Download PDF
ads:
ALEXANDRE FELIPE FIUZA
ENTRE UM SAMBA E UM FADO: a censura e a repressão aos músicos no
Brasil e em Portugal nas décadas de 1960 e 1970
ASSIS
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
ALEXANDRE FELIPE FIUZA
ENTRE UM SAMBA E UM FADO: a censura e a repressão aos músicos no Brasil e em
Portugal nas décadas de 1960 e 1970
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis UNESP Universidade
Estadual Paulista para a obtenção do título
de Doutor em História (História e
Sociedade).
Orientadora: Dr.ª Flávia Arlanch Martins
de Oliveira.
ASSIS
2006
ads:
3
FIUZA, Alexandre Felipe. Entre um samba e um fado: a censura e a repressão aos músicos no
Brasil e em Portugal nas décadas de 1960 e 1970. 2006. Tese de Doutorado em História
Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis.
RESUMO
Esta tese aborda a censura e a repressão aos músicos no Brasil e em Portugal durante as
décadas de 1960 e 1970, período em que ambos se encontravam em ditadura. Tal pesquisa foi
realizada a partir da consulta e análise do material obtido junto à antiga documentação das
polícias políticas, no caso brasileiro, os arquivos do DOPS – Departamento de Ordem Política
e Social dos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e
Paraíba, e, no caso português, do Arquivo da PIDE/DGS – Polícia Internacional de Defesa do
Estado/ Direcção-Geral de Segurança, sediado na Torre do Tombo, em Lisboa. No campo da
Censura, foram consultados documentos no Arquivo Nacional em Brasília e no Rio de
Janeiro, particularmente, do Fundo DCDP - Divisão de Censura de Diversões Públicas. Além
da análise do controle exercido sobre os músicos, também foi realizada a comparação entre as
canções produzidas neste mesmo período, bem como examinada, ainda que brevemente, a
recepção pelo público deste mesmo cancioneiro. Mediante a apreciação da bibliografia e da
realização de entrevistas com músicos portugueses e brasileiros foi estabelecida uma
comparação em relação à documentação oficial encontrada nos arquivos e à versão dos
músicos. Além disso, a partir desta documentação dos órgãos de repressão, foram observadas
as relações entre as polícias políticas dos dois países e suas atividades de vigilância de seus
respectivos exilados. Por fim, houve ainda uma preocupação específica com os casos de
músicos exilados e suas atividades políticas e artísticas nestes dois países.
PALAVRAS-CHAVE
Censura, ditadura e ditadores, exílio, músicos, música popular
4
FIUZA, Alexandre Felipe. Entre um samba e um fado: a censura e a repressão aos músicos no
Brasil e em Portugal nas décadas de 1960 e 1970. 2006. Tese de Doutorado em História
Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis.
ABSTRACT
This Doctoral thesis focuses on the censorship and repression of musicians in Brazil and in
Portugal in the 60’s and the 70’s, when both countries were dictatorial regimes. The data
analyzed was obtained in the files of the former political police forces, the Brazilian DOPS -
Departamento de Ordem Política e Social in the states of Rio Grande do Sul, Paraná, São
Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco and Paraíba, and the Portuguese PIDE/DGS Polícia
Internacional de Defesa do Estado/ Direcção-Geral de Segurança, with its headquarters at the
Torre do Tombo, in Lisbon. To look into censorship matters, documents from the Arquivo
Nacional in Brasília and in Rio de Janeiro, especially from the Fundo DCDP - Divisão de
Censura de Diversões Públicas, were analyzed. Besides the analysis of the control exerted
over the musicians, a comparison of the songs composed in the same period was produced. It
was also observed, however in a brief manner, how those songs were received by the public.
A comparison between the official documents found in the files and the version presented by
the musicians was made by means of the review of the bibliography and interviews with
Brazilian and Portuguese musicians. The analysis of the documents of the organs of
repression also made it possible to observe the relations between the political police forces of
both countries and their surveillance activities over each other’s exiles. Finally, especial
attention was given to exiled musicians and their political and artistic activities in both
countries.
KEYWORDS
Censorship, dictatorship and dictators, exile, musicians, popular music
5
Dedicada a José Afonso, Carlos Paredes e Salgueiro Maia pelo que
representam para a história portuguesa contemporânea
e aos músicos exilados aqui lembrados.
6
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq pela bolsa de doutorado e pela bolsa sanduíche em Portugal. À minha
orientadora Drª. Flávia Arlanch que me auxiliou em suas pontuais sugestões e na autonomia
que me concedeu, ao co-orientador Prof. Dr. Antonio Celso Ferreira pela aposta nesta
pesquisa, à Drª. Isabel Loureiro que me emprestou os primeiros discos dos cantores
portugueses aqui abordados. À Banca Examinadora por ter aceitado o convite e ter tido
paciência em ler esta tese. Aos professores que ministraram disciplinas no Doutorado: Drª.
Zélia Lopes da Silva e Dr. Claudinei Mendes. Às funcionárias da Secretaria de Pós-
Graduação. À minha amiga Ernesta Zamboni. Ao Carlos Marx Freitas, funcionário do
Arquivo Nacional de Brasília, aos técnicos da Torre do Tombo, em especial ao Paulo
Tremoceiro, aos amigos do Colegiado de Pedagogia da UNIOESTE, àqueles que me
concederam valiosos depoimentos: Viriato Teles, Vitorino, Alípio de Freitas, Geraldo
Azevedo (em sua característica amabilidade), aos atenciosos José Jorge Letria e Manuel
Freire, Francisco Fanhais, José Mário Branco, João Afonso (sobrinho do Zeca), Sérgio
Godinho, Ivan Lins, João Bosco, Ricardo Vilas (ainda pelos livros e discos), Raul Ellwanger (
também pelos livros e discos, além de ter sido um dos primeiros a me indicar o mapa da mina
que me levou ao grupo musical Caldo de Cana), Paulo Thiago, Eliana Lorentz Chaves (Nana
Chaves), Ruy Faria (ex-MPB-4), Leopoldo Paulino (pelo seu livro), Abílio Manoel, Dércio
Marques, Frederico Mendonça (ou Fredera do Som Imaginário, pelos capítulos ainda inéditos
da nova edição revista de seu livro). Aos amáveis Carlos do Carmo e Urbano Tavares
Rodrigues. Ao António Loja Neves, ao Prof. Dr. João Medina (pelos livros e aulas). Em
particular, aos amigos Luís Cília (pelos inúmeros discos), Benedicto (pela hospitalidade,
documentação e discos oferecidos) e Maite, Cristina Porta (minha fada madrinha), Prof. Dr.
Sérgio Campos Matos (amigo e orientador do estágio em Portugal), Ana Bela querida
7
companheira portuguesa das batalhas cotidianas, Dona Máxima e sua filha Helena, pelo
carinho em nos receber em Lisboa. Ao meu amigo José Rogério Licks (pelos seus discos, por
ter dividido sua história comigo e por ser o inspirador de meu interesse pela história dos
músicos exilados). Aos amigos do lado de cá da ponte (do Paraná) João Carlos, Mara,
Gabriela, Alessandra, Luinei, Patrícia, Flávio e à minha família. Ao apoio especial de minha
esposa Adriana, companheira em todas as etapas deste trabalho, e ao meu filho Antonio,
nascido em meio a este turbilhão.
8
SIGLAS
Brasil:
AI - Ato Institucional
ALN – Aliança Libertadora Nacional
AP – Ação Popular
ARENA – Aliança Renovadora Nacional
CENIMAR – Centro de Informações da Marinha
CENIMAR – Centro de Informações da Marinha
CIEX – Centro de Informações do Exército
CISA – Centro de Informações da Aeronáutica
CPC – Centro Popular de Cultura
CSC – Conselho Superior de Censura
DCDP - Divisão de Censura e Diversões Públicas (órgão central)
DCE – Diretório Central de Estudantes
DINP – Departamento de Informática da Polícia Civil (Rio Grande do Sul)
DOI-CODI – Centro de Operações de Defesa Interna/ Destacamento de Operações de
Informações
DOPS – Departamento de Ordem Política e Social
DSI – Divisão de Serviços de Informações
FIC – Festival Internacional da Canção
MAU – Movimento Artístico Universitário
MEC – Ministério da Educação e Cultura
P2 – Polícia Reservada
PC do B – Partido Comunista do Brasil
PRT – Partido Revolucionário dos Trabalhadores
SAELPA – Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba
SCDP - Serviço de Censura e Diversões Públicas (escritórios regionais)
SNI – Serviço Nacional de Informações
UNE – União Nacional dos Estudantes
9
Portugal:
AJA – Associação José Afonso
ARA – Acção Revolucionária Armada
BR – Brigadas Revolucionárias
CEI – Casa dos Estudantes do Império
DGI- Direcção-Geral da Informação
DGS - Direção Geral de Segurança
FAP – Frente de Acção Popular
FNAT - Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho
GNR – Guarda Nacional Republicana
IAN/ TT – Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo
LP – Legião Portuguesa
LUAR – Liga de União e Acção Revolucionária
MP – Mocidade Portuguesa
MUD – Movimento de Unidade Democrática
OMEN - Obra das Mães pela Educação Nacional
PCP – Partido Comunista Português
PCP – Partido Comunista Português
PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado
PJ – Polícia Judiciária
PREC – Processo Revolucionário em Curso
PSP – Polícia de Segurança Pública
RTP – Radio e Televisão de Portugal
SNI – Secretariado Nacional de Informação
SPE – Sociedade Portuguesa de Escritores
SPN – Secretariado de Propaganda Nacional
UN – União Nacional
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................11
CAPÍTULO 1: A CENSURA.................................................................................................. 42
1.1: A Censura portuguesa: essa câmara de torturar palavras.................................... 50
1.2: A Censura brasileira: você corta um verso, eu escrevo outro............................... 87
CAPÍTULO 2: A REPRESSÃO............................................................................................ 140
2.1: A repressão portuguesa: ouvem-se os gritos, na noite abafada.......................... 160
2.2: A repressão brasileira: por isso cuidado, meu bem, perigo na esquina
.................................................................................................................................................188
CAPÍTULO 3: A CANÇÃO ..................................................................................................267
3.1: A canção portuguesa: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.................. 275
3.2: A canção brasileira: e no entanto é preciso cantar..............................................292
CONCLUSÃO .......................................................................................................................300
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................305
DISCOGRAFIA .....................................................................................................................327
LEVANTAMENTO DE FONTES/ PESQUISA DE CAMPO..............................................331
ANEXOS ...............................................................................................................................337
11
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa surgiu de uma série de inquietações suscitadas ainda durante a pesquisa
de Mestrado que realizei sobre as relações entre a música popular brasileira e seu respectivo
período militar, entre as décadas de 1960 e 1970, mais especificamente, sobre a obra da dupla
de compositores João Bosco e Aldir Blanc. Um dos raros livros teóricos sobre a canção
política encontrado ainda na formulação do projeto de Mestrado foi a obra Estética da
Canção Política (1977), do músico e filósofo português José Barata Moura. Curiosamente,
ainda no período daquela investigação, o segundo livro levantado sobre a temática foi A
Canção Política em Portugal (1978), também de um português, o jornalista, escritor e músico
José Jorge Letria. A leitura destas duas obras chamou a atenção pelas similitudes dos
processos ocorridos em torno da canção no Brasil e em Portugal.
Os mecanismos repressivos e censórios em relação à canção nos dois países traziam
semelhanças explícitas, muito embora em outras nações também pudessem ser encontradas
estratégias similares, do Estado e dos músicos, durante o exercício de regimes ditatoriais no
mesmo período. Contudo, a língua comum e as metáforas utilizadas pelos compositores
também coincidiam e diferenciavam Brasil e Portugal de outros casos nacionais. Desta
maneira, por mais diferenças que guardassem os dois regimes, tanto na periodicidade das
respectivas ditaduras quanto em suas formas de organização e de atuação política, algumas
informações apontavam para questionamentos, controle e formas de produção musical
semelhantes nos dois países.
Após a opção pelos objetos de comparação, foi realizado um recorte temporal que
compreendeu as décadas de 1960 e de 1970, contemplando, além de parte do período da
ditadura no Brasil e em Portugal, a transição das chamadas “canções de protesto” para novas
experiências estéticas e discursivas no campo da canção. No caso português, temos em
12
princípios da década de 1960 uma nova radicalização dos movimentos estudantis e políticos
contra a ditadura, o início da Guerra Colonial, além das experiências musicais levadas a cabo
por José Afonso e Adriano Correia de Oliveira que contribuiriam decisivamente nos rumos de
uma nova canção portuguesa.
Este mesmo período no Brasil abarca uma disposição no cenário de grupos políticos
antagônicos e que desembocaria em projetos distintos de sociedade, cujo desfecho é marcado
pelo Golpe de 1964, com a vitória de um projeto econômico e político de cunho autoritário.
No caso do objeto da tese, este período também caracteriza a manutenção de contatos entre as
comunidades de informações e das polícias políticas de ambos países, mesmo antes do golpe
no Brasil.
O final da década de 1970, para Portugal, aponta para um enfraquecimento da
chamada “canção de intervenção” portuguesa desenvolvida após a derrubada da ditadura
portuguesa em 1974. Tal refluxo, por sua vez, guardou similaridades com o próprio projeto de
país que vingou no período pós-revolucionário. Outro dado que deve ser enfatizado é que o
recorte temporal desta pesquisa, em relação a Portugal, encontra a canção livre da Censura a
partir de 25 de abril de 1974, enquanto no Brasil, a Censura sofreu um processo lento de
enfraquecimento a partir da extinção do Ato Institucional nº. 5 (AI-5), até ser abolida
integralmente pela Constituição de 1988.
Em Portugal, a chamada “canção de intervenção” adquiriu forças e razão de ser com o
fim da ditadura e a partir dos projetos sociais e de radicalização política ocorridos durante a
fase do Processo Revolucionário em Curso (PREC). Inúmeros músicos se inseriram em lutas
nacionais no período de 1974 e 1976. Nesta fase, surgiram cooperativas de músicas ligadas a
grupos de esquerda, tais como a Era Nova, o Grupo de Acção Cultural e o Cantarabril.
No Brasil, não houve nenhum movimento semelhante. Unidos por outras razões, uma
experiência diferenciada foi observada no MAU Movimento Artístico Universitário, no
13
final da década de 1960, que contou com a presença de Ivan Lins, Gonzaguinha, Aldir Blanc,
entre outros, entretanto, sem o projeto político e a relação com os partidos políticos de
esquerda como no caso português. Os Centros Populares de Cultura (CPCs) da União
Nacional dos Estudantes (UNE) chegaram a realizar experiências com canções em suas
atividades teatrais e cinematográficas a partir de princípio da década de 1960, mas foram
efêmeras e não tiveram o alcance e a relevância que a canção engajada portuguesa alcançou
dez anos depois junto aos movimentos sociais e políticos. O final da década de 1970, no caso
brasileiro, também revelou uma fase de refluxo da chamada música popular brasileira. Além
disso, este período engloba as lutas pela Anistia e sua decretação em 1979 (que trouxe ao país
inúmeros músicos exilados), o fim do Ato Institucional 5 (AI-5), além da criação do
Conselho Superior de Censura (CSC) que abrandou, ainda que timidamente, o poder da
Censura.
Ainda no tocante ao recorte temporal, esta pesquisa procurou, de forma resumida,
traçar um panorama das instituições criadas pela ditadura salazarista entre as décadas de 1920
e 1940, muitas delas existentes até o fim da ditadura militar. Apesar de um aparente
anacronismo, as ações destas instituições atingiram os músicos portugueses aqui abordados e
reverberaram em outras políticas no campo da cultura e da política implementadas ou
desenvolvidas pela ditadura portuguesa durante as décadas de 1960 e 1970. O mesmo não foi
feito em relação ao similar período no Brasil em razão da gama das pesquisas que se
ocuparam do tema. Por outro lado, uma outra intenção de trazer as particularidades do
Estado Novo português no sentido de indicar possíveis reflexões futuras também na
perspectiva comparativa deste momento.
Um dos objetivos desta investigação foi o de conjugar os estudos de censura e de
repressão, construindo uma unidade interpretativa desta mesma coesão almejada pelas
ditaduras, porém não necessariamente alcançada. Afinal, uma rica produção nasceu mesmo na
14
adversidade, talvez muito mais significativa do que o projeto político imposto pelos regimes
ditatoriais. Em meio a estas estruturas, apesar das diferenças entre as ditaduras, os processos
de censura e de repressão utilizados foram semelhantes, ainda que não tenham uma origem
comum. Assim, as justificativas dos censores e sua base legal constituída, bem como as
estruturas criadas para controlar, reprimir e anular as ações das oposições são também
similares.
O objeto deste trabalho está voltado à análise da censura e da repressão a partir de
músicos citados por fontes oficiais nas duas instâncias. Portanto, não se almeja uma
caracterização deste controle em relação aos músicos de determinada vertente, mas a análise
de um cancioneiro e de músicos observados por estes regimes ditatoriais. Entretanto, os
músicos mais engajados tendem a ser mais privilegiados por esta pesquisa em razão da
constância em que aparecem na documentação oficial. Além disso, houve uma preocupação
maior em se explorar a experiência e os casos de exílio de músicos brasileiros e portugueses.
Particularmente, no caso brasileiro, o foco foi ainda mais voltado aos menos conhecidos, não
numa perspectiva salvacionista destas histórias de vida, mas na intenção de construir um
mapa um pouco mais diversificado da história da música popular.
Além da análise do controle exercido sobre os músicos, também é realizada uma breve
comparação entre as canções produzidas neste mesmo período, bem como é abordada a
recepção pelo público deste mesmo cancioneiro. Esta perspectiva comparada tende a
contribuir no mapeamento dos conflitos entre Estado e músicos a partir de lógicas espaço-
temporais, políticas e culturais distintas, mas que, em função da similaridade do corpus
documental, ou seja, dos processos censórios e repressivos, permite uma melhor compreensão
dos casos estudados.
A comparação auxilia na busca de explicações, evidencia as particularidades e permite
a visualização das variantes possíveis de um mesmo fenômeno em condições espaço-
15
temporais diversas. Como assevera Marc Bloch (1963, p. 17), “[...] duas condições são
necessárias para que haja, historicamente falando, comparação: uma certa semelhança entre os
fatos observados é evidente – e uma certa diferença entre os meios em que aconteceram”. A
história comparativa entre as nações serve como um pretexto, como um meio de reflexão
entre diferentes realidades, como possibilidade do surgimento de “[...] explicações novas,
complementares e mais gerais, que aquelas esboçadas a partir do estudo de um só caso
institucional ou nacional” (PRONKO, 2003, p. 04). Esta possibilidade de pensar o caso
nacional relacionado a uma outra realidade, paradoxalmente, “[...] não anuncia provavelmente
o fim da especificidade do olhar histórico, mas lhe restitui uma função original e singular
entre as ciências humanas” (BURGUIÈRE, 1993, p. 167).
Contudo, a comparação requer também algumas precauções, como por exemplo, com
a especificidade de abordar situações semelhantes, mas que podem ter variantes até mesmo na
conceituação dos termos utilizados e não necessariamente passíveis de significados universais
(BLACK, 2000). Também Marc Bloch (1998, p. 118) expressa esta preocupação ao asseverar
que: “Muitas vezes, sob as aparentes semelhanças, o exame apurado revela contrastes. Sob a
palavra nobreza, são tantas as noções divergentes”
1
. No caso específico Brasil-Portugal,
que se diferenciar as ditaduras em ambos os países: o controle no campo cultural, os
processos censórios, os mecanismos de coerção e repressão, os meios de difusão das canções,
a peridiocidade e suas diferentes fases. Esta preocupação com as particularidades nacionais
deve ter no horizonte que: “[...] el historiador que abandona un campo que le es familiar para
aventurarse em um território radicalmente nuevo, está expuesto de manera muy marcada a
este peligro” (MAIER, 1992-3, p.28).
Há que se destacar ainda que o método comparativo não se configura como um
método único e claro. Na esteia de críticas ao seu emprego, o mais freqüente relaciona-se ao
1
Do artigo “Comparação”, publicado originalmente na Revue de Synthèse, t. XLIX, junho de 1930, e aqui citado
da versão portuguesa de Bloch. Todas as citações, títulos, instituições de origem portuguesa serão grafadas de
acordo com a língua padrão usada em Portugal.
16
que René Wellek, ao tratar da literatura comparada, chama de “binarismo reducionista”, ou
seja, o contato superficial, a enumeração e determinismos nas comparações (1970 apud
CARVALHAL, 1999, p. 38). Não como basear-se numa mera enumeração e identificação,
de dados semelhantes ou diferentes. Em um texto de 1928, Marc Bloch revelava as críticas à
história comparativa: “[...] que o método não tem outro objectivo que a caça às semelhanças;
gosta-se de o acusar de se contentar com analogias forçadas, até mesmo, por vezes, de as
inventar postulando arbitrariamente não sei que paralelismo necessário entre as diversas
evoluções” (BLOCH, 1998, p. 131).
Segundo Geoffrey Barraclough (1987), os problemas mais comuns evidenciados pelos
críticos têm se referido às analogias muito vagas, à deficiente base empírica, à ausência de
aprofundamento nas particularidades históricas do evento nacional abordado antes de
compará-lo a um esquema macro ou extra-nacional, à comparação de situações históricas
muito diversas, entre outros. É possível acrescentar ainda os riscos que envolvem uma
comparação baseada numa idéia de evolução. Afinal, comparar as sociedades tendo no
horizonte uma perspectiva unilateral pode se traduzir na recorrência do eurocentrismo ou no
exercício de novas formas de etnocentrismo. Sobre a questão da relatividade de alguns
conceitos, também se ocupou Marc Bloch (1998, p. 155), ao abordar a história francesa, um:
“[...] estudo de raio relativamente restrito permanece também fiel ao espírito de comparação
se se empenhar em reintegrar suas observações próprias no conjunto mais vasto de onde estes
factos particulares recebem tanta luz e sobre o qual lançam por sua vez uma nova claridade
[...]”.
2
Entretanto, esta indefinição de um método coeso de pesquisa comparada, não
inviabiliza o alargamento das possibilidades da compreensão teórica de diferentes tipos de
2
Trecho do texto “Projecto de um ensino de história comparada das sociedades européias”, escrito para sua
candidatura ao Collége de France, de 1934. Este e outros textos sobre metodologia da história foram reunidos
numa publicação portuguesa intitulada Marc Bloch: História e historiadores (textos reunidos por Étienne
Bloch). Lisboa: Teorema, 1998.
17
instituições ou de processos ocorridos nos países abordados. Afinal, a história comparativa
“[...] permite estabelecer o estranhamento, a diversificação, a pluralização e a singularidade
daquilo que parecia empiricamente diferente ou semelhante, posto pelo habitus e reproduzido
pelo senso comum” (BUSTAMANTE, 2003, p. 21).
Portanto, mesmo elencados tais problemas passíveis de observação, a história
comparativa ainda se mostra como método eficaz nas problemáticas que envolvem uma
similaridade histórica. Este trabalho, por sua vez, aborda um tema no campo da história
comparativa ainda não explorado pela historiografia brasileira, pois os estudos sobre ambas as
culturas nacionais privilegiam o período colonial quando, obviamente, as relações eram mais
estreitas. Também nos estudos literários este momento é pouco estudado, muito embora a
comparação entre as literaturas nacionais do século XIX seja também mais freqüente. No
campo das manifestações culturais encontram-se discussões sobre a origem de gêneros
musicais portugueses e suas transformações no Brasil, as comparações entre as diferentes
danças, sobre as festas, a culinária e as diversidades da língua portuguesa, entre outras,
comumente circunscritas aos anos de colonização e ao período imperial brasileiro.
que se ressaltar que a análise da natureza dos dois regimes, por si só, seria um
objeto ambicioso. Assim, em razão de uma reflexão advinda de uma pesquisa
majoritariamente arquivística, apenas tangenciaremos as questões teóricas que perpassam as
reflexões acerca da natureza das ditaduras e de suas especificidades históricas. Ao invés de
uma axiologia destes processos, optamos pela leitura dos efeitos e dos mecanismos dos
regimes no tocante aos mecanismos censórios e repressivos, divididos na pesquisa em função
da autonomia dos órgãos responsáveis, muito embora unidos numa política mais ampla, num
projeto de governo que se não era completamente uníssono, possuía um cimento que lhe dava
corpo.
18
Portanto, certa releitura histórica que num processo de atomização revelou diferenças
entre setores das ditaduras não foi aqui abordada em razão do interesse em perceber os efeitos
do projeto hegemônico dentro destes governos. Projeto este que se alicerçou como tal também
através da conjugação dos grupos de “linha dura” e dos chamados “moderados”. Outro ponto
a se considerar é que este estudo tende a se localizar na intersecção dos campos da história
política com a história cultural. Tal posição não se constitui na ausência de uma opção
teórico-metodológica, mas numa preocupação mais voltada ao objeto em estudo que, por sua
vez, também abarca esta dualidade.
A comparação entre estes processos particulares pode contribuir no entendimento da
história recente destes países. Contudo, tal perspectiva não ambiciona construir uma tipologia
ou um modelo único de interpretação histórica para todos os países que viveram semelhantes
períodos de ordem autoritária. Vale destacar ainda que a utilização da canção como meio de
crítica social não é recente, sendo mesmo uma prática secular. No entanto, os diferentes
termos usados para conceituar este tipo de canção são passíveis de crítica, afinal, a diferença
do que seja ou não uma canção política é demasiado relativa.
Uma outra questão passível de análise é que, contraditoriamente, com o fim da
ditadura em Portugal, como afirmado, a música popular teve um franco desenvolvimento
perceptível pela discografia, por sua inserção junto aos movimentos populares, pelo
surgimento de cooperativas de música, enquanto a música identificada com a oposição à
ditadura brasileira teve acelerado seu “declínio” com o fim do regime autoritário. No
momento em que a censura política é enfraquecida no Brasil, as canções mais engajadas vão
sendo substituídas por outros movimentos da indústria fonográfica. Logo, não uma
mudança unicamente temática ou de gênero musical e do mesmo modo os músicos vão
perdendo espaço. Este fenômeno certamente não admite explicações reducionistas como a de
que na ditadura, em razão da censura, as canções eram mais trabalhadas e, portanto, de melhor
19
qualidade, e que, movida pela revolta contra o sistema, esta produção teria atingido um nível
estético musical e poético sem precedentes.
Em razão das diferenças entre as ditaduras brasileira e portuguesa, ao longo das
décadas de 1960 e 1970, observa-se que as relações diplomáticas entre os dois países até o
Golpe de 1964 não trouxeram grandes embates na medida em que se alternaram, como por
exemplo na ONU Organização das Nações Unidas, diferentes posicionamentos do Brasil
frente às medidas contra a colonização dos países africanos, mantida pela ditadura portuguesa
(1926-1974). Com o Golpe Militar de 1964 no Brasil, este posicionamento dúbio seria
mantido. Contudo, as atividades dos exilados portugueses seriam objeto de observação e de
um trabalho conjunto entre os órgãos de informações dos dois países. Assim, de 1964 até
1974 as ditaduras mantiveram sob vigilância seus respectivos exilados, como atesta a análise
dos documentos na seqüência deste texto.
Em 1974, o movimento dos capitães levou ao fim o regime ditatorial português
surgido no longínquo 28 de maio de 1926. Esta revolução ficou conhecida como a
“Revolução dos Cravos” porque durante as comemorações da população, na mesma manhã do
25 de abril, vendedoras de cravos entregaram aos soldados suas flores e estes para poderem
lanchar colocaram-nas nos canos dos fuzis. Deste modo, tais imagens foram captadas pelas
lentes dos fotógrafos e espalhadas pela imprensa internacional, transformando o gesto num
símbolo daquele ato político.
Com a Revolução de 1974, o governo brasileiro iniciou uma nova fase de observação
da atividade oficial portuguesa no Brasil e, paradoxalmente, apesar de receber os antigos
salazaristas, controlou-os, inclusive proibindo que os mesmos concedessem entrevistas e que
a matéria fosse objeto dos meios de comunicação. Logo, a informação sobre a revolução
portuguesa seria controlada porque colocava em xeque a ditadura tupiniquim. Além disso, a
20
diáspora dos salazaristas era também um duro golpe contra a ditadura brasileira e um possível
exemplo do que poderia acontecer aos seus militares e aliados.
Entretanto, as relações entre as ditaduras não se constituiriam unicamente entre trocas
de informações, pois muitos portugueses foram presos no Brasil por suas atividades de
denúncia contra o salazarismo. Aqui enfrentaram não apenas a polícia política brasileira,
como também as denúncias dos “comendadores”, da comunidade portuguesa salazarista e até
a acusação da vinda de agentes da Polícia Internacional em Defesa do Estado (PIDE) ao
Brasil.
Por sua vez, a censura e a repressão contra a canção engajada e contra temas poucos
afeitos à moral dos regimes ditatoriais não foram impostas somente nos dois países. Boa parte
das nações latino-americanas vivia sob ditaduras militares e a censura era uma constante em
quase todo o continente. Havia, na América Latina um intercâmbio cultural militar que
impedia a circulação de certas canções pela região, como as chilenas de Violeta Parra e de
Victor Jara, assassinado pela ditadura no Chile; as da argentina Mercedes Sosa e as dos
cubanos Silvio Rodríguez e Pablo Milanês; as do uruguaio Daniel Viglietti; entre outras.
A canção política era tão divulgada naquele período, início da década de 1970, que
chegaram a ser realizados festivais internacionais de "canção política" na República
Democrática Alemã, na Bulgária, na União Soviética e na Itália. Como diria um dos mais
expoentes pesquisadores e músicos da canção portuguesa:
Algumas canções se fazem, também, para denunciar a repressão policial,
a maneira como se atenta contra as liberdades elementares dos cidadãos,
como se cala com a prisão e a tortura a voz dos que resistem [...] Os
textos que se cantavam eram observados à lupa pelos censores, truncados
ou vetados na íntegra. Mesmo assim, muita coisa oportuna se acabou por
dizer, por sugerir, por esboçar nas entrelinhas. A metáfora iludiu muitas
vezes a vigilância dos censores, fazendo com que algumas canções
conseguissem escapar à tesoura e ao lápis azul.
(LETRIA, 1978, p. 43, 57).
21
Logo, a mesma dinâmica observada na censura portuguesa também pode ser
encontrada no Brasil. Nestes países, a atividade censória se refletiu numa produção musical,
ora com críticas explícitas, ora com o exercício da metáfora e da dubiedade discursiva.
No caso brasileiro, a partir da consulta aos arquivos do DOPS Departamento de
Ordem Política e Social e dos arquivos dos Serviços de Censura, notadamente, no Fundo
DCDP, presente no Arquivo Nacional - Setor de Censura (em Brasília e no Rio de Janeiro), é
possível mapear as relações entre músicos e Estado em duas instâncias de poder: repressão e
censura. Por outro lado, a pesquisadora Creuza Berg (2002), ao analisar a documentação da
DCDP, destaca os vínculos possíveis entre tais instâncias e relaciona as justificativas de cortes
dos censores à Doutrina de Segurança Nacional, presente nos debates da Escola Superior de
Guerra.
No Brasil, tal controle censório, era feito não apenas pelo Estado. A chamada
sociedade civil também intervia por meio de informantes e de pessoas que denunciavam os
“subversivos” e os “imorais” e suas manifestações artísticas. Entretanto, apesar do controle da
cultura, no campo musical as vozes opostas ao poder ditatorial foram ouvidas explícita e
implicitamente nos discursos sonoros e nos movimentos musicais. Um outro horizonte surgiu
justamente da construção de sentidos presentes nestes discursos das canções, nos movimentos
musicais e nos processos legais, como por exemplo nas justificativas das cartas enviadas pela
indústria fonográfica e pelos compositores aos serviços de censura observadas no caso
brasileiro.
As consultas aos arquivos do DOPS também contribuíram na compreensão do
funcionamento e do alcance das teias de comunicação entre as polícias estaduais, a Polícia
Federal (incluída a DCDP), as empresas estatais
3
, além de delatores infiltrados nos
3
Por exemplo, no arquivo do DOPS da Paraíba encontram-se documentos sigilosos de informações prestadas
pela SAELPA - Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba, por meio de sua Assessoria de Segurança e
Informações, com o assunto: subversão, datado de 27.04.81. Também prestava tal “assessoria” a Rede
22
movimentos sindicais, estudantis e artísticos. A produção de informações advinda dos DOPS,
reais ou inventadas, serviram de parâmetro para ações práticas, como prisões, proibições e
abertura de processos, no enquadramento dos setores observados, e, provavelmente, numa
própria auto-justificativa para a existência destes serviços e seus respectivos cargos públicos,
com as comissões e extras recebidos pelos agentes quando da sua atividade rotineira ou nas
“diligências”. Nesse sentido, com a abertura de parte destes arquivos à consulta pública, no
início da década de 1990, surgiram inúmeros trabalhos acadêmicos que aprofundaram
significativamente a discussão sobre a natureza, o funcionamento e a base legal desta polícia
política.
No Brasil, esta pesquisa foi realizada junto aos arquivos do DOPS dos Estados do Rio
Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Paraíba, escolhidos não
estrategicamente, mas de acordo com as contingências relacionadas à presença do autor nestes
estados. que se registrar que a legislação de acesso à documentação varia de acordo com
cada Lei estadual. Logo, enquanto em São Paulo, Paraná e Paraíba o acesso aos prontuários é
livre aos pesquisadores, no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Pernambuco, estes mesmos
prontuários podem ser consultados mediante a autorização dos envolvidos ou de seus
familiares mais próximos, em caso de morte dos fichados. Não obstante, mesmo onde a
consulta é restrita, os músicos podem ser investigados a partir de processos e casos coletivos,
não menos esclarecedores que os prontuários. Alguns arquivos do DOPS continuam sendo
organizados e liberados, a exemplo do arquivo do estado de Minas Gerais, liberado para
pesquisa a partir de dezembro de 2004 e, portanto, não examinado para esta pesquisa em
razão dos prazos.
Ferroviária do Nordeste, denunciando “atividades subversivas” e repassando informes sobre as atividades de
guerrilheiros, datada de 24.03.1970. Outro caso similar vem da atuação de estatais, como a Itaipu, em Foz do
Iguaçu, que integrou os serviços de repressão da Operação Condor.
23
O que chama a atenção é a desinformação e a falta de interesse por parte do setor
público em determinados Estados. No arquivo da Paraíba, a documentação encontra-se em
dois únicos armários, em péssimo estado de conservação, e os documentos chegam a ser
levados para serem copiados fora do prédio em que se encontram, sem nenhum tipo de
conferência ou acompanhamento. Esta falta de atenção do Estado e da sociedade pode ter
provocado o desvio de documentação oficial. Em Pernambuco não é diferente. Apesar de
guardar um acervo mais diversificado e numeroso, também se encontra em instalações
inadequadas e sem pessoal capacitado para o atendimento ao público.
O arquivo do Rio Grande do Sul, apesar do atendimento mais especializado e de uma
melhor organização, tem liberado processos e fichas advindas das delegacias do interior,
sob justificativa de que os documentos da capital teriam sido incinerados a mando do primeiro
governador civil após a ditadura. Contudo, algumas denúncias apontam que esta
documentação destruída já estava microfilmada
4
. Segundo Sinara Fajardo, em sua pesquisa de
Mestrado Espionagem política: Instituições e Processo no Rio Grande do Sul, uma
significativa parte do material foi “incinerado (informes, correspondências, cópias de
processos, pedidos de buscas, prontuários) foi microfilmado no DINP (Departamento de
Informática da Polícia Civil), em 1980, conforme depoimentos à CPI da Espionagem Política”
(FAJARDO, 1993, p. 85). O fato é que no arquivo do DOPS do Rio Grande do Sul, ainda em
2002, não havia uma diversificada documentação disponível para consulta.
Quanto ao arquivo do DOPS do Estado de São Paulo, este se encontra sob a
responsabilidade do Arquivo Público do Estado em melhores condições e com um
atendimento também especializado. Trata-se de uma documentação mais numerosa, onde é
possível localizar prontuários de músicos portugueses e brasileiros. uma gama de
documentos relacionados a espetáculos de música, com relatórios pormenorizados e registros
4
Ver esta mesma discussão sobre a destruição ou não da documentação em Colling (1997).
24
da presença e de trechos das falas dos músicos. Embora possua um material menos numeroso,
o arquivo do DOPS do Paraná também se encontra melhor organizado e, em tese, também
concentra documentos do estado vizinho, Santa Catarina, que, estranhamente, não possui um
arquivo próprio.
Vale ressaltar que a documentação dos arquivos dos DOPS somente foi liberada no
início da década de 1990 e é possível que ela tenha sido dilapidada por setores dos governos
estaduais e federais, bem como pelas polícias estaduais e pela polícia federal. Outro dado é
que, apesar de extintos os DOPS entre 1982 e 1983, os serviços de informação continuaram
operando em sua tarefa de investigação política até o fim da década de 1980, em particular,
junto ao acompanhamento de sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais e estudantis,
comunidades eclesiais de base, grupos de luta pela terra, entre outros. É possível que tal
atividade ainda hoje seja realizada por um dos setores das polícias estaduais, a chamada
Polícia Reservada (P2).
No caso português, a investigação foi realizada junto aos arquivos da PIDE e da DGS
Direcção-Geral de Segurança; já no campo da Censura, pesquisamos os arquivos da
Direcção-Geral de Espectáculos, ambos mantidos no Instituto dos Arquivos Nacionais - Torre
do Tombo, em Lisboa. Na documentação da polícia política encontra-se fichas policiais de
músicos, processos criminais, relatórios de espetáculos, pareceres de censura, ofícios de
comunicação internos e entre as ditaduras brasileira e portuguesa, fotografias, análise de
conjuntura, dossiês, entre outros documentos que de forma secundária permitem vislumbrar a
dimensão e o tipo de controle exercido pela ditadura em relação aos músicos.
O controle político das atividades dos músicos portugueses não ocorria unicamente em
Portugal. Havia uma estrutura de circulação de informações sobre os exilados a partir de
informantes infiltrados em movimentos políticos e culturais de oposição à ditadura e também
a partir de boletins emitidos pelas embaixadas e consulados portugueses. Por exemplo,
25
durante um evento em Bruxelas, organizado pelo Cercle du Libren Examen e pela Comissão
Nacional de Socorro aos Presos Políticos, os músicos Sérgio Godinho e Luís Cília foram alvo
de preocupação da polícia política, como fica claro na Informação de 23 de março de 1972
5
,
por atuarem neste recital em que, além da denúncia contra a prisão política em Portugal,
foram realizadas palestras e debates contra a colonização na África.
Esta documentação dos dois países revela o meio em que as canções de intervenção
encontravam larga ressonância, como nas grandes aglomerações de pessoas em torno de
movimentos democráticos, manifestações de rua de operários e estudantes, atos pela
libertação dos presos políticos, entre o final dos anos de 1960 e o início dos anos 70. Em
Portugal, neste período, participavam inúmeros músicos, tais como: José Afonso, Fausto,
Francisco Fanhais, Carlos Paredes, Adriano Correia de Oliveira, José Barata Moura, José
Jorge Letria, Manuel Freire e Lopes-Graça, entre outros. No exílio estavam Sérgio Godinho,
Luís Cília, Tino Flores, Vitorino e José Mário Branco. No Brasil, entre os músicos mais
citados nos arquivos, estavam Taiguara, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Gonzaguinha,
Ivan Lins e Sérgio Ricardo. Até mesmo músicos de outros gêneros musicais menos visados
foram fichados ou citados secundariamente em outros documentos pela polícia política, como
por exemplo, Adoniran Barbosa
6
, Wilson Simonal e Erasmo Carlos.
Porém, se no caso brasileiro se avomulam pesquisas sobre a música popular brasileira,
em Portugal são poucas as inserções acadêmicas neste campo. Assim, estas reflexões aqui
realizadas têm muito mais uma preocupação em fazê-las conhecidas do que propriamente
esgotá-las enquanto objeto a ser desvelado. Com exceção do único trabalho acadêmico no
campo da História realizado em Portugal (RAPOSO, 2000), são encontrados unicamente
5
Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo (IAN/TT), PIDE/DGS, proc. 11640 CI92, NT-7633. Apesar
de informar sobre o evento na Bélgica, consta ainda neste documento duas folhas com o programa do espetáculo
anunciado para o dia 03 de novembro de 1971, em Paris, contando com a presença dos mesmos Cília e Godinho,
além do músico português José Mário Branco e do grupo Los Chilenos, liderado por Juan Capra.
6
Sob acusação de que: “Fez parte dos shows programados pela Fac. de Ciências Sociais da USP”, em março de
1977, de acordo com a pasta 50-C-22-1647 do DOPS/SP. referências a ele em outros três documentos. Tal
documentação será analisada de forma mais pormenorizada no capítulo sobre a repressão no Brasil.
26
trabalhos de jornalistas sobre os músicos e a ditadura portuguesa. Apesar da ressalva, que
se enfatizar que alguns destes trabalhos
7
de cunho jornalístico e autobiográfico também
operaram com pesquisas documentais, entrevistas, periódicos, ou seja, com muito do métier
do historiador. Nesse sentido, a pesquisa apenas trilhou caminhos inexplorados se levarmos
em consideração a produção historiográfica.
Todavia, que se destacar o inaugurador livro Música Popular Portuguesa: um
ponto de partida, de 1984, do crítico musical português Mário Correia, que realizou uma
investigação baseada nas canções e nos depoimentos dos músicos, citados literalmente e até
então dispersos em inúmeros periódicos. O pesquisador divide a história recente da música
popular portuguesa em quatro fases que, segundo ele, teriam pontos de contato e de
confluência: do fado de Coimbra à balada (1956-64), da balada à nova canção portuguesa
(1964-71) e da nova canção portuguesa à libertação (1971-74) e o canto livre a partir de 1974.
O autor assevera nesta obra os limites de seu trabalho e a necessidade da “publicação de
inúmeros textos e respectivas referências de origem o que equivaleria a uma enciclopédica
antologia” (1984, p. 08).
Este estudo, de fato, ainda está por se fazer em Portugal. Durante a realização desta
pesquisa os próprios músicos entrevistados citavam a falta de um trabalho que ocupasse esta
lacuna da história da música popular portuguesa. Contudo, como afirmou Mário Correia, isto
demandaria a publicação de uma coleção que envolveria uma equipe considerável para
construir uma nova análise aliada a uma releitura de um vasto material disperso na
discografia, na bibliografia e nos periódicos que se ocuparam da música popular.
Apesar da licença poética do título, esta não é um estudo sobre os dois principais
7
Por exemplo, os artigos escritos por Ruben Carvalho (aliás, o responsável pelas comemorações do PCP, a
conhecida Festa do Avante); do músico e pesquisador rio Vieira de Carvalho; do já clássico e excelente livro
de Mário Correia, sica Popular Portuguesa: um ponto de partida (1984); do músico e escritor José Jorge
Letria; do escritor Jo Viale Moutinho (1973, 1999); os artigos e livros sobre músicos do jornalista Viriato
Teles, talvez um dos maiores críticos musicais em atividade em Portugal.
27
gêneros musicais de ambos os países. O samba e o fado foram utilizados em diferentes
momentos pelas ditaduras como portadores de toda uma simbologia
8
que representariam suas
realidades nacionais. Estes gêneros denotam as relações entre Estado e cultura popular na
construção de símbolos nacionais.
9
Nos dois países ocorreu um processo de embate e
acomodações no tocante ao papel dos gêneros musicais. De forma semelhante, pode-se
observar ainda no início do século XX uma perseguição e um preconceito contra estes
gêneros populares, ao mesmo tempo em que, nas três primeiras décadas, os respectivos
governos catapultaram o samba e o fado a ícones musicais destes países, iniciando um
processo de construção do fundo sonoro das imagens nacionais veiculadas internamente e no
exterior. Como diria uma das primeiras estudiosas desta questão no Brasil:
Todo o mito ou símbolo nacional é construído a partir de uma tentativa de
generalização, denotando uma intenção particular de processos autoritários,
que pretendem unificar o múltiplo, negar o conflito e construir a harmonia,
mesmo que esta unidade e harmonia existam apenas no nível de
representação.
(SALVADORI, 1986, p. 105).
Alguns dos reflexos desta ingerência estatal no campo musical podem ser observados
tanto na proibição de temas considerados imorais ou políticos no fado, quanto nas narrativas
dos sambas-enredo sobre temas da história nacional abordadas pelas escolas de samba em
meados da década de 1930. Em parte, tal prática advém da influência do DIP - Departamento
de Imprensa e Propaganda, do primeiro governo de Getúlio Vargas, que passou a exigir que
fossem recuperados os "grandes temas nacionais", como o Descobrimento, a Independência, a
Inconfidência e a Abolição, que contribuiriam numa suposta formação de um caráter nacional.
8
Poderia-se falar também em uma “invenção da tradição”, como assevera Eric Hobsbawn e Terece Ranger
(1997).
9
Na Espanha, este debate também é plausível quando observadas as relações entre o Franquismo e o Flamenco,
quando a ditadura se apropriou e manipulou a cultura popular flamenca, alçando-a a símbolo do país. Este tema
pode ser observado na tese: MATEO, Soledad. Castañuelas para Franco: nacionalismo y misticismo en la
canción flamenquista de postguerra española. Disertación Doctor of Philosophy in Hispanic Languages and
Literature. State University of New York, 1996, cujo exemplar foi consultado na Biblioteca Nacional de Madrid.
28
Entre os anos de 1943 e 1945: “[...] a Portela desfilou com enredos sugeridos pela Liga de
Defesa Nacional, não sendo de admirar que nesses três anos tenha sido a vencedora do
desfile”. (TINHORÃO, 1982, p. 06).
Coincidentemente, no Brasil e em Portugal, somente na década de 1960 se iniciaria
uma crítica a tal representação construída pelas ditaduras em torno da música popular. Assim,
as camadas universitárias e os músicos de esquerda, ao invés de negarem tais gêneros,
lançaram-se num processo de incorporação de elementos destes mesmos gêneros e de outros
referenciais populares na criação de uma moderna canção popular, como veremos ao longo da
análise da produção musical e mesmo nos depoimentos dos músicos brasileiros e portugueses.
Um exemplo vem do depoimento do músico português José Afonso:
“De qualquer forma não creio que uma geração de cantores populares possa
subsistir sem uma forma que os impulsione, sem uma raiz genuína,
originada na nossa tradição rural na qual se apóiem para não caírem em
importações. Essa raiz existe mas é em grande parte ignorada ou, o que é
pior, menosprezada”. (CORREIA, 1984, p. 43).
Uma das referências da música popular portuguesa (e não necessariamente de raiz
rural) mais significativa vem justamente do fado. Ao longo da ditadura salazarista, este
“símbolo do sentimento português” atravessou também um processo de esvaziamento político
de seus motivos musicais, o que contribuiu para a imagem de um gênero musical conservador
e apolítico, capitaneada por uma política cultural do regime autoritário.
Os frutos amargos de quase cinqüenta anos desta ditadura ainda estão na boca do país,
já que Portugal ainda tem índices sociais abaixo da média da Europa Ocidental, por maior que
sejam os investimentos da Comunidade Européia para equipará-lo aos seus parceiros
econômicos. O país forneceu milhares de trabalhadores portugueses para países como a
França ou a Inglaterra e, paradoxalmente, continua recebendo imigrantes legais e ilegais das
antigas colônias portuguesas na África, do Brasil e dos países do leste Europeu. No caso dos
29
novos trabalhadores africanos, estes engrossam as fileiras dos bairros populares, em
particular, nos arredores de Lisboa. Uma viagem de trem em direção às cidades e bairros dos
arredores demonstra a divisão social perceptível pela etnia, pela cor da pele. A cada estação
mais distante a cor da pele torna-se um uníssono.
As relações entre os portugueses e os imigrantes não são as mais cordiais e remetem
ao imaginário de um grande Portugal dos tempos de Salazar, quando a colonização era uma
das marcas deste domínio. O racismo em Portugal e no Brasil também permite uma leitura
sincrônica desta lamentável herança dos anos de escravidão e de seus efeitos e mutações não
menos perversas ao longo do século XX. Tal perspectiva pode ser observada até mesmo pela
Internet que, além de permitir uma infinidade de recursos voltados à produção e difusão do
conhecimento útil socialmente, também reflete a existência de movimentos racistas e de
cunho totalitário de antigos e novos grupos organizados, de salazaristas a entusiastas da volta
da ditadura no Brasil, os exemplos se avomulam.
Com a liberação paulatina de boa parte da documentação das polícias políticas e da
comunidade de informações nos dois países, no início da década de 1990, a produção
historiográfica vem se ocupando de temas até então menos explorados. Logo, uma
numerosa bibliografia que surgiu em dois ciclos marcantes: imediatamente ao fim destas
ditaduras e durante a última década e meia. Esta produção permite compreender o controle do
campo da cultura, em particular, da música, grosso modo, dividida nos seguintes grandes
temas: a “Censura” (KUSHNIR, 2004; ALBIN, 2002; BERG, 2002; CARNEIRO, 2002;
ARAÚJO, 2002; AQUINO, 1999; AZEVEDO, 1999; STEPHANOU, 2001), a “repressão”
(RIBEIRO, 2000; GALVÃO, 1999; MAGALHÃES, 1997; IGNATIEV, 1975; MANUEL,
1974), o “autoritarismo” (RIDENTI, 1993; ALMEIDA, 1998; PINTO, 1992; ALVES, 1984;
POULANTZAS, 1976), a “canção de intervenção portuguesa” (RAPOSO, 2000;
MOUTINHO, 1999; LETRIA, 1978, 1975; MOURA, 1977; CARVALHO, 1976), a
30
“comparação na canção” (VILLAÇA, 2000; MOBY, 1994; ALMEIDA, 1984), a “história da
música popular brasileira” (HOMEM DE MELLO, 2002; RIDENTI, 2000; CONTIER, 1998;
TINHORÃO, 1991; NAPOLITANO, 2001), entre outros temas que se fundem.
ainda trabalhos que discutem as relações objetivas entre os dois países, como é o
caso da pesquisa da brasileira filha de portugueses Heloísa Paulo em sua obra Estado Novo e
Propaganda em Portugal e no Brasil: o SPN/SNI e o DIP (1994), fruto de sua dissertação de
Mestrado. Neste estudo, a autora realiza comparação entre as propagandas oficiais de ambos
os países, bem como seus pontos de confluência, expressos nas atividades em comum como,
por exemplo, no “Acordo Cultural Luso-Brasileiro, firmado entre o Secretariado de
Propaganda Nacional e o Departamento de Imprensa e Propaganda, a 4 de setembro de 1941,
no Palácio do Catete” (PAULO, 1994, p. 168). Contudo, esta obra se atém às décadas de 1940
a 1950, quando da efetivação e implementação dos acordos culturais. A mesma autora lançou
a obra Aqui também é Portugal: a Colônia Portuguesa do Brasil e o Salazarismo (2000),
resultado de seu Doutorado em História, em que analisa, a partir do campo político,
diplomático e cultural, as imagens construídas pelas propagandas do governo português no
Brasil junto aos seus nacionais, também abordando o mesmo período histórico de seu trabalho
anterior.
Outra obra que relaciona a história luso-brasileira, de autoria de Eulália Lobo, é
Imigração Portuguesa no Brasil (2001), cuja pesquisa estabelece, por exemplo, um paralelo
entre os meios de comunicação brasileiros e portugueses, programas de TV e rádio,
manifestações artísticas, ainda que tal obra não se detenha significativamente em música. A
autora reflete, por exemplo, que, entre as décadas de 1950 e 1970, havia inúmeros programas
de rádio com programação unicamente portuguesa e que tais veículos contribuíram para um
cunho tradicionalista da música que chegava ao Brasil.
31
No campo da história comparativa relacionada à canção popular, poucos trabalhos
foram encontrados. A pesquisa de Mestrado em História da Cultura intitulada A ideologia e a
Canção Popular: estudo para um relacionamento entre a história contemporânea do Brasil e
do Chile
10
, de Regina Gonçalves de Almeida, defendida em 1984, é um dos primeiros
exemplos de comparação entre casos nacionais no universo da canção. Este trabalho aborda as
décadas de 1960 e 1970 e analisa a “função” da canção numa sociedade de classes. Traz
ainda um discurso mais partidário em relação à canção engajada, mas perfeitamente
compreensível se tomarmos em conta que a pesquisa foi feita ainda durante a ditadura em
ambos os países e sob a influência marcante de uma teoria também participante.
A pesquisa de Mestrado, Tropicalismo (1967-1969) e Grupo de Experimentación
Sonora (1969-1972): engajamento e experimentalismo na canção popular, no Brasil e em
Cuba
11
, de Mariana Villaça, traz à tona uma reflexão também baseada na comparação e num
diversificado corpus documental que abarca o cancioneiro destes dois movimentos musicais
do Brasil e de Cuba. Ainda no campo da comparação que se ressaltar o trabalho de
Mestrado de Alberto Moby, desta vez comparando dois períodos de censura, mas unicamente
no Brasil. Sua pesquisa deu origem à obra Sinal Fechado: a música popular brasileira sob
censura (1937-45/ 1969-78).
12
Esta obra compara e explicita as diferenças entre as ações de
censura durante os dois períodos ditatoriais por que o Brasil passou. O autor enfatiza, entre
outros aspectos, que a natureza comum da censura não se traduziu em práticas censórias
exatamente similares nos dois períodos históricos abordados, bem como reforça que o Estado
Novo fez uso de uma produção cultural oficial como propaganda do regime, fato não
observado no regime militar pós-1964. Por outro lado, revela que ambas as ditaduras se
10
ALMEIDA, Regina. A Ideologia e a Canção Popular: Estudo para um relacionamento entre a história
contemporânea do Brasil e do Chile e a canção popular. Porto Alegre: Pós-Graduação em História da Cultura,
1984. (Dissertação de Mestrado).
11
VILLAÇA, Mariana. Tropicalismo (1967-1969) e Grupo de Experimentación Sonora (1969-1972):
engajamento e experimentalismo na canção popular, no Brasil e em Cuba. São Paulo: FFLCH-USP, 2000.
(Dissertação de Mestrado).
12
MOBY, Alberto. Sinal Fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-45/ 1969-78). Rio de Janeiro:
Obra Aberta, 1994.
32
valeram de uma legalidade na medida em que se amparavam numa legislação criada para dar
contornos pragmáticos às ações políticas empreendidas nos dois períodos.
Uma outra obra que relaciona Brasil e Portugal, mas desta vez unicamente no campo
da música popular, é “Sonoridades Luso-Afro-Brasileiras”, fruto de um congresso homônimo
ocorrido no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em 2003. Curiosamente,
nenhum dos dezenove artigos reunidos traça uma história comparativa da canção moderna dos
dois países. Nesse sentido, o cancioneiro que emerge na década de 1960 novamente não é
abordado, apesar de suas similaridades e paradigmas comuns. Não obstante, esta coletânea
reúne importantes estudos sobre fenômenos musicais nacionais a partir do século XVI
chegando até a música contemporânea.
Enquanto no Brasil esta produção musical é elevada a uma das mais representativas
fontes de análise histórica, sociológica, literária e antropológica, em Portugal, a chamada
canção popular portuguesa, não tem sido objeto privilegiado de análise por estas diferentes
áreas do conhecimento. As letras das canções brasileiras foram equiparadas à poesia,
analisadas, publicadas e exploradas pelo mercado editorial e não apenas pela indústria
fonográfica. Em Portugal, as letras das canções não aparecem citadas em livros didáticos e em
outros de cunho acadêmico, indicando mesmo um desprezo (ou desconhecimento) pela rica
produção poética daí advinda. Os compositores José Afonso e Sérgio Godinho, por exemplo,
tiveram suas letras reunidas e publicadas entre as décadas de 1970 e 1980, porém, de forma
muito incipiente.
Um sinal claro da ausência de pesquisas acadêmicas sobre a canção portuguesa está no
fato de haver até o momento uma única dissertação sobre o tema da canção de intervenção em
Portugal, no caso, a obra Canto de Intervenção (1960-1974), de Eduardo Raposo, publicada
no ano de 2000. Houve ainda dois outros trabalhos acadêmicos, mas desta vez unicamente
33
sobre José Afonso, realizados na Alemanha
13
e na Itália
14
encontrados na Associação José
Afonso (AJA).
Outro forte indício desta lacuna está no fato desta pesquisa ter sido a primeira no
arquivo da Censura em Portugal
15
, cujo material, aliás, continua sendo organizado pelos
técnicos da Torre do Tombo. Tal material não foi ainda explorado e alguns dos pareceres da
Censura que foram citados em outros textos advêm de cópias que ficaram com gravadoras,
compositores, jornais, editoras ou companhias de teatro ou ainda de originais extraviados dos
arquivos quando da queda da ditadura. também inúmeros depoimentos da retirada de
documentos dos arquivos imediatamente ao 25 de abril, sendo mesmo alguns dos prontuários
objeto de análise dos jornais de então.
O exame da canção portuguesa por um pesquisador brasileiro trouxe algumas
dificuldades, porém não insuperáveis. Entre elas, o limitado contato com a realidade e a
história recente de Portugal. Não um número significativo de obras no Brasil que versem
sobre esta história, particularmente, que abranja o Estado Novo e o período pós Revolução
dos Cravos (1974). Não são poucas as razões para que sejam desenvolvidas pesquisas sobre o
tema, afinal, o Brasil sempre foi o local para onde muitos dos opositores ao regime salazarista
se exilaram. Aqui participaram do cotidiano do homem comum brasileiro ou se lançaram em
empresas de maior visibilidade pública como os artistas, os intelectuais e os professores
universitários.
Em São Paulo, o Jornal Democrático tornou-se o porta-voz destes opositores e um
importante canal de denúncia num tempo em que as informações não circulavam facilmente
nem em Portugal e muito menos no Brasil. Apesar da censura portuguesa, surgiram inúmeros
13
Utopie und Vergangenheit: Das Liedwerk des portugiesischen Sangers José Afonso. Elfriede Engelmeyer.
Editora da Universidade de Viena, 1985, 267 páginas. Esta é a primeira tese sobre os textos de José Afonso, feita
em Hanôver (Alemanha Federal, na época) e apresentada em 1983 na Universidade de Viena/ Áustria.
14
La "Canção de Intervenção" e L'Opera Lirico-Musicale di José Afonso. Tesi di Laurea in Lingua e Letteratura
Portoghese. Relatore: Chiar.mo Prof. Roberto Vechi. Presentata da: Nicolleta Nanni. Anno Accademico 1998/ 9.
15
Segundo informações dos técnicos do setor quando da realização da referida investigação.
34
periódicos que contribuíram na divulgação da canção popular e não a portuguesa, entre
eles, o Mundo da Canção, Memória do Elefante e Flama, além dos suplementos de cultura do
Cena 7, Musicalíssimo e A Capital. Outro material interessante encontrado foi o Jornal de
Letras, Artes e Idéias.
16
Uma dificuldade patente num estudo sobre a cultura portuguesa contemporânea, em
particular da canção popular portuguesa, advém do limitado contato com a literatura
contemporânea portuguesa, com os dados históricos e culturais presentes nas canções, na
maioria das vezes de forma implícita. Grosso modo, faz-se necessário um conhecimento mais
profundo do povo português, por mais genérico e vazio que possa parecer o termo. Apesar do
estágio no exterior, a falta de profundidade em algumas questões nacionais podem ser
limitadoras na análise. Nesse sentido, o estágio de doutorando no exterior foi fundamental
para dirimir algumas destas questões e possibilitar o acesso à documentação oficial,
bibliografia, entrevistas com músicos e discografia. Por outro lado, este olhar pode também
contribuir na análise histórica de uma outra realidade nacional e possibilitar o exercício
comparativo.
Não são poucas na historiografia brasileira da última década e meia as pesquisas que
relacionam história e música. Prioritariamente, se detiveram na canção popular e no lugar
social de que falam estes compositores, intérpretes e músicos. A explicação mais plausível da
opção pela música popular por estes pesquisadores talvez decorra da difusão mais vulgarizada
desta em relação a uma música denominada erudita. O alcance social da música popular é
muito mais amplo e um dos temas mais trabalhados pela historiografia brasileira foi a relação
entre censura, música e história. Do Estado Novo à ditadura militar imposta ao país em 1964,
não faltam dados e fontes para tal abordagem.
16
uma coleção deste jornal no acervo do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da UNESP/
Assis.
35
Talvez um outro caminho que se mostra ao historiador, o que não é necessariamente
inédito, diz respeito ao estudo da inserção da música popular na sociedade e sua recepção pelo
público. Entretanto, o historiador Luis Fernando Cerri (2002, p. 202), ao tratar da recepção
das propagandas de cunho oficial e dos apoiadores do regime militar brasileiro, alerta sobre a
dificuldade em se mapear o alcance destas mensagens e a sua efetiva interação entre os
indivíduos que as receberam. Tal preocupação, portanto, pode ser estendida a recepção das
músicas.
Nesse sentido, dois autores são emblemáticos: Roger Chartier e Michel de Certeau.
17
O primeiro, no tocante à “cultura escrita”, combate as visões mais reducionistas e simplistas
das relações entre produtor-texto-leitor. Relativizando a submissão ou a subserviência do
leitor ante o texto e às suas mensagens explícitas e implícitas, Chartier aponta a aproximação
com o pensamento de Michel de Certeau ao entender o consumo como produção, bem como
ao ampliar as possibilidades de utilização e interpretação trazidas pelo texto e ao ampliar
também a noção de consumo para além dos produtos culturais, estendendo-a ao consumo
intelectual.
Assim, com base no tema desta tese, qual seria a relação do ouvinte com a obra? Que
práticas culturais podem ser desveladas? No tocante à música popular portuguesa como são
recebidas canções como Grândola, Vila Morena, do emblemático compositor José Afonso,
que três semanas antes havia sido cantada por cerca de cinco mil pessoas num show na grande
sala do Coliseu, em Lisboa? Como passou a fazer parte de uma narrativa comum a várias
obras sobre a queda da ditadura portuguesa? Para além disso, como é recebida tal canção após
sua utilização como senha para saída dos quartéis e para o início da Revolução dos Cravos
que acabou com 48 anos de ditadura em Portugal?
No Brasil, a canção que mais se aproximou da importância de Grândola, Vila Morena,
17
Na seqüência do texto examinar-se-á também o autor enquanto ativista político, no caso, suas críticas à
ditadura brasileira, o que levou o DOPS a inseri-lo em seus prontuários.
36
foi Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando), de Geraldo Vandré, de 1968.
Caminhando, virou o hino da oposição política no final da década de 1960 e durante toda a
década de 1970. Voltou à tona no movimento Diretas já!, nas greves da década de 1980 e no
movimento pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Sua radiodifusão
foi proibida após sua participação no Festival Internacional da Canção em 1968, contudo,
continuou preservada na memória e nas manifestações. Esta canção também foi gravada pelo
ex-padre e músico português Francisco Fanhais no disco República, de 1975, lançado
unicamente na Itália com o apoio das organizações operárias Lotta Continua e Vanguardia
Operaria, com canções interpretadas por Fanhais e José Afonso. Também contou com uma
gravação na Espanha pela cantora e atriz Ana Belen.
