
que vem dolorosamente acompanhada pela angústia da solidão, ou a vida ao
lado do marido, que aparentemente não seria nenhum sacrifício, já que ele, até
o presente momento da história, havia se comportado como um excelente
companheiro para ela. É como se Eleanor, por mais independente que pudesse
ser, não conseguisse pagar o alto preço cobrado por essa liberdade e optasse
por viver um relacionamento mais próximo do tradicional, em que pudesse ficar
mais ao lado do marido.
Nesse sentido, o gesto de oferecer o seu próprio retrato a
Faraday, como fez no final da história, pode simbolizar que a protagonista
decidiu se entregar a ele, preferindo viver uma vida a dois.
Além disso, o estado de Eleanor também pode ser atribuído ao
ciúme e à insegurança que sentiu em relação ao marido, principalmente depois
que ele escreve inadvertidamente sobre sua atração pela filha mais nova de
seu melhor amigo. Essa reação não parece compatível com a imagem
transmitida pelo narrador a seu respeito no início do conto, em que ela se
revela uma mulher racional e segura de si. Sendo assim, em vários momentos
da história, é possível verificar que as qualidades intelectuais da protagonista
deveriam ter sido usadas para superar seus problemas, inclusive este pelo qual
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
183
ela estava passando: “It is a gratifying privilege to be permitted to ignore the
reasons of such unusual disturbance in a woman of Eleanor’s high
qualifications”
63
(55).
Mas, como explica a própria Eleanor no final do conto, “(…) there
are certain things which a woman can’t philosophize about (…)”
64
(58), tentando
dizer que, por mais que ela tenha tentado afastar de sua mente esses
pensamentos através da razão, não conseguiu deixar de sentir tamanha
tristeza e abandono. O mais interessante é que, apesar da reação inicial de
mandar uma carta cuja frieza chegou a assustar o marido, ela logo volta a
tratá-lo com a mesma paixão de antes, mostrando que, pelo menos
exteriormente, ela estava tentando superar esses sentimentos ruins e ser mais
racional em relação ao caso.
Mesmo assim, aos olhos do narrador, a atitude de Eleanor parece
desmerecê-la diante do leitor, já que ela havia lutado muito para concretizar o
sonho de um casamento aberto e estava deixando o ciúme e a insegurança
destruírem esse sonho.
Por outro lado, o recurso da alternância do foco narrativo que
revela a existência das duas histórias no conto, também favorece a abordagem
de duas representações de mundo distintas, que são a masculina e a feminina,
a fim de que possam ser confrontadas e discutidas. Nesse processo de dupla
focalização, é possível observar que, quando analisadas em situações
semelhantes, as reações masculinas e femininas parecem ter sido as mesmas.
Tal observação diz respeito, por exemplo, a esse mesmo episódio
em que Eleanor sente ciúmes do marido, quando ele exalta as qualidades de
Kitty. Apesar de ter ocorrido o mesmo com ele mais tarde, ao desconfiar de que
a esposa o traía com o artista que pintou o quadro para ele, Faraday não
demonstra seus sentimentos publicamente, diferentemente do que fez Eleanor
no episódio das cartas. Com isso, a personagem masculina sente-se no direito
de considerar o seguinte comentário preconceituoso que não condiz com suas
63
“É um privilégio gratificante conseguir ignorar as razões de tamanha perturbação em uma
mulher de tão grandes qualificações como Eleanor”.
64
“(...) há certas coisas a respeito das quais uma mulher não consegue filosofar.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
184
atitudes anteriores: “I love her none the less for it, but my Nellie is only a
woman, after all”
65
(58).
O narrador, porém, auxilia o leitor, e permite o acesso aos
pensamentos do marido nesse momento da história, permitindo que a
superioridade masculina sugerida na fala de Faraday seja questionada, já que
a racionalidade tão exaltada por ele não fez parte de sua reação, ao ver a
esposa com outro homem em um carro, o que pode ser comprovado pelo
seguinte trecho:
He remained for a moment enervated, then the blood came
tingling back into his veins like fire, making his finger ends
twitch with a desire (full worthy of any one of the “prejudiced
masses”) to tear the scoundrel from his seat and paint the
boulevard red with his villainous blood. A rush of wild intentions
crowded into his brain (56).
Ele ficou enfraquecido por um tempo, então, o sangue
começou a correr nas suas veias como fogo, fazendo as
pontas de seus dedos contraírem-se com um desejo (digno de
qualquer pessoa das “massas discriminadas”) de arrancar o
salafrário do seu assento e pintar o boulevard de vermelho
com seu sangue desprezível. Uma fúria de intenções violentas
povoou seu cérebro.
Mesmo sabendo que seu comportamento equivale ao de sua
esposa, a personagem masculina passa, com a fala final, a negar a exaltação a
respeito das mulheres que havia sido construída durante toda a história. Com
isso, a visão masculina a respeito das mulheres, por mais que tenha sido
favorável a elas no início do conto, passa a ser preconceituosa ou,
simplesmente, é afinal revelada. Tal visão confirma, mais uma vez, a ironia da
escritora, que encaminha a história toda no sentido de exaltar a figura da
mulher emancipada e, no final tudo parece ficar de acordo com os preceitos
morais e sociais.
O comentário igualmente irônico do narrador em relação a
Faraday realiza um contraponto nessa crítica feita anteriormente ao
comportamento feminino, ressaltando o caráter inconsistente da personagem
masculina.
65
“Eu a amo mesmo assim, mas, afinal de contas, minha Nellie é apenas uma mulher”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
185
Por meio desse conto também foi possível verificar que, apesar do
esforço para mostrarem uma nova maneira de encarar o casamento, muitas
vezes, as atitudes das personagens revelaram que a natureza e o instinto
humano se incumbem de derrubar as fronteiras da razão, pois, por mais que o
casal em questão tenha discutido as regras desse novo estilo de
relacionamento, ambos acabaram, de alguma maneira, retomando algumas
regras do casamento tradicional. Talvez esse seja mesmo o ponto em questão,
mencionado no título do conto, que propõe uma reflexão a respeito das
dificuldades desse embate entre a solidez dos valores sociais e a fragilidade
dos desejos pessoais.
Também é possível perceber que, apesar de representar no conto
uma mulher emancipada, o espaço que Eleanor ocupou ao longo da história
expressa o conflito entre a agoraphobia e a claustrophobia vivido por ela, pois,
ao mesmo tempo em que possuía autonomia para sair diariamente e fazer
suas caminhadas em Paris, passava a maior parte do tempo dentro de seu
quarto de pensão, sofrendo pela solidão e pela ausência do marido.
Torna-se importante destacar que o conceito de “New woman”
proposto por Gilbert (1986, p. 14) revela uma mulher que escolhe ser autônoma
em todas as acepções da palavra, ou seja, politicamente, profissionalmente e,
sobretudo, emocionalmente. Nesse sentido, deve-se questionar até que ponto
Eleanor pode ser considerada como uma dessas mulheres, já que, além de
depender do incentivo e do dinheiro do marido para estudar em Paris, não
consegue suportar a solidão e outras conseqüências de seu comportamento
avançado.
A explicação para isso pode estar no fato de que as mulheres
retratadas nessa época viveram um período de transição e que conflitos como
esse, propostos por Kate Chopin na figura da protagonista desse conto, eram
comuns no final do século XIX:
By the nineties, however, with New Women making both social
and literary history, it had become clear that the “mad”
rebellious woman and the “sane” dutiful woman were really
inhabitants of the same body, and their conflicts had to be
depicted not through a series of theatrical events but through
an exploration of the troubled female consciousness itself,
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
186
along with an examination of the culture that had shaped that
consciousness (GILBERT, 1986, p. 15).
Nos anos noventa, com as New Women fazendo tanto a
história social como a literária, havia ficado claro que a mulher
“louca” rebelde e a mulher submissa “sã” eram, na verdade,
habitantes do mesmo corpo, e os seus conflitos tinham que ser
representados não através de uma série de eventos teatrais,
mas através de uma exploração da própria consciência
feminina inquieta, juntamente com um exame da cultura que
possuía aquela consciência.
Partindo dessas considerações, o conto discute não só a idéia e
as possibilidades de um casamento ideal, mas também promove uma
reavaliação do papel da mulher na sociedade através dos conflitos femininos
explicitados, ressaltando a necessidade de uma redefinição do casamento
como uma relação entre iguais, bem como as dificuldades de se conseguir
esse novo jeito de viver a dois de maneira respeitosa.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
187
4.8 – “THE STORM”
De todos os contos de Kate Chopin, esse é, sem dúvida, um dos
mais polêmicos. Escrito em julho de 1898, o conto nunca foi submetido para
publicação, dado o seu caráter direto e ousado no tratamento da temática do
sexo e do adultério. Durante uma forte tempestade, o marido e o filho de
Calixta ficam presos na cidade, enquanto ela abriga Alcée em sua casa.
Apesar de ambos serem casados, o antigo desejo entre eles reacende,
culminando em uma relação sexual cheia de sensualidade e paixão. Passada
a tempestade, Alcée vai embora para sua casa e escreve uma carta
apaixonada à esposa, enquanto Calixta retoma suas tarefas domésticas,
como se nada importante tivesse acontecido. Aqui, o desejo e o sexo são
comparados a uma forte tempestade e são tratados, com muita ousadia, de
forma independente do amor e do casamento.
O conto “The Storm” foi escrito no período maduro da carreira de
Kate Chopin e, por isso, o tratamento do tema do casamento expressa uma
maior complexidade do que em outros escritos em fases anteriores, quando,
por exemplo, a protagonista não consegue transgredir as regras sociais e não
segue seus instintos. É o caso de Mrs. Baroda de “A Respectable Woman”,
que, diferentemente de Calixta, apenas deixa sugerida a possibilidade de
adultério.
O sexo é tratado aqui de forma direta, como um importante
aspecto da natureza humana e é encarado como um elemento natural da vida
do homem e da mulher. Por isso, é visto, por muitos críticos, como o único
texto escrito na época a desenvolver esse tema com tamanha naturalidade e
maturidade:
she was the first woman writer in America to accept sex with its
profound repercussions as a legitimate subject for serious
fiction. In her attitude towards passion, she represented a
healthy, matter-of-fact acceptance of the whole of man
(SEYERSTED, 1988, p. 32).
ela foi a primeira escritora na América a aceitar o sexo e suas
profundas repercussões como um tema legítimo para uma
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
188
ficção séria. Na sua atitude em relação à paixão, ela
representou uma aceitação saudável e prática da totalidade do
homem.
Sabe-se que Kate Chopin consegue abordar tais temas com maior
naturalidade graças a uma importante estratégia, que é empregar
personagens que não são brancas ou que pertencem a classes sociais
inferiores para desempenhar papéis com atitudes mais polêmicas. Assim, no
caso de “The Storm”, a personagem feminina, Clarisse, que representa os
valores da sociedade tradicional demonstra, no final da história, uma
necessidade de permanecer longe do marido por uns tempos, pois encarava o
ato sexual como uma obrigação da mulher. Já a ousadia do adultério e da
relação sexual por prazer parte de uma personagem de classe mais baixa,
pois sua atitude é vista de forma menos ofensiva para o público leitor e para a
crítica, podendo a escritora ser mais explícita, já que esse tipo de
comportamento é, numa visão preconceituosa, mais permitido entre essas
pessoas. Com isso, de acordo com Elfenbein (1989, p. 135) Kate Chopin
explora o preconceito da sociedade como um recurso para que seus textos
sejam aceitos. Em sua tese, Kunf cita Dyer, com a intenção de discutir melhor
essa idéia:
In her critical essay “Technique of distancing”, Joyce Coyne
Dyer states that Chopin kept a “comfortable distance from a
message too powerful for her time” (69), often accomplishing
this in her first group of short stories by assigning taboo themes
such as sexual desire, adultery, incest, and divorce to an ethnic
group in which these behaviors were deemed acceptable.
Therefore, many of her first stories that were considered
wonderful local color stories consisted of unacceptable topics.
They were, however, met with approval because such behavior
was ascribed to “indians, gypsies, madwomen, negroes, and
social outcasts” (69) (KUNF, 1991, p. 14).
Em seu ensaio crítico “Technique of distancing”, Joyce Coyne
Dyer afirma que Chopin manteve uma “distância confortável de
um conteúdo tão vigoroso para o seu tempo” (69), executando
isso geralmente nos seus primeiros contos, designando temas
que eram tabus como desejo sexual, adultério, incesto e
divórcio a um grupo étnico em que esses comportamentos
eram julgados como aceitáveis. Por essa razão, muitas de
suas primeiras histórias que foram consideradas maravilhosos
contos regionalistas consistiram de tópicos inadmissíveis. Eles
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
189
eram, entretanto, recebidos com aprovação porque tal
comportamento era atribuído a “índios, ciganos, mulheres
loucas, negros e párias da sociedade”.
Também é importante destacar que as personagens desse conto
já fizeram parte de uma outra história de Kate Chopin, “At the ‘Cadian Ball”,
que foi escrita em 1892. Trata-se de um recurso interessante da escritora que
serve, entre outras coisas, para mostrar a evolução de certas personagens
com o passar do tempo. Para Kunf: “The repetition of characters not only
exhibits individual characters’ conflict and growth, but it also contrasts the way
in which people deal with each other”
66
(KUNF, 1991, p. 20).
Em “At the ‘Cadian Ball”, as personagens Calixta, Bobinôt, Alcée e
Clarisse são introduzidas na história como jovens e inexperientes à procura de
um amor. Nessa primeira história, Alcée já manifesta uma atração por Calixta
durante um baile, mas acaba ficando com Clarisse, que pertence à mesma
classe social que ele. Calixta, por sua vez, casa-se com Bobinôt, que era
muito apaixonado por ela. Em “The Storm”, que é a continuação da história, as
mesmas personagens estão mais maduras e casadas e Calixta tem um filho,
Bibi, de 4 anos de idade.
Quanto à sua estrutura, o conto em questão também parece
conter duas histórias sendo contadas ao mesmo tempo, e a tempestade é o
elemento comum, que está presente nas duas. A primeira história, que deveria
ser a mais visível, é aquela que acompanha Bobinôt e Bibi durante uma ida à
cidade, onde eles são surpreendidos por uma tempestade e precisam ficar
abrigados numa loja, esperando a chuva passar. A segunda, que deveria
apenas sugerir a transgressão de Calixta é, curiosamente, a história mais
focalizada do conto, descrevendo em riqueza de detalhes a relação sexual
quente e sensual entre a protagonista e um antigo pretendente, que ela não
via há mais de quatro anos.
A ironia do conto parte do cruzamento final entre as duas
histórias, quando o leitor sabe o que aconteceu entre Calixta e Alcée e vê a
atitude tranqüila e natural dessas duas personagens em relação aos seus
66
“A repetição de personagens não somente exibe o conflito e o crescimento individual das
personagens, mas também contrasta a maneira com que as pessoas se tratam mutuamente”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
190
cônjuges, como se nada importante tivesse acontecido com eles. Além disso,
é importante observar que o final da história discute o conflito entre uma visão
natural da necessidade de satisfação sexual do ser humano e os tabus a
respeito do sexo incutidos na sociedade. Dessa maneira, o conto estabelece
um rompimento não somente com as expectativas do leitor, mas,
principalmente, com as regras morais e sociais daquela época.
As duas histórias desenvolvem, paralelamente, uma trajetória
interessante, que vai de um momento de latência e calma iniciais, passando
por um turbilhão que é, ao mesmo tempo, a tempestade e o próprio ato sexual
e, finalmente a volta ao estado de tranqüilidade. De acordo com Bender (1974,
p. 265):
The story moves with the pace and rhythm of a natural change
of weather. In five parts, it begins quietly with the approach of
the storm: “The leaves were so still that even Bibi thought it
was going to rain”; it crescendos in the second, the longest
part; and it subsides in three short parts as quietly as it begins,
ending with, “so the storm passed…”
A história se move no passo e no ritmo de uma mudança
natural de clima. Em cinco partes, ele começa tranqüilamente
com a aproximação da tempestade: “As folhas estavam tão
imóveis que até Bibi achou que fosse chover”; vai crescendo
na segunda e mais extensa parte; e diminui em três pequenas
partes tão calmas como quando começaram, terminando com,
“e então a tempestade passou...”
Partindo dessa estrutura, Também as noções de espaço e de
tempo dela decorrentes vão contrapor o ato sexual à tempestade. É possível
perceber que os elementos da natureza que caracterizam o espaço e o tempo
no conto exercem um papel de grande importância, pois estabelecem um
paralelo com os acontecimentos da história, principalmente com a relação
sexual. Isso ocorre, por exemplo, quando se remete ao significado da chuva
que, em Chevalier (1995, p. 236) é encontrada como o símbolo da
fecundidade e o equivalente cosmológico do sêmen.
Além disso, o espaço privado também ocupa um lugar de
destaque no conto, uma vez que favorece a intimidade entre Alcée e Calixta,
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
191
como em: “The door stood open, and the room with its white, monumental bed,
its closed shutters, looked dim and mysterious”
67
(593).
Mas o espaço no conto também serve para explicar a condição de
Calixta como esposa e mãe. É o caso, por exemplo, da descrição do quarto de
dormir da família, com a cama do filho colocada no mesmo cômodo que o
casal, sugerindo que a vida sexual de Calixta estaria sendo deixada de lado,
em detrimento de seu papel como mãe.
Tanto a tempestade como o ato sexual também constituem
formas de realizar a marcação do tempo no conto, o que pode ser confirmado
em: “The rain was over; and the sun was turning the glistening green world into
a palace of gems. Calixta, on her gallery, watched Alcée ride away”
68
(595).
Já outros elementos que são empregados para descrever a
própria protagonista e suas atividades indicam o clima de sensualidade do
conto. Pode-se comprovar essa afirmação através da seguinte passagem:
She sat at a side window sewing furiously on a sewing
machine. She was greatly occupied and did not notice the
approaching storm. But she felt very warm and often stopped
to mop her face on which the perspiration gathered in beads.
She unfastened her white sacque at the throat (592).
Ela se sentou ao lado da janela costurando furiosamente em
uma máquina de costura. Ela estava muito ocupada e não
percebeu a aproximação da tempestade. Mas ela se sentia
muito quente e freqüentemente parava para secar a face
onde o suor se acumulava em gotas. Ela desamarrou seu
mantô branco no pescoço (grifos meus).
Sabe-se que costurar pode ser interpretado como uma alusão ao
ato sexual. Além disso, o calor que ela estava sentindo, juntamente com a
menção ao suor, remete à sensualidade do momento, que é reforçada quando
Calixta desamarra suas roupas.
Tal visão só é possível graças à presença do narrador onisciente,
encarregado de narrar a história que deveria permanecer secreta. Graças à
sua atuação, tanto a personagem masculina como a feminina são inocentadas
67
“A porta estava aberta, e o quarto, com sua monumental cama branca e a janela fechada,
parecia obscuro e misterioso”.
68
“A chuva havia terminado; e o sol estava transformando o mundo verde reluzente em um
palácio de pedras preciosas. Calixta, de sua galeria, assistia Alcée cavalgar para longe”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
192
de qualquer culpa, dada a naturalidade com que a relação foi descrita. Essa
naturalidade pode ser demonstrada em: “He looked down into her eyes and
there was nothing for him to do but to gather her lips in a kiss”
69
(594). Assim,
a exemplo do que ocorre em “A Pair of Silk Stockings”, o narrador não tece
nenhum tipo de julgamento, principalmente em relação às atitudes da
protagonista, já que, para Kate Chopin, “(...) nature was amoral, playing with
man, and morality was man-made and relative”
70
(SEYERSTED, 1988, p. 23).
Neste conto, o sexo é visto como muito mais do que
simplesmente uma amoralidade, pois, em determinado ponto da história,
Alcée, em discurso direto, relembra uma situação do passado vivida em
Assumption, em que os dois também quase tiveram uma relação sexual. Essa
situação pode ser entendida da seguinte maneira:
(…) in this story the reference to Assumption, a religious
holiday celebrating the Assumption of the Virgin into heavenly
bliss as well as a place-name, suggests the secularization of
religious experience and the elevation of sexual experience to
the status of a religious sacrament” (ELFENBEIN, 1989, p.
140).
(...) nesta história, a referência a Assumption, um feriado
religioso celebrando a ascensão da Virgem até a
beatitude celestial, bem como o nome de um lugar,
sugere a secularização da experiência religiosa e a
elevação da experiência sexual ao status de um
sacramento religioso.
Diante dessa afirmação, pode-se constatar que o sexo é descrito
no conto como algo sagrado, diferentemente da visão moralista da sociedade,
que o vê como profano. E a própria roupa que Calixta vestia, um mantô
branco parecido com o que as santas carregam nas costas, serviu para
caracterizá-la como tal, enquanto outros elementos como a cama branca
favorecem a idéia da sacralização do ato sexual.
Torna-se necessário evidenciar, mais uma vez, a estreita relação
entre o sexo e os elementos da natureza, que atuam com o intuito de suavizar
69
“Ele olhou para os olhos dela e não restava mais nada para ele fazer do que unir seus lábios
em um beijo”.
70
“A natureza era amoral, brincando com o homem, e a moralidade era artificial e relativa”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
193
e tornar menos rude as descrições em relação às atitudes e sensações da
protagonista durante o ato sexual. Para tanto, há muitas imagens de flores,
frutas e outros elementos naturais para representar esse momento, como, por
exemplo em:
Her lips were as red and moist as pomegranate seed (594).
Her firm, elastic flesh that was knowing for the first time its
birthright, was a creamy lily that the sun invites to contribute its
breath and perfume to the undying life of the world (595).
Her mouth was a fountain of delight (595) (grifos meus).
Os lábios dela estavam vermelhos e úmidos como uma
semente de romã.
Sua pele firme e flexível que estava conhecendo pela primeira
vez o seu direito inato, era um lírio cremoso que o sol convida
a contribuir com seu hálito e seu perfume para a vida eterna do
mundo.
Sua boca era uma fonte de prazer.
Um outro exemplo dessa relação diz respeito ao nome da
protagonista da história. Calixta remete à flor calyx ou à forma de um cálice,
que se abre para o ato sexual. Nesse sentido, Baker afirma que: “Calixta’s
name underscores her sexuality by enhancing a structural metaphor at the
heart of the story, in which her sexual receptive to Alcée parallels the opening
of a flower”
71
(1994, p. 225).
O narrador onisciente revela em detalhes a relação sexual entre
Calixta e Alcée. Quando eles se abraçam, por exemplo, o narrador adota o
ponto de vista de Alcée, descrevendo o corpo feminino em suas minúcias e
exaltando a sensualidade da mulher, a fim de que o desejo feminino seja
encarado com naturalidade, visto que, para Kate Chopin: “Pleasure is asserted
not merely as a possibility but as a right for a woman”
72
(ELFENBEIN, 1989, p.
141). Com isso, a relação sexual expressa, sobretudo, um sentimento de
liberdade:
71
“O nome Calixta salienta a sua sexualidade, acentuando uma metáfora estrutural no coração
da história, em que sua receptividade sexual a Alcée é comparada ao abrir de uma flor”.
72
“O prazer é defendido não meramente como uma possibilidade, mas como um direito para a
mulher”.
MARCAS DE CONTESTAÇÃO DO STATUS
FEMININO EM CONTOS DE KATE CHOPIN
194
“The Storm” is remarkable not only for the freedom it asserts in
the face of the suffocating conventionality of the 1890’s, but for
the lyrical ease with which it unites human and universal
rhythms to celebrate “the procreative urge of the world”
(BENDER, 1974, p. 266).
“A tempestade” é notável não só pela liberdade que o conto
defende frente à sufocante convencionalidade dos anos 1890,
mas pela naturalidade lírica com que ele une os ritmos humano
e universal para celebrar “o desejo gerador do mundo”.
Esse conceito de liberdade transmitido pelo enredo do conto é
igualmente expresso por meio da figura e das atitudes da protagonista que, ao
aceitar satisfazer seus impulsos sexuais, aceita também viver uma vida dupla,
sem manifestar qualquer arrependimento. Chopin cria uma protagonista
complexa que, diferentemente do que ocorre com Mrs. Baroda em “A
Respectable Woman”, decide assumir sua sexualidade como uma maneira de
superar as frustrações e insatisfações da vida cotidiana, abrindo uma nova
possibilidade de satisfação para a mulher, independentemente do casamento
e da maternidade.
Trata-se da única protagonista analisada que, ao passar pelo
conflito entre os valores sociais e os desejos pessoais, opta pela necessidade
de satisfação pessoal sem sofrer com sua decisão. E, tendo em mente que a
tempestade é vista como um símbolo de mudança, a partir do conto são
propostas idéias novas que pregam a desvinculação entre o sexo e o
casamento e entre o sexo e o amor.
E tão inovadoras são essas idéias que até hoje, em pleno século
XXI, ainda não são aceitas pela maioria da sociedade.
CONCLUSÃO
CONCLUSÃO
196
artindo de princípios que procuraram demonstrar como se dá
a mediação entre a obra de arte e os aspectos sociais e
históricos dela decorrentes, o presente estudo conduziu uma análise dos
contos da escritora norte-americana Kate Chopin com base nos principais
preceitos da Crítica Literária Feminista, que se preocupa, sobretudo, com a
valorização dos textos escritos por mulheres e seus respectivos temas, estilos
e estruturas.
P
Diante da proposta inicial, que era a de tentar desvendar certos
procedimentos narrativos que a autora utiliza para estabelecer uma relação
dialógica entre suas idéias e o pragmatismo da construção do discurso, e
explicitar sua maestria e sensibilidade diante das questões femininas de sua
época, também foi possível oferecer uma proposta de leitura dos contos, a fim
de fazer aflorar novos significados para eles, diferentes daqueles que foram
conseguidos por leituras masculinas.
A partir da análise do corpus, pôde-se confirmar que os
procedimentos escolhidos pela autora têm o propósito de promover certa
impessoalidade em relação à emissão de suas opiniões, atribuindo a essa obra
um caráter mais codificado, que é uma importante característica de textos
escritos por mulheres, e que é utilizada como resposta às influências
masculinas e como forma de protesto contra os valores patriarcais vigentes.
A fim de evidenciar o caráter codificado dos textos, verificou-se
que a escritora contou com estratégias como, por exemplo, a adoção do
gênero narrativo (tanto romance como conto), que se mostrou mais apropriado
para a expressão do sentimento de descontentamento em relação aos valores
sociais, bem como uma tentativa de mudá-los. Trata-se de um confronto entre
o “eu” e o mundo, abordado no capítulo 4 desta tese, e que encerra os
principais conflitos humanos a partir do século XIX, definindo-se a narrativa
como um gênero ideal para exprimir tais conflitos entre o homem e a sociedade
e, mais especificamente nesse caso, entre a mulher e a sociedade patriarcal.
Já o conto, destacado neste trabalho por representar a maior
parte da obra de Kate Chopin, também apresentou características bastante
favoráveis para que os temas propostos por Kate Chopin fossem
CONCLUSÃO
197
desenvolvidos. Uma delas diz respeito às suas dimensões reduzidas, que
servem para expressar a rapidez com que as transformações do mundo
moderno se processaram e, conseqüentemente, a posição das mulheres em
meio a essas transformações.
Esse gênero também tem a capacidade de transcender o próprio
significado, o que contribui para que sua interpretação sirva como reflexo do
pensamento da época em que foi escrito. A unidade de construção do conto
permitiu que a escritora elaborasse suas idéias a partir de situações e questões
individuais, preferindo utilizar um acontecimento ou fato isolado, que é próprio
do gênero em questão. Isso quer dizer que os textos de Kate Chopin estudados
nesta tese abordaram as principais questões femininas de seu tempo, por meio
de histórias que apresentavam situações particulares, desenvolvidas,
principalmente, a partir do enfoque sobre suas protagonistas em momentos
decisivos de suas existências.
Além disso, verificou-se que o caráter duplo do conto consistiu em
uma das características mais interessantes para o desenvolvimento das
narrativas da escritora, já que, por contar duas histórias ao mesmo tempo, esse
recurso favoreceu a expressão de conceitos mais polêmicos em torno da
problemática feminina de maneira camuflada sob uma aparente concordância
com os valores sociais.
Excetuando “Wiser Than a God” e “A Point at Issue”, que, por
terem sido os primeiros contos da escritora, ainda não exibiam uma forma mais
elaborada de construção, em todos os outros contos analisados, são utilizadas
essas duas histórias com o intuito de promover um diálogo entre o que cada
uma delas representa no conto. No caso específico de “A Point at Issue”,
também foi possível perceber a existência desses dois níveis de construção,
embora tenha demonstrado uma maior simplicidade e objetividade na sua
elaboração.
No que diz respeito aos demais contos, percebeu-se que, durante
o processo de construção das duas histórias como se fossem uma só, a
primeira delas quase sempre funcionava como porta-voz dos valores da
sociedade e a segunda, que permanecia secreta, estava encarregada de
CONCLUSÃO
198
revelar os verdadeiros pensamentos e sentimentos das personagens femininas
diante dos embates com esses valores. A exceção é feita a “Madame
Célestin’s Divorce”, uma vez que a primeira história não retratou somente os
valores da sociedade, e sim o interesse pessoal do advogado em relação ao
divórcio da protagonista.
Pode-se concluir que o método de construção dessa primeira
história está baseado mais nas aparências e no discurso socialmente aceito,
enquanto que a segunda consegue tocar a essência do feminino e, a partir do
conflito que surge do diálogo entre essas duas histórias é construída a
identidade da figura feminina nos contos.
Também é importante ressaltar que, tendo sido expresso através
da história secreta, o discurso que aborda as necessidades e insatisfações
femininas é feito, quase sempre, com o que é subentendido, com o que não é
dito e com a alusão, exceção feita a “Wiser Than a God”, em que Paula
exprime de forma direta a sua vontade de dedicar-se à carreira e não se casar.
Com esse recurso, apesar de parecer privilegiar a primeira história e os
preceitos morais que se encontram imbuídos nela, relegando a voz feminina
para um segundo plano e silenciando-a, Kate Chopin expõe, ao mesmo tempo,
a história secreta que encerra os anseios e as insatisfações femininas,
contados a partir de uma ótica feminina. Essa história secreta não se revela
totalmente, mas aparece desnudada de forma sutil em determinados pontos de
cruzamento das narrativas.
Como foi visto, os pontos de cruzamento entre essas duas
histórias constituem a base da construção do conto e são responsáveis pelas
rupturas das expectativas do leitor, favorecendo, ainda, o aparecimento dos
aspectos irônicos da narrativa. Ao estabelecer tais rupturas, Kate Chopin
também está explicitando o conflito-chave para a construção da identidade
feminina, que é o conflito entre os desejos pessoais das personagens
femininas e os valores sociais, presente em todos os contos analisados. Esse
processo acontece quando a personagem feminina, que representa as
mulheres no conto, dialoga na história com o “outro”, que normalmente
CONCLUSÃO
199
expressa os valores da sociedade, mostrando-se ou não transgressora desses
valores.
Também a escolha de certas perspectivas narrativas desempenha
um papel preponderante no processo de camuflagem das questões femininas
propostas pela escritora. Tal importância se deve ao fato de que, dependendo
da posição de onde a ação é narrada, a personagem em questão e a própria
ação podem ser questionadas ou levadas a sério. Isso tem a ver com a
proximidade estabelecida pelo narrador entre o leitor e as personagens. No
caso dos contos analisados, o foco narrativo privilegiou, principalmente, a visão
a partir das personagens femininas e sua subjetividade, a fim de que fossem
revelados certos pontos de vista diferentes daqueles aceitos pela sociedade
tradicional e para que as personagens femininas tivessem a simpatia e a
compreensão do leitor em relação às suas atitudes, como acontece com
Mildred, de “A Shameful Affair”. Já em “Madame Célestin’s Divorce”, por
exemplo, o enfoque recai sobre uma personagem masculina que se encontrava
emocionalmente envolvida com a protagonista, o que também favoreceu um
clima de simpatia entre o leitor e a personagem feminina.