Este é um exemplo das estratégias do ouvinte, não passividade, mesmo a uma
“apropriação” de que trata Chartier (1990). O autor utiliza o conceito de “apropriação” não
sem antes refazer sua constituição a partir de Foucault e de Ricoeur. Chartier, diferente da
definição do primeiro, mais ligada ao controle e à propriedade dos discursos por uma
comunidade, e da possibilidade de atualização e realização do texto pelo segundo, vê a
apropriação como uma pluralidade de usos e de interpretações dos textos. Para responder a
tais indagações trazidas pelo pensamento de Chartier, ao se explorar tais produtos culturais, há
que se ampliar o raio de observação para o autor, para o processo de produção e de
distribuição, bem como para as múltiplas possibilidades de recepção de um ouvinte/leitor.
Mais que isso, que se situar tal produção num campo maior, estabelecer relações com
outras manifestações artísticas que lhes circundam, percebendo o ouvinte enquanto um agente
ativo, mas sem perder de vista que estes produtos estão, ou podem estar, carregados de
inculcação ou de aculturação.
Por outro lado, esta concepção de consumidor/ leitor (ou “ouvinte”) e suas práticas de
leitura (e, por analogia, também suas “práticas de escuta”) não simplificam a operação
37
historiográfica. Afinal, Chartier e Certeau (1994) desnaturalizam a ligação mecânica entre o
texto e sua apreensão pelo leitor. Estas reflexões alertam para os riscos da simples
generalização do processo de assimilação dos projetos culturais e as possíveis ressignificações
dos códigos dos produtos culturais pelos consumidores. Logo, ampliam as leituras dos
fenômenos nestas relações, contribuindo para a operação historiográfica não apenas com o
método e com os conceitos, mas também com as diferentes fontes documentais, como é o
caso da música. Assim, a passividade também não está presente nas análises acadêmicas dos
objetos artísticos o que se traduz numa leitura que pode ser questionada pelo próprio artista.
Nesse sentido, o inúmeros os casos de leituras de significados de metáforas das canções da
década de 1960 que são rebatidas pelos próprios compositores.
Esta “apropriação” do discurso sonoro faz com que, por exemplo, uma canção escrita
sobre a questão da terra na década de 1960
18
no Brasil possa ser interpretada pelo público
atual como uma mensagem relacionada ao contemporâneo Movimento dos Sem-Terra. São
“práticas de escuta” determinadas pelo referencial e pelo universo pessoal do ouvinte, aliado
às sugestões características veiculadas explicita e subliminarmente pelos meios de
comunicação. Logo, um mapeamento da recepção do discurso sonoro pela população do
Brasil e de Portugal, no período analisado, torna-se ainda mais difícil. Assim, ao longo do
texto buscar-se-á explorar minimamente os espaços de produção e difusão das canções num
círculo universitário ou de movimentos de trabalhadores nos dois países.
Não obstante as três décadas que nos afastam do fim da ditadura portuguesa e duas da
brasileira, uma série de estudos vem sendo publicada na direção de compreender as diferentes
estruturas criadas ou reformuladas nestes países, bem como no sentido de denunciar as ações
18
Por exemplo, Terra de Ninguém de Marcos e Paulo Valle. Ou ainda a canção de 1975, de João Bosco e Aldir
Blanc, O Rancho da Goiabada, também sobre a questão da terra e as condições de vida do trabalhador do
campo; também o samba da década de 1930 de Noel Rosa, Onde está a honestidade? (E o povo já pergunta com
maldade:/ Onde está a honestidade?/ O seu dinheiro nasce de repente/ E embora não se saiba se é verdade/ Vo
acha nas ruas diariamente/ Anéis, dinheiro e felicidade), cuja semelhança com a corrupção contemporânea não é
mera coincidência.
38
destes mesmos regimes. Outra vertente que se constituiu relaciona-se ao revisionismo sobre o
período. Desde as memórias dos militares partidários dos ideais de 1964 até os estudos de
pesquisadores que constroem uma distinta linha interpretativa para especificar diferenças
entre as fases dos regimes, além de analisar mais detidamente a profundidade e o alcance das
políticas, de fato, implementadas pelos regimes ditatoriais.
A violência dos anos de autoritarismo ainda continua arraigada nas relações entre o
Estado e a sociedade brasileira. Porém, engendram-se também novas formas de violência,
além de outras justificativas para atos em que a máxima “luta social é caso de polícia” ainda
vigora. A violência policial contra as classes populares, a tortura nas delegacias, a repressão
contra movimentos de trabalhadores “sem terra” e “sem teto” recolocam em cena práticas dos
tempos da ditadura e redefinem o papel da repressão policial ante a criminalidade crescente. A
chamada “comunidade de informações” também é reorganizada e continua não sendo
acompanhada pela sociedade e pelo Poder Legislativo.
Esta tese está dividida em três capítulos a partir de assuntos que se entrecruzam em
razão das similaridades que envolvem temas como repressão, Censura, exílio, oposição
política e cultural, entre outros. Numa tentativa de possibilitar uma melhor organicidade ao
texto, subdividimos ainda cada um dos capítulos em mais dois subcapítulos. Assim, no
capítulo 1: “A Censura”, é realizada uma reflexão sobre a natureza das ações censórias, as
similaridades entre os dois casos nacionais, reiterando a explicitação do recorte cronológico e
do objeto, as justificativas pela opção em comparar Brasil e Portugal, uma breve análise sobre
o desconhecimento mútuo em relação à história dos dois países, os contraditórios contatos
entre intelectuais, artistas e políticos dos dois países e a especificidade dos arquivos da
Censura consultados.
No subcapítulo 1.1: “A Censura portuguesa: essa câmara de torturar palavras”, cujo
trecho em itálico traz a definição criada pelo escritor português José Cardoso Pires, buscou-se
39
os contornos do alcance obtido pelo órgão português junto às artes e à Imprensa, mais
particularmente em relação à canção. Também é traçado um breve panorama dos primórdios
da Censura em diferentes campos a partir da implantação da ditadura em 28 de maio de 1926.
Além disso, são abordados os processos censórios em relação às canções brasileiras e ao
controle das notícias sobre o Brasil.
No subcapítulo 1.2 “A censura brasileira: vocorta um verso, eu escrevo outro”, em
que o trecho em itálico refere-se a uma passagem da canção Pesadelo, de Paulo César
Pinheiro, tem-se uma reflexão semelhante a que foi feita sobre o caso português. Porém, desta
vez a partir de uma ainda mais complexa documentação, na medida em que a indústria
fonográfica brasileira é numericamente superior à portuguesa. Como reflexo desta produção,
também uma maior complexidade nos mecanismos de censura brasileiros e no volume de
pareceres produzidos.
No capítulo 2 “A repressão”, uma análise dos aparelhos repressivos nos dois casos
nacionais, a utilização da tortura pelas ditaduras dentro e fora do país, os grupos de luta
armada portugueses, a relação entre a Igreja Católica e os regimes ditatoriais, a troca mútua de
informações sobre os exilados brasileiros e portugueses. No subcapítulo 2.1 “A repressão
portuguesa: ouvem-se os gritos, na noite abafada cujo título traz os versos da canção Os
Vampiros, de José Afonso (um dos primeiros temas políticos desta geração de músicos) é
abordado o tema do Golpe que instaurou a ditadura em 1926, as instituições de inspiração
fascista criadas na década de 1930 e que atingiram muitos dos músicos abordados, a questão
da Guerra Colonial e da lutas de independência, os espetáculos e músicos vigiados, a prisão
de intelectuais e músicos, a legislação da repressão, o uso do fado e do folclore pela ditadura e
a espionagem, entre outros.
De forma similar, o subcapítulo 2.2 “A repressão brasileira: por isso cuidado, meu
bem, perigo na esquinaaqui com os versos da canção Como nossos pais, de Belchior –
40
busca-se mapear o funcionamento dos órgãos de repressão em relação aos músicos e aos
exilados portugueses, os caso de prisão, tortura e morte de músicos, a luta armada e a
participação dos músicos, a experiência do exílio, a história do grupo musical Caldo de Cana
formado por músicos exilados, a confluência do trabalho artístico com o político, o caso da
prisão do grupo teatral Living Theatre no Brasil, etc.
No capítulo 3 “A canção”, são abordadas mais brevemente as relações entre o
cancioneiro dos dois países, os temas que se coadunam, as particularidades nacionais. Nos
subcapítulos 3.1 “A canção portuguesa: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”- trecho
do Soneto de Camões, adaptado à canção homônima de José Mário Branco - e 3.2 “A canção
brasileira: e no entanto é preciso cantarexcerto da Marcha da quarta-feira de cinzas, de
Carlos Lyra e Vinicius de Moraes são trazidos à tona os motivos, a influência e a utilização
da poesia na canção, os diferentes gêneros musicais, além de outros temas. Sobre esta última
parte da tese, que se ressaltar que ao longo do texto inúmeras análises de canções que
não foram reunidas neste capítulo em razão de sua relação direta com os fatos abordados.
Outro dado é que a diversidade musical e temática inviabilizou um mapeamento mais apurado
da canção nos dois países. Portanto, privilegiou-se neste estudo a comparação dos processos
mais do que o objeto canção, pois, demandaria um referencial teórico-metodológico e um
corpo de análise infinitamente superior ao espaço aqui estabelecido.
Esta opção pela análise dos mecanismos de censura e de repressão está alicerçada
numa documentação diversa, como nas treze entrevistas com sete músicos portugueses, quatro
brasileiros e um galego, além do ativista político português Alípio de Freitas. Além disso,
computa-se trinta depoimentos não gravados que foram obtidos pessoalmente, por telefone ou
por e-mail. Foram copiadas centenas de processos portugueses da PIDE e da Censura. Do
Brasil foram milhares de documentos consultados e copiados nos arquivos do DOPS e da
Censura (no Rio de Janeiro e em Brasília). Esta gama de documentação, aliada à bibliografia e
41
à discografia, aponta também numa perspectiva de assinalar, através dos casos levantados,
como estas estratégias dos Estados ditatoriais e dos músicos produziram processos
semelhantes em realidades tão distintas.
Os efeitos destas ditaduras não foram observados unicamente na repressão ou na
produção musical, são igualmente percebidos nos processos educativos, nas artes, nos meios
de comunicação de então, o que, certamente, contribuiu para algumas das permanências na
história. A herança deste período, porém, não se restringe a tais embates. que se comparar
tais realidades de Brasil e Portugal, tendo no horizonte também a luta contra o esquecimento,
remédio por vezes eficaz na luta contra as repetições nefastas (FREITAS, 1999, p. 01).
42
CAPÍTULO 1: A CENSURA
Quando algumas críticas são feitas à influência da música internacional na canção
nacional, muitos músicos respondem-nas com a clássica frase: “para a música, não
fronteiras”. Esta pesquisa partiu desta mesma máxima. Durante as décadas de 1960 e 1970
circularam por inúmeros países canções que criticavam um estado de coisas de então: as
ditaduras, o autoritarismo, a violência, o imperialismo, o anticomunismo, a repressão sexual e
política, o conservadorismo, o moralismo, a miséria, a fome, a desigualdade social, o atraso
econômico, as guerras e as armas, entre outros. Nos países em que havia censura, tais temas
eram abordados também por meio de metáforas, dando origem a alguns semas comuns em
diferentes realidades nacionais. Os mais diversos termos surgiram para denominar esta
modalidade de canção: política, engajada, de intervenção, de protesto, de réplica, de
circunstância, de testemunho, contestatória, nueva canción, nueva trova, nova cançó e nova
canción galega, entre outros. Tal estudo parte do princípio de que uma história comparativa
destes movimentos musicais contribui sobremaneira para o entendimento da história destes
países no âmbito da cultura e de suas implicações sociais.
Apesar de abordarmos a censura em dois países que viveram experiências com
regimes ditatoriais, também nos chamados países democráticos e nos países do antigo bloco
socialista
19
, neste mesmo período, ocorreram exemplos de censura em relação à canção
popular. Marcadamente, este controle censório foi mais incisivo no tocante às questões
19
uma relativa bibliografia que se ocupa da censura à música, à literatura e à Imprensa nestes países. Como
em: DAVIES, R. W. Censura e falsificações na História da URSS. Lisboa: Edições 70, 1991 (neste trabalho
também uma interessante reflexão sobre o ensino de história na antiga URSS: “a história é ensinada nas
escolas com base num programa-padrão e numa série de compêndios igual em cada uma das quinze repúblicas”.
Conf. p. 209); CASCUDO, Teresa. A música soviética entre o degelo e a Perestroika (1953-1989). Música
russa: um breve panorama. Lisboa: Público, 2001, p. 69-93; Comitê d’autodéfense sociale KOR. Les archives
de la censure polonaise. Esprit. . 14, v.2, fev/ 1978, p. 160-65; CHENTALINSKI, Vitali. A palavra
ressucitada: nos arquivos literários do KGB. Venda Nova, Portugal: Bertrand, 1996 (esta obra revela as obras e
os autores perseguidos do período estalinista, inclusive trazendo os casos dos escritores fuzilados e presos nos
campos de concentração).
43
morais, a exemplo do que denunciou o músico francês Léo Ferré quanto ao papel obscuro dos
comitês de escuta franceses inicialmente criados para retirar de circulação discos com
problemas cnicos, mas que se transformaram em órgãos de censura, apesar de não
institucionais, como afirma o músico sobre este problema na década de 1960: “Diz-se que não
censura porque não se pode proibir uma canção desde que ela não atente contra os bons
costumes” (GOMES, 1984, p. 29).
Particularmente, a opção por esta comparação entre Brasil e Portugal advém das
relações culturais e históricas entre os dois países; da língua portuguesa; da influência mútua
na música; dos contatos entre as duas ditaduras; do intercâmbio entre músicos brasileiros e
portugueses, expresso na discografia, nas memórias e depoimentos destes artistas. Estas
relações guardam também seus paradoxos: o ex-presidente Juscelino Kubistchek, considerado
por muitos como o maior democrata que passou pela Presidência do Brasil até então, exilou-
se em Portugal a convite de Salazar.
Logo, não é surpresa que no Memorial JK em Brasília, no escritório de Juscelino,
reinstalado naquele espaço, exista uma única foto em sua escrivaninha: a do “Excelentíssimo
Dinossauro” como diria o escritor e jornalista José Cardoso Pires
20
, ou seja, do presidente do
Conselho de Ministros
21
António Salazar. Curiosamente, além do convite de Salazar, JK
também recebeu propostas de exílio dos ditadores Alfredo Stroessner
22
do Paraguai, e de
Francisco Franco da Espanha. No plano dos paradoxos, o português António Ferro
23
, o
principal ideólogo do Estado Novo português, admirador dos ditadores Salazar, Mussolini e
20
No Arquivo do DOPS/PR, no ofício 7956 de 1975, emitido pelo Departamento de Polícia Federal para a
Superintendência Regional do Paraná, seu nome aparece numa lista de 55 jornalistas “impedidos de ingressarem
no Brasil”, ao lado de Adelino Cardoso, Avelino Rodrigues, José Reis, entre outros.
21
Além do Presidente do país “eleito” pelo sufrágio direto e universal por sete anos, o governo era “[...]
composto pelo presidente de Conselho de Ministros e pelos ministérios. A posição do presidente de Conselho de
Ministros, além de lhe permitir ocupar um ou mais ministérios, ainda lhe concedia poderes de fixar as diretrizes
da ação governamental, coordenar e dirigir as atividades de todos os ministérios”. In: PASCHKES, Maria Luisa.
A ditadura salazarista. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.17.
22
Governou o Paraguai de 1954 a 1989, exilando-se no Brasil, onde vive até hoje.
23
Em 1923, antes de sua entrada no governo Salazar, teve sua peça Mar Alto proibida logo após a estréia. Assim,
aquele que seria mais tarde o responsável pela política cultural portuguesa, também experimentou o remédio
amargo que receitaria a tantos outros artistas (PORTELA, 1987, p. 24).
44
Franco, foi um dos assistentes da Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo.
Logo, participou de um acontecimento radical da cultura brasileira, embora fosse, mais tarde,
em Portugal, salazarista e adepto da cultura fascista
24
.
Segundo Artur Portela (1987, p. 23), apesar de não detalhar sua atuação, no Brasil,
António Ferro: “[...] participa na renovação modernista, ao lado de Sérgio Milliet, de Oswald
de Andrade, de Mário de Andrade, de Manuel Bandeira. Participa na Semana de Arte
Moderna de S. Paulo. Faz conferências nessa cidade, no Rio, em outros grandes centros”. No
mesmo período, foi homenageado no Rio de Janeiro numa solenidade que contou com a
participação até mesmo de Oswald de Andrade. Em 1957, seria a vez do presidente de
Portugal Craveiro Lopes
25
ser homenageado. Desta vez com um tulo de Doutor Honoris
Causa pela Universidade de São Paulo, recebido fora da USP, no conservador Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, para burlar os protestos contra tal agraciamento
(LEONZO, 1995, p. 121). Estes títulos não cessaram neste caso, em 1969, segundo o próprio
ex-presidente do Conselho de Ministros de Portugal, Marcelo Caetano, já no seu primeiro ano
de exílio no Brasil, teria também recebido o “Doutoramento Honoris Causae o “título de
professor honorário” (CAETANO, 1974, p.70).
Estas homenagens denotam as relações existentes entre os dois governos, bem como
entre os salazaristas que viviam no Brasil e o governo de Salazar. Contudo, as afinidades entre
brasileiros e portugueses não se resumiam a isso, afinal, havia também uma forte oposição de
portugueses no Brasil contra a ditadura portuguesa. Os contatos entre músicos dos dois países,
pode ser inferido a partir de um exemplar da obra A caça aos coelhos e outros escritos
24
Claro que o Grupo Verde-Amarelo, liderado por Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia,
Candido Mota Filho e Alfredo Élis, guardou inúmeras semelhanças com o projeto de país defendido por António
Ferro: nacionalismo, autoritarismo e xenofobia, muito embora, posteriormente, o grupo tenha se afastado do
fascismo do integralismo capitaneado por Plínio Salgado. Disponível em: Anos 20 Verde-Amarelos:
http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos20/ev_arteecultura_verdeamarelos.htm>. Acesso em 25 abril
2005.
25
Dessa visita do Presidente de Portugal ao Brasil, nasceu um documentário do diretor de cinema preferido do
regime, António Lopes Ribeiro, intitulado A Viagem Presidencial ao Brasil, 65 min., Sociedade Portuguesa de
Actualidades Cinematográficas/SPAC, 1957.
45
polêmicos (1976), de Fernando Lopes-Graça (1906-1994), encontrado na Biblioteca do MEC/
RJ, com a seguinte dedicatória: “Para Guerra-Peixe, camarada e amigo, com um abraço”.
Apesar da aparente simplicidade desta referência, ela aponta para a proximidade havida
também entre alguns músicos de esquerda.
Um dos discos do músico português José Afonso, intitulado Traz outro amigo
também, foi gravado em Londres em abril de 1970. Numa das sessões de gravação contou
com a presença de exilados portugueses e do brasileiro Gilberto Gil. Segundo o português
Luís Almeida, numa destas noites de exílio em Londres
26
, ao lado de Gilberto Gil, José
Afonso e Caetano Veloso, o último teria expressado o desejo de fazer uma canção retratando
Londres e José Afonso deu uma idéia cantarolando o que viria a ser mais tarde a melodia da
canção London, London, “sem créditos, a não ser para os que assistiram ao parto da canção”.
27
Além destes paradoxos e confluências, a história comparativa entre os dois países
aponta o desconhecimento mútuo das realidades nacionais. Como diria o historiador
português Sérgio Campos Matos, diferente de outros períodos da história, na atualidade, “[...]
em Portugal, até mesmo entre os historiadores é freqüente o desconhecimento da história do
Brasil contemporâneo. E, inversamente, o mesmo se poderá dizer em relação ao que se sabe
de Portugal dos séculos XIX e XX do outro lado do Atlântico” (2001, p.320). Entretanto, isto
não se restringe aos historiadores.
Um caso expressivo deste isolamento pode também ser percebido numa cena
envolvendo Vinicius de Moraes e sua saudação: Viva a mocidade portuguesa!”
(CASTELLO, 1994, p. 302). Foi com esta frase que o músico e poeta brasileiro Vinicius de
Moraes tentou saldar o público, ao lado de Chico Buarque, em 1968, quando faziam um show
em Coimbra. Tal entusiasmo não foi correspondido pelo público, muito pelo contrário, houve
26
Cidade também escolhida por Odair José como exílio após conflitos com o governo brasileiro e com
multinacionais ligadas aos contraceptivos em razão de sua canção Pare de Tomar a Pílula, cujo lançamento
coincidiu com as campanhas oficiais de controle de natalidade naquele ano de 1973 (Araújo, 2002, p. 59-68).
27
ALMEIDA, Luís Pinheiro de. O “London London” de Zeca. Disponível em: <http://www. instituto-
camoes.pt/bases/zeca/testemunho5.htm>. Acesso em: 25 jun. 2002.
46
um silêncio absoluto até o fim do show. A escrita talvez salvasse o poeta já que ele não
colocaria em maiúsculo a bravata. Certamente, o público de Vinicius não tinha esta feição
fascista e isto denotava a relação das oposições com a Mocidade Portuguesa, criada 32 anos
antes.
Este desconhecimento mútuo levou também a uma desastrada participação de José
Afonso no VII Festival Internacional da Canção (FIC), ocorrido em 1972, no Rio de Janeiro.
O maior nome da canção portuguesa foi escolhido para representar Portugal no Festival por
meio de telefonemas a uma rádio, junto com o cantor português, Paulo de Carvalho. Este
último foi escolhido pelo próprio Festival, porém a canção que ele interpretaria, Antes que
seja tarde, de Pedro Osório e José Niza, segundo o último
28
, foi vetada pela Censura brasileira
e teve que ser escrita por Niza uma outra letra: Maria, vida fria.
Contudo, a participação de José Afonso foi pouco notada e amesmo ignorada pela
platéia do festival (muito embora tivesse sido elogiado nos jornais antes do início do FIC), por
mais que seu tema significasse muito para a realidade política brasileira. Afinal, a canção A
morte saiu à rua denunciava o assassinato de um opositor político pela ditadura de Salazar.
Ao se apresentar, foi prejudicado pela péssima acústica do Maracanãzinho e pelo barulho da
platéia que ainda chegava ao recinto. Na verdade, o VII FIC foi também um festival de
truculência, pois além da censura, todo o júri, presidido por Nara Leão, foi destituído e:
Ao tentar ler no palco do VII FIC um manifesto contra a destituição do júri
nacional, Roberto Freire foi violentamente arrastado por policiais, que o
levaram a uma sala e o espancaram barbaramente: de costelas quebradas, o
jurado passou quinze dias no hospital se recuperando. Terminava a Era dos
Festivais (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 429).
28
Apresentação da versão em CD do disco de José Afonso, Eu vou ser como a toupeira, de 1972, relançado em
1996, pela Movieplay, nº JA8005.
47
Por outro lado, José Afonso pôde conhecer muitos músicos brasileiros como o
paraibano Jackson do Pandeiro
29
. A participação do músico português deve ter impressionado
também a jurada Nara Leão, tanto que ela gravaria dois anos mais tarde duas canções
30
de
Zeca Afonso (como também era conhecido). Ele veio acompanhado ao Brasil pelo jornalista
José Viale Moutinho que, segundo seu depoimento informal ao autor, teria sido inquirido por
um agente do DOPS, que se identificaria como tal depois de uma longa conversa. O
mesmo jornalista veria novamente um agente do DOPS, desta vez em Portugal.
Zeca Afonso, que também foi preso pela ditadura portuguesa em 1973, a partir das
impressões que reuniu sobre a ditadura brasileira, compôs em 1976 a canção Alípio de Freitas
denunciando a ditadura brasileira e a prisão do ex-padre português Alípio
31
que, por sua vez,
teve um papel importante nas Ligas Camponesas e na luta contra a ditadura brasileira:
Baía de Guanabara
Santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza
[...]
Lá no sertão nordestino
Terra de tanta pobreza
Com Francisco Julião
Forma as ligas camponesas
Na prisão de Tiradentes
Depois da greve da fome
Em mais de cinco masmorras
Não há tortura que o dome
32
29
Há uma foto deste encontro no arquivo da AJA – Associação José Afonso, em Lisboa.
30
Maio maduro maio e Grândola, Vila Morena. Ambas relançadas num box com praticamente todos os discos
da cantora vertido para o formato CD. As duas canções constam num dos CDs intitulado “raridades”. Box Nara
Leão: Fase 2, Universal Music, 2003.
31
Que teve, em dezembro de 2004, aprovado pelo Governo Brasileiro seu pedido de indenização pela prisão e
tortura sofrida no Brasil. Sobre sua trajetória política no Brasil, ver seu livro de memórias: FREITAS, Alípio de.
Resistir é preciso: memória de um tempo da morte civil no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 1981.
32
AFONSO, José. Com as minhas tamanquinhas. Lisboa: Movieplay (Orfeu), 1996 (1976). n º. JA8008 (CD).
48
Segundo Alípio
33
, esta homenagem aproximou-o de Zeca, visto que ambos não se
conheciam, e fez com que ele tentasse no Brasil levantar os direitos autorais de Zeca Afonso.
Assim, responsável por esta empreitada, chegou a conversar com Nara Leão sobre suas duas
gravações de canções do Zeca e que, segundo ela, teria vendido uma boa cifra deste disco. Ele
também relembra as gravações feitas pela cantora Diana Pequeno
34
. Entretanto, em razão da
venda de direitos da gravadora portuguesa para uma multinacional, Zeca Afonso não recebeu
nada pelos direitos autorais.
35
Voltando ao caso da Censura no Brasil e em Portugal, apesar de similares, de se
destacar que as fontes documentais dos dois países, presentes nos arquivos da Direcção-Geral
de Espectáculos, em Portugal e na DCDP, no Brasil, não se constituem num material
sistematizado e com uma periodicidade regular, afinal, como resultado de regimes
autoritários, guardam a especificidade da destruição de parte deste material ao final das
respectivas ditaduras. Outro dado é que estas fontes são expressões da documentação oficial
produzida pelo Estado e, como tais, devem ser balizadas a partir dos debates políticos e
culturais atinentes ao período. Logo, a observância de grupos sociais concretos, como os
músicos e as expressões políticas que estes carregam, é fundamental para o entendimento do
embate entre músico e Estado.
Para Marc Bloch (1998), há também a necessidade de por à prova este tipo de
material, pois o documento é: “[...] uma testemunha; como a maior parte das testemunhas,
fala se interrogado. O difícil é elaborar o questionário. É que a comparação proporciona
esse perpétuo juiz de instrução que é o historiador um precioso auxílio” (p. 123). Portanto,
com base nesta preocupação em fazer “falar as pedras pisadas no cais”, como diria João
33
Depoimento ao autor em 27 nov. 2004, em Lisboa. Alípio de Freitas, ao voltar a Portugal, fundou a Casa do
Brasil de Lisboa para dar apoio aos brasileiros imigrantes, sendo ainda hoje um centro de referência para os
brasileiros que chegam a Lisboa. Esta associação teve um desenvolvimento e um histórico que lhe permitiu ser
reconhecida pelo governo brasileiro como interlocutora dos brasileiros que lá vivem.
34
Na verdade, duas canções: Rio largo de profundis (1979) e Que amor não me engana (1982).
35
Apesar de responsável por esta procura, Alípio soube da gravação de Roberto Leal de Grândola, Vila
Morena, por intermédio do autor da tese. Este, provavelmente, foi um disco com uma boa vendagem, pois
coincidiu com o início do êxito comercial do cantor no Brasil.
49
Bosco e Aldir Blanc, na canção Mestre-sala dos Mares, trataremos na próxima seção de como
se operou a censura em Portugal.
50
1.1 A CENSURA PORTUGUESA: ESSA CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS
36
Na segunda metade do século XIX, o fado era uma importante referência musical
lusitana. Não demorou muito para que, naquelas cantigas dos bairros populares, os músicos
lançassem seus olhares e suas composições para os temas políticos:
Destruir a monarquia
Haver no mundo igualdade
São dois pontos sublimes
Por que pugna a sociedade
De que serve à pátria o rei,
Toda a imbecil nobreza,
Que p’la força da riqueza
E p’la posição são a lei?
O poder que ao vil darei
À desordem e à anarquia,
A vileza e a tirania,
Tudo isso deve acabar,
Cumpre ao povo sem esperar,
Destruir a monarquia [...]
Este interessante trecho de uma cantiga foi recuperado pelo pesquisador Pinto de
Carvalho e publicada
37
em 1903 em Lisboa. O autor da cantiga acima é: “José Augusto
revolucionário e republicano, o mesmo que depois havia de evolucionar para monárquico e
ordeiro.” (CARVALHO, 1982, p. 219). Como se vê, Pinto de Carvalho não era dos mais
simpáticos ao movimento republicano. A República foi proclamada em 5 de outubro de 1910.
Uma década e meia depois, a instabilidade política governamental tornou-se um campo fértil
ao golpe. A Primeira República portuguesa também não havia conseguido romper com o
histórico atraso econômico de Portugal, ou sequer teve tempo para isso.
Com apenas 16 anos, a República e seus ideais recebia um duro golpe: uma revolução
36
Cf. PIRES, José Cardoso. Dinossauro Excelentíssimo. Lisboa: Arcádia, 1973, p. 36.
37
CARVALHO, Pinto de. História do fado. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982, p. 219.
51
militar em 28 de maio de 1926 que instaurou uma das mais longas ditaduras do mundo
ocidental, como resultado efetivo dos embates de correntes nacionalistas e do clero em
relação ao anticlericalismo da I República. As primeiras medidas tomadas foram a imediata
dissolução do Congresso da República e a imposição da censura prévia à imprensa. Duas
mensagens foram transmitidas pelos golpistas através do posto rádio-militar de Braga e em
algumas áreas também circularam suas versões impressas. A segunda delas trouxe uma
justificativa que muito se assemelha ao pretexto dos militares de 1964 no Brasil
38
:
Portugueses! A Nação quer um governo militar, rodeado das melhores
competências, para instituir, na administração do estado, a disciplina e a
honradez que muito perdeu [...] Não quer a Nação uma Ditadura de
políticos irresponsáveis como tem tido até agora. Quer um Governo forte,
que tenha por missão salvar a tria que concentre em si todos os poderes
para, na hora própria, os restituir a uma verdadeira representação nacional,
ciosa de todas verdades – representação que não será de quadrilhas políticas
dos interesses reais, vivos e permanentes de Portugal. Entre todos os
corpos da Nação em ruína é o Exército o único com autoridade moral e
força material para consubstanciar em si a unidade de uma Pátria que não
quer morrer (CAMPOS, s/d.a, p. 30-1).
Dois anos mais tarde, o professor universitário Antonio Salazar ocuparia a pasta das
Finanças. Em 1932, a frente da Presidência do Conselho de Ministros, era o homem forte
do governo português, nunca assumindo a presidência do país, mas sempre na direção do
governo frente aos Ministérios. Assim, mesmo diante das adversidades, manteve-se no poder
apoiado “[...] pelo Exército, pela Igreja e, de certo modo, pelos monárquicos, Salazar
instaurou o Estado Novo, regime que concentrava à sua volta todos os poderes. Iam da
escolha do candidato à presidência da República a alterações na própria Constituição.”
(DINIZ, 1994, p. 31).
38
Afinal, ainda em 1962, sobre o que vinha se desenhando mais de uma década e que de fato veio a ser
utilizado como justificativa pelos militares brasileiros, Wanderley Guilherme afirmou: “É necessário que as
forças progressistas examinem com atenção o desenvolvimento das atividades dos setores reconhecidamente
totalitários em nosso País, pois hão de ver que os seus objetivos não são outros, neste momento, senão os de criar
no povo brasileiro a consciência de que só um governo forte, com suficiente autoridade, pode resolver o impasse
em que se encontra a Nação” (grifos nossos). In: GUILHERME, Vanderley. Quem dao golpe no Brasil? Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962 (Cadernos do Povo; 5).
52
Como toda ditadura, não foram poucas as ingerências do governo no universo da
produção cultural e tal controle não se restringiu à música ou ao fado. Numa coletânea de
textos
39
de historiadores sobre o Estado Novo português, estão presentes, entre outros temas,
estudos sobre a arquitetura, a música e a literatura. Diferente, porém, da Alemanha, Itália e
União Soviética, em Portugal a arte não foi utilizada pelo Estado como meio ideal da
propagação das idéias salazaristas, ainda que inúmeros ideólogos do regime defendessem a
utilização da arte, a exemplo do seu principal expoente, António Ferro. No entanto, toda
produção cultural passava pelo crivo dos órgãos de Censura e de propaganda da ditadura.
Num artigo intitulado “Ópera como estetização da política e propaganda do Estado”,
40
Mario Vieira de Carvalho descreve as diferentes etapas das propostas da ditadura para a
música clássica, em particular, toma como objeto o Teatro de São Carlos. Ali, em 1931, foi
executada a oratória Fátima, de Ruy Coelho e Lopes Vieira, uma apresentação músico-
dramática sobre o milagre da virgem (1917) em que, segundo o autor, foi representada sua
relação simbólica com o papel do ministro Salazar e sua tarefa quase religiosa de salvamento
da nação. Vale ressaltar que 1917 é também o ano em que sobe ao poder o ditador Sidónio
Pais. Apesar desta peça musical, António Ferro não conseguiu imprimir seu ideal de arte
utilitária, de luta contra a “arte pela arte” e impor sua “política do espírito” ao regime.
Até o início do século XX, não havia um significativo controle, por parte dos
governos, sobre a produção musical. Ele se deu a partir da Revolução Russa, quando se inicia
uma discussão sobre o papel da arte na transformação da sociedade. Até esse mesmo período,
a música romântica reinava absoluta como a música harmônica, o conflituosa, não
dionisíaca. Refletia, na concepção burguesa, um mundo sem violência, justo, herdeiro de um
passado triunfante que desembocaria na sociedade burguesa. Até que:
39
O Estado Novo: das origens ao fim da autarcia – 1926-1959. Lisboa: Fragmentos, v. 2, 1987.
40
Idem, p.209-28.
53
O surgimento de movimentos de vanguarda durante os anos 10 e 20 –
futurismo, expressionismo, dadaísmo, cubismo, surrealismo – e do emprego
de novos recursos técnicos e morfológicos pelos compositores
(politonalidade, serialismo, dodecafonismo, polirritmia, ruídos) foram
considerados como o símbolo da decadência da arte pelos políticos, críticos,
historiadores, artistas, em geral, simpatizantes dos novos regimes políticos
que se instalaram na Itália (fascismo, 1922-45), na Alemanha (nazismo,
1933-45) e na União Soviética (stalinismo, décadas de 30 e 40)
41
.
(CONTIER, 1991, p. 06)
Considerado um possível “foco de rebelião”, o teatro também foi visto com
desconfiança pelo Governo ditatorial, o que levou a publicação do Decreto nº. 14.637 de 28
de novembro de 1927, que transferia o controle da Inspecção Geral dos Teatros do Ministério
da Instrução Pública para o do Interior. Esta medida colocou as atividades teatrais sobre forte
suspeição, como resposta aos grupos de teatro profissionais e amadores que “a esse tempo
proliferavam como arma apontada às instituições” (CAMPOS, s/d. a, p. 100).
Nova inserção na arte fascista ocorreria novamente com o bailado D. Sebastião, em
1943, com argumento de António Ferro, música de Ruy Coelho e representado pelo grupo
estatal Verde Gaio, também criado por Ferro. Foi assistido até mesmo pelo ditador espanhol
Francisco Franco. Desta feita, o teatro serviu ao “princípio do chefe” na medida em que
estabeleceu uma relação entre a entrega e a epopéia de D. Sebastião e o salazarismo. Contudo,
ainda segundo Carvalho (1987), a peça musical Fátima e o bailado D. Sebastião foram duas
exceções, apesar de marcos na arte didática e fascista em Portugal, pois, Salazar preferia
investir os recursos em prédios públicos, em monumentos e no pagamento de apresentações
de grupos estrangeiros.
No tocante à Arquitetura, até a década de 1940 não havia um controle por parte da
ditadura dos projetos arquitetônicos. Porém, a partir dali o governo não mais aprovou projetos
41
Ver ainda outro artigo: CONTIER, A. D. Arte e Estado: Música e Poder na Alemanha dos Anos 30. In:
Revista Brasileira de História: Sociedade e Cultura. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, v.8, 15, set. de 1987/
fev. de 1988.
54
particulares de arquitetura modernista principalmente os que recebiam incentivos fiscais - e
muito menos os projetos de prédios públicos. O regime passou a considerar a
“monumentalidade” um importante recurso simbólico da ideologia fascista portuguesa:
O grande surto de obras públicas, algumas monumentais (e que vieram
dar origem às chamadas “obras de fachada” de que desde cedo se acusou
o salazarismo), tornava evidente a importância da arquitectura como
expressão da capacidade realizadora do Estado Novo, para o que deveria
espelhar os valores que o sustentavam: a autoridade, a disciplina e a
ordem, por um lado, e por outro o culto da nacionalidade, da família e do
mundo rural.
(PEREIRA, 1987, p. 234).
No cinema também não foi diferente. Apesar de se submeter ao mesmo controle que as
outras expressões artísticas, somente a partir da década de 1960 o cinema foi ainda mais
controlado, período em que as experiências estéticas e mesmo temáticas foram exploradas por
vários cineastas no mundo, particularmente, na França, Itália, URSS e Brasil. Até então,
segundo Cândido de Azevedo
42
, havia somente dois cineastas mais expressivos de oposição:
Manuel Guimarães e Manoel de Oliveira. Os demais, ao menos os mais conhecidos,
identificavam-se política e ideologicamente com o Estado Novo. A censura recaía,
principalmente, sobre os filmes importados, muitos deles assistidos após a Revolução dos
Cravos. Isso não significou que o cinema português não vivesse uma significativa
efervescência, além de uma produção de comédias, musicais e filmes de temas mais ingênuos,
também houve uma forte inserção estatal na produção e no financiamento de filmes e
documentários que enfatizaram a heróica história portuguesa, a beleza de seu povo, a
singeleza de seus “trajes típicos” e os ares de aldeia feliz.
42
AZEVEDO, Cândido de. A Censura de Salazar e de Marcelo Caetano: imprensa, teatro, cinema, televisão,
radiodifusão, livro. Lisboa: Caminho, 1999. Ver ainda a crítica à imposição de um realismo fascista no cinema
em: Vinte anos de cinema português, 1930-1950: conteúdos e práticas. In: O Estado Novo: das origens ao fim da
autarcia – 1926-1959. Lisboa: Fragmentos, v. 2, 1987.
55
A ação censória junto à imprensa e à literatura foi também uma constante ao longo de
toda a ditadura salazarista. O português Raul Rêgo, em seu livro Os Índices Expurgatórios e a
Cultura Portuguesa, apesar de tratar da censura à literatura desde os tempos da Inquisição,
caracteriza bem o percurso acidentado do literato, como do compositor:
Quem um dia tratou com censores ou escreveu trabalhos que vão passar à
fieira dos censores, sabe que eles têm uma linguagem própria. É preciso
encontrar-lhes sinonímia para evitar os temas, as expressões, as palavras
“tabus”. Há que ir por desvios, já que o estilo directo os pode ofender e, por
isso, evitar que quanto se escreve chegue ao leitor. (REGO, s/d, p. 69).
A Censura
43
, em seu oficio quase inquisitorial, interditava textos de cunho político,
erótico ou qualquer outro tema que questionasse a ideologia do Estado Novo. Contudo, nem
sempre era o texto o objeto do veto, por vezes, bastava o nome do autor (a) para que viesse a
interdição da obra, chegavam a proibir até mesmo o nome de tradutores de obras estrangeiras
quando estes não fossem ligados ao governo.
Não era, porém, unicamente uma tarefa censória. A ditadura passou também a
relacionar tal trabalho à publicidade e aos serviços de informação e comunicação:
Em 1944, a censura tornou-se legalmente um órgão de formação e
propaganda política, ficando a Direcção-Geral dos Serviços de Censura
integrada no Secretariado Nacional de Informação, que ficava sob a
dependência directa do Presidente do Conselho [...] Por seu lado, a
Direcção-Geral de Segurança emitia mandados de busca às livrarias e os
Correios controlavam a circulação de livros. Como os livros não estavam
sujeitos à censura prévia, qualquer edição podia ser apreendida depois de
publicada.
(RODRIGUES, s/d, 72-3).
43
A legislação da censura à imprensa esteve assente nos Decretos 12.008 (29.07.1926), 22.469 (11.04.1933) e
26.589 (14.05.1936).
56
Se o projeto de António Ferro de uma arte utilitária não obteve apoio inequívoco de
Salazar, as artes tiveram sua importância na perpetuação da ditadura: “O discurso do regime,
que se queria também cultural e moral, necessitava absolutamente da arte para seu rosto, a sua
fachada, a sua constante recorrência ao passado, a demonstração da sua capacidade
realizadora” (PORTELA, 1987: 132).
44
Esta relação entre as propostas de António Ferro e
uma política de propaganda oficial levou a uma aproximação entre o “Estado Novo”
português e o brasileiro durante a cada de 1940. Tal política foi efetivada mediante a
assinatura, em setembro de 1941, do Acordo Cultural Luso-Brasileiro, firmado entre o SPN -
Secretariado de Propaganda Nacional (de Portugal) e o DIP Departamento de Imprensa e
Propaganda (do Brasil). A implementação deste Acordo teve como base os três artigos que
correspondiam a um intercâmbio de publicações, a criação da revista Atlântico e a troca de
propagandas oficiais entre os dois países.
Como afirma a estudiosa do tema, Heloísa Paulo (1994, p. 170): “A revista Atlântico
pode ser apontada como a realização mais expressiva deste Acordo, considerando-se que
consegue ter alguma repercussão e importância no Brasil”. A mesma autora enfatiza as três
séries da vigência da revista: de 1942 a 1945, de 1947 a 1948 e de 1949 a 1950. Nesta
publicação semestral, alternavam textos de cunho oficial e publicações de escritores dos dois
países, muitos deles de oposição e não alinhados aos regimes (no caso brasileiro, autores
como Otto Maria Carpeaux, Mário de Andrade e Vinicius de Moraes, entre outros).
Voltando ao tema da Censura, que se enfatizar que o panorama traçado
anteriormente não caracteriza exatamente a censura exercida durante as décadas de 1960 e
1970, muito embora seus contornos tenham influenciado no controle da produção artística e
de informação destes anos. Afinal, os órgãos de censura e de repressão acompanharam as
44
Muito embora as décadas de 1930 e 1940 tenham se caracterizado por esta tentativa de criar uma arte utilitária
para o salazarismo, também nas décadas seguintes este ideal artístico não foi de todo esquecido. Por exemplo,
em 1970, o Secretariado Nacional de Informação (SNI órgão que substituiu seu congênere SPN Secretariado
de Propaganda Nacional) organizou no Brasil uma exposição comemorativa ao aniversário da “Revolução
Nacional” chamada “As Artes ao Serviço da Nação” (PORTELA, 1987: p. 158).
57
variações da própria ditadura que, por sua vez, direcionou suas forças aos movimentos que
eclodiram em diferentes setores ao longo deste quase meio século de ditadura. Apesar dos
riscos de uma leitura anacrônica, há nos depoimentos e em parte da bibliografia a imagem de
um regime indistinto ao longo do tempo. O que de fato não ocorreu, pois a Censura se
adaptou às necessidades de controle de grupos distintos e de informações sobre os mais
diferentes movimentos de oposição surgidos no operariado, nas atividades do Partido
Comunista Português (PCP), no movimento estudantil, no interior da própria elite e entre os
militares.
O fato é que após a queda da ditadura, os pesquisadores entraram em contato com
inúmeros documentos que apontaram a incidência e o alcance da atividade censória em
Portugal. Por exemplo, somente em janeiro de 1974, segundo relatório da Comissão de
Censura à imprensa, foram suspensos de circulação 138 títulos e, destes, 71 foram reprovados
e proibidos de circular (RODRIGUES, s/d, p. 78). Na literatura não era muito diferente, o que
levou a uma progressiva autocensura e uso freqüente de metáforas, a exemplo das letras das
canções:
A censura oficial ou oficiosa impunha ao escritor uma permanente e
insidiosa auto-censura, apenas ultrapassada pelo engenho próprio de
escrever entrelinhas ou de encontrar metáforas apropriadas. Assim,
palavras como aurora ou amanhecer passaram a significar socialismo,
primavera/ revolução, camarada/ prisioneiro, vampiro/ polícia, papoila/
vitória popular. (RODRIGUES, s/d, p. 80)
Um dos mais censurados no campo da música e da poesia foi justamente o compositor
José Afonso. Mesmo com o acidente sofrido por Salazar (ao cair, literalmente, da cadeira -
fato que o afastou definitivamente do poder em 1968 e que o levou à morte em 1971), seu
sucessor, Marcelo Caetano, a exemplo do primeiro, professor universitário da cadeira de
Direito, manteve uma similar política repressiva e econômica de seu antecessor. Assim,
continuaram a todo vapor as atividades da Censura, como se num parecer censório de
58
março de 1971 sobre uma coletânea de poesias (algumas delas transformadas, antes ou
mesmo depois, em canções) de José Afonso, intitulada Cantar de Novo:
Trata-se de uma colectânea de poesias do Dr. José Afonso, algumas das
quais musicadas e não raro transmitidas por Rádio Argel, no seu
programa contra o nosso País. Exemplos: A morte saiu à rua; Olhai o
nardo e a cicuta; Cantar alentejano poema dedicado a Catarina
Eufémia, a mulher que um soldado da GNR matou e é considerada
heroína pelo Partido Comunista Português; Coro dos caídos; Vampiros
este poema está musicado e é constantemente transmitido por Rádio
Argel [...] Conclusão: Se estes poemas fossem retirados do livro não
haveria mal pois todo o resto é inofensivo e artisticamente válido. Julgo
ser um livro para proibir (AZEVEDO, 1999, p. 573-4).
Com este parecer o livro foi proibido e poderia ser relançado após a retirada dos
poemas citados pelo censor. Obviamente, tal política de exceção também se refletiu no campo
intelectual, na produção e na divulgação de saberes, como assevera o ex-preso político
português (libertado no 25 de abril) e historiador José Manuel Tengarrinha:
A existência de uma severíssima censura prévia, as grandes dificuldades de
comunicação e de transmissão cultural fora dos mecanismos oficiais, a
proibição de importação e venda de livros considerados “subversivos”, os
assaltos pela polícia política às bibliotecas particulares, a suspeição e
vigilância permanentes sobre os intelectuais e, em geral, o denso clima
repressivo que se vivia impossibilitavam que se processasse com alguma
amplitude o debate de idéias, reduzido a círculos muito limitados sem
comunicação com a sociedade (TENGARRINHA, 1999, p. 111-2).
Apesar da Censura portuguesa ter atuado ao longo dos 48 anos de ditadura, não foi um
controle homogêneo, como afirmado, as circunstâncias também determinaram adaptações e
criação de leis que fizessem frente à Imprensa e às manifestações artísticas. Na chamada
“primavera marcelista”, ou seja, durante o exercício do governo do primeiro Ministro Marcelo
Caetano, entre 1969 e 1974, houve uma confusão também entre os censores para saber o que
59
havia de fato mudado. Para a sociedade também não ficava claro os limites desta “censura”
agora chamada de “exame prévio”. Por exemplo, no ofício circular 12427 emitido pela
DGS
45
, uma lista de onze livros proibidos de circular no país, entre eles Pedagogia do
Oprimido, do educador brasileiro Paulo Freire
46
, e A Redescoberta da França, do escritor e
jornalista português Urbano Tavares Rodrigues. No mesmo documento constam ainda revistas
dos EUA, Alemanha, Inglaterra e Itália também proibidas de circularem em Portugal.
No mesmo dia, uma outra circular, 12427
47
, também emitida pela DGS elencava 17
livros “autorizados a circular no país”. Entre eles, A Internacional, de Marx e Engels; o
irônico e clássico livro Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires; a coletânea de
poesias de José Afonso, organizada por Viale Moutinho; e Uma farsa Eleitoral O caso do
Sindicato Metalúrgico de Aveiro, curiosamente, de autoria de Mário Brochado e de José
Afonso.
O músico José Afonso, entre as décadas de 1960 e 1970, constituiu-se num símbolo da
oposição política à ditadura no meio artístico. Ele começou sua carreira em Coimbra, por
meio do chamado Fado de Coimbra. Foi estudante de Histórico-Filosóficas, na Universidade
de Coimbra. Nasceu em 02 de agosto de 1929, em Aveiro, viveu ainda em Moçambique,
Angola, Belmonte e Coimbra, cumprindo o serviço militar em Mafra entre 1953 e 1955. Ao
retornar, iniciou suas atividades de professor em diferentes cidades, lecionando ainda em
Moçambique. Ao voltar a lecionar em Portugal, acabou sendo expulso do ensino oficial por
razões políticas. A partir daí, dividiu suas atividades entre o ensino particular e o canto em
apoio a inúmeras associações populares.
Apesar de não dominar a teoria musical, José Afonso produziu cerca de trinta discos.
45
Documento datado de 30 de maio de 1973. Cópia existente no Arquivo do Centro de Documentação 25 de
Abril, em Coimbra.
46
Além deste, houve uma série de livros brasileiros proibidos em Portugal em fins da ditadura, como: Libertação
Sexual da Mulher, de Rose-Marie Muraro e Missão em Portugal, de Álvaro Lins; entre outros.
47
Documento datado de 30 de maio de 1973. Cópia existente no Arquivo do Centro de Documentação 25 de
Abril, em Coimbra.
60
Considerava a “canção de réplica” um dos melhores meios de convencimento e politização
das massas: “Parto da música para o texto [...] Semeio palavras na música. Não tenho
pretensões de dar a estas minhas deambulações pela música qualquer outro rótulo. Faço
apenas canções. A canção insere-se sempre dentro de um processo”.
48
O cancioneiro de José Afonso tem uma breve fase (após a queda da ditadura) de
canções mais datadas, mas sua produção não se resumiu aos protestos contra a ditadura e à
condição humana. inúmeras canções que remetem às festas portuguesas, suas danças,
coletadas do domínio popular, algumas remontando há séculos.
49
O grupo dos compositores de intervenção passou a ter um maior espaço a partir da
criação de programas musicais e radiofônicos que abriram espaço à música de contestação.
José Letria foi um dos que atuaram neste movimento, e descreve bem a importância de um
dos programas de maior audiência da TV em 1969, o Zip-Zip, para a divulgação das canções:
O Zip-Zip, apesar dos condicionamentos impostos pela Censura,
funcionou como uma plataforma de divulgação de novos autores e
intérpretes, daquilo, que, já então se definia como movimento de canto de
intervenção, embora fosse designado, inocuamente, por Nova Canção
Portuguesa, ou por música de “baladeiras” (LETRIA, 1978, p.56-7).
Este foi um dos maiores êxitos da história da televisão portuguesa por sua inovação
estética e versatilidade ao entrevistar diferentes personalidades de diversos ramos, mas com
destacada participação dos músicos, sendo criado por Raúl Solnado, Fialho Gouveia e Carlos
Cruz. Apesar do sucesso, durou apenas cerca de seis meses. Era gravado e depois visionado
pela Censura que dizia os trechos que deveriam ser cortados, e não foram poucos. O Zip-Zip
era gravado num mesmo rolo, assim os registros anteriores eram apagados pelos seguintes,
denotando a incipiência técnica na TV portuguesa de então. Portanto, tivemos acesso à apenas
48
Discografia José Afonso - Centro de Documentação AJA, 2002. Disponível em:
<http://www.aja.pt/centrodedocumentacao/discografia.htm>. Acesso em: 25 jun. 2002.
49
Como a canção Bailia: trovas de Airas Nunes, século XIII, adaptadas por José Afonso em 1969. In: AFONSO,
José. Contos velhos rumos novos. Porto: Orfeu, 1969. 33 rpm, stereo, n. STAT-004.
61
alguns trechos deste programa. Até mesmo Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram por este
programa quando estavam exilados em Londres. É o próprio Caetano quem analisa sua
participação num texto enviado ao Pasquim
50
em setembro de 1969: “[...] eu e o Gil fizemos
uma aparição no programa português de maior audiência, o Zip-Zip (o zip é uma espécie de
Mug luso bem sucedido). Eu achei um fracasso, mas os jornais disseram que foi um sucesso”
(VELOSO, s/d, p. 39).
A exemplo do caso brasileiro, outros espaços de divulgação importantes para os
músicos portugueses foram os festivais de música, como o Festival RTP (Rádio Televisão
Portuguesa) da Canção, iniciado em 1964 e que qualificava o vencedor a participar do
Festival Eurovisão, muito embora praticamente não contasse, antes do 25 de Abril, com a
participação dos mais engajados. Em meio a crescente inserção destas canções junto aos
meios de comunicação de massa, o controle censório foi feito tanto pelos Serviços de Censura
quanto pelas próprias emissoras de rádio e televisão:
O serviço interno de censura encarregava-se de riscar com pregos
51
,
destruir ou “remeter para arquivo” os discos ou faixas censuradas [...] Era
José Niza, músico e produtor de José Afonso, quem dialogava com os
censores, usando estratégias como apresentar-lhes letras mais
contestatórias do que aquelas que pretendiam gravar. Como os censores
não podiam cortar tudo, os artistas acabavam por conseguir gravar o que
queriam. Mesmo assim, a apreensão de discos continuava [...].
52
50
Periódico semanal brasileiro, criado em 1969, e que se tornou notório por se opor à ditadura e por contar com
expressivos nomes da literatura, do jornalismo, da música e do humor em sua redação. No Pasquim foram
publicadas charges, reportagens e as polêmicas - e importantes – entrevistas, publicadas na íntegra. A música era
um tema freqüente neste combativo jornal, inclusive em sua empreitada junto a uma coleção, lançada em 1972,
intitulada Disco de Bolso. Idéia original do compositor Sérgio Ricardo, o projeto teve inicio com o disco simples
com a canção Agnus Sei (de João Bosco e Aldir Blanc) e Águas de Março (Tom Jobim), acabando precocemente
no número 2 com as músicas A volta da Asa Branca, de Caetano Veloso e Mucuripe, do então desconhecido
Fagner, em parceria com Belchior. O Pasquim sobreviveu à ditadura, mas não conseguiu fugir da crise
econômica, o que levou ao seu fechamento “definitivo” no início dos anos noventa, muito embora tenha voltado
em forma da Revista Bundas, também extinta (FIUZA, 2001).
51
depoimentos de funcionários de rádios brasileiras afirmando que, até no início da década de 1980, ainda
havia esta estratégia por parte dos diretores para que os programadores ou apresentadores dos programas não
executassem faixas proibidas pela Censura oficial. Conf. depoimento do radialista João Carlos da Silva ao autor,
em abril de 2005.
52
DANTAS, Vera, VAZA, Marcos. Interdito a todas as idades. 2002. Disponível em: <http://www. instituto-
camoes.pt/bases/25abril/interditotods.htm> Acesso em: 25 jun. 2002.
62
No testemunho de Carlos Correia (Bóris), um dos músicos deste período, sobre o disco
de José Afonso Traz outro amigo também, pode-se perceber outra estratégia de resistência
para conseguir distribuir os discos: “A venda do disco, editado pela Arnaldo Trindade,
decorrera como era de costume: um ou dois dias nas montras das lojas e, depois da proibição
pela censura, clandestinamente e ao mesmo ritmo”.
53
Em Portugal, como no Brasil, a canção popular foi um dos canais mais expressivos de
protesto da juventude. Por outro lado, não podemos perder de vista o quanto o fado também
foi alçado a símbolo da nação esvaziando-o de qualquer crítica ao regime, contribuindo, nesse
sentido, na propagação das idéias do governo ditatorial, impostas à população por meio não só
da música, mas também das organizações de cunho fascista criadas por Salazar, dos
programas televisivos, radiofônicos, publicitários, e até por meio da arquitetura.
A canção foi utilizada até fins da ditadura como agente formadora de opinião pelo
governo e por simpatizantes deste ideário. A Mocidade Portuguesa possuía inúmeros corais e
para disseminar seu “canto colectivo” publicava cadernos com letras e partituras dos hinos e
canções a serem executadas por todo o país. Por exemplo, em 1969, publicou Cancioneiro
para a Mocidade: canto colectivo, com músicas conhecidas desta “mocidade”, em que
temas caros à ditadura eram trabalhados: a guerra colonial, a nação unida, o passado heróico e
o folclore.
Na marcha Aqui é Portugal, letra de Mário Ribeiro e Manuel Tino, temos a
confluência de um dos dois temas mais recorrentes, ou seja, do heroísmo e da unidade
nacional: “A nossa história bela/ Está cheia de tais feitos [...] Que Portugal, uno e valente/
Viverá eternamente!” (p.19). Em Angola é Portugal, também de Mário Ribeiro, a guerra
colonial é justificada: “Com as carnes retalhadas/ Pela acção do banditismo/ Angola dá
grandes mostras/ Do mais são portuguesismo!”. Portanto, os militares portugueses eram
53
CORREIA, Carlos. Grândola, gravada às 3 da manhã. 2002. Disponível em: <http://www. instituto-
camoes.pt/bases/zeca/testemunhos.htm> Acesso em: 23 mai. 2002.
63
heróis, ao passo que os rebeldes eram “bandidos”. Tal imagem é reiterada e de forma mais
explícita ainda: “O inimigo é perverso/ Persistente e desleal/ E acima de tudo quer/ Dar cabo
de Portugal...”.
Além destas máximas, o autor enfatiza na partitura o ritmo exigido: “Marcial, sempre
deciso [sic!] e bem ritmado” (p. 23). Como diria José Cardoso Pires (1925-1998) em seu livro
Dinossauro Excelentíssimo: “A Rádio e a Televisão transmitiam-na entre marchas invencíveis
e compassos de procissão, um-dois, esquerda-direita, Laus Deo; o altifalante do gabinete
despejava-a continuamente” (1974, p.65).
Outra canção emblemática deste período é Grândola, Vila Morena, de José Afonso,
que apesar de seu forte conteúdo político, foi gravada no Brasil por Roberto Leal em 1974
54
.
Isto não deixa de ser paradoxal visto que este popular cantor, posteriormente, teria em seu
repertório canções mais tradicionalistas, bem ao gosto da comunidade portuguesa
conservadora no Brasil. Vale ressaltar que, até o 25 de Abril, instituições como a Casa de
Portugal, a Academia Lusíada, a Câmara do Comércio, o Gabinete Português de Leitura, entre
outras, eram em sua maioria presididas pelos chamados “comendadores”, que hoje, entre a
comunidade portuguesa no Brasil, soa como pejorativo, por sua estreita ligação ao
salazarismo.
No caso do Gabinete Português de Leitura (como os consultados no Rio de Janeiro e
Recife), encontrava-se unicamente uma bibliografia alinhada ao regime ditatorial, resultado
de um veto interno: “[...] importa referir ainda que nos territórios ultramarinos havia também
uma censura própria, de que estavam encarregados os Gabinetes de Leitura [...]” (AZEVEDO,
1999, p. 78). Logo, boa parte da programação cultural destas instituições ignorava a produção
intelectual e musical dos opositores a Salazar em Portugal, o que se traduziu numa freqüente
exposição de uma imagem folclorizada e ideologizada, que representava as marcas de
54
LEAL, Roberto. Roberto Leal. São Paulo: RGE/ Fermata, 1974. 33 rpm, stereomono, n. 303.0028. (LP)
64
grandiosidade de uma “estética” defendida pelo salazarismo.
Grândola também foi gravada por Nara Leão em 1974
55
, o que naquele mesmo ano
provocou a indignação expressa num documento
56
do III Exército brasileiro, pois: “esta
música vem sendo tocada com insistência, diariamente na Rádio Continental de Porto Alegre,
no horário das 12.00 às 13.00 horas”. Em resposta
57
a uma consulta ao DOPS sobre a situação
da canção, o Diretor da Divisão de Censura e Diversões Públicas, Romero Lago, afirma que
esta estava liberada desde 20 de maio de 1974 para a gravação de Roberto Leal.
Curiosamente, Grândola,
58
uma das senhas que avisava os capitães para a saída dos quartéis
para a chamada Revolução dos Cravos, não foi censurada pelas ditaduras do Brasil, Portugal e
Espanha.
Na Espanha, três meses após o 25 de abril de Portugal, o disco Cantigas de Maio (1971)
de José Afonso foi enviado à Censura espanhola
59
pela Ariola Eurodisc. Neste disco estava
presente Grândola, Vila Morena, além de, como diria o jornalista e pesquisador musical
Viriato Teles: “belíssimos temas de inspiração popular, como Maio Maduro Maio, A mulher
da erva ou Cantigas do Maio e de óbvios cantos de resistência, como o Cantar Alentejano,
dedicado a Catarina Eufémia, camponesa assassinada pela GNR, ou Coro da Primavera
(TELES, 2000, p. 183). Esta última canção foi a única a ser censurada: “Coro de Primavera:
DENEGLABE de contenido subversivo. Las restantes son AUTORIZABLES. Madrid, 10-
7-74.” Esta canção foi proibida um ano antes da morte d’ El Generalísimo Franco e, talvez,
55
LEÃO, Nara. A senha do novo Portugal. Portugal: Philips, 1974, 33 rpm, n. 6069111. (compacto simples). A
outra faixa do disco é Maio Maduro Maio, também de José Afonso.
56
Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP)/ Brasília, datado de 09 nov. 1974.
57
Idem, datado de 13.01.1975.
58
Em 1987, pela Gravadora Continental, também gravada pela banda de rock paulista 365, desta vez com um
ritmo bem diferente e com um título também distinto: Vila Morena.
59
Archivo General de la Admnistracion de España, Sección: Cultura. Neste arquivo, encontram-se algumas
caixas relativas à matéria, muito embora os próprios funcionários e a direção do arquivo terem afirmado
desconhecer sua existência. A localização desta documentação foi realizada mediante a observação de outros
documentos do Ministério de Informação da Espanha e sua citação de forma secundária em outros documentos.
Além dos pareceres relacionados à canção portuguesa, também se encontram pareceres de canções brasileiras,
francesas, inglesas, chilenas, entre outras. Após a prospecção deste material, foram providenciadas fotocópias
dos mesmos para pesquisas futuras. Diferente do que ocorre no Brasil, não foi localizada nenhuma investigação
sobre a censura às canções naquele país.
65
servisse de fundo sonoro para tal acontecimento, pelo menos na visão da oposição ao regime:
“Cúbrete chusma/ en la mortaja/ hoy el rey va desnudo/ Los viejos tiranos/ de hace mil años/
mueren como tú”. Vale ressaltar que as canções estrangeiras deviam ser entregues à censura
numa versão em espanhol, mesmo se fossem gravadas em sua língua original.
A letra de Coro da Primavera
60
segue em seu alento à luta contra o poder e ainda abre
uma senha do papel dos cantores: “Ergue-te ó sol de verão/ Somos nós os teus cantores/ Da
matinal canção [...] Livra-te do medo/ Que bem cedo/ Há-de o sol queimar”. No tocante ao
aspecto musical desta canção não houve qualquer opinião do censor, como era característico
da Censura, mas é possível observar que a acidez crítica de seu texto é potencializada pelo
arranjo musical, bem percussivo, afinal “ouve-se os tambores”; utiliza um coro, o que
provoca um efeito de coletividade à canção, por outro lado o som de um órgão ao fundo
contrasta com os tambores; uma segunda parte soa mais melodiosa, com guitarra, flauta e
novamente a canção retoma a base da primeira parte. O fato é que este disco, gravado na
França, contou com os arranjos e direção de José Mário Branco, incorporando experiências
estéticas raramente vistas na música popular portuguesa de início da década de 1970 e
influindo decididamente nos rumos da canção a partir de então.