No entanto, esse narrador, que é onisciente em grande parte do
tempo nos contos estudados, deixa de sê-lo por alguns momentos da narrativa,
que coincidem, sobretudo, quando os pensamentos das personagens
femininas entram em desacordo com a sociedade. Nesses casos, porém, o
leitor precisa trabalhar com o que fica subentendido ou com aquilo que não é
dito, reforçando a idéia de que as personagens femininas não poderiam
expressar por inteiro suas idéias e que não tinham voz na sociedade.
Com base na análise das relações de espaço, verificou-se que a
maioria das protagonistas estudadas, como Mrs. Baroda, Madame Célestin,
Eleanor, Mrs. Sommers, Mildred e até mesmo Paula, transitam entre o
sentimento de agoraphobia e a claustrophobia, ou seja, manifestam, ao mesmo
tempo, uma necessidade de proteção, de um lar e uma vontade de serem livres
e autônomas. Dessa forma, a alternância das personagens femininas no
espaço público e privado funciona como um dos principais veículos de
CONCLUSÃO
200
discussão dos conflitos femininos presentes nos contos de Kate Chopin, bem
como de construção da identidade de suas protagonistas.
Quanto à noção de tempo, pôde-se inferir que a manifestação da
interioridade das personagens femininas tornou-se possível graças à utilização
predominante do tempo psicológico, a partir do qual muitos de seus
pensamentos e sensações conseguiram atingir o leitor, expressando a maneira
subjetiva com que foram apreendidos por elas. Esse recurso não deve ser
entendido de forma isolada, mas sim como parte de uma estrutura narrativa
que, juntamente com o foco narrativo, o espaço e os demais elementos
contribui para o efeito acima desejado.
É importante destacar também o papel da ironia em todos os
textos estudados, pois, graças a ela, pôde-se observar o cruzamento das duas
histórias existentes nos contos, de forma a romper com as expectativas do
leitor. Trata-se de um outro recurso narrativo que favorece o aparecimento das
ambigüidades características do texto de Chopin, utilizado para que suas idéias
e conceitos mais polêmicos fossem camuflados sob uma forma menos direta.
O exemplo mais claro refere-se ao final de “The Story of an Hour”, em que o
narrador faz uso da ironia para não revelar qual teria sido o verdadeiro motivo
da morte de Mrs. Mallard.
Igualmente importante foi a distinção de novas formas de
representação da figura feminina nos contos analisados, seja através da crítica
irônica ao comportamento imprevisível de Madame Célestin, seja por meio de
personagens que ousaram desafiar as regras da sociedade e desempenharam
papéis incomuns no século XIX, como é o caso de Paula, em “Wiser Than a
God” e de Eleanor, em “A Point at Issue”. Com isso, o que chama a atenção
nos contos estudados não é o fato de ser simplesmente mostrada a condição
da mulher em seu tempo, mas sim, por essa condição ter sido revelada,
principalmente, a partir do interior das personagens femininas que, muitas
vezes, assumiram de maneira consciente suas vontades e desejos, mesmo
contrariando os padrões da ideologia patriarcal masculina vigente no século
XIX.
CONCLUSÃO
201
Sendo assim, a escritora criou uma estrutura especial em suas
narrativas de modo a focalizar as personagens femininas nesse momento de
iluminação, que reflete o seu despertar para a condição de indivíduo e de
mulher, quase sempre acompanhado de uma decisão de mudança de
comportamento. Mas por retratar uma época de ambigüidades, em que, de um
lado, vê-se a rapidez nos processos de rupturas na sociedade e, de outro, a
resistência às transformações, essa estrutura conduz muitas dessas
personagens femininas estudadas aqui, mesmo depois de terem passado por
diferentes processos de auto-descoberta e questionamento a respeito de sua
condição, de volta ao ponto de partida. Trata-se de um movimento circular
desenvolvido pelas protagonistas nas narrativas, que reflete as dificuldades e,
muitas vezes, a impossibilidade de transformação da mulher na sociedade. É o
caso, por exemplo, de Mrs. Sommers que sofre uma transformação interna em
relação à sua auto-satisfação e individualidade, mas precisa retornar à limitada
condição anterior de dona-de-casa e mãe.
Muitas vezes, Chopin utiliza-se de um procedimento interessante
para que as atitudes dessas protagonistas mais emancipadas e rebeldes não
sejam levadas tão a sério pelos leitores. Trata-se de atribuir a elas algum
aspecto de desequilíbrio mental, ausência de razão ou influência malévola de
alguma entidade, a fim de que seus atos sejam justificados ou, até mesmo,
perdoados.
É importante ressaltar que, em todos os contos escolhidos, as
personagens principais são as protagonistas de suas histórias. Com isso, a
partir de sua análise, foi possível observar a representação de diferentes
papéis femininos desempenhados por essas protagonistas que vão, desde
aquela apontando para a mulher mais submissa e mais conformada com sua
condição, como é o caso de Madame Célestin, até aquela que manifesta o
comportamento mais desafiador, que é o que Calixta faz, ao ter uma relação
sexual fora do casamento. Outras protagonistas conseguem viver uma
duplicidade de papéis, como Mrs. Baroda de “A Respectable Woman”, quando
expressa a possibilidade de permanecer casada e manter um relacionamento
extraconjugal, enquanto outra, a Mrs. Mallard de “The Story of an Hour”, não
CONCLUSÃO
202
resiste ao choque de voltar a viver sua vida de casada e acaba morrendo. Além
dessas, pôde-se observar o caráter contestador de Paula, ao escolher a
carreira de pianista de sucesso e não o casamento com o homem que amava,
e de Mildred, ao abordar e seduzir um belo rapaz. O casamento aberto de
Eleanor confirma uma tentativa de emancipação da protagonista, enquanto
Mrs. Sommers expressa seu descontentamento com a rotina dos afazeres
domésticos e com a maternidade, revelando sua necessidade de auto-
satisfação e de individualidade.
Já no que diz respeito aos diferentes modos de enfrentamento
das protagonistas em relação às convenções morais e sociais, o estudo
permitiu confirmar a existência de uma alternância entre os modos de
construção dos conflitos femininos. Enquanto algumas personagens como
Calixta e Paula revelam uma postura de enfrentamento mais direto e crítico,
outras sugerem uma aparente concordância com os valores da sociedade,
como é o caso de Mrs. Baroda. Assim, algumas protagonistas conseguem
romper com os estereótipos femininos e passam a propor novos retratos da
mulher e novos comportamentos em relação aos assuntos mais polêmicos
como a sexualidade e a emancipação, como em “A Shameful Affair”, “The
Storm” e “A Pair of Silk Stockings”. Com a ajuda de outras, a condição
feminina é apenas denunciada, como é o caso de “Madame Célestin’s
Divorce”. Recorde-se que, por serem brancas, algumas personagens
conseguiram desafiar as regras sociais de maneira mais radical do que outras.
É o caso de Mildred e da própria Mrs. Baroda, ao demonstrarem um tipo de
comportamento anti-convencional numa sociedade em que eram mais
cobradas do que Calixta, em “The Storm”.
Com essas diferentes formas de representação da figura
feminina, pode-se afirmar que Kate Chopin realiza uma reinterpretação do ser
mulher, abrindo novas possibilidades de existência fora dos padrões patriarcais
vigentes.
Diante desse quadro, em que foram desvendadas e discutidas as
principais estratégias narrativas utilizadas por Kate Chopin para a construção e
representação da identidade feminina, comprova-se o caráter feminista da
CONCLUSÃO
203
escritora, já que as denúncias e reflexões sobre as relações de poder
encontram-se embutidas nas próprias estruturas criadas por ela para compor
sua obra.
Assim, por exemplo, ao fazer uso das estratégias que visam a
codificação das experiências femininas, é possível encaixar Kate Chopin na
primeira fase do feminismo proposto por Showalter, uma vez que, usando a
nomenclatura da crítica, seus contos eram “(...) typically oblique, displaced,
ironic, and subversive; one has to read it between the lines, in the missed
possibilities of the text”
73
(SHOWALTER, 1985, p. 255). Daí também vem a
idéia do texto palimpsesto, que foi exemplificado em alguns momentos das
análises propostas.
Com isso, pode-se afirmar que o conflito entre os valores
patriarcais e o despertar da condição feminina, aliado à busca pela identidade
da mulher, é destacado em todos os contos estudados e deve ser entendido
como algo que vai além da simples escolha temática de Kate Chopin. Trata-se
de um elemento que é inerente à própria estrutura de sua obra.
É necessário esclarecer ainda que, de acordo com a proposta do
estudo e do conceito de feminismo destacado por ele, acredita-se que o fato
de Kate Chopin não ter se associado ao ativismo não significa
necessariamente não ser uma feminista, pois, “ao romper o silêncio em que
sempre foi colocado, o “feminino” iguala-se também com o revolucionário, o
subversivo, porque se propõe a sair da posição secundária em que se achava”
(FERREIRA, 1990, p. 26).
Além disso, Chopin também deve ser reconhecida como uma
escritora feminista pelo fato de lançar “luz sobre um fato importante em toda a
ação feminista que é a da penetração na esfera doméstica e revelação do
conflito que aí aparece de maneira aguçada, mas que é abafado sob o
revestimento do que é ‘pessoal’ ou ‘particular’” (Souza, 2002, p. 52).
Acredita-se que o feminismo ao qual Chopin pertence deve ser
entendido, como foi visto na introdução através das palavras de Duarte (2003,
73
“(...) tipicamente oblíquo, deslocado, irônico, e subversivo; é preciso lê-lo nas entrelinhas,
nas possibilidades escondidas do texto”.
CONCLUSÃO
204
p. 3), “em um sentido amplo, como todo gesto ou ação que resulte em protesto
contra a opressão e a discriminação da mulher”. A partir dessa definição,
podem ser consideradas feministas também aquelas mulheres que se
envolveram com as causas femininas mesmo antes de aparecer o termo
feminismo ou outras que, independentemente de terem pertencido a algum
grupo sufragista ou de defesa dos direitos das mulheres, manifestaram de
maneira menos panfletária, um interesse e uma indignação pela condição
feminina.
Com isso, demonstra-se que Kate Chopin é uma escritora
feminista, pois conseguiu, através do exemplo de sua vida pessoal e
profissional, e, sobretudo, por meio de sua obra, dedicar-se à reflexão e
discussão dos valores tradicionais impostos pela sociedade às mulheres de
seu tempo. E, mesmo sabendo que nessa época já havia uma perspectiva de
transformação da situação das mulheres, a reação do público e da crítica à sua
obra, principalmente no final de sua carreira, não poderia ter sido pior, pois, as
idéias feministas haviam tomado forma em seus contos e se transformado em
personagens, pensamentos, ações e situações quase que palpáveis e reais.
Nessa perspectiva, Kate Chopin, torna-se responsável pelo desvendamento de
idéias a respeito das mulheres que até então seriam inconcebíveis aos olhos
da sociedade de seu tempo, mostrando situações e personagens que se
revelaram uma afronta para as pessoas que não estavam preparadas para
mudanças no modo de ver a posição da mulher.
Partindo do princípio de que os textos escritos por mulheres
devem servir para que a condição feminina possa representar a vida das
mulheres na sociedade, foi possível entrar em contato com as principais
questões femininas do final do século XIX, que devem ser encaradas como um
estímulo para o crescimento individual da mulher e para o aperfeiçoamento das
relações sociais.
Para finalizar, torna-se necessário destacar a importância da
Crítica Literária Feminista e de sua proposta de revisão dos textos escritos por
mulheres, pois, acredita-se que, ao serem reavaliadas tais obras literárias,
está-se contribuindo para uma perspectiva mais ampla da sociedade do final do
CONCLUSÃO
205
século XIX, onde podem ser incluídos, além daqueles elementos presentes na
visão tradicional masculina, também os aspectos da trajetória feminina. Trata-
se de uma maneira de colaborar para uma proposta de reformulação da própria
história, tornando mais abrangente seu universo de interesse em função da
aceitação de novas e diferentes perspectivas do real, que representem não
somente os valores dominantes, mas também aqueles das chamadas minorias
sociais. Acredita-se, dessa forma, que a compreensão do passado por meio de
várias perspectivas pode contribuir para as ações transformadoras do presente,
bem como interferir de maneira positiva no futuro, principalmente no que diz
respeito à construção de uma sociedade cujas relações humanas sejam mais
harmônicas e justas.
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ANEXOS
ANEXOS
217
"THE STORY OF AN HOUR"
Knowing that Mrs. Mallard was afflicted with a heart trouble, great care
was taken to break to her as gently as possible the news of her husband's
death.
It was her sister Josephine who told her, in broken sentences; veiled hints that
revealed in half concealing. Her husband's friend Richards was there, too, near
her. It was he who had been in the newspaper office when intelligence of the
railroad disaster was received, with Brently Mallard's name leading the list of
"killed." He had only taken the time to assure himself of its truth by a second
telegram, and had hastened to forestall any less careful, less tender friend in
bearing the sad message.
She did not hear the story as many women have heard the same, with a
paralyzed inability to accept its significance. She wept at once, with sudden,
wild abandonment, in her sister's arms. When the storm of grief had spent itself
she went away to her room alone. She would have no one follow her.
There stood, facing the open window, a comfortable, roomy armchair. Into this
she sank, pressed down by a physical exhaustion that haunted her body and
seemed to reach into her soul.
She could see in the open square before her house the tops of trees that were
all aquiver with the new spring life. The delicious breath of rain was in the air. In
the street below a peddler was crying his wares. The notes of a distant song
which some one was singing reached her faintly, and countless sparrows were
twittering in the eaves.
There were patches of blue sky showing here and there through the clouds that
had met and piled one above the other in the west facing her window.
She sat with her head thrown back upon the cushion of the chair, quite
motionless, except when a sob came up into her throat and shook her, as a
child who has cried itself to sleep continues to sob in its dreams.
She was young, with a fair, calm face, whose lines bespoke repression and
even a certain strength. But now there was a dull stare in her eyes, whose gaze
was fixed away off yonder on one of those patches of blue sky. It was not a
glance of reflection, but rather indicated a suspension of intelligent thought.
There was something coming to her and she was waiting for it, fearfully. What
was it? She did not know; it was too subtle and elusive to name. But she felt it,
creeping out of the sky, reaching toward her through the sounds, the scents, the
color that filled the air.
ANEXOS
218
Now her bosom rose and fell tumultuously. She was beginning to recognize this
thing that was approaching to possess her, and she was striving to beat it back
with her will--as powerless as her two white slender hands would have been.
When she abandoned herself a little whispered word escaped her slightly
parted lips. She said it over and over under hte breath: "free, free, free!" The
vacant stare and the look of terror that had followed it went from her eyes. They
stayed keen and bright. Her pulses beat fast, and the coursing blood warmed
and relaxed every inch of her body.
She did not stop to ask if it were or were not a monstrous joy that held her. A
clear and exalted perception enabled her to dismiss the suggestion as trivial.
She knew that she would weep again when she saw the kind, tender hands
folded in death; the face that had never looked save with love upon her, fixed
and gray and dead. But she saw beyond that bitter moment a long procession
of years to come that owuld belong to her absolutely. And she opened and
spread her arms out to them in welcome.
There would be no one to live for during those coming years; she would live for
herself. There would be no powerful will bending hers in that blind persistence
with which men and women believe they ahve a right to impose a private will
upon a fellow-creature. A kind intention or a cruel intention made the act seem
no less a crime as she looked upon it in that brief moment of illumination.
And yet she had loved him--sometimes. Often she had not. What did it matter!
What could love, the unsolved mystery, count for in the face of this possession
of self-assertion which she suddenly recognized as the strongest impulse of her
being!
"Free! Body and soul free!" she kept whispering.
Josephine was kneeling before the closed door with her lips to the keyhold,
imploring for admission. "Louise, open the door! I beg; open the door--you will
make yourself ill. What are you doing, Louise? For heaven's sake open the
door."