A censura à canção em Portugal não nasce no século XX, antes disso a censura
religiosa já era manifesta. Contudo, o controle foi freqüente ao longo de toda a ditadura
salazarista. Num dossiê
61
sobre o fado, os pesquisadores encontraram uma revista sobre este
gênero musical, A Canção do Sul, censurada pela Comissão de Censura já em 25 de dezembro
de 1926, apenas sete meses após o golpe de 28 de maio daquele ano.
Apesar deste controle, até o início de 1972, não havia a censura prévia dos discos em
Portugal, o que fazia com que os discos considerados subversivos fossem freqüentemente
apreendidos pela polícia, bem como os editores das gravadoras pressionados a não investir em
60
Viria a ser gravada também pelo músico espanhol Luis Pastor, em 1976, numa versão da letra para o espanhol.
61
Fado: Vozes e Sombras. Lisboa: Electa, 1994, p. 146.
66
trabalhos que atentassem à moral e à política divulgadas pela ditadura portuguesa. Sobre a
censura a posteriori, esclarece Cândido de Azevedo:
[...] era exercida sobre todas as publicações não periódicas, ou que não
estivessem sujeitas, por lei, a censura prévia, como era o caso
predominantemente dos livros – salvo se versassem assuntos de carácter
político ou social, pois nesse caso deviam ser apresentados a censura prévia -,
dos discos e dos posters, mas abrangia ainda outras manifestações culturais,
como, por exemplo, as exposições de artes plásticas (1999, p. 75).
Tal pressão levou a uma autocensura dos compositores e também das gravadoras, estas
últimas movidas ainda pelo risco financeiro de terem seus discos apreendidos e seu
investimento perdido. O governo português, frente a forte inserção social dos “cantautores”
portugueses, potencializou seus serviços de censura junto à produção discográfica.
Convém ressaltar que, se para a sociedade civil o governo utilizava o eufemismo de
“exame prévio”, nos documentos internos e/ou confidenciais deixava muito claro sua
atividade, como se na Circular 26 - DGI, de 19 de fevereiro de 1972, enviada à Rádio
Triunfo e Discos Alvorada:
Em 28 de Janeiro de 1971, enviei a V. Exa. o ofício confidencial n. 36-
DGI/G, em que dava conta de que resulta expressamente das leis em que
deve ser vedada a edição ou radiodifusão de canções ou outras formas
musicais que, pelo seu conteúdo e objectivos, ou em face das circunstâncias
em que foram compostas, possam pôr em causa interesses legalmente
protegidos” [...].
62
Na continuidade desta circular, novamente o eufemismo de uma conversa quase
informal e uma repreensão num tom maternal em relação ao “desgosto” causado pelos
editores à senhora Censura:
62
IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 4610.
67
[...] Decorrido um ano, verifica-se com desgosto que algumas casas editoras
voltaram a desrespeitar a lei de forma ostensiva. Nestes termos, foram
transmitidas superiormente instruções às autoridades competentes para
perseguir criminalmente os infractores, começando a sua intervenção pela
apreensão preventiva dos discos em causa.
63
Caberia ainda uma pesquisa nos países em análise para discutir quais as relações entre
a Censura e a indústria fonográfica. Afinal, muito embora no caso português as empresas
discográficas serem de pequeno e médio porte, estavam em jogo nestas realidades nacionais
interesses das empresas, justamente um dos setores salvaguardados pelas ditaduras
64
que, por
sua vez, possibilitaram o desenvolvimento capitalista nestes países em que pairavam o “perigo
comunista”. E um exercício de uma “simpática” retórica, continua o ultimato do censor:
[...] Numa última tentativa, deseja ainda esta Secretaria de Estado evitar
males maiores aos editores, pelo que por este meio convida V. Exa. a
remeter, préviamente, à Direcção-Geral da Informação a letra das músicas
antes de sua gravação [...] Não me sendo possível dilatar mais a
intervenção policial, lembro a V. Exa. a conveniência que tem em acautelar
a sua actividade futura com a medida de preocupação aqui sugerida [...].
65
Novamente chamam a atenção os eufemismos aqui empregados, como: “convida”,
“deseja”, “conveniência”, “evitar males maiores”. Tal modo de tratamento revela a tônica do
Governo de Marcelo Caetano, ou seja, ao invés da abertura política gradual, uma
reconfiguração dos órgãos de repressão e de Censura e uma nova linguagem de comunicação
social. Apesar de longa, a citação deste documento permite identificar a pressão exercida
sobre as editoras musicais e as rádios, bem como aponta o processo empregado pela ditadura.
63
IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 4610.
64
Sobre a economia portuguesa, afirma José Jobson de Arruda: “Entre 1945 e 1970, dá-se a grande virada. As
taxas de crescimento anual atingem 5,6%; no setor industrial alcançam 10,7% [...] Surgem grandes grupos
econômicos interligando interesses industriais, coloniais e financeiro [...] a lucratividade empresarial por conta
dos lucros de monopólio [...]”. In: ARRUDA, J. J. de A. Prismas da História de Portugal. História de Portugal.
Bauru, SP: EDUSC; São Paulo: UNESP; Portugal: Instituto Camões, 2000, p.11-30.
65
IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 4610.
68
Por fim, neste mesmo documento, o Director-Geral da Informação reproduz as proibições em
relação às canções:
a) as que contenham, ainda que veladamente, ultrajes às instituições ou injúria, difamação ou
ameaça contra as autoridades ou os seus agentes ou contra os poderes constituídos, e bem assim
as que se proponham ridicularizá-los;
b) as que aconselhem, instiguem ou provoquem os ouvintes a faltar ao cumprimento dos deveres
militares ou ao cometimento de actos atentatórios da integridade e independência da Pátria;
c) as que contenham palavras ou idéias ofensivas da dignidade e do decoro nacional;
d) as que contenham expressões obscenas ou ofensivas das leis, da moral e dos bons costumes;
e) as que incitem à depravação e ao vício ou exaltem formas de conduta ou comportamento
imorais ou anti-sociais;
f) as que, por qualquer modo, incitem ao crime ou exaltem actividades criminosas e concitem os
cidadãos a impedirem a acção da justiça na investigação de crimes ou na perseguição de
criminosos;
g) as que, contendo alusões a factos da vida nacional, os deturpem no seu significado, por forma
a estabelecer confusão ou desorientar os espíritos;
h) as que se propuserem divulgar factos ou acontecimentos manifestamente falsos, com ou sem
comentários;
i) as que em geral, não pudessem ser apresentadas em espetáculos públicos sem risco do decoro,
da moral, do respeito devido às instituições autoridades e ao bom nome e prestígio do País.
66
Tais prerrogativas legais guardam profundas semelhanças com seus similares
brasileiros, abarcando um universo tão amplo que possibilitavam um leque ainda maior de
casos passíveis de veto. Contudo, nos processos portugueses, os censores não citavam a
legislação que embasava o veto, como o que foi feito no Brasil para dar uma imagem de
cumprimento da lei. Nos países abordados, ao censor cabia uma tarefa subjetiva, apesar dos
preceitos legais a que estava submetido, afinal bastava elaborar a sua interpretação da
mensagem, seja ela, na visão do censor, explícita ou subliminar. Vale ressaltar que, caso
aprovasse uma letra muito ofensiva ao poder e que esta viesse a se configurar num “sucesso”,
o censor corria o risco de até mesmo ser alvo de um processo interno ou mesmo de demissão.
Logo, temos uma legislação censória a ser observada e, concomitantemente, uma certa
66
IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 4610.
69
independência interpretativa, por mais que pudessem ser questionadas em grau de recurso
pelos interessados.
O fato é que o censor justificava sua tarefa “ingrata” como resultado do cumprimento
dos trâmites burocráticos, por outro lado, no caso português, temos a cúpula do poder
insinuando que os abusos de poder das atividades censórias poderiam ser resultado da ação do
censor. Em seu livro intitulado Depoimento, lançado no Brasil em 1974, Marcelo Caetano,
o último Presidente do Conselho de Ministros da ditadura portuguesa, assevera de forma
pouco convincente:
Este problema da censura é, porém, dos mais difíceis de resolver
satisfatoriamente. Pode a lei definir as matérias proibidas, as permitidas e as
de publicação condicionada por visto em exame prévio: a lei é executada
por homens e estes têm os seus critérios de interpretação. Uns apreciam de
uma maneira, outros de outra. Por mais instruções que se emitissem, nunca
se evitou a existência de certo arbítrio dos censores. (1974, p. 73).
Por consegüinte, temos o depoimento da maior autoridade política dos últimos anos da
ditadura, responsável pela orientação que a “primavera marcelista” imprimiria à ditadura
salazarista, aqui delegando aos censores a responsabilidade frente à legislação criada por seu
próprio governo. Uma reflexão semelhante sobre o papel desempenhado pelo censor está na
obra La represión cultural en el franquismo (1977) que, apesar de tratar da censura à
literatura, aponta uma possível premissa da Censura espanhola, aplicável aos casos brasileiro
e português: “Cuando el censor no entendía alguna frase, pero sospechaba que era
comprometida, la cortaba” (CISQUELLA, 2002, p. 125). Traz ainda uma interessante
reflexão de José Cardoso Pires sobre a representação que o censor fazia de seu próprio
trabalho:
70
[...] que son los gestores de un bien común inalienable y desean ante todo
que su actividad se integre a la moral corriente, como un servicio público
normal y que, por consiguiente, se le atribuya un carácter burocrático y, en
la medida de lo posible, despolitizado.
(PIRES apud CISQUELLA, 2002, p. 47).
Este parâmetro é explícito na documentação censória portuguesa. Um dado
significativo é que os próprios censores ressaltavam a subjetividade e a necessidade de ter
como preceito o corte, no caso da dúvida. Por exemplo, o censor
67
, ao analisar oito poemas
enviados pela gravadora Sassetti, em 1973, disserta: “O critério adoptado na apreciação destes
textos, tem oscilado entre uma quase liberalização e um rigorismo difícil de definir, dado o
carácter subjectivo destas apreciações, na falta de critérios objetivos”.
68
Este documento
também marca a transição de uma política salazarista para marcelista, ou seja, como afirmado
anteriormente, atingir os mesmos fins (barrar as críticas ao regime e seu ideário), porém com
uma outra inserção junto às empresas discográficas e aos músicos. Neste mesmo documento,
o censor confirma as teses do caso espanhol de corte em face de suspeição: “[...] todas as
expressões, susceptíveis de se avolumarem no espírito dos ouvintes e que possam conduzir a
especulações desorientadoras de uma opinião pública sã, devem ser banidas”.
69
Num outro documento do mesmo ano, e de autoria do mesmo censor, a opinião
pública é novamente referenciada ao explicitar a preocupação com os músicos: “[...] quase
todos de intencionalidade política contestatária [sic!] e desorientadora de opinião pública”. E
sobre os poemas desta mesma produção musical, prossegue: “[...] no seu conjunto, deixam
bem transparecer uma forma de subversão que devemos combater”. Enfatiza ainda uma
preocupação que também era comum às duas ditaduras, ou seja, o trabalho sistemático destes
grupos de cantores de oposição, cuja produção: “[...] inspirada em doutrinas de outros paízes
67
A figura do censor surge na Roma antiga, como o magistrado que recenseava a população, cobrava impostos e
zelava pelos bons costumes, sendo esta última tarefa a responsável pelo conceito posterior.
68
IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 457.
69
Idem.
71
[sic!] causaram muitos danos apreciados por sociólogos, não serve de forma alguma a
organização do Estado”.
70
Contudo, que se destacar que a censura à canção não se dá apenas nos discos e
espetáculos, também a imprensa estava proibida de divulgar informações que envolvessem tal
temática. Além da proibição de notícias dos casos nacionais, também estavam abolidas
informações que envolvessem os “países amigos”. No arquivo da Direcção dos Serviços de
Censura de Portugal encontra-se o veto
71
da notícia “Chico a toque de Touros” da revista
Musicalíssimo, de 22 de maio de 1973. Esta matéria informava sobre a visita do presidente do
Brasil General Médici, que havia assistido a uma tourada em Lisboa e ouvira,
paradoxalmente, uma canção de Chico Buarque intitulada A Banda, executada por um grupo
local. Em 8 de junho do mesmo ano e no mesmo periódico, foram vetadas alusões à censura
do disco de Chico Buarque e de outros compositores brasileiros.
No mesmo caminho, a matéria de Rui Luis para o Musicalíssimo, “A (M.P.) B.
ERTURA: para as habituais dicas informativas”, recebeu um corte ainda mais pitoresco por
que envolvia o então cantor Agnaldo Timóteo. Desta vez, os trechos vetados aparecem
grifados: “Interessaria, primeiramente, referir que o próximo LP de Agnaldo Timóteo inclui
uma composição do (atenção!) coronel Joaquim Correia de Matos, que é o director de
operações da Polícia Militar de Minas Gerais. Importante será que não esqueçamos estes
pormaiores.”
72
Com exceção de uma nota (da mesma coluna da matéria anterior) em que é
divulgado o corte das letras das canções do próximo LP de Milton Nascimento pela Censura
Federal brasileira, todas as outras notícias que envolviam o termo “Censura” no Brasil foram
vetadas pelos censores portugueses. O que deve ser enfatizado é que, apesar dos recorrentes
vetos às suas matérias, os jornalistas não desistiam de escrever textos que eles sabiam que
possivelmente seriam vetados. De certa maneira, esta resistência manteve acesa a luta pela
70
IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 457, datado de 19.04.1973.
71
IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 233, prova nº 7.
72
Idem, prova nº 1, Musicalíssimo nº 37, de 10 jul. 1973.
72
liberdade de imprensa. Aliada a esta prática cotidiana, também eram utilizadas metáforas para
driblarem a Censura, muito embora o seu efeito pudesse ser até mesmo inócuo ante a
fragmentação a que os textos estavam submetidos.
Por vezes, a censura a alguma informação provocava dúvida em relação às suas
motivações. Por exemplo, a matéria “Anhangueríssimo/ Fazer na ofensiva cearense” do
crítico musical James Anhangüera, vetada parcialmente pela censora Maria Eugênia,
abordava o lançamento do disco Manera, Fru, Fru, Manera, de Fagner, e tinha vetado os
seguintes trechos grifados: “Nele estão dois medicinais (dois xaxados, portanto) uma
composição intitulada Mucuripe [...]”. Como se sabe, pelo menos no Brasil, é que “xaxado”
se trata do nome (de raiz onomatopéica) de uma dança do Nordeste. Será que a censora
entendeu ser um palavra de baixo calão ou quem sabe uma senha altamente subversiva?
O Arquivo do Secretariado Nacional de Informação de Portugal, recém liberado à
consulta na Torre do Tombo, revela a diversidade de temas proibidos pelos serviços de
censura daquele país. Um outro caso sugestivo vem de uma matéria completamente vetada
73
,
pois informava que depois do presidente Médici se despedir do presidente português Américo
Tomás, em 1973, sua comitiva foi alertada de que havia uma bomba no aeroporto Portela, o
que atrasou sua partida, muito embora nada tivesse sido encontrado. O jornal Diário Popular,
que sofreu o veto citado, contava ainda em suas edições com a coluna O PIF PAF, de Millôr
Fernandes, e também não foram poucos os cortes nestas caricaturas, ora por expor “nudez”
ora por motivação política (como numa crítica ao presidente dos EUA Richard Nixon).
Ainda no tocante a censura aos temas brasileiros, a matéria “Comunidade Luso-
Brasileira como fazer (a partir de agora) tudo o que falta fazer?” foi vetada integralmente em
suas duas páginas de análise dos embates econômicos e políticos entre os dois países: “O
Brasil desejaria explorar as possibilidades de uma maior aproximação, através de Portugal,
73
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 245, Diário Popular, nº 10982, de 19 mai. 1973.
73
com o Continente Negro e com os países da EFTA e do Mercado Comum.” Quanto à
Portugal, segundo o autor, “desejaria facilidades para a entrada de seus produtos no Brasil,
bem como o apoio deste país para a sua política africana [...]”.
74
Proibido no Brasil em inúmeras situações, o cantor e comediante brasileiro Juca
Chaves
75
teve seu trabalho vetado integralmente também pela Censura portuguesa. A
Phonogram, em abril de 1973, enviou à Censura o disco “Juca Chaves ao Vivo” e fez uma
proposta no mínimo curiosa:
[...] agradecendo que nos comuniquem se, à semelhança do que foi feito no
Brasil, o poderemos comercializar com as restricções que se podem ler na
capa: ‘Proibida a divulgação pública, Rádio difusão e execução em lojas
deste disco, assim como a venda a menores de 21 anos’. Caso haja algumas
passagens, que, mesmo assim, necessitem ser eliminados pedimos que as
indiquem pois temos possibilidade de as cortar ou as substituir na fita
original.
Esta passagem denota a relação dúbia às vezes observada entre as gravadoras e a
Censura. Como não poderia deixar de ser, antes de divulgar o que talvez não agradasse aos
censores, as gravadoras não deixavam de ser empreendimentos comerciais e, como tais,
buscavam se resguardar de possíveis investimentos perdidos com a recolha dos discos. O que
diferencia este caso é o fato do representante da Phonogram antever o julgamento, talvez pelo
fato de apresentar como objeto a ser aprovado um disco que trazia impressa as condições
impostas pela Censura brasileira. A resposta do chefe da Repartição da Informação Áudio-
Visual, Manuel Nunes Barata, se adequou satisfatoriamente à comicidade presente no caso e
74
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 160, Pasta Actividades Econômicas, prova nº 43, de 25 jan. 1974.
75
O disco Ninguém segura este nariz, de Juca Chaves, lançado no Brasil em 1974, traz em sua capa dois sinais
claros das ações da ditadura, primeiro, a chancela: “impróprio para menores de 18 anos”, em segundo, suas
palavras no verso da capa: Ninguém Segura este nariz é uma ntese de Tomar Caju, que ficou 3 anos e
meio em cartaz, record de público no Brasil. Este sucesso incomum me proporcionou muitas alegrias. Amém!
Duas prisões, sendo uma de ventre
”. (grifos meus). Na mesma capa, temos uma caricatura de Juca com um nariz
em forma de nádegas e no verso uma chave com sua caricatura na extremidade, ambos desenhos de Juarez
Machado. Estas imagens revelam as brechas e as contradições das ações censórias. No disco O Pequeno Notável,
de 1979, a mesma chancela da Censura novamente faria parte do trabalho de Juca Chaves.
74
no próprio disco: “O disco que é apresentado, contém textos de anedotas, a maior parte
obscenas e um pouco de música cantada com letras do mesmo jaez”. Com base no próprio
argumento da Phonogram, conclui o censor: “No Brazil [sic!] a sua divulgação pública foi
proibida assim como a menores de 21 anos. As passagens que deveriam ser cortadas são em
maior extenção [sic!] que aquelas que seriam de admitir. Julgamos, pois, que o disco em
causa não deve ser comercializado”
76
O comediante também seria objeto de veto quando da publicação de uma entrevista
sua ao Musicalíssimo, que trazia o título: “Juca Chaves: as blagues do ‘Bobo’”. Com seu
peculiar sarcasmo, teve o seguinte trecho de sua entrevista sob veto (no caso, a parte
sublinhada):
“Eu nunca faço Carnaval” – disse – “Sou um moço do interior, de formação
íntegra e educação católica. Por isso desagrada-me o grande desregramento
que no Rio de Janeiro, onde as mulheres não têm respeito nenhum pelos
homens. O Carnaval de resto é uma grande defesa para as mulheres: ao
menos podem sempre justificar-se com ele [...] Quanto mais opressão existe
[...]”.
77
Os regimes ditatoriais também não são simpáticos à crítica velada e ao humor
78
.
Afinal, esta forma de julgamento estabelece também uma relação entre seu autor e aquele que
a ouve ou a lê, na medida em que a interpretação da ironia é também parte desta estratégia.
Estas críticas e as piadas do músico em Portugal duraram até que, segundo o historiador
brasileiro Alcir Lenharo, “Juca Chaves, muito à vontade em sua verve crítica, resolvera fazer
76
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 195, Musicalíssimo, nº. 19, prova nº. 15, 07 mar. 1973.
77
Idem, cx. 462, documento nº. 101/SCR/ RIAV/ DGI, de 07 mai. 1973.
78
o conhecido caso de uma ação das Brigadas Revolucionárias, em julho de 1972, que espalharam porcos
vestidos de almirante numa referência à farsa eleitoral que levou novamente o Almirante Américo Tomás à
Presidência do país. Junto com os porcos, foram distribuídos panfletos. Tal fato foi imeditamente proibido pela
Censura de ser divulgado nos jornais. Outras versões afirmam que os porcos também estavam besuntados de
óleo para tornar sua captura ainda mais característica do pastiche.
75
uma piada sobre Salazar e fora expulso do país em vinte e quatro horas, tempos atrás” (1995,
p. 255).
Em maio de 1975 é vetado o conhecido poema do brasileiro Manuel Bandeira, Vou-me
embora pra Pasárgada, que, no pedido de liberação da gravadora, recebeu o título de Poesia
e Prosa de Manuel Bandeira - Saudades do Rio Antigo. Esta letra foi enviada com outras 28
canções, sendo que sete delas deveriam ser alteradas para a sua posterior aprovação e outras
dez foram vetadas integralmente. A poesia de Bandeira se aplicava a contento ao sentimento
que décadas tomava conta de amplas camadas da população, como se nos seguintes
trechos: “[...] Vou-me embora para Pasárgada/ lá o rei não será deposto/ e lá sou amigo do rei/
aqui eu não sou feliz [...] Hoje ninguém está contente/ Hoje, meu Deus, todo mundo/ trás
[sic!] na boca a cinza amarga/ da frustração... minha gente [...]”.
79
Apesar das justificativas similares, havia uma diferença da censura à canção em
relação à que era exercida contra a imprensa. Afinal, estas duas produções eram examinadas
por censores diferentes, em relação à segunda, os censores eram militares, geralmente
aposentados. Portanto, os jornalistas eram submetidos às ordens de algum coronel, major,
capitão ou tenente. Quanto à censura aos espetáculos e à radiodifusão, principalmente após a
instauração da Comissão de Exame e Classificação de Espetáculos, em 1957, os serviços
passaram a ser realizados: “[...] fundamentalmente por intelectuais, por gente ligada ao
cinema e ao teatro, por advogados, professores ou quadros do funcionalismo público,
comprometidos politicamente com o regime” (AZEVEDO, 1999, p.73).
Há que se enfatizar que as agências de notícias também estavam sujeitas à censura. No
caso português, a France Presse, Reuter e ANI estavam sob o controle da Censura em Lisboa,
sendo obrigadas a enviar suas notícias por telex, o mesmo meio por onde recebiam as relações
dos cortes (PRÍNCIPE, 1979, p.75). Por telefone, estes militares informavam o que tinha sido
79
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 457, documento nº. 31/SCR/ RIAV/ DGI, de 19 abr. 1973.
76
ou não vetado (parcial ou integralmente). A Censura estava dividida em Comissões de
Censura de Lisboa, Porto e Coimbra, e nas demais cidades estava abrangida por Delegações.
Tudo que fosse visto como indicativo de negatividade para o regime, era passível de
veto: crimes, suicídios, greves e atuação de sindicatos, benesses das multinacionais, denúncias
de corrupção, mortes por enchentes e por fome, guerra colonial, queda de avião, mendicância,
a doença de Salazar, o nome e as ações de opositores políticos, entre outros temas. Neste
index também estavam relacionados os nomes dos cantores de oposição que, na maioria das
vezes, não podiam sequer ser citados. No arquivo da Censura são dezenas de matérias em que
os nomes de José Mário Branco, Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso,
Francisco Fanhais
80
, estão riscados pela caneta implacável dos censores. Estes e outros vetos
nos textos, por sua vez, retiravam a inteligibilidade dos textos e, como diria o jornalista
português Mário Castrim: “Os cortes eram tais que alguns amigos chegaram, pelo que liam, a
julgarem-me lelé da cuca” (p.08).
Para o jornalista César Príncipe (1979), após analisar as ordens da Censura
transmitidas ao Jornal de Notícias, entre 05 de janeiro de 1967 e 24 de abril de 1974, esta
sistemática também gerou seus frutos no período democrático, numa reflexão que pode ser
estendida ao caso brasileiro:
Não espanta que, depois do 25 de abril, certas camadas populares e
pequeno-burguesas teçam pessimismos em relação à liberdade. Antes não
caiam aviões, não eclodiam greves, ninguém se envenenava, não se roubava
como agora, não se estupravam crianças, não se assistia a esta “pouca
vergonha” de se conhecer o que se sucede. Os que antes ocultavam as
verdades, hoje utilizam a mentira para elogios à tranqüilidade que
“comunicavam” ao país (p. 23).
80
Por exemplo, como aparece nas ordens transmitidas por telefone: “24/11/70 Disco Década de 60, de Luís
Filipe Costa – SUSPENDER anúncio ou qualquer referência – coronel Garcia da Silva”, ou ainda a proibição em
relação ao entrevistado desta pesquisa, o ex-padre Francisco Fanhais: “26/4/70 Queima das Fitas do Porto.
Espectáculo no teatro Bandeira com baladas CORTAR o nome do abade Fanhais. Mas, para não se notar o
CORTE, é melhor CORTAR os nomes de todos intervenientes. Coronel Saraiva” (PRÍNCIPE, 1979, p. 59 e 51,
respectivamente).
77
Há que se enfatizar que a censura não é unicamente um jogo de opostos que contrapõe
ideologias políticas, dogmas, códigos de ética e de moral distintos. Há também em sua
essência uma perspectiva de preservação do status quo, uma política deliberada de calar uma
outra proposta de sociedade que venha a alterar as estruturas de poder. Para Antonio Cândido,
a censura é uma “violência social”, pois possui a perspectiva de que: “A idéia, a palavra, a
imagem podem ser instrumentos perigosos aos olhos dos que desejam apenas escamotear,
operando conscientemente no plano da ideologia para abafar a verdade”. Portanto, esta
censura é utilizada: “como arma para formar com outras o arsenal de manutenção da
desigualdade – econômica, política e social” (CÂNDIDO, 1993, p. 205).
Entretanto, a censura que atingiu as notícias e as canções não se restringiu aos textos
mais politizados que viessem a contribuir na denúncia desta sociedade desigual. A exemplo
do que aponta o pesquisador brasileiro Paulo César Araújo, em seu livro Eu não sou cachorro
não (2002), em relação ao veto aos “cafonas” no Brasil, também em Portugal a Censura não
teve apenas como alvo os músicos e os textos mais engajados politicamente. Os vetos
baseados no âmbito moral, embora também indicativos desta desigualdade, também foram
recorrentes em relação ao que pejorativamente se enquadra como “música pimba” portuguesa.
Estes temas proibidos aparecem, por exemplo, na resposta da Censura ao pedido de
aprovação das canções enviado pela Casa Rapsódia
81
. Neste parecer são examinadas sete
canções, em três delas, ao invés do “nada a opor”, é imposta a sentença “não é de divulgar”.
Por exemplo, o censor Manuel Nunes Barata vetou a letra de O Patrão e a Criada, cujo trecho
do texto a tônica do tema: “A mulher do Aguiar/ Ouviu barulho de noite/ e acordou
sobressaltada/ levantou-se sem ruído/ e foi dar com o marido/ agarrado à criada [...]”. Com o
mesmo espírito da letra anterior, Rosa do Fole também é vetada: “Lá na minha rua/ vai subir
pra lua/ mais um foguetão/ a rosa engordou/ e o povo diz/ que foi o João [...]”. Neste
81
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 461, RIAV, pacote 440, Pasta 1: Censura de Letras de Trechos Musicais Casa
Rapsódia (Discos).
78
processo aparece unicamente o parecer do censor, datado de 30 de maio de 1974, e as letras
das canções em anexo. O nome dos compositores e dos discos que seriam gravados não foram
citados.
Na mesma pasta, aparece um outro compositor atingido pelo veto. Neste caso, uma
crítica social um pouco mais ingênua também é vetada. Logo, compositores não enquadrados
no que se convencionou chamar de “músicos de contestação” (depois do 25 de abril, de
“intervenção”) também podiam ver suas canções proibidas quando expunham as mazelas
sociais presentes no país. Citamos trechos do parecer:
À Gerencia Discos Rapsódia
Em referência às seguintes letras que submetem a exame prévio cumpre-me informar que
superiormente se entendeu o seguinte:
A SAFIRA É QUEM SE AMOLA – não é de divulgar
S. PEDRO RAPIOQUEIRO – nada a opor
O POBREZINHO – não é de divulgar
[...]
Lisboa, 31 de outubro.
O Chefe da Rep. Da Inf. Áudio-Visual – Manuel Nunes Barata.
82
Os dois vetos acima atingem os dois campos mais visados: o moral e o político. Em A
Safira é quem se amola, a dubiedade do texto é percebida pelo censor, talvez em sua
altamente “subversiva” mensagem de cunho erótico: “Se o disco rola, consola/ também
alegra, a mocidade/ e a safira é quem se amola/ a rossar na cavidade [...]”. O outro veto, de O
Pobrezinho, perpassa o campo político, em particular, a mendicância tão combatida durante a
ditadura, inclusive em textos do próprio Salazar, é abordada pelo compositor: “[...] É tão
triste, mendigar/ E tanto custa a sofrer/ Sai de casa, pra pedir/ Buscando o pão pra comer
[...]”. Novamente os nomes dos compositores não aparecem no processo.
82
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 461, RIAV, pacote 440, Pasta 1: Censura de Letras de Trechos Musicais Casa
Rapsódia (Discos).
79
Num outro parecer emitido novamente pelo mesmo censor anterior, desta feita em 20
de abril de 1974
83
, a apenas cinco dias do fim da ditadura e da Censura, são aprovadas as
letras de Ai Alice, Sete e meia e Eu não sei o que fazer. Quanto à letra de A culpa é do
mexelhão, ao invés de colocar o freqüente “não é de se divulgar”, aparece a seguinte
justificativa para o veto: “Falta o mínimo de construção poética e demasiado prosaico”. Logo,
desta vez, a censura é de ordem lingüística/ literária. Aqui o censor assume sua vertente de
crítico literário, como nos pareceres encontrados no Brasil.
84
Num outro processo da
Censura portuguesa encontra-se registrado um desabafo do censor em torno desta questão:
Todos estes poemas (poemas isto?!) são de uma mediocridade que, muito
embora, não subvertam no ponto de vista político, subvertem a cultura e a
língua Portuguesa, o que é ainda pior. Na realidade, a quem servirá qualquer
música que tenha por letras tais poemas?! Talvez que no espírito com que se
redigiram as instruções que oportunamente se dirigiram às editoras de
discos, se encontrem razões para não se aprovarem as letras em causa.
85
Para desespero do mesmo censor, seus “pedidos” não são cumpridos e no mês
seguinte ele redige um novo parecer em resposta a Discos Rapsódia, desta vez em relação a
sete canções (cujas letras não estão anexas ao processo consultado). Destas, três foram
vetadas, enquanto duas receberam o julgamento: “pelas mesmas razões referidas julgo não
divulgar”, a terceira letra foi objeto de uma reflexão um pouco mais atenciosa: “Em relação à
letra denominada A Seringa do da Pinga, esta é de tal modo abastarda, revelando uma
subcultura que julgamos prejudicial divulgá-la de qualquer modo, mesmo através da música
popular”.
86
83
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 461, RIAV, pacote 440, Pasta 1: Censura de Letras de Trechos Musicais Casa
Rapsódia (Discos).
84
Esta questão será melhor dirimida no capítulo sobre a Censura brasileira, em particular na análise do veto às
canções de Adoniran Barbosa, numa reflexão sobre as relações entre o linguajar popular e os preconceitos de
classe.
85
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 461, nº. 1/ RIAV/ DGI, 03 jan. 1974.
86
Idem, 10 fev. 1973.
80
que se enfatizar que Manuel Nunes Barata, como chefe da Repartição da
Informação Áudio-Visual, era a última instância no interior dos serviços de Censura em
relação à música. Logo, praticamente todos os processos existentes no período em que
funcionou o “exame prévio”, ou seja, entre os anos de 1972 e 1974, levavam sua palavra final.
Como se trata de um arquivo ainda em processo de organização e de liberação à consulta
pública, talvez surjam futuramente documentos que precisem melhor o número de censores
em cada instância censória e a peculiaridade de suas funções. De qualquer maneira, no Brasil,
esta decisão final, quando recorrida em última instância, também cabia ao chefe da repartição,
no caso o Diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas, após as letras e os registros
sonoros terem sido visados por até quatro censores que, diferente do caso português, têm seus
nomes divulgados nos processos.
Por outro lado, as opiniões emitidas nos pareceres encontram respaldo jurídico nas
proibições enviadas aos diferentes campos de produção artística, como as gravadoras, as
empresas de cinema, os grupos teatrais, os programas radiofônicos e televisivos. Nesta
documentação estão as premissas a que os artistas, produtores e empresários deveriam se ater
quando da produção e difusão de seus produtos culturais. Nesse sentido, no Centro de
Documentação 25 de Abril, em Coimbra, um dossiê sobre a Censura, onde aparecem duas
“instruções”.
A primeira, datada de 05 de fevereiro de 1971
87
, traz o título “Instruções sobre
Censura de Publicações Gráficas” e em suas dezoito páginas traz um arrazoado sobre os
temas proibidos, bem como a legislação (Decretos, Código Penal e Código Civil) que ampara
tais preceitos. Voltado à censura em relação à imprensa, esta coletânea de leis segue o mesmo
princípio de uma cartilha similar feita pelos censores no Brasil. Uma segunda circular
intitulada “Censura teatral e cinematográfica”, apesar de não citar a legislação em que se
87
Centro de Documentação 25 de Abril, Pasta Censura, documento assinado pelo Diretor-Geral da Informação,
em 21 dez. 1970, em Lisboa, muito embora o texto tenha sido emitido em 05 fev. 1971.
81
baseia, enumera nove princípios a serem respeitados e quatorze conjuntos de temas, títulos,
textos, cenas e alusões proibidas nos filmes e peças teatrais.
88
A censura à imprensa e à literatura foi muito mais freqüente que a relacionada à
música, o que se traduziu numa significativa bibliografia que se ocupou do tema. Com a
queda da ditadura em 1974, os jornalistas e escritores realizaram imediatamente um balanço
relacionado ao quase meio século de censura literária e da imprensa existente no país. A
princípio, é habitualmente aventado que o prejuízo à cultura portuguesa não se restringiu aos
escritores e à livre circulação da informação. Uma crítica recorrente refere-se ao prejuízo
relacionado a toda sociedade portuguesa ante o obscurantismo trazido pelos anos autoritários.
Aqui cabe enfatizar que o termo “totalitário”, talvez até almejado pelo poder ditatorial nas
décadas de 1930 e de 1940, não obteve êxito.
Portanto, para os dois casos nacionais, adotamos a acepção de regimes autoritários: a
“[...] oposição política é suprimida ou obstruída. O pluralismo partidário é proibido ou
reduzido a um simulacro sem incidência real. A autonomia dos outros grupos politicamente
relevantes é destruída ou tolerada enquanto não perturba a posição do poder do chefe ou da
elite dominante” (BOBBIO, 1992, p.100). Outra diferenciação dos dois regimes, quando
comparados durante a vigência do Estado Novo (nome comum aos dois países), nas décadas
de 1930 e 1940, refere-se a uma maior predominância de um “modelo corporativo-autoritário”
do Estado português, em que: “[...] a criação da organização corporativa obedeceu,
simultaneamente, à idéia de resgate da tradição medieval perdida com o advento do
liberalismo e à projeção do dever do Estado em servir como mediador dos conflitos entre
capital e trabalho presentes no mundo contemporâneo” (MARTINHO, 2002, p. 24).
Por outro lado, a resistência de setores da sociedade, as especificidades históricas
nacionais e a própria natureza do poder instituído inviabilizaram a constituição de um regime
88
Centro de Documentação 25 de Abril, Pasta Censura, documento sem data ou referência de origem.
82
totalitário em Portugal, como o observado na Alemanha nazista e na Itália fascista
89
, muito
embora guardassem similaridades com estes processos. Como reitera o historiador português
António Costa Pinto (2000, p.38):
[...] o Salazarismo enviou missões de estudo a Itália e adquiriu modelos,
que alterou e adaptou. Os estatutos do corporativismo, a Propaganda, a
organização oficial da juventude e de mulheres, o exemplos de
instituições criadas com base no modelo fascista, e significaram a adopção
de certos requisitos da política de massas, por parte de regimes
essencialmente reaccionários.
Um controle de cunho totalitário também não foi observado nos arquivos da Censura
portuguesa, que revelam também as brechas existentes nos mecanismos censórios, seja nas
letras de cunho mais engajado, aprovadas sem nenhuma ressalva, até os casos mais
específicos, como as programações radiofônicas aprovadas pela Censura e os discos de
opositores políticos comprados por um dos órgãos públicos naquele período. Por exemplo, na
pasta “Inst. de Meios Áudio-Visuais de Educ. IMAVE”, encontrada na Torre do Tombo,
estão elencadas as aquisições de discos deste órgão (ligado ao Ministério da Educação
Nacional). Num dos documentos desta pasta, datado de agosto de 1970, com o título “Discos
Portugueses”, são listados os discos adquiridos pelo órgão com os títulos e seus respectivos
valores. Entre eles: “DECCA PEP 1262 José Carlos Ary dos Santos 60$00 [...] Columbia
SPMX 5008 ‘Concerto 2’, de Fernando Lopes-Graça (piano e orquestra) 180$00 [...]
90
.
89
As tentativas de aproximação, por exemplo, com o fascismo italiano podem ser observadas até mesmo na
origem da polícia política portuguesa. O documento encontrado no Arquivo Salazar, de abril de 1940, traz um
relatório de uma missão da polícia italiana realizada em Portugal: Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do
Tombo, Arq. Salazar, AOS/ DI-4. Ver esta referência em: Guia da Exposição O Arquivo da PIDE/ DGS na
Torre do Tombo. Lisboa: Ministério da Cultura/ Torre do Tombo, 1997.
90
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 471, pasta . 5, ago. 1974. Nesta mesma caixa encontra-se a Programação da
Rádio Escolar, do período de outubro de 1960 a junho de 1970. Entre as disciplinas oferecidas, constavam:
História, Música, Educação Moral, Canto Coral, Conto Infantil, Língua Materna, Moral e Religião, Segurança no
Trânsito, Recitação, Educação Cívica, Educação Física, Educação Musical, Higiene, Geografia, Língua
Portuguesa, Audição Musical, Trabalhos Manuais e Coisas e Casos. Contudo, tal política educacional não
resolveu o analfabetismo que em 1970 atingia o índice de 33,7 % da população (dados do Instituto Nacional de
Estatísticas de Portugal). Esta programação radiofônica é passível de comparação com dois projetos
83
Constam ainda nesta lista discos de outros poetas de oposição à ditadura: Alexandre O’Neill,
Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Sophia de Mello Breyner Andresen, Augustina
Bessa-Luís e José Régio. Portanto, músicos e poetas fichados na PIDE tiveram suas obras
adquiridas por outros setores do próprio regime. Disto, pode-se inferir duas explicações, ou tal
estratégia visava justamente demonstrar uma suposta imparcialidade da ditadura ou revelava
uma resistência de escalões mais baixos do próprio governo que se aproveitaram das brechas
deste controle social.
Como as rádios também tinham seus programas submetidos à censura prévia, também
podem ser encontrados no mesmo arquivo alguns dos roteiros enviados para aprovação
censória. Num documento de dezembro de 1969 é enviada pela Rádio Graça à “Secretaria de
Estado da Informação e Turismo nas Estações Centralizadas” a proposta do programa Música
e Poesia, com locução e texto de Manuela Machado. Apesar de trazer uma homenagem a um
dos maiores inimigos da ditadura de então, o poeta e ex-combatente Manuel Alegre, de
acordo com este documento, tal programa não teria sido vetado. Poemas como Do poeta ao
seu povo, Praça da canção e Canção segunda, entre outros, fizeram parte do roteiro. Na
abertura uma apresentação introdutória: “Manuel Alegre, é um poeta do Tempo Novo’, que
embora longe, ‘Canta de pé no meio do país amado’, canta ao seu povo na ‘Praça da canção’ e
‘planta a canção em Portugal’”. Nesta passagem a autora se remete ao exílio e as canções que
traziam sua produção poética.
Entre cada poema constava uma música, muito embora não houvesse a referência aos
seus títulos. Por fim, um texto ainda mais passível de censura naquele período: “Canta de
no meio do país amado, dá ao povo o seu poema, a sua canção em Portugal, e toca os sinos no
coração dos homens...” Na seqüência, Manuela enfatiza a condição de exilado de seu
homenageado Manuel Alegre: “Não realmente distância, nem exílio, nem silêncio a que
implementados durante a ditadura brasileira: o MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, criado
através da Lei número 5.379, de 15 de dezembro de 1967, que durou ao início da cada de 1980 e o Projeto
Minerva, criado em 1970, que oferecia uma emissão radiofônica “educativa” e “cultural”.
84
seja possível reduzir um verdadeiro poeta como este com que preenchemos mais um número
de Poesia e Música: programa assinado por Manuela Machado e com a autora ao
microfone”.
91
A programação das rádios voltada à Holanda e à Escandinávia também foi objeto de
análise da Censura em relação aos roteiros e às listas das canções que seriam executadas.
Desta maneira, veiculavam algumas das canções evitadas pelas dios no país em razão da
Censura e, provavelmente, por censuras internas de algumas rádios. Uma pequena parte das
canções escolhidas vinha justamente dos músicos vinculados à oposição ao regime. Numa
consulta aos roteiros enviados à Censura entre outubro e dezembro de 1973
92
, são encontradas
canções como Natal dos Simples (de José Afonso) em meio a textos, por exemplo, que
justificam o controle português das colônias.
No programa de 18 de dezembro de 1973, antes da canção Romance de um dia de
estrada, é apresentado seu autor: “Uma voz jovem em Antena – 73! Músicas e palavras! Uma
composição estilo balada. Um nome, uma presença musical: Sérgio Godinho”. No dia 25 de
novembro do mesmo ano, entre outras, são propostas as canções Menina do alto da serra (por
Tonicha), Festa da Vida (por Carlos Mendes) e Poema de Mim, interpretada por Paco
Bandeira, complementada com a seguinte explicação: “A canção que acabam de ouvir foi a
representante de Portugal no recente Festival Ibero-Americano, realizado a 10 do corrente na
cidade de Belo Horizonte no Brasil”. Apesar deste controle, na seqüência deste comentário, o
roteiro traz uma breve crítica que se encaixava no caso português na África: “ao invés das
guerras, os países deveriam lutar só nas músicas de festivais”.
91
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 458, pasta nº. 1, relatório da Secretaria de Estado da Informação e Turismo nas
Estações Centralizadas, de 08 a 13 de dezembro de 1969. Há que se ressaltar que, apesar de não constar nenhum
veto, apenas é encontrado este relatório, não sendo possível confirmar se a emissão tenha sido efetivada sem
cortes ou mesmo na íntegra.
92
Idem, cx. 472, outubro a dezembro de 1973.
85
Não apenas o rádio foi objeto de atenção da Censura, também a televisão
93
foi logo
percebida como um meio passível de uma atenção ainda mais redobrada. Tal fato se explica
pela quantidade de programas informativos e de variedades, além da programação relacionada
à música. Numa resposta ao Diretor dos Serviços de Informação SNI, Ramiro Valadão, a
Divisão de Relações Exteriores da Radiotelevisão Portuguesa RTP, informou para fins de
publicação do SNI um levantamento sobre a programação da televisão. Nesta pesquisa
relacionada ao mês de janeiro de 1964, os “programas dramáticos” (teatro e filmes)
alcançaram 39 horas e 19,33% da programação; seguidos pelos programas de informação, que
ocuparam 33 horas e 15,9 % da grade. No tocante à programação musical, os de “música
ligeira” (vide comercial ou não erudita) corresponderam a 16,5 horas e a 7,82 % da
programação mensal; os musicais eruditos computaram apenas 2,4 horas e 1,27 % do
total.
94
Outro indicativo destas brechas existentes no controle censório vem de um parecer em
relação a letras de canções enviadas à Censura. Por exemplo, a Mundusom, em 1973, enviou
seis letras para o órgão, sendo todas aprovadas com a chancela “Nada a opor”. Assim, foram
liberados textos de João Gentil Marques (Canto Acordado, Os Dias Iguais e Para Quem
Quiser Ganhar), Fernando Pessoa (Soneto) e de Ary dos Santos, cuja letra de A Última
Canção, foi aprovada apesar de sua crítica, como no trecho: “como alguém que/ por cantar,
resiste”.
95
Esta mesma idéia de estabelecer uma relação entre a canção e a resistência à
93
Em 1981, Luís Cília lança seu disco Marginal (Diapasão, 1981, nº. 18002, LP) e nele está a canção Tango
Poluído, uma das primeiras canções a abordar a questão ecológica, além de estabelecer uma relação com outra
poluição, desta vez advinda da TV de início da década de 1980: “Há quem diga por mal/ da nossa Televisão/ mas
dela não me passo/ pr’á minha cultivação/ vinte e cinco horas por dia/ de cultura e informação/ poluindo a
consciência / tudo a Bem da Nação”.
94
Esta tese não se ocupou do controle da censura televisiva em razão das dificuldades e da quantidade do
material produzido pela RTP, por vezes, de difícil acesso à consulta.
95
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 462, pasta nº. 2: Censura de Letras de Trechos Musicais das Casas Mundossom,
Musicorde, Phonogram e Valentim de Carvalho, datado de 09 nov. 1973. Nesta pasta são encontradas letras
aprovadas de outros músicos, como no parecer, datado de 27 jun. 1973, que aprovou a letra O Repouso do
Guerreiro, do hoje conhecido músico Jorge Palma. Apesar de não ser citado nas obras portuguesas sobre a
música popular portuguesa deste período: “Foi também em 1973 que, convocado para cumprir o serviço militar,
partiu para o asilo político na Dinamarca, juntamente com a sua primeira mulher (Gisela Branco), que o levou a
lavar elevadores e a fazer camas num Sheraton, em Copenhaga, onde através da BBC, veio a saber do que se
86
ditadura igualmente esteve presente nos embates entre os artistas e a Censura brasileira, como
ver-se-á na próxima seção.
passara no dia 25 de Abril de 1974, em Portugal, o que o levou a regressar de imediato ao nosso país, com breve
passagem por Itália”. Por Rui Malheiro, em texto de 2002. Disponível em:
<http://www.jorgepalma.web.pt/biografia.htm>. Acesso em: 08 jan. 2006.
87
1.2 A CENSURA BRASILEIRA: VOCÊ CORTA UM VERSO, EU ESCREVO OUTRO
Além das similaridades entre as justificativas legais presentes nos dois países em
relação à censura e à canção, até mesmo o formato dos pareceres é semelhante. No Brasil,
contudo, havia um modelo mais técnico deste parecer. Havia, além de dados sobre a
gravadora, a canção e o compositor, também um item curioso intitulado “linguagem”. Para se
ter uma idéia desta “censura literária” realizada pelo censor, após a consulta aos pareceres
existentes no Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas de Brasília, chega-se aos
seguintes “tipos de linguagem” identificados pelos censores brasileiros nas letras das canções:
protesto, romanesca, romântica, truncada, saudosista, poética, normal, própria do gênero
baião, rica, tendenciosa, sentido dúbio, enaltecedora, acessível, estilo popular, poética sem
muito apuro, descolorida, pobre, regionalista, de teor político, comum-maliciosa, irreverente,
obscena, comum amorosa e épica, simples e doutrinária, de fundo religioso, pitoresca,
subliminar, popular com dosagem de sublimação, caipira, indireta, simplória, errônea,
perniciosa, grosseira, vulgar, mensagem negativa, entretenimento, positiva, com fundo
educativo e, finalmente, indeterminada.
Como se por estes termos, a base legal era consubstanciada por uma tarefa de
“elucidação” do texto incorporada pelo censor. Neste contexto, uma das etapas dos testes de
seleção para o cargo de censor federal no Brasil, era a de um longo questionário que alternava
questões simplistas com outras mais ideológicas: “Você tem medo de aranha? Acha que as
leis antes de serem cumpridas devem ser questionadas? Acha que as relações sociais devem
partir das universidades?
96
. Dezenas de questões eram feitas invertendo a oração e o
96
Estas questões estão presentes numa pasta encontrada no DOPS/PR intitulada Censura. Nela constam vários
recortes de jornais, entre eles um que elencava as questões citadas e afirmava: “De 1975 a 1977, dos 25 mil 700
candidatos ao ingresso no DPF [Departamento de Polícia Federal], 1 mil 586 foram aprovados. Desses, 57 como
técnicos de censura que tiveram testada, através de exames psicotécnicos, sua personalidade policial [...]”.
Destes 57, 29 foram demitidos após o teste de: “20 perguntas básicas, repetidas 180 vezes de forma diversa”.
88
sentido, provocando certa confusão nos candidatos.
Assim, alguns dos antigos censores tinham formação secundária enquanto estes novos
concursados
97
eram de nível superior. O fato é que tais níveis diferenciados podiam traduzir-
se em leituras eqüidistantes de uma mesma canção por diferentes censores. Na década de
1960, ingressaram nos Serviços de Censura brasileiros, por transferência interna da
administração federal, muitos censores sem formação superior, o que se traduziu em alguns
pareceres em que aparecem erros gramaticais e interpretações um tanto confusas,
contribuindo também para a imagem do censor
98
incapaz. Contudo, também uma
perspectiva deliberada de divulgar esta imagem justamente para ampliar os argumentos pelo
fim da Censura. Kushnir (2004) argumenta que os censores foram atentos observadores da
legislação e que o havia uma legislação subjetiva. A comparação entre esta legislação e os
pareceres em relação às canções, aponta que a generalidade dos artigos dava margem também
a uma interpretação subjetiva, afinal, diferente do texto informativo, guardavam sua
particularidade de textos literários, portanto, passíveis de uma polissemia.
Para entender de diferentes manifestações artísticas, os censores passaram a freqüentar
cursos de capacitação, quando a partir de 1966: “o coronel Oswaldo Ferraro de Carvalho
ministrou técnica de censura; o censor Coriolano Fagundes, direito aplicado; e a atriz Sylvia
Orthof, teatro”. A “qualidade total” implantada pelo chefe da DCDP, Romero Lago
99
, teve sua
continuidade e em 1976 “a professora de técnica e censura de teatro foi Maria Clara Machado
Fonte: Folha de Londrina, de 23 jun. 78, p. 21.
97
Segundo Kushnir (2004), a partir da portaria 11-B/70, foi possível contratar censores sem concurso público, o
que foi feito, como atesta a autora ao entrevistar uma das apadrinhadas (p. 123).
98
Apesar da imagem de censor ser atribuída a homens, as mulheres eram maioria quando da fase final da DCDP:
“Há mais mulheres do que homens em 12 das 43 carreiras da burocracia. Para felicidade geral, depois de ser
extinta a censura, agora está extinta também a carreira de censor. Dos 87 funcionários da tesoura, 57 eram
mulheres.” (GASPARI, Élio. 12/Abr/98. CD-ROM Folha 99/ Edição Multimídia, 1999).
99
Mais tarde, este censor foi envolvido num grande escândalo, chegara à direção da Censura brasileira com um
nome falso, pois na verdade chamava-se Hermelindo Ramirez Godoy e tinha fugido de uma prisão gaúcha onde
cumpria pena como mandante de um assassinato.
89
e, no ano seguinte, professores da Universidade de Brasília ministraram também disciplinas
para os censores” (KUSHNIR, 2004, p. 177).
100
Com a alteração das exigências do cargo de censor, os policiais, que desde o Estado
Novo eram maioria nos serviços de Censura, foram substituídos por concursados e por
apadrinhados portadores de diploma de curso superior. Entre alguns destes novos censores,
que surgem em cena já no início da década de 1970, vão figurar até mesmo profissionais com
nível de pós-graduação. Em 1980, assumiu a direção geral da DCDP a historiadora Solange
Hernandez, formada pela USP, e que atuava na Censura paulista, chegando a cursar uma
pós-graduação em História na mesma Universidade
101
e levando a DCDP a um novo
endurecimento.
No mesmo arquivo é possível encontrar também “denúncias” de ouvintes contra
músicas passíveis de censura. Logo, o Estado encontrava respaldo também na sociedade, por
mais que o grau de apoio da mesma não seja possível quantificar por meio desta
documentação. Por exemplo, numa das cartas de 1974
102
endereçadas à Censura, sua autora
critica o que ela chama de “tóxico dos nervos” e “cancro social”, exigindo do Diretor de
Censura a recolha de discos que tivessem tais características “subversivas”.
A partir do final da década de 1960, as “ideologias exóticas” também podiam
“contaminar” o país por meio da canção em espanhol e, por isso, a Censura passou a se
preocupar também com estas canções. Afinal, agora não eram apenas os boleros ou tangos
que povoavam o universo musical brasileiro. Uma outra vertente da canção em espanhol
100
Contudo, a relação entre setores universitários e os serviços de censura não se resumiram aos “cursinhos”.
Eles igualmente se matriculavam em outros cursos de forma independente. Os censores também tiveram outras
passagens pelas universidades enquanto alunos regulares, como a técnica de censura Sheila Maria Feres e sua
tese de doutorado defendida em 1980, em Sociologia pela USP, intitulada: “A censura, o censurável, o
censurado” (KUSHNIR, 2004, p. 187). Kushnir (2004), ao consultar o Jornal do Brasil de 27 jun. 1977,
encontrou também uma reportagem sobre o curso preparatório das Faculdades Integradas Estácio de Sá, que
visava preparar candidatos para o concurso de censor federal naquele mesmo ano.
101
Apesar de seu trabalho na Censura, sua turma na USP desconhecia esta faceta da colega, entre as que
cursaram a pós-graduação junto com a que, mais tarde, ficou conhecida por Solange Tesourinha” foi a própria
orientadora desta tese.
102
Correspondências da sociedade civil, Fundo DCDP/ Brasília, de 24 mai. 1974.
90
remetia aos debates sobre a integração cultural (e política) de setores da esquerda do Cone
Sul. Assim, a Censura brasileira iniciou uma nova fase em relação ao cancioneiro latino-
americano de língua espanhola, com uma preocupação em relação à divulgação de canções
que expusessem a possibilidade de uma luta e de uma cultura latino-americana integradas.
Até mesmo o insuspeitável cantor Roberto Carlos teve um disco censurado
simplesmente por ter vertido suas canções para o espanhol. Apesar de ter produzido um
cancioneiro que serviu de fundo harmônico para o período da ditadura militar brasileira, o
disco foi vetado. Na visão da ditadura brasileira seria perigosa a vulgarização da ngua de
nuestros hermanos, pois isto poderia contribuir no ideal da Canción por la unidad
latinoamericana, que cantava Pablo Milanés ou o Soy loco por ti América, de José Carlos
Capinam e Gilberto Gil, canção de 1967. Tal revelação apareceu pela primeira vez, após o fim
da ditadura, no encarte deste mesmo disco em CD, Roberto Carlos canta a la juventud, pela
Sony Music, de 1998.
A preocupação com este cancioneiro também tomou conta dos países vizinhos ao
Brasil. Como bem caracteriza as palavras do tenente argentino General Roberto Viola, ao
lembrar do papel desempenhado pelas artes de cunho contestatório:
El teatro, el cine y la música se constituyeron en un arma temible del
agresor subversivo. Las canciones de protesta, por ejemplo, jugaban un
papel relevante en la formación del clima de subversión que se gestaba:
ellas denunciaban situaciones de injusticia social, algunas reales, otras
inventadas o deformadas.
103
Como se vê, esta rede de compositores era alvo freqüente das ditaduras. No arquivo da
DCDP, de Brasília, um dos informes
104
do Ministério da Justiça alertava sobre a existência de
uma organização de esquerda, sediada em Cuba, que visava promover a “canção de protesto”,
103
Diario "La Prensa", Buenos Aires, 26 de diciembre de 1979. In: Una Nación de Subversivos. Disponível em:
<http://www.nuncamas.org/investig/almiron/cposto/cposto17.htm>. Acesso em: 16 jul. 2005.
104
O “informe” é a matéria-prima da “informação”, que, por sua vez, é a razão última dos serviços de
informação, ou seja, o resultado do processo. Cf: REZNIK, Luis (et. alli.). A Reconstituição do Acervo. DOPS:
A lógica da desconfiança. 2 ed. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1996, p. 27.
91
por meio de palavras como: “sangue, luta, flor, pão, guerra, perseguição, negros, Vietnam,
etc., [que] são as preferidas para esse tipo de canção e o conteúdo é fundamental”. Ainda de
acordo com este informe da DCDP, estes músicos aproveitar-se-iam da “facilidade de
compreensão pelas massas não alfabetizadas e carentes de contato freqüente com outras
manifestações culturais”.
105
Na verdade, este documento da DCDP se refere a uma “denúncia” feita pela revista
argentina Esquiu
106
, num artigo intitulado La ‘Canción-Protesta’, instrumento subversivo’?”.
Este texto é eivado de críticas a este gênero de canção e qualifica-o como elemento de uma
“guerra ideológica”, em que “no pasaría de un mero hecho de mal gusto y de una originalidad
traída de los cabellos”. Esta matéria foi escrita com base no primeiro número da revista
“Canción Protesta” feito pela Casa de las Américas de Cuba, quando da realização do
Primeiro Encontro da Canção de Protesto, em agosto de 1967. Este evento foi um marco
mundial no campo da canção de contestação política e social e teve como símbolo uma
imagem que rodou o mundo: uma rosa com dois espinhos em que um deles pingava uma gota
de sangue. Este desenho foi feito pelo artista cubano Alfredo Rostgaard e, segundo cartazes
do Encontro, simbolizou a “rosa transformada en símbolo universal que integra la belleza y la
cultura, así como expresa la disposición del hombre a defender lo justo y lo bello”
107
Além do Encontro foi também criado o Centro de la Canción Protesta que durou
apenas dois anos e que, de certa maneira, deu origem ao Grupo de Experimentación Sonora
do ICAIC Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematográficos, por sua vez, criado em
1959. Segundo a pesquisadora brasileira Mariana Villaça:
105
Pasta Informações Sigilosas, intitulado: A canção de protesto – instrumento subversivo, de 27 abr. 1973.
106
Segundo a cópia da matéria anexa ao documento confidencial: Esquiu. Nº. 548, Buenos Aires, 25 out. 1970.
107
Disponível em: <http://laventana.casa.cult.cu/modules.php?name=News&file=article&sid=2306>. Acesso em
15 jul. 2005.
92
O Centro tinha a função de promover e aglutinar em Cuba as composições
que se inseriam no padrão da chamada Nova Canção Latino-americana,
expressão que se estabelecera como um importante fenômeno de
aproximação política e cultural entre Cuba e os países da América do Sul
(2000, p. 39).
De acordo com o músico português Luís Cília
108
, um dos participantes do Encontro,
nenhum brasileiro esteve presente no evento daquele ano. Ele lembrou ainda os contatos que
manteve durante todo o mês em que ficou em Cuba junto a inúmeros cantores como Daniel
Viglietti, os Irmãos Parra, Sílvio Rodrigues e Pablo Milanés, entre outros. Luís Cília recordou
também que durante esta excursão por Cuba, os músicos viajaram pelo país cantando e
debatendo questões relacionadas à música. Numa dessas viagens, o músico afirma que até
mesmo Fidel Castro esteve com eles durante longas horas, numa descontração muito peculiar
daqueles anos. Esta atuação de Cília está também descrita em sua ficha na PIDE. Nas dez
folhas de seu prontuário
109
, encontra-se um registro de prisão, de 1962, em razão de sua
participação numa greve de fome na cantina da Universidade de Lisboa. Em relação
propriamente ao Encontro em Cuba, os registros se baseiam numa matéria do jornal cubano
Granma, que informa que o músico teria “[...] sido galardeado com o primeiro prêmio da
‘canção revolucionária’”.
110
Cília foi também o autor do hino do Partido Comunista Português e um dos primeiros
a compor canções contra a Guerra Colonial na África. Além disso, durante sua estada na
França, teve uma participação ativa por meio de sua música em inúmeros atos políticos de
movimentos pela anistia, apoio a greves e grupos de solidariedade. O compositor, ao voltar de
Cuba para a França, onde vivia exilado, levou uma bobina com quatro gravações de Carlos
Puebla que foram lançadas em Paris pelo Cercle du Disque Socialiste, em 1968. Entre estas
108
Entrevista concedida ao autor em Lisboa, em 29 set. 2004.
109
Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo, PIDE/DGS, Pasta Luís Fernando Castelo Branco Cília,
proc. 1936/ E-GT.
110
Idem.
93
canções estava Hasta Siempre que rapidamente fez sucesso na Europa e tornou-se uma das
grandes canções de protesto no mundo ocidental.
No mesmo arquivo da DCDP encontra-se um documento que tem uma ligação com
este fato. No ofício n.º 310/68, o chefe da DCDP endereça um ofício ao diretor do DOPS, o
coronel Newton Braga Teixeira, externando a sua preocupação em relação ao disco “CHE”,
de Carlos Puebla, da gravadora POLIDOR que, apesar de ter sido liberado para todo o país,
ele estudaria “a viabilidade da apreensão dos discos em todo o Território Nacional e as
conseqüências jurídicas que a medida poderá acarretar”
111
, ou seja, havia também uma
apreensão em relação ao poder das empresas no tocante à liberação dos discos, ao menos até
estes dias que antecediam a decretação do AI-5.
De acordo com este documento, a “referida música, segundo apuramos, foi gravada na
França e importada para o Brasil, sendo regravada pela Companhia Brasileira de Discos do
Rio de Janeiro”. Logo, em menos de um ano, as canções de Carlos Puebla saíram de Cuba,
foram gravadas na França e no Brasil. Por fim, tais canções geraram a preocupação da censura
e da repressão brasileira expressa neste documento sob identificação de “reservado”.
A justificativa de que determinada canção era contrária à Nação foi muito utilizada
como pretexto em inúmeras ditaduras. Tal preceito estava previsto em lei e foi
freqüentemente empregado nos processos censórios dada a sua característica subjetividade.
Por exemplo, no arquivo brasileiro da DCDP de Brasília encontra-se um processo sobre a
tradução da canção Espanholzinho, música do espanhol Joan Manuel Serrat e letra do poeta
espanhol António Machado: “Há um espanhol que quer viver/ e a viver começa/ entre uma
Espanha que morre/ e outra que boceja/ Espanholzinho que vens/ ao mundo Deus te guarde/
Uma das duas Espanhas/ te gelará o coração”.
112
111
Pasta Informações Sigilosas, de 04.09.1968, Fundo DCDP, Arquivo Nacional/ Brasília.
112
Letras enviadas por Miriam Pedroso (cujo nome artístico é Miriam Mirah, na época, integrante do grupo
Tarancón) à Delegacia Regional da Censura em São Paulo, datada de 15 out. 1975.
94
O parecer nº. 315, de 21 de outubro de 1975, censura esta obra: “[...] por ser a mesma,
ofensiva aos sentimentos de um país irmão, no caso a Espanha com o qual o Brasil mantém
relações diplomáticas e de amizade.” Se a canção em espanhol era suspeita, o teor desta
canção era mais ofensivo ao que se vivia na ditadura brasileira do que propriamente a
justificativa utilizada de suposta ofensa aos países irmãos, na verdade, as “ditaduras irmãs”.
Neste mesmo processo são vetadas ainda as letras de Viajero, Canción y Camino e Hoy es
Mañana, todas de Juan Blanco
113
e Darlam Marques.
No mesmo arquivo de Brasília encontra-se um conjunto
114
de letras de canções em
espanhol também proibido. Entre elas, Chacarera de mi pago, da Família Parra, vetada por
trazer “em seu bojo conotações político-contestatórias onde os autores cantam de forma
evidente a opressão e a total falta de liberdade que diante de um simples grito é posta em
cheque [sic!]”. Outra censora, ao analisar a mesma letra, entende que a mesma deveria ser
cortada porque a expressão “que caray”, traduzida como caramba” não estaria “de acordo
com a realidade”. A duas censoras de São Paulo proibiram a gravação baseadas na legislação
vigente.
Os censores possuíam um grande arco de possibilidades de interditar qualquer obra.
Assim, com esta mesma base legal, novamente as censoras vetaram a letra Plegaria a un
labrador, de Victor Jara. Para cortar a canção, desta vez a acusação é ainda mais grave: “[...]
prega-se a revolta, a necessidade de união para a luta a fim de conseguir a liberdade, a justiça
e a igualdade [...] um hino de revolta e instigação à luta armada”. A outra censora também
reforça esta mensagem: “[...] antes de apontar soluções, subleva e subverte, pois incita a
revolta amotinada e sangrenta”.
113
De nacionalidade espanhola, foi o empresário do grupo musical Tarancón, segundo depoimento do músico
Abílio Manoel.
114
Arquivo Nacional de Brasília Fundo DCDP, nº. de registro dos pareceres: 26084, São Paulo, set. 1977. Todas
as letras estão acompanhadas de sua tradução para o português.
95
Apesar de não constar neste processo da Censura quem seriam os interessados em
gravar tais canções, é possível que seja a mesma Miriam Pedroso, do processo analisado
anteriormente, em nome do grupo brasileiro Tarancón (Miriam Mirah, Emílio, Halter e Jair),
que, ao lado do grupo Ínkari (Dércio Marques, Gomes e Doroty Marques, com a
participação de Saulo Laranjeira) e do Raíces de América, contribuíram para que, em meados
da década de 1970, um rico cancioneiro em espanhol fosse popularizado no Brasil. No
segundo disco do Tarancón, de 1977, Plegaria de un labrador foi gravada. Provavelmente o
grupo deve ter recorrido da decisão da SCDP/ SP e obteve êxito para conseguir aprová-la em
grau de recurso.
Num outro processo da censura paulista
115
, também datado de setembro de 1977, é
vetada a letra em espanhol Violeta del Tiempo (Gracias a Violeta), uma bela homenagem a
Violeta Parra feita pelo compositor brasileiro Dércio Marques
116
. A letra em espanhol traz os
carimbos de “proibido” e as censoras grifaram os trechos abaixo para compor seu veto:
[...] La voz de ternura, impulso de historia
Que canta su gloria bajo un cielo negro
El fin de la escoria del sable milicia
Que implantó injusticia y nuestra soledad
La gente humillada busca una solucción
Y bajo el escombro siembra una raíz
El hombre inhumano el sable se iran borrar
En la escritura del tiempo y del maíz
(en la historia del tiempo, del cobre y del maíz)
Y arriba en el infinito tú irás cantar
Canta violeta canta, canta, canta
Hasta que rompa el siglo de represión [...]
Em Violeta del Tiempo (Gracias a Violeta), com poucas metáforas, o autor revela um
jogo de opostos: vida e morte; riso/candura e opressão; sol do povo chileno e céu negro; luta/
violeta/ glória/mensagem ativa e sabre/ milícia/ escombros. Portanto, apesar da fase mais
115
Arquivo Nacional de Brasília Fundo DCDP, nº. de registro do parecer: 26080, São Paulo, set. 1977.
116
Este músico é um dos maiores divulgadores da canção portuguesa contemporânea, gravou composições de
Zeca Afonso (Maravilha, Maravilha e Cantiga de Embalar), Sérgio Godinho (Que Força é Essa), Fausto (Por
que não me vês) e Vitorino (Dá-me cá os Braços Teus).
96
violenta da ditadura ter ficado para trás e da repressão ter aniquilado os movimentos
guerrilheiros, a Censura manteve sua sistemática perseguição a qualquer tema político-social
que viesse de encontro ao ideário propagado pelos militares brasileiros.
Para vetar a canção de Dércio Marques
117
, a censora, com base no artigo 41 do
Decreto de 1946, letras d e g, sentenciou: é revolucionária e de protesto, podendo servir de
bandeira a propósitos contrários ao interesse nacional [...]”. A outra censora novamente
acompanha o parecer de sua colega de tesoura, completando com a ressalva: “crivada de
metáforas cuja compreensão, acreditamos, se torna difícil àqueles que não estejam
completamente a par dos acontecimentos políticos e sociais do Chile”.
Integrante deste grupo de músicos que interpretaram a canção hispano-americana no
Brasil, o músico Abílio Manoel
118
, em princípios da década de 1970, começou a trabalhar
com o repertório latino-americano, segundo o autor, “especialmente depois de ter convivido
durante seis meses com o grupo Los Folkloristas, no México”. Apesar desta passagem pela
terra de seus companheiros de música, Abílio nasceu em Lisboa. Veio para o Brasil com
apenas sete anos de idade em razão da perseguição política de que foram vítima seu avô
Eduardo Robalo (então integrante da GNR Guarda Nacional Republicana) e seu pai Abilio
117
Segundo depoimento do músico ao autor, esta canção faria parte do seu primeiro disco: Terra, Vento,
Caminho, São Paulo: Marcus Pereira, n. MPL 9370, 1977. 33 rpm, stereo.
118
Abilio Manuel Robalo Pedro, atua e atuou como músico, compositor, intérprete, radialista, publicitário,
diretor de cinema, produtor de discos e diretor de eventos artísticos. Gravou oito LPs e trinta e dois compactos.
Teve uma forte inserção junto aos festivais de música: conseguiu o 1º. Lugar no Festival da Canção
Universitária, do Chile, em 1967, com a canção Minha Rua; um novo 1º lugar, desta vez no Festival
Universitário de MPB (TV Tupi-69), com "Pena Verde"; foi também semifinalista no Festival Internacional da
Canção de 1970, 1971 - com Amiga Amada, interpretada por Abílio e Os Três Moraes (Homem de Mello, 2003,
p. 460) e de 1972 - com Nem becos, Nem Saídas, a primeira a ser apresentada na eliminatória, com a
interpretação de Abilio e Os Condors (Homem de Mello, 2003, p. 462); no MPB Shell (1984). Ainda segundo
Homem de Mello (2003, p. 467), participou da eliminatória paulista do III Festival Nacional de MPB, com
Quem dera, aliás, mesmo festival em que participou nosso entrevistado Raul Ellwanger; e no Festival MPB, de
1979, vencido por Fagner que interpretou Quem me levará sou eu, de Dominguinhos e de Manduka, músico
abordado mais detidamente nesta tese. Neste último Festival citado, de acordo com Homem de Mello (2003, p.
474), Abílio interpretou a canção Sol Vermelho (parceria com Odilon Escobar Filho) junto com o grupo musical
Terra Livre. Possui discos lançados em Portugal, Argentina, Inglaterra, França, Chile e Equador. Segundo seu
site na Internet: “Excursionou fazendo apresentações e pesquisas de folclore no México, Chile, Peru, Bolívia,
Argentina, Paraguai, Guatemala e Uruguai. Foi precursor da musica latino-americana no Brasil, desde 73,
gravando discos, produzindo e apresentando programas de rádio [América do Sol, na Bandeirantes FM e na USP
FM] e TV e dirigindo festivais”. Disponível em: < http://www.studioamerica.com.br/abiliomanoel/index.html>.
Acesso em 31 jan. 2006.
97
Pedro Clemente, o qual, segundo Abilio, teria “uma ficha na PIDE”. Ainda de acordo com o
músico, até mesmo sua mãe fora perseguida durante a ditadura salazarista, sendo impedida de
freqüentar algumas escolas em razão das atividades de seu pai e do manifesto “ateísmo” da
família, o que para uma ditadura “abençoada” pela Igreja era inaceitável.
119
O músico Abílio traz uma outra particularidade em sua trajetória artística e pessoal, o
fato de, apesar de não ter uma relação com os músicos portugueses e a exemplo destes, ter
dedicado uma canção à Revolução dos Cravos, no caso O Fado e o Cravo de Abril.
120
Esta
canção foi selecionada para participar do Festival Abertura, organizado pela Rede Globo em
1975:
Os gritos roucos
O mês de abril
E agora a vida que não se viu.
Os lenços brancos
No cais do porto...
Meu coração anda solto.
Uma vontade de voltar,
Rever as flores
Que aqui não há
Seguir cantando o dia novo
E o coração do meu povo.
E o som das guitarras na rua,
Conversas de esquina,
Varinas,
121
cantigas...
O fado e o cravo de abril.
Entretanto, de acordo com o depoimento de Abílio, esta canção foi vetada pela
Censura Federal e ele recebeu da Rede Globo
122
uma passagem aérea para Brasília para
119
Depoimento de Abílio Manoel por via telefônica em 31 jan. 2006.
120
Disponível em: <http://www.studioamerica.com.br/500/music/abilio_fado.ra>. Acesso em: 25 jan. 2006.
Neste endereço é possível ouvir a canção em apreço.
121
Segundo depoimento do compositor: “varinas = mulheres de pescadores que trabalham no comércio e
limpeza dos peixes nas regiões pesqueiras de Portugal e se vestem de negro sempre, por ter perdido algum
membro da família no mar - quase um luto eterno”.
122
Segundo Heloísa Paulo (2000, p. 349), Roberto Marinho, através do seu jornal O Globo, apoiava o regime
salazarista, a exemplo do Diários Associados de Chateaubriand.
98
negociar pessoalmente a liberação da canção junto ao então ministro da Justiça Armando
Falcão
123
, que não atendeu seu pedido. Essa prática era corrente, qual seja, delegar a alguns
dos autores a responsabilidade de negociar com os censores. Em 1974, o músico Odair José
teve vetada sua canção A primeira noite de um homem, que faria parte de seu LP Lembranças.
A direção da Phonogram também levou o músico à Brasília para liberar a canção e segundo
Odair José: “ ‘A empresa pensou assim: vai lá, e o que eles apontarem de errado na letra, você
muda alguma coisa. Eu fui com essa intenção’” (ARAÚJO, 2002, p. 559). O músico chegou a
falar até com Golbery do Couto e Silva, mas a exemplo de Abílio, não obteve êxito.
Proibida O Fado e o Cravo de Abril de Abílio Manoel, só seria gravada no LP
América Morena, de 1976, mediante a alteração do título para O Cravo e o Fado de Abril.
124
Esta canção em ritmo de fado recupera imagens características das canções que estabelecem
uma relação entre a primavera e o fim de uma dada situação política, comumente autoritária.
Como é sabido, esta imagem das flores é reforçada pela própria história que envolve a
revolução dos capitães em Portugal e os cravos que a representaram imageticamente.
No mesmo texto encontra-se uma outra vertente poética ligada à imagem do exílio,
como na canção Sabiá (de Tom Jobim e Chico Buarque)
125
e na própria poesia Canção do
Exílio (do poeta Gonçalves Dias, datada de 1843) que inspirou inúmeros poetas e
compositores. Outra passagem que caracteriza bem o período de liberdade vigiada está no
trecho “conversas de esquina”, afinal como em toda ditadura, qualquer agrupação de pessoas
123
Não sem razão o encontro com o Ministro, afinal, como enfatiza Kushnir (2004), os Serviços de Censura
estavam diretamente subordinados ao Ministério da Justiça e refletiam uma deliberada política de Estado.
124
MANOEL, Abilio. América Morena. Som Livre, nº. 410.6010, 1976. De acordo com Abílio, em depoimento
ao autor: “apenas uma inversão das palavras do título, para ludibriar o cadastro alfabético da Censura”. Tal
estratégia é citada por inúmeros músicos, como o cearense Ednardo: “A gente também trocava os títulos das
músicas e misturava as letras. Várias passavam dessa maneira porque o pessoal censurava pelo título e pelo
autor”. In: Ednardo: no escuro dessa noite - Entrevista. Jornal O Povo, Fortaleza, 12 abr. 2004.
125
“Vou voltar, sei que ainda vou voltar/ Vou deitar a sombra de uma palmeira/ Que já não há/ Colher a flor, que
não dá/ E algum amor/ Talvez possa espantar/ As noites que eu não queria/ E anunciar o dia [...]”. Esta
canção, como se sabe, alcançou o lugar, deixando em Pra não dizer que não falei das flores, composta e
interpretada por Geraldo Vandré, no III Festival Internacional da Canção Popular, de 1968, o que gerou revolta
junto ao público. Esta canção de Vandré também trazia a imagem das flores: “[...] Pelas ruas marchando
indecisos cordões/ Inda fazem da flor seu mais forte refrão/ E acreditam nas flores vencendo o canhão [...] Os
amores na mente as flores no chão/ A certeza na frente, a História na mão [...]”.
99
nas grandes cidades portuguesas era observada pela polícia política e, no limite, até mesmo
coibida. Foi também em razão da existência da ditadura, no caso da Argentina, que levou o
músico violonista argentino Juan Falú exilar-se no Brasil e aqui, entre os anos de 1978 e
1980, integrar-se ao grupo musical Tarancón e também acompanhar Abílio Manoel em suas
apresentações.
No Cone Sul não houve fronteiras para o exercício da atividade censória. Em 1978,
por exemplo, a cantora brasileira Elis Regina se recusou a cantar na Argentina enquanto seu
disco Falso Brilhante não fosse liberado pela Censura daquele país, proibido devido à
presença da canção Gracias a la vida, de Violeta Parra. Este disco teve origem no espetáculo
Falso Brilhante, que estreou em São Paulo, no Teatro Bandeirantes, em 17 de dezembro de
1975. Foi um dos maiores êxitos na história dos espetáculos musicais realizados no Brasil.
126
Afinal, foram catorze meses de apresentações quase ininterruptas, com uma platéia girando
em torno de mil e quinhentas pessoas por dia. Calcula-se que o show tenha conseguido um
público de cerca de 280 mil pessoas, estabelecendo um recorde no show business brasileiro.
Acusada naqueles anos do Falso Brilhante de panfletária e ainda presa às temáticas
dos movimentos de 1968, Elis Regina e sua trupe lembravam que a ditadura não cessara.
Tratar da violência institucional não era um mero exercício de retórica ou de estratégia
comercial. Contudo, o espetáculo não era unicamente de protesto contra o regime. Seu eixo
era mesmo a vida do artista, suas relações com a indústria, com as ambições pessoais, as
oscilações do sucesso de muitos e do fracasso de outros tantos. Era também um musical
otimista, romântico e trazia a alegria que há no canto das crianças.
Por vezes, alçado à porta-estandarte, como em Falso Brilhante, o artista carrega uma
bandeira esfarrapada como se estivesse à frente de seu grande “Exército de Brancaleone”. O
espetáculo foi polissêmico: exercício de autocrítica, homenagem aos artistas, grito de
126
Além de sucesso de público, recebeu em 15 de março de 1976 o prêmio de melhor show de 1975 pela
Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).
100
denúncia, crença de que os tempos estavam mudando. Afinal, em Quero (de Thomas Roth),
os artistas da peça ambicionavam: “Quero ver o sol atrás do muro/ quero um refúgio que seja
seguro/ uma nuvem branca sem sol nem fumaça/ quero um mundo feito sem porta ou vidraça/
quero uma estrada que leve à verdade [...]”. Aquele mesmo palco em que Elis realizou o
espetáculo viria a ser o local de seu velório quando de sua prematura morte em 19 de janeiro
de 1982.
127
As canções Los Hermanos e Gracias a la vida que faziam parte do espetáculo
despertaram suspeitas como fica claro num documento encontrado no DEOPS de São Paulo.
Um agente policial compareceu em abril de 1976 a uma das apresentações do Falso Brilhante
e fez um relatório de duas páginas sobre o musical. Para ele, o show não era subversivo, mas
continha a possibilidade de uma outra leitura pelos “críticos” e “eventualmente poderia
associar alguns temas musicais e alegorias a objetivos de ordem política [...]”. Na mesma
linha de raciocínio o agente explica que a “interpretação por Elis Regina de algumas músicas
poderia ter alguma conotação do gênero político (‘Los Hermanos’, de Atahaualpa Yupanqui
[sic!], e ‘Gracias a la Vida’, de Violeta Parra).” Entretanto, conclui que “dificilmente poder-
se-ia afirmar que o espetáculo tem objetivos políticos e, se os tem, são tão velados que a sua
eficácia seria inofensiva, principalmente na atual conjuntura”.
128
No mesmo documento em questão consta o programa do espetáculo e dois
manuscritos. Não como saber se os dois documentos foram escritos pelo mesmo agente.
Num deles, o autor enfatiza que a música “Gracia [sic!] la vida” é de uma “autora chilena” e
que caberia “investigar músicos que acompañan [sic!]”. No outro manuscrito, complementa:
“Levantamentos dos componentes chilenos da equipe de Elis Regina que canta ‘Gracia [sic!]
127
Aviso aos navegantes: quem quiser relembrar Elis e este belo show numa visita ao antigo Teatro
Bandeirantes, prepare seu coração e sua audição, pois encontrará os cânticos e o gritos dos fiéis da Igreja
Universal do Reino de Deus, nova proprietária deste antigo templo da sica. Como diria a canção Agnus Sei,
da dupla de João Bosco e Aldir Blanc e gravada pela própria Elis: “Dominus, domínio, juros além [...] O meu
pastor não sabe que eu sei/ Da arma oculta na sua mão”. Neste “museu de grandes novidades”, será mesmo que
“o tempo vence toda a ilusão?”.
128
Arquivo do Estado de São Paulo. Arquivo DEOPS, Divisão de Informações do DOPS, pasta 50-Z-0-13.763,
datado de 22 abr. 1976.
101
a la vida’. Saber dos antecedentes dos chilenos = atraz [sic!] desta música, outros virão”.
Logo, havia uma preocupação explícita não apenas com a origem do discurso sonoro, mas
com os lugares de produção e recepção que coincidiriam, supostamente, com os grupos de
oposição políticas às ditaduras.
Talvez um dos músicos que pode ter sido confundido com um estrangeiro tenha sido o
paulista Crispin del Cistia. Ao apresentar estas questões ao músico ele asseverou: “Antes da
estréia, tínhamos que fazer uma sessão exclusiva para os censores, com todos os aparatos de
cena (luz, roupas som e tudo o mais)”. O músico lembra e adverte que o Falso Brilhante foi
aprovado: “[...] sem problemas, pois não continha ‘cunho político explícito’, apesar de nossa
postura pessoal ser de pessoas compromissadas com os direitos humanos e com a democracia.
Mas não éramos militantes [...]”.
129
De fato, durante a consulta ao Arquivo da DCDP em Brasília, foi localizado o parecer
da Censura em relação ao espetáculo. Este processo traz, além do programa com o roteiro e
com as letras das canções, dois ofícios da própria Censura. No primeiro, o chefe do Serviço de
Censura de Diversões Públicas (SCDP) de São Paulo
130
, José Vieira Madeira, envia o
processo ao Diretor da DCDP Rogério Nunes, em “cumprimento ao que determina a Portaria
042/75 DCDP, estamos remetendo a V. Sª., um exemplar de show musical intitulado
Falso Brilhante [...]”.
131
Dezesseis dias depois do primeiro ofício é emitido o parecer
132
favorável em Brasília
pelo técnico de Censura A. Gomes Ferreira com a seguinte decisão, aqui reproduzida
integralmente:
129
Depoimento ao autor em 28 ago. 2005 por correspondência eletrônica.
130
Órgão que não respondia pela censura aos jornais, pois era da alçada do Serviço de Informação do
Gabinete (Sigab), criado em 1970, vinculado ao Ministério da Justiça. Ao Sigab “[...] cabia o telefonema diário
às redações de todo o país em que se informava o que era proibido publicar, assim como a visita aos jornais sob
censura prévia para checar o cumprimento das ordens” (KUSHNIR, 2004, p. 123).
131
Arquivo Nacional de Brasília Fundo DCDP, ofício nº. 5256/ 75-SCDP/ SR/ SP, datado de 03 de dezembro de
1975.
132
Arquivo Nacional de Brasília Fundo DCDP, parecer 813/76, datado de 19 de dezembro de 1975.
102
Show musical, de autoria de Elis Regina e outros artistas nacionalmente
conhecidos, e que apresentam vários temas de nosso cancioneiro musical,
de muito bom gosto e de objetivos de fundo educativo, tentam apresentar
um espetáculo de nível médio e de caráter cultural. As letras musicadas são
de bom teor lítero-psicológico, além de levarem a mensagem de confiança
para qualquer tipo de platéia, face à linguagem simples e direta. Nada
desperta, senão bom gosto e alguns momentos de lazer. CONCLUSÃO:
Pelo exposto, somos pela liberação sem restrição de qualquer exigência
legal quanto à faixa etária.
Assim, mediante o parecer de unicamente um dos técnicos de Censura de Brasília, o
espetáculo foi liberado, além disso, mediante uma aprovação com, digamos, “distinção e
louvor”. Segundo o censor, a obra “nada desperta”, ou seja, “nada” em relação aos assuntos
proibidos nas circulares e decretos da Censura. Aqui, temos um outro aspecto daquilo que o
ideário do regime esperava: “a linguagem simples e direta”. Afinal, certamente, era a leitura
das “entrelinhas” que exigia uma exegese a qual não estavam habituados alguns destes
censores. Uma leitura e uma escuta deste cancioneiro do Falso Brilhante, como afirmado
anteriormente, não eram inócuas de questões políticas como se depreende deste parecer. Uma
outra característica percebida em raros pareceres advém de uma leitura até favorável a alguns
dos compositores e intérpretes que não eram os preferidos dos censores, assim como
transparece neste caso acima.
A proibição pela Censura argentina naquele período não se restringiu ao Falso
Brilhante. Em sua obra Eu não sou cachorro não, Paulo César Araújo lembra o fato da
proibição relacionada a Benito di Paula em 1977. O autor revela:
Um outro samba de Benito, disfarçadamente intitulado Proteção às
Borboletas na verdade seu texto é uma exaltação à dignidade humana -,
curiosamente foi liberado pela censura do governo brasileiro e proibido
pelos militares argentinos, porque nele o compositor diz: “Eu sou como as
borboletas/ tudo o que eu penso é liberdade/ não quero ser maltratado/ nem
exportado desse meu chão/ minhas asas, minhas armas/ não servem para me
defender...”
(2002, p. 113).
103
Voltando à comparação entre Brasil e Portugal, a documentação da censura brasileira
também se coaduna a sua similar portuguesa em relação ao controle sobre as críticas aos seus
respectivos governantes. Isto fica claro na própria documentação do DOPS, ao arquivar um
recorte de jornal sobre a ordem, via-telefone, para os jornais brasileiros, com a seguinte
assertiva: “17/5/73 Fica proibida a divulgação, através da Imprensa, rádio e TV, de
manifestações contrárias à visita do presidente da República (Emilio Garrastazu Médici) a
Portugal”.
133
Assim, os dois extremos do Oceano Atlântico estavam muito mais próximos
nas estratégias das duas ditaduras, afinadas nos temas e no modus operandi do controle
censório. Um dado que deve ser destacado é que estes laços parentais entre as ditaduras
também tinha como agregados os grupos econômicos, como bem expressa a proibição:
“18/7/73 – Está proibida qualquer divulgação ou publicação de material relativo à intervenção
do Banco Central no Banco Português do Brasil”.
134
Como afirmado anteriormente, apesar do Governo Brasileiro ter recebido os líderes do
Governo e o próprio Marcelo Caetano, após a Revolução dos Cravos, houve uma preocupação
expressa na documentação oficial da ditadura brasileira em não dar visibilidade a estes novos
exilados salazaristas. No dossiê sobre a Censura montado no DOPS/ PR, entre os temas
proibidos, temos dois opostos:
20/5/74 Liberado à publicação o noticiário da chegada ao Brasil dos Srs.
Américo Thomaz e Marcelo Caetano (respectivamente presidente e
primeiro-ministro de Portugal depostos no movimento militar de 25 de
abril), desde que não contenham qualquer comentário ou exploração
política. Demais notícias, comentários ou editoriais continuam proibidos até
segunda ordem.
135
133
Pasta Censura, Arquivo do DOPS, Arquivo Público do Paraná. Esta lista de proibições encontrada na pasta
advém do recorte de uma reportagem da Folha de São Paulo, de 05 mar. 1978.
134
Pasta Censura, Arquivo do DOPS, Arquivo Público do Paraná.
135
Idem.
104
A “segunda ordem” chega quatro meses depois num segundo comunicado, com um
fechamento ainda maior em relação ao tema: “13/9/74 – Está proibida a divulgação de
notícias, entrevistas, depoimentos declarações que envolvem Marcelo Caetano (ex-primeiro
ministro português) assim como qualquer citação de suas obras literárias [sic!].” Neste exílio,
o quase anônimo ex-ministro português inicia suas atividades profissionais no Brasil
136
atuando como professor de Direito em faculdades particulares do interior paulista.
A obra Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988,
publicação da tese de doutorado em História realizada por Beatriz Kushnir, traz uma nova
leitura do exercício censório no Brasil. A autora desenvolveu uma pesquisa mais detida nos
aspectos jurídicos, na legislação e em sua aplicabilidade. Para tanto, realizou um
levantamento de como a censura foi institucionalizada pelo Estado ao longo do século XX.
Tal preocupação com a legislação e sua operacionalidade também está presente na obra
Censura no regime militar e militarização das artes (2001), do historiador Alexandre Ayub
Stephanou, que aborda ainda como a censura barrou uma diversa produção artística e
igualmente revela como se deu os embates no interior da própria oposição cultural ao regime.
Contudo, voltando ao livro de Beatriz Kushnir, o que provocou polêmica foi mesmo a
comprovação de que muitos jornalistas colaboraram com os serviços de Censura. Outra
perspectiva adotada pela autora foi a de entrevistar os censores na busca de uma leitura mais
próxima do que de fato foi operado no campo censório no período exposto no título. que
se levar em consideração que esta possibilidade de ouvir como os censores encaravam seu
ofício abre uma nova perspectiva de entendimento do funcionamento dos serviços de Censura,
mas, a exemplo da documentação oficial, também há muito de institucional na “visão pessoal”
destes censores. Portanto, igualmente a necessidade de uma filtragem destas falas, cuidado
este, adotado pela autora.
136
Uma outra passagem de Marcelo Caetano pelo Brasil ocorreu em 1941, quando da vinda da “Embaixada
Extraordinária ao Brasil”, em que esteve presente na qualidade de Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa
(PAULO, 1994, 167).
105
Uma das críticas da historiadora esteve relacionada a uma suposta recorrência nos
estudos sobre a Censura que abordariam unilateralmente os processos censórios, em
particular, no tocante a censura à informação: “As reflexões nesse campo têm-se debruçado
mais fortemente sobre a resistência, sobre o burlar o ‘não-dizer’. Por esse raciocínio, criou-se
um duelo em que o censor ou é um tirano, um algoz, ou é um incompetente, despreparado
intelectualmente para a função” (KUSHNIR, 2004, p. 39).
O fato é que a leitura dos processos permite o vislumbre dos embates entre Estado e
diferentes setores da sociedade, desde que tal documentação seja entrecruzada com outras
fontes. Os assuntos interditos pela Censura, parcial ou integralmente, revelam uma grande
diversidade de temas. Por exemplo, a temática do homossexualismo
137
também foi um tabu
nos pareceres dos censores brasileiros. Em 1977, continuavam recorrentes as proibições a
canções que abordassem o tema vetado, como se observa neste parecer existente nos arquivos
da DCDP:
Letra musical: De Leve, versão de Gilberto Gil e Rita Lee PELA
PROIBIÇÃO.
A letra em questão enfoca o homossexualismo e o lesbianismo de
maneira vulgar, maliciosa e inadequada. Por entendermos que tal assunto
não deva ser tratado muito menos decantado de tal maneira e sim através do
ponto de vista médico-científico, opinamos pela NÃO LIBERAÇÃO da
composição supra, baseada no artigo 41, alínea a do Decreto 20.493/46. São
Paulo, 16 de Novembro de 1977.
Portanto, baseado na “ofensa ao decoro público”, tal veto inicia-se com uma aparente
defesa dos direitos e do respeito para com o tema. Porém, logo na seqüência, temos as
premissas que caracterizavam o debate de então em torno da homossexualidade e sua relação
com a tese de desvios biológicos. Para o censor, a justificativa do veto advém de uma suposta
ofensa ao decoro público: “Jojô era um cara que pensava que era/ mas sabia que era não/ saiu
137
Outras canções sobre o tema no universo da canção “cafona”, ver Araújo (2002).
106
de Pelotas, foi atrás da hora/ Trepadeira de verão [...]”. A cidade de Pelotas, no Estado do Rio
Grande do Sul, décadas é usada como símbolo de cidade de homossexuais, sempre num
tom de chacota, mas não foi a ofensa à cidade que motivou a interdição. Novamente, com
base na lei de 1946, esta versão de Get Back, de John Lennon e Paul McCartney, serviu de
pretexto para a preservação da moral que a Censura se arvorava como a salvaguarda.
Uma das possíveis relações existentes entre as justificativas em que se baseiam países
tão distintos como Brasil e Portugal, talvez seja a cultura conservadora cristã aliada a uma
cultura da caserna e uma certa moral militar. Afinal, na formação militar uma freqüente
crítica a uma crescente politização da vida social e uma relação estabelecida entre limitação e
fraqueza como traços identificadores da homossexualidade
138
. Este binômio, juntamente com
outros preconceitos, inclusive de ordem racial/ étnica, provavelmente, construiu uma base
para tais controles censórios e para a repressão em outras esferas.
Além disso, ao se examinar um manual de Instruções de Segurança Militar no Exército,
encontra-se alguns dos preceitos do Exército Português, no capítulo IV Segurança do Pessoal,
sobre características inerentes à subversão, como: “desprezo pelos valores tradicionais do
Exército”, “má vontade do pessoal”, Desobediência passiva”, “boatos e outras actividades
deprimentes” e, a exemplo do que se abordou anteriormente sobre a politização: “actividades
partidárias políticas”, entre outras. Neste mesmo capítulo, indica-se a leitura das Instrucções
de Contra-Subversão do pessoal (CINF-1), da 2ª. Rep/ EME, “relativamente ao caso concreto
da subversão comunista”.
139
138
Este tema também foi tabu em outras ditaduras, como na Espanha. Em 1971, a canção “Le Gorille”, do
francês George Brassens, foi proibida pela Censura espanhola sob a justificativa: “contiene un fondo, no solo
erótico sino homosexual y es, por tanto, deneglabe”. Vale ressaltar que nestes mesmos documentos são
proibidas ainda, do mesmo músico, Hecatombe, La Chasse aux Papillons, Corne d’Aurochs, Il Suffit de Passer
le Pont, todas elas consideradas “inmorales”. Naquele mesmo ano um outro parecer proibiu canções de John
Mayall, enviadas pela Phonogram Madrid, como Looking at Tomorrow, considerada pelo censor: “canción
ligera, pero muy ambigua y que puede ser interpretada como homosexual. DENEGAR”. Logo, faz-se uso do
veto sempre que houver a dúvida em relação aos “verdadeiros objetivos” da canção. Archivo General de la
Administración de España, Sección: Cultura, Cajas: 63589 y 67381. Tal arquivo se localiza na cidade de Alca
de Henares.
139
Cf: Instruções de Segurança Militar no Exército. s./l.: Ministério do Exército/ Estado-Maior do Exército/ .
107
Entretanto, em relação a raiz política da censura brasileira, esta é explicitada por Daniel
Aarão Reis Filho (2002): “Embora perpetrado em nome da liberdade e da democracia, o golpe
[de 1964], [...] tem uma proposta de silêncio, porque o seu programa, para se concretizar,
exige vontade ditatorial e repele e nega uma oposição viva, atuante, às claras e legalizada”
(p.435).
Portanto, além desta essência política, também era imposta uma cultura moral. Por
exemplo, na ficha policial do músico português José Mário Branco nos arquivos da PIDE há
informações sobre sua inserção no PCP com 17 anos de idade, quando ainda não era músico.
Nesta pasta informações sobre o grupo de jovens com quem andava, segundo o próprio
José Mário Branco
140
, mais para a pesquisa musical e poesia do que propriamente política, ao
menos neste momento. O subdirector da PIDE no Porto, com informações colhidas por um
“colaborador” da Faculdade de Letras do Porto, asseverou que estes jovens: “São elementos
desafectos ao actual Regime, o que, aliás, não procuram ocultar”. Quanto ao aspecto moral
referido anteriormente:
No aspecto moral são também considerados de porte pouco recomendável.
Tudo indica pertencerem a determinado sector da juventude que se deixou
seduzir pelas modernas correntes de doutrina materialista, que os levam à
prática de actos que a boa moral reprova [...] A Bem da Nação. Porto,
09.11.1961. O Subdirector.
141
Em nome dos “bons costumes” uma vasta produção artística foi proibida nos mais
diversos países. No Brasil, o final da ditadura em 1984 e a posse de um presidente civil em
1985 não impediram que a censura continuasse a ser exercida em nome desses valores até
1988
142
, ano da promulgação da Constituição, que a extinguiu. Apesar de vedada qualquer
Repartição, 1968.
140
Entrevista concedida ao autor em Lisboa, em 17 nov. 2004.
141
IAN/ TT, PIDE-DGS, Pasta: José Mário Monteiro Guedes Branco, sfundo: DelP; Série: PI; número do
processo: 38753; UI: 4046.
142
De acordo com levantamento de Kushnir (2004) junto ao arquivo da DCDP, entre 1985 e 1987: “foram 261
108
tipo de censura, ocorreram alguns casos isolados, via processos judiciais, como em 1995, com
a proibição da execução da canção Luis Inácio (300 picaretas), do grupo Paralamas do
Sucesso, considerada ofensiva aos deputados federais chamados de “picaretas”.
Até 1968, a Censura era regida pelo Decreto n. 20.493
143
, de 1946, que criou o Serviço
de Censura de Diversões Públicas, ligado ao Ministério da Justiça e estabeleceu as regras do
permitido. Entretanto, com a Constituição imposta à população em 1967, foi criada uma
estrutura de censura para todo o país
144
. Mudança de fato operada com a criação da Polícia
Federal em 1969, que responderia pelos serviços de diversões públicas. Apesar desta
mudança, o artigo 41 do referido Decreto n. º 20.493
145
continuou sendo a referência para os
censores durante toda a década de 1970:
Será negada a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão radiotelefônica:
a) contiver qualquer ofensa ao decoro público;
b) contiver cenas de ferocidade ou for capaz de sugerir a prática de crimes;
c) divulgar ou induzir os maus costumes;
d) for capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as
autoridades constituídas e seus agentes;
e) puder prejudicar a cordialidade das relações com outros povos;
146
f) for ofensivo às coletividades ou às religiões;
g) ferir, por qualquer forma, a dignidade ou o interesse nacional;
h) induzir ao desprestígio das forças armadas.”
147
letras de música cortadas e 25 terminantemente vetadas” (p. 147). Em 1986, em plena “Nova República”, foi
realizado um concurso para censor que elevou o número deles de 150 para 220.
143
Kushnir (2004) sublinha que “um governo eleito pelo povo depois de um longo período ditatorial (1937-
1945) refez uma legislação invasiva e centralizadora, como era a que regia o DIP, para, nos (supostos) ares da
liberdade, assegurar o domínio de outra maneira, mas mantendo um conteúdo regulador” (p.83). A censura à
canção estava prevista no DIP, onde, em 1939, estavam oito censores que tinham que observar o que trazia o
Cap. III, Art.7, em que competia à Divisão de Radiodifusão, em sua alínea: c) fazer a censura prévia de
programas radiofônicos e de letras para serem musicadas”. (KUSHNIR, 2004, p. 96).
144
Afinal, em seu Capítulo II, no Art. 8º, expressava que competia à União “organizar e manter a Polícia Federal
com a finalidade de prover: [...] d) a censura de diversões públicas” (ALBIN, 2002, p. 16).
145
Já em 1947, a canção Eu quero é rosetar, de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, foi censurada e teve os
discos retirados das lojas por ser considerada uma canção indecente por seu suposto sentido dúbio (HAROLDO
LOBO, 1977, p.06). A Revista Anhembi registra um outro caso de censura, desta vez de 1957, relacionado a um
samba carioca intitulado Ele disse, cujo autor não foi citado, que trata das promessas dos políticos em tempos de
eleição. A proibição foi motivo de chacota do jornalista: “a polícia interditou o novo samba! Sim, interditou, por
considerá-lo impróprio! [...] Ela que nunca se importou com essas fotografias do tralalá à mostra, destinadas a
dar tiragens às revistas nacionais [...] uma das melhores piadas policiais”. In: Ele disse. Revista Anhembi. Ano II,
n. 15, v. 5, fev. 1952, p. 526-7.
146
No Decreto . 21.240, de 1932, esta preocupação já constava na legislação censória ao proibir a: “alusão à
não-cordialidade entre os povos” (KUSHNIR, 2004, p. 169).
147
Ver Brasil: Coleção de Leis e Decretos da República, 1946, citada por: BERG, Creuza. Mecanismos do
Silêncio: expressões artísticas e censura no Regime Militar (1964-1984). São Carlos: Edufscar, 2002, p.88-9.
109
Segundo Creuza Berg (2002), as lacunas que estes itens não atingiram foram decididas
pelo arbitrário artigo 136: “os casos omissos serão resolvidos pelo chefe do Serviço de
Censura de Diversões Públicas, ouvido o chefe de polícia” (p. 89). No tocante à censura à
música popular, a autora enfatiza o papel da Doutrina de Segurança Nacional na aplicação
desta prática censória. Para tanto, analisa os debates que permeiam a Escola Superior de
Guerra e pondera, a partir da consulta do Arquivo da DCDP/DF
148
, acerca dos embates entre
os músicos e a Censura. Com o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, a censura política tornou-se
a razão de ser dos censores. Vale ressaltar que nos seus dez anos de existência “o ato deixou
um saldo de cerca de 500 filmes e 450 peças interditadas, 200 livros proibidos, dezenas de
programas de rádio e televisão e mais de mil letras de música censuradas” (SOUZA, 1984, p.
142).
Creuza Berg aponta ainda dois níveis de ação da Censura observados na
documentação: “[...] um preventivo (censura prévia) e outro punitivo (processos judiciais). Ao
lado desta, havia ainda uma outra censura de caráter coercitivo, exercida por terroristas de
extrema direita ligados à ala radical do Exército e pela polícia, sobretudo civil, ligada ao
DOPS” (BERG, 2002, p. 121). Em Portugal, também esta vertente punitiva foi recorrente
como se vê nos processos da PIDE/DGS em que figuram músicos como José Afonso, Adriano
Correia de Oliveira e Francisco Fanhais, entre outros.
“Vamô que pode... Vamos ao que pode.Chico Buarque dispara o desabafo e canta
escrachada e raivosamente seu Baioque, uma irônica canção que funde o baião com o rock. O
disco Phono 73: O canto de um povo
149
registra o áudio. Era uma sexta-feira, 11 de maio de
148
A pesquisadora Beatriz Kushnir (2004) em trabalho recente sobre a censura questiona o fato de Creuza Berg
estudar o tema unicamente a partir do arquivo da DCDP: “Não cotejar diferentes materiais impossibilita outras
reflexões, podendo, assim, contribuir para um grave erro de análise [...] Centra-se apenas nas fontes daquele
arquivo, nas suas análises, e justifica este procedimento na impossibilidade de acesso aos censores” (p.65). Esta
crítica à metodologia empregada encontra sua resolução, de acordo com a autora, na entrevista junto aos
censores.
149
Phono 73: O canto de um povo 2. Rio de Janeiro: CBD Phonogram, 1973. 33 rpm, stereo, n. 6349074.
Trechos deste show no Palácio das Convenções do Anhembi foram lançados no DVD “Phono 73”, pela
Universal Music, em 2005. Um dos excertos escolhidos é justamente esta tentativa de Chico e Gil de cantarem a
110
1973, a Phonogram realizava, no palácio das Convenções do Anhembi, o Phono 73, evento
que apresentaria seu poderoso cast de cantores e cantoras. O discurso de Chico no disco
dificilmente é notado, mas ficou o registro. Momentos antes ele tentou cantar, junto com
Gilberto Gil, Cálice, cuja letra havia sido vetada pela Censura, apenas cantando a melodia da
canção e os trechos em que a palavra “cálice” era pronunciada. Neste momento os microfones
foram desligados e a palavra “cálice” fez-se verdade.
Este fato citado apresenta duas versões: uma, partida da própria Phonogram
150
(hoje,
Universal Music) por meio de sua página oficial na Internet, é a de que os microfones teriam
sido desligados por censores presentes no show. Vale ressaltar que, naquele período, a
produção dos eventos artísticos, obrigatoriamente, devia repassar quatro ingressos para a
Censura. Outra versão, como a veiculada pelo Jornal da Tarde, atribui aos próprios cnicos
da Phonogram o corte realizado. Este é um bom pretexto para debater o tema da censura e da
repressão contra os músicos na década de 1970 no Brasil.
A consulta ao arquivo da DCDP, de Brasília, aponta para os canais de comunicação
existentes entre a indústria fonográfica e a Censura. As grandes companhias eram as
responsáveis pelo envio das canções e pela negociação da liberação das mesmas. É provável
que o interesse destas grandes empresas também se traduzisse em liberação de algumas
composições. O compositor Aldir Blanc, em entrevista à revista Homem, em 1977, critica o
poder dos advogados das gravadoras em barganhar junto à Censura as músicas graváveis ou
não, bem como opina sobre a influência destes cortes para o músico e para o ouvinte:
Exemplificando esta “barganha industrial”, Aldir Blanc cita uma carta, da
qual existe uma cópia nos arquivos da RCA, na qual o advogado da
gravadora, afirma à Brasília que “os equívocos saídos no disco Galos de
Briga não mais acontecerão este ano”, pois a gravadora seria mais comedida
canção Cálice. Para mais informações sobre o caso: COSTA, Caio Túlio. Cale-se. São Paulo: A Girafa, 2003.
150
Ver artigo Conheça mais sobre a história da Universal Music, em que, segundo a empresa, o corte foi feito
após “a inesperada visita da Censura Federal. Disponível em:
<http://www.universalmusic.com.br/quemsomos.asp>. Acesso em: 06 jul. 2003.
111
no lançamento seguinte do compositor. “É preciso gerar dinheiro, a roda
não pode deixar de girar”, diz Aldir. “Eles se propõem a olear ainda mais
essa roda. Isso tem um preço para o criador, para a cultura e,
conseqüentemente, para aquele que ouve”. (AUTRAN, 1979, p.100).
inúmeros casos em que as gravadoras reenviavam as letras censuradas e
conseguiam aprová-las mediante a simples explicação do teor das mesmas. Nesse sentido, o
Fundo DCDP de Brasília revela uma parte significativa dos processos de negociação entre os
músicos, a indústria fonográfica e o Estado (representado na figura dos censores), muito
embora boa parte do seu acervo se encontre também no Rio de Janeiro e, certamente, uma
outra parte do acervo possa ter sido extraviada ou destruída.
O fato é que o cerceamento da criação musical no Brasil não passava somente pelo
aspecto legal, havia outras estratégias da Censura que inviabilizavam a livre manifestação
artística. No entanto, a DCDP e a própria Polícia Federal, a qual era ligada, despendia todos
os esforços para que a censura fosse feita a partir das variantes interpretativas da lei, como
atesta o Ofício n.º 1398/75 DCDP em que o Diretor Geral da Polícia Federal, Moacyr
Coelho, alerta o então ministro da Justiça, Armando Falcão, da preparação de um evento
artístico organizado pelo Centro Acadêmico da Universidade Federal Fluminense, que
contaria com a participação de [...] MPB-4, Chico Buarque, Milton Nascimento, Luiz
Gonzaga Jr., Sérgio Ricardo, Dom (sic!) Bosco e João do Vale.” Assim concluiu o delegado:
“No que se relaciona a apresentação do ‘show’ musical, o SCDP/DPF/Niterói recebeu
instruções para fazer toda série de exigência possível, com o fim de dificultar ou impedir a sua
realização.”
151
Tais exigências não se resumiam à ação censória, a repressão também foi
empregada no Brasil em relação aos músicos. Nas consultas feitas nos DOPS do Rio Grande
do Sul, São Paulo, Paraná e Pernambuco uma recorrência é a ficha de Chico Buarque, exilado
151
Pasta Informações Sigilosas, de 31.10.1975, Fundo DCDP, Arquivo Nacional/ DF
112
alguns anos na Itália. No Paraná, por exemplo, registra-se a preocupação com sua participação
na 5ª Festa do Avante, do Partido Comunista Português.
152
Em maio de 1972, em Recife, Chico Buarque foi intimado a prestar esclarecimentos
no DOPS por ter silenciado (segundo seu relato em Pernambuco) nas duas palavras
censuradas de sua canção Partido Alto: “titica” e “brasileiro” durante um show em Recife.
153
No depoimento anexo a ficha de Chico Buarque
154
, o músico respondeu com ironia as
perguntas, afirmando que não tem problemas com a Censura e que até tomava cafezinho com
os censores e que eles sempre compareciam aos seus shows.
155
Chico foi novamente
intimado
156
em julho do mesmo ano, no Rio de Janeiro, mas alegou ter cantado a versão
aprovada.
Notadamente, para que a letra de Partido Alto fosse aprovada, foram necessárias
substituições das palavras “brasileiro” por “batuqueiro” e “titica” por “coisica.” A Censura do
Rio de Janeiro pronunciou-se: “A TCDP da DR/GB, examinando o primitivo texto da música
Partido Alto, achou por bem vetá-la, pelo sentido depreciativo ao brasileiro apresentado em
um de seus versos e também devido ao uso de expressão grosseira.”
157
A Censura cumpria
desta forma seu papel de preservadora da nova imagem do Brasil dos militares:
desenvolvimento econômico, modernidade e todo um clima “festivo”. Além da crítica
política, estava abolida do cancioneiro qualquer referência à pobreza, à fome, à desigualdade
social, nesse sentido, ao levantar tais questões, a canção de Chico Buarque também
contradizia o ideário da ditadura.
152
Fichário Individual, n. º 33.108, datado de 14.07.1981, Arquivo do DOPS, Arquivo Público do Paraná, p. 03.
153
Esta referência não pôde ser oferecida, pois, após ler tal documento trazido pelo funcionário do arquivo do
DOPS/ Pernambuco, este o arrancou da mão do autor sob a justificativa de que não podia ser lido.
154
Prontuário SSP/DOPS – 4795, intitulado Circuito Universitário.
155
Nesta passagem Chico Buarque refere-se às suas idas às delegacias de polícia e aos censores que
compareciam aos seus shows, visto que as entidades promotoras eram obrigadas a fornecer ingressos para a
Censura.
156
Protocolo n. º 07.692/72, de 28.07.72, Seção Censura Prévia, Fundo DCDP, Arquivo Nacional/ DF.
157
Sem identificação de protocolo e respondido à mão no próprio ofício da Phonogram que pedia a liberação da
canção, de 05.04.72, Seção Censura Prévia, Fundo DCDP, Arquivo Nacional/ DF.
113
A atuação de Chico Buarque no conturbado período ditatorial foi objeto de dezenas
de trabalhos acadêmicos. Sua produção literária, musical e teatral foi e continua sendo de
interesse dos historiadores, e não sem razão. Em sua peça Calabar, em parceria com com o
angolano Ruy Guerra, uma soma destas suas diferentes instâncias criativas. Esta peça
teatral foi proibida pela Censura em 1973, o que levou a um dos maiores prejuízos financeiros
para uma companhia de teatro até então, algo em torno de 30 mil dólares, prejudicando ainda
as oitenta pessoas envolvidas no projeto. Em entrevista a Rádio Eldorado, em 1989, Chico
Buarque revelou que o texto da peça “[...] foi aprovado com cortes. Alguns palavrões aqui,
uma coisa ali, que a gente não podia levar ao palco. O resto estava aprovado [...] tinha a
segunda censura, a censura ao espetáculo”. Contudo, a Censura não compareceu ao ensaio e
protelou vários dias até que “Chegou uma hora em que não havia como manter aquela
produção em pé, então, falimos [...] A gente recorreu e meses mais tarde e ela foi proibida
pelo general Bandeira, que era o chefe do serviço de censura”.
158
Entretanto, o ônus deste rombo financeiro causado pela proibição foi muito maior para
Chico Buarque, em parte minimamente atenuado pela venda do livro Calabar, que apenas
entre 1973 e 1974 contou com seis edições. O outro problema com a Censura viria quando da
tentativa de gravar as canções que faziam parte da peça. Nesse sentido, encontra-se no
arquivo da DCDP em Brasília, o pedido de liberação do disco Calabar. Ainda segundo Chico
Buarque: “O disco que se chamava Chico canta Calabar foi proibido. Então retiraram as capas
que estavam impressas e que tinham um muro pichado com Calabar, e publicaram capas
brancas mantendo Chico Canta”.
159
No arquivo da DCDP localiza-se o processo em relação a este disco. Nele foram
vetadas integralmente duas canções: Ana de Amsterdan e Vence na vida quem diz sim. No
parecer de uma censora da DCDP, com exceção da primeira, todas as canções poderiam ser
158
Entrevista a Geraldo Leite da Rádio Eldorado, em 27 set. 1989, publicada integralmente no site oficial do
músico. Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/sanatorio>. Acesso em: 23 jan. 2004.
159
Idem.
114
gravadas com a classificação de “divulgação em recinto fechado para maiores de 18 anos”.
160
No entanto, no mesmo parecer, o Chefe da Censura Rogério Nunes redigiu à mão: “A letra
‘Ana de Amsterdan’, conforme despacho no processo da peça, não pode ser gravada
comercialmente”.
161
A canção era o tema da personagem homônima, uma prostituta: “Sou
Anna do dique e das docas/ Da compra, da venda, das trocas, das pernas [...] Sou Anna de
vinte minutos/ sou Anna da brasa dos brutos na coxa [...]”. Era uma letra ofensiva demais para
ser ouvida no país. Trazia o tema proibido dos desvalidos num período de “milagre
econômico”, era demais para a salvaguarda moral do país, e, talvez, tenha sido interpretada
como uma alegoria do Brasil, tão aberto a “certas influências” externas. Como diria o
personagem Frei para a multidão, no texto da peça: “- Tenham fé, irmãos. O que é bom para a
Holanda é bom para o Brasil!” (BUARQUE, GUERRA, 1974, p.92).
Quanto à canção Vence na vida quem diz sim, aparece unicamente como “vetada”, sem
uma justificativa e com um carimbo com o nome de Rogério Nunes. No disco foi gravada
uma versão instrumental. Esta canção traz um exercício de linguagem utilizado em Mulheres
de Atenas: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas”, que, na verdade, queria
dizer “NÃO mirem-se...”. Portanto, ao afirmar: “vence na vida quem diz sim/ se te dói o
corpo/ diz que sim [...] se te mandam embora/ diz que sim”, quer também sugerir “diga
NÃO”.
Em Fado Tropical na primeira declamação de Ruy Guerra, o parecer indica o corte da
palavra “sífilis”, o que, em grau de recurso, foi feito. No mesmo trecho do disco foi cortado e
deixado um espaço em que se ouve o início do “s” da “sífilis”. Apesar da forte carga política
do texto e sua relação com as ditaduras ainda existentes no Brasil e em Portugal, como no
fragmento “[...] mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar”,
não foi essa a causa do veto.
160
Parecer nº. 7057/73, de 29 ago. 1973, Arquivo Nacional de Brasília, Fundo DCDP.
161
Parecer nº. 7057/73, com anotação de 20 set. 1973, Arquivo Nacional de Brasília, Fundo DCDP, Censura
Prévia.
115
A justificativa da proibição esteve baseada no cumprimento do artigo 41 do longínquo
Decreto n. º 20.493, em que era “[...] negada a autorização sempre que a representação,
exibição ou transmissão radiotelefônica: [...] e) puder prejudicar a cordialidade das relações
com outros povos”. Apesar de não ter sido citada a legislação acima, apontou no mesmo
caminho, ou seja, a “[...] alusão desrespeitosa à raça portuguesa”. Para Marcos Napolitano
(2003, p. 123), a canção traz um falso tom épico, principalmente quando se reporta ao
presente: “A ditadura brasileira e a ditadura salazarista, pródigas em discursos ufanistas, são
trabalhadas pela paráfrase crítica”.
Outra canção que sofreu o corte de uma única frase foi Não existe pecado ao sul do
Equador, pelo sentido “obsceno” do trecho sublinhado: “vamos fazer um pecado, safado,
debaixo do meu cobertor”: Com a substituição da “obscenidade” por “rasgado, suado, a todo
vapor”, a letra foi aprovada. Novamente é possível estabelecer uma relação entre a
cordialidade brasileira em receber e aceitar a exploração vinda de abaixo ou acima do
Equador: “Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar/ sarapatel, caruru, tucupi, tacacá/
se me usa, me abusa, lambuza” (grifos nossos).
No tocante à proibição da peça, o problema era muito mais abaixo da Linha do
Equador. Na verdade, a documentação da Censura não explica totalmente o caso. Segundo
Lucas Figueiredo (2005, p. 201): “o Exército produziu um cáustico parecer de oito páginas
sobre a peça Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. A intenção do
parecer era forçar a Polícia Federal a censurar o espetáculo, cujo texto foi considerado
‘subversivo’ pelo CIE”. Segundo o mesmo autor, esta peça teria sido criada para se contrapor
às comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil. A transcrição de trechos
do texto do Centro de Informações do Exército (CIE), aponta os excertos “mais perigosos” da
peça, como na passagem do “preso torturado”, na propaganda comunista inerente ao texto, a
referência ao primeiro de abril presente em Fado Tropical, que tornaria esta canção “[...]
116
subversiva, representa[ndo] o abandono da pátria após a Revolução de 31 de Março de 1964”.
162
Até mesmo em seus trabalhos voltados às crianças temos uma sofisticação literária e
musical incomum no campo dos músicos. Em Os Saltimbancos
163
, uma tradução e adaptação
da peça italiana I Musicanti (de 1976), com música do argentino radicado na Itália, Luis
Enriquez Bacalov e textos do italiano Sergio Bardotti. Por sua vez, o original italiano foi
baseado na fábula Os Músicos de Bremen, dos irmãos Grimm. Na versão do musical por
Chico Buarque, o referencial político foi ainda mais latente, muito embora sua originalidade
advenha justamente desta capacidade de aliar a crítica política ao universo lúdico inerente ao
texto e às canções que compõem a obra. Encenada sob a direção de Antônio Pedro, em 1977,
foi gravada em disco
164
no mesmo ano. Apesar do seu conteúdo de crítica social e política,
não se encontra registros na Censura relacionados à sua liberação.
Contudo, ao compor a trilha sonora do filme Os Saltimbancos Trapalhões, de 1981,
baseado na peça, teve a canção Rebichada vetada em primeira instância pela Censura. Esta
composição repetia o refrão da música Bicharia, da peça infantil: “Au, au, au. Hi-ho, hi-ho.
Miau, miau, miau. Cocorocó”. Desta vez o compositor fez uma reflexão da exploração dos
bichos (no caso do filme, dos artistas do circo) e de certo caráter cíclico da história: “Não sou
eu quem repete esta história/ é a história que adora uma repetição/ uma repetição/ uma
162
Parecer S-103, de 22 de outubro de 1973. Do Centro de Informações do Exército. Confidencial. ArN/DSI-MJ.
Cf: FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio: a história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a
Lula. (1927-2005). Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 2005.
163
Um dos registros mais interessantes encontrados na Espanha advém de uma fita cassete do musical Os
Saltimbancos, de Chico Buarque em catalão, com o título de Els Musics de Bremen. Este registro está na
Biblioteca Nacional de Madrid e fez um relativo sucesso no país. O texto foi levado à Espanha pelo diretor
teatral uruguaio Ever Blanchet, traduzido por Eles Alavedra e com a versão musical a cargo de Sergi Cuenca.
Nos últimos anos continuou sendo encenada por outro grupo espanhol de Barcelona.
164
O Saltimbancos. Phonogram/ Philips, 1977, nº. 6349.321. Chico Buarque aproveitou os fonogramas originais
inserindo os cantos e textos vertidos e adaptados para o português. O disco conta com cantores e cantoras de
renome: Miúcha (mãe de Bebel Gilberto e irdo Chico, no papel da galinha), Nara Leão (como a gata), Ruy
(do MPB-4 como o cão) e Magro (também do MPB-4, como o jumento). No coro, as crianças Lelê, Lolô, Lulu,
Bee, Pipa e Bebel. O disco em vinil, diferente de sua versão em CD (de 1993), traz um livreto, com textos e
ilustrações, que contorno a uma produção direcionada para crianças. Afinal, que se destacar que este foi
um dos primeiros projetos discográficos voltados ao público infantil, que até então conhecia as histórias
infantis narradas.
117
repetição [...]”. Entretanto, não foi a mensagem presente no trecho: “Beijo a mão de vira-lata,
sim/ Chamo burro de doutor”, a razão do veto. Desta vez, o texto esbarra na moral imposta
pela Censura, em função da passagem: “Sou eu quem arruma cama de gato/ ponho o gato pra
mijar”. Particularmente, em razão da palavra “mijar”.
Esta “história que adora uma repetição” tem um outro final em razão do
funcionamento do Conselho Superior de Censura que aprovou em grau de recurso, mediante a
justificativa de Ricardo Cravo Albin, então representando a ABERT (Associação Brasileira de
Rádio e Televisão), a canção em sua totalidade: “Até porque quem urina é gente, animal não
urina, animal mija mesmo” (ALBIN, 2002, p. 137).
Outra obra de Chico Buarque voltada ao público infantil é o livro Chapeuzinho
Amarelo. É a história da menina que tinha medo de tudo, mas principalmente do lobo.
Embora soubesse que não existiam lobos onde vivia: “mesmo assim a Chapeuzinho tinha cada
vez mais medo do medo do medo do medo de um dia encontrar o lobo”. A menina acaba
perdendo este medo justamente quando encontra o lobo, que por sua vez fica deprimido por
não assusta-la. Ao gritar seguidamente que “era o lobo”, um jogo semântico do autor
transforma o lobo em bolo: “já não era mais um LO-BO. Era um BO-LO. Um bolo de lobo
fofo, tremendo que nem pudim, com medo da Chapeuzim. Com medo de ser comido com vela
e tudo, ínterim” (BUARQUE, 2002, p. 24). Sua primeira edição data de 1979 e reflete
novamente uma marca da poética de Chico que alia o lúdico a uma proposta transformadora
das relações sociais. Afinal, o medo foi um componente decisivo na manutenção da ditadura e
na imposição de modelos de comportamento impostos pelos militares.
No mesmo caminho, o músico português Sérgio Godinho, também escreveu um livro
infantil que aborda o medo: O pequeno livro dos medos. que se ressaltar que este músico
tem uma atuação artística versátil: ator, autor de trilhas para cinema e até mesmo ilustrador,
como no caso da obra em apreço. A exemplo de Chapeuzinho Amarelo, o livro de Godinho
118
trata do tema infantil numa perspectiva que pode ser estendida aos medos adultos: “[...] medo
é uma sensação forte: fica marcada no corpo e na memória. Aconteceu qualquer coisa, e, de
cada vez que a recordo, sinto uma tremura pela espinha acima” (GODINHO, 2004, p. 05).
Desta vez, é um narrador em primeira pessoa quem revela os seus medos. Não há como não se
reportar a própria história de Sérgio Godinho, que deve ter enfrentado este sentimento quando
de suas duas prisões no Brasil, durante a ditadura.
Foi também a imposição de uma cultura do medo que esteve presente nas ações
repressivas e censórias. Ao analisar os documentos da DCDP de Brasília, também chama a
atenção o documento oficial de 04 de dezembro de 1972, com o assunto: Movimento
Estudantil na Guanabara, originado do SNI – Serviço Nacional de Informações. O documento
confidencial faz a acusação de que o show ocorrido em junho do mesmo ano e organizado
pelo Diretório Central de Estudantes da Pontíficia Universidade Católica da Guanabara, com a
participação dos músicos Gonzaguinha, Egberto Gismonti, Sérgio Ricardo e Edu Lobo,
continha canções que o haviam passado pela Censura. Das canções que constavam como
aprovadas pela Censura, anexas ao roteiro do show, destacamos Federico, atribuída a Egberto
Gismonti:
Federico
Eram passadas 3 horas
Depois das Ave-Marias
Quando seu corpo
De morte caiu sobre a terra fria.
Eram passadas 3 horas
Depois das Ave-Marias
Quando o silêncio das almas
Desceu sobre Andaluzia.
Assim disseram os homens
Assim falaram teu nome
Ainda te escuto as palavras
Bailando no firmamento.
119
Esta canção acima é uma referência direta ao poema La cogida y la muerte, do
próprio García Lorca: “A las cinco de la tarde/ Eran las cinco en punto de la tarde/ Un niño
trajo la blanca sábana/ a las cinco de la tarde/ Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde/ Lo demás era muerte y sólo muerte/ a las cinco de la tarde [...]
(LORCA, 1998, p. 287).
Em razão da acusação de execução de músicas proibidas pela Censura por sugerirem
temas “pornográficos”, os cantores prestaram depoimento à Delegacia da Polícia Federal da
Guanabara. Egberto Gismonti, não cita a canção acima como uma das que teria cantado. Não
obstante, a sua entrada no roteiro demonstra que tratar de García Lorca era reportar-se a
outras injustiças cometidas no mundo. García Lorca havia sido assassinado 36 anos antes
deste show e ali ainda representava, simbolicamente, a crítica à repressão política, uma vez
que este evento foi realizado quando a Espanha ainda vivia numa ditadura, como no vizinho
Portugal.
Nesse sentido, lembrar os últimos momentos do poeta era relembrar outros mortos e
outras ditaduras. Para estes músicos, Lorca tornara-se o depositário das injustiças, o símbolo
da arte ceifada em seu auge criativo, como o país que ao viver numa ditadura teve seus
melhores versos cortados ora pelo lápis, ora pela violência física. Todavia, como diria a
canção Pesadelo, do compositor brasileiro Paulo César Pinheiro, composta em plena ditadura
brasileira: “Você me prende vivo/ Eu escapo morto/ De repente olha eu de novo/ Perturbando
a paz/ Exigindo o troco.” Lorca escapou morto e saiu muito caro para as ditaduras e seus
francos.