"Go away. I am not making myself ill." No; she was drinking in a very elixir of life
through that open window.
Her fancy was running riot along those days ahead of her. Spring days, and
summer days, and all sorts of days that would be her own. She breathed a
quick prayer that life might be long. It was only yesterday she had thought with
a shudder that life might be long.
She arose at length and opened the door to her sister's importunities. There
was a feverish triumph in her eyes, and she carried herself unwittingly like a
goddess of Victory. She clasped her sister's waist, and together they
descended the stairs. Richards stood waiting for them at the bottom.
ANEXOS
219
Some one was opening the front door with a latchkey. It was Brently Mallard
who entered, a little travel-stained, composedly carrying his grip-sack and
umbrella. He had been far from the scene of the accident, and did not even
know there had been one. He stood amazed at Josephine's piercing cry; at
Richards' quick motion to screen him from the view of his wife.
When the doctors came they said she had died of heart disease--of the joy that
kills.
http://www.vcu.edu/engweb/webtexts/hour/ Acesso em 2/12/2006.
ANEXOS
220
“MADAME CÉLESTIN'S DIVORCE”
MADAME CÉLESTIN always wore a neat and snugly fitting calico wrapper
when she went out in the morning to sweep her small gallery. Lawyer Paxton
thought she looked very pretty in the gray one that was made with a graceful
Watteau fold at the back: and with which she invariably wore a bow of pink
ribbon at the throat. She was always sweeping her gallery when lawyer Paxton
passed by in the morning on his way to his office in St. Denis Street.
Sometimes he stopped and leaned over the fence to say good-morning at his
ease; to criticise or admire her rosebushes; or, when he had time enough, to
hear what she had to say. Madame Célestin usually had a good deal to say.
She would gather up the train of her calico wrapper in one hand, and balancing
the broom gracefully in the other, would go tripping down to where the lawyer
leaned, as comfortably as he could, over her picket fence.
Of course she had talked to him of her troubles. Every one knew Madame
Célestin's troubles.
"Really, madame," he told her once, in his deliberate, calculating, lawyer-tone,
"it 's more than human nature - woman's nature - should be called upon to
endure. Here you are, working your fingers off" - she glanced down at two rosy
finger-tips that showed through the rents in her baggy doeskin gloves - "taking
in sewing; giving music lessons; doing God knows what in the way of manual
labor to support yourself and those two little ones" - Madame Célestin's pretty
face beamed with satisfaction at this enumeration of her trials.
"You right, Judge. Not a picayune, not one, not one, have I lay my eyes on in
the pas' fo' months that I can say Célestin give it to me or sen' it to me."
"The scoundrel!" muttered lawyer Paxton in his beard.
"An'
pourtant ," she resumed, "they say he 's making money down roun'
Alexandria w'en he wants to work."
"I dare say you have n't seen him for months?" suggested the lawyer.
"It 's good six month' since I see a sight of Célestin," she admitted.
"That 's it, that 's what I say; he has practically deserted you; fails to support
you. It wouldn't surprise me a bit to learn that he has ill treated you."
"Well, you know, Judge," with an evasive cough, "a man that drinks - w'at can
you expec'? An' if you would know the promises he has made me! Ah, if I had
as many dolla' as I had promise from Célestin, I would n' have to work,
je vous
garantis
."
ANEXOS
221
"And in my opinion, madame, you would be a foolish woman to endure it longer,
when the divorce court is there to offer you redress."
"You spoke about that befo', Judge; I 'm goin' think about that divo'ce. I believe
you right."
Madame Célestin thought about the divorce and talked about it, too; and lawyer
Paxton grew deeply interested in the theme.
"You know, about that divo'ce, Judge," Madame Célestin was waiting for him
that morning, "I been talking to my family an' my frien's, an' it 's me that tells
you, they all plumb agains' that divo'ce."
"Certainly to be sure; that 's to be expected, madame, in this community of
Creoles. I warned you that you would meet with opposition, and would have to
face it and brave it."
"Oh, don't fear, I 'm going to face it! Maman says it 's a disgrace like it 's neva
been in the family. But it 's good for Maman to talk, her. W'at trouble she ever
had? She says I mus' go by all means consult with Père Duchéron - it 's my
confessor, you undastan' - Well, I 'll go, Judge, to please Maman. But all the
confessor' in the worl' ent goin' make me put up with that conduc' of Célestin
any longa."
A day or two later, she was there waiting for him again. "You know, Judge,
about that divo'ce."
"Yes, yes," responded the lawyer, well pleased to trace a new determination in
her brown eyes and in the curves of her pretty mouth. "I suppose you saw Père
Duchéron and had to brave it out with him, too."
"Oh, fo' that, a perfec' sermon, I assho you. A talk of giving scandal an' bad
example that I thought would neva en'! He says, fo' him, he wash' his hands; I
mus' go see the bishop."
"You won't let the bishop dissuade you, I trust," stammered the lawyer more
anxiously than he could well understand.
"You don't know me yet, Judge," laughed Madame Célestin with a turn of the
head and a flirt of the broom which indicated that the interview was at an end.
"Well, Madame Célestin! And the bishop!" Lawyer Paxton was standing there
holding to a couple of the shaky pickets. She had not seen him. "Oh, it 's you,
Judge?" and she hastened towards him with an
empressement that could not
but have been flattering.
"Yes, I saw Monseigneur," she began. The lawyer had already gathered from
her expressive countenance that she had not wavered in her determination.
ANEXOS
222
"Ah, he 's a eloquent man. It 's not a mo' eloquent man in Natchitoches parish. I
was fo'ced to cry, the way he talked to me about my troubles; how he
undastan's them, an' feels for me. It would move even you, Judge, to hear how
he talk' about that step I want to take; its danga, its temptation. How it is the
duty of a Catholic to stan' everything till the las' extreme. An' that life of
retirement an' self-denial I would have to lead, - he tole me all that."
"But he has n't turned you from your resolve, I see," laughed the lawyer
complacently.
"For that, no," she returned emphatically. "The bishop don't know w'at it is to be
married to a man like Célestin, an' have to endu' that conduc' like I have to
endu' it. The Pope himse'f can't make me stan' that any longer, if you say I got
the right in the law to sen' Célestin sailing."
A noticeable change had come over lawyer Paxton. He discarded his work-day
coat and began to wear his Sunday one to the office. He grew solicitous as to
the shine of his boots, his collar, and the set of his tie. He brushed and trimmed
his whiskers with a care that had not before been apparent. Then he fell into a
stupid habit of dreaming as he walked the streets of the old town. It would be
very good to take unto himself a wife, he dreamed. And he could dream of no
other than pretty Madame Célestin filling that sweet and sacred office as she
filled his thoughts, now. Old Natchitoches would not hold them comfortably,
perhaps; but the world was surely wide enough to live in, outside of
Natchitoches town.
His heart beat in a strangely irregular manner as he neared Madame Célestin's
house one morning, and discovered her behind the rosebushes, as usual plying
her broom. She had finished the gallery and steps and was sweeping the little
brick walk along the edge of the violet border.
"Good-morning, Madame Célestin."
"Ah, it 's you, Judge? Good-morning." He waited. She seemed to be doing the
same. Then she ventured, with some hesitancy, "You know, Judge, about that
divo'ce. I been thinking, - I reckon you betta neva mine about that divo'ce." She
was making deep rings in the palm of her gloved hand with the end of the
broom-handle, and looking at them critically. Her face seemed to the lawyer to
be unusually rosy; but maybe it was only the reflection of the pink bow at the
throat. "Yes, I reckon you need n' mine. You see, Judge, Célestin came home
las' night. An' he 's promise me on his word an' honor he 's going to turn ova a
new leaf."
http://classiclit.about.com/library/bl-etexts/kchopin/bl-kchop-madame.htm
Acesso em 2/12/2006
ANEXOS
223
“A RESPECTABLE WOMAN”
MRS. BARODA was a little provoked to learn that her husband expected his
friend, Gouvernail, up to spend a week or two on the plantation.
They had entertained a good deal during the winter; much of the time had
also been passed in New Orleans in various forms of mild dissipation. She was
looking forward to a period of unbroken rest, now, and undisturbed tête-a-tête
with her husband, when he informed her that Gouvernail was coming up to stay
a week or two.
This was a man she had heard much of but never seen. He had been her
husband's college friend; was now a journalist, and in no sense a society man
or "a man about town," which were, perhaps, some of the reasons she had
never met him. But she had unconsciously formed an image of him in her mind.
She pictured him tall, slim, cynical; with eye-glasses, and his hands in his
pockets; and she did not like him. Gouvernail was slim enough, but he wasn't
very tall nor very cynical; neither did he wear eye-glasses nor carry his hands in
his pockets. And she rather liked him when he first presented himself.
But why she liked him she could not explain satisfactorily to herself when she
partly attempted to do so. She could discover in him none of those brilliant and
promising traits which Gaston, her husband, had often assured her that he
possessed. On the contrary, he sat rather mute and receptive before her chatty
eagerness to make him feel at home and in face of Gaston's frank and wordy
hospitality. His manner was as courteous toward her as the most exacting
woman could require; but he made no direct appeal to her approval or even
esteem.
Once settled at the plantation he seemed to like to sit upon the wide portico in
the shade of one of the big Corinthian pillars, smoking his cigar lazily and
listening attentively to Gaston's experience as a sugar planter.
"This is what I call living," he would utter with deep satisfaction, as the air that
swept across the sugar field caressed him with its warm and scented velvety
touch. It pleased him also to get on familiar terms with the big dogs that came
about him, rubbing themselves sociably against his legs. He did not care to fish,
and displayed no eagerness to go out and kill grosbecs when Gaston proposed
doing so.
Gouvernail's personality puzzled Mrs. Baroda, but she liked him. Indeed, he
was a lovable, inoffensive fellow. After a few days, when she could understand
him no better than at first, she gave over being puzzled and remained piqued. In
this mood she left her husband and her guest, for the most part, alone together.
Then finding that Gouvernail took no manner of exception to her action, she
ANEXOS
224
imposed her society upon him, accompanying him in his idle strolls to the mill
and walks along the batture. She persistently sought to penetrate the reserve in
which he had unconsciously enveloped himself.
"When is he going -- your friend?" she one day asked her husband. "For my
part, he tires me frightfully."
"Not for a week yet, dear. I can't understand; he gives you no trouble."
"No. I should like him better if he did; if he were more like others, and I had to
plan somewhat for his comfort and enjoyment."
Gaston took his wife's pretty face between his hands and looked tenderly and
laughingly into her troubled eyes. They were making a bit of toilet sociably
together in Mrs. Baroda's dressing-room.
"You are full of surprises, ma belle," he said to her. "Even I can never count
upon how you are going to act under given conditions." He kissed her and
turned to fasten his cravat before the mirror.
"Here you are," he went on, "taking poor Gouvernail seriously and making a
commotion over him, the last thing he would desire or expect."
"Commotion!" she hotly resented. "Nonsense! How can you say such a thing?
Commotion, indeed! But, you know, you said he was clever."
"So he is. But the poor fellow is run down by overwork now. That's why I
asked him here to take a rest."
"You used to say he was a man of ideas," she retorted, unconciliated. "I
expected him to be interesting, at least. I'm going to the city in the morning to
have my spring gowns fitted. Let me know when Mr. Gouvernail is gone; I shall
be at my Aunt Octavie's."
That night she went and sat alone upon a bench that stood beneath a live oak
tree at the edge of the gravel walk.
She had never known her thoughts or her intentions to be so confused. She
could gather nothing from them but the feeling of a distinct necessity to quit her
home in the morning.
Mrs. Baroda heard footsteps crunching the gravel; but could discern in the
darkness only the approaching red point of a lighted cigar. She knew it was
Gouvernail, for her husband did not smoke. She hoped to remain unnoticed, but
her white gown revealed her to him. He threw away his cigar and seated himself
upon the bench beside her; without a suspicion that she might object to his
presence.
ANEXOS
225
"Your husband told me to bring this to you, Mrs. Baroda," he said, handing her
a filmy, white scarf with which she sometimes enveloped her head and
shoulders. She accepted the scarf from him with a murmur of thanks, and let it
lie in her lap.
He made some commonplace observation upon the baneful effect of the night
air at the season. Then as his gaze reached out into the darkness, he
murmured, half to himself:
"'Night of south winds -- night of the large few
stars!
Still nodding night -- '"
She made no reply to this apostrophe to the night, which, indeed, was not
addressed to her.
Gouvernail was in no sense a diffident man, for he was not a self-conscious
one. His periods of reserve were not constitutional, but the result of moods.
Sitting there beside Mrs. Baroda, his silence melted for the time.
He talked freely and intimately in a low, hesitating drawl that was not
unpleasant to hear. He talked of the old college days when he and Gaston had
been a good deal to each other; of the days of keen and blind ambitions and
large intentions. Now there was left with him, at least, a philosophic
acquiescence to the existing order -- only a desire to be permitted to exist, with
now and then a little whiff of genuine life, such as he was breathing now.
Her mind only vaguely grasped what he was saying. Her physical being was
for the moment predominant. She was not thinking of his words, only drinking in
the tones of his voice. She wanted to reach out her hand in the darkness and
touch him with the sensitive tips of her fingers upon the face or the lips. She
wanted to draw close to him and whisper against his cheek -- she did not care
what -- as she might have done if she had not been a respectable woman.
The stronger the impulse grew to bring herself near him, the further, in fact,
did she draw away from him. As soon as she could do so without an
appearance of too great rudeness, she rose and left him there alone.
Before she reached the house, Gouvernail had lighted a fresh cigar and
ended his apostrophe to the night.
Mrs. Baroda was greatly tempted that night to tell her husband -- who was
also her friend -- of this folly that had seized her. But she did not yield to the
temptation. Beside being a respectable woman she was a very sensible one;
and she knew there are some battles in life which a human being must fight
alone.
ANEXOS
226
When Gaston arose in the morning, his wife had already departed. She had
taken an early morning train to the city. She did not return till Gouvernail was
gone from under her roof.
There was some talk of having him back during the summer that followed.
That is, Gaston greatly desired it; but this desire yielded to his wife's strenuous
opposition.
However, before the year ended, she proposed, wholly from herself, to have
Gouvernail visit them again. Her husband was surprised and delighted with the
suggestion coming from her.
"I am glad, chère amie, to know that you have finally overcome your dislike for
him; truly he did not deserve it."
"Oh," she told him, laughingly, after pressing a long, tender kiss upon his lips,
"I have overcome everything! you will see. This time I shall be very nice to him."
http://etext.virginia.edu/etcbin/toccer-
new2?id=ChoResp.sgm&images=images/modeng&data=/texts/english/mo
deng/parsed&tag=public&part=1&division=div1 Acesso em 2/12/2006
ANEXOS
227
“A SHAMEFUL AFFAIR”
I
Mildred Orme, seated in the snuggest corner of the big front porch of the
Kraummer farmhouse, was as content as a girl need hope to be.
This was no such farm as one reads about in humorous fiction. Here were
swelling acres where the undulating wheat gleamed in the sun like a golden
sea. For silver there was the Meramec- or, better, it was pure crystal, for here
and there one might look clean through it down to where the pebbles lay like
green and yellow gems. Along the river's edge trees were growing to the very
water, and in it, sweeping it when they were willows.
The house itself was big and broad, as country houses should be. The master
was big and broad, too. The mistress was small and thin, and it was always she
who went out at noon to pull the great clanging bell that called the farmhands in
to dinner.
From her agreeable corner where she lounged with her Browning or her Ibsen,
Mildred watched the woman do this every day. Yet when the clumsy farmhands
all came tramping up the steps and crossed the porch in going to their meal that
was served within, she never looked at them. Why should she? Farmhands are
not so very nice to look at, and she was nothing of an anthropologist. But once
when the half dozen men came along, a paper which she had laid carelessly
upon the railing was blown across their path. One of them picked it up, and
when he had mounted the steps restored it to her. He was young, and brown, of
course, as the sun had made him. He had nice blue eyes. His fair hair was
dishevelled. His shoulders were broad and square and his limbs strong and
clean. A not unpicturesque figure in the rough attire that bared his throat to view
and gave perfect freedom to his every motion.