No mesmo espetáculo em que foi feita a homenagem à Lorca, Sérgio Ricardo, ainda
imbuído do “espírito latino-americano”, executou o seu Canto Americano: [...] Hombre,
hombre americano/ eres pájaro cautivo en la tierra/ que tiene ganas de vuelo blanco/ vuelo
blanco americano/ en la noche negra/ de su dolor”. Apesar do texto de forte conteúdo político,
120
esta letra foi aprovada pela Censura em 02 de agosto de 1972, diferente de centenas de outras
com críticas menos explícitas do que esta.
Porém, a subjetividade que envolvia o trabalho do censor fez com que outras canções
também em espanhol fossem vetadas, sem possibilidade de acordo, como no caso de Canto de
América, de Geraldo Vandré, que contava com quatro estrofes em espanhol e uma em
português. O parecer da Censura
165
que analisou esta canção foi favorável ao veto em razão
unicamente do título (Canto livre de América) e do emprego da palavra “Tupamaros” no
seguinte trecho: “Quechuas, Tamoios, [...] Mapuches/ Tabajaras, Guaranis/ Incas, Astecas y
Mayas/ Tupamaros y Tupis/ de América [...]”. Em grau de recurso é alterado o título e
suprimida a palavra “Tupamaros”. Assim, subtraída a palavra “livre” do título e eliminada a
ponte entre os grupos indígenas e o grupo guerrilheiro surgido no Uruguai, a canção é desta
vez aprovada.
Como afirmado anteriormente, as fichas do DOPS e a documentação censória apontam
que o controle estatal sobre a produção musical não se circunscrevia unicamente aos
chamados músicos engajados. Os artistas que não se ocupavam exatamente de um discurso de
crítica social e política em suas canções podiam ter uma ou outra canção vetada por razões
políticas ou morais, mesmo que o pertencessem ao grupo de artistas visados pela ditadura.
A título de uma exemplificação mais detida desta faceta, toma-se aqui o caso de Adoniran
Barbosa.
No ano de 1974 ocorreu a gravação do primeiro Long Playing (LP) de Adoniran
Barbosa. No Arquivo da Censura em Brasília e no Rio de Janeiro, encontram-se alguns
pareceres de canções de Adoniran, algumas delas compostas ao longo da década de 1950, mas
que seriam gravadas em LP em 1974 e 1975
166
. Uma densa bibliografia
167
explora o fato
165
Arquivo Nacional de Brasília Fundo DCDP, nº. de registro do parecer: 7059/73, Brasília, 30 ago. 1973.
166
BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa. EMI-Odeon, 1974. 33 rpm, stereo, SMOFB-3839; e Adoniran
Barbosa. Odeon, 1975. 33 rpm, stereo, nº SMOB-3877.
167
Aliás, a bibliografia que analisa a obra de Adoniran é das mais extensas entre as que abordam os
121
das canções de Adoniran terem sido proibidas pelo linguajar “ítalo-caipira”
168
utilizado pelo
compositor ao elaborar seus personagens. Todavia, no trabalho de Ayrton Mugnaini Jr.,
Adoniran: licença contar, é destacado que a censura da canção Despejo na Favela, em
1969, teve mesmo um cunho político.
Nos pareceres encontrados nos Arquivos da Censura, tem-se uma versão
complementar dos trabalhos que abordaram este caso de interdição da obra de Adoniran. Não
eram apenas os erros gramaticais que geraram os cortes. No Arquivo Nacional/ Rio de
Janeiro, duas cópias de letras de Adoniran, uma delas é Saudosa Maloca, enviada pela
empresa Discos CBS S/A, cujo parecer de 12 de outubro de 1971
169
, liberou a canção. Dois
meses antes, em letra também enviada pela CBS, a canção Despejo na Favela recebe o
seguinte parecer: “À consideração superior. Protesto a decisão governamental. Rio, 11.08.71”
170
. Logo, como é característico dos pareceres que se encontram no arquivo do Rio de Janeiro,
não um processo, com as devidas justificativas, sendo estas encontradas prioritariamente
no Arquivo Nacional/ Brasília. No entanto, as duas canções foram gravadas pelo grupo de
samba Titulares do Ritmo
171
, naquele mesmo ano.
Em março de 1974, desta vez foi a gravadora Odeon que tentou liberar algumas
canções de Adoniran Barbosa para compor seu primeiro LP e, com base nos vetos das
canções junto ao escritório regional da Censura na antiga Guanabara, remeteu à direção de
Censura Federal um recurso para aprovar as letras: O Casamento do Moacir, Despejo na
Favela, fui uma brasa, Tiro ao Álvaro e Um Samba no Bixiga. De acordo com o parecer
compositores populares brasileiros. São inúmeras dissertações, artigos, reportagens e memórias dos campos da
História, Música, Literatura, Jornalismo e Ciências Sociais. Portanto, não caberia aqui nesta tese uma fortuna
crítica que abarcasse esta mesma produção. Ver ainda: NOVA História da Música Popular Brasileira. Adoniran
Barbosa e Paulo Vanzolini. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 33 rpm, stereo, nº HMPB-49.
168
Que tem sua origem muito anterior ao trabalho de Adoniran, como nos primeiros programas de humor no
rádio em São Paulo, ou nos textos de “Bananére, ou melhor, o engenheiro Alexandre Marcondes Machado
(1892-1933), [que] foi o criador do modo ítalo-paulista de falar”. In: MOURA, Flávio, NIGRI, André. Adoniran:
se o senhor não ta lembrado. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 25.
169
Arquivo Nacional/ Rio de Janeiro, TN2.3.8763, nº. 8501, datado de 12/10/1971.
170
Idem, TN2.3.8685, nº. 8523, datado de 11/08/1971.
171
TITULARES do Ritmo. Titulares dos Troféus, CBS, 10104197, 1971. Ver a fonte desta discografia em:
MUGNAINI JR., Ayrton. Adoniran: dá licença de contar... São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 233.
122
dos três primeiros censores que avaliaram o recurso, “[...] a letra musical ‘Despejo na Favela’
deverá ter seu veto mantido, porque infringe o disposto no Art. 41, alínea d), do Regulamento
aprovado pelo Dec. Nº. 20493/46”.
172
Trocando em miúdos, com base no Decreto de 1946,
que criou o Serviço de Censura de Diversões Públicas, ligado ao Ministério da Justiça, em
particular, no artigo 41, alínea d, o corte se justifica: “Será negada a autorização sempre que a
representação, exibição ou transmissão radiotelefônica: [...] d) for capaz de provocar
incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas e seus
agentes”.
A canção Despejo na Favela havia sido gravada em 1969 por Nerino Silva e em
1971 pelo grupo de samba Titulares do Ritmo. Entretanto, desta vez a canção de Adoniran,
Despejo na Favela, é alçada a um perigoso meio de incitação contra o poder:
Quando o oficial de justiça chegou
Lá na favela
E contra o seu desejo
Entregou pra seu Narciso
Um aviso, uma ordem de despejo
Assinada "Seu Doutor"
Assim dizia a petição:
"Dentro de dez dias quero a favela vazia
E os barracos todos no chão"
É uma ordem superior
ô, ô, ô, ô, meu senhor
É uma ordem superior
Não tem nada não, seu doutor
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não
Vou sair daqui
Pra não ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema
Em qualquer canto eu me arrumo
De qualquer jeito eu me ajeito
Depois, o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás
Mas essa gente aí
Como é que faz?
ô, ô, ô, ô, meu senhor
172
Parecer nº. 13849/74, Seção Censura Prévia, de 04.09.1975, Fundo DCDP, Arquivo Nacional/ DF.
123
Numa das ginas do processo consta a letra, na íntegra, em que as censoras do
escritório da Guanabara redigiram à mão a seguinte justificativa: “O final da letra idéia de
protesto contra a ordem judicial e a condição social de Narciso na favela. Dessa maneira
opinamos pela interdição da mesma. 22/12/73.” Nesta mesma cópia, grifam a última parte da
letra, apesar de não discorrerem sobre a mesma. Segundo Ayrton Mugnaini Jr., este não seria
o primeiro corte junto à obra de Adoniran: Seu maxixe ‘Vai-da-Valsa’, de 1950, foi
sumariamente vetado na época, chegando ao disco meio século depois, na interpretação de
Passoca”. O autor lembra também que: “‘Despejo na Favela’, de 1969, foi alvo de implicância
dos militares, especialmente devidos aos versos: ‘Minha mudança é tão pequena que cabe no
bolso de trás, mas essa gente aí, hein? Cumé que faz?” (MUGNAINI JR., 2002, p. 124).
Com a proibição definitiva de Despejo na Favela em 1974, ela viria a ser gravada
em 1980, no LP Adoniran e Convidados, em que o compositor canta esta faixa ao lado de
Gonzaguinha, numa escolha propositada do intérprete na medida em que traz uma forte carga
de crítica social. Num dos primeiros trabalhos sobre Adoniran escrito por um historiador, e
pouco citado por muitos, no artigo intitulado Luzes da Cidade, Alcir Lenharo afirma sobre a
canção:
A utilização dos termos “senhor/doutor” para designar o executante de
“uma ordem superior” não é empregada aleatoriamente; constituem
expressões que advêm da linguagem do mundo colonial, e que retratam a
superioridade incontestável do branco sobre o escravo. Neste samba,
“senhor/ doutor” personalizam a ação devastadora do capital, destruidor do
espaço fraternal da favela (LENHARO, 1985, p. 51).
173
No tocante à interdição da canção Casamento do Moacir, do mesmo modo as censoras
da Guanabara anotam suas interpretações junto à letra de Adoniran, em parceria com Osvaldo
173
Ver também a análise destes espaços de sociabilidade em: MATOS, Maria Izilda Santos de. História e
Música: pensando a cidade como territórios de Adoniran Barbosa. História: Questões & Debates, Curitiba, n.31,
p. 31-48, 1999.
124
Moles: “VETADO – O péssimo gosto impede a liberação da letra, tendo em conta os
preceitos legais contidos no Dec. 20.493 de 46”. Para completar, corrigem unicamente o
trecho “a Turma da Favela convidaram-nos” ao escreverem “convidou-nos”. no parecer
emitido em Brasília os censores confirmam o veto “às letras musicais ‘Um Samba no Bixiga’
e ‘Casamento do Moacir’, considerado o art. 4 º da Lei 5.536/68, porque ambas letras são
vazadas em linguagem deseducativa”. Contudo, a Lei nº. 5.536, de 21 de Novembro de 1968,
que “Dispõe sobre a censura de obras teatrais e cinematográficas, cria o Conselho Superior de
Censura
174
, e outras providências”, em nenhum momento trata da censura de letras
musicais. É também nesta lei que é instituída a obrigatoriedade de formação superior para os
novos técnicos de Censura.
Assim, mesmo baseado no aparato jurídico criado pela ditadura, o corte era
questionável, pois a única passagem da lei que tangencia a justificativa utilizada para o veto
diz respeito unicamente às obras teatrais e cinematográficas: “Art. Os órgãos de censura
deverão apreciar a obra em seu contexto geral levando-lhe em conta o valor artístico, cultural
e educativo, sem isolar cenas, trechos ou frases, ficando-lhe vedadas recomendações críticas
sobre as obras censuradas”.
O parecer que proíbe Um samba no Bixiga também traz as mesmas anotações que as
anteriores, qual seja: VETADO A falta de gosto impede a liberação da letra”. Afinal, por
que uma canção como Um Samba no Bixiga (gravada em 1956 pelos Demônios da Garoa e
em 1964, por Portinho e sua Orquestra), composta no início da década de 1960 e apresentada
no Fino da Bossa em 1965, foi objeto de censura em 1974? Por um lado, esta interdição se
ampara na subjetividade do censor que, embora tenha uma série de preceitos legais a
174
Apesar da lei que criou este órgão, que contaria com a participação de representantes externos ao Governo,
ele foi regulado através de um decreto assinado em 13 de setembro de 1979. Com a criação, em 1968, do
CSC: “O poeta Carlos Drummond de Andrade, quando consultado sobre se aceitaria integrar o Conselho
Superior de Censura idealizado pelo ministro Gama e Silva, da Justiça: ‘Nem me falem nisso. Nasci para ser
censurado, jamais para censura”. In: Posto de Escuta. Manchete. Rio de Janeiro: Bloch, ano 15, . 823, 27 jan.
1968, p. 56.
125
observar, pode construir uma linha argumentativa pessoal para vetar o objeto analisado. Além
disso, o país vivia uma outra fase dentro da ditadura e isso gerou uma complexificação dos
órgãos de Censura e um maior controle da produção artística. Por exemplo, o aumento da
vendagem dos discos e a vulgarização dos aparelhos toca-discos também foram decisivos. De
acordo com Márcia Tosta Dias (2000, p. 55), em pesquisa aos dados da vendagem de discos
da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), em 1968 foram vendidos cerca de
18 milhões de discos (entre compactos simples e duplos e LPs), enquanto que, em 1974,
alcançou uma cifra de 31 milhões.
A “benevolência” dos censores fez com que a gravadora negociasse com a Censura a
liberação da canção fui uma brasa, parceria de Adoniran com Marcos César, como afirma
o Parecer nº 13849/74: “A letra ‘Já fui uma brasa’ é passível de LIBERAÇÃO, o que
propomos, se cortadas as duas últimas linhas do trecho falado. (art.41, ‘a’), comb. Arts. 43 e
53 do Reg.”. No veto da Guanabara, a “linguagem educativa” e repetitiva das censoras, falava
novamente na “falta de gosto” e grafaram desta vez a passagem “porque em baixo, se
assoprar/ pode ter muita lenha pra queimar”. Como as censoras entenderam que a questão era
outra, veio a proibição e os compositores foram obrigados a fazer uma pequena mudança nos
versos finais de Já fui uma brasa:
Eu também um dia fui uma brasa
E acendi muita lenha no fogão
E hoje o que é que eu sou?
Quem sabe de mim é meu violão
Mas lembro que o rádio que hoje toca
iê-iê-iê o dia inteiro,
Tocava saudosa maloca
Eu gosto dos meninos destes tal de iê-iê-iê,
porque com eles, canta a voz do povo
E eu que já fui uma brasa,
Se assoprarem posso acender de novo
(declamado):
É negrão... eu ia passando,
o broto olhou pra mim e disse:
é uma cinza, mora?
126
Sim, mas se assoprarem debaixo desta cinza
tem muita lenha pra queimar...
Aqui, Adoniran faz uma crítica à forma sazonal como alguns gêneros musicais se
sucedem nos meios de comunicação. Em particular, aponta como seu “samba antigo” é
esquecido frente ao que desponta como “moderno”, no caso, representado pela Jovem
Guarda. Esta canção revela também uma outra faceta da biografia do compositor, ou seja, o
caráter cíclico de seu sucesso numa diversa carreira no rádio, televisão, cinema e música. Para
muitos, João Rubinato é lembrado como o Charutinho, personagem do programa radiofônico
História das Malocas, baseado em sua canção Saudosa Maloca, e criado pelo produtor,
roteirista, seu parceiro e grande incentivador Osvaldo Moles (1913-1967). O programa é um
dos maiores sucessos da história do rádio: “esta radiopeça estreou em novembro de 1955.
Durante mais de dez anos [...] tornando-se uma das maiores audiências da Record” (ROCHA,
2002, p. 95).
Contudo, João Rubinato foi muitos. Foi ator em inúmeros filmes como no premiado O
Cangaceiro (1953); teve parcerias inusitadas com dois grandes poetas brasileiros: Vinicius de
Moraes (1930-1980) por intermédio de Aracy de Almeida (1914-1988) e duas composições
com Hilda Hilst (1930-2004), escritas para Adoniran quando do encontro de ambos no Bar do
Hotel Jarag (MUGNAINI JR., 2002, p. 118). Teve contato com curiosos compositores,
como Peteleco. Diferente de Chico Buarque que, para driblar a Censura, utilizou os
pseudônimos Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, Adoniran deu autoria a algumas de suas
canções ao seu cachorro Peteleco, desta vez para driblar as sociedades representativas de
classe. Outra composição que teve o nome de seu intérprete alterado pelo mesmo motivo foi
Samba do Arnesto, quando da inversão do nome de Nicola (Caporrino) para “Alocin”.
Voltando ao caso da Censura, no parecer da Guanabara, a canção Tiro ao Álvaro, mais
uma parceria de Adoniran com Osvaldo Moles, foi vetada com a mesma justificativa da
127
anterior. Em Brasília teve a seguinte decisão: “Recomendamos a LIBERAÇÃO da letra ‘Tiro
ao Álvaro’, desde que corrigidas as palavras ‘tauba’ (para BUA), ‘artomove’ (para
AUTOMÓVEL) e ‘revorve’ (para REVÓLVE)”. Senduvidamente, como diria o Professor
Pancrácio, personagem de Adoniran no filme Candinho
175
, esta breve passagem da Censura
brasileira é a prova de que não houve obscurantismo cultural durante a ditadura militar, afinal,
o bom gosto e a ngua portuguesa foram preservados pelos distintos e prestativos censores.
Assim, a despeito de ter sido gravada em 1960 por Adoniran e em 1966 no disco Os
Maracatins, gravação feita já no país sob a batuta dos militares, foi vetada desta vez.
Apesar desta possibilidade de se alterar a letra de Tiro ao Álvaro para sua gravação, a
canção não foi incluída no disco de Adoniran de 1974, o que somente foi feito em 1980, num
belo dueto com Elis Regina, no disco Adoniran e Convidados. Esta gravação contribuiu para
que uma outra geração conhecesse a obra do compositor.
Segundo Ayrton Mugnaini Jr., a canção Samba do Arnesto também teria sido proibida
no mesmo período, visto que todas estas canções fariam parte do primeiro LP individual de
Adoniran que até então havia gravado compactos simples e duplos. Apesar de não ter sido
encontrada em Brasília tal canção vetada, afirma o autor que foram interditas as letras de:
“[...] ‘Samba do Arnesto’, devido à imoralidade dos erros de português, e ‘Um Samba no
Bixiga’, lançado nos anos 1950 pelos Demônios, desta vez proibido por mencionar as
sacrossantas palavras ‘polícia’ e ‘sargento’”(MUGNAINI JR., 2002, p. 132). em 1985, o
inaugurador trabalho de Valter Krausche sobre Adoniran, trazia esta mesma versão em
relação à Samba do Arnesto: “[...] foi proibido por um decreto federal que não permitia o uso
‘errado’ do vernáculo no rádio, na TV, etc.” (1985, p. 79).
O sotaque ítalo-paulista presente nas composições de Adoniran foi considerado algo
impróprio para o Brasil novo dos militares pós-1964. Nesse sentido, depreende-se que o corte
175
Adoniran atuou em 18 filmes, como em Candinho, P&B, 95 min., 1953, dirigido por Abílio Pereira de
Almeida.
128
não é unicamente “lingüístico”, mas também de ordem política na medida em que a
linguagem utilizada pelos personagens encerra em si mesma uma dualidade. Como diria Alcir
Lenharo: “O sentido da transgressão se amplia quando a fala ‘errada’ visa diretamente atacar
não somente a fala do instituído e sim os seus próprios constituidores” (1985, p. 53).
Hoje pode soar irônico que o “péssimo gosto” e “a linguagem deseducativa” sejam
medidas para proibir qualquer que seja a obra artística, ainda mais pelo fato de ser comum
encontrarmos correções de censores com variados e elementares erros ortográficos. Porém,
não nada engraçado perceber que o difícil trabalho do compositor popular teve que
esbarrar nos mecanismos do Estado autoritário de então.
Considerada uma das principais estruturas do edifício da nacionalidade, a diversidade
lingüística foi, ao longo dos séculos XIX e XX, vista como empecilho à construção das
nacionalidades. A cultura dominante impôs-se, inclusive simbolicamente, como depositária
legítima de uma cultura nacional ou natural. Por exclusão, objetivou naturalizar a idéia de que
as culturas minoritárias eram ilegítimas: “como no caso da pressão sobre os falantes de
dialetos para julgarem o próprio discurso incorreto” (BURKE, 2002, p. 123). Para além disso,
ainda o preconceito em relação às variações lingüísticas, aliás, a exemplo do caso aqui em
apreço. Notadamente, no Brasil, como diria Possenti (2001), a variedade lingüística é o
reflexo da variedade social. Nesse sentido, as marcas sociais impressas nas falas ou imprimem
o status, no caso das elites, ou o estigma, no caso da fala das classes populares.
Outro dado é que, quando da tentativa de gravação destas canções de Adoniran, o
Brasil vivia uma forte censura, que não era unicamente avessa ao discurso político. Como
afirmado anteriormente, falar de um cotidiano de desigualdade social era também se contrapor
ao discurso do “milagre econômico” e do suposto desenvolvimento social trazido pelo Brasil
dos militares.
129
Logo, se eram recorrentes os pareceres preocupados com a “linguagem deseducativa”,
também eram freqüentes os pareceres com verdadeiros exercícios de retórica, seja por
convicção, seja como possível meio de obtenção de respeito e de ascensão na hierarquia dos
serviços de Censura. Por exemplo, no parecer 16182, de 1974, são visadas quatro canções do
músico brasileiro Sérgio Sampaio em que o censor se faz de verdadeiro crítico literário.
Em relação às canções de Sérgio Sampaio, O Bloco do Funil (“A noite então desceu e
a gente não dormiu/ Este é o primeiro grande carnaval do Rio/ Esta é a primeira grande ponte
que caiu/ Este é o primeiro grande coração do Rio/ Este é o primeiro grande primeiro de
abril...”), Vá tomar banho (“Não me encha o saco que eu não sou da sua escola,/ cuide da sua
vida pois a barra está pesada...”), O que será de nós (“Ando tão cansado e 26 anos é muito
pouco, meu amor/ Pra ter que suportar um quarto escuro como se eu fosse uma fera ou um
vampiro...”) e Sweet melo (“Luís Melodia, dias melhores virão... com seus blues de brasileiro
e americano, meu irmão!... Quem pode, pode/ Quem tem medo chupa cana/ Quem não tem,
come banana...”), afirma o censor:
Inegavelmente, as letras musicais acima citadas observam o mais alto
padrão literário, tendo sido elaborado no mais puro estilo lingüístico.
Entretanto, a perfeição das construções não elimina os agravantes de ordem
política, social e moral aí utilizadas como motivo para as músicas em
apreço. De maneira sutil, o autor se insurge e contesta os padrões sociais
vigentes, em crítica às autoridades e ao regime [que] faz calar a inteligência
e criatividade. Como exemplo, cito os versos da canção O QUE SERÁ DE
NÓS, que se seguem: - Se eu não nasci em Londres/ por isso não posso
cantar como John Lennon. Existem também críticas à construção da ponte
RIO-NITERÓI: Em geral, as letras obedecem à mesma linha o que
impossibilita, a meu ver, a sua liberação.
Com base no art. 41, alínea d, de Regulamento baixado pelo Dec. 20.493,
sugiro a NÃO LIBERAÇÃO. Brasília, 11 de junho de 1974.
Neste parecer ficam claras, além de certo pernosticismo, as linhas gerais do que era
passível de censura: crítica política e social; idéias contrárias à determinada moral; críticas ao
130
regime e às suas realizações, aqui, neste caso, temos o exemplo da ponte Rio-Niterói
176
,
símbolo da monumentalidade da engenharia implementada pelo Estado. Falar em noite, por si
só, era passível de atenção do censor visto sua freqüente metáfora com a longa noite
iniciada no dia primeiro de abril de 1964, data nunca reconhecida pelos militares como o dia
do Golpe, dado o risco da relação com o chamado “dia da mentira”, por mais que a partir dali
a verdade viesse a ter na versão oficial uma via de mão única.
Geraldo Azevedo, em seu depoimento, lembra o caso da censura à canção feita em
parceria com Geraldo Vandré, intitulada: Canção da Despedida, que pôde ser gravada no
Governo Figueiredo. Encontra-se um parecer no arquivo da DCDP de Brasília, datado de
1973, com o anexo da carta da Phonogram encaminhando a mesma canção que com o
título “Despedida” para os trâmites normais de aprovação e um anexo com a letra da canção.
Na cópia da letra aparece o carimbo de “aprovo”, apesar do censor ter sublinhado o trecho:
“Um rei mal coroado não queria/ O amor em seu reinado pois sabia/ Não ia ser amado”.
Provavelmente, a canção foi vetada numa última instância que, por sua vez, não consta do
material consultado.
A outra parte do parecer englobava num único título outras canções: A última valsa
(Gilberto Gil), Bandeira branca (Geraldo Vandré), Despedida (Geraldo Vandré/ Geraldo
Azevedo), Na terra como no céu (Geraldo Vandré), Qualquer dia desses (Luiz Cláudio/ P.
Tapajós) e a única censurada Canto Livre da América (Geraldo Vandré). Para o censor a
linguagem utilizada nestas canções era: “simples e romântica”, com tema “social”, tendo
como personagem “enamorados, bons, sonhadores”, de tema “social” e enredo de “letras
musicais explorando temas românticos populares”, cortes: “não há” e, por fim, a conclusão:
176
Na canção O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, temos uma passagem com a mesma crítica
às construções do período militar: “Caía a tarde feito viaduto [...]”.
131
“visto não haver implicações nem mensagens de cunho duvidoso, somos pela liberação sem
restrição de faixa etária”.
177
A letra de “Canção da Despedida”, diferente do que interpretou o censor, retrata bem a
forma de política defendida por Azevedo e o exílio de Vandré:
Já vou embora
Mas sei que vou voltar
Amor não chora
Se eu volto é pra ficar
Amor não chora
Que a hora é de deixar
O amor e agora
Pra sempre ele ficar
Eu quis ficar aqui
Mas não podia
O meu caminho a ti
Não conduzia
Um rei mal coroado
Não queria
O amor em seu reinado
Pois sabia
Não ia ser amado
Amor não chora
Eu volto um dia
O rei velho e cansado
Já morria
Perdido em seu reinado
Sem Maria
Quando eu me despedia
E no meu canto lhe dizia.
Apesar de proibida, Geraldo Azevedo cantou-a inúmeras vezes em seus shows ao
longo de toda década de 1970 e nunca teve problemas. Neste caso, uma prova de que a
censura e a repressão não conseguiam responder a todas as intervenções dos músicos e de
outros artistas. Desta vez, em parceria com Alceu Valença, Geraldo Azevedo tentou liberar a
canção Talismã
178
que tinha o seguinte trecho vetado: “Joana me deu talismã, viajar.” Para o
censor “Joana” e “viajar” faziam apologia ao consumo de drogas, pois “Joana” vinha de
177
Parecer nº 6028/73, datado de 09.08.1973, Fundo DCDP/ Brasília, p.129.
178
Do disco: VALENÇA, Alceu, AZEVEDO, Geraldo. Quadrafônico. Rio de Janeiro: Copacabana, 1972.
CLP11695. (vinil).
132
“marijuana” e “viajar” era o efeito alucinógeno da mesma. A dupla substituiu “Joana” por
“Diana” e a canção foi aprovada.
Quando a censura não bastava, grupos militares e paramilitares também podiam entrar
em ação
179
. Após o lugar no Festival com Pra não dizer que não falei das flores, canção e
show homônimo de Geraldo Vandré, este músico organizou uma série de apresentações com
o grupo Quarteto Livre que contava com Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos, Nelson
Ângelo e Franklin. Segundo depoimento de Azevedo ao autor, num desses espetáculos, em
1968, aconteceu um dos mais conhecidos atentados contra artistas. Vandré acabara de entrar
no carro e seu camarim sofreu uma violenta explosão. Por sorte, Geraldo Azevedo afirmou
que os músicos já estavam no carro e Vandré foi o último a sair antes da explosão. Após o AI-
5 o show foi proibido e Vandré teve que se esconder na casa da mulher de Guimarães Rosa
180
até conseguir com a ajuda de um delegado e de um passaporte falso entrar no Paraguai e daí
partir para o exílio no Chile.
A trajetória de Geraldo Vandré é motivo de muitas especulações. Seu apoio ao regime
militar quando de seu retorno do exílio, foi um baque para a oposição política. Acreditava-se
então que teria sido resultado de torturas ou de “lavagem cerebral” realizadas pelos militares
brasileiros. Versões à parte, vários dos entrevistados desta pesquisa tiveram algum contato
com ele na França, Chile e Brasil, e todos enfatizaram os problemas que Vandré enfrentava
naqueles anos (1969-1973). Araújo (2002) refaz estas andanças do músico até seu “acordo”
com os militares que viabilizou seu retorno. O pesquisador também revela uma canção pouco
comentada e que foi dedicada a Vandré, trata-se de Tributo a um rei esquecido, de Benito di
179
Como no caso da bomba do Riocentro, em 1981, quando da tentativa de atentado ao megashow do dia do
trabalhador organizado pelo Centro Brasil Democrático (CEBRADE), presídido por Oscar Niemeyer. A reunião
dos artistas ficou a cargo de Chico Buarque, que juntou uma constelação de estrelas e astros da MPB para as 18
mil pessoas que estavam num recinto fechado em que “das trinta portas de saída de emergência, 28 estão
[propositalmente] trancadas com cadeado (FIGUEIREDO, 2005, p. 318). A bomba preparada para o local
estoura, no interior de um puma, mais exatamente no colo de um dos dois militares terroristas que estavam nesse
setor da ação. Ao final, um morto, um aposentado por invalidez, um processo de investigação fraudado e os
militares de alta patente inocentados, a exemplo de todos os outros envolvidos na operação.
180
Depoimento de Geraldo Azevedo ao autor, no Rio de Janeiro, em 24 mar. 2005. Mais informações em
HOMEM DE MELLO (2003, p. 301) e em ARAÚJO (2002, p. 108).
133
Paula, gravada em 1974: “Ele foi um rei e brincou com a sorte/ hoje ele é nada e retrata a
morte/ ele passou por mim mudo e entristecido/ eu quis gritar seu nome e não pude [...] O que
foi que fizeram com ele?” (ARAÚJO, 2002, p. 106).
No caso dos pareceres da Censura sobre letras de música, reitera-se, é desfeita a idéia
de que somente as canções engajadas
181
eram objeto de veto. casos de proibição até de
músicas evangélicas. Em 1972, como era característico de então, chegou à Censura uma
relação de canções que se apresentariam num festival de música. Desta vez, porém, tratava-se
do “Primeiro Festival Brasileiro da Canção Evangélica” que se realizaria em Anápolis/ Goiás
e que contaria com 26 canções participantes. Quase todas são aprovadas, com exceção do
hino Poder Jovem em Cristo, de Luiz Alves dos Santos: “Jovem Lutai [...] Vede as drogas
causando maldição/ Jovens solitários estão sem direção/ Vamos destemidos a todos
proclamar/ Que Jesus Cristo é o Salvador”. O censor dá a palavra final: “[...] nada constei que
impeça a liberação, exceto da última, por conter alusão a drogas”.
182
Logo, bastava citar as
drogas para que viesse o veto. É o sintoma de uma esquizofrenia que lembra a proibição pela
Censura, em 1971, de uma declaração de Filinto Müller, presidente do partido da ditadura, a
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), em que afirmava não haver censura no Brasil.
Esta preocupação com as drogas não se limitou a estes casos, muito menos a este
período. Ficaram conhecidas as proibições em torno da canção O mal é o que sai da boca do
homem, de Pepeu Gomes, Baby Consuelo e Galvão que concorreu ao Festival MPB-80, da
TV Globo: “[...] você pode fumar baseado/ baseado em que vo pode fazer quase tudo/
181
Apesar da utilização do termo “engajada”, esta conceituação envolve uma dubiedade na medida em que pode
ser colocada em opostos, ora como fruto de uma ação menor (no caso da arte, esta é previamente caracterizada
como limitada por sua natureza), ora como portadora de uma carga positiva. Segundo Hobsbawn (1998), o
conceito de “engajamento” é usado: “como termo de desaprovação ou louvor (neste caso, muito mais raramente)
que a palavra é empregada, e quando é definida formalmente, as definições tendem a ser seletivas ou formativas”
(p. 138). O autor também reflete sobre a ausência do engajamento na produção intelectual: “É nessa situação
que o engajamento político pode servir para contrabalançar a tendência crescente de olhar para dentro, em casos
extremos, o escolaticismo, a tendência a desenvolver engenhosidade intelectual por ela mesma, o auto-
isolamento da academia”. Por outro lado, o autor revela seu oposto, ou seja, os riscos da sobrevalorização deste
mesmo engajamento: “De fato, ele pode ser vítima dos mesmos perigos, caso se desenvolva um ‘campo’ de
erudição engajada suficientemente amplo” (HOBSBAWN, 1998, p. 154).
182
Parecer s/nº, datado de 26.10.1972, Fundo DCDP/ Brasília.
134
contanto que você possua/ mas não seja possuído [...]”. Em 1984, seria a vez da banda Legião
Urbana ter a canção Dado Viciado, de Renato Russo, proibida pela Censura Federal em
Brasília. A letra recebeu quatro pareceres que chegaram a uma mesma conclusão, ou seja,
apesar da canção mostrar a situação deplorável a que chegou o jovem que fazia uso de drogas,
a censora Solange Hernandez, a Solange Tesourinha asseverou: “[...] a composição
referenciada veicula mensagem que pode suscitar interesse pelo uso de substâncias
entorpecentes”.
183
O grupo viria a gravar esta canção no CD Uma outra estação
184
, de
1997, com uma nota afirmando que o Dado em questão não se tratava do integrante do grupo
Dado Villa-Lobos, mas um personagem inventado.
Neste mesmo processo encontra-se aprovada a letra de Geração Coca-Cola, também
de Renato Russo, para gravação da Legião Urbana: “[...] Somos os filhos da revolução/ somos
burgueses sem religião/ somos o futuro da nação/ geração coca-cola/ depois de vinte anos na
escola/ não é difícil aprender/ todas as manhas de seu jogo sujo/ não é assim que tem que ser
[...]”. Portanto, neste período, se podia falar do desastre dos vinte anos de ditadura, mas
ainda alguns temas de cunho moral impunham o veto a algumas canções.
A década de 1970 foi marcada nos serviços de censura pela crescente proibição de
temas considerados imorais. Como a “imoralidade” entendida pelo governo poderia estar em
qualquer lugar, encontrou-se canções dos mais variados gêneros musicais e dos mais
diferentes níveis estéticos ou discursivos no index da Censura. Em 1973, a canção Em
qualquer lugar, de Odair José e Fernando Adour, foi vetada
185
por trazer uma “linguagem
insinuante”, ter como tema o “ato sexual”, apresentando um “personagem licencioso” que traz
uma mensagem negativa [que] prega a prática do ato sexual em qualquer local”. Por fim, o
183
Despacho nº 143/ 84, datado de 12.04.84, Fundo DCDP/ Brasília.
184
LEGIÃO Urbana. Uma outra estação. EMI Brasil, 1997, n º. 859321 2. Neste disco, encontra-se ainda uma
antiga canção, La Maison Dieu, de crítica ao período militar: “Eu sou a pátria que lhe esqueceu/ o carrasco que
lhe torturou/ o general que lhe arrancou os olhos/ o sangue inocente/ de todos os desaparecidos [...] Eu sou a
lembrança do terror/ de uma revolução de merda [...] eu não anistiei ninguém”.
185
Parecer nº 3985/73, datado de 15.06.1973, Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas/ Brasília.
135
censor enquadrou sua leitura da letra com a base legal que lhe servia de parâmetro:
Mais uma vez encaminhada à Censura, em grau de recurso, a presente letra
musical, mesmo tendo sofrido pequenas modificações, continua atentando
flagrantemente contras dispositivos censórios, como o art. 1º do Dec.–Lei nº
1.077/70 e o art. 41, alínea a, do Dec. 20.493/46. Ante o exposto, só temos a
nos manifestar contra a liberação da letra musical em epígrafe.
186
Destarte a preocupação dos censores com as letras das canções, o compositor
brasileiro Paulo César Pinheiro afirmou, numa entrevista para um programa de TV
187
, que
teve até mesmo melodias censuradas (a exemplo do que aconteceu com Edu Lobo em sua
música instrumental Zanzibar
188
). O mesmo compositor relembra que sua canção e de
Maurício Tapajós, Pesadelo, já citada anteriormente, "foi enviada no meio de outros discos
para passar”
189
. mesmo por descuido para ser aprovada tal pérola, cujo trecho grifado foi
usado no título deste capítulo da tese: "Você vai na marra/ ela um dia volta/ e se a força é
tua/ ela um dia é nossa [...] que medo você tem de nós/ você corta um verso/ eu escrevo outro/
Você me prende vivo/ eu escapo morto [...]”. Apesar da negociação entre os compositores e
os censores, reitera-se, o trabalho corria ainda o risco de todos os discos serem retirados das
lojas, mesmo depois da aprovação da DCDP.
Entretanto, muitas canções não tiveram problema com a Censura porque defendiam
exatamente as bandeiras do regime militar. Como na letra de Marcha Hino dos Ex
Combatentes, de Raimundo Boaventura Ferreira, de 1974: “[...] Brasil tu é gigante/ que tens o
símbolo da pátria avante/ com os teus grandes combatentes/ que enfrentaram todas jornadas/
186
Parecer nº 3985/73, datado de 15.06.1973, Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas/ Brasília.
187
Nossa Língua Portuguesa. TV Cultura, exibido em 05 de março de 2000.
188
Cujo veto foi feito em 1973, quando do envio à Censura do repertório do show Banquete dos Mendigos,
organizado por Jards Macalé e em comemoração aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A
referência a esta canção também aparece três anos antes no encarte do disco de Edu Lobo, Cantiga de Longe,
quando se referia ao fato de ser duas músicas suas sem seus usuais parceiros letristas: “Resolvidos Casa Forte e
Zanzibar, o resto veio vindo sem problemas [...] uma coisa eu posso garantir: não vai pegar no Carnaval” (grifos
meus).
189
Nossa Língua Portuguesa. TV Cultura, exibido em 05 de março de 2000.
136
longe das suas moradas/ Brasil terra varonil/ Brasil pátria amada”.
190
Este espírito veiculado
pela propaganda oficial frutificaria também no samba enredo Obra Divina, do Grêmio
Recreativo Carnavalesco do Cruzeiro: “[...] Hoje a engenharia construiu/ esta obra divinal/
transamazônica/ integração nacional/ canta lelê, canta lalá/ Este Brasil ninguém pode segurar/
Na passarela o cacíque vai se integrar”.
191
Nesse sentido, o arquivo da Censura revela também os efeitos propagandísticos das
imagens do país e das ações dos governos militares. Este clima partidário é igualmente
percebido nos argumentos dos censores, como no veto à canção de Taiguara, Porto da
Vitória. Num dos pareceres a censora de Brasília entendeu que o autor agiu com descaso para
com o país, portanto infligiu o art. 41, letra g, do Decreto 20493, de 1946.
192
Uma segunda
censora, desta vez da Guanabara, foi ainda mais direta: “A insatisfação não condiz mais com a
situação privilegiada de nosso país e o Dia da Vitória, nosso Brasil alcançou muito
tempo”.
193
A letra de Óculoescuro, de Raul Seixas e Paulo Coelho, foi vetada em razão de sua
mensagem “[...] negativa, induz flagrantemente ao descontentamento e insatisfação no que
tange o regime vigente e incita a uma nova ideologia, contrária aos interesses nacionais”.
194
Apesar do veto, no mesmo ano, Raul Seixas faria a trilha sonora de uma novela global”,
onde incluiria a canção Como vovó dizia, em parceria com Paulo Coelho, na verdade uma
adaptação de Óculoescuro. Portanto, impedido de gravar a letra original, realizou uma outra
versão: “Esta luz está muito forte, tenho medo de cegar [...] quem não tem colírio, usa
óculoescuro/ quem não tem visão, bate a cara contra o muro/ quem não planta agora, não
recolhe no futuro”. Segundo Juliana Abonizio (1999, p. 284), este trabalho para a Rede Globo
190
Fundo DCDP/ Brasília, sem outras informações, com um carimbo de aprovado e a assinatura e o número do
técnico de Censura.
191
Idem, sem número do parecer e aprovada em 20 fev. 1975.
192
Parecer nº 17705/74, datado de 26 jul. 1974, Fundo DCDP/ Brasília.
193
Idem, datado de 21 abr. 1974.
194
Idem, Parecer nº. 10207/ 73, datado de 12 nov. 1973, Fundo DCDP/ Brasília.
137
demonstrou os paradoxos de sua trajetória artística, pois, a “[...] a trilha sonora da novela O
Rebu foi inteiramente feita por Raul Seixas e Paulo Coelho, revelando seu caráter de
negociação com o poder apesar das críticas em relação ao mesmo”.
Este disco teve uma canção vetada: Murungando, interpretada por Betinho: “levanta a
cabeça mamãe/ levanta cabeça papai/ levanta a cabeça hipão [...] levanta a cabeça povão”. Ela
foi proibida pelo escritório Regional da Censura da Guanabara com base no artig 41, do
decreto 20493/46, no inciso: “d) for capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a
ordem pública, as autoridades constituídas e seus agentes”. O veto se justifica ainda porque a
censora entende que “[...] o autor, através de metáforas, implicitamente, diz que o povo anda
cabisbaixo e o induz a levantar a cabeça [...] na realidade, exortando o povo, ele está fazendo
da música um meio para atingir um fim”.
195
Como foi vetada num escritório regional deve ter
sido liberada através de recurso em Brasília, afinal a letra é a mesma da gravação do disco O
Rebu.
Em sua característica acidez empregada nas letras de suas canções, teve em Mosca na
Sopa uma de suas críticas mais elaboradas ao regime e aprovada sem qualquer problema por
dois técnicos de censura: “Cenas: das inconveniências de uma mosca; personagem: o autor e
uma mosca; mensagem: inexistente; Conclusão: em que pese a estupidez e o mau gosto,
somos pela liberação já que não atinamos a comprometimentos outros”.
196
Além de seu
inventivo ritmo que reuniu o baião com o rock, a letra revela quem era a mosca e quem era
sopa: “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa/ que pintou pra lhe abusar/ que perturba o seu
sono”.
Se na década de 1970 uma destacada preocupação da Censura com os temas e
palavras “imorais”, na década seguinte esta inquietação superaria os vetos aos temas políticos.
Até 1988, quando do fim da Censura, a maior parte das proibições esteve assente ao universo
195
Parecer nº. 686/ 74, datado de 12 nov. 1974, Serviço de Censura de Diversões Públicas/ Guanabara, cit. em:
ESSINGER, Silvio (org.). O Baú do Raul Revirado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 94.
196
Parecer nº 2056/73, datado de 09 abr. 1973, Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas/ Brasília.
138
de palavras que remetiam aos genitais, numa verdadeira fixação com o obsceno e com as
palavras ambíguas, em razão da cacofonia. Ainda em 1977, a música sertaneja também
sofreria esta modalidade de corte. A letra de Meu sangue por ti gela, de Léo Canhoto, sofreu
um veto parcial, por ser considerada: “composição medíocre utilizando-se da cacofonia para
tentar se tornar engraçada”.
197
Em 1980, Tom Jobim e o poeta Cacaso tiveram uma música vetada em razão da
palavra “bunda” e, o pior, não era de gente, mas de bicho: “Sovaco de cobra, dente de galinha,
bunda de lagarto e pena de sardinha”. O próprio Tom Jobim recorda com humor este
episódio: “[...] ora, lagarto não tem bunda, é evidentemente um animal parco de nádegas. A
censura não entendeu a brincadeira e vetou a palavra bunda. Isso pareceu ridículo, porque a
palavra está em todas as revistas, em toda parte, até na publicidade de televisão [...]” (JOBIM,
s./d., p.91).
Até mesmo a “rainha dos baixinhos” teve uma de suas canções vetadas por ter
empregado a mesma palavra: “[...] quanto à letra musical Banda da Xuxa, poderá ser liberada
irrestritamente, com a inclusão do autor ‘Robson Stipancovich’, desde que suprimida a
expressão ‘ai minha bundaacrescentada na presente versão”.
198
Chama a atenção que além
da preocupação com a palavra em apreço, o censor exigiu que o nome do compositor fosse
citado. O fato é que foi liberada em grau de recurso e gravada no disco Xegundo Xou da Xuxa,
de 1987. O chamado rock nacional também experimentaria neste mesmo período uma
freqüente onda de cortes. Muitas das canções tocavam nas rádios e tinham suas palavras
proibidas substituídas por um “bip”, o que tornava a mensagem até mais explícita e, por
vezes, mais eficaz.
O arquivo da Censura em Brasília guarda uma série de documentos esclarecedores do
controle da produção cultural durante a ditadura militar e parte do período de
197
Parecer sem nº. de identificação, datado de 23 mai. 1977, Fundo DCDP/ Brasília.
198
Parecer 566/87-SE/ DCDP, datado de 29 jun. 1987, Fundo DCDP/ Brasília. Este parecer foi assinado pelo
Diretor da DCDP em exercício, Raymundo Eustáquio de Mesquita.
139
redemocratização junto ao cinema, televisão, jornalismo, música e teatro. também uma
série chamada “sociedade civil” com documentos de associações portuguesas cobrando a
Censura para que esta proibisse piadas sobre portugueses em programas humorísticos de
televisão, o mesmo ocorrendo com associações de tradições gaúchas em relação às piadas
envolvendo gaúchos, de igrejas evangélicas contra canções consideradas blasfêmia, de
associações de proteção aos animais contra uma canção que pedia para que se “trocasse seu
cachorro por uma criança pobre”
199
, além de outras que constituiriam um rico anedotário
200
.
Contudo, exemplos, como alguns dos citados, que apontam efeitos perniciosos da Censura
e nada engraçados, como o apoio de setores da sociedade ao exercício do controle censório,
bem como um processo crescente de naturalização e de uma introjeção da censura nas
pessoas. Afinal, o que ficou disso tudo? O que dessa formação cultural, ora explícita ora
subliminar, nas pessoas que viveram aqueles anos? Qual a dimensão da repressão em relação
aos músicos e em que medida afetou toda a sociedade brasileira?
199
Já em meados de 1985, em relação à canção Rock da Cachorra, de Eduardo Dusek.
200
Aliás, este lado histriônico da Censura foi amplamente ridicularizado por Stanislaw Ponte Preta, o
pseudônimo de Sérgio Porto (1923-1968), em seus textos reunidos nos livros Segundo Festival de Besteiras que
assola o País: FEBEAPÁ 2 (8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976) e Na terra do crioulo doido:
FEBEAPÁ 3: a máquina de fazer doido (4 ed. Idem), em que ele lembra o veto de uma frase do texto da peça
Um uísque para o Rei Saul, “dita pelo Rei ‘Dei meus testículos para o bem do povo’ o censor sublinhou a
palavra testículos e anotou: corte-se isto!” (p.24); ou ainda quando ele imaginou que qualquer dia apareceria na
exibição da peça Édipo Rei, proibida pela Censura sob alegação de “que o texto é subversivo” , um “tira
disfarçado chapéu, terno escuro e duas 45 na cintura querendo saber como é que pode intimar o tal de
Sófocles a depor no DOPS” (p.18); entre outras histórias deste escritor que morreria no conturbado 1968, ano da
primeira edição destes dois livros..
140
CAPÍTULO 2: A REPRESSÃO
Uma das organizações não-governamentais mais conhecidas no mundo é a Anistia
Internacional, não sem razão, que a instituição é voltada à luta contra a violência. Esta
organização foi criada em 28 de maio de 1961, inspirada numa notícia publicada no jornal
inglês The Observer sobre a prisão de dois estudantes portugueses sob a justificativa de terem
gritado “Viva a Liberdade!” numa via pública. Sensibilizado pelo caso, o advogado britânico
Peter Benenson conseguiu em apenas dois meses mobilizar duas mil pessoas e, dez meses
depois, a Anistia Internacional deu início à sua empreitada numa “ajuda prática às pessoas
presas devido às suas convicções políticas ou religiosas, ou em virtude de preconceitos raciais
ou lingüísticos”.
201
Esta inspiração podia ter sido originada de inúmeros países no mundo,
entre eles também o Brasil, em particular após o Golpe Militar de 1964.
Para construir um mapa do controle político junto à produção musical e de seus
agentes mais diretos, os músicos, seria necessária uma pesquisa de cunho mais quantitativo
junto aos arquivos da polícia política de ambos os países, tarefa de grande envergadura para
uma única investigação. Um outro dado a ser enfatizado é que, com a abertura de inúmeros
arquivos da repressão e dos serviços secretos de inúmeros países, o tema tem sido encarado
com muito interesse por setores da sociedade, interessados na história recente e na própria
imagem que o regime construiu das pessoas ali citadas/ vigiadas. Entretanto, a leitura desta
documentação exige uma significativa acuidade na medida em que se trata de um material
com uma visão unilateral dos processos políticos e culturais. Portanto, revela mais a imagem
construída pelos regimes autoritários em relação ao que vislumbravam ou identificavam como
oposição política que propriamente um registro verídico dos fatos acumulados e encadeados
de acordo com o interesse destes governos.
201
Disponível no site da Seção Portuguesa da A.I.: <http://www.amnistia-internacional.pt/sobre_ai/sobreai.php>.
Acesso em: 17 jul. 2005.
141
Nesta documentação uma leitura da realidade que se concatena com uma imagem
até mesmo difusa do que era passível de observação e de controle. Tal subjetividade se torna
ainda mais latente quando a polícia política observa e registra suas impressões sobre as
manifestações culturais e sobre as obras dos intelectuais, por mais que também se tenha
valido, em menor número, de intelectuais alinhados à posição oficial. No tocante às fichas
políticas produzidas por estes setores, também analisadas nesta tese, Marcelo Ridenti (2000,
p. 41) alerta: “Estas dizem muito mais sobre a ideologia e a burocracia policial do que as
efetivas ligações políticas dos investigados [...]”.
em Portugal e no Brasil uma narrativa comum quanto ao papel que os cantores
mais engajados, cultural ou politicamente, tiveram em suas realidades nacionais. No entanto,
esta história não abarca a repressão aos músicos em seu todo, mas sim aos cantores inseridos
nos grandes meios de comunicação e na indústria fonográfica. Certamente que, em razão da
vulgarização de suas canções junto a um público mais amplo, eles tiveram uma maior
inserção social, entretanto isso não correspondeu a uma caracterização do controle junto a
todos os outros setores.
Portanto, há uma recorrência na bibliografia brasileira, mais marcante do que na
portuguesa, em atribuir a uma rede de músicos/ compositores uma significativa influência na
vida política e cultural do país. Esta narrativa presente numa determinada história da “música
popular brasileira” de certa maneira ofuscou uma visão mais generalizante das especificidades
regionais e de gêneros musicais diversos. Trocando em miúdos, toma-se enquanto
representativos de um determinado período da história brasileira os músicos que encontraram
respaldo e evidência na indústria cultural.
202
Tal prática historiográfica (ou ainda de cunho
202
Conceito utilizado por Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) para caracterizar um
processo que determinou uma crescente mercantilização das formas culturais pela indústria do entretenimento
desenvolvida, primordialmente, nos EUA. O termo indústria cultural foi empregado pela primeira vez em 1947,
de certa forma, em substituição ao termo cultura de massas que, segundo os autores, vendia a idéia de produtos
culturais advindos da/ e para as massas. Nesse sentido, os músicos estão diretamente relacionados, em maior ou
142
jornalístico ou memorialístico) tem suas justificativas plausíveis quando se leva em
consideração a difusão deste cancioneiro de forma mais duradoura, ampla e freqüente por
meio dos meios de comunicação junto à população. Por outro lado, uma série de lacunas
no tocante à produção de músicos e de intérpretes que tiveram uma tímida inserção nesta
mesma mídia nacional.
Com base nesta reflexão, esta pesquisa buscou encontrar não uma totalidade
inalcançável de toda a produção musical do período, mas uma tentativa de traçar uma visão
geral dos diferentes neros musicais censurados e, em particular, a trajetória daqueles
músicos que aliaram a atividade musical com a militância política, o que se traduziu, em
muitos casos, em exílio e posteriores atuações no exterior. Tal opção não tem o intuito, nem
mesmo a preocupação, em valorar positiva ou negativamente uma distinção entre músicos
engajados e os “não engajados”, mesmo porque o limite aí convencionado é deveras relativo .
Um outro ponto a se destacar é que, ao se abordar a repressão nestes dois países entre
as décadas de 1960 e 1970, é necessário enfatizar que não foi a classe artística a mais atingida
pelas ações repressivas. Em ambos os países a repressão atingiu mais duramente os
movimentos dos trabalhadores, os opositores políticos de maior expressão e os movimentos
armados. Neste último campo, a repressão portuguesa foi ainda mais violenta em relação aos
movimentos de libertação colonial. Contra estes diferentes grupos, a tortura foi amplamente
utilizada. Enquanto os agentes portugueses torturavam nas colônias africanas, sessões de
tortura também foram feitas por militares brasileiros no Chile e na Argentina.
Se no dizer de José Cardoso Pires a Censura era uma “máquina de torturar palavras”, a
tortura por sua vez foi a máquina de triturar a oposição política e até mesmo pessoas que não
tinham envolvimento com movimentos de contestação. No caso português, a partir das lutas
de libertação das colônias portuguesas na África, uma onda de terror foi espalhada pela PIDE.
menor grau, à toda esta rede complexa que envolve os produtos culturais.
143
Em Moçambique, os relatos de tortura suplantaram em gênero e grau os métodos de tortura
utilizados na Metrópole:
O professor da escola de Chimdza sofreu igual tratamento [de um outro
jovem queimado], além de lhe terem deitado gasolina na cabeça, deitando-
lhe o fogo; logo de seguido, isto tudo com ele amarrado em suspenso,
puseram-lhe gasolina na região do baixo abdômen e deitaram-lhe fogo
também. Com uma faca esburacaram-lhe as pernas e em cujos buracos
punham pólvora que incendiavam. Este homem foi salvo por um padre da
Missão de Jécua que foi o procurar as prisões da Pide a pedido da família.
então o libertaram depois de tratado na enfermaria do quartel de Vila de
Manica.
(TORTURA NA COLÔNIA DE MOÇAMBIQUE, 1977, p. 124).
Casos de estupro também foram freqüentes nas colônias. Na mesma obra citada acima
é relatado o caso da filha de um pastor moçambicano, estuprada por quinze “flechas”, que
eram os milicianos recrutados pela PIDE localmente e não menos violentos que seus líderes.
Não bastasse a Censura, relatos de livros queimados também foram recorrentes nos
depoimentos das vítimas. Preso em novembro de 1964, sob a acusação de fazer parte de
movimentos de libertação colonial, Aluman Chingalilo foi preso e torturado em Moçambique.
Ele relata o uso de técnicas como enforcamento, uso da palmatória, de chicote e cassetete
203
,
sendo obrigado a ficar em pé durante dias, sem alimentação e água. Presenciou a morte de seu
primo Nirambane, que esteve preso numa cela cheia de água até sua morte. Este tipo de
tortura em celas com água era a maneira de matar sem deixar sinais evidentes de tortura:
Na verdade, a Pide considerava que a morte à pancada constituía um
descuido. Na Machava, quando queriam matar um recluso levavam-
no para uma cela especial, tiravam-lhe a roupa, não lhe davam
comida e submetiam-no ou melhor mantinham a cela com o chão
203
Ver que este tipo de agressão também era freqüente no Brasil, como relata o jornalista Flávio Tavares durante
sua prisão em 1969: “No pátio do quartel da Polícia do Exército, o major-chefe do PIC (Pelotão de Investigações
Criminais) me recebe com uma mangueira de borracha dura nas mãos, em farda de campanha, e ali mesmo
começa a operação bélica” (TAVARES, 1999, p. 28).
144
molhado. Os reclusos, exaustos, acabavam por se deitar exaustos no
chão e então a fraqueza, ao fim de 15 dias, aliada ao frio, matava-os.
(TORTURA NA COLÔNIA DE MOÇAMBIQUE, 1977, p. 113).
Em relação ao depoimento do também moçambicano Rafael Jossias Nhamussua, preso
em 1970, durante o interrogatório: “Como o declarante dissesse que nada sabia sobre a
Frelimo foi esbofeteado pelo agente que lhe disse: ‘Não se engane. Não tenha ilusões. Eu
matando-o não tenho culpas perante o governo’” (TORTURA..., 1977, p.14). Logo, além da
liberdade de ação nas colônias e na Metrópole, a repressão ainda tinha como pretexto o estado
de guerra, no caso contra os grupos armados de libertação colonial. Situação semelhante
tendeu a ser experimentada em Portugal e no Brasil quando da formação de grupos
revolucionários no final da década de 1960.
A partir de meados da década de 1960 estes grupos armados portugueses surgiram
dispostos a derrubar a ditadura por meio da luta armada. Em razão de suas estratégias, mais
que iniciarem uma guerra civil, realizaram operações de médio e grande porte contra o
governo. Entre estas organizações temos a Liga de União e Acção Revolucionária (LUAR), a
Acção Revolucionária Armada (ARA), a Frente de Acção Popular (FAP) e as Brigadas
Revolucionárias (BR). A LUAR chegou a contar com músicos aqui abordados na tese para o
trabalho de divulgação, entrega e recebimento de mensagens do grupo, no país e no exterior.
Uma das ações mais espetaculares foi realizada pela LUAR, em maio de 1967, com o assalto
à uma agência do Banco de Portugal na cidade litorânea de Figueira da Foz, onde o: “[...]
comando que levou a cabo a operação com êxito total, incluía elementos com uma longa
prática antifascista e revolucionária, recolhidas na América latina, sobretudo no Brasil, junto
da emigração política” (MARTINS, 1980, p.15).
Em 1968, a direção da LUAR foi presa antes mesmo de iniciar uma nova ação voltada
a criar uma zona libertada” em Covilhã. O líder do grupo, Palma Inácio conseguiu fugir da
145
cadeia da PIDE no Porto em maio de 1968. Segundo Martins (1980), entre 1969 e 1973
seriam empreendidas outras ações em Portugal, na França, em Luxemburgo e Roterdam, as
duas últimas em ações contra consulados. Em fins de 1973, novos membros foram presos e as
denúncias de tortura foram freqüentes. Quanto à ARA, esta teria ramificações com o PCP, até
então historicamente desligado de ações armadas em Portugal. Diferente da primeira, esta
organização privilegiou ações armadas e sabotagens contra as estruturas e materiais bélicos
utilizados na Guerra Colonial.
As BR tiveram maior longevidade e também se caraterizaram por ações armadas
voltadas a desestabilizar o regime. Na pasta do poeta Manuel Alegre, nos arquivos da PIDE,
encontrou-se um recorte do jornal A Província de Angola, de abril de 1973, informando que
os: [...] dirigentes responsáveis das ‘Brigadas Revolucionárias’ ausentes no estrangeiro, na
sua quase totalidade, são os seguintes indivíduos: Fernando António Pereira Santos, Manuel
Alegre de Melo Duarte, Carlos Carneiro Antunes [...]”. Na seqüência aponta uma faceta que
caracterizaria o modus operandi do grupo: fortes suspeitas de que as sabotagens
cometidas em 6 do corrente na cidade do Porto, tenham sido efectuadas também pelas
‘Brigadas Revolucionárias’”.
204
Diferente da diversa e numerosa produção historiográfica acerca das organizações
armadas que foram criadas no Brasil no mesmo período, em Portugal não uma produção
significativa sobre o tema. Entretanto, a questão ainda envolve certo incômodo em muitos dos
ex-militantes, não sendo um dos assuntos mais propícios a se obter muitas informações
através de entrevistas, pois estes casos, apesar de ocorridos quase quatro cadas, ainda
geram certo desconforto.
205
Esta atuação política mais incisiva foi gerada a partir da
radicalização de um trabalho realizado pelo PCP décadas. Esta militância política gerou a
204
Arquivo IAN/TT, PIDE-DGS, Pasta Manuel Alegre de Melo Duarte, Proc. 2563, CI(2), NT-7217, p. 107.
205
A brevidade com que foi tratado este tema no presente texto não se coaduna com sua relevância para se
entender os debates e as ações em relação às estratégias de luta pelo fim da ditadura e pelo socialismo.
146
necessidade de alguns de seus quadros viverem na clandestinidade e no caso do PCP, “[...] no
período de 1957 a 1965, foram assaltadas 40 casas clandestinas, encontradas pela PIDE e
presos 122 funcionários (homens e mulheres) do PCP” (SEABRA, 1999, p.28).
A negação da existência da tortura, exercida também contra os militantes citados
anteriormente, foi uma constante nos dois regimes. No Brasil, encontra-se uma referência no
DOPS paulista em relação ao caso da tortura do músico chileno Victor Jara. Neste
documento, é ridicularizada a denúncia da viúva Joan Jara quanto às mãos cortadas de seu
marido no Estádio Nacional de Santiago, no Chile, imediatamente após o Golpe de Estado
liderado por Pinochet.
Ainda no tocante a tortura, que se enfatizar que ela não atingiu “unicamente” sua
vítima, mas também sua família, bem como contribuiu para que se cristalizasse como prática
policial até a atualidade, como afirma a importante pesquisadora do tema no Brasil e ativista
do Grupo Tortura Nunca Mais, a psicóloga Cecília Coimbra:
É importante lembrar que, naquele passado recente, o opositor político foi
seqüestrado, torturado, isolado, assassinado, ocultado e enterrado como
indigente, perpetuando-se assim a tortura sobre seus familiares e amigos.
Hoje, as mesmas práticas são aplicadas aos pobres em geral, aos excluídos,
aos também chamados “perigosos”, que são aniquilados como simples
objetos. O extermínio dos subalternizados tem sido plenamente justificado
como uma necessária “limpeza social”, aplaudido pelas elites e por muitos
segmentos médios de nossa sociedade. Como no período da ditadura
militar, também hoje, nesses tempos neoliberais, o “inimigo interno” deve
ser não somente calado, mas também exterminado.
206
No Brasil, a tortura foi utilizada durante o período colonial contra escravos
africanos e indígenas. Com o intuito de obter informações de ordem política foi também
prática recorrente durante o Estado Novo (1937-45). Contudo, como diria o jornalista Élio
206
COIMBRA, Cecília. Tortura ontem e hoje: resgatando uma certa história. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-73722001000200003&script=sci_arttext&tlng=pt>. Acesso em 13
nov. 2005.
147
Gaspari: “Os oficiais-generais que ordenaram, estimularam e defenderam a tortura levaram as
Forças Armadas brasileiras ao maior desastre de sua história” (2002b, p.17). Gaspari faz ainda
uma sugestiva comparação: “No caso brasileiro, faltou ao surto terrorista a dimensão que lhe
foi atribuída. no segundo semestre de 1970 explodiram 140 bombas nos Estados Unidos
número superior, de longe, a todas explosões ocorridas no Brasil” (2002b, p. 18). Logo,
segundo o autor, apesar dos atos “terroristas”
207
em maior quantidade, o governo norte-
americano não utilizou a tortura internamente
208
. Por outro lado, a Escola das Américas e os
serviços de inteligência norte-americanos forneceram cursos para agentes da repressão de
inúmeras ditaduras, entre elas, as do Brasil e Portugal.
Seria de grande valia para a pesquisa histórica deste período se todos os arquivos de
documentação da ditadura brasileira fossem abertos à consulta pública, logicamente,
salvaguardados direitos elementares dos cidadãos.
209
Este material contribuiria na explicação
de lacunas históricas do período militar, como na elucidação das mortes e até na localização
dos restos mortais dos desaparecidos políticos.