Mildred did not make these several observations in the half second that she
looked at him in courteous acknowledgment. It took her as many days to note
them all. For she signaled him out each time that he passed her, meaning to
give him a condescending little smile, as she knew how. But he never looked at
her. To be sure, clever young women of twenty, who are handsome, besides,
who have refused their half dozen offers and are settling down to the conviction
that life is a tedious affair, are not going to care a straw whether farmhands look
at them or not. And Mildred did not care, and the thing would not have occupied
her a moment if Satan had not intervened, in offering the employment which
natural conditions had failed to supply. It was summer time; she was idle; she
was piqued, and that was the beginning of the shameful affair.
"Who are these men, Mrs. Kraummer, that work for you? Where do you pick
them up?"
"Oh, ve picks 'em up everyvere. Some is neighbors, some is tramps, and so."
ANEXOS
228
"And that broad-shouldered young fellow- is he a neighbor? The one who
handed me my paper the other day- you remember?"
"Gott, no! You might yust as well say he vas a tramp. Aber he vorks like a
steam ingine."
"Well, he's an extremely disagreeable-looking man. I should think you'd be
afraid to have him about, not knowing him."
"Vat you vant to be 'fraid for?" laughed the little woman. "He don't talk no more
un ven he vas deef und dumb. I didn't t'ought you vas sooch a baby."
"But, Mrs. Kraummer, I don't want you to think I'm a baby, as you say- a
coward, as you mean. Ask the man if he will drive me to church tomorrow. You
see, I'm not so very much afraid of him," she added with a smile.
The answer which this unmannerly farmhand returned to Mildred's request was
simply a refusal. He could not drive her to church because he was going fishing.
"Aber," offered good Mrs. Kraummer, "Hans Platzfeldt will drive you to church,
oder verever you vants. He vas a goot boy vat you can trust, dat Hans."
"Oh, thank him very much. But I find I have so many letters to write tomorrow,
and it promises to be hot, too. I shan't care to go to church after all."
She could have cried for vexation. Snubbed by a farmhand! a tramp, perhaps.
She, Mildred Orme, who ought really to have been with the rest of the family at
Narragansett- who had come to seek in this retired spot the repose that would
enable her to follow exalted lines of thought. She marveled at the problematic
nature of farmhands.
After sending her the uncivil message already recorded, and as he passed
beneath the porch where she sat, he did look at her finally, in a way to make her
positively gasp at the sudden effrontery of the man.
But the inexplicable look stayed with her. She could not banish it.
II
It was not so very hot after all, the next day, when Mildred walked down the long
narrow footpath that led through the bending wheat to the river. High above her
waist reached the yellow grain. Mildred's brown eyes filled with a reflected
golden light as they caught the glint of it, as she heard the trill that it answered
to the gentle breeze. Anyone who has walked through the wheat in midsummer-
time knows that sound.
ANEXOS
229
In the woods it was sweet and solemn and cool. And there beside the river was
the wretch who had annoyed her, first, with his indifference, then with the
sudden boldness of his glance.
"Are you fishing?" she asked politely and with kindly dignity, which she
supposed would define her position toward him. The inquiry lacked not
pertinence, seeing that he sat motionless, with a pole in his hand and his eyes
fixed on a cork that bobbed aimlessly on the water.
"Yes, madam," was his brief reply.
"It won't disturb you if I stand here a moment, to see what success you will
have?"
She stood very still, holding tight to the book she had brought with her. Her
straw hat had slipped disreputably to one side, over the wavy bronze-brown
bang that half covered her forehead. Her cheeks were ripe with color that the
sun had coaxed there; so were her lips.
All the other farmhands had gone forth in Sunday attire. Perhaps this one had
none better than these working clothes that he wore. A feminine commiseration
swept her at the thought. He spoke never a word. She wondered how many
hours he could sit there, so patiently waiting for fish to come to his hook. For her
part, the situation began to pall, and she wanted to change it at last.
"Let me try a moment, please? I have an idea."
"Yes, madam."
"The man is surely an idiot, with his monosyllables," she commented inwardly.
But she remembered that monosyllables belong to a boor's equipment.
She laid her book carefully down and took the pole gingerly that he came to
place in her hands. Then it was his turn to stand back and look respectfully and
silently on at the absorbing performance.
"Oh!" cried the girl, suddenly, seized with excitement upon seeing the line
dragged deep in the water.
"Wait, wait! Not yet."
He sprang to her side. With his eyes eagerly fastened on the tense line, he
grasped the pole to prevent her drawing it, as her intention seemed to be. That
is, he meant to grasp the pole, but instead, his brown hand came down upon
Mildred's white one.
He started violently at finding himself so close to a bronze-brown tangle that
almost swept his chin- to a hot cheek only a few inches away from his shoulder,
ANEXOS
230
to a pair of young, dark eyes that gleamed for an instant unconscious things into
his own.
Then, why ever it happened, or how ever it happened, his arms were holding
Mildred and he kissed her lips. She did not know if it was ten times or only once.
She looked around- her face milk-white- to see him disappear with rapid strides
through the path that had brought her there. Then she was alone.
Only the birds had seen, and she could count on their discretion. She was not
wildly indignant, as many would have been, Shame stunned her. But through it
she gropingly wondered if she should tell the Kraummers that her chaste lips
had been rifled of their innocence. Publish her own confusion? No! Once in her
room she would give calm thought to the situation, and determine then how to
act. The secret must remain her own: a hateful burden to bear alone until she
could forget it.
III
And because she feared not to forget it, Mildred wept that night. All day long a
hideous truth had been thrusting itself upon her that made her ask herself if she
could be mad. She feared it. Else why was that kiss the most delicious thing she
had known in her twenty years of life? The sting of it had never left her lips
since it was pressed into them. The sweet trouble of it banished sleep from her
pillow.
But Mildred would not bend the outward conditions of her life to serve any
shameful whim that chanced to visit her soul, like an ugly dream. She would
avoid nothing. She would go and come as always.
In the morning she found in her chair upon the porch the book she had left by
the river. A fresh indignity! But she came and went as she intended to, and sat
as usual upon the porch amid her familiar surroundings. When the Offender
passed her by she knew it, though her eyes were never lifted. Are there only
sight and sound to tell such things? She discerned it by a wave that swept her
with confusion and she knew not what besides.
She watched him furtively, one day, when he talked with Farmer Kraummer out
in the open. When he walked away she remained like one who has drunk much
wine. Then unhesitatingly she turned and began her preparations to leave the
Kraummer farmhouse.
When the afternoon was far spent they brought letters to her. One of them read
like this:
ANEXOS
231
"My Mildred, deary! I am only now at Narragansett, and so broke up not to find
you. So you are down at that Kraummer farm, on the Iron Mountain. Well! What
do you think of that delicious crank, Fred Evelyn? For a man must be a crank
who does such things. Only fancy! Last year he chose to drive an engine back
and forth across the plains. This year he tills the soil with laborers. Next year it
will be something else as insane- because he likes to live more lives than one
kind, and other Quixotic reasons. We are great chums. He writes me he's grown
as strong as an ox. But he hasn't mentioned that you are there. I know you don't
get on with him, for he isn't a bit intellectual- detests Ibsen and abuses Tolstoi.
He doesn't read 'in books'- says they are spectacles for the shortsighted to look
at life through. Don't snub him, dear, or be too hard on him; he has a heart of
gold, if he is the first crank in America."
Mildred tried to think- to feel that the intelligence which this letter brought to her
would take somewhat of the sting from the shame that tortured her. But it did
not. She knew that it could not.
In the gathering twilight she walked again through the wheat that was heavy
and fragrant with dew. The path was very long and very narrow. When she was
midway she saw the Offender coming toward her. What could she do? Turn and
run, as a little child might? Spring into the wheat, as some frightened four-footed
creature would? There was nothing but to pass him with the dignity which the
occasion clearly demanded.
But he did not let her pass. He stood squarely in the pathway before her, hat in
hand, a perturbed look upon his face.
"Miss Orme," he said, "I have wanted to say to you, every hour of the past
week, that I am the most consummate hound that walks the earth."
She made no protest. Her whole bearing seemed to indicate that her opinion
coincided with his own.
"If you have a father, or brother, or any one, in short, to whom you may say
such things-"
"I think you aggravate the offense, sir, by speaking of it. I shall ask you never to
mention it again. I want to forget that it ever happened. Will you kindly let me
by."
"Oh," he ventured eagerly, "you want to forget it! Then, maybe, since you are
willing to forget, you will be generous enough to forgive the offender some
day?"
"Some day," she repeated, almost inaudibly, looking seemingly through him, but
not at him- "some day- perhaps; when I shall have forgiven myself."
ANEXOS
232
He stood motionless, watching her slim, straight figure lessening by degrees as
she walked slowly away from him. He was wondering what she meant. Then a
sudden, quick wave came beating into his brown throat and staining it crimson,
when he guessed what it might be.
http://www.4literature.net/Kate_Chopin/Shameful_Affair/2.html Acesso em
2/12/2006
ANEXOS
233
“WISER THAN A GOD”
"To love and be wise is scarcely granted even to a God." Latin Proverb.
I
"You might at least show some distaste for the task, Paula," said Mrs. Von
Stoltz, in her querulous invalid voice, to her daughter who stood before the
glass bestowing a few final touches of embellishment upon an otherwise plain
toilet.
"And to what purpose, Mutterchen? The task is not entirely to my liking, I'll
admit; but there can be no question as to its results, which you even must
concede are gratifying."
"Well, it's not the career your poor father had in view for you. How often he has
told me when I complained that you were kept too closely at work, 'I want that
Paula shall be at the head,'" with appealing look through the window and up into
the gray, November sky into that far "somewhere," which might be the abode of
her departed husband.
"It isn't a career at all, mama; it's only a make-shift," answered the girl, noting
the happy effect of an amber pin that she had thrust through the coils of her
lustrous yellow hair. "The pot must be kept boiling at all hazards, pending the
appearance of that hoped for career. And you forget that an occasion like this
gives me the very opportunities I want."
"I can't see the advantages of bringing your talent down to such banal servitude.
Who are those people, anyway?"
The mother's question ended in a cough which shook her into speechless
exhaustion.
"Ah! I have let you sit too long by the window, mother," said Paula, hastening to
wheel the invalid's chair nearer the grate fire that was throwing genial light and
warmth into the room, turning its plainness to beauty as by a touch of
enchantment. "By the way," she added, having arranged her mother as
comfortably as might be, "I haven't yet qualified for that 'banal servitude,' as you
call it." And approaching the piano which stood in a distant alcove of the room,
she took up a roll of music that lay curled up on the instrument, straightened it
out before her. Then, seeming to remember the question which her mother had
asked, turned on the stool to answer it. "Don't you know? The Brainards, very
swell people, and awfully rich. The daughter is that girl whom I once told you
about, having gone to the Conservatory to cultivate her voice and old Engfelder
told her in his brusque way to go back home, that his system was not equal to
overcoming impossibilities."
ANEXOS
234
"Oh, those people."
"Yes; this little party is given in honor of the son's return from Yale or Harvard,
or some place or other." And turning to the piano she softly ran over the
dances, whilst the mother gazed into the fire with unresigned sadness, which
the bright music seemed to deepen.
"Well, there'll be no trouble about2that" 4 said Paula, with comfortable
assurance, having ended the last waltz. "There's nothing here to tempt me into
flights of originality; there'll be no difficulty in keeping to the hand-organ effect."
"Don't leave me with those dreadful impressions, Paula; my poor nerves are on
edge."
"You are too hard on the dances, mamma. There are certain strains here and
there that I thought not bad."
"It's your youth that finds it so; I have outlived such illusions."
"What an inconsistent little mother it is!" the girl exclaimed, laughing. "You told
me only yesterday it was my youth that was so impatient with the commonplace
happenings of everyday life. That age, needing to seek its delights, finds them
often in unsuspected places, wasn't that it?"
"Don't chatter, Paula; some music, some music!"
"What shall it be?" asked Paula, touching a succession of harmonious chords.
"It must be short."
"The 'Berceuse,' then; Chopin's. But soft, soft and a little slowly as your dear
father used to play it."
Mrs. Von Stoltz leaned her head back amongst the cushions, and with eyes
closed, drank in the wonderful strains that came like an ethereal voice out of the
past, lulling her spirit into the quiet of sweet memories.
When the last soft notes had melted into silence, Paula approached her mother
and looking into the pale face saw that tears stood beneath the closed eyelids.
"Ah! mamma, I have made you unhappy," she cried, in distress.
"No, my child; you have given me a joy that you don't dream of. I have no more
pain. Your music has done for me what Faranelli's singing did for poor King
Philip of Spain; it has cured me."
There was a glow of pleasure on the warm face and the eyes with almost the
brightness of health. "Whilst I listened to you, Paula, my soul went out from me
and lived again through an evening long ago. We were in our pretty room at
Leipsic. The soft air and the moonlight came through the open-curtained
ANEXOS
235
window, making a quivering fretwork along the gleaming waxed floor. You lay in
my arms and I felt again the pressure of your warm, plump little body against
me. Your father was at the piano playing the 'Berceuse,' and all at once you
drew my head down and whispered, 'Ist es nicht wonderschen, mama?' When it
ended, you were sleeping and your father took you from my arms and laid you
gently in bed."
Paula knelt beside her mother, holding the frail hands which she kissed
tenderly.
"Now you must go, liebchen. Ring for Berta, she will do all that is needed. I feel
very strong to-night. But do not come back too late."
"I shall be home as early as possible; likely in the last car, I couldn't stay longer
or I should have to walk. You know the house in case there should be need to
send for me?"
"Yes, yes; but there will be no need."
Paula kissed her mother lovingly and went out into the drear November night
with the roll of dances under her arm.
II
The door of the stately mansion at which Paula rang, was opened by a footman,
who invited her to "kindly walk upstairs."
"Show the young lady into the music room, James," called from some upper
region a voice, doubtless the same whose impossibilities had been so
summarily dealt with by Herr Engfelder, and Paula was led through a suite of
handsome apartments, the warmth and mellow light of which were very grateful,
after the chill outdoor air.
Once in the music room, she removed her wraps and seated herself
comfortably to await developments. Before her stood the magnificent Steinway,
on which her eyes rested with greedy admiration, and her fingers twitched with
a desire to awaken its inviting possibilities. The odor of flowers impregnated the
air like a subtle intoxicant and over everything hung a quiet smile of expectancy,
disturbed by an occasional feminine flutter above stairs, or muffled suggestions
of distant household sounds.
Presently, a young man entered the drawing room,- no doubt, the college
student, for he looked critically and with an air of proprietorship at the festive
arrangements, venturing the bestowal of a few improving touches. Then, gazing
with pardonable complacency at his own handsome, athletic figure in the mirror,
he saw reflected Paula looking at him, with a demure smile lighting her blue
eyes.
ANEXOS
236
"By Jove!" was his startled exclamation. Then, approaching, "I beg pardon,
Miss- Miss-"
"Von Stoltz."
"Miss Von Stoltz," drawing the right conclusion from her simple toilet and the roll
of music. "I hadn't seen you when I came in. Have you been here long? and
sitting all alone, too? That's certainly rough."
"Oh, I've been here but a few moments, and was very well entertained."
"I dare say," with a glance full of prognostic complimentary utterances, which a
further acquaintance might develop.
As he was lighting the gas of a side bracket that she might better see to read
her music, Mrs. Brainard and her daughter came into the room, radiantly attired
and both approached Paula with sweet and polite greeting.
"George, in mercy!" exclaimed her mother, "put out that gas, you are killing the
effect of the candle light."
"But Miss Von Stoltz can't read her music without it, mother."
"I've no doubt Miss Von Stoltz knows her pieces by heart," Mrs. Brainard
replied, seeking corroboration from Paula's glance.
"No, madam; I'm not accustomed to playing dance music, and this is quite new
to me," the girl rejoined, touching the loose sheets that George had
conveniently straightened out and placed on the rack.