210
Um outro agravante em relação a estes
207
O autor, com base em parte da documentação de organizações de esquerda, utiliza-se do termo “terroristas”
em detrimento do termo “revolucionário”. Logo, Gaspari opta, apesar da justificativa, por utilizar a pecha
imposta pelos militares aos opositores da ditadura mediante o uso de um termo ideológico e carregado de
significados ligados a atos insanos, débeis, impensados. Esta obra citada faz parte de sua coleção intitulada
Ilusões Armadas, afora algumas incorreções, este trabalho traz uma dubiedade durante sua leitura. Há uma
riqueza de detalhes, de informações que coincidem com as pesquisas até aqui realizadas em outros arquivos,
resultado de uma pesquisa de grande envergadura, mas uma questão muito incômoda que perpassa todos os
volumes. Trata-se de uma pseudo-neutralidade em relação ao embate entre os setores dos militares no tocante ao
Golpe e à sua continuidade. A obra maximiza a divisão entre linha dura e moderados a ponto de levar o leitor a
acreditar que somente com um desses setores seria possível o Golpe e a sua manutenção por vinte anos. Na
intenção de derrubar mitos e maniqueísmos, estas releituras podem atingir também um outro extremo,
suavizando o papel dos militares no desenvolvimento e na agudização da violência institucional.
208
Durante a chamada “Guerra do Iraque” os casos de tortura aos prisioneiros iraquianos provam que esta
estratégia não foi abandonada pelo Exército e pelos serviços de inteligência norte-americanos.
209
No Brasil, diferente desta demanda da sociedade, dois dias antes de sair da Presidência da República,
Fernando Henrique Cardoso, assinou o Decreto 4.553, publicado no Diário Oficial em 30 de dezembro de 2002,
ampliando o prazo de sigilo dos arquivos governamentais e possibilitando uma eterna prorrogação da
documentação classificada como ultra-secreta. Muito embora tal decreto tivesse 45 dias para ser revogado, o
presidente Luís Ignácio Lula da Silva, em 2004, apesar dos inúmeros protestos e críticas ao ataque à memória
nacional e à inconstitucionalidade do decreto, simplesmente alterou o prazo de consulta desta documentação (de
50 para 30 anos o prazo de consulta dos documentos considerados ultra-secretos por meio da Medida Provisória
nº. 228, editada em 09 de novembro de 2004). Em 2005, parte desta documentação foi liberada, com exceção
daquele material enquadrado pelo próprio Governo como “ultra-secreto”.
210
Como diria o sico brasileiro Gonzaguinha, com participação especial do MPB-4, em sua canção Pequena
história para um tempo sem memória (a legião dos esquecidos): “são cruzes sem nomes/ sem corpos, sem datas/
148
arquivos é que uma relativa parte da documentação oficial pode estar em porões das polícias
estaduais, nos arquivos de delegacias da Polícia Federal, em empresas estatais, além de uma
extensa documentação existente nos serviços de inteligência das Forças Armadas, no
Ministério da Justiça, entre outros. Com exceção dos arquivos liberados à consulta em alguns
dos DOPS,
Pastas e mais pastas com informações relevantes estão depositadas nas
repartições policiais e militares e em outros lugares incertos e não sabidos. Não
é preciso ir longe em busca de exemplo. Aqui mesmo, debaixo de nossos
narizes, no arquivo da Delegacia da Polícia Federal de Foz do Iguaçu, milhares
de documentos registram informações importantes para quem estiver
interessado em pesquisar o período ditatorial. Especificamente sobre Foz do
Iguaçu e região Oeste, estão no arquivo da PF, depositados no porão, onde
antes funcionava a carceragem, documentos sobre a esquerda, movimentos
sociais, conflitos de terra, imprensa, índios Avá-Guaranis, igreja e Itaipu.
211
Quanto aos arquivos similares de Portugal, como a documentação da PIDE, o nome de
informantes e demais envolvidos nos mais variados casos da ditadura foram ocultados, sob a
justificativa de preservar a imagem dos citados, mas em detrimento do direito ao pleno
conhecimento da história do país. Por outro lado, tal cuidado pode até ser plausível no que
tange as informações sobre as vítimas, mas não sobre os seus algozes. Na apresentação do
Guia de Exposição da PIDE/ DGS, José Mattoso explica a particularidade deste arquivo:
A violência humana nele contida não se apaziguou ainda suficientemente.
ainda muitas feridas abertas e muita matéria confidencial que o respeito
pela dignidade da pessoa humana obriga a manter secretas. A lei de bases
dos Arquivos determina que as matérias relativas à vida privada seja de
quem for só possam ser comunicadas 50 anos depois de sua morte.
(MATTOSO, 1997, p. II).
memória de um tempo onde lutar/ por seu direito/ é um defeito que mata [...]”, presente em: GONZAGA JR.,
Luiz. De volta ao começo. Rio de Janeiro: EMI, 1980. 33 rpm, stereomono, n. 064 422863D.
211
PALMAR, Aluízio. Documentos revelam participação de Itaipu na Operação Condor. In:
<http://www.torturanuncamais-rj.org.br/Artigos.asp?Codigo=32>. Disponível em 05 abr. 2005.
149
Apesar desta crescente violência por parte das ditaduras, tanto no Brasil como em
Portugal, não houve uma forte oposição da direção da Igreja. Porém, setores eclesiásticos no
final da década de 1960, iniciaram nos dois países uma crescente crítica às ditaduras. Esta
inserção de religiosos nos movimentos de contestação ao regime ditatorial português, por sua
vez, gerou preocupação à polícia política portuguesa, como atestaram três relatórios
intitulados “Actividades subversivas do clero progressista”, de janeiro e março de 1970,
presentes na pasta do músico José Barata Moura. Num destes documentos é registrada a
ocorrência de um espetáculo musical em Azeitão, que contou com a participação de Barata
Moura (que não era religioso), e que foi organizado pelos: “[...] padres Manuel Frango de
Sousa e António Rodrigues Correia, párocos de Azeitão e Palmela, respectivamente”. Este
evento apontaria para a PIDE a “[...] a campanha de subversão da juventude em que está
empenhado o clero progressista desta cidade, e para a qual tem oferecido ambiente propício o
‘Liceu Nacional de Setúbal’ [...]”.
212
Neste evento, segundo o chefe do posto da PIDE local Fernando José Waldeman do
Canto e Silva: “[...] pelo Barata Moura, foram cantadas as usuais ‘baladas’ tendenciosas,
intituladas ‘Biafra’, ‘Morte’, ‘Telejornal’, etc. Pelo Pedro Lobo, indivíduo que está associado
ao padre Fanhais nas obras que este canta, foram cantadas mais umas ‘baladas’ [...]”
213
, além
de poemas declamados por Deniz Cintra. Novamente de Setúbal viria um outro relatório
214
de
espetáculo progressista que tinha entre seus músicos, além de Barata Moura, alguns religiosos
como o “padre-operário” Elizário Dias de Sousa e o “‘padre’ de nome José Luis e mulher”, e
que contou ainda com a presença do padre José da Felicidade Alves.
212
Arquivo IAN/TT, PIDE-DGS, Pasta José Barata Moura, Proc. 4386/ 71 - SR, NT-3937, Informação nº. 20/70,
de 26 jan. 1970. Nesta pasta encontra-se ainda uma série de registros sobre o músico Barata Moura, como a sua
ficha profissional relacionada a um contrato como professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
(de onde se tornou reitor), em que consta ainda um sugestivo carimbo: “Não oferece garantia de cooperação na
realização dos fins superiores do Estado. 24 set. 1971”. Afinal, era necessária um “nada consta” da DGS para a
contratação de funcionários públicos. Conta ainda com um “Auto de Declarações” do músico na DGS em Lisboa
em que o músico é interrogado sobre sua participação nos espetáculos e na vida política do país.
213
Idem.
214
Ibidem, Informação nº. 64/70, de 24 mar. 1970.
150
Outro espetáculo que envolveu religiosos na mesma região, de acordo com o
documento, ocorreu em 20 de dezembro de 1969 no salão da Sociedade Filarmônica
Humanitária de Palmela, com o nome de Recital de Música Portuguesa. Nesta oportunidade
contou com a participação de Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Barata Moura,
Grupo Intróito, “Nuno Mendes, locutor do ZIP-ZIP”, e constava “[...] ainda do programa o
Padre Francisco Júlio Amorim Fanhais, o Padre Fanhais, que não compareceu por motivo de
doença, segundo alegaram. Foram cantadas rias canções e ditos alguns versos, todos
tendenciosos e de características subversivas [...]”.
215
De acordo com este relatório, o evento foi organizado por jovens da cidade sob a
justificativa de angariar fundos para uma biblioteca paroquial, mas que, na verdade, estaria
ligada à uma política nacional do [...] ‘Clero progressista’, em íntima colaboração com
diversos elementos muito referenciados pelas suas actividades dentro do ‘P.C.P.’. Esta
tarefa, segundo constou, é orientada à escala nacional por um padre de nome Magalhães,
residente em Cascais”.
216
Portanto, este documento revela a preocupação da polícia política
com o baixo clero que, a exemplo do Brasil, chegou a participar até mesmo no apoio logístico
de grupos armados. Um diferencial deste relatório é que desta vez o chefe do posto da PIDE
de Setúbal revela suas fontes, mas que podem tratar-se de pseudônimos: “[...] esta informação
foi elaborada tendo por base os dados que me foram fornecidos pelos nossos colaboradores
‘Manuel Jaime’ e ‘Manuel da Igreja’”.
217
Em Portugal, um outro marco deste conflito entre a Igreja progressista e o regime foi o
caso do cerco policial à Capela do Rato
218
(em Lisboa) durante uma vigília realizada contra a
ditadura e contra a guerra colonial, no final de dezembro de 1972. No Brasil, um dos casos
215
Arquivo IAN/TT, PIDE-DGS, Pasta José Barata Moura, Proc. 4386/ 71 - SR, NT-3937, Informação . 1/70,
de 03 jan. 1970.
216
Idem.
217
Ibidem.
218
Não bastasse a repressão, havia ainda a proibição de se divulgar o caso, como aparece numa circular
confidencial da DGS de 12427 (conforme cópia existente no Centro de Documentação 25 de Abril), que
proibia em todo país uma relação de livros, entre eles O caso da Capela do Rato no Supremo Tribunal
Administrativo, de Francisco Zenha (e outros), da Editora Afrontamento.
151
mais conflituosos esteve ligado ao esquema de fuga de militantes políticos brasileiros com o
apoio dos dominicanos. Apesar do empenho político do baixo clero, a cúpula da Igreja
manteve seu apoio aos regimes, porém de forma mais discreta após os relatos e denúncias de
tortura e de mortes.
No Brasil, alguns dos arcebispos de extrema direita mantiveram de forma ferrenha o
apoio aos militares, inclusive recusando-se a interceder por religiosos presos e torturados.
Homens e mulheres foram abandonados por parte da direção da Igreja no Brasil e no
Vaticano. Apesar disso, alguns líderes destacaram-se na luta contra a ditadura, como D. Paulo
Evaristo Arns, D. Hélder Câmara, D. José Maria Pires e D. Pedro Casaldaliga
219
, entre outros.
Os contatos entre as ditaduras portuguesa e brasileira podem ser observados nos
arquivos das polícias políticas de ambos os países, em particular, entre as décadas de 1960 e
1970. Por exemplo, no campo cultural, as peças teatrais portuguesas apresentadas no exterior
eram visadas pela Censura em Portugal e durante sua apresentação no estrangeiro eram
conferidas pelos cônsules portugueses (AZEVEDO, 1999, p. 190). Neste contexto, as
embaixadas são importantes pontos de apoio entre um governo e outro. Logo, o embaixador
português recebia informações do DOPS que, por sua vez, também as enviava diretamente à
PIDE. Em Portugal, o embaixador brasileiro desenvolveu a mesma função após o Golpe de
1964.
Um tema freqüente destes relatórios está ligado também às atividades dos estudantes
portugueses e brasileiros. Por exemplo, em um documento secreto do arquivo da PIDE, em
que aparece um título “Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro”, revela um relatório geral
da “semana de 14 a 20 de janeiro de 1962”, feito por um informante não identificado, para a
Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro e reencaminhado à PIDE. Neste relatório fica claro
219
No Arquivo do DOPS/ PR, em sua ficha individual de n.º 29.141, de 10/03/80, consta que “participou de Ato
Público realizado no Colégio Estadual do Paraná, dia 29-02-80, ocasião em que foi discutida a devolução de
terras dos índios Kaigang”. que se ressaltar sua atuação também no campo musical ao lado de Milton
Nascimento e Pedro Tierra na composição do disco Missa dos Quilombos, de 1982.
152
que o informante participava dos círculos denunciados mediante informações pormenorizadas
das ações dos antisalazaristas portugueses no Brasil. No relato são explicitadas tais relações
entre as polícias políticas: “Entre as minhas relações nos meios jornalistas, figura Henrique
Cabanas, da Última Hora’, e da UNE, membro do Partido Comunista e fichado por isso no
DOPS [...]”.
220
Na mesma fonte foram informadas ainda as atividades dos portugueses anti-
salazaristas do Uruguai, em particular a publicação do jornal Portugal Livre, editado em
Montevidéu. Também foi registrada a atuação da União Portuguesa de Estudantes do Brasil e
pormenores sobre suas assembléias. Informou sobre o fim do jornal Oposição Portuguesa,
veículo de crítica à ditadura salazarista. Sua relação com setores oposicionistas é ainda mais
explícita na seguinte passagem:
dias tive ocasião de ser apresentado a um estudante de direito, de São
Paulo, ex-presidente da UNE, Volney Correia Leite Morais Júnior
221
, de
origem portuguesa, membro do Partido Comunista Brasileiro, assim como o
pai, e morador em São Paulo [...] esteve no verão passado em Lisboa, a
caminho de Moscovo, onde participou no Fórum Mundial da Juventude. Ali
conheceu alguns portugueses membros da delegação da juventude
portuguesa [...] Rio de Janeiro, 20 de Janeiro de 1962.
222
No mesmo processo acima consta também um documento com seis páginas intitulado:
“Informações sobre o comunismo mundial”, relatando o período referente a uma semana de
junho de 1961, anexado à informação sobre Volney em razão de um tópico sobre o Fórum da
Juventude Mundial. No canto superior da primeira página desta fonte vem a seguinte nota:
“Extrate-se para as organizações, países e indivíduos”. Neste relatório constam informações
sobre os partidos comunistas no Peru, China, URSS, Uruguai, Alemanha, da “África Negra”,
220
Arquivo IAN/TT, PIDE-DGS, Proc. 2563, CI(2), NT-7217, p. 106 (este número de página aparece escrito à
mão no documento, embora não houvesse uma seqüência ou uma totalidade destas).
221
Atuou até 2005, como Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo.
222
Arquivo IAN/TT, PIDE-DGS, Proc. 2563, CI(2), NT-7217, p. 107.
153
da Índia, até mesmo uma informação sobre um festival de cinema em Leipzig. duas
informações sobre o Brasil. A primeira alerta que a “União Nacional dos Estudantes do Brasil
(UNEB)” convidou “a primeira delegação soviética de estudantes que visita[va] o Brasil”. A
outra informa sobre as ações do PC do B em manifestações favoráveis a Fidel Castro e sobre a
viagem de cerca de 300 militantes comunistas a Cuba, com as despesas “pagas pela
Embaixada da URSS do Montevideo”.
223
Estes relatórios, na maioria das vezes, parecem ter sido feitos por pessoas infiltradas
em movimentos de oposição política. Por exemplo, entre 1962 e 1964, uma série deles
assinados por Pedro da Silveira sobre as atividades de portugueses exilados no Brasil, como
Camilo Tavares Mortágua e Alípio de Freitas, além de informações sobre o movimento
estudantil, sobre africanos ligados aos movimentos de libertação colonial e informações
pormenorizadas sobre os temas discutidos em reuniões de oposicionistas.
Este tipo de relatório não é incomum. Porém, que se enfatizar que tal informe não é
neutro, nem mesmo uma prova irrefutável da infiltração, afinal o informante vende justamente
essa imagem de que é portador de uma informação incontestável, o que pode não ser verdade
ou ainda pode fazer uso de um outro informante. De qualquer maneira, o exemplo utilizado
caracteriza uma das facetas da ação das Embaixadas no campo da espionagem política.
Estes contatos entre as duas ditaduras são mais claros nas décadas de 1950 e 1960, ao
menos na documentação dos DOPS. É provável que o período que abrange o final da década
de 1960 e o início da de 1970 esteja coberto também pelo serviço de algum outro órgão, como
o SNI ou pelas Divisões de Serviços de Informações espalhadas pelo país. No DOPS/ PE foi
encontrado um dossiê intitulado Portugal
224
(que reúne uma documentação diversa nos
assuntos e no período abrangido) e adensado posteriormente por outros informes. Nele, consta
223
Arquivo IAN/TT, PIDE-DGS, Proc. 2563, CI(2), NT-7217, p. 05.
224
Ficha Portugal, n. º 30318, registro inicial: 1957, Arquivo do DOPS/ PE, Arquivo Público do Estado de
Pernambuco. No mesmo dossiê consta ainda uma carta de Plínio Salgado “aos integralistas” concluída pelo
jargão: “pelo bem do Brasil”, aliás, semelhante ao “A bem da Naçãoque figurava em ampla documentação
oficial da ditadura salazarista.
154
um esquema de blindagem à visita ao Brasil do Presidente “eleito” de Portugal, Craveiro
Lopes, em 1957, sendo registrados, além de planos de percurso da comitiva e de mobilização
de pessoal, também um mapeamento da oposição política através de um “relatório de registro
de estrangeiros”. Em 1961, este dossiê seria adensado com informações sobre o jornalista
português Miguel Urbano Tavares, cujo registro inicial data de 29 de janeiro de 1961.
Sobre esta visita de Craveiro em 1957 também denunciou o escritor português Edgar
Rodrigues, exilado no Brasil a partir de 1951, que no Hotel Guanabara estavam hospedados
agentes da PIDE para, segundo o escritor, “limpar o terreno” antes da chegada da comitiva de
Craveiro. Esta operação teria movimentado a: “[...] organização policial do fascismo
salazarista, cujos agentes chegaram munidos da lista dos nomes dos perigosos opositores ao
governo português, para com a ajuda da Polícia brasileira deter os subversivos lusitanos”
(RODRIGUES, 1975, p.30). Esta lista citada deve ser a mesma que consta no arquivo do
DOPS de Pernambuco, o que comprovaria esta estratégia das duas polícias realizada em pleno
governo democrático do Presidente “bossa-nova”, Juscelino Kubistchek. Estas relações
podem ser explicadas, em parte, pelas especificidades das políticas estaduais, a quais estavam
submetidos os DOPS.
Apesar de não serem encontradas as fichas do casal Nora Ney e Jorge Goulart nos
arquivos da PIDE, eles viveram em Portugal em 1969. Estiveram entre os primeiros músicos
perseguidos pelos militares brasileiros imediatamente ao Golpe de 1964, quando faziam parte
do casting da Rádio Nacional, sendo sumariamente despedidos. Além da impossibilidade de
exercerem seu ofício tiveram que responder ainda a inquéritos militares. O casal aparece em
documentação do DEOPS
225
como ligados ao Partido Comunista Brasileiro, numa suposta
225
Apesar do nome distinto, DEOPS é a sigla do DOPS paulista. Apesar de chamados de DOPS, uma
alternância do significado da sigla até mesmo na documentação oficial, como Divisão, Delegacia ou
Departamento de Ordem Política e Social, que no caso paulista foi criado pela Lei . 2034, de 30 de dezembro
de 1924. Em 1944, levaria o nome de Delegacia e, em 1945, de Departamento. Em 1975, passou a se chamar
Departamento Estadual de Ordem Política e Social - DEOPS, muito embora a lei não tenha sido modificada.
155
“base de artistas”.
226
antes do Golpe Militar, tinham seus nomes sob suspeita, como
transparece na ficha de Carlos Lyra no DEOPS em que consta um abaixo-assinado de adesão
ao Congresso Continental de Solidariedade a Cuba, em que figuram, além do nome do
fichado, os de Nora e Jorge, Gianfrancesco Guarnieri, Mário Lago, Augusto Boal, Cartola e
Carmen Silva, entre outros.
227
A cantora Nora Ney também aparece nas fichas do DEOPS citada com seu nome de
batismo: Iracema Ferreira. Ela foi referenciada em março de 1976 devido à sua participação
em movimentos feministas.
228
Contudo, a maior preocupação da ditadura tinha origem num
fato verídico, ou seja, a vinculação do casal com os grupos de esquerda, afinal, participaram
do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE), foram ligados
organicamente ao PCB, tiveram passagens pela antiga URSS
229
, Hungria, Alemanha Oriental
e China. Nesse sentido, eles foram os primeiros artistas brasileiros a realizar espetáculos
nestes países, a partir de 1958. Participaram dos Encontros Mundiais da Juventude pela Paz,
em Viena, nos anos de 1960 e 1962, eventos que em Portugal deixaram em alerta a PIDE, que
impediu a troca de correspondência e de convites para que oposicionistas portugueses não
participassem destes Encontros.
226
Pasta 30-C-1-24337, prontuário de Nora Ney, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
No mesmo documento são elencados os músicos: Vinicius de Moraes, Toquinho, MPB-4, Chico Buarque, Edu
da Gaita, Mário Lago, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, Jararaca, Caetano Veloso; além dos
artistas e autores de novelas: Dionísio de Azevedo, Carlos Vereza, Dias Gomes, Janete Clair, Ivani Ribeiro. Sem
data ou identificação.
227
Pasta 30-C-22-1529, prontuário de Carlos Lyra, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São
Paulo. O documento é datado de fevereiro de 1963 e originado da Guanabara.
228
Pasta 50-J-0-4510, prontuário de Iracema Ferreira, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São
Paulo. Este documento, apesar de ser datado de 1976, traz uma informação de 1963. que enfatizar que esta
militância vem de longa data. em 1961 estava associada à Liga Feminina da Guanabara, por sua vez vinculada
à FIMD Federação Internacional de Mulheres Democráticas. Ver mais informações em: MORAIS,
Washington. Nora Ney: a pioneira do rock no Brasil. São Paulo: Edicon, 1997, cujo título apresenta outra faceta
da cantora, o fato de ter sido a primeira a gravar um rock no Brasil: a canção Rock Around the Clock, numa
versão do original em inglês, mas com título em português (Ronda das Horas), em 1955.
229
Segundo depoimento de Jorge Goulart a Alcir Lenharo, nestes anos os compositores brasileiros Villa-Lobos,
Camargo Guarnieri e Cláudio Santoro eram executados na Rádio de Moscou em pé de igualdade com os grandes
compositores. Na Rússia conheceram um músico brasileiro que partiu do Brasil à época do Golpe de 1937 que
inaugurou a ditadura do Estado Novo varguista. Era Tito Ramalho, amigo de Jorge Amado, que, por Jorge
Goulart, enviou novas músicas para que ele aumentasse seu repertório. Este músico fugiu da Alemanha nazista,
indoi para a Áustria, Polônia até exilar-se na Rússia. Para completar sua “discreta” trajetória, chegou a se
apresentar no front da Segunda Guerra (LENHARO, 1995, p. 240).
156
O fato é que, de acordo com Alcir Lenharo, durante a estada do casal em Portugal,
trabalharam: “[...] com alguma dificuldade. No início de ordem política. Agentes da PIDE que
atuavam como motoristas de táxi, garçons, dirigiam-lhes provocações em lugares públicos.
Até mesmo nos shows havia quem os provocasse, chamando-os de comunistas” (1995, p.
255). O que provavelmente explicaria tal clima encontrado pelo casal teria a mesma origem
nas trocas de informações entre as ditaduras, nos relatórios regulares feitos pelos adidos
militares e demais corpos diplomáticos. Por intermédio de um deputado português ligado ao
governo, as provocações tiveram fim e a dupla chegou a participar, ao lado da violonista
brasileira Rosinha de Valença, de atuações na TV portuguesa. Durante o ano de 1969,
também fizeram excursões pelas colônias, ou de acordo com o eufemismo oficial, pela
“África Portuguesa”, com um relativo êxito, de acordo com Lenharo (1995, p. 256).
Entretanto, problemas de ordem pessoal levaram o casal a retornar ao Brasil.
Uma nova leva de exilados brasileiros para Portugal volta o ocorrer com a Revolução
dos Cravos: “[...] diante desses fatos, Portugal passou a atrair exilados de vários países,
principalmente da América Latina, conforme relata Gilvan Rocha, os quais foram
concentrados numa colônia de férias de trabalhadores na Costa da Caparica” (CORTEZ,
2000, p. 656). Uma parte dos brasileiros atuou junto aos movimentos de libertação colonial e
alguns estiveram ligados ao Instituto de Ação Cultural (IDAC), fundado por exilados
brasileiros, com destaque para Paulo Freire, em janeiro de 1971, em Genebra. Até por volta de
1979, este grupo realizou: “[...] trabalhos em torno de educação formal; assessoria a governos
em programas de formação de cooperantes e de desenvolvimento; pesquisa/ação na área de
mulheres; programas nacionais de planejamento para a alfabetização (em países africanos)
[...]”.
230
230
Disponível em: <http://www.rits.org.br/perfil/mostra_instituicao.cfm?codigo_instituicao=29>. Acesso em: 03
out. 2005. Em 1980, o IDAC transferiu-se para o Brasil e desde então atua na área de projetos sociais.
157
Os órgãos de repressão dos dois países, apesar dos regimes autoritários e do uso da
tortura em comum, enfrentavam realidades distintas, afinal significativos setores militares
portugueses se voltavam contra a ditadura a partir do final da década de 1960,
principalmente devido à fratricida Guerra Colonial empreendida na África. Apesar destas
diferenças houve entre 1964 e 1974 uma colaboração entre a PIDE/ DGS e os DOPS, em
particular, do Rio de Janeiro e de São Paulo.
A pesquisa junto aos arquivos da PIDE/ DGS comprova esta relação, como indica uma
troca de ofícios
231
entre o Inspetor da DGS, Silvio da Costa Mortágua e o Delegado Titular da
Delegacia Especializada de Ordem Política, de São Paulo, Alcides Cintra Bueno Filho. Este
último delegado, conhecido por “Porquinho”, esteve ligado a uma série de casos de tortura e
desaparecimento de presos políticos. Aparece também como torturador em lista do grupo
Tortura Nunca Mais.
232
Foi escolhido pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e pelo atual
senador Romeu Tuma para ser o “coveiro oficial” do DOPS paulista, como o responsável pelo
desaparecimento dos corpos dos presos. Sua competência nesta atividade ao menos lhe rendeu
um nome de rua na cidade de São Paulo, na Vila Amália.
O delegado “Porquinho”, em ofício 001/73 datado de 30 de janeiro de 1973, registra:
“Conforme o combinado, encaminho a V. S. toda a propaganda apreendida por esta Delegacia
Especializada de Ordem Política, proveniente de vários países e que tratam de propaganda
política portuguesa”.
233
Em resposta, o inspetor da DGS, agradece e afirma:
Verifiquei que todos aqueles documentos foram endereçados à redacção do
Jornal Portugal Democrático’, na Rua Libero Badaró. Como sei que de
Portugal seguem notícias falsas e tendenciosas também endereçadas à
redacção do mesmo ‘jornaleco’, muito grato lhe ficaria, fizesse accionar os
seus Serviços no sentido de detectar tais notícias e delas fazer remessa, por
fotocópia, sem interrupção do seu destino [...].
234
231
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 965, CI (2), NT-7023.
232
Disponível em: <http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mil/mil_lista_torturadores/mil_lis2_a_a.htm>.
Acesso em 14 jan. 2006.
233
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 965 CI (2), NT-7023.
234
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 965 CI (2), NT-7023.
158
de se notar que o principal jornal de oposição à ditadura portuguesa no Brasil teve
seus passos observados pela polícia brasileira também em razão dos interesses do Governo
português. Quanto à sugestão de não interromper o destino das cartas, dada pelo inspetor,
denota uma estratégia utilizada pela ditadura portuguesa ao violar as correspondências,
fotocopiá-las e reenviá-las ao destinatário. Acredita-se que a primeira máquina fotocopiadora
a entrar em Portugal foi comprada justamente para este fim.
Como demonstrado anteriormente, a documentação do arquivo da PIDE/DGS revela
que antes mesmo do Golpe de 1964 no Brasil já havia um trânsito entre a polícia brasileira e o
Governo português. Numa informação de 11 de outubro de 1960, é pedida uma reunião do
“Inspetor da Divisão de Polícia Política e Social do Departamento Federal de Segurança
Pública do Brasil”
235
, Alberto J. Soares, com o Presidente do Conselho de Ministros de
Portugal, António de Oliveira Salazar. O informe também apresenta este brasileiro como
informante da Embaixada de Portugal no Brasil e como portador de informações relevantes:
“especialmente em todos os incidentes levantados pelo ex-general [Humberto] Delgado desde
a sua chegada ali [...] está trinta anos em contacto com as atividades políticas do Brasil
[...]”. Além disso, enfatiza a importância de se obter informações em relação à sucessão
presidencial: “Parece conhecer em detalhe elementos que caracterizam a personalidade do
futuro presidente do Brasil, Doutor Jânio Quadros, que se reputam úteis [...]”. Por fim,
completa: “Amigo e colaborador devotado de todos os elementos da colônia portuguesa que
apóiam o Governo português”.
236
O referido general Humberto Delgado no documento em apreço foi o candidato de
oposição ao Governo de Salazar em 1958 e, muito embora os claros sinais de vitória, foi
derrotado e sobre este resultado pesou a acusação de mais uma fraude eleitoral no
salazarismo. Tal fato também levou à expulsão de Portugal do jornalista brasileiro Domingos
235
Órgão pertencente ao Distrito Federal.
236
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 965 CI (2), NT-7023. Com duas anotações: “Abrir processo CI-2 para ‘Polícia
Brasileira’” e “O original foi enviado a S. E. o Presidente do Conselho”.
159
de Lucca Júnior que cobria estas eleições e que teria apontado estas evidências de fraude
eleitoral.
Em razão de sua importância como líder oposicionista e as ameaças sofridas, o
General se asilou na Embaixada brasileira em Lisboa, o que levou a um intenso debate em
Portugal e entre os dois governos. O governo de Salazar teve um significativo apoio na
Imprensa brasileira por intermédio da cadeia Diários Associados, de Assis Chateaubriand,
simpatizante do ditador e desafeto de Delgado. Ao final de três meses e mediante o apoio do
embaixador brasileiro Álvaro Lins e de setores da sociedade brasileira, o General
desembarcava no Brasil, onde continuou sua campanha contra a ditadura portuguesa. Sua
trajetória de maior oposicionista em atividade seria barrada com seu assassinato e de sua
secretária brasileira, em 1965, na Espanha, próximo da fronteira com Portugal, por agentes da
PIDE. Este caso denota até que ponto chegavam as forças de repressão da ditadura
portuguesa, como se verá melhor no próximo subcapítulo.
160
2.1 A REPRESSÃO PORTUGUESA: OUVEM-SE OS GRITOS, NA NOITE ABAFADA
Com o golpe de 28 de maio de 1926, Portugal foi lançado num processo de
fascitização nos mais diferentes campos: cultural, político, educacional E intelectual. Apesar
da diferença entre os sistemas políticos criados na Itália e na Alemanha, a ditadura instituiu
mecanismos que remetiam à política fascista e nazista. Para a implementação destes
complexos foram criadas, progressivamente, estruturas de cooptação, de divulgação e,
marcadamente, de repressão.
Em seu trabalho sobre os manuais escolares durante a ditadura, Maria Augusta Diniz
analisa o processo educacional português e reflete sobre sua verticalização cada vez maior e
seu controle pela ditadura por meio das escolas de formação de professores, da diminuição da
escola obrigatória de cinco para três anos
237
, do controle e da inculcação ideológica por meio
dos manuais, em particular, dos textos literários. A autora descreve o papel da educação
primária e a criação da OMEN, em 1935:
As crianças são usadas” como transmissoras junto das famílias das
idéias nacionalistas aprendidas na escola. Em contrapartida, a família não
tinha nenhum meio de influenciar a instituição escolar [...] Foi também
criada a Obra das Mães pela Educação Nacional. Destinava-se a
estimular a acção educativa da família, com um notório objectivo de
natureza política. (DINIZ, 1994, p.37).
238
Os músicos que no início da década de 1960 tinham de vinte a trinta anos de idade,
conviveram com estas estruturas criadas principalmente na década de 1930, após a
implantação do Estado Novo em 1933. Em 1936, é criada a Fundação Nacional para a Alegria
237
Base III da Reforma do Ensino Primário. Dec. Lei n º 1969, de 20-5-1938. In: Maria A. Diniz, op. cit., p.
37.
238
Ver ainda outro estudo sobre a ideologia nos livros didáticos, entre 1850-1968: SILVEIRA, Paula. Os valores
do quotidiano no Estado Novo: ruptura ou continuidade? In: O Estado Novo: das origens ao fim da autarcia
1926-1959. Lisboa: Fragmentos, v. 2, 1987, p.303-20.
161
no Trabalho (FNAT), influenciada pela experiência alemã e obra da preocupação com a
valorização do trabalho como marca de um caráter nacional. Pelo Decreto-Lei nº. 26611/36
foi criada a Mocidade Portuguesa (MP) que: [...] abrange toda a juventude, escolar ou não, e
tem por fim estimular o desenvolvimento da sua capacidade física, a formação do carácter e a
devoção à Pátria, no sentimento da ordem, no gosto da disciplina e no culto do dever militar.”
(DINIZ, 1994, p.36).
Estas instituições buscavam exercer uma forte influência nas escolas por meio do
controle dos alunos numa complexa rede de denúncias e cooptação:
Assiste-se a um progressivo retrocesso da perspectiva educacional dos
governantes, marcado por uma matriz fiscalizadora, repressiva, de cariz
político-ideológico. A preocupação fundamental da Escola Salazarista é o
endoutrinamento ideológico, encontrando-se a perspectiva nacionalista
claramente consagrada, não nos discursos oficiais, como nos
preâmbulos e demais articulados da avalanche de normativos então
publicados.
(CASTRO, 1995, p. 39).
Havia uma pressão sobre os jovens para que estes se vinculassem às associações
ligadas ao salazarismo. Não obstante, ser direção da MP e de outras instituições salazaristas
não garantia acesso ao controle de postos no governo, muito pelo contrário. Segundo o
historiador António Costa Pinto (2001), foram raros os que chegaram a ministros ou mesmo a
postos da administração local. Os partidos políticos também não eram aceitos, para tanto
Salazar criou um partido único, aliás, não chamado de partido pelo Governo, conforme o
Capítulo I, art. 1º, de seu estatuto: “A União Nacional é uma associação sem carácter de
partido e independente do Estado, destinada a assegurar, a ordem cívica [...]”. No capítulo III,
art. 5º, afirmava que os direitos e as liberdades individuais “não podem ir contra os da
sociedade, ou contra a moral, e podem ser legalmente suspensos se o exigir a salvação
comum” (CAMPOS, s.d/ a, 210-11).
162
No mesmo caminho, foi constituída a Legião Portuguesa (LP), em 1936, resultado de
um conceito salazarista de “nação armada”, era uma milícia criada para defender a Pátria e a
ordem social numa instituição: [...] antidemocrática e anticomunista. Estava organizada em
vários corpos, serviços e gabinetes especializados, como a Força Automóvel de Choque, a
Brigada Naval, o Serviço de Informações, os Serviços de Escuta e o Gabinete de Acção
Cultural.” (AZEVEDO, 1999, p. 304). Quando da passagem das tropas brasileiras, vindas da
Itália, ao cabo da Segunda Guerra, houve um desfile das mesmas por Lisboa, que
contraditoriamente foram recepcionadas por membros da LP e da MP com a saudação fascista
do punho erguido (CAMPOS, s./d. b, p.76). Ao voltarem para o Brasil, apesar de terem lutado
contra o fascismo e o nazismo na Europa, também encontrariam uma ditadura em seu país
natal.
Voltando ao caso português, não havia somente o uso da cooptação ou da inculcação
junto à população, desde o início as prisões na ditadura foram amplamente utilizadas. A
oposição foi alvo de uma verdadeira caça pela polícia política da ditadura salazarista, a PIDE,
criada no início dos anos 30 e substituída em 24 de novembro de 1969 pela DGS. Não
obstante a mudança de nome, a política repressiva permaneceu, com a população
denominando ainda a polícia de “PIDE-DGS”. Por meio da tortura, assassinatos e prisões, a
PIDE foi inviabilizando a organização de setores como o do operariado, dos estudantes, dos
partidos políticos clandestinos e dos artistas.
Esta polícia política estendia sua ação para além de Portugal, prendendo e
assassinando opositores em outros países, a exemplo das colônias africanas. Os pides, como
eram chamados, também eram encarregados de assistirem aos shows dos músicos
considerados perigosos pelo regime. A despeito do longo período de ditadura, este recorte
histórico feito até aqui abarca diferentes fases do salazarismo como discute o líder do Partido
Comunista Português, Álvaro Cunhal (1995). Estas diferentes etapas foram enfatizadas por
163
Artur Portela em razão de suas: [...] várias políticas e econômicas, várias políticas
estrangeiras, várias políticas coloniais. Regime de instabilidade ministerial (Salazar foi
derrubando, implacavelmente seus próprios governos, a golpes de cartão-visita), o
salazarismo não teve uma política cultural continuada” (1987, p. 129).
Esta seqüência de mudanças no interior de uma mesma ditadura teve seu fim com a
Revolução dos Cravos. Foi a queda de um regime que, se não foi uníssono em suas políticas,
conseguiu se manter por 48 anos. O principal motivo da crescente insatisfação dos militares
vinha da Guerra Colonial contra os movimentos de libertação de Angola, Moçambique e
Guiné-Bissau. Uma outra causa para esta crescente insatisfação esteve relacionada à
publicação do Decreto-Lei n.º 353 de 13 de Julho de 1973, que possibilitava aos militares de
segunda linha obterem promoções mediante um curso intensivo na Academia Militar,
promoções estas só possíveis aos capitães do quadro permanente após um longo processo. Um
novo decreto foi feito, mas também não alterou a situação dos capitães do quadro permanente.
Iniciados em 1961, os combates na África traduziram-se numa experiência traumática
para os soldados e seus familiares, muito embora a tragédia tenha sido incomparavelmente
maior para os africanos, e não no período da guerra. Do lado português, calcula-se que 190
mil portugueses combateram na África e cujo: [...] número de mortos é de 3.258 em Angola,
2.692 em Moçambique e 2.070 na Guiné; podem acrescentar-se a estes números o total de
feridos nas três frentes, que é de 26.223” (ANDRADE, 2002, p. 183). Um outro levantamento
destas baixas foi divulgado pela Revista Visão, informando que havia, em 1973, 150 mil
portugueses na guerra, e que o número de mortos foi de 8.803 e de deficientes físicos gerados
pelos combates (ou pelas minas terrestres) chegou a 15.507 soldados.
239
Sem contar ainda o
clima de terror psicológico gerado nessas frentes e mesmo entre os que estavam se preparando
para a partida para a África. Some-se a isso a insatisfação dos familiares dos soldados com a
239
Guerra Colonial: treze anos de solidão. Visão – Suplemento Especial 25 Abril 74. Lisboa, 15 abr. 1974, p. 52.
164
partida de seus filhos, irmãos ou maridos para a Guerra ou para a deserção no exterior.
A Guerra Colonial também despertou a preocupação da ditadura brasileira, fato
observável até mesmo na documentação dos DOPS. Numa pasta do arquivo do DEOPS
encontra-se um exemplar do livro Guerra Colonial em Moçambique, do padre Luis Afonso da
Costa.
240
Consta na mesma pasta uma cópia de uma carta do Governo-Geral de Angola,
assinada por António Alves Rosa Coutinho e endereçada à Agostinho Neto. Nesta
correspondência, o Vice-Almirante português sugere ao líder revolucionário que incite os
militantes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA)
241
para que barbarizem
os brancos que apóiam a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União
Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). Esta carta teve uma grande
circulação na imprensa e trazia também em seu conteúdo uma suposta relação entre o PCP e
este plano de ataque preferencial às mulheres, crianças e velhos. Tal documento é tão cruel
que prontamente sugere que seja um documento falsificado.
Em meio à violenta Guerra Colonial, muitos dos militares portugueses encontravam
nas canções de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília, entre outros músicos,
um exercício de lembrança de seu país e familiares, bem como um meio de politização e de
elaboração de uma crescente crítica à guerra e à exploração dos africanos. É comum no relato
destes soldados a afirmação de que ouviam nos acampamentos este cancioneiro e que era
corriqueira a circulação destes pequenos discos, mesmo entre a oficialidade. A relação entre
este cancioneiro também é explicada pela origem universitária de parte desta geração de
militares, justamente o ambiente de onde teria se desenvolvido e surgido a canção moderna de
contestação política.
Logo, não foi surpresa a opção da utilização de duas destas canções como senhas para
240
Pasta 50-E-29-220, datado de 05 mai. 1977, Arquivo do Estado de São Paulo, Arquivo DEOPS.
241
Chico Buarque faz uma referência ao movimento em sua canção Morena de Angola, de 1980 e sucesso na voz
de Clara Nunes: “[...] Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela/ Morena, bichinha danada,
minha camarada do MPLA”.
165
a saída dos quartéis. Os capitães responsáveis pela revolução necessitavam de dois sinais para
que o movimento revolucionário se iniciasse na madrugada do 25 de Abril de 1974. Segundo
Otelo Saraiva de Carvalho, um dos organizadores da operação, o locutor da Rádio Clube, João
Dinis, propôs E depois do Adeus, interpretada por Paulo de Carvalho, vencedora do festival da
RTP e apresentada no Festival de Brighton, Inglaterra, naquele mesmo mês. Sugestão aceita,
haveria de se pensar numa outra canção mais incisiva.
O segundo sinal deveria vir, ainda segundo Carvalho, de uma canção de José Afonso,
e a escolhida foi Venham mais cinco: “[...] A bucha é dura/ mais dura é a razão/ que a sustém/
nesta ruga/ não lugar/ para os filhos da mãe”.
242
Porém, os militares lembraram que
aquela canção estava proibida pela direção da Rádio e optaram por Grândola, Vila Morena,
do mesmo compositor, que três semanas antes tinha sido cantada por cerca de cinco mil
pessoas num espetáculo na grande sala do Coliseu, em Lisboa:
E às vinte e quatro horas, de norte a sul do País, dedos ágeis e nervosos
sintonizam, em centenas de aparelhos de rádio, o início do programa
Limite, radiodifundido através dos emissores da Rádio Renascença, em
locução de Paulo Coelho e Leite de Vasconcelos. E é a voz deste último
que ouvimos, cerca da meia-noite e vinte, recitando com calor a primeira
quadra do poema de Grândola, Vila Morena, logo seguida do bater
cadenciado dos passos na estrada e da voz inconfundível de Zeca Afonso
entoando a canção (CARVALHO, 1998, p. 311).
Esta é apenas uma das inúmeras narrativas sobre o evento envolvendo a canção de
José Afonso. O diferencial parte do fato de ser fruto das memórias escritas por este que
participou da escolha das canções e, principalmente, da organização da revolução em si.
242
Esta canção foi gravada em 1973, mas parece tratar de Salazar que havia morrido dois anos antes. Afinal,
depois de cair da cadeira, em agosto de 1968, foi exonerado pelo Presidente da República de seu cargo de
Presidente do Conselho. Acredita-se que ele tenha vivido um período senil e que no início sequer sabia que não
era mais o Presidente do Conselho (como ficou claro numa entrevista a um jornal francês, cerca de um ano
depois de seu afastamento). É a esta fase que parece se referir a irônica letra da canção: “[...] Se o velho estica/
eu fico por cá/ se tem má pinta/ dá-lhe um apito/ e põe-no a andar/ de espada à cinta/ já crê que é rei/ d’aquém, e
d’além-Mar [...]”. In: AFONSO. José. Venham mais cinco. Orfeu, 1973, nº. STAT-017.
166
Nesse sentido, uma recorrência em inúmeras obras
243
, portuguesas ou brasileiras, sobre o
tema, por construírem uma linha narrativa semelhante: o ato heróico da revolução e sua
relação com este compositor da chamada “canção de intervenção”, que para o próprio José
Afonso era a “canção de réplica”. Não é apenas o tema trazido pela canção de José Afonso, a
luta popular contra a opressão, que seria o leitmotiv da escolha pelos tenentes. Zeca Afonso
representava um setor importante da cultura nacional de oposição política ao regime.
Todavia, não foi apenas o Zeca o único a ser ouvido pela oposição e vigiado pela
ditadura. Em seu livro Cantores de Abril, Eduardo Raposo realiza várias entrevistas com
músicos da canção portuguesa. Nesta obra, Luís Cília relata ao autor seus shows pela
Espanha, como em 1971, em Santiago de Compostela: “‘um espectáculo memorável, com
grande impacto político, com a Guarda Civil à volta’” (RAPOSO, 2000, p.150). Entretanto,
como comprova a pesquisa de Raposo junto ao Arquivo da PIDE/DGS, à volta também
estavam informantes do Cônsul português que, prontamente, repassou tais informes à polícia
portuguesa. Por fim, os laços entre as ditaduras aparecem com a proibição do mesmo show de
Cília em Coruña, bem como a aplicação de uma multa efetuada pelo Governador Civil. Um
ano mais tarde seria a vez do músico José Afonso apresentar-se naquela mesma cidade:
“Então, em 10 de maio de 1972, o Zeca canta pela primeira vez, frente a um público
numeroso, num recital individual, em Santiago de Compostela. Então se emociona e, sem
estar previsto, canta pela primeira vez a Grândola, Vila Morena” (RAPOSO, 2000, p. 41).
O músico Benedicto, um dos integrantes da nova canción galega, foi um dos que
estreitou laços dos galegos com os portugueses. Segundo Claudín (1981, p. 120), ele
trabalhou durante o ano de 1973 em Portugal, com José Afonso, mas este intercâmbio não se
243
Para citar algumas delas: LETRIA, José Jorge. A canção política em Portugal. Porto, Almagráfica, 1978;
DOSSIER A Revolução das Flores: do 25 de abril ao governo provisório. Lisboa: Editorial Áster, s./d.;
AUDIBERT, Pierre. Portugal: os novos centuriões. São Paulo: Difel, 1975; FRUET, Luiz Henrique. Portugal,
hoje: anarquistas e monarquistas andam soltos pelas ruas. São Paulo: Editora Arte & Texto, 1975;
TINHORÃO, José Ramos. O encanto histórico da palavra cantada. In: Ao Encontro da Palavra Cantada.
poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001, p. 200-6.
167
resumiu ao Zeca, também José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho e Vitorino fizeram
parte desta movimentação internacional. Como foi afirmado anteriormente, a Universidade
nestes países serviu como um frutífero campo para novas experiências musicais e contatos
entre músicos de diferentes países e regiões, como ocorreu com o próprio Benedicto García
Villar: “En el mes de abril de 68, el día 26, se celebra en la Facultad de Medicina en Santiago
aquel primer Festival de la Canción Galega en el que participan Xavier, Moscoso, Araguas
Guillermo Rojo y él” (CLAUDÍN, 1981, p. 121). Enquanto na Espanha combatia-se o
chamado “nacional-flamenquismo” (expressão de Francisco Almazán), em Portugal os
cantores de intervenção faziam frente ao que se denominou então de “nacional-cançonetismo”
(divulgada por José Cardoso Pires), ambos gêneros musicais harmônicos para os regimes
ditatoriais.
A pasta de José Afonso no arquivo da PIDE abarca uma documentação numerosa e
diversificada. Repetem-se dezenas de relatórios de espetáculos (como o de Grândola, em 19
de janeiro de 1970) que contaram com a participação de Zeca e de algum agente ou
informante que produziu a informação. Em vários destes eventos também é citada a
participação do músico Rui de Melo Pato que lhe acompanhou em inúmeros shows e
gravações. A ficha de Rui Pato na PIDE traz um histórico de sua participação no movimento
estudantil a partir de 1963 e uma abundante coletânea de informes sobre sua participação em
espetáculos.
244
Apesar de não citar o nome de Zeca, também um dossiê sobre a LUAR em sua
pasta, o que leva a crer que ele era observado por suas ligações com o grupo. Também
consta um Auto de Declarações de 23 de maio de 1968, com o registro do depoimento do
músico sobre a publicação de sua coletânea de poesias intitulada Cantares, proibida em todo
244
IAN/ TT, PIDE/DGS, Pasta Rui de Melo Pato, proc. 11014 CI (2), NT-7612.
168
país.
245
Entre estes documentos, um Auto de Prisão de 04 de outubro de 1971, motivado por
“[...] averiguações sobre o exercício de actividades atentatórias da Segurança de Estado”.
Junto à bagagem do “acusado” foram encontrados: “[...] um livro com o título
Terrorisme et Comunisme; duas folhas de papel contendo a letra de uma canção, com o título
Na Rua António Maria; uma folha contendo apontamentos manuscritos que começam por
Vejam Bem”.
246
Zeca, depois de prestar depoimento, foi solto no mesmo dia. Nestes autos
estão anexas cópias de suas letras musicais Morte Clériga (na verdade, a mesma letra, com a
ausência de três frases, de O Avô Cavernoso) com sua anotação à mão: “Lourenço Marques
1965 e Setúbal 1970”; Na Rua António Maria (logradouro em que se localizava a sede da
PIDE/DGS), que levou os agentes a perguntar se era uma crítica à polícia e Zeca responder
que “[...] sim, mas não de forma ofensiva”.
O músico é novamente preso em 30 de abril de 1973 pelo mesmo motivo anterior, mas
desta vez, segundo os autos, “[...] foi encontrada e apreendida grande quantidade de
documentos de carácter político”.
247
No Auto de Perguntas informa-se que foi negado o
pedido de advogado feito por Zeca. Perguntado sobre sua posição política afirmou ser
“progressista e democrata”. No Auto de Arrolamento são elencados materiais “subversivos”
encontrados em sua casa, manifestos, jornais, relatórios, conclusões do II Congresso da
Oposição Democrática, panfletos e programas de movimentos sociais e políticos da Galícia e
do Partido Comunista Espanhol, entre outros. Sobre esta documentação reconheceu que
estavam em sua casa, mas que desconhecia a origem de boa parte dela e que em sua casa
passava muita gente e as pessoas deixavam lá os documentos sem a sua autorização.
Consta ainda neste processo pedidos de Zeca para poder ter um advogado e para
receber a visita de sua esposa e de seus filhos, para ter acesso a livros e a um gravador para
registrar as canções que viesse a compor na prisão de Caxias. Também está adensada a seus
245
IAN/ TT, PIDE/DGS, Pasta José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, proc. 448/71, NT-6255, p. 400-02.
246
Idem, proc. 448/71, NT-6255.
247
Idem, proc. 251/73, NT-6380.
169
autos uma informação de um agente da DGS sobre o músico: “[...] bastante conhecido pela
natureza de suas canções que compõe e interpreta, vem desenvolvendo larga actividade
contrária à ordem social estabelecida no País, nomeadamente nos meios ‘juvenil’, ‘estudantil’,
‘cultural’ e ‘democrático’ [...]”.
248
Por fim, é solto em 19 de maio de 1973 mediante o
pagamento de uma caução.
Num outro campo composicional, também o maestro português Fernando Lopes-
Graça enfrentou problemas com a repressão. Ele se empenhou na elaboração de uma espécie
de mapa musical da canção popular portuguesa. Suas críticas ao processo de “folclorização”
da cultura portuguesa, realizado pela ditadura portuguesa, valeram-lhe também mais algumas
informações em seu prontuário. Consta ainda um relatório enviado pelo subdiretor da PIDE
da Delegação do Porto ao diretor-geral da mesma polícia, informando sobre a participação do
maestro num colóquio na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, ocorrido
em dezembro de 1959.
A exemplo de alguns prontuários do DOPS, neste documento os nomes incompletos
citados no relatório, recebem uma anotação manual informando seus nomes completos.
Assim, são citados também Oscar Lopes, Alves Redol, Alberto Uva e Bernardo Santareno. O
informante reproduziu trechos da conferência de Lopes-Graça: “Os ranchos folclóricos são
uma calamidade como a Emissora Nacional é uma calamidade. O folclore organizado deixa
de ser folclore [...] são um produto de exportação para o estrangeiro e se exporta o que se
fabrica em série”.
249
No mesmo processo constam ainda outras informações sobre os escritores
mencionados. Num documento datado de 23 de abril de 1953, sem numeração, é informado
que os escritores Alves Redol e José Ferreira de Castro foram “convidados a tomar parte no
‘Congresso Continental de la Cultura’, a realizar em Santiago do Chile [...] As cartas de
248
IAN/ TT, PIDE/DGS, Pasta José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, proc. 448/71, NT-6255, p. 191,
Informação de 29 abr. 1973.
249
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 2585-SR, NT-2358.
170
convite são assinadas pelo escritor ‘comunista’ brasileiro Jorge Amado [...]”. De forma
manuscrita no mesmo informe também é citado que o convite foi encaminhado ao Ministro do
Interior, que “determinou a não concessão da validade para tal deslocação nos respectivos
passaportes”.
250
Logo, o convite interceptado foi um assunto resolvido pelo Ministro, o que denota o
grau de concentração do poder no país, bem como a importância atribuída aos intelectuais
naquele período. Anexo ao documento, encontra-se uma cópia do convite para o Congresso
assinado por Pablo Neruda e Jorge Amado. Este processo também revela o papel
desempenhado pelos serviços de correios, em particular, como se depreende de um ofício
251
oriundo do Ministério das Comunicações Administração Geral dos Correios, Telégrafos e
Telefones, enviado ao diretor da PIDE, em que são reencaminhadas como resultado de
interceptação: “oito cartas de Jugoslávia para Estoril (1), Vila do Conde (1) e Lisboa (6);
Trinta e duas cartas de Checoslováquia para Matosinhos (1), Braga (1), Vidigueira (1), Porto
(3) e Lisboa (26) a) [sic!] dirigida a Alves Redol [...]”. Por fim, também consta nesta
documentação um convite, do mesmo ano, enviado à Alves Redol para participar da abertura
do Conselho Mundial da Paz, além de um relatório
252
sobre a passagem de Jorge Amado pelo
Aeroporto de Lisboa para fins de conexão de seu vôo para o Rio de Janeiro. Este último
documento em apreço cita o nome dos dez intelectuais que foram recebê-lo neste interregno
(entre eles, Alves Redol) de apenas uma hora por Lisboa, de acordo com o inspetor Porto
Duarte, da PIDE.
Na cada de 1960 a preocupação com o comunismo internacional foi adensada com
uma outra faceta desta situação política, como as ações revolucionárias de libertação colonial
iniciadas em 1961, os movimentos democráticos (como o MUD Movimento de Unidade
250
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 2585-SR, NT-2358.
251
Idem. Ofício 1417, originado na Estação Central dos Correios, Setor Postal, de Lisboa e datado de 22 abr.
1953.
252
Relatório da PIDE/ Lisboa, datado de 13 fev. 1953.
171
Democrática) contra a ditadura e a favor das eleições livres, os movimentos estudantis nas
Universidades do Porto, Lisboa e Coimbra, entre outras mudanças que deram novo fôlego à
oposição política ao regime. Entretanto, neste contexto, os escritores continuaram sendo
vistos como inimigos de peso do regime salazarista. Numa informação da PIDE foram
elencados os nomes de seis intelectuais presos, entre eles Urbano Tavares Rodrigues:
Indicam-se os nomes dos indivíduos que, pela sua profissão, actividade
artística ou vaidade pessoal, costuma designar-se por intelectuais e se
encontram presos na P.I.D.E. por existirem contra eles indícios bastantes de
pertencerem ao “partido comunista português”, ou desenvolverem actividades
subversivas por este orientadas. O partido comunista português”, à
semelhança do que acontece na Alemanha, Grécia e Turquia para referir
os países membros da NATO é ilegal e como tal considerado associação
secreta e os seus membros passivos de acção penal.
253
Esta justificativa chama a atenção por reiterar uma recorrência na documentação da
PIDE, qual seja: referir-se ao PCP entre aspas e em minúsculo, como se fosse possível
gramaticalmente neutralizar o poder real do partido. Fato semelhante é encontrado no Brasil,
quando na documentação da repressão política, a União Nacional dos Estudantes é chamada
de “ex-une”, para lembrar aos próprios policiais que a entidade havia sido extinta pela
ditadura. Outro dado é que a imagem construída em torno dos intelectuais pelos regimes
ditatoriais e totalitários encontram ressonância também na ditadura portuguesa. No mesmo
documento o agente assevera: “Não obstante as suas actividades, foram entretanto restituídos
à liberdade os seguintes [escritores]: Alberto Ferreira, Alves Redol e Alexandre Cabral”.
Novamente, como foi enfatizado ao longo deste texto, um outro documento
relacionado a estas prisões aponta o trabalho desempenhado pelas Embaixadas. Num ofício
254
oriundo do Ministério dos Negócios Estrangeiros e endereçado ao diretor da PIDE, é
253
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 331.1, datado de 12 dez. 1963.
254
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 1663/ 63, NT-5562. Documento datado de 17 dez. 1963, assinado por P.
Carvalho.
172
repassada uma informação da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro alertando a notícia
divulgada através dos jornais cariocas em relação à prisão do escritor Urbano Tavares
Rodrigues. Esta pressão realizada no Brasil pela libertação dos escritores foi organizada pelo
próprio irmão de Urbano, o jornalista Miguel Urbano Rodrigues, exilado em São Paulo e um
dos organizadores do jornal Portugal Democrático.
255
Este periódico mensal, sediado em São Paulo, foi decisivo na emissão de uma outra
leitura do regime português, além de ter sido o canal de contato entre anti-salazaristas de mais
de uma dezena de países. Jornal de oposição a Salazar, empreendeu contra este uma
campanha que além da crítica elaborada, também se utilizou do sarcasmo para destruir a
imagem altiva do “Sr. Presidente do Conselho”, como numa edição de dezembro de 1959,
reproduzida na Revista do Povo (nº. 12, 01 jul. 1975) em que consta uma charge no qual
Salazar com um corpo de rato está em frente a um vaso sanitário (sanita para os portugueses)
e com a frase “Some-te rato!”. No texto que acompanha a charge, uma desconstrução da
imagem do “chefe” veiculada no exterior: “Doutor em quê? Em técnicas de Censura e de
Polícia, que são toda a tua política, toda a sua filosofia, toda a tua religião?”.
256
Outro
periódico português que é citado na documentação é A Semana Portuguesa, ao informar que o
jornal estava sendo distribuído no Nordeste, já no ano de 1972, registra: “Observa-se uma
linha violenta contra o Governo de Portugal, incompatível com a posição adotada pelo Brasil
em relação a esse país amigo”.
257
255
Na pasta 50-E-29-190 consta um documento do Ministério da Aeronáutica com o assunto: “jornal Brasil
Democrático”. Com o 25 de abril de 1974, a situação se inverteu e os exilados brasileiros estariam publicando
um jornal semelhante ao Portugal Democrático. Segundo este informe (nº. 063/ A-2/ IV COMAR, s/d), Miguel
Arraes seria o responsável pelo periódico.
256
Segundo o artigo O poder do gesto em Fernando Lemos, de autoria de Maurício Matos, a partir de
informações fornecidas por Gilda Santos, o texto foi escrito por Jorge de Sena e as caricaturas feitas por
Fernando Lemos. Disponível em: <http://www.triplov.com/surreal/lemos.html>. Acesso em: 27 set. 2005.
257
Documento oficial originado do Ministério do Exército/ Gabinete do Ministro/ CIE Rio de Janeiro/
Guanabara. Informe S-103.2 – CIE, com cópias das edições de 15 a 29 fev. 1972 (que abordam a investigação do
assassinato de Humberto Delgado). Encontrado no Arquivo do DOPS/ PE, Arquivo Público do Estado de
Pernambuco, sem referência.
173
Voltando ao caso Lopes-Graça, observado pela polícia política entre as décadas de
1940 e 1970, no ano de 1966 voltaria a ser “radiografado”, apesar da falta de “provas” que
pudessem “enquadrá-lo” criminalmente: “Até agora ainda não foi possível, obter qualquer
prova de que seja ‘membro’ do p.c.p.’. No entanto, vem sendo assinalada a sua actividade
entre a juventude, desde largos anos, sob o pretesto [sic!] de ensinar e explicar música”.
258
Neste arrazoado de dados sobre o maestro, ele é acusado de divulgar “propaganda
comunista”, embora comumente abordasse em suas palestras a história da música. Sobre esta
relação entre música e política, é registrado em sua ficha: “Em 1964, logo após o
aparecimento do chamado ‘Movimento de Unidade Democrática Juvenil’ vulgo ‘MUD
Juvenil’, compôs a música para o seu hino e aparecia sempre o seu nome ligado às actividades
dessa ‘organização’ que era, como se sabe, criação do citado ‘p.c.p.’ [...]”.
259
Esta atividade musical lhe valeria outros registros na polícia política. Em 1971, sob
a designação de DGS - Direcção-Geral de Segurança, em substituição à PIDE, o subinspetor e
chefe do posto da DGS de Santarém, José Orlando Teixeira de Lucena, informa ao Diretor
Geral da mesma polícia que o maestro iria realizar uma apresentação com seu grupo coral na
cidade de Tomar, onde nascera.
Em continuidade a informação anterior, um segundo documento confidencial é
elaborado pelo mesmo agente dando conta da apresentação musical ocorrida e fornecendo
pormenores do evento. Além dos dados corriqueiros de acusação de “subversão”, alerta para
um outro perigo relacionado a outro participante do debate que se seguiu à apresentação
musical, “já identificado e tido e havido, segundo consta, como homossexual”. Logo, este era
um outro ponto de convergência entre as polícias políticas, na medida em que se utilizavam
deste tipo de informação para estigmatizar alguns dos opositores políticos.
260
258
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. E/ GT, NT-1433, Refª. Regº. 15940/66 (AC).
259
Idem.
260
Segundo Fico (2001), ao tratar das estratégias das comunidades de informação no Brasil: Outra forma
corriqueira de incriminar alguém era acrescer às supostas acusações de ‘subversivo’ a pecha de ‘imoral’ [...]
174
Na seqüência o inspetor declara que o maestro “[...] se limitou a explicar monótuna
[sic!] e enfadonhamente a necessidade das suas harmonizações e arranjos musicais da música
popular [...]”. Segundo relato do depoimento do Dr. Antunes da Silva prestado no evento,
Lopes-Graça, “[...] quando este fez vinte anos e precisamente no mesmo dia em que fizera
exame para professor do Conservatório, ambos foram presos e ficaram detidos no Governo
Civil de Santarém [...]”. Numa outra passagem deste relatório o inspetor completa: “Junta-se
também uma informação dos agentes que aqui estiveram presentes em Tomar, em serviço de
vigilância”. Logo, quando o evento era considerado perigoso, outro efetivo policial era
enviado as cidades em meio ao público. Por fim, este relatório de três páginas revela as
relações entre Censura e repressão na medida em que o agente tinha em mãos o roteiro
aprovado pelos serviços censórios:
No prosseguimento do espectáculo, a 2 ª. parte decorreu também com
normalidade dentro do programa visado, pela Censura, havendo contudo,
no fim do mesmo, umas três pessoas dispersas e em lugares diferentes, que
pediram ao LOPES GRAÇA a execução de CANTA, CAMARADA
CANTA,
261
a que se escusou [...]”.