"Oh, dear! 'not accustomed,'?" said Miss Brainard. "And Mr. Sohmeir told us he
knew you would give satisfaction."
Paula hastened to reassure the thoroughly alarmed young lady on the point of
her ability to give perfect satisfaction.
The door bell now began to ring incessantly. Up the stairs, tripped fleeting
opera-cloaked figures, followed by their black robed attendants. The rooms
commenced to fill with the pretty hub-bub that a bevy of girls can make when
inspired by a close masculine proximity; and Paula, not waiting to be asked,
struck the opening bars of an inspiring waltz.
Some hours later, during a lull in the dancing, when the men were making
vigorous applications of fans and handkerchiefs; and the girls beginning to
throw themselves into attitudes of picturesque exhaustion- save for the always
indefatigable few- a proposition was ventured, backed by clamorous entreaties,
which induced George to bring forth his banjo. And an agreeable moment
followed, in which that young man's skill met with a truly deserving applause.
ANEXOS
237
Never had his audience beheld such proficiency as he displayed in the handling
of his instrument, which was now behind him, now overhead, and again
swinging in mid-air like the pendulum of a clock and sending forth the sounds of
stirring melody. Sounds so inspiring that a pretty little black-eyed fairy, an
acknowledged votary of Terpsichore, and George's particular admiration, was
moved to contribute a few passes of a Virginia breakdown, as she had studied it
from life on a Southern plantation. The act closing amid a spontaneous babel of
hand clapping and admiring bravos.
It must be admitted that this little episode, however graceful, was hardly a fitting
prelude to the magnificent "Jewel Song from 'Faust,'" with which Miss Brainard
next consented to regale the company. That Miss Brainard possessed a voice,
was a fact that had existed as matter of tradition in the family as far back almost
as the days of that young lady's baby utterances, in which loving ears had
already detected the promise which time had so recklessly fulfilled.
True genius is not to be held in abeyance, though a host of Engfelders would
rise to quell it with their mundane protests!
Miss Brainard's rendition was a triumphant achievement of sound, and with the
proud flush of success moving her to kind condescension, she asked Miss Von
Stoltz to "please play something."
Paula amiably consented, choosing a selection from the Modern Classic. How
little did her auditors appreciate in the performance the results of a life study, of
a drilling that had made her amongst the knowing an acknowledged mistress of
technique. But to her skill she added the touch and interpretation of the artist;
and in hearing her, even Ignorance paid to her genius the tribute of a silent
emotion.
When she arose there was a moment of quiet, which was broken by the black-
eyed fairy, always ready to cast herself into a breach, observing, flippantly,
"How pretty!" "Just lovely!" from another; and "What wouldn't I give to play like
that." Each inane compliment falling like a dash of cold water on Paula's ardor.
She then became solicitous about the hour, with reference to her car, and
George who stood near looked at his watch and informed her that the last car
had gone by a full half hour before.
"But," he added, "if you are not expecting any one to call for you, I will gladly
see you home."
"I expect no one, for the car that passes here would have set me down at my
door," and in this avowal of difficulties, she tacitly accepted George's offer.
The situation was new. It gave her a feeling of elation to be walking through the
quiet night with this handsome young fellow. He talked so freely and so
pleasantly. She felt such a comfort in his strong protective nearness. In clinging
ANEXOS
238
to him against the buffets of the staggering wind she could feel the muscles of
his arms, like steel.
He was so unlike any man of her acquaintance. Strictly unlike Poldorf, the
pianist, the short rotundity of whose person could have been less objectionable,
if she had not known its cause to lie in an inordinate consumption of beer. Old
Engfelder, with his long hair, his spectacles and his loose, disjointed figure, was
hors de combat in comparison. And of Max Kuntzler, the talented composer, her
teacher of harmony, she could at the moment think of no positive point of
objection against him, save the vague, general, serious one of his unlikeness to
George.
Her new-awakened admiration, though, was not deaf to a little inexplicable wish
that he had not been so proficient with the banjo.
On they went chatting gaily, until turning the corner of the street in which she
lived, Paula saw that before the door stood Dr. Sinn's buggy.
Brainard could feel the quiver of surprised distress that shook her frame, as she
said, hurrying along, "Oh! mamma must be ill- worse; they have called the
doctor."
Reaching the house, she threw open wide the door that was unlocked, and he
stood hesitatingly back. The gas in the small hall burned at its full, and showed
Berta at the top of the stairs, speechless, with terrified eyes, looking down at
her. And coming to meet her, was a neighbor, who strove with well-meaning
solicitude to keep her back, to hold her yet a moment in ignorance of the cruel
blow that fate had dealt her whilst she had in happy unconsciousness played
her music for the dance.
III
Several months had passed since the dreadful night when death had deprived
Paula for the second time of a loved parent.
After the first shock of grief was over, the girl had thrown all her energies into
work, with the view of attaining that position in the musical world which her
father and mother had dreamed might be hers.
She had remained in the small home occupying now but the half of it; and here
she kept house with the faithful Berta's aid.
Friends were both kind and attentive to the stricken girl. But there had been two,
whose constant devotion spoke of an interest deeper than mere friendly
solicitude.
ANEXOS
239
Max Kuntzler's love for Paula was something that had taken hold of his sober
middle age with an enduring strength which was not to be lessened or shaken,
by her rejection of it. He had asked leave to remain her friend, and while holding
the tender, watchful privileges which that comprehensive title may imply, had
refrained from further thrusting a warmer feeling on her acceptance.
Paula one evening was seated in her small sitting-room, working over some
musical transpositions, when a bang at the bell was followed by a footstep in
the hall which made her hand and heart tremble.
George Brainard entered the room, and before she could rise to greet him, had
seated himself in the vacant chair beside her.
"What an untiring worker you are," he said, glancing down at the scores before
her. "I always feel that my presence interrupts you; and yet I don't know that a
judicious interruption isn't the wholesomest thing for you sometimes."
"You forget," she said, smiling into his face, "that I was trained to it. I must keep
myself fitted to my calling. Rest would mean deterioration."
"Would you not be willing to follow some other calling?" he asked, looking at her
with unusual earnestness in his dark, handsome eyes.
"Oh, never!"
"Not if it were a calling that asked only for the labor of loving?"
She made no answer, but kept her eyes fixed on the idle traceries that she drew
with her pencil on the sheets before her.
He arose and made a few impatient turns about the room, then coming again to
her side, said abruptly:
"Paula, I love you. It isn't telling you something that you don't know, unless you
have been without bodily perceptions. Today there is something driving me to
speak it out in words. Since I have known you," he continued, striving to look
into her face that bent low over the work before her, "I have been mounting into
higher and always higher circles of Paradise, under a blessed illusion that you-
cared for me. But today, a feeling of dread has been forcing itself upon me-
dread that with a word you might throw me back into a gulf that would now be
one of everlasting misery. Say if you love me, Paula. I believe you do, and yet I
wait with indefinable doubts for your answer."
He took her hand which she did not withdraw from his.
"Why are you speechless? Why don't you say something to me!" he asked
desperately.
ANEXOS
240
"I am speechless with joy and misery," she answered. "To know that you love
me, gives me happiness enough to brighten a lifetime. And I am miserable,
feeling that you have spoken the signal that must part us."
"You love me, and speak of parting. Never! You will be my wife. From this
moment we belong to each other. Oh, my Paula," he said, drawing her to his
side, "my whole existence will be devoted to your happiness."
"I can't marry you," she said shortly, disengaging his hand from her waist.
"Why?" he asked abruptly. They stood looking into each other's eyes.
"Because it doesn't enter into the purpose of my life."
"I don't ask you to give up anything in your life. I only beg you to let me share it
with you."
George had known Paula only as the daughter of the undemonstrative
American woman. He had never before seen her with the father's emotional
nature aroused in her. The color mounted into her cheeks, and her blue eyes
were almost black with intensity of feeling.
"Hush," she said; "don't tempt me further." And she cast herself on her knees
before the table near which they stood, gathering the music that lay upon it into
an armful, and resting her hot cheek upon it.
"What do you know of my life," she exclaimed passionately. "What can you
guess of it? Is music anything more to you than the pleasing distraction? Can't
you feel that with me, it courses with the blood through my veins? That it's
something dearer than life, than riches, even than love?" with a quiver of pain.
"Paula listen to me; don't speak like a mad woman."
She sprang up and held out an arm to ward away his nearer approach.
"Would you go into a convent, and ask to be your wife a nun who has vowed
herself to the service of God?"
"Yes, if that nun loved me; she would owe to herself, to me and to God to be my
wife."
Paula seated herself on the sofa, all emotion seeming suddenly to have left her;
and he came and sat beside her.
"Say only that you love me, Paula," he urged persistently.
"I love you," she answered low and with pale lips.
ANEXOS
241
He took her in his arms, holding her in silent rapture against his heart and
kissing the white lips back into red life.
"You will be my wife?"
"You must wait. Come back in a week and I will answer you." He was forced to
be content with the delay.
The days of probation being over, George went for his answer, which was given
him by the old lady who occupied the upper story.
"Ach Gott! Fraulein Von Stoltz ist schon im Leipsic gegangen!"- *001 All that
has not been many years ago. George Brainard is as handsome as ever,
though growing a little stout in the quiet routine of domestic life. He has quite
lost a pretty taste for music that formerly distinguished him as a skilful banjoist.
This loss his little
black-eyed wife deplores; though she has herself made concessions to the
advancing years, and abandoned Virginia breakdowns as incompatible with the
serious offices of wifehood and matrimony.
You may have seen in the morning paper, that the renowned pianist, Fraulein
Paula Von Stoltz, is resting in Leipsic, after an extended and remunerative
concert tour.
Professor Max Kuntzler is also in Leipsic- with the ever persistent will- the
dogged patience that so often wins in the end.
http://www.4literature.net/Kate_Chopin/Wiser_Than_a_God/4.html Acesso
em 2/12/2006.
ANEXOS
242
“A PAIR OF SILK STOCKINGS”
Little Mrs Sommers one day found herself the unexpected possessor of fifteen
dollars. It seemed to her a very large amount of money, and the way in which it
stuffed and bulged her worn old porte-monnaie gave her a feeling of importance
such as she had not enjoyed for years.
The question of investment was one that occupied her greatly. For a day or two
she walked about apparently in a dreamy state, but really absorbed in
speculation and calculation. She did not wish to act hastily, to do anything she
might afterward regret. But it was during the still hours of the night when she
lay awake revolving plans in her mind that she seemed to see her way clearly
toward a proper and judicious use of the money.
A dollar or two should be added to the price usually paid for Janie's shoes,
which would insure their lasting an appreciable time longer than they usually
did. She would buy so and so many yards of percale for new shirt waists for the
boys and Janie and Mag. She had intended to make the old ones do by skilful
patching. Mag should have another gown. She had seen some beautiful
patterns, veritable bargains in the shop windows. And still there would be left
enough for new stockings – two pairs apiece – and what darning that would
save for a while! She would get caps for the boys and sailor-hats for the girls.
The vision of her little brood looking fresh and dainty and new for once in their
lives excited her and made her restless and wakeful with anticipation.
The neighbors sometimes talked of certain ‘better days’ that little Mrs Sommers
had known before she had ever thought of being Mrs Sommers. She herself
indulged in no such morbid retrospection. She had no time – no second of time
to devote to the past. The needs of the present absorbed her every faculty. A
vision of the future like some dim, gaunt monster sometimes appalled her, but
luckily to-morrow never comes.
Mrs Sommers was one who knew the value of bargains; who could stand for
hours making her way inch by inch toward the desired object that was selling
below cost. She could elbow her way if need be; she had learned to clutch a
piece of goods and hold it and stick to it with persistence and determination till
her turn came to be served, no matter when it came.
But that day she was a little faint and tired. She had swallowed a light
luncheon – no! when she came to think of it, between getting the children fed
and the place righted, and preparing herself for the shopping bout, she had
actually forgotten to eat any luncheon at all!
She sat herself upon a revolving stool before a counter that was comparatively
deserted, trying to gather strength and courage to charge through an eager
multitude that was besieging breastworks of shirting and figured lawn. An all-
gone limp feeling had come over her and she rested her hand aimlessly upon
the counter. She wore no gloves. By degrees she grew aware that her hand
ANEXOS
243
had encountered something very soothing, very pleasant to touch. She looked
down to see that her hand lay upon a pile of silk stockings. A placard near by
announced that they had been reduced in price from two dollars and fifty cents
to one dollar and ninety-eight cents; and a young girl who stood behind the
counter asked her if she wished to examine their line of silk hosiery. She
smiled, just as if she had been asked to inspect a tiara of diamonds with the
ultimate view of purchasing it. But she went on feeling the soft, sheeny
luxurious things – with both hands now, holding them up to see them glisten,
and to feel them glide serpent-like through her fingers.
Two hectic blotches came suddenly into her pale cheeks. She looked up at the
girl.
“Do you think there are any eights-and-a-half among these?”
There were any number of eights-and-a-half. In fact, there were more of that
size than any other. Here was a light-blue pair; there were some lavender,
some all black and various shades of tan and gray. Mrs Sommers selected a
black pair and looked at them very long and closely. She pretended to be
examining their texture, which the clerk assured her was excellent.
“A dollar and ninety-eight cents,” she mused aloud. “Well, I'll take this pair.”
She handed the girl a five-dollar bill and waited for her change and for her
parcel. What a very small parcel it was! It seemed lost in the depths of her
shabby old shopping-bag.
Mrs Sommers after that did not move in the direction of the bargain counter.
She took the elevator, which carried her to an upper floor into the region of the
ladies' waiting-rooms. Here, in a retired corner, she exchanged her cotton
stockings for the new silk ones which she had just bought. She was not going
through any acute mental process or reasoning with herself, nor was she
striving to explain to her satisfaction the motive of her action. She was not
thinking at all. She seemed for the time to be taking a rest from that laborious
and fatiguing function and to have abandoned herself to some mechanical
impulse that directed her actions and freed her of responsibility.
How good was the touch of the raw silk to her flesh! She felt like lying back in
the cushioned chair and reveling for a while in the luxury of it. She did for a little
while. Then she replaced her shoes, rolled the cotton stockings together and
thrust them into her bag. After doing this she crossed straight over to the shoe
department and took her seat to be fitted.
She was fastidious. The clerk could not make her out; he could not reconcile
her shoes with her stockings, and she was not too easily pleased. She held
back her skirts and turned her feet one way and her head another way as she
glanced down at the polished, pointed-tipped boots. Her foot and ankle looked
very pretty. She could not realize that they belonged to her and were a part of
herself. She wanted an excellent and stylish fit, she told the young fellow who
ANEXOS
244
served her, and she did not mind the difference of a dollar or two more in the
price so long as she got what she desired.
It was a long time since Mrs Sommers had been fitted with gloves. On rare
occasions when she had bought a pair they were always ‘bargains’, so cheap
that it would have been preposterous and unreasonable to have expected them
to be fitted to the hand.
Now she rested her elbow on the cushion of the glove counter, and a pretty,
pleasant young creature, delicate and deft of touch, drew a long-wristed ‘kid’
over Mrs Sommers's hand. She smoothed it down over the wrist and buttoned
it neatly, and both lost themselves for a second or two in admiring
contemplation of the little symmetrical gloved hand. But there were other
places where money might be spent.
There were books and magazines piled up in the window of a stall a few paces
down the street. Mrs Sommers bought two high-priced magazines such as she
had been accustomed to read in the days when she had been accustomed to
other pleasant things. She carried them without wrapping. As well as she could
she lifted her skirts at the crossings. Her stockings and boots and well fitting
gloves had worked marvels in her bearing – had given her a feeling of
assurance, a sense of belonging to the well-dressed multitude.
She was very hungry. Another time she would have stilled the cravings for food
until reaching her own home, where she would have brewed herself a cup of tea
and taken a snack of anything that was available. But the impulse that was
guiding her would not suffer her to entertain any such thought.
There was a restaurant at the corner. She had never entered its doors; from
the outside she had sometimes caught glimpses of spotless damask and
shining crystal, and soft-stepping waiters serving people of fashion.
When she entered her appearance created no surprise, no consternation, as
she had half feared it might. She seated herself at a small table alone, and an
attentive waiter at once approached to take her order. She did not want a
profusion; she craved a nice and tasty bite – a half dozen blue-points, a plump
chop with cress, a something sweet – a crème-frappée, for instance; a glass of
Rhine wine, and after all a small cup of black coffee.
While waiting to be served she removed her gloves very leisurely and laid them
beside her. Then she picked up a magazine and glanced through it, cutting the
pages with a blunt edge of her knife. It was all very agreeable. The damask
was even more spotless than it had seemed through the window, and the
crystal more sparkling. There were quiet ladies and gentlemen, who did not
notice her, lunching at the small tables like her own. A soft, pleasing strain of
music could be heard, and a gentle breeze, was blowing through the window.
She tasted a bite, and she read a word or two, and she sipped the amber wine
and wiggled her toes in the silk stockings. The price of it made no difference.
ANEXOS
245
She counted the money out to the waiter and left an extra coin on his tray,
whereupon he bowed before her as before a princess of royal blood.
There was still money in her purse, and her next temptation presented itself in
the shape of a matinée poster.
It was a little later when she entered the theatre, the play had begun and the
house seemed to her to be packed. But there were vacant seats here and
there, and into one of them she was ushered, between brilliantly dressed
women who had gone there to kill time and eat candy and display their gaudy
attire. There were many others who were there solely for the play and acting. It
is safe to say there was no one present who bore quite the attitude which Mrs
Sommers did to her surroundings. She gathered in the whole – stage and
players and people in one wide impression, and absorbed it and enjoyed it.
She laughed at the comedy and wept – she and the gaudy woman next to her
wept over the tragedy. And they talked a little together over it. And the gaudy
woman wiped her eyes and sniffled on a tiny square of filmy, perfumed lace and
passed little Mrs Sommers her box of candy.
The play was over, the music ceased, the crowd filed out. It was like a dream
ended. People scattered in all directions. Mrs Sommers went to the corner and
waited for the cable car.
A man with keen eyes, who sat opposite to her, seemed to like the study of her
small, pale face. It puzzled him to decipher what he saw there. In truth, he saw
nothing – unless he were wizard enough to detect a poignant wish, a powerful
longing that the cable car would never stop anywhere, but go on and on with
her forever.
http://www.kingkong.demon.co.uk/gsr/silkstox.htm Acesso em 2/12/2006.
ANEXOS
246
“A POINT AT ISSUE”
MARRIED-On Tuesday, May II, Eleanor Gail to Charles Faraday.
Nothing bearing the shape of a wedding announcement could have been
less obtrusive than the foregoing hidden in a remote corner of the Plymdale
Promulgator, clothed in the palest and smallest of type, and modestly wedged in
between the big, black-lettered offer of the Promulgator to mail itself free of
extra charge to subscribers leaving home for the summer months, and an
equally somber-clad notice (doubtless astray as to place and application) that
Hammersmith & Co. were carrying a large and varied assortment of marble and
granite monuments!
Yet notwithstanding its sandwiched condition, that little marriage
announcement seemed to Eleanor to parade the whole street.
Whichever way she turned her eyes, it glowered at her with scornful
reproach.
She felt it to be an indelicate thrusting of herself upon the public notice;
and at the sight she was plunged in regret at having made to the proprieties the
concession of permitting it.
She hoped now that the period for making concessions was ended. She
had endured long and patiently the trials that beset her path when she chose to
diverge from the beaten walks of female Plymdaledom. Had stood stoically
enough the questionable distinction of being relegated to a place amid that
large and ill-assorted family of "cranks," feeling the discomfit and attending
opprobrium to be far outbalanced by the satisfying consciousness of roaming
the heights of free thought, and tasting the sweets of a spiritual emancipation.
The closing act of Eleanor’s young ladyhood, when she chose to be
married without pre-announcement, without the paraphernalia of accessories so
dear to a curious public-had been in keeping with previous methods
distinguishing her career, The disappointed public cheated of its entertainment,
was forced to seek such compensation for the loss as was offered in reflections
that while condemning her present, were unsparing of her past, and full with
damning prognostic of her future.
Charles Faraday, who added to his unembellished title that of Professor
of Mathematics of the Plymdale University, had found in Eleanor Gail his ideal
woman.
Indeed, she rather surpassed that ideal, which had of necessity been but
an adorned picture of woman as he had known her. A mild emphasizing of her
merits, a soft toning down of her defects had served to offer to his fancy a
prototype of that bequoted creature.
ANEXOS
247
"Not too good for human nature's daily food," yet so good that he had
cherished no hope of beholding such a one in the flesh. Until Eleanor had
come, supplanting his ideal, and making of that fanciful creation a very
simpleton by contrast. In the beginning he had found her extremely good to look
at, with her combination of graceful womanly charms, unmarred by self-
conscious mannerisms that was as rare as it was engaging. Talking with her, he
had caught a look from her eyes into his that he recognized at once as a free
masonry of intellect. And the longer he knew her, the greater grew his wonder
at the beautiful revelations of her mind that unfurled itself to his, like the curling
petals of some hardy blossom that opens to the inviting warmth of the sun. It
was not that Eleanor knew many things. According to her own modest estimate
of herself, she knew nothing. There were school girls in Plymdale who
surpassed her in the amount of their positive knowledge. But she was
possessed of a clear intellect: sharp in its reasoning, strong and unprejudiced in
its outlook. She was that rara avis, a logical woman-something which Faraday
had not encountered in his life before. True, he was not hoary with age. At 30
the types of women he had met with were not legion; but he felt safe in doubting
that the hedges of the future would grow logical women for him, more than they
had borne such prodigies in the past.
He found Eleanor ready to take broad views of life and humanity; able to
grasp a question and anticipate conclusions by a quick intuition which he
himself reached by the slower, consecutive steps of reason.
During the months that shaped themselves into the cycle of a year these
two dwell together in the harmony of a united purpose.
Together they went looking for the good things of life, knocking at the
closed doors of philosophy; venturing into the open fields of science, she, with
uncertain steps, made steady by his help.
Whithersoever he led she followed, oftentimes in her eagerness taking
the lead into unfamiliar ways in which he, weighted with a lingering
conservatism, had hesitated to venture.
So did they grow in their oneness of thought to belong each so ab-
solutely to the other that the idea seemed not to have come to them that this
union might be made faster by marriage. Until one day it broke upon Faraday,
like a revelation from the unknown, the possibility of making her his wife.
When he spoke, eager with the new awakened impulse, she laughingly
replied:
"Why not?" She had thought of it long ago.
In entering upon their new life they decided to be governed by no
precedential methods. Marriage was to be a form, that while fixing legally their
relation to each other, was in no wise to touch the individuality of either; that
ANEXOS
248
was to be preserved intact. Each was to remain a free integral of humanity,
responsible to no dominating exactions of so-called marriage laws. And the
element that was to make possible such a union was trust in each other's love,
honor, courtesy, tempered by the reserving clause of readiness to meet the
consequences of reciprocal liberty.
Faraday appreciated the need of offering to his wife advantages for
culture which had been of impossible attainment during her girlhood.
Marriage, which marks too often the closing period of a woman's
intellectual existence, was to be in her case the open portal through which she
might seek the embellishments that her strong, graceful mentality deserved.
An urgent desire with Eleanor was to acquire a thorough speaking
knowledge of the French language. They agreed that a lengthy sojourn in Paris
could be the only practical and reliable means of accomplishing such an end.
Faraday's three months of vacation were to be spent by them in the idle
happiness of a loitering honeymoon through the continent of Europe, then he
would leave his wife in the French capital for a stay that might extend
indefinitely-two, three years-as long as should be found needful, he returning to
join her with the advent of each summer, to renew their love in a fresh and re-
strengthened union.
And so, in May, they were married, and in September we find Eleanor
established in the pension of the old couple Clairegobeau and comfortably
rl1sconeed in her pretty room that opened on to the Rue Rivoli, her heart full of
sweet memories that were to cheer her coming solitude.
On the wall, looking always down at her with his quiet, kind glance, hung
the portrait of her husband. Beneath it stood the fanciful little desk at which she
hoped to spend many happy hours.
Books were everywhere, giving character to the graceful furnishings
which their united taste had evolved from the paucity of the Clairegobeau germ,
and out of the window was Paris!
Eleanor was supremely satisfied amid her new and attractive sur-
roundings. The pang of parting from her husband seeming to lend sharp zest to
a situation that offered the fulfillment of a cherished purpose.
Faraday, with the stronger man-nature, felt more keenly the discomfit of
giving up a companionship that in its brief duration had been replete with the
duality of accomplished delight and growing promise.
But to him also was the situation made acceptable by its involving a
principle which he felt it incumbent upon him to uphold. He returned to Plymdale
and to his duties at the university, and resumed his bachelor existence as
ANEXOS
249
quietly as though it had been interrupted but by the interval of a day.
The small public with which he had acquaintance, and which had
forgotten his existence during the past few months, was fired anew with
indignant astonishment at the effrontery of the situation which his singular
coming back offered to their contemplation.
That two young people should presume to introduce such innovations
into matrimony!
It was uncalled for!
It was improper!
It was indecent!
He must have already tired of her idiosyncrasies, since he had left her in
Paris.
And in Paris, of all places, to leave a young woman alone! Why not at
once in Hades?
She had been left in Paris forsooth to learn French. And since when was
Mme. Belaire's French, as it had been taught to select generations of
Plymdalions, considered insufficient for the practical needs of existence as
related by that foreign tongue?
But Faraday's life was full with occupation and his brief moments of
leisure were too precious to give to heeding the idle gossip that floated to his
hearing and away again without holding his thoughts an instant.
He lived uninterruptedly a certain existence with his wife through the
medium of letters. True, an inadequate substitute for her actual presence, but
there was much satisfaction in this constant communion of thought between
them.
They told such details of their daily lives as they thought worth the telling.
Their readings were discussed. Opinions exchanged. Newspaper
cuttings sent back and forth, bearing upon questions that interested them. And
what did not interest them?
Nothing was so large that they dared not look at it. Happenings, small in
themselves, but big in their psychological comprehensiveness, held them with
strange fascination. Her earnestness and intensity in such matters were
extreme; but happily, Faraday brought to this union humorous instincts, and an
optimism that saved it from a too monotonous sombreness.
The young man had his friends in Plymdale. Certainly none that ever
remotely approached the position which Eleanor held in that regard. She stood
pre-eminent. She was himself.
ANEXOS
250
But his nature was genial. He invited companionship from his fellow
beings, who, however short that companionship might be, carried always away
a gratifying consciousness of having made their personalities felt.
The society in Plymdale which he most frequented was that of the
Beatons.
Beaton père was a fellow professor, many years older than Faraday, but
one of those men with whom time, after putting its customary stamp upon his
outward being, took no further care.
The spirit of his youth had remained untouched, and formed the nucleus
around which the family gathered, drawing the light of their own cheerfulness.
Mrs. Beaton was a woman whose aspirations went not further than the
desire for her family's good, and her bearing announced in its every feature, the
satisfaction of completed hopes.
Of the daughters, Margaret, the eldest, was looked upon as slightly
erratic, owing to a timid leaning in the direction of Woman's Suffrage.
Her activity in that regard, taking the form of a desultory correspondence
with members of a certain society of protest; the fashioning and donning of
garments of mysterious shape, which, while stamping their wearer with the
distinction of a quasi-emancipation, defeated the ultimate purpose of their
construction by inflicting a personal discomfort that extended beyond the
powers of long endurance. Miss Kitty Beaton, the youngest daughter, and just
returned from boarding-school, while clamoring for no privileges doubtful of
attainment and of remote and questionable benefit, with a Napoleonic grip,
possessed herself of such rights as were at hand and exercised them in
keeping the household under her capricious command.
She was at that age of blissful illusion when a girl is in love with her own
youth and beauty and happiness. That age which heeds no purpose in the
scope of creation further than may touch her majesty's enjoyment. Who would
not smilingly endure with that charming selfishness of youth, knowing that the
rough hand of experience is inevitably descending to disturb the short-lived
dream?
They were all clever people, bright and interesting, and in this family
circle Faraday found an acceptable relaxation from work and enforced solitude.
If they ever doubted the wisdom or expediency of his domestic relations,
courtesy withheld the expression of any such doubts. Their welcome was
always complete in its friendliness, and the interest which they evinced in the
absent Eleanor proved that she was held in the highest esteem.
With Beaton Faraday enjoyed that pleasant intercourse which may exist
ANEXOS
251
between men whose ways, while not too divergent, are yet divided by an
appreciable interval.
But it remained for Kitty to touch him with her girlish charms in a way,
which, though not too usual with Faraday, meant so little to the man that he did
not take the trouble to resent it.
Her laughter and song, the restless motions of her bubbling happiness,
he watched with the casual pleasure that one follows the playful gambols of a
graceful kitten.
He liked the soft shining light of her eyes. When she was near him the
velvet smoothness of her pink cheeks stirred him with a feeling that could have
found satisfying expression in a kiss.
It is idle to suppose that even the most exemplary men go through life
with their eyes closed to woman's beauty and their senses steeled against its
charm.
Faraday thought little of this feeling (and so should we if it were not
outspoken).
In writing one clay to his wife, with the cold-blooded impartiality of
choosing a subject which he thought of neither more nor less prominence than
the next, he descanted at some length upon the interesting emotions which
Miss Kitty's pretty femininity aroused in him.
If he had given serious thought to the expediency of touching upon such
a theme with one's wife, he still would not have been deterred. Was not
Eleanor's large comprehensiveness far above the littleness of ordinary women?
Did it not enter into the scheme of their lives, to keep free from prejudices
that hold their sway over the masses?
But he thought not of that, for, after all, his interest in Kitty and his
interest in his university class bore about an equal reference to Eleanor and his
love for her.
His letter was sent, and he gave no second thought to the matter of its
contents.
The months went by for Faraday with few distinctive features to mark
them outside the enduring desire for his wife's presence.
There had been a visit of sharp disturbance once when her customary
letter failed him, and the tardy missive coming, carried an inexplicable coldness
that dealt him a pain which, however, did not long survive a little judicious
reflection and a very deluge of letters from Paris that shook him with their
unusual ardor.
ANEXOS
252
May had come again, and at its approach Faraday with the impatience of
a hundred lovers hastened across the seas to join his Eleanor.
It was evening and Eleanor paced to and fro in her room, making the last
of a series of efforts that she had been putting forth all day to fight down a
misery of the heart, against which her reason was in armed rebellion. She had
tried the strategy of simply ignoring its presence, but the attempt had failed
utterly. During her daily walk it had embodied itself in every object that her eyes
rested upon. It had enveloped her like a smoke mist, through which Paris
looked more dull than the desolation of Sahara.
She had thought to displace it with work, but, like the disturbing element
in the chemist's crucible, it rose again and again overspreading the surface of
her labor.
Alone in her room, the hour had come when she meant to succeed by
the unaided force of reason-proceeding first to make herself bodily comfortable
in the folds of a majestic flowing gown, in which she looked a distressed
goddess.
Her hair hung heavy and free about her shoulders, for those reasoning powers
were to be spurred by a plunging of white fingers into the golden mass.
In this dishevelled state Eleanor's presence seemed too large for the
room and its delicate furnishings. The place fitted well an Eleanor in repose but
not an Eleanor who swept the narrow confines like an incipient cyclone.
Reason did good work and stood its ground bravely, but against it were
the too great odds of a woman's heart, backed by the soft prejudices of a far-
reaching heredity.
She finally sank into a chair before her pretty writing desk. The golden
head fell upon the outspread arms waiting to receive it, and she burst into a
storm of sobs and tears. It was the signal of surrender.
It is a gratifying privilege to be permitted to ignore the reason of such
unusual disturbance in a woman of Eleanor's high qualifications. The cause of
that abandonment of grief will never be learned unless she chooses to disclose
it herself.
When Faraday first folded his wife in his arms he saw but the Eleanor of
his constant dreams. But he soon began to perceive how more beautiful she
had grown; with a richness of coloring and fullness of health that Plymdale had
never been able to bestow. And the object of her stay in Paris was gaining fast
to accomplishment, for she had already acquired a knowledge of French that
would not require much longer to perfect.