262
Apesar desta tese abordar mais detidamente as décadas de 1960 e 1970, foram feitas
algumas reflexões sobre as duas décadas anteriores
263
porque estas revelaram um problema
comum enfrentado pelos músicos. No caso de Lopes-Graça, suas canções executadas por
‘desvio sexual’, ‘pederasta passivo’...” (p. 101).
261
No site oficial do PCP, o pesquisador musical Ruben Carvalho revela a origem deste hino: “[...] esta velha
canção de contrabandistas transmontanos adquirira durante o fascismo um cunho claramente progressista, não
apenas pelo facto de a Lopes-Graça se dever a sua divulgação, mas também pelo uso do vocativo camarada’”.
Disponível em: <http://www.pcp.pt/musicas/texto-ruben-carvalhesa.htm>. Acesso em 02 abr. 2005. O
cancioneiro revolucionário português e internacional foi também objeto de um curso oferecido, em 2004, pelo
mesmo autor no Museu Resistência e República/ Lisboa, do qual participou o autor da tese como aluno.
262
Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo, PIDE/DGS, proc. CI (2) 493, NT-7013, Refª. Nº. 648/971
– C.I. (1), datado de 20 dez. 1971.
263
Sobre esta relação entre as gerações, o poeta e jornalista João Apolinário lembra que os militares que
estiveram a frente do 25 de abril: “distinguem-se das gerações anteriores por uma agressiva formação e
informação culturais, forjadas nas décadas de 50 e 60, à revelia do ‘Estado Novo’” (1974, p. 41).
175
corais foram objeto de controle, mas nem por isso tiveram uma menor influência junto às
associações de trabalhadores, de estudantes e de movimentos democráticos ao longo destas
décadas. Lançadas em disco somente após o 25 de Abril, o cancioneiro conhecido como
“Canções Heróicas”, de Fernando Lopes-Graça, começou a ser composto em 1946 e foi
adensado até a década de 1960 também por canções populares portuguesas, de domínio
público. Segundo o próprio Maestro: “cantos tradicionais do nosso povo arranjados ou
harmonizados para coro misto sem acompanhamento”.
264
Em razão da proibição da execução de suas canções mais politizadas, executadas
também na clandestinidade, o autor começou a apresentar este seleto cancioneiro popular, a
partir de: “[...] um repertório de cantos que promanasse de uma realidade colectiva, de algo
em que o povo se reconhecesse e mediante o qual se exaltasse nos seus sentimentos e nas suas
aspirações a um viver pátrio íntegro e limpo de aviltações”.
265
Assim, quase 30 anos depois
de serem compostas, estas canções foram ainda muito executadas até mesmo depois da
Revolução dos Cravos.
266
O fato de as “canções heróicas” terem sido compostas para coros,
repercutiram também numa potencialização de seu discurso musical. Assim, além do coro
executante, também o público tende a acompanhar as canções, o que contribuiu sobremaneira
na importância adquirida por este cancioneiro, e não unicamente em seu viés político, afinal,
quando Lopes-Graça optou também pelos “cantos tradicionais” ele igualmente se contrapôs às
políticas culturais oficiais de “folclorização” da cultura popular, universo do qual também
faziam parte tais canções.
A coletividade referida é percebida nos seguintes trechos das “canções heróicas”: “E
acordai, depois/ das lutas finais/ os nossos heróis/ que dormem nos covais” (Acordai, a partir
264
Apresentação de Lopes-Graça presente no disco Canções Heróicas Canções Regionais Portuguesas e
reproduzidas integralmente na sua versão em CD, pela EMI Classics, 1998, nº. 7 243 5 55501 2 5.
265
Apresentação de Lopes-Graça presente no disco Canções Heróicas Canções Regionais Portuguesas e
reproduzidas integralmente na sua versão em CD, pela EMI Classics, 1998, nº. 7 243 5 55501 2 5.
266
Em 2004, o autor ouviu uma apresentação ao vivo do próprio grupo (no Palácio Foz- Lisboa) que
acompanhava Lopes-Graça na cada de 1970, o Coro da Academia dos Amadores de Música, cuja direção está
a cargo de Olga Prats. São hinos ainda com uma relativa inserção junto às camadas médias do país, em particular
nos grupos alinhados mais a esquerda no espectro político português.
176
da poesia de José Gomes Ferreira); “Vozes ao alto!/ Unidos como os dedos da mão/ havemos
de chegar ao fim da estrada/ ao sol desta canção” (Jornada, de José Gomes Ferreira); “Terra
Pátria será nossa/ mais este sol que te cobre/ será nossa/ mãe pobre de gente pobre” (Mãe
Pobre, de Carlos de Oliveira); “Vinde ver a primavera/ vós que sois da minha terra/ na raiz de
cada chão/ nasce um canto contra a guerra” (Convite, de Antunes da Silva); “Olhai que vamos
passar/ nosso canto é de verdade/ vinde connosco lutar/ nós somos a liberdade” (Cantemos o
novo dia,de Luísa Irene); “Nada poderá deter-nos/ pró assalto das muralhas/ nossos corpos
são escadas/ para as batalhas da rua/ nossos peitos barricadas” (Combate, de Joaquim
Namorado); entre outras.
267
Não foram apenas os portugueses os únicos estrangeiros alvos da vigilância política,
como no caso dos registros na Espanha. Também em Portugal o regime se ocupou dos artistas
vizinhos. Um destes citados é o músico espanhol Paco Ibáñez, parceiro em inúmeros
espetáculos na Espanha e na França ao lado do músico Luís Cília, exilado em Paris. No
arquivo da PIDE encontra-se um processo
268
relacionado ao músico espanhol, como num
recorte da matéria Cuentas Claras, do Frente Libertário, de 20 de maio de 1972, informando
da angariação de fundos para o periódico mediante: “[...] la idea de realizar en Paris, el sábado
10 de junio, una gran velada internacional de ‘F.L.’ en el palacio de la Mutualidad. Contamos
al efecto con el concurso de nuestro amigo Paco Ibáñez, el portugués Luis Cilia y otros
artistas de primera fila”. No mesmo processo encontra-se uma “Lista dos intelectuais
franceses que subscreveram o abaixo-assinado sobre a dissolução da S.P.E. [Sociedade
Portuguesa de Escritores].” Entre estes “franceses” estavam o poeta espanhol Rafael Alberti e
o músico Paco Ibáñez, ali identificado como ator. Como havia o nome de Paco Ibáñez na lista,
267
A autoria das poesias não aparece no encarte do CD Canções Heróicas Canções Regionais Portuguesas,
dados autorais obtidos a partir de CORREIA (1984, p. 16).
268
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 2349/65-SR, NT-3468. Neste processo consta o recorte do Frente Libertário, de
1972; outro recorte do Repúblico sobre a Festa da Emigração em Paris, de 1971, que contou com a participação
de Luís Cília, notícia vetada integralmente pela Censura; um abaixo-assinado e as fichas de alguns dos
signatários.
177
foi aberta uma breve ficha do mesmo. Nesta relação também figura o nome do cantor e
compositor francês Francis Lamarque, que na França montou um grupo com Stéphane
Golman, Eddy Marnay e Leó Ferré.
269
Estas assinaturas denunciavam o Governo Português por este ter dissolvido a
Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965, por esta ter atribuído um prêmio literário ao
romance Luuanda, do angolano Luandino Vieira
270
, então preso no Tarrafal. Ao fechamento
da S.P.E. seguiram-se prisões e destruição de materiais, coincidindo com a negativa da
UNESCO em relação à entrada de Portugal naquela organização em razão do regime ditatorial
português e de sua política colonialista.
Com as lutas pela libertação de Portugal, as prisões foram ocupadas por inúmeros
presos políticos das colônias. Além do escritor Luandino Vieira, encontra-se no arquivo da
PIDE/ DGS o processo do músico Liceu Vieira Dias, nome artístico de Carlos de Aniceto
Vieira Dias, nascido em 01 de maio de 1919, no Congo Belga. Sua atividade começou a ser
observada a partir de 1958. Em Angola, onde vivia, teve seu nome citado numa reunião,
conforme relatório de um informante de nome “Francisco”:
Realizou-se no dia 2/10/959, em casa do mestiço MACHADO, motorista da
Lusolanda, uma reunião, da qual fizeram parte os componentes do grupo
KIMBANDAS DO RITMO. Tratou-se de assuntos relativos à
independência de Angola [...] Também se falou de que dias mandaram
perguntar ao LICEU VIEIRA DIAS e AMADEU AMORIM se eles
continuavam a pertencer ao partido de independência ou se já tinham
desistido e que eles tinham mandado dizer que não desistiam enquanto não
vissem Angola em Liberdade [...] Luanda, 6 de Outubro de 1959.
FRANCISCO.
271
269
Léo Ferré teve uma certa inserção em Portugal devido a suas relações com Luís Cília que organizou seus
espetáculos em Portugal.
270
José Luandino Vieira participou do movimento de libertação, sendo preso pela PIDE em 1959 (Processo dos
50), novamente preso em 1961, sendo condenado a 14 anos de prisão. Foi transferido em 1964 para o Campo de
Concentração do Tarrafal, onde permaneceu até 1972.
271
IAN/ TT, PIDE/DGS, Delegação de Angola, proc. 2418 GAB, NT-8096.
178
O mesmo informante, em abril de 1960, voltaria a informar à PIDE sobre as reuniões
de grupos “com idéias subversivas e políticas” ligados ao N’Gola Ritmos. Liceu trabalhava
então como “empregado bancário”, de acordo com seus dados presentes no Resumo
Onomástico da PIDE/DGS. Neste fichário encontra-se informada a relação entre seu grupo
musical e as lutas de libertação: “Em 1958 fazia parte do grupo artístico angolano N’GOLA,
tendo sido seu presidente em 1959. Alguns ensaios deste conjunto eram substituídos por
reuniões do movimento para a Independência da Angola”.
272
Em razão de suas atividades
políticas, certamente não desligadas de sua atividade artística, envolvido no episódio
conhecido por “Caso dos 50”, nome dado ao julgamento de nacionalistas angolanos sob
acusação de “conspiração” contra o regime colonial português: “É preso em 17-6-59 e
condenado a dois anos de prisão maior, medidas de segurança e suspensão de direitos
políticos por dez anos, por conspiração contra a Segurança do estado, sob a forma de
associação ilícita e organização secreta”.
273
que se enfatizar que a segregação entre “indígenas” e “cidadãos” no interior das
colônias também gerou um mecanismo jurídico que facilitou a perseguição aos movimentos
de libertação e aos movimentos culturais que, de alguma forma, valorizavam a cultura nativa.
Esta repressão gerou um preconceito contra a língua, os ritmos musicais, então vistos como
sinais de uma cultura não civilizada. Nesse sentido, o trabalho do N’Gola Ritmos em
recuperar antigos gêneros musicais, cantando-os na língua local original, o kimbundu,
contribuiu no exercício de um reconhecimento e de uma valorização identitária.
Em entrevista à jornalista Milonga Santos, um de seus ex-integrantes, Amadeu
Amorim, enfatizou o papel desempenhado pelo grupo a partir das décadas de 1940 e 1950:
“quando cantávamos em kimbundu, as pessoas viravam a cara meio envergonhadas,
chamavam-nos os mussequeiros”. Como na perseguição sofrida pelos músicos portugueses
272
IAN/ TT, PIDE/DGS, Delegação de Angola, proc. 2418 GAB, NT-8096, ficha nº. 2418, p.02.
273
Idem.
179
mais engajados, os músicos angolanos também enfrentaram a censura e a repressão, pois,
ainda segundo Amadeu: “Tínhamos que saber fugir à polícia e dos seus informadores, os
chamados bufos, mas acabámos por fazer canções de absoluta reivindicação [...] E claro que
fomos descobertos, e, a seguir, perseguidos”.
274
Nesta mesma entrevista, Amadeu revela que, apesar de não terem gravado nenhum
disco com os primeiros integrantes do grupo, viram suas músicas gravadas até mesmo no
Brasil: [...] algumas que ainda hoje se cantam no Brasil
275
, como sendo música popular.
Apareceu inclusive uma nossa música numa novela e muitos tocam dizendo que é canção
popular”. Assim, apesar de ter suas canções gravadas em Portugal, Brasil e França, afirma
nada ter recebido em relação aos direitos autorais.
Contudo, as relações entre músicos brasileiros e angolanos não se resumem
unicamente a este breve caso citado. Muito pelo contrário, houve uma interessante troca de
experiências musicais nos dois países. Segundo o músico brasileiro Sivuca
276
, ele produziu o
primeiro disco angolano gravado na Europa: Africaníssimo Duo Ouro Negro com Sivuca,
pelo selo português Valentin de Carvalho, em 1959. Nesse mesmo ano, ele havia sido
demitido da TV Tupi por ter participado de uma greve e que o levou a reunir-se ao “grupo
Brasília Ritmos, [...] Atuou com este grupo durante três meses. Foi contratado por uma boate
de Lisboa e lá ficou até o ano seguinte”.
277
Foi justamente durante esta sua estadia em Lisboa
que o músico paraibano produziu este disco e do qual também participou com sua
inconfundível sanfona, como na canção Kurikutela, de Raul Aires Peres. O duo era formado
pelos angolanos Raúl Indipwo e Milu Mack-Mahom Vitória Pereira, que atuaram em Lisboa e
274
MILONGA, Silvia. Entrevista - Amadeu Amorim: a herança do N’gola Ritmos deve ser preservada. In: Casa
de Angola. Disponível em: <http://www.casadeangola.org/FIGURAS/ngola.htm>. Acesso em: 23 out. 2005.
275
Uma destas canções foi gravada por um dos entrevistados nesta tese, o músico brasileiro Geraldo Azevedo,
que gravou Mona Ami, de Tonito e Liceu Vieira Dias. In: AZEVEDO, Geraldo. A Luz do Solo.
Polygram/Barclay, n.º 827.904-1, 1985.
276
Mais informações sobre o músico e o disco em apreço, disponível em: <http://www.sivuca.com.br>. Acesso
em: 02 out. 2005. Sobre as canções que compõem o disco, ver em anexo.
277
Sivuca. Disponível em:
<http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?nome=Sivuca&tabela=T_FORM_A>. Acesso em 02 out. 2005.
180
em Paris, onde também tiveram contato com ativistas conterrâneos como Agostinho Neto e
Mário de Andrade.
De Angola viria outro músico fundamental na construção de uma moderna música
popular portuguesa: Luís Cília. Mudou-se para Lisboa aos 16 anos de idade para fins de
estudo. Foi um dos primeiros a compor canções contra a guerra colonial. Em Lisboa, morou
na Casa dos Estudantes do Império (CEI), reduto de oposicionistas à ditadura, entre eles,
muitos estudantes que haviam participado do então extinto Centro de Estudos Africanos,
como os futuros líderes das lutas de libertação colonial: “Amílcar Cabral (Guiné-Bissau),
Agostinho Neto (Angola), Francisco Tenreiro (um poeta natural de São Tomé e Príncipe e
falecido em Portugal em 1963) e Mário Pinto de Andrade (Angola)” (SERRANO, 1995, p.
101).
Esta lista de ativistas políticos e poetas pode ser adensada com outro antigo morador
da CEI, o guineense Vasco Cabral (1926-2005) que se tornaria um dos dirigentes do PAIGC
(Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) e participante do governo da
Guiné-Bissau entre 1974 e 2004. Em meio a esta intensa atividade política na CEI, espaço
privilegiado de formação política para os estudantes das colônias, também se desenvolveu ali
uma significativa atividade política clandestina na luta contra o colonialismo e contra a
própria ditadura em Portugal. Da mesma CEI surgiria outro cantor angolano que teve certo
êxito musical entre círculos oposicionistas em Portugal: Rui Mingas. Além de ter sido atleta
do Benfica e músico, teve maior relevância ao integrar o governo angolano após a libertação
colonial. Por fim, também foi o autor da melodia do Hino Nacional de Angola a partir da
letra de Manuel Rui Monteiro.
A situação política portuguesa levou Luís Cília a optar pelo exílio em Paris, tornando-
se, no início da década de 1960, uma das maiores referências da canção de protesto
181
portuguesa no estrangeiro, realizando inúmeros espetáculos pela Europa. Hoje, o músico
trabalha em Lisboa na criação de trilhas para teatro, dança, cinema e televisão.
Outro cantor de origem angolana é Fausto Bordalo Dias. Nascido em novembro de
1948, num navio entre Portugal e Angola, Fausto é considerado pelos críticos musicais
portugueses como um dos mais importantes compositores em atividade em Portugal. A
exemplo de seus companheiros da canção, também foi estudante universitário e estudante de
pós-graduação. Já em 1968, em Lisboa, iniciou uma destacada participação musical em meio
ao movimento associativo universitário. Teve maior visibilidade após o 25 de abril, mas
também foram encontradas nos arquivos da PIDE referências ao cantor. Numa delas, temos
mais uma comprovação das relações entre setores militares (que mais tarde organizariam e
efetuariam a derrubada do regime) e os músicos mais engajados, no caso, um relatório da
DGS de abril de 1971 sobre a realização de um espetáculo musical no Teatro Rosa
Damasceno, em Santarém, organizado pelos instruendos da Escola Prática de Cavalaria.
Segundo o agente Luis Francisco Sampaio de Melo, entre o público, o: “[...] coronel
Alexandre Leite de Almeida e tenente-coronel César Rodrigues Mano, bem como alguns
oficiais superiores, capitães e subalternos e ainda muitos sargentos e respectivas famílias de
alguns, muitos soldados recrutas do já referido curso do C.S.M. e praças”.
278
Ainda segundo o relatório, o espetáculo contou com a participação de José Jorge
Letria, António Macedo, Denis Cintra e “[...] Fausto, este natural de Angola e residente em
Lisboa [...] a balada Comboio de Angola, que foi cantada pelo FAUSTO é de carácter racial
dos maus tratos do branco para com os pretos...”. Segundo esta versão oficial, o evento esteve
em vias de ser anulado pelos comandantes pelo possível cunho político e que alguns militares
278
IAN/ TT, PIDE/DGS, Pasta José Jorge Letria, proc. 16359 CI (2),NT-7768. Relatório enviado pelo Chefe do
posto da DGS de Santarém ao Diretor da DGS Álvaro Pereira de Carvalho (acusado de ser um dos organizadores
da ão que assassinou o General Humberto Delgado), em 02 abr. 1971, e que, segundo o documento, foi
enviada também “uma cópia da respectiva gravação, das baladas que ali se cantaram”, cuja fita cassete não
estava anexa ao processo em apreço.
182
propuseram a Denis Cintra que ele cantasse algumas baladas e que o mesmo teria respondido:
“Vocês sabem muito bem que há baladas que se não podem cantar,e como tal não cantarei”.
279
Por outro lado, após o 25 de Abril, Fausto vai ter uma importância destacada na
renovação da estética musical da canção portuguesa, além de realizar trabalhos internacionais,
marcadamente na Espanha, junto aos cantores espanhóis.
Apesar do recorte empregado, reitera-se, não foram os músicos os maiores atingidos
pela polícia política. Os fichários da PIDE contam com centenas de milhares de prontuários e
são fruto de uma atuação heterogênea da polícia a partir da instalação da ditadura em 1926.
Portanto, as mudanças jurídicas também se adequavam aos alvos preferenciais do regime, o
que levou a períodos de maior repressão a setores como o operariado, os camponeses,
estudantes ou militantes de esquerda, muito embora este último grupo tenha sido objeto de
atenção desde o início da ditadura.
No caso do músico Carlos Paredes (1925-2004), sua prisão não foi motivada por sua
atividade musical. Em 1957, começou a ser investigado pela PIDE em razão de suas supostas
ligações com o PCP através de uma célula no Hospital de São José, onde trabalhava como
escriturário. Em setembro do ano seguinte, acusado de exercer atividades subversivas, foi
preso na cadeia do Aljube, sendo transferido para a prisão de Caxias no mês seguinte. Julgado
mais de um ano depois, foi condenado a 20 meses de prisão, sendo solto em 21 de dezembro
de 1959, de acordo com sua “biografia prisional”.
280
Seu caso está incluído num longo
processo (com mais de 500 folhas) contra treze ativistas ligados ao PCP. Numa parte do
processo consta um relatório sobre o julgamento do grupo junto ao Tribunal Plenário de
Lisboa, em 15 de dezembro de 1959, presidido pelo Desembargador João António da Silva
Caldeira.
279
IAN/ TT, PIDE/DGS, Pasta José Jorge Letria, proc. 16359 CI (2),NT-7768. Consta ainda anexa a
programação do evento “Sarau dos Instruendos”.
280
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. RGP-23265.
183
Neste documento uma identificação do que acontecia com os presos acusados e
julgados de subversão. Durante o início da sessão, um dos advogados de defesa criticou o fato
de não poder falar com seu cliente, de “provas” contra os réus terem sido anexadas fora do
prazo, os relatos de tortura e a explícita parcialidade dos juízes. Quando o advogado fez a
denúncia, ouviu do Desembargador que: ou “[...] deve obediência ao Tribunal e obedece ou é
posto na rua”.
281
Quando o réu Rolo Antunes declarou que esteve preso uma vez por
“defender a paz”, o mesmo “meritíssimo” voltaria a expor a farsa destes julgamentos: “Não
sabia que ofender a polícia é defender a paz”.
282
No mesmo relato, o réu denunciou ter sido
vítima de torturas horríveis que o levaram a “[...] desmaiar constantemente, durante 4 dias e 4
noites de estátua”.
283
Os réus Carlos Alberto Jorge Consiglieri, António dos Reis Madeira,
Manuel Rodrigues e José Olaio Valente também relataram as violências sofridas na prisão.
Este processo revela ainda as estratégias de resistência dos presos, as greves de fome,
as torturas e maus tratos, as proibições das visitas e de livros, e até mesmo as táticas de defesa
dos presos durante os interrogatórios e nos plenários. No julgamento citado, as testemunhas
de acusação eram dois agentes da PIDE (Tinoco e Cândido Pires), as de defesa eram várias e
algumas de muita coragem, pois atacavam diretamente o poder. Uma das testemunhas de
Mário Gonçalves, o “mulato” António Figueiredo de Meneses da Graça Espírito Santo, aluno
de Engenharia, irritou os representantes do Estado presentes no plenário ao afirmar que em
“Portugal, toda a juventude é democrata e, portanto, oposicionista”.
284
Em razão das
restrições impostas às visitas aos presos políticos, estes fizeram uma greve de fome, bateram
nas grades e cantaram A Internacional. Em razão deste protesto sete presos foram enviados
para a solitária por dez dias e aos demais foi aplicada a proibição de visitas por dois meses.
285
281
IAN/ TT, PIDE/DGS, Pasta Carlos Paredes, série: PC, nº. 894/58, folha 486-98.
282
Idem.
283
Idem.
284
Idem, folha 490.
285
Idem, folhas 559-67, nº. doc. 1029/60.
184
Apesar de Carlos Paredes ter sido solto em 1959, vários de seus companheiros
permaneceriam na prisão por mais cinco anos. À sua ficha política seriam anexadas a partir do
final da década de 1960 novas acusações desta vez relacionadas aos inúmeros espetáculos que
participou como músico. Os relatórios da DGS são tão pormenorizados que durante um
almoço de opositores políticos em Santarém, em 1970, e que contou com a apresentação de
Paredes e de Fernando Alvim, o agente informou até mesmo que “O peixe confeccionado para
o almoço foi pescado pelo Joaquim da Silva Casanova e cozinhado por Maria Cesária Roças
da Cruz”.
286
Esta documentação da polícia política de Portugal traz algumas variantes em relação
ao caso brasileiro, a mais nítida decorre de sua longa existência em período ditatorial, que vai
de 1933 a 1974. Inicia-se com a criação da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE),
pelo Decreto-Lei nº 22 992, de 29 de agosto de 1933, mais tarde substituída pela PIDE, criada
em 22 de outubro de 1945, pelo Decreto-Lei 35 046, por fim também suprimida com a
criação da DGS, pelo Decreto-Lei nº 49 401, de 24 de Novembro de 1969.
Após o 25 de Abril, os revolucionários encontraram estes arquivos e tiveram acesso a
uma vasta documentação. Porém, a partir de 25 de novembro de 1975, novamente estes
arquivos estariam sob o poder de outros grupos políticos. Nesta data, uma ofensiva contra-
revolucionária pôs fim às propostas da esquerda militar e, embora não trazendo uma
restauração, foi expressão da vitória das forças conservadoras e desativou, “[...] na prática, a
componente militar avançada que poderia, aliada aos segmentos mais conseqüentes do
movimento popular e democrático, viabilizar transformações numa concreta perspectiva
socialista” (NETTO, 1986, p.61).
286
IAN/ TT, PIDE/DGS, Pasta Carlos Paredes, série: PC, nº. 894/58, folha 03-4, nº. doc. 15/70 CI (1)
Confidencial, pelo chefe do posto da DGS, o agente Helder Sousa dos Santos, em 27 jul. 1970.
185
Portanto, após a queda da ditadura em 1974, tal documentação esteve sob a guarda dos
dois extremos políticos da sociedade portuguesa. Acredita-se que a totalidade desta
documentação esteja mesmo depositada na Torre do Tombo desde 1992. Não obstante, outros
arquivos são também passíveis de análise, pois:
[...] a Pide não agiu sozinha. Às pessoas, individuais, ou colectivas, às
instituições, a lei aconselhou ou obrigou à colaboração activa com a polícia
política. É assim que outros arquivos são complementares deste, muito para
além dos organismos de que dependeu ou com os quais manteve contactos
preferenciais (COSTA, 1997, p. VI).
Logo, a autora relembra que, além do arquivo da PIDE/DGS, os milhares de “bufos”,
ou seja, informantes, bem como os inúmeros arquivos alocados na Torre do Tombo são fontes
importantes para a compreensão do funcionamento da polícia política, como os arquivos do
Ministério do Interior, Secretaria de Estado/ Ministério dos Negócios Estrangeiros, Arquivo
Salazar, Secretaria/ Secretaria Geral da Presidência do Conselho, Secretariado de Propaganda
Nacional/ Secretariado Nacional de Informação/ Secretaria de Estado da Informação e
Turismo, Direcção-Geral dos Serviços de Censura, Direcção-Geral de Turismo, Legião
Portuguesa, Intendência Geral de Segurança Pública/ Direcção-Geral de Segurança
Pública/Comando Geral da Polícia de Segurança Pública, Ministério da Educação Nacional,
Junta Nacional de Educação, Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa e Mocidade
Portuguesa Feminina, entre outros.
Apesar de centrar sua pesquisa na atuação da polícia política portuguesa de 1926 a
1945, Maria Ribeiro caracteriza o fim último deste tipo de instituição:
[...] a polícia política foi, sem dúvida, um instrumento fundamental para a
consolidação e a manutenção do Estado Novo, não apenas pela sua acção
repressiva mais directa, mas também ou talvez sobretudo ao fomentar o
medo, compondo uma imagem global de omnisciência ominipresente (que,
186
como vimos, se afastava significativamente da sua actuação real),
contribuindo assim decisivamente para concitar a atitude de conformismo
social e político que o regime se aplicava em instalar e adestrar. (RIBEIRO,
1995, p. 276).
A autora assevera justamente sobre as ações efetivas da polícia e sua conseqüente
representação de poder junto à população. Logo, estas práticas produziam duplos efeitos de
controle social, como o ocorrido com a Censura em ambos os países. Ao censurar produz-se o
efeito do corte imediato da obra artística e tem sua continuidade no desencadear de um
processo de autocensura. O censor, racional ou inconscientemente, se incorpora no autor. No
tocante à repressão policial, esta sensação de insegurança ante os poderes ditatoriais produz
também este poder ambivalente. Todavia, o fato é que o medo e a ameaça efetiva não são
perceptíveis, podiam ou não se traduzir na prisão ou na condição de vigiados. Na dúvida, a
“lógica da desconfiança” também se refletiu na oposição política.
Entretanto, a violenta repressão portuguesa não se construiu unicamente na
disseminação do medo, ela teve na PIDE seu principal braço armado. Além de contar com
cursos no exterior, como nos EUA, também possuía uma Escola Técnica, que além de formar
seus quadros, formava elementos de outras instituições para atuarem secundariamente na
repressão política como a Polícia Judiciária, Polícia Militar, Guarda Nacional Republicana e
até mesmo o pessoal dos Correios, voltado a conhecida violação das correspondências
287
.
Ali os alunos aprendiam noções de Direito, organização de processos, fotografia, armamentos,
doutrinas políticas, polícia científica, entre outros temas (CAMPOS, s./d. b, p.163).
A repressão também contava com o apoio decisivo dos tribunais, e não apenas
militares. Afinal, em ambos os países, os tribunais e seus juízes também foram ora coniventes
ora responsáveis pela dureza imposta pelas penas relacionadas aos julgamentos de ordem
287
Aliás, prática também freqüente na ditadura brasileira como se depreende em documentos encontrados nos
arquivos dos DOPS. Ver ainda em Beatriz Kushnir (2004, p. 111).
187
política. Estes juízes, além de não terem sido processados ao final das ditaduras, foram muitas
vezes poupados até mesmo nas denúncias. A leitura de alguns processos da PIDE revela uma
visão extremamente parcial destes juízes, imbuídos de uma perfeita sincronia com a ideologia
da ditadura e omissos em relação às acusações de tortura e de incompatibilidade entre a lei e o
tempo de prisão dos acusados.
O arquivo da PIDE/ DGS continua sendo objeto de muita atenção por parte dos
pesquisadores e de pessoas que possuem fichas ou que vão levantar referências de parentes
fichados naquela antiga polícia política.
288
Na apresentação do livro Guia de Exposição da
PIDE/DGS, José Mattoso enfatiza a importância de seu conteúdo: “tão variado, tão
surpreendente e tão emocionante, pelo que revela de íntimo, de oculto, de apaixonado, de
polémico, de generoso, de perverso, enfim de obscuro início de uma nova era para a
sociedade portuguesa” (MATTOSO, 1997, p. I).
Ao final da ditadura, as fichas políticas despertaram prontamente a curiosidade
“daqueles que passaram pelas malhas da Pide”, segundo depoimento de João Apolinário,
apenas quatro meses após o 25 de abril, estes registros serviram como salvo conduto num
tempo em que a desconfiança ainda pairava no ar: “[...] carteira de identidade que prova que
seu titular foi vítima dessa polícia e, consequentemente, não pode ser suspeito de ter
colaborado nessa fantástica rede de informantes montada em todo o país, coisa que, aliás,
muita gente está ansiosa por provar” (1974, p. 28). Entretanto, a PIDE não foi uma instituição
única, outras polícias políticas, como os DOPS, também se encarregaram da vigilância e da
prisão de seus opositores.
288
No documentário Duas histórias de prisão (Direção de Ginette Lavigne, LX Filmes, 112 min, 2004) a ex-
presa política Maria José Campos é filmada durante todo o percurso para chegar até os documentos da PIDE na
Torre do Tombo, da consulta junto aos terminais informatizados à chegada da caixa em que se encontrava seu
processo. Tal percurso foi realizado também nesta pesquisa durante vários meses. Observamos que diariamente
chegavam inúmeras pessoas pedindo seus processos e algumas destas histórias de prisões foram ouvidas pelo
autor.
188
2.2 A REPRESSÃO BRASILEIRA: POR ISSO CUIDADO, MEU BEM, PERIGO
NA ESQUINA
Como afirmamos na introdução deste trabalho, os arquivos dos DOPS, além de
exporem suas ações práticas por meio da repressão, revelam também a produção e a
circulação de informações que, por sua vez, devem ser balizadas a partir de outras referências.
Afinal, apontam para uma visão unilateral, mas nem por isso meramente reflexo de uma
“representação” ou “imagem” que a repressão construiu da oposição. Afinal, esta indústria de
informações também deu suporte às operações que levaram as pessoas à prisão, à tortura, ao
“desaparecimento”; bem como produziu e reforçou o convencimento dos ideais do regime nas
próprias fileiras da repressão. Ao tratar das comunidades de informações e os efeitos
discursivos do material por ela produzido, Carlos Fico (2001, p. 21) alerta:
Tais informações não se constituiam em um amontoado caótico de folhas
dispersas abordando temas fragmentados, por vezes de maneira ridícula e
sempre mobilizando um certo jargão. Configuravam, isto sim, uma rede
intertextual produtora de eficazes efeitos de sentido e de convicção [...] uma
das formas do agir da comunidade de segurança e de informões foi o
estabelecimento dessa relação entre ela própria, que “executava”, e os demais
militares, que a admitiam, baseada na força de elocução de um tal discurso
que assim vivificava, recriava-se continuamente e sustentava ações.
No Brasil, os arquivos dos DOPS consultados indicam que, embora não houvesse um
controle de cunho totalitário, as instâncias de controle estatal da produção musical eram
diversas. Contudo, este controle não é completamente eficiente, como pode ser explicado,
ironicamente, na própria documentação da repressão. Por exemplo, no arquivo do DOPS da
Guanabara, encontra-se um pedido de busca
289
, de 1969, em relação à subvenção estadual
289
Assunto: Subvenção estadual para teatro subversivo, Origem: SSP/DOPS/ Guanabara, Inform. nº 0575,
datado de 06.06.1969, Arquivo do DOPS/ RJ, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Sobre este tipo de
189
concedida a dez companhias de teatro, entre elas duas consideradas “subversivas”: o grupo
Opinião, “que cinco anos é o porta-voz do comunismo teatral” e a “companhia Paulo
Autran”. O Governo do Estado responde que a concorrência foi pública e que eles não tinham
como vetar. Logo, tem-se um governo que, embora vinculado aos militares, financiou projetos
culturais, como destes grupos paradigmáticos de oposição política e cultural à ditadura, como
era o caso do Opinião. Contudo, estes casos não eram regra, porém a exceção, visto que o
Golpe Militar de 1964 não se contrapôs unicamente aos rumos da política, mas também das
experiências estéticas e temáticas presentes em diferentes expressões artísticas.
No campo da música, foi criada uma dinâmica de controle que abarcava desde os
grandes festivais de música popular até os pequenos festivais em colégios, em pequenas ou
médias cidades, ou ainda nas periferias dos grandes centros urbanos. No arquivo do DOPS/
RJ, consta um documento confidencial, de 1968, com o assunto “Apresentação em escolas de
compositores e artistas que participaram do Festival Universitário de Música Popular”. Nele é
informado que no dia 6 de setembro, no Colégio Bennett, no Rio de Janeiro, ocorreu um
espetáculo em que o apresentador teria dito que pretendiam “levar a mensagem dos
universitários aos estudantes de nível médio, de modo que estejam prontos para a luta quando
ingressarem na escola superior”. Na seqüência, o mesmo documento informa que as “músicas
apresentadas eram de protesto, e algumas, imorais; houve ‘piadas’ contra o regime. Fizeram
alusão à Parada de 7 de Setembro, dizendo: ‘Amanhã haverá passeata dos militares”
290
.
Cerca de três meses depois deste evento na escola é decretado o AI-5 e a Seção de
Buscas Especiais, em junho de 1969, continuava investigando os organizadores, os
informação, Carlos Fico esclarece sobre o processo que envolvia o trabalho das comunidades de informações
que alimentavam órgãos como os DOPS: “‘Planos de Busca’, precedidos dos respectivos ‘Pedidos de Busca’,
orientavam a etapa inicial da produção de informação, que era dividida em quatro ‘fases’: planejamento da
missão, reunião dos conhecimentos pertinentes, processamento dos dados e difusão da informação aos demais
órgãos do sistema” (2001, p. 97).
290
Assunto: Apresentação em escolas de compositores e artistas que participaram do Festival Universitário de
Música Popular, Origem: CENIMAR, Difusão: I Ex – DOPS/GB, Inform. nº 756, datado de 19.09.1968,
Arquivo do DOPS, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
190
participantes e assim convocou a diretora do Colégio para explicar porque teria autorizado o
espetáculo. No depoimento da diretora Perside Leal Soares, ela confirmou as piadas e
lembrou uma outra: “[...] como também fizeram baixar um cenário que estava pintado uma
‘dentadura’ enquanto o locutor dizia ‘abaixo a dentadura’”.
291
Todavia, este depoimento não
trouxe muitas informações para os agentes, foi até evasivo. No documento não há uma
continuidade na investigação e não aparece o resultado das diligências, muito embora
apareçam outros dados como o nome do apresentador, Humberto Ramos dos Santos, bem
como a informação de que uma apresentação semelhante havia ocorrido na PUC/ RJ.
Por fim, informa que o espetáculo não tinha sido enviado ou autorizado pelos serviços
de Censura o que impediu a identificação das canções e dos músicos. Se de fato tratar-se da
apresentação de cantores que participaram do Festival Universitário da Canção Popular
(1968), este teve como um dos finalistas o então estreante compositor Gonzaguinha, com sua
canção Pobreza por Pobreza, defendida por Jorge Néri. Este Festival foi vencido por
Taiguara interpretando a canção Helena, Helena, Helena, de Alberto Land, e teve outro futuro
integrante do MAU, a exemplo de Gonzaguinha, o compositor César Costa Filho, com o
lugar com Meu tamborim, parceria com Ronaldo Monteiro de Souza, interpretada por Beth
Carvalho (HOMEM DE MELLO, 2003, p.470).
No arquivo do DOPS do Rio Grande do Sul, nos poucos documentos ali disponíveis
sobre o período, encontra-se registrada a preocupação da polícia com o movimento estudantil.
Por exemplo, a circular intitulada “Atividade estudantil”, de 1975, no item “dados
conhecidos” denunciava as programações de recepção aos alunos ingressantes nas
291
Seção de Buscas Especiais, Difusão: SSP/ DOPS/GB, Inform. 756/68, datado de 03.06.1969, Arquivo do
DOPS, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. A canção de Raul Seixas, Dentadura Postiça, também
trabalha com esta dubiedade: “Vai cair, vai cair, vai cair/ A estrela do u/ Vai cair a noite no mar/ Vai cair o
nível do gás [...] vai subir o elevador/ o preço do horror/ o nível mental”. In: SEIXAS, Raul. Krig-há, bandolo!
Philips, 6349078, 1973.
191
universidades, utilizando como exemplo o grau de politização destas atividades na
Universidade de Brasília:
Durante a apresentação do show do dia 24 ago. 1974, o cantor FAGNER, a
meio da apresentação, parou de cantar e avisou ao público universitário
presente que “agissem com muita cautela, pois a repressão estava sumindo
com muita gente”. O relato concluía: “Nenhuma atitude foi tomada a
respeito pela direção da UnB”.
292
No item “dados solicitados” do documento em apreço, em alusão ao caso de Brasília:
“Solicita-se a esse órgão vigiar a recepção aos calouros das Faculdades pertencentes à
Fundação Universidade de Rio Grande (FURG) no início do ano letivo”.
293
A repressão
atingiu duramente a classe universitária o que se refletiu até mesmo na faixa etária da
população de presos políticos. O General Antonio Carlos Muricy, em entrevista ao Jornal do
Brasil (19 jul. 1970), já afirmava que mais da metade dos 500 presos políticos eram jovens
com idade média de 23 anos (GASPARI, 2002b, p.204).
Esta camada também coincidia com a idade média dos músicos que participavam dos
festivais, de bandas de baile (que nas horas vagas produziam sons diferentes), de gincanas.
Nos arquivos dos DOPS é possível encontrar registros de músicos anônimos, presos em razão
de sua atuação musical, ou por sua participação política indiretamente ligada à música. Logo,
seria necessária uma análise mais aprofundada junto a esta documentação para melhor
caracterizar o alcance da repressão junto a uma maior gama destes atingidos.
É provável que não haja nestes arquivos do DOPS, pelo menos nos que estão liberados
aos pesquisadores, documentos com revelações bombásticas sobre a ditadura militar.
292
Coincidentemente, a organização de tal espetáculo contou com a participação da então aluna da UNB, a Prof.ª
Dr.ª Zélia Lopes da Silva, hoje docente do Programa a que está vinculado a presente tese.
293
Assunto: Atividade estudantil, Origem: DOPS/RS, Inform. 832/ 74/ DBCI/DOPS/RS, datado de
20.02.1975, Arquivo do DOPS, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul/ Comissão do Acervo da Luta contra a
Ditadura.
192
Acredita-se que as informações mais significativas do período possam ser encontradas em
outras instituições, como na documentação dos serviços de informação citados anteriormente.
Vale ressaltar ainda que todo este material expressa as visões do Estado e que nem tudo
registrado é a expressão da verdade ou que foi de fato implementado. Um caso ilustrativo
advém da preocupação da ditadura brasileira com a política portuguesa pós-25 de Abril.
Afinal, a Revolução dos Cravos fez com que fosse aventada até mesmo a proposta de um
quixotesco ataque a Portugal, o que obviamente sequer chegou a ser discutido de forma mais
efetiva no interior do Governo.
Segundo Gaspari (2002a, p. 170), a partir de um documento de 13 de agosto de 1975,
do Serviço Nacional de Informações, este órgão foi: “[...] condônimo de arsenais secretos que
chegou a pensar em utilizar numa megalomaníaca tentativa de invasão de Portugal, em 1975.”
Com esta queda da ditadura em Portugal, abrandaria a antiga e estreita relação entre os dois
regimes autoritários. Ao analisar os contatos entre os serviços de inteligência brasileiros com
outros similares, Gaspari lembra do convite recebido pelo mentor do SNI, Golbery do Couto e
Silva, que em 1964, do: “[...] embaixador em Lisboa, recebeu ofertas do ministro do Exército
de Portugal para visitar a Escola do Comando de Luanda, onde eram treinadas tropas para
ações antiguerrilheiras que combatiam os movimentos pela libertação de Angola e
Moçambique” (GASPARI, 2002a, p.170).
Em 1966, o então jornalista Fernando Gabeira, ao cobrir a visita do Ministro das
Relações Exteriores do Brasil, Juraci Magalhães, ao Governo português, reiterou as relações
entre as duas ditaduras e sua inconstante questão de apoio do Brasil à política colonial
portuguesa junto à ONU – Organização das Nações Unidas:
193
[...] descobri logo que ele vinha discutir a criação de um porto livre em
Luanda, capital de Angola. Mais uma vez, por baixo daquela retórica da
secular amizade luso-brasileira, fazia-se uma troca extremamente negativa:
o Brasil buscava certas vantagens econômicas nas colônias e se abstinha de
votar contra Portugal nas Nações Unidas. (GABEIRA, 1979, p. 37).
Esta não seria nem a primeira, nem a última vez que estas viagens aconteceriam.
Numa matéria do Jornal Lusitânia aprovada pelo censor, encontrada nos arquivos da Censura
portuguesa, desta vez é informado na matéria “Político brasileiro e Conselheiro da Embaixada
Britânica visitam Angola”,
294
que o deputado estadual da Guanabara, Francisco da Gama
Silva, pela ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido do Governo Militar, visitaria nos
próximos dias a cidade de Luanda.
A realidade portuguesa interessava à ditadura brasileira. O ex-assessor de ministros de
antes e depois dos anos de autoritarismo, Adirson de Barros em seu livro Março: Geisel e a
Revolução Brasileira, de 1976, ao falar da “comunização de Portugal”, afirma: “E tudo
começou, em Portugal, com a infiltração comunista nas Universidades, nos quartéis, nas
áreas sindical e de imprensa.” Com esta análise justificava o alerta em relação à “subversão”
no Brasil, pois o caso português caracterizava: “[...] o domínio de um país democrático pelos
comunistas [...] o controle do poder sindical, a influência sobre o sistema de comunicação
social, no show-business e nas artes; a infiltração no setor cultural e na educação [...]”
(BARROS, 1976, p. 20). Estas palavras convergem para as justificativas freqüentemente
utilizadas pelos militares, ao longo dos vinte anos de ditadura no Brasil, para desenvolver e
implementar todo um complexo mecanismo de repressão e censura, e, claro, não só à música.
Com base na documentação da polícia política, pode-se perceber como a história
nacional ultrapassava seus limites geográficos. O músico brasileiro Ricardo Vilas (Ricardo
Vilas Boas Rego) foi um dos presos políticos trocados, quando do seqüestro do
294
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 140, Lusitania, folha nº 21, de 08 fev. 1974.
194
embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick
295
no Brasil por grupos armados de esquerda,
em 1969. Este músico traduz parte da juventude estudantil e sua freqüente inserção nos
movimentos de contestação política ao longo da década de 1960. Iniciou seu engajamento
político na luta contra a ditadura ainda no Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro. Segundo
Élio Gaspari (2002a, p. 226), dezesseis alunos deste colégio integraram-se em duas
organizações armadas, destes, oito foram presos. Vilas integrou o grupo musical
296
Momento
Quatro composto por Maurício Maestro, Rodrix, David Tygel e Ricardo (seu nome
artístico de então). Este grupo participou de inúmeras eliminatórias dos festivais entre 1967 e
1968
297
, mais tarde, em carreiras solo ou em outras formações, seus integrantes
permaneceriam no cenário da MPB nas últimas décadas.
Apesar da relação entre música e política, são poucos os registros dos músicos
fichados nos DOPS exclusivamente por suas atividades musicais. Por exemplo, a prisão de
Ricardo Vilas em 1969 decorreu de sua ligação a movimentos de oposição à ditadura militar,
mais precisamente acusado de subversão e de tentativa de homicídio, conforme documentação
presente no DEOPS/ São Paulo. Segundo sua ficha no DOPS do Paraná: “Em 10.05.69
Consta que o fichado foi detido pela polícia carioca DOPS por tentar balear dois agentes do
DOPS e ser encontrado em seu apartamento forte material subversivo (V.p. DOPS/Rio
Tribuna PR)”.
298
295
Sobre ele, afirmou Gaspari (2002b, p. 88): “Servira em Lisboa no início da década [de 1960] e estimulara um
golpe militar fracassado contra a ditadura do professor António de Oliveira Salazar”.
296
Aliás, uma constelação de grupos vocais e instrumentais surgiu a partir de 1967 disputando os festivais da
canção, alguns de existência circunstancial: MPB-4, O Quarteto, A Brazuca, O Bando, Quarteto Novo, Quarteto
em Cy, Modern Tropical Quartet (que chegou a contar com Ivan Lins e Aldir Blanc), Golden Boys, Quarteto
004, Quinteto Agora 5, Os Três Morais, Opus 4, Agora 4, Conjunto 4, Quarteto Forma, entre outros.
297
Por meio das canções: Diana Pastora (Fernando Lobo e João Mello) com Marília Medalha e com a mesma
cantora e com Edu Lobo, na vencedora Ponteio (Edu Lobo), ambas do III Festival de MPB, de 1967; Sem
despedida (Macalé), ao lado de Joyce, no II Festival Internacional da Canção Popular, de 1967; Charrete (José
Rodrigues), no IV Festival da MPB, de 1968; e Ultimatum (de Marcos e Paulo Sérgio Valle) ao lado de Maria
Odete, alcançando o 2º. lugar no II Festival Nacional da MPB, de 1968.
298
Ficha individual, n.º 9347, DEAP 34025, rolo 2274, datado de 10.05.1969, Arquivo do DOPS, Arquivo
Público do Paraná.
195
No Arquivo Público do Estado de São Paulo, junto à documentação do Fundo DEOPS
Departamento Estadual de Ordem Política e Social, destaca-se o registro em que Luiz
Rodolfo de Barros C. V. de Castro,
[...] revendo o álbum fotográfico de banidos e exilados no exterior, o depoente
reconhece [...] Ricardo Vilas Boas de Rego que o conheceu
superficialmente no Brasil quando o nominado fazia parte de um conjunto
musical, chamado Momento Quatro, que veio a revê-lo na França, onde
continua na carreira artística (músico-violonista).
299
Ricardo Vilas apareceria em outros inúmeros documentos desta polícia política, em
que figura como um dos banidos do país através do Ato Complementar nº. 64, de 05 de
setembro de 1969, conforme publicação do Diário Oficial.
300
Sua prisão ocorreu quando este
tinha apenas dezessete anos de idade. Segundo o mesmo
301
, não foi torturado apesar das
freqüentes ameaças para que fornecesse informações, senão sofreria o que “Caetano Veloso
tinha sofrido dias antes” nas mãos dos mesmos policiais. O fato é que os agentes
convenceram-se de sua discreta participação na Dissidência Comunista da Guanabara, o que,
segundo Vilas, realmente era verdade. Entretanto, quando o seu nome constou na lista dos
trocados pelo embaixador, a repressão novamente se convenceu de que ele estava mentindo e
que era muito mais importante do que parecia. A reação dos órgãos de repressão foi a de
publicar nos jornais que ele e a única mulher da lista, Maria Augusta Ribeiro Carneiro, não
queriam ser trocados. O que foi no dia seguinte desmentido por seus parentes o que,
provavelmente, livrou-os de uma longa permanência na prisão.
Ainda no tocante às relações entre canção popular e política, lembremos o caso da ex-
presa política Lilian Celiberti, em suas memórias organizadas por Lucy Garrido no livro Meu
quarto, minha cela, em que relata todo o seu sofrimento desde o seu seqüestro, em 1978, pelo
299
Pasta 50-E-332072, datado de 28 de agosto de 1978, arquivo DEOPS, Arquivo do Estado de São Paulo.
300
Pasta 50-Z-130-5067, arquivo DEOPS, Arquivo do Estado de São Paulo.
301
Depoimento ao autor, em Paris, 14.09.2004.
196
Exército uruguaio e pelo DOPS/ Rio Grande do Sul, no Brasil, até sua prisão no Uruguai. Ela
se recorda das canções do espanhol Joan Manuel Serrat e de Miguel Hernández. Além do
aspecto lúdico, as canções também serviam como senhas: “Ao mesmo tempo e prevenindo
situações posteriores, organizamos um código de músicas para transmitir informação de setor
a setor” (p. 77). Tais canções também trouxeram problemas a Lilian, como numa
comemoração de aniversário: “Uma hora depois, chamavam uma companheira e a mim e nos
comunicam uma punição de vinte dias por cantar músicas subversivas” (p. 89). Estas presas
também encontravam nas canções um alento e um exercício de lucidez.
Apesar de não envolver diretamente pessoas por suas atividades artísticas, uma das
questões mais discutidas nos últimos anos em relação às ditaduras advém da chamada
“Operação Condor”. Nos arquivos dos DOPS são encontradas inúmeras fichas de pessoas
investigadas por esta polícia política. Após o Golpe de 1964 no Brasil, estas polícias
dinamizaram uma operação sistemática de controle, acompanhamento, prisão e tortura de
suspeitos de atentarem a uma suposta “Segurança de Estado”, ou, como era mais comum
naqueles anos, aqueles que poderiam estar envolvidos com a “subversão”. Uma característica
comum na polícia política brasileira era a preocupação com os estrangeiros. Assim, o que
era uma “lógica da desconfiança” junto aos estrangeiros, tornou-se mais sistemática com a
“Operação Condor”:
No exterior, [o Presidente] Figueiredo ficaria conhecido como um dos
principais coordenadores da Operação Condor a parceria dos governos
militares do Brasil, do Uruguai, do Chile, do Paraguai, da Bolívia e da
Argentina que visava caçar e matar seus inimigos comuns.
(FIGUEIREDO, 2005, p. 291).
A “Operação Condor” veio à tona em 1992, no momento em que o ex-preso político
paraguaio Martín Almada localizou em Assunção o “Arquivo do Terror”, com milhares de
documentos sobre o plano arquitetado pelos governos autoritários do Paraguai, Brasil,
197
Argentina, Chile, Uruguai e Bolívia, bem como com o apoio dos Estados Unidos. No caso do
Brasil, no ano de 2000, foram feitas denúncias sobre documentos encontrados nos arquivos do
Centro de Informações do Exército (CIE) que comprovariam uma lista de argentinos
procurados pelas autoridades brasileiras a pedido da ditadura argentina, já em 1976.
302
Nos arquivos dos DOPS também se encontram prontuários de inúmeros músicos
estrangeiros. Por exemplo, no DEOPS encontram-se dezesseis documentos em que o nome da
cantora argentina Mercedes Sosa foi citado primária ou secundariamente entre 1977 e 1982.
Esta documentação se refere a espetáculos no Brasil; participação em eventos, como no
Festival Nacional Mulheres nas Artes, em 1982; por ter sido aludida em um manifesto: “Ref.
Citada no panfleto ref. 30.000 desaparecidos na Argentina”
303
; ou ainda por ser “cantora
conhecida como intérprete de canções de protesto”
304
; entre outros. No Brasil, não foi
diferente a repressão aos estrangeiros considerados inimigos da Segurança Nacional, constam
entre os “desaparecidos” três argentinos: Noberto Armando Habeger, o padre Jorge Oscar
Adur e Ernesto Ruggia (TELES, 2001, p. 179).
A partir da documentação do DOPS também é possível perceber as zonas de
intersecção entre os mecanismos de censura e repressão de Brasil e Portugal. No arquivo do
DOPS do Paraná, encontram-se dossiês de portugueses proibidos de entrarem no país;
documentos sobre o controle da censura de informações sobre a Revolução dos Cravos e da
chegada dos políticos expulsos. No Dossiê Subversivos Portugueses
305
, encaminhado pela
Secretaria de Segurança Pública do Paraná ao Serviço Nacional de Informações Agência
Curitiba, é informado que, a partir de depoimento de fonte idônea, pertencente à Colônia
Portuguesa”, havia planos de portugueses radicados no Brasil de repassar informações sobre a
302
Operação Condor: Brasil "caçou" argentinos no país em 1976. Folha de São Paulo, 20/05/2000.
303
Arquivo do Estado de São Paulo. Arquivo DEOPS, Divisão de Informações do DOPS, nº. 20-C-44-9505,
datado de 13 abr. 1980.
304
Idem, nº. 21-Z-14-3836 rm, datado de out. 1977.
305
Pastas Temáticas, n.º 2.233, topografia 247, datado de 08.08.1975, Arquivo do DOPS, Arquivo Público do
Paraná.
198
colônia portuguesa no Brasil para o governo português por intermédio de uma rede de
agentes. Portanto, reitera-se, havia uma atenção específica da ditadura brasileira com a queda
do regime ditatorial português após o 25 de Abril.
Na mesma direção, um outro dossiê intitulado “Infiltração Comunista Portuguesa”,
presente na pasta “Partido Português Comunista no Brasil”, evidencia o olhar da ditadura
brasileira para as possíveis mudanças no Brasil em relação às lideranças locais da comunidade
portuguesa. Com o mesmo discurso carregado das imagens tão caras ao vocabulário dos
ideólogos da ditadura, como a idéia de “infiltração”, este informe confidencial do III Exército
alerta:“Há planos de portugueses radicados no BRASIL de transformar os escritórios de
turismo e de despachantes de viagens, em órgãos de informações. Assim, sob essa fachada, os
comunistas portugueses passariam a recolher informes sobre a Colônia Lusitana radicada no
BRASIL”.
306
Uma outra preocupação expressa no mesmo documento advém de um suposto plano
do governo português (um ano e meio depois da Revolução dos Cravos) em substituir os
antigos salazaristas que comandavam as associações portuguesas no Brasil, por vezes tão
coniventes e mesmo prestativas as ditaduras: “2. Desde suas fundações, as entidades da
Colônia portuguesa no BRASIL (Casa de Portugal, União das Comunidades de Cultura
Portuguesa e outras) vem sendo dirigidas por aristocratas lusitanos ou por elementos
pertencentes à alta sociedade”. Aliás, essa era uma crítica freqüente da oposição ao
salazarismo no Brasil. O informe conclui: “Os comunistas portugueses estão iniciando um
movimento de ‘conscientização’ juntos aos filiados dessas entidades, para que as mesmas
concorram aos cargos eletivos”.
307
306
Pastas Temáticas, n.º 1.508, topografia 181, informe n.º 199-EZ/75, datado de 20.10.1975, Arquivo do DOPS,
Arquivo Público do Paraná.
307
Idem.
199
A “irmandade” existente entre as ditaduras de Brasil e Portugal pode ainda ser
comprovada em documentos do DEOPS
308
paulista. O jornalista e exilado português Miguel
Urbano Rodrigues é citado no documento da polícia devido à sua participação nas
comemorações do 25 de Abril no bloco de História da Universidade de São Paulo, no dia
04 de maio de 1974. É lembrada ainda sua matrícula no Sindicato dos Jornalistas Profissionais
do Estado de São Paulo, inclusive com seu número de registro sindical (4477).
309
Outro jornalista também fichado no DEOPS é o jornalista português Fernando Lemos,
exilado no Brasil (onde se naturalizou) desde 1953
310
. Sobre ele, a polícia paulista informou:
“Integrava em out./ 75 o Conselho de Redação do jornal Portugal Democrático, editado para a
colônia portuguesa do Brasil, e que seguia orientação do PC Português. Era exilado português
e artista”.
311
Lemos, além de jornalista e poeta, também atuou como ilustrador, inclusive por
um determinado período no próprio jornal Portugal Democrático, que funcionou de 1956 a
1977. O desmonte do periódico teria início quando do retorno a Portugal de muitos de seus
antigos colaboradores e quando a gráfica e os distribuidores do jornal (então semanal)
começaram a sofrer ameaças de agentes da PIDE que fugiram para o Brasil, onde passaram a
atuar junto à polícia política brasileira (RODRIGUES, 2003, p.189).
308
Na própria documentação desta polícia política paulista uma alternância entre o uso do nome DEOPS e
DOPS. Segundo Caio Costa (2003), em 1944 foi criada a Delegacia de Ordem Política e Social e no ano seguinte
foi alterada para Departamento de Ordem Política e Social. A mudança para DEOPS foi operada apenas em
1975, apesar de um decreto federal manter a sigla DOPS no mesmo período (p. 305-6).
309
Pasta 52-Z-014.573, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
310
Inúmeros intelectuais portugueses exilaram-se no Brasil neste mesmo período. Como Vítor de Almeida
Ramos que se doutorou em Letras pela Faculdade de Assis (onde lecionou Literatura Francesa e foi sede do
Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, em 1961) e foi professor da USP a partir de 1964. O
escritor e professor Jorge de Sena, naturalizado brasileiro, por sua vez, doutorou-se na Faculdade de Letras de
Araraquara. O historiador da USP, Joaquim Barradas de Carvalho teve uma forte inserção acadêmica e uma
destacada atuação política nos círculos oposicionistas às duas ditaduras. Destacam-se ainda João Sarmento
Pimentel, Jaime Cortesão, Eduardo Lourenço, Agostinho da Silva e Adolfo Casais Monteiro, entre outros. Mais
informações em: LEMOS, Fernando, LEITE, Rui M. (orgs.). A missão portuguesa: rotas entrecruzadas. São
Paulo: EDUNESP; Bauru: EDUSC, 2003; CANDIDO, A. Livros e pessoas de Portugal. Disponível:
<www.geocities.com/ail_br/livrospessoasdeportugal.htm>. Acesso em: 27 out. 2003.
311
Pasta 50-Z-9-41179, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
200
Também da área da imprensa e da cultura, esteve fichado o jornalista, crítico teatral e
poeta português João Apolinário (1924-1986)
312
, conforme a informação: “[...] Jul./Ago.
1978 DOPS ref. Correspondente do Jornal Leia em Portugal”.
313
Apolinário, antes de
partir de Portugal em 1963 era um poeta conceituado e durante seu exílio no Brasil teve
alguns de seus poemas musicados e gravados. Atuando como jornalista também escreveu o
livro 25 abril 1974: Portugal Revolução Modelo, como resultado de uma coletânea de
reportagens escritas sobre o 25 de abril português para o Última Hora, de São Paulo, durante
sua estada em setembro de 1974 em Portugal, para onde foi na qualidade de enviado especial
do jornal. Dedicou esta obra: “Aos poetas do meu país que não traíram a juventude e que
tornaram o seu ‘Canto Livre’ uma arma contra o fascismo”.
Alguns de seus poemas foram gravados com grande êxito pelo grupo musical Secos &
Molhados, formado por seu filho, o também português João Ricardo, junto com os brasileiros
Ney Matogrosso e Gerson Conrad. De acordo com João Ricardo
314
, as letras foram tiradas de
livros de seu pai e não compostas especialmente para as canções. Apolinário também teve os
seguintes poemas musicados pelo grupo: no LP de 1973, Amor (Leve como leve pluma/ muito
leve leve pousa...) e Primavera nos Dentes ( Quem tem consciência para ter coragem/ quem
tem a força de saber que existe/ e no centro da engrenagem/ inventa a contra-mola que
resiste...). No segundo disco da banda, de 1974: Flores Astrais
315
(Todas as cores/ e outras
mais/ procriam flores astrais/ um verme passeia/ na lua cheia) e Angústia (Agonizo se tento/
retomar a origem das coisas/ sinto-me dentro delas e fujo...).
312
Não foram encontrados registros na PIDE do poeta João Apolinário, o que não quer dizer que ele não tenha
sido fichado visto que parte do material foi extraviada e outra destruída.
313
Pasta 20-K-6-286, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
314
Depoimento ao autor através de sua esposa, a professora de Comunicação Tânia Pinto, em junho de 2004.
315
Esta canção foi regravada pela banda brasileira RPM, com grande êxito comercial no disco RPM ao Vivo,
Epic/CBS, 1986, nº. 144500. De acordo com o site oficial da Sony, atual proprietária dos fonogramas da antiga
CBS, de 1986 até hoje o disco vendeu cerca de 2,7 milhões de cópias.
201
Em 1967, dois de seus poemas também haviam sido musicados pelo compositor
português Luís Cília no disco A poesia portuguesa de hoje e de sempre
316
, lançado na França
e na Espanha. Foram os poemas Recuso-me e É preciso avisar toda a gente
317
:
É preciso avisar toda a gente
dar notícia informar prevenir
que por cada flor estrangulada
há milhões de sementes a florir.
É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
engrossando a verdade corrente
duma força que nada detenha.
É preciso avisar toda a gente
que há fogo no meio da floresta
e que os mortos apontam em frente
o caminho da esperança que resta.
É preciso avisar toda a gente
transmitindo este morse de dores.
É preciso imperioso e urgente
mais flores mais flores mais flores.
Este poema é relativamente conhecido em Portugal, sendo citado em publicações e
coletâneas de “poesias de resistência”. Aqui outra vez temos as flores como metáfora do novo
tempo, possível pela gente possuidora “duma força que nada detenha”. Um processo de
conscientização é clamado na luta contra a repressão, que “estrangula” e mata. Com a
liberdade vigiada, o eu lírico expressa a necessidade de “avisar a toda a gente”, mas com a
precaução de “segredar a palavra e a senha [...] transmitindo este morse de dores”.
Aliás, seria uma canção, alguns anos mais tarde, alçada à senha na derrubada de um
regime que inspirou criações poéticas desta natureza. A importância deste fato foi também
percebida pela ditadura brasileira, afinal, sobre o músico português José Afonso, autor da
316
Nesta pesquisa, teve-se acesso a uma cópia da versão francesa, muito embora nos dois países em que foi
lançado o LP, as canções tenham sido gravadas em português. Ver: La poésie portugaise de nos jours et de
toujours (mise em musique et chantée par Luís Cília). Paris, Moshé-Naim, 1967, nº. MN-10002.
317
Também musicada por seu filho João Ricardo, desta vez com o título Urgente... mais flores, em seu disco
Musicar, Polygram, 1979, nº. 6349 418. Segundo levantamento efetuado em três discos de João Ricardo, entre
1975 e 1978, foram musicados mais seis poemas de João Apolinário.
202
canção-senha, registrava: “O mesmo que Zeca Afonso. Compositor e cantor comunista
português que produziu disco no Brasil para Marcus Flávio Pereira, prontuário 01383.”
318
Por
sua vez, no prontuário citado, com origem no Comando do II Exército/ Seção, são
apresentadas inúmeras informações sobre o publicitário Marcus Pereira, cujo histórico
compreende o período de fevereiro de 1966 a maio de 1976: “é dono da Marcus Pereira
Publicidade e foi representante do Governo Arraes em São Paulo”. De acordo com o informe
(INFE B-1) anexo, datado de 06 de maio de 1976:
Entre 17 e 20 Fev. 76, em trânsito por Lisboa/Portugal, concedeu entrevista
exclusiva ao jornalista português JOSÉ JORGE LETRIA, que foi divulgada
pelo matutino lisboeta ‘O Diário’, porta-voz oficioso do Partido Comunista
Português. Analisando o teor da entrevista, nota-se que o epigrafado
procura habilmente denegrir a imagem cultural do BRASIL no exterior. Na
oportunidade revelou haver produzido no BRASIL, um disco intitulado
‘Portugal de Hoje’, com canções ‘Progressistas’ de JOSÉ AFONSO [...]
Dentre as canções gravadas, destaca-se ‘Grândola Vila Morena’, um dos
símbolos da revolução de 25 abr. 74, em Portugal. Durante sua permanência
na capital portuguesa, foi acompanhado pelo refugiado brasileiro JOSÉ
CELSO MARTINEZ CORREIA.
319
Portanto, Marcus Pereira foi fichado por ter concedido entrevista a um antigo opositor
da ditadura portuguesa, tendo inclusive neste documento uma observação manuscrita junto ao
nome de Letria. que se enfatizar que José Jorge Letria, além de jornalista e escritor,
também era ator e músico de prestígio. Aqui também é revelada a importância da canção
Grândola, Vila Morena e sua importância histórica, o que contribuiu na produção de
informações sobre Marcus Pereira. Segundo o próprio Letria
320
(que também confirmou a
entrevista feita com Marcus Pereira), os radialistas responsáveis por tocar a canção não a
tinham na emissora. Assim, Letria foi até sua casa e levou seu disco à Rádio Renascença,
318
Pasta 50-Z-9-41156, proveniente do II Exército, do arquivo DEOPS, Arquivo Público do Estado de São
Paulo.
319
Arquivo do Estado de São Paulo. Arquivo DEOPS, Divisão de Informações do DOPS, . 50-Z-9(206),
datado de 06 mai. 1976.
320
Depoimento ao autor em 16 nov. 2004, em Lisboa.
203
utilizando a canção como a segunda e última senha para a saída dos quartéis. Outro dado é
que, apesar de não ser considerado um ativista político, Marcus Pereira foi acusado de
encontrar-se com exilados, como o citado teatrólogo Zé Celso Martinez.
O informe mencionado anteriormente é uma resposta a um pedido de busca de
antecedentes de Marcus Pereira, requerido pela divisão de informações do Ministério da
Aeronáutica. Neste pedido constam uma série de detalhes sobre o publicitário, entre os
dados conhecidos:
4. [...] teria, ainda estabelecido contatos com a Philips portuguesa com o fim
de receber os direitos autorais e de gravação pertencentes a “CHICO”
BUARQUE DE HOLLANDA/ M. BETHANIA e estudar a possibilidade de
aquela empresa lançar em PORTUGAL os álbuns produzidos pela
gravadora que MARCUS PEREIRA possui no Brasil.
321
Seu prontuário, portanto, também foi adensado devido às suas relações com a canção
brasileira de cunho mais engajado, muito embora estivesse aqui impregnada também a visão
empresarial que caracterizou o projeto discográfico inerente à Gravadora Marcus Pereira.
Igualmente teve seu nome sob suspeita por sua relação com a música portuguesa de
contestação, em particular, cancioneiro que não encontrava espaço na indústria fonográfica
brasileira. Afinal, não havia respaldo no Brasil para toda a produção contemporânea da
canção portuguesa.
Num outro documento do DEOPS, de 1976, o nome de Marcus Pereira aparece num
relatório originado no II Exército, quando de sua participação no Centro Latino-Americano de
321
Arquivo do Estado de São Paulo. Arquivo DEOPS, Divisão de Informações do DOPS, nº. 50-E-29-185,
datado de 04 mai. 1976. Encontra-se anexo a este documento uma cópia da entrevista de Marcus Pereira ao
jornal Diário, com o título: “O Editor brasileiro de Grândola”. Logo, tais informações oficiais novamente são
extraídas, quase que literalmente, da imprensa escrita, enviada pelos diplomatas e adidos militares de então.
204
Debates, durante a realização do ciclo de debates “Panorama da Cultura Brasileira”, com o
tema:
C.9 Tema: Panorama da MPB – Hoje. Marcus Pereira (prontuário 1383, em
anexo); José Ramos Tinhorão: crítico de música popular do Jornal do
Brasil; Paulinho da Viola: Participou de reunião de apoio ao deputado
Lysâneas Maciel em 26 [?] 76 na Casa Grande no Rio, junto com Chico
Buarque, Marcos Lázaro, Júlio Medaglia, José Miguel Visnick [sic!],
Hermano [sic!] Bello de Carvalho, sobre os quais nada consta nesta AI até o
presente”.
322
A “comunidade lusitana” vivia ainda das músicas folclóricas por duas razões
principais. A primeira explica-se pela música que os imigrantes ouviram em Portugal antes de
sua partida para o Brasil e, portanto, este cancioneiro traduziu-se numa memória musical da
terra natal.
323
A segunda advém do papel desempenhado pelas instituições portuguesas em
disseminar a imagem de um país ligado às suas tradições culturais, em que a música e a dança
possuíam um papel preponderante. Portanto, estas imagens veiculadas no exterior tiveram
eficácia ao alcançar as comunidades portuguesas e um público mais amplo em razão das
propagandas ligadas à divulgação turística. Para Eulália Lobo, no tocante aos programas
radiofônicos e televisivos:
A música e o canto de Portugal divulgados no Brasil nas décadas de 1950,
1960 e 1970 caracterizaram-se pelo cunho tradicionalista e popular,
presente nos programas de fados e outros cantares regionais transmitidos
nas rádios Tamoio, Tupi e Guanabara, no Rio de Janeiro, e na Bandeirantes,
em São Paulo [...] No início da década de 1960, havia quarenta programas
de rádio luso-brasileiros, transmitidos em dez emissoras [...] A TV Tupi
também mantinha programas de música popular lusa (2001, p. 266-7).
322
Pasta 50-Z-9-41179, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo. Pedido de Busca nº. 737/
76 – CB, origem: II Exército, Difusão: SNI/ ASP – DOPS/ SP – PMESP – IV COMAR, datado de 18 out. 1976.
323
O próprio autor da tese se recorda dos programas musicais portugueses que constavam, ao longo da década de
1970, nas programações de canais de televisão como na TV Tupi, que, ainda em 1976, contava com o programa
Caravela da Saudade, comandado pelo “comendador” Alberto Maria de Andrade. Um outro programa que teve
um relativo êxito foi Portugal sem Passaporte, exibido na TV Tupi e na TV Bandeirantes, entre 1973 e 1975, e
que teve entre seus redatores o jornalista português José Alberto Braga.
205
Com a proposta de trazer a moderna canção portuguesa para o Brasil, Marcus Pereira,
de certa maneira, contribuiu para uma mudança neste ciclo. Circulavam no país, além dos
discos de fado, coletâneas de canções de diferentes regiões de Portugal, a exemplo do disco
Portugal canta e dança no Brasil: Douro Coimbra Algarve, de 1972. Cujo encarte, ao
apresentar as canções e suas relativas regiões, traz aquelas imagens tão criticadas por Lopes-
Graça: “Douro [...] temos essa Videirinha, tão pitoresca, até terminar no original Pelo Mar, de
ritmo variado, nervoso, decidido”. Este texto da contracapa explora justamente este lastro
sentimental dos imigrantes trazido pela música: “Nas seis canções desta face, pertencentes ao
mais rigoroso folclore da região do Douro motivo para nos alegrarmos, ouvindo com a
mais terna emoção algumas das mais belas trovas populares da querida terra de Portugal”.
324
A aposta de Marcus Pereira na canção portuguesa no Brasil ocorreu em 1974 com o
lançamento de dois discos da portuguesa Paula Ribas e do angolano Luis N’Gambi. A cantora
do Algarve veio ao Brasil em 1970 para participar do Festival Internacional da Canção e aqui
voltou em outras oportunidades. Em 1974, foi lançado pelo selo Marcus Pereira, o disco
Portugal Hoje
325
, apesar do nome amplo, contou unicamente com canções de José Afonso
interpretadas por Paula Ribas e Luis N’Gambi.
Em sua capa figurava um cravo e os dizeres: “A transmissão da canção ‘Grândola,
Vila Morena’ por uma emissora de Lisboa, foi a senha para a deflagração dos acontecimentos
políticos de abril, em Portugal (de uma entrevista do capitão Salgueiro Maia
326
à Revista
324
Portugal canta e dança no Brasil: Douro – Coimbra – Algarve. CBS/ Tropicana, v. 4, mono, 01147, 1972.
Arquivo pessoal.
325
Portugal Hoje. Discos Marcus Pereira, 1974, nº. MPL 9330. Embora os temas de forte verve política, o disco
contou com apoio financeiro da FINEP Financiadora de Estúdios e Projetos. Contou com as seguintes canções
de José Afonso: Grândola, Vila Morena, Eu vou ser como a toupeira, Maria Faia (domínio popular/ Beira-
Baixa), Epígrafe para a arte de furtar (letra de Jorge de Sena), Canto moço, Traz outro amigo, Avenida de
Angola, Por trás daquela janela, Moda do Entrudo, No comboio descendente, canção do Desterro e A caminho
de Urga (apesar do título aqui referenciado é a mesma lançada em Portugal como É para Urga).
326
Foi um dos tenentes mais importantes para o êxito das ações revolucionárias do 25 de abril de 1974. Por sua
participação no movimento foi alçado a ícone destes capitães. A exemplo de José Afonso, a imagem de
Salgueiro Maia (1944-1992) tem sido negligenciada pelos governos que se sucederam nas décadas de 1980 até a
atualidade, muito embora uma produção artística e intelectual tenha enfatizado seu destacado papel. Um dos
exemplos mais marcantes vem do filme português Capitães de Abril (RTP/ RTC, 119 min., 2000), dirigido por
206
Manchete)”. Além da senha dos capitães, segundo apresentação do disco feita por Marcus
Pereira, contou com composições “de nítida inspiração folclórica na sua concepção literária e
musical”, sobre a revolução musical e florida”, e afirmou ainda: “Que assim sejam todas as
revoluções, e que os espiões se disfarcem com vestidos de organdi, e que as balas sejam
amarradas na ponta de um barbante, para maior economia das batalhas [...]”.
Entre estas canções, está Por trás daquela janela, uma referência à prisão e aos presos
políticos: “Por trás daquela janela/ Faz anos o meu amigo / E irmão [...] Na noite que segue o
dia/ O meu amigo dorme / De pé” [...] Neste trecho, uma alusão à tortura do sono
327
, em
que os presos ficavam nesta posição por dias, sem poder dormir, o que para muitos foi
considerada muito mais danosa que as agressões físicas mais efetivas. O trecho “Naquela
parede fria/ Uma canção de alegria/ No vai e vem da maré”, aclara o fato de tal inspiração
advir da prisão de Caxias, que ficava próxima ao mar. Segundo Viriato Teles, esta canção foi
dedicada “ao militante antifascista Alfredo Matos, que se encontrava preso em Caxias”.
328
Por fim, que se ressaltar que o disco Portugal Hoje traz canções de dois discos de José
Afonso: Traz outro amigo também (1970) e Eu vou ser como a toupeira (1972).
Em relação ao segundo disco lançado por Marcus Pereira, Fados Brasileiros
329
,
também interpretados por Paula Ribas, contou com composições e letras de Vinicius de
Moraes, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Eduardo Gudin, Cecília Meireles, Chico Buarque,
Maria de Medeiros, com um romantismo político, não de todo desligado da realidade, que ali se desenrolou. Um
outro exemplo vem do livro de JoJorge Letria voltado ao público infanto-juvenil: Salgueiro Maia: o homem
do tanque da liberdade. Lisboa: Terramar, 2004.
327
Tipo de tortura também sofrida no DOI-CODI, no Brasil, pelo português Alípio de Freitas. Conf: FREITAS,
Alípio de. Resistir é preciso: memória de um tempo da morte civil no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 1981,
p.66.
328
TELES, Viriato. Música Popular Portuguesa: Uma Bibliografia: Fichas de Leitura. Disponível em:
<http://attambur.com/Recolhas/Bibliografia/MPP_uma%20bibliografia_fichas_de_leitura.htm>. Acesso em 23
mai. 2004.
329
Ver relação das canções em anexo.
207
Caco Velho
330
, entre outros. Uma das canções que mais se aproximava do disco anterior era
Fado Tropical, de Chico Buarque, já analisada anteriormente.
O mesmo Marcus Pereira também seria alvo da polícia política portuguesa em razão
de ter sido um dos signatários de um manifesto de intelectuais brasileiros contra a reabertura
do campo de concentração do Tarrafal, desativado em 1957, local em que foram presos e
mortos inúmeros opositores políticos à ditadura portuguesa. Diante da assinatura de Marcus
Pereira, o inspetor-adjunto da PIDE requereu junto à Divisão de Estrangeiros informações
sobre sua ficha política.
331
Também assinaram tal manifesto de março de 1963, enviado à
Secretaria Geral das Nações Unidas, Lígia Fagundes Teles, Rubens Paiva e Jamil Hadad,
entre outros.
O publicitário brasileiro Marcus Pereira também esteve ligado a um dos mais
importantes bares paulistas: o Jogral. Inaugurado em 1964, pelo compositor Luís Carlos
Paraná (1932-1970), este bar foi o endereço preferido de inúmeros jornalistas, artistas e
músicos locais e de passagem pela cidade. A proposta do lugar, segundo o publicitário
Marcus Pereira (que se suicidou em 1981), acionista simbólico com 1% do controle do
Jogral, era trazer canções brasileiras “especialmente de samba e de gêneros ‘esquecidos’ ou
‘menosprezados’ como o choro e a música caipira [cuja] principal atração da casa era o
próprio Luís Carlos Paraná, tendo no repertório composições suas e de Paulo Vanzolini
(SAUTCHUK, 2005, p. 26). Certamente, a experiência no Jogral foi decisiva para que
Marcus Pereira viesse a inaugurar em 1967 uma seqüência de discos e a posterior criação da
sua gravadora Marcus Pereira. Este foi um empreendimento ímpar na história da indústria
fonográfica nacional e inovador projeto de divulgação e gravação de canções populares, a
partir de uma determinada visão do que seria o mapa musical do Brasil.
330
Ver a história de sua canção Barco Negro no capítulo sobre a canção brasileira.
331
IAN/ TT, PIDE/DGS, proc. 2432/63-SR, NT-3308.
208
Entretanto, a vigilância policial não se restringiu aos opositores políticos do regime
militar brasileiro. Como afirmado no capítulo sobre a Censura brasileira, o ex-Presidente do
Conselho de Ministros de Portugal, Marcelo Caetano, teve notícias de seu exílio no Brasil
vetadas pelos serviços de censura. Assim, o Governo brasileiro evitou que a Revolução dos
Cravos tivesse mais espaço na Imprensa brasileira. Acontece que este controle não se limitou
à Censura, também nos arquivos do DOPS foram encontradas referências a sua estada no país.
No arquivo do DEOPS, seu prontuário foi adensado por informações que abarcavam desde as
causas de seu exílio até pormenores como “05/76 Prof. ministrou Curso de Direito
Administrativo na Faculdade de Direito de Rio Pardo [interior paulista]
332
, ou “11/76 inf.
s/ escolta para segurança do mesmo”.
333
Portanto, havia além da preocupação com sua
visibilidade no Brasil, também uma atenção em relação à sua segurança.
Por outro lado, como afirmou-se anteriormente, a Censura também tinha suas brechas
e seus arroubos de abertura, afinal, a proibição não atingia uma totalidade e havia ainda uma
tentativa de se arvorar numa aparente legalidade. Por exemplo, a Revista Fatos e Fotos de
1975, trouxe uma matéria intitulada “Spínola: o drama do exílio” em que era informada sua
vinda ao Brasil numa comitiva de dezesseis oficiais igualmente acusados de traição pelo
Tribunal Militar em razão da tentativa do golpe em 11 de março de 1975, ação voltada à
barrar o processo revolucionário em curso. Segundo a matéria, o grupo veio somente com a
roupa do corpo e recebeu “[...] uma verdadeira enxurrada de ofertas de ajuda, desde o envio
de dinheiro para a portaria do hotel, até o oferecimento de casas para ficar”
334
. Apesar do
texto não ser muito elucidativo do que de fato ocorrera em Portugal, o texto expunha uma
nova leva de exilados não muito simpáticos ao 25 de Abril. Caso semelhante havia sido
332
Pasta 50-Z-320-1518, prontuário de Marcelo Caetano, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de
São Paulo.
333
Pasta 50-Z-129-17237-A. Idem.
334
Spínola: o drama do exílio. Fatos e Fotos. Rio de Janeiro: Bloch Editores, . 710, ano XV, 02 abr. 1975, p.
14. Arquivo pessoal.
209
vetado anteriormente, e agora liberado numa situação ainda mais vexatória que a das
condições do exílio de Marcelo Caetano.
Nos fichários individuais do arquivo do DOPS/PR
335
, encontra-se um prontuário
336
do
português Mário Soares, datado de 12 out. 1977, que alertava sobre seus contatos no ano
anterior com Fernando Gasparian para a criação do Partido Socialista Brasileiro. Já no
Arquivo do DEOPS é relatada uma entrevista de Mário Soares à revista francesa L’Express,
que teria sido reproduzida no Jornal da Cidade, em Bauru. Tal informe foi repassado pela
Delegacia de Polícia de Bauru em sua resenha mensal à capital. Sobre a matéria, o documento
assevera que o líder socialista: “recomenda o uso da violência de todos os tipos ‘pressão
popular’, ‘luta armada’, ‘rebelião-militar e civil’ como único meio de mudar o regime de
Portugal”.
337
No arquivo do DEOPS também aparece uma outra preocupação da polícia política
brasileira, no caso, as eleições dos deputados entre o círculo eleitoral dos imigrantes. Por
meio da informação confidencial, com origem no DSI/ MRE (Divisão de Segurança e.
Informações do Ministério das Relações Exteriores), o assunto “Portugal Candidatos do
PCP”, de 1976 informa: “Alexandre Castanheira Barradas de Carvalho, Urbano [sic!] Tavares
Rodrigues, Marques dos Santos e Francisco Cabeção Pinheiro foram indicados candidatos do
PCP pelo circulo eleitoral dos imigrantes”. Na seqüência, o informe pede providências para
que as comunidades de segurança, sobretudo as de fronteira e alfândega, [fossem] alertadas
para os riscos de esses indivíduos tentarem penetrar no Brasil até 25 de abril vindouro com
vistas a desenvolver atividades de propaganda política junto à colônia portuguesa”. Por fim, o
documento faz uma confusão entre os irmãos Miguel e Urbano: “Dos elementos acima, pelo
335
Neste fundo estão reunidas 55 mil fichas, 3.700 pastas individuais e 2.143 pastas com assuntos diversos. Esta
documentação abarca as atividades policiais do início do século XX e é adensada por uma numerosa produção da
Delegacia de Ordem Política e Social criada através da Lei nº. 177, em 05 de março de 1937. Cf.: RONCAGLIO,
Cynthia (et. alli.). Os arquivos do DOPS do Paraná. Quadrilátero Revista do Arquivo Público do Distrito
Federal. Brasília, v.1, nº. 1, mar./ ago. 1998, p. 41-52.
336
Fichário Individual, n. º 33.137, datado de 12.10.1977, Arquivo do DOPS, Arquivo Público do Paraná.
337
Pasta 50-Z-317-1537, prontuário de Mário Soares, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São
Paulo.
210
menos Urbano Tavares Rodrigues viveu longos anos no Brasil, sobretudo em São Paulo”.
338
Na verdade, foi Miguel Urbano Rodrigues quem viveu dezessete anos neste Estado, teve
filhos e netos e foi preso pela Operação Bandeirantes (OBAN).
Outro português que foi fichado no DEOPS foi Sanches Osório. Este militar foi um
dos organizadores do movimento dos capitães, chegando inclusive a participar do Governo
Provisório, como Director-Geral da Informação, e do como Ministro da Comunicação
Social. Contudo, em razão das discordâncias com os rumos tomados pelo Governo e, de
acordo com o mesmo
339
, como reação à sua entrada no Partido da Democracia Cristã, “teve
que fugir” de Portugal. Sua insatisfação com o governo teve relação direta com as propostas
“esquerdizantes” de setores governistas. Sua ficha no DEOPS tem origem numa “cola” de
uma matéria do jornal português O Século, de 29 de março de 1975. A Coordenação de
Informações e Operações da S.S.P. de São Paulo, avisava: “Major Sanches Ozório Ex-
Ministro da Comunicação Social e ex-Secretário Geral do Partido da Democracia Cristã de
Portugal estaria incógnito no Brasil”.
340
Um dos músicos mais citados na documentação dos DOPS é Chico Buarque, talvez
um dos artistas brasileiros, ao lado de Vinicius de Moraes, de maior reconhecimento junto ao
público português na década de 1970 e 1980. Em 1974, Chico compôs a canção Tanto mar,
que era uma homenagem ao 25 de Abril. Segundo o compositor, esta foi uma das raras
composições suas que serviram como crônica, um instantâneo do momento. A canção retratou
aquele episódio e todo o clima de euforia que tomava conta de Portugal: “Eu, aliás, passei por
lá, por acaso, dias depois, me contagiei e fiz a música. Quando fui gravar aqui no Brasil, ela
338
Pasta 50-E-29-212, Arquivo DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
339
Conforme informações presentes em seu livro: O Equívoco do 25 de Abril. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves, 1975.
340
Pasta 50-E-29-170, prontuário de Sanches Ozório, datado de 11 jun. 1975. Arquivo DEOPS, Arquivo Público
do Estado de São Paulo.
211
foi vetada integralmente. A música saiu sem letra, eu tocava no Canecão e tinha uma flauta
que fazia o solo”.
341
No entanto, a censura brasileira liberou a letra três anos depois, em 1977, e Chico,
descontente com o rumo que tomara a Revolução, mudaria sua versão portuguesa: o “eu
queria estar na festa, / com a tua gente/ e colher pessoalmente/ uma flor do teu jardim”
daria lugar à “já mudaram tua festa, pá/ mas certamente/ esqueceram uma semente/ n’algum
canto de jardim”. Esta canção fez em Portugal um relativo sucesso e numa gravação de Chico
Buarque contou até mesmo com a participação de Carlos Paredes, o maior “guitarrista”
342
de
Portugal. Segundo Chico, em Portugal: “ela saiu, cumpriu o papel dela, que no Brasil
ninguém conhece. E saiu lá com letra e tudo”.
343
Outro documento que chama atenção, desta vez do arquivo da DCDP, proveniente do
Ministério da Justiça Divisão de Segurança e Informações, datado de 24 de maio de 1971,
aborda o assunto: “infiltração de Comunistas e Aliados na Televisão”. Os “dados conhecidos”
pela divisão eram que: “Dentro do meio artístico, vários elementos cantam o samba ‘Apesar
de você’, de Chico Buarque de Holanda e ameaçam aos democratas com afirmações de que:
‘a mesa vai virar’, vamos te fechar etc”. Em 1976, depois de transferido para um anexo do
presídio carioca Milton Dias Moreira, na rua Frei Caneca, Alípio de Freitas recorda que os
presos políticos podiam receber uma visita diferente a cada semana. Porém, havia uma
específica restrição, o: [..] único veto existente era ao Chico Buarque, a que os Órgãos de
Segurança votavam um ‘carinho’ especial” (FREITAS, 1981, p. 236).
O que chama a atenção no documento sobre a “infiltração na TV” é a importância que
os militares atribuíam à canção e, em particular, ao peso político que conferiam aos músicos
341
Entrevista concedida à Angélica Sampaio, para a Rádio do Centro Cultural São Paulo, em 10 dez. 1985.
Transcrita em: <http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html>. Acesso em: 03 fev. 2004.
342
Guitarra é o nome lusitano do violão.
343
Entrevista à Tarso de Castro, publicada na Folha de São Paulo de 11 set. 1977.
212
da chamada MPB
344
. Outra questão é que tal informação ou foi passada por um colega de
trabalho de algum destes “comunistas” da televisão ou foi fruto da escuta atenta de um censor
presente em alguma emissora. Talvez, ainda, resultado do trabalho de algum Centro de
Informação, como o CIEX (Exército), CENIMAR (Marinha) ou CISA (Aeronáutica). Outras
seções que atuavam nos serviços de informação eram os: “Serviços Secretos de cada um dos
três ramos das Forças Armadas [que] são identificadas como E-2 (Exército), M-2 (Marinha) e
A-2 [...] [que] Embora devam operar internamente [...] também procedem à vigilância política
e até a repressão física direta do público externo.” (ALVES, 1984, p. 173).
Tais serviços de informação são perceptíveis, por exemplo, nos relatórios sobre shows
ou entrevistas dos músicos, muito embora a maior parte destas informações fosse mesmo
produzida pelos agentes dos DOPS. No Arquivo do DOPS/PR, no fichário individual do
músico João Bosco, encontra-se o seguinte informe:
O fichado na Semana do Calouro, na apresentação do dia 22.03, teceu
comentários a respeito da censura, que esta deveria ser criteriosa em suas
atitudes. Comparou a Democracia com um cabaré, dizendo que é um dos
maiores defensores do Cabaré, pois este é o sustentáculo da Democracia, pois
é ainda o único lugar onde se vai de livre e espontânea vontade.
345
Nas pastas individuais é possível encontrar maiores informações sobre participantes da
guerrilha ou líderes estudantis procurados como Honestino Monteiro Guimarães
346
, com
pedido de busca datado de 1970, com uma foto sua, entre outras informações. É um exemplo
de ficha que revela um caso de uma pessoa que desapareceria naquele período e,
provavelmente, como resultado eficaz dos aparelhos de informação e de repressão.
344
Segundo Marcos Napolitano, a institucionalização da sigla MPB transformou-se em “[...] sinônimo de
resistência cultural ao regime militar e ‘selo’ de qualidade estética contra a massificação, mesmo incorporando
diversas tendências. Essas tendências inseriam-se no conjunto de referências musicais do novo consumidor de
música popular – a juventude (18 a 25 anos) de classe média” (2001, p. 291).
345
Fichário Individual, n. º 25.951, datado de 19.04.1977, Arquivo do DOPS, Arquivo Público do Paraná.
346
Pastas Individuais, n. º 1594, topografia 364, Arquivo do DOPS, Arquivo Público do Paraná.
213
Durante um show de Luiz Gonzaga Jr. na Universidade Federal Fluminense, em 1975,
o músico foi fichado por policiais à paisana. Um relatório assinado por um dos chefes de
setor, Henrique de Sousa Guimarães, dizia que o músico,: “[...] por meio de metáforas,
ironicamente, durante todo o seu tempo, criticou a Revolução de 31 de março de 1964. O que
me cumpre informar. Niterói, 15 de outubro de 1975”.
347
Gonzaguinha tornou-se um dos
músicos mais visados por suas composições críticas, ácidas em relação ao regime militar. Em
razão desta mesma veia crítica foi também objeto de julgamento no meio musical, por vezes
taxado de “panfletário”. Tal debate foi freqüente durante a década de 1970 e também
reverberou nas pesquisas posteriores sobre a canção do período, numa freqüente e partidária
tomada de posição por parte até mesmo dos pesquisadores. Apesar destes embates, que se
ressaltar que Gonzaguinha reintroduziu a ironia (aqui, no sentido mesmo literário) no campo
da canção.
Os espetáculos de música popular foram objeto de muita preocupação da polícia
política, como se depreende da documentação dos arquivos dos DOPS. Novamente em
relação ao caso de Adoniran Barbosa, a relação entre suas canções e o cotidiano das classes
populares foi novamente percebida pela ditadura militar, desta vez no final da década de
1970
348
. Embora não tivesse uma militância política, Adoniran foi fichado no DEOPS. Como
atestam quatro resumidas fichas, que o acusam de ter participado de atos públicos e
espetáculos na cidade de São Paulo: “03.77 Fez parte dos shows programados p/ Fac. de
Ciências Sociais da USP
349
; “03/78 S/Q. S/ movimento estudantil e setores eclesiásticos”;
“23/03/79 Inf. 327-B Ref. part. de festa na Casa da Universitária” e, com a mesma
347
Conforme reportagem jornalística da antiga TV Manchete, 1991. Arquivo Pessoal.
348
O primeiro registro encontrado sobre o sico na documentação do DOPS, data de 1939, em particular, no
prontuário “Associação Brasileira de Compositores e Autores”, em que constam, além de um exemplar da
publicação do Estatuto da Associação, uma “relação dos autores que fazem parte da Associação”, músicos como
Lamartine Babo, Pedro Caetano, Dorival Caymmi e, claro, Adoniran Barbosa, entre outros. Ver em: Prontuário
Associação Brasileira de Compositores e Autores, n. º 0222, Fundo SSP, arquivado em 30 mai. 1939, Arquivo
do DOPS/ PE, Arquivo Público do Estado de Pernambuco.
349
No documento microfilmado de nº. 21-2-14-2224 do DEOPS, aparece a seguinte infomação complementar:
“Dentre os shows previstos ou programados para o campus, têm-se os de ADONIRAN BARBOSA à cargo do
grupo de música da Fac. de Ciências Sociais da USP, às 21,00 de ontem ; e o de TOM ZÉ, para breve”.
214
informação anterior: “23/03/79 Rel. nº. 1009 Ref. part. de festa de despedida na casa
Universitária”.
Ao abordar um dos documentos a que se remetem estas informações mais gerais,
chega-se a um relatório do DOPS/SP, de 12 de março de 1978, intitulado “Movimento Custo
de Vida”
350
, em que o agente, após discorrer sobre o histórico deste movimento, analisa o
programa musical do ato público realizado no Pátio do Colégio Arquidiocesano, na Vila
Mariana. Neste espetáculo, diz o relatório: “constou da apresentação de grupos musicais, que
executaram músicas cantadas pelos assistentes, tais como Lavrador’ de Geraldo Vandré,
‘Saudosa maloca’ de Adoniran Barbosa [...]”. Não uma afirmação de que Adoniran tenha
participado do ato, contudo era também de praxe no DOPS a abertura de fichas para pessoas
citadas em outras situações.
Aqui se percebe como a canção Saudosa Maloca, grande sucesso radiofônico, foi
colocada sob suspeita ao ser inserida num outro contexto, no caso, no movimento contra a
carestia. Esta é uma característica do cancioneiro de Adoniran, pois expõe preocupações
inerentes a amplas camadas da sociedade brasileira: o problema da habitação, da fome, da
exploração, da “força da grana que ergue e destrói coisas belas” (como diria Caetano Veloso
em Sampa). Porém, Adoniran não foi o único a fazê-lo.
Os arquivos do DOPS revelam que outros músicos não-alinhados a um ideário e a
movimentos de luta contra a ditadura militar foram freqüentemente inseridos em seus
ficheiros. O cantor Wilson Simonal, apesar das acusações de ser informante do DOPS pela
esquerda a partir de 1972, foi fichado em 1967 por ser um dos supostos cantores que, ao lado
de Chico Buarque, “estariam articulando a realização de uma passeata, que aparentemente se
relacionaria com o Festival da MPB” o que “propiciaria a infiltração de universitários que
apresentariam faixas e cartazes anunciando o encerramento do XXIX Congresso da UNE,
350
Pasta 50-C-0-6862, citado na ficha de Adoniran Barbosa, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de
São Paulo.
215
burlando, dessa forma, a repressão política”.
351
Tal informe sobre este vento também aparece
no prontuário de Elis Regina no DEOPS, nos seguintes termos:
Relatório de 27/7/67, nos cientifica que a Televisão Canal 7 programou ao
vivo, no Teatro Paramount, o “Frente Única”, com a participação de
Geraldo Vandré, Roberto [sic!] Gil, Elis Regina, Francisco Buarque de
Holanda, Nana Caime [sic!] e outros. Trata-se de programa eminentemente
subversivo.
352
Na verdade, esta passeata” esteve relacionada ao programa musical da TV Record, o
Frente Única Noite da Música Popular Brasileira, citado no documento acima, cujo nome
tinha relação com a então organizada “Frente Única” encabeçada por Carlos Lacerda,
Juscelino Kubitschek e João Goulart, para fazer frente aos planos de continuidade do regime
militar naquele ano de 1967. A passeata do dia 17 de julho serviria, em tese, para divulgar o
programa e seria realizada antes da gravação do terceiro da série, desta vez apresentado por
Chico Buarque, Nara Leão e Wilson Simonal. De acordo com Zuza Homem de Mello (2003,
p. 181):
Porém, tanto Chico como Simonal desistiram de participar da manifestação,
indo direto para onde seria gravado o programa, o Teatro Record Centro, de
onde observavam de uma janela o banzé que acontecia na Brigadeiro
(supostamente um protesto na tentativa de conscientização da invasão da
música estrangeira, mas que acabou assumindo proporções insuspeitadas,
sendo depois celebrizada exageradamente como a “Passeata contra as
guitarras elétricas”.
As suspeitas expressas no documento do DEOPS não se coadunam com a descrição do
autor citado, na medida em que a passeata esteve pautada numa crítica à influência da música
estrangeira no Brasil. Por outro lado, a abertura ao capital estrangeiro e a continuidade de uma
351
De acordo com a pasta 21-Z-14-2224 do DEOPS/SP, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
352
Pasta 50-Z-0-4548, prontuário Elis Regina, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
216
política econômica dependente capitaneada pelos militares, também poderiam ter motivado a
adesão à passeata. O fato é que o documento, por si só, revelava que a polícia esperava um
movimento muito mais de crítica ao regime do que realmente foi. No dia seguinte, a passeata
reverberaria na imprensa, mas bem menos do que a morte do então presidente do Brasil,
General Castelo Branco, num confuso acidente aéreo
353
, quando retornava do Ceará, onde
visitara sua amiga, a escritora Rachel de Queiroz.
Como afirmado na introdução desta tese, alguns músicos foram fichados pela
polícia política a partir de informações secundárias, como no caso em que eram citados por
pessoas ouvidas nos interrogatórios. Num documento encontrado no DEOPS, consta o
interrogatório de José Roberto da Silva, realizado entre os dias 04 e 05 de maio de 1972.
Acusado de pertencer ao PC do B, ele declarou que compareceu a um show, no auditório da
Fundação Getúlio Vargas, que contou com a presença de Milton Nascimento, Paulinho da
Viola, Edu Lobo e Gonzaguinha, entre outros. Também teria informado sobre a venda de
posters alusivos à Semana da Arte Moderna”.
354
Assim, bastou essa breve citação dos músicos que participaram do show para que
fossem adensadas novas informações aos seus registros. Portanto, este documento foi
encontrado no prontuário de Milton Nascimento, muito embora o mesmo não tivesse relação
com o caso em questão. Fato semelhante ocorreu com o compositor Paulo César Pinheiro,
fichado em 1979, no mesmo DEOPS, em razão de trechos da letra de sua canção Pesadelo ter
sido reproduzida em materiais do DCE da PUC – Pontifícia Universidade Católica, quando do
movimento de reorganização da entidade: “Quando o muro cai/ uma ponte UNE/ se a
vingança encara/ o remorso pUNE”.
355
353
Afinal, a queda da aeronave envolveu um outro avião da Aeronáutica.
354
Pasta 50-Z-9-30146, prontuário Milton Nascimento, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São
Paulo.
355
Doc. 50-C-33-217. Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo. Na letra original não foi
enfatizada a sigla, tal estratégia foi realizada pelos estudantes.
217
Outro exemplo vem da ficha do cantor e teatrólogo chileno Victor Jara, cujo
documento foi encontrado no mesmo arquivo. Desta vez, o informe “confidencial” do DOPS,
em 26 de março de 1974, seis meses após o assassinato de Jara, registra o fato de ter sido
encontrado um material afixado num mural da Faculdade de Ciências Sociais da USP: “Um
panfleto do poeta VICTOR JARA com diversas poesias de exaltação ao poeta chileno
PABLO NERUDA”.
356
No mesmo arquivo, temos uma outra referência a ele mediante o
registro de uma informação enviada, provavelmente por telex, por alguma agência de notícias
não identificada, em que aparece no documento também um carimbo do jornal Folha da
Tarde. Neste caso, há uma crítica ao Tribunal Russell, ocorrido em Roma, em 1974, com um
júri que contou com a presença de Lélio Basso, Jean-Paul Sartre e García Márquez, sendo foi
criado para julgar os crimes de governos autoritários:
O tribunal dedicou três dias ao Brasil e dois ao Chile [...] Um dos
testemunhos mais patéticos foi da viúva do cantor e compositor chileno
Victor Jara, Joan, que se referiu aos dramáticos detalhes da prisão, tortura e
morte de seu marido. Segundo Joan Jara, os dedos de seu marido foram
cortados “como gesto simbólico contra as mãos que tocavam a guitarra
livre”.
357
Voltando aos casos de músicos fichados, mesmo sem ligações com a oposição política,
temos o episódio envolvendo Erasmo Carlos. Por meio de um “informante”, o cantor foi
denunciado por ter erguido o braço e cerrado o pulso durante o programa Sílvio Santos, da TV
Globo, no dia 18 de outubro de 1970. Tal gesto, para o denunciante e para o policial federal,
“era típico de comunistas”. Apesar de considerar o fato “sumamente grave”, o inspetor de
356
Doc. 50-C-22-7364. Idem.
357
Doc. 41-Z-3-4605. Idem. No documentário “El derecho de vivir em paz” (direção de Carmen Parot, 100 min.,
Antologia Victor Jara – Warner Music/ Chile, 2003, DVD) sobre a vida de Victor Jara, sua viúva confirma que o
músico teve as mãos e dedos quebrados, e não cortadas. Neste trabalho, é enfatizada também a atuação de
Victor Jara no teatro, aliás, muito mais extensa que na música.
218
Diversões Públicas de São Paulo, por não possuir provas documentais, julgou que seria difícil
levar a frente o caso.
358
Como versões oficiais advindas do aparato repressivo da ditadura, além de parciais,
podiam trazer também informações inverídicas, propositais ou não. Apesar de
corresponderem a uma “fabricação” de informações, das quais as próprias estruturas do
regime alimentavam-nas e delas se nutriam, muitas vezes também traziam detalhes de seus
vigiados que surpreendem os próprios fichados. Todas as entrevistas realizadas para esta
pesquisa foram acompanhadas pela entrega de cópias destes documentos das polícias políticas
dos dois países (e também de documentos de ambas as Censuras), em todas elas os
entrevistados se surpreendiam com os detalhes conhecidos por estes órgãos e que coincidiam
com os fatos, muito embora o julgamento parcial. Enquanto uma significativa parte destas
informações tinha origem na Imprensa, uma outra era até mesmo resultado das torturas,
interrogatórios e denúncias, anônimas ou não.
Sobre uma destas informações confusas, temos o caso de Sérgio Ricardo, ou João
Lufti, seu nome de batismo. Num documento da Secretaria de Segurança Pública de junho de
1974 e com base numa informação do Ministério da Aeronáutica, datada de 21/09/71, “sobre
Glauber Rochal
359
[sic!] consta que o epigrafado é elemento de esquerda e mais conhecido
por Sérgio Ricardo. Foi quem compôs as canções para seu filme ‘Deus e o Diabo na Terra do
Sul [sic!]” (Grifos nossos).
360
Aqui temos um exemplo de uma informação confusa, em que
além dos erros nos nomes do diretor e do filme, também uma relativa confusão entre os
dois citados.
Esta produção de informações desencadeada pelas diligências dos agentes dos DOPS
ou pelas freqüentes colagens de notícias de jornais aos prontuários não apresenta uma
358
Fonte: Informação nº. 1087/ 11-970/ CO/ DPF-DR/SP, de 05 de novembro de 1970, Pasta Informações
Sigilosas, Fundo DCDP, Arquivo Nacional/ DF.
359
O cineasta Glauber Rocha viveu em Portugal em fins da década de 1970 e em 1974 realizou um documentário
sobre a Revolução dos Cravos, intitulado As Armas e o Povo.
360
Pasta 52-Z-0-9831, prontuário João Lufti, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
219
uniformidade em relação ao período abordado neste tese. Diferentes setores no campo da
música foram em maior ou menor grau observados pela polícia política. O pesquisador
Marcos Napolitano, ao analisar a documentação dos DOPS de São Paulo e do Rio de Janeiro,
elenca três períodos específicos de vigilância, entre 1967 e 1982. Para o autor, no período
compreendido entre 1967 e 1968, estabeleceu-se a MPB mediante “[...] o sucesso dos festivais
da canção dos anos 60; concomitantemente, houve o recrudescimento da "questão estudantil",
o que levou a repressão a destacar o papel da música como ‘propaganda subversiva’ e ‘guerra
psicológica’” (NAPOLITANO, 2004, p.05). Um segundo momento viria da efervescência do
chamado circuito universitário” em São Paulo, principalmente a partir de 1971. Um terceiro
movimento marcante vem a partir de 1978 ligado à campanha pela Anistia que mobilizaria os
músicos para os espetáculos, abaixo-assinados e que também desencadearia a produção de
relatórios por parte dos agentes.
A canção nestes diferentes embates e em meio à repressão, acabou por transformar-se
num canal de denúncia contra o autoritarismo. Tal assertiva beira a lógica, mas o fato é que
em razão da repressão e da Censura, bem como do apoio de significativa parcela da sociedade
brasileira ao regime (e ao próprio Golpe de 1964), as canções foram alçadas a depositárias das
críticas, anseios e conclamação à luta dos setores oposicionistas. Portanto, tal cancioneiro
contrapunha-se às mensagens do governo do início da cada de 1970, que veiculavam a
imagem de um "país que vai pra frente" e da utilização de frases de efeito como: "Médici ou
mude-se", a conhecida ""Brasil: ame-o ou deixe-o" ou "Pra frente, Brasil". Estas idéias
visavam personalizar o regime e ampliar o respaldo do governo militar junto à população,
legitimando assim não apenas seus discursos, mas igualmente as ações.
Foi dessa maneira que os seqüestradores dos embaixadores
361
e os guerrilheiros foram
acusados e procurados como "terroristas". Além disso, transferiu-se para a oposição a pecha
361
Uma das saídas encontradas pelos grupos de esquerda na luta contra a ditadura foi seqüestrar os embaixadores
da Alemanha, Japão, EUA e Suíça, para a posterior troca por presos políticos, que foram exilados em outros
países e também mediante a leitura, nos meios de comunicação, de manifestos de denúncia contra a ditadura.
220
de lutar contra os interesses do país. Como boa parte destes opositores era constituída de
universitários e de classe média, passaram a ser estigmatizados também como "subversivos",
drogados, além de corrompidos moralmente, como lembra a exposição das pílulas
anticoncepcionais encontradas durante a invasão da residência universitária (CRUSP) dos
estudantes da USP, em 1968, mostradas à imprensa como uma prova de "imoralidade" e de
"devassidão". Logo, não foi unicamente imposta à oposição a pecha de subversivo:
Além de certos espaços sociais serem considerados suspeitos, qualquer
atitude poderia ser qualificada como subversiva, fosse ela de ordem
político-ideológica ou comportamental. As inferências dos agentes da
repressão, porém, não eram aleatórias, na medida em que se pautavam pelo
imaginário que aglutinava, muitas vezes sem a mínima plausibilidade, o
medo à desordem política e social com a dissolução dos laços morais e
familiares, pautados por um pensamento ultraconservador (NAPOLITANO,
2004, p.06).
Nesse sentido, os arquivos dos DOPS revelam também a imagem que os militares
construíram em torno da oposição política e aqui, como objeto de análise, o que
representavam os músicos. No arquivo do DOPS/Paraná estão citados inúmeros músicos
como Milton Nascimento (n.º 34.058), Fernando Brant (n.º 34.054), Chico Buarque (n.º
33.108), David Tygel (n.º 44.857), Maurício Tapajós (n.º 36.379) e até o músico português
Sérgio Godinho (n.º 18.294). Uma característica destas fichas é que, na maioria das vezes, são
informações repassadas dos grandes centros e, certamente, apresentam informações
semelhantes, sendo que, como já reiterado, uma parte significativa advém da imprensa escrita.
Logo, os jornais, assim como podiam explicitar uma situação sempre silenciada pela Censura,
publicando uma notícia mais cifrada e, em alguns casos, oficiosa, também serviam a polícia
política como fonte de pesquisa e atualização de dados dos fichados nos DOPS.
221
No arquivo do DOPS/PR a ficha
362
do músico português Sérgio Godinho, citada
anteriormente, traz observações quanto à sua expulsão do Brasil por ato do Presidente da
República. Ele esteve exilado na Suíça a partir de 1965 para fugir do serviço militar em
Portugal. Estudou Psicologia em Genebra, sendo aluno de Jean Piaget, dois anos depois foi
para a Holanda e em 1969, em Paris, integrou-se ao elenco da peça Hair. Neste período,
iniciou contato com os atores do Living Theatre e em 1971 se juntou ao grupo em Ouro Preto,
Minas Gerais, onde desenvolveram um projeto de teatro junto aos filhos dos operários da
empresa canadense Alcan.
Sérgio Godinho viveu a efervescência cultural européia dos anos de 1968 e 1969, que
encheram o mundo ocidental de “som e fúria” (MUGGIATI, 1983, p.106). Entretanto, no
Brasil, a “fúria” também era militarista e os sons das botas e dos tiros foram o fundo sonoro
para aqueles que se opunham ao regime imposto ao país em 1964. Em 1970, o filósofo Tom
Wolfe, um dos criadores do chamado Novo Jornalismo, falava que aquela seria a década
do eu”. Discurso reforçado no mesmo ano pelo conhecido depoimento de John Lennon em
entrevista à revista Rolling Stone: “O sonho acabou. E não estou falando dos Beatles. Falo
é dessa transa de geração’. Acabou e temos de encarar a chamada realidade” (MUGGIATI,
1983, p.108). Nesse ambiente, o rock teve um papel tão importante junto aos movimentos
contraculturais e revolucionários que, em 1969, um trecho de uma canção de Bob Dylan deu
nome a uma organização radical ligada à SDS (Students for a Democrat Society), denominada
Weatherman. Um ano mais tarde, vários: “[...] atentados à bomba em Nova Iorque contra os
escritórios de grandes corporações (IBM, Mobil Oil) leva a assinatura de outra facção
terrorista que se intitula Força Revolucionária # 9, nome derivado de uma canção dos
Beatles, Revolution # 9” (MUGGIATI, 1983, p.14).
362
Fichário Individual, n. º 18.294, datado de 21.12.1972, Arquivo do DOPS, Arquivo Público do Paraná.
222
Esta crise de geração, bem como o surgimento dos movimentos revolucionários
também se refletiu no Brasil e foi reforçada pelo clima sombrio da ditadura militar, um
ambiente bem descrito na canção de Sidney Miller Pois é, pra quê?, comumente interpretada
pelo grupo musical MPB-4: [...] A revolta latente que ninguém vê/ E nem sabe se sente, pois
é, pra quê? [...] da morte incerta, a gravata enforca/ o sapato aperta, o país exporta [...] Que
rapaz é esse, que estranho canto/ Seu rosto é santo, seu canto é tudo [...] De outra flor que
tortura, pois é prá quê? [...]”. Em suas memórias, Renato Tapajós corrobora esta leitura:
Não conseguimos atingir seus músculos: a economia cresce, dizem todos os
jornais e na rua a gente continua a ver os mesmos rostos ausentes, a saber
que a mesma miséria continua e que os donos do país prosperam pisando no
sangue, na demissão, na apatia, no medo daqueles que trabalham nos
intestinos da pátria (TAVARES, 1977, p. 49).
Foi neste contexto que o Living Theatre chegou ao Brasil num momento ainda mais
delicado do que o atravessado pelos movimentos contraculturais nos Estados Unidos. O grupo
de teatro foi fundado em 1947, como uma alternativa ao teatro comercial, pela alemã Judith
Malina e pelo norte-americano Julian Beck (1925-1985).
363
No final da década de 1960, este
grupo era considerado o mais importante grupo de teatro experimental em atividade e
havia passado por outras prisões, inclusive nos EUA. A trajetória do Living Theatre no Brasil
não é muito conhecida em razão da Censura e da prisão do grupo. Seus líderes Julian e Judith
Beck, vieram ao Brasil acompanhados de sua filha Isha, com então três anos de idade, através
do convite feito por Celso Martinez e Renato Borghi para a criação de uma célula de ação
no Brasil, junto com o grupo de teatro argentino Los Lobos.
363
Até o ano de 2005, o grupo apresentou mais de oitenta peças em oito línguas em vinte e cinco países.
Conforme informações na página oficial do grupo: The Living Theatre - historical notes. Disponível em:
<http://www.livingtheatre.org/abou/history.html>. Acesso em 25 mar. 2005. Mais informações podem ser
obtidas na coletânea de cartas escritas por Julian Beck, em inúmeros países, inclusive no Brasil (BECK, 1974).
223
Depois de instalados em São Paulo, partem para o Uruguai para renovar os vistos e ali
permaneceram alguns dias na comunidade anarquista Comunidad del Sur
364
, em Montevidéu.
Em São Paulo, chegaram a trabalhar com um grupo de alunos da Universidade de São Paulo,
a partir do convite da professora Dorothy Lenner, com um trecho da peça O Legado de
Caim
365
, escrito por Judith Malina e Julian Beck. Esta peça tinha uma favela como cenário e
como um dos esquetes, sendo apresentada, de fato, numa favela paulista em 23 de dezembro
de 1970 (TYTELL, 1999).
Em São Paulo também conhecem Ruth Escobar que, por sua vez, convida Julian e
Judith para conhecer o escritor Jean Genet, que estava de passagem na cidade, pois Ruth havia
montado a sua peça O balcão. Depois de uma hora de conversa: "Cogiendo una pequeña bolsa
de la recepción del hotel, Genet bromeó diciendo que se iba a entregar oro a los
revolucionarios, y subió a un taxi que le llevaría al aeropuerto para volar hacia Paris"
(TYTELL, 1999, p. 186). Logo, fica a dúvida se era apenas uma brincadeira ou se tinha um
fundo de verdade. Afinal, o autor era simpático ao movimento dos Panteras Negras
366
.
O trabalho com o Grupo Oficina de Celso não se concretizou e o Living ficou sem
rumo. Os integrantes do grupo decidiram então ir para o Rio de Janeiro com a ajuda de Ruth
Escobar. O grupo foi tornando-se mais numeroso com a chegada de outros integrantes
estrangeiros e dos brasileiros Ivanildo Silvino Araújo (que mais tarde seria torturado com
choques elétricos no DOPS de Belo Horizonte), José Carlos Troya (então estudante de
Ciências Sociais em Rio Claro/SP), Susana de Morais (a filha do Vinicius, que ficou na
364
Em razão da ditadura uruguaia, esta comunidade exila-se na Suécia e mantém suas experiências de vida
comunitária, além de editar uma publicação bimensal intitulada Comunidad. Nela encontram-se textos de
exilados políticos, debates sobre experiências educativas, artísticas, políticas, todas de natureza libertária. Alguns
dos exemplares da revista podem sem encontrados no arquivo do CEDAP da UNESP/ Assis e parte das
informações sobre o grupo foi fornecida pelo Professor Sérgio Norte, do mesmo campus.
365
Ver ainda a publicação dos textos das peças La Prisión, texto de Kenneth Brown, e El Legado de Caim, de
Julian Beck e Judith Malina (BECK, 1975).
366
Este grupo, surgido em meados da década de 1960 e sediado nos Estados Unidos, além de suas conhecidas
ações práticas, também criou uma outra estrutura organizativa, como o Partido dos Panteras Negras e as Escolas
de Libertação, que formavam politicamente as crianças dos guetos: “[...] às quais se transmitem os primeiros
rudimentos de uma educação revolucionária através de canções e de fórmulas cantadas de torcida” (FABRE,
1977, p.193).
224
etapa do Rio de Janeiro até retirar-se do grupo, por algumas incompatibilidades) e Paulo
Augusto (ex-integrante do grupo Oficina, que saiu do Living antes da prisão do grupo). Os
estrangeiros eram: Sérgio Godinho e sua então esposa canadense Shila
367
(que estava
grávida), Pamela Badyk, Steven Ben Israel (este não foi preso, pois fugiu e ficou escondido),
Bill Share, Tom Walker (ainda hoje no grupo), Pierre Biner, Osvaldo de la Vega (um dos
integrantes do grupo Los Lobos), Birgit Kanbe, Andrew, Nadelson, Marianne Moore, Jimmy
Spicer, Jimmy Anderson, Luke Theodore, Mary Mary, Rocky Segura (peruano e um dos
agredidos durante a prisão), Garrick, Karen, Julian e Judith.
Do Rio de Janeiro partem para Ouro Preto
368
, onde ficam inicialmente na Pousada
Chico Rei, da Senhora Lili. Em razão do estilo de vida do grupo e de suas intervenções
teatrais, um padre local, após assistir uma das peças, e a organização Tradição, Família e
Propriedade (TFP) movem uma campanha contra o grupo que culmina na prisão dos
integrantes do Living. Coincidentemente, o músico gaúcho José Rogério Licks em sua viagem
pelo Brasil em 1971 foi até Ouro Preto e conheceu por acaso o Living Theatre. Naquela
mesma semana eles seriam presos e Licks chegou a ver o pote de maconha que levou à prisão
do grupo. Ele também ouviu a história de um dos componentes que afirmou que, ao saberem
da batida policial, o grupo teria escondido a droga, enterrando-a no quintal dentro do pote.
O fato é que os policiais chegaram à casa e nada encontraram, mas, ao se deslocarem
para o quintal, havia um cartaz com uma seta desenhada indicando algo como “look”. Os
policiais desenterraram o pote e em razão desta denúncia foram todos presos, com exceção de
um dos componentes que não estava no local e havia se foragido. Os integrantes do Living
367
Conforme depoimento da mesma. Disponível: <http://www.instituto-
camoes.pt/bases/godinho/liberdade.htm>. Acesso em 12 jan. 2005. Ela também teve uma breve carreira como
cantora em Portugal, em fins da década de 1970.
368
Este período do grupo no Brasil é retratado no curta-metragem “Liberdade Ainda que à Tardinha”, de Luís
Guimarães de Castro, e a história do grupo é narrada no documentário belga Resist, dirigido por Dirk Szuszies e
Karin Kaper, de 2003.
225
desconfiavam que o cartaz que os denunciou teria sido colocado por vingança por um
estudante que tentou vender a droga para o grupo, que o teria rechaçado.
Segundo depoimento de Shila, ex-esposa de Godinho, inicialmente foram acusados de
subversão, mais tarde teria sido incorporada às “provas” uma bolsa de maconha, que,
ironicamente, teria seu volume diminuído a cada dia do julgamento (TYTELL, 1999, p. 201).
A cantora Shila acusou a polícia de torturar e agredir os integrantes do grupo. Houve pressões
internacionais contra a prisão e um movimento no estrangeiro reuniu um amplo arco de apoio
e dos mais diferentes setores, como: John Lennon, Yoko Ono, Bob Dylan, Mick Jagger, Jane
Fonda, Allen Ginsberg, Arthur Miller, Susan Sontag, Samuel Beckett, Jean Genet, Stefan
Brecht (filho de Bertold Brecht), Bernardo Bertolucci, Pier Paolo Pasolini, Jean-Luc Godard e
Jean-Paul Sartre. O último nome foi o que mais despertou a ira do Presidente Médici que
finalmente teve acesso a um nome que “ele conhecia” e por esta informação também “mede-
se” seu alcance intelectual: “Médici, testaferro de los militares, [que] había recibido un
telegrama de Jean-Paul Sartre, cuyo nombre incluso él conocía, y se dio cuenta de que el
fiasco del juicio se estaba solo convirtiendo en un engorro para Brasil y en una amenaza para
la industria del turismo.” (TYTELL, 1999, p. 201).
Enquanto os líderes Julian e Judith estavam confinados no prédio do DOPS de Belo
Horizonte, os outros homens do grupo foram levados para a Colônia Penal e as mulheres para
a prisão feminina. Judith ficou numa cela com “Maria Dálcia”
369
, então com apenas 22 anos
de idade, acusada de pertencer à guerrilha e torturada durante esta prisão. Tiveram como
advogados Odilon Pereira de Sousa, Sidney Safe, George Pinet (nomeado pela UNESCO) e
Ariosvaldo Campos Pires (1934-2003), então presidente da OAB em Minas Gerais.
369
Estas informações foram obtidas em entrevista realizada, em 1993, por Tytell com Judith Malina,
provavelmente, o nome “Maria Dálcia” não corresponde ao nome real ou mesmo pseudônimo de sua
companheira de cela.
226
Os quase três meses de prisão terminaram ainda no meio do julgamento, quando
haviam sido transferidos para a prisão do DOPS
370
do Rio de Janeiro, por meio de uma
expulsão sumária assinada por Médici. Um ano depois seriam absolvidos, mas como a ordem
de expulsão não havia saído das fichas policiais, não puderam voltar ao país até que a anistia
fosse decretada. No DEOPS/SP tal expulsão é publicada no dia 27 de agosto de 1971,
assinada pelo mais temível presidente da ditadura, Emílio Garrastazu Médici: “Expulsar do
Território Nacional [...] Vicente Segura, da nacionalidade peruana, Sérgio Godinho, de
nacionalidade portuguesa, Sheyla Mary Charlesworth, de nacionalidade canadense [...]”.
371
nos Estados Unidos, os integrantes do Living Theatre ficaram numa situação incômoda. O
fato é que acreditavam que se criticassem abertamente a ditadura brasileira colocariam em
risco a vida dos latino-americanos que continuaram presos por mais alguns meses. Afinal,
além da prisão arbitrária, poderiam ter denunciado também o uso da tortura contra três
membros do grupo (MAFFI, 1975, p.344).
Em 1982, depois de ter retornado ao Brasil em outras duas oportunidades, Sérgio
Godinho foi preso novamente no Aeroporto do Galeão, quando retornava a Lisboa, no dia 15
de novembro sob o pretexto de constar em sua ficha a expulsão do país, bem como pela
mesma acusação de posse de maconha. Como se sabe, no Brasil é uma prática comum das
polícias tal artifício de “plantar estes tipos de “provas” incriminatórias. Era comum que
alguns policiais tivessem algumas gramas ou um punhado de outros tipos de drogas nas
viaturas ou mesmo nos bolsos, nesta espécie de kit flagrante”. Novamente surgiram pressões
internacionais e no próprio Brasil pela sua libertação, que ocorre no dia 30 de dezembro
mediante decreto de nova expulsão assinado pelo Presidente. Sérgio Godinho estava de
passagem pelo país compondo o repertório do seu próximo disco, Coincidências que contou
370
Em depoimento ao autor, Alípio de Freitas relembra este fato envolvendo o Living: “eu estava de passagem
pelo DOPS e depois vieram para o DOPS dois americanos que foram presos pelos mesmos motivos [que Sérgio
Godinho]. E logo a gente ficou sabendo que não era nada do que eles [os serviços de repressão] estavam a
dizer”.
371
Pasta 50-E-3-1602, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
227
com a participação de Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Novelli, Ivan
Lins e João Bosco e que traduziu-se num dos primeiros trabalhos luso-brasileiros até então.
De acordo com Sérgio Godinho
372
, desta vez foi torturado pela polícia federal com violentos
choques na cabeça.
A prisão atingiu também alguns músicos brasileiros. Esta experiência foi vivida por
Caetano Veloso e expressa em sua canção Terra: “Quando eu me encontrava preso/ Na cela
de uma cadeia [...]”. As prisões dos músicos brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso foram
atribuídas às declarações de que num show musical os dois teriam “desrespeitado” a bandeira
nacional, após um incidente em relação a uma obra de Hélio Oiticica que também envolvia
uma bandeira. Logo, a censura transformou-se em prisão, agressões e expulsão do país. Na
cela de uma cadeia no Rio de Janeiro, Caetano também compôs uma canção, intitulada Irene,
o nome de sua irmã: “Eu não sou daqui? Eu o tenho nada/ Quero ver Irene rir/ Quero ver
Irene dar sua risada [...]”. Segundo Caetano, a canção nasceu do fato que o sorriso de sua irmã
era o que melhor podia se contrapor à violência que ele vivia naquele momento. Em seu livro
de memórias Verdade Tropical, Caetano assevera sobre a composição:
Eu não pensava em torná-la pública: pensava tratar-se de algo inconsistente
e incomunicável. Para minha surpresa, Gil achou-a linda e, uma vez
gravada, não ela fez sucesso como de público como Augusto de Campos
publicou uma versão visualmente tratada de modo a enfatizar o (para mim
surpreendente) caráter palindrômico do refrão: com efeito, a frase “Irene ri”
pode ser lida nos dois sentidos. (VELOSO, 1997, p. 395).
Os músicos Caetano Veloso
373
e Gilberto Gil, ligados ao movimento tropicalista,
comumente são contrapostos aos músicos vinculados ao ideário nacional-popular. Tal
diferenciação é fortalecida pelo próprio debate em torno da concepção de cultura e de país que
372
Depoimento ao autor da tese em 20 out. 2004, em Lisboa.
373
Segundo Marcelo Ridenti, até mesmo Caetano teve uma incursão pelo nacional-popular ao, discretamente,
participar e compor junto ao Centro Popular de Cultura em Salvador (2000, p. 275).
228
os distintos grupos defendiam. Entretanto, localizavam-se nos mesmos locais de produção e
de difusão deste cancioneiro, apesar de uma diferenciação entre o nacional e o internacional, o
discurso de embate político e o comportamental, estas dicotomias não correspondem
exatamente à essência do debate. Muito embora as críticas ao populismo subjacente à
produção do CPC, há um lado subversivo latente nas experiências ali desenvolvidas:
[...] tanto nos adeptos do nacional-popular (rotulados pelos adversários de
populistas), como nos tropicalistas, que só não eram populistas se esse
termo for sinonimizado à “manipulação do povo” ou ao nacionalismo dos
movimentos adeptos do nacional-popular, no seio dos quais os tropicalistas
nasceram e contra os quais viriam a insurgir-se; mas o tropicalismo veio a
desenvolver suas próprias idéias de nação, de Brasil, de povo brasileiro,
incompreensíveis fora da cultura política da época.
(RIDENTI, 2000, p. 287).
Ao tratar da idéia de “revolução” que permeou o palco político e estético da classe
artística e intelectual brasileira, entre o Golpe de 1964 e seu endurecimento a partir da
decretação do Ato Institucional nº. 05 (13/12/1968), também pondera Marcelo Ridenti sobre
estes grupos: “[...] inspiravam-se na revolução cubana ou na chinesa, outros mantinham-se
fiéis ao modelo soviético, enquanto terceiros faziam a antropofagia do maio francês, do
movimento hippie, da contracultura, propondo uma transformação que passaria pela
revolução nos costumes” (2000, p. 44).
O músico