They sat together in her room discussing plans for the summer, when a
timid knock at the door caused Eleanor to look up, to see the little housemaid
ANEXOS
253
eyeing her with the glance of a fellow conspirator and holding in her hand a card
that she suffered to be but partly visible.
Eleanor hastily approached her, and reading the name upon the card
thrust it into her pocket, exchanging some whispered words with the girl, among
which were audible, "excuse me," "engaged," "another time." She came back to
her husband looking a little flustered,. to resume the conversation where it had
been interrupted and he offered no inquiries about her mysterious caller.
Entering the salon not many days later he found that in doing so he
interrupted a conversation between his wife and a very striking looking
gentleman who seemed on the point of taking his leave.
They were both disconcerted; she especially, in bowing, almost thrusting
him out, had the appearance of wanting to run away; to do any thing but meet
her husband's glance.
He asked with assumed indifference who her friend might be.
"Oh, no one special," with a hopeless attempt at brazenness.
He accepted the situation without protest, only indulging the reflection
that Eleanor was losing something of her frankness.
But when his wife asked him on another occasion to dispense with her
company for a whole afternoon, saying that she had an urgent call upon her
time, he began to wonder if there might not be modifications to this marital
liberty of which he was so staunch an advocate.
She left him with a hundred little endearments that she seemed to have
acquired with her French.
He forced himself to the writing of a few urgent letters, but his rest-
lessness did not permit him to do more.
It drove him to ugly thoughts, then to the means of dispelling them.
He gazed out of the window, wondered why he was remaining indoors,
and followed up the reflection by seizing his hat and plunging out into the street.
The Paris boulevards of a day in early summer are calculated to dispel
almost any ache but one of that nature, which was making itself incipiently felt
with Faraday.
It was at that stage when it moves a man to take exception at the
inadequacy of every thing that is offered to his contemplation or entertainment.
The sun was too hot.
ANEXOS
254
The shop windows were vulgar; lacking artistic detail in their make-up.
How could he ever have found the Paris women attractive? They had lost
their chic. Most of them were scrawny-not worth looking at.
He thought to go and stroll through the galleries of art. He knew
Eleanor would wish to be with him; then he was tempted to go alone.
Finally, more tired from inward than outward restlessness, he took refuge
at one of the small tables of a cafe, called for a "Mazarin," and, so seated for an
unheeded time, let the panorama of Paris pass before his indifferent eyes.
When suddenly one of the scenes in this shifting show struck him with
stunning effect.
It was the sight of his wife riding in a fiacre with her caller of a few days
back, both conversing and in high spirits.
He remained for a moment enervated, then the blood came tingling back
into his veins like fire, making his finger ends twitch with a desire (full worthy of
any one of the "prejudiced masses") to tear the scoundrel from his seat and
paint the boulevard red with his villainous blood.
A rush of wild intentions crowded into his brain.
Should he follow and demand an explanation? Leave Paris without ever
looking into her face again? and more not worthy of the man.
It is right to say that his better self and better senses came quickly back
to him.
That first revolt was like the unwilling protest of the flesh against the
surgeon's knife before a man has steeled himself to its endurance.
Every thing came back to him from their short, common past-their
dreams, their large intentions for the shaping of their lives. Here was the first
test, and should he be the one to cry out, "I cannot endure it."
When he returned to the pension, Eleanor was impatiently waiting for him
in the entry, radiant with gladness at his coming.
She was under a suppressed excitement that prevented her noting his
disturbed appearance.
She took his listless hand and led him into the small drawing-room that
adjoined their sleeping chamber.
There stood her companion of the fiacre, smiling as was she at the
ANEXOS
255
pleasure of introducing him to another Eleanor disposed on the wall in the best
possible light to display the gorgeous radiance of her wonderful beauty and the
skill of the man who had portrayed it.
The most sanguine hopes of Eleanor and her artist could not have
anticipated anything like the rapture with which Faraday received this surprise.
"Monsieur l' Artiste" went away with his belief in the undemonstrativeness
of the American very much shaken; and in his pocket substantial evidence of
American appreciation of art.
Then the story was told how the portrait was intended as a surprise for
his arrival. How there had been delay in its completion. The artist had required
one more sitting, which she gave him that day, and the two had brought the
picture home in the fiacre, he to give it the final advantages of a judicious light;
to witness its effect upon Mons. Faraday and finally the excusable wish to be
presented to the husband of the lady who had captivated his deepest
admiration and esteem.
"You shall take it home with you," said Eleanor.
Both were looking at the lovely creation by the soft light of a reckless
expenditure of bougie.
"Yes, dearest," he answered, with feeble elation at the prospect of
returning home with that exquisite piece of inanimation.
"Have you engaged your return passage?" she asked.
She sat at his knee, arrayed in the gown that had one evening clothed
such a goddess in distress.
"Oh, no. There's plenty time for that," was his answer. "Why do you ask
?"
"I'm sure I don't know," and after a while:
"Charlie, I think-I mean, don't you think-I have made wonderful progress
in French?"
"You've done marvels, Nellie. I find no difference between your French
and Mme. Clairegobeau's, except that yours is far prettier."
"Yes?" she rejoined, with a little squeeze of the hand.
"I mayn't be right and I want you to give me your candid opinion. I believe
Mme. Belaire – now that I have gone so far – don’t you think – hadn’t you better
engage passage for two?"
ANEXOS
256
His answer took the form of a pantomimic rapture of assenting grate-
fulness, during which each gave speechless assurance of a love that could
never more take a second place.
"Nellie," he asked, looking into the face that nestled in close reach of his
warm kisses, "I have often wanted to know, though you needn't tell it if it doesn't
suit you," he added, laughing, "why you once failed to write to me, and then
sent a letter whose coldness gave me a week's heart trouble?"
She flushed, and hesitated, but finally answered him bravely, "It was
when-when you cared so much for that Kitty Beaton."
Astonishment for a moment deprived him of speech.
"But Eleanor! In the name of reason! It isn't possible!"
"I know all you would say," she replied, "I have been over the whole
ground myself, over and over, but it is useless. I have found that there are
certain things which a woman can't philosophize about, any more than she can
about death when it touches that which is near to her."
"But you don't think-"
"Hush! don't speak of it ever again. I think nothing!" closing her eyes, and
with a little shudder drawing closer to him.
As he kissed his wife with passionate fondness, Faraday thought, "I love
her none the less for it, but my Nellie is only a woman, after all."
With man's usual inconsistency, he had quite forgotten the episode of the
portrait.
SEYERSTED, Per (Ed.). The complete works of Kate Chopin. Louisiana:
Louisiana State University Press, 1988, pp. 48-58.
ANEXOS
257
“THE STORM”
I
The leaves were so still that even Bibi thought it was going to rain. Bobinôt, who
was accustomed to converse on terms of perfect equality with his little son,
called the child's attention to certain sombre clouds that were rolling with
sinister intention from the west, accompanied by a sullen, threatening roar.
They were at Friedheimer's store and decided to remain there till the storm had
passed. They sat within the door on two empty kegs. Bibi was four years old
and looked very wise.
"Mama'll be 'fraid, yes, he suggested with blinking eyes.
"She'll shut the house. Maybe she got Sylvie helpin' her this evenin'," Bobinôt
responded reassuringly.
"No; she ent got Sylvie. Sylvie was helpin' her yistiday,' piped Bibi.
Bobinôt arose and going across to the counter purchased a can of shrimps, of
which Calixta was very fond. Then he retumed to his perch on the keg and sat
stolidly holding the can of shrimps while the storm burst. It shook the wooden
store and seemed to be ripping great furrows in the distant field. Bibi laid his
little hand on his father's knee and was not afraid.
II
Calixta, at home, felt no uneasiness for their safety. She sat at a side window
sewing furiously on a sewing machine. She was greatly occupied and did not
notice the approaching storm. But she felt very warm and often stopped to mop
her face on which the perspiration gathered in beads. She unfastened her white
sacque at the throat. It began to grow dark, and suddenly realizing the situation
she got up hurriedly and went about closing windows and doors.
Out on the small front gallery she had hung Bobinôt's Sunday clothes to dry and
she hastened out to gather them before the rain fell. As she stepped outside,
Alcée Laballière rode in at the gate. She had not seen him very often since her
marriage, and never alone. She stood there with Bobinôt's coat in her hands,
and the big rain drops began to fall. Alcée rode his horse under the shelter of a
side projection where the chickens had huddled and there were plows and a
harrow piled up in the corner.
"May I come and wait on your gallery till the storm is over, Calixta?" he asked.
Come 'long in, M'sieur Alcée."
His voice and her own startled her as if from a trance, and she seized Bobinôt's
vest. Alcée, mounting to the porch, grabbed the trousers and snatched Bibi's
braided jacket that was about to be carried away by a sudden gust of wind. He
ANEXOS
258
expressed an intention to remain outside, but it was soon apparent that he
might as well have been out in the open: the water beat in upon the boards in
driving sheets, and he went inside, closing the door after him. It was even
necessary to put something beneath the door to keep the water out.
"My! what a rain! It's good two years sence it rain' like that," exclaimed Calixta
as she rolled up a piece of bagging and Alcée helped her to thrust it beneath
the crack.
She was a little fuller of figure than five years before when she married; but she
had lost nothing of her vivacity. Her blue eyes still retained their melting quality;
and her yellow hair, dishevelled by the wind and rain, kinked more stubbornly
than ever about her ears and temples.
The rain beat upon the low, shingled roof with a force and clatter that
threatened to break an entrance and deluge them there. They were in the dining
room—the sitting room—the general utility room. Adjoining was her bed room,
with Bibi's couch along side her own. The door stood open, and the room with
its white, monumental bed, its closed shutters, looked dim and mysterious.
Alcée flung himself into a rocker and Calixta nervously began to gather up from
the floor the lengths of a cotton sheet which she had been sewing.
lf this keeps up, Dieu sait if the levees goin' to stan it!" she exclaimed.
"What have you got to do with the levees?"
"I got enough to do! An' there's Bobinôt with Bibi out in that storm—if he only
didn' left Friedheimer's!"
"Let us hope, Calixta, that Bobinôt's got sense enough to come in out of a
cyclone."
She went and stood at the window with a greatly disturbed look on her face.
She wiped the frame that was clouded with moisture. It was stiflingly hot. Alcée
got up and joined her at the window, looking over her shoulder. The rain was
coming down in sheets obscuring the view of far-off cabins and enveloping the
distant wood in a gray mist. The playing of the lightning was incessant. A bolt
struck a tall chinaberry tree at the edge of the field. It filled all visible space with
a blinding glare and the crash seemed to invade the very boards they stood
upon.
Calixta put her hands to her eyes, and with a cry, staggered backward. Alcée's
arm encircled her, and for an instant he drew her close and spasmodically to
him.
"Bonté!" she cried, releasing herself from his encircling arm and retreating from
the window, the house'll go next! If I only knew w'ere Bibi was!" She would not
ANEXOS
259
compose herself; she would not be seated. Alcée clasped her shoulders and
looked into her face. The contact of her warm, palpitating body when he had
unthinkingly drawn her into his arms, had aroused all the old-time infatuation
and desire for her flesh.
"Calixta," he said, "don't be frightened. Nothing can happen. The house is too
low to be struck, with so many tall trees standing about. There! aren't you going
to be quiet? say, aren't you?" He pushed her hair back from her face that was
warm and steaming. Her lips were as red and moist as pomegranate seed. Her
white neck and a glimpse of her full, firm bosom disturbed him powerfully. As
she glanced up at him the fear in her liquid blue eyes had given place to a
drowsy gleam that unconsciously betrayed a sensuous desire. He looked down
into her eyes and there was nothing for him to do but to gather her lips in a kiss.
It reminded him of Assumption.
"Do you remember—in Assumption, Calixta?" he asked in a low voice broken
by passion. Oh! she remembered; for in Assumption he had kissed her and
kissed and kissed her; until his senses would well nigh fail, and to save her he
would resort to a desperate flight. If she was not an immaculate dove in those
days, she was still inviolate; a passionate creature whose very defenselessness
had made her defense, against which his honor forbade him to prevail. Now—
well, now—her lips seemed in a manner free to be tasted, as well as her round,
white throat and her whiter breasts.
They did not heed the crashing torrents, and the roar of the elements made her
laugh as she lay in his arms. She was a revelation in that dim, mysterious
chamber; as white as the couch she lay upon. Her firm, elastic flesh that was
knowing for the first time its birthright, was like a creamy lily that the sun invites
to contribute its breath and perfume to the undying life of the world.
The generous abundance of her passion, without guile or trickery, was like a
white flame which penetrated and found response in depths of his own
sensuous nature that had never yet been reached.
When he touched her breasts they gave themselves up in quivering ecstasy,
inviting his lips. Her mouth was a fountain of delight. And when he possessed
her, they seemed to swoon together at the very borderland of life's mystery.
He stayed cushioned upon her, breathless, dazed, enervated, with his heart
beating like a hammer upon her. With one hand she clasped his head, her lips
lightly touching his forehead. The other hand stroked with a soothing rhythm his
muscular shoulders.
The growl of the thunder was distant and passing away. The rain beat softly
upon the shingles, inviting them to drowsiness and sleep. But they dared not
yield.
ANEXOS
260
III
The rain was over; and the sun was turning the glistening green world into a
palace of gems. Calixta, on the gallery, watched Alcée ride away. He turned
and smiled at her with a beaming face; and she lifted her pretty chin in the air
and laughed aloud.
Bobinôt and Bibi, trudging home, stopped without at the cistern to make
themselves presentable.
"My! Bibi, w'at will yo' mama say! You ought to be ashame'. You oughta' put on
those good pants. Look at 'em! An' that mud on yo' collar! How you got that mud
on yo' collar, Bibi? I never saw such a boy!" Bibi was the picture of pathetic
resignation. Bobinôt was the embodiment of serious solicitude as he strove to
remove from his own person and his son's the signs of their tramp over heavy
roads and through wet fields. He scraped the mud off Bibi's bare legs and feet
with a stick and carefully removed all traces from his heavy brogans. Then,
prepared for the worst—the meeting with an over-scrupulous housewife, they
entered cautiously at the back door.
Calixta was preparing supper. She had set the table and was dripping coffee at
the hearth. She sprang up as they came in.
"Oh, Bobinôt! You back! My! but I was uneasy. W'ere you been during the rain?
An' Bibi? he ain't wet? he ain't hurt?" She had clasped Bibi and was kissing him
effusively. Bobinôt's explanations and apologies which he had been composing
all along the way, died on his lips as Calixta felt him to see if he were dry, and
seemed to express nothing but satisfaction at their safe return.
"I brought you some shrimps, Calixta," offered Bobinôt, hauling the can from his
ample side pocket and laying it on the table.
"Shrimps! Oh, Bobinôt! you too good fo' anything!" and she gave him a
smacking kiss on the cheek that resounded, "J'vous réponds, we'll have a feas'
to-night! umph-umph!"
Bobinôt and Bibi began to relax and enjoy themselves, and when the three
seated themselves at table they laughed much and so loud that anyone might
have heard them as far away as Laballière's.
IV
Alcée Laballière wrote to his wife, Clarisse, that night. It was a loving letter, full
of tender solicitude. He told her not to hurry back, but if she and the babies liked
it at Biloxi, to stay a month longer. He was getting on nicely; and though he
missed them, he was willing to bear the separation a while longer—realizing
that their health and pleasure were the first things to be considered.
ANEXOS
261
V
As for Clarisse, she was charmed upon receiving her husband's letter. She and
the babies were doing well. The society was agreeable; many of her old friends
and acquaintances were at the bay. And the first free breath since her marriage
seemed to restore the pleasant liberty of her maiden days. Devoted as she was
to her husband, their intimate conjugal life was something which she was more
than willing to forego for a while.
So the storm passed and every one was happy.
http://classiclit.about.com/library/bl-etexts/kchopin/bl-kchop-thestorm.htm
Acesso em 2/12/2006.
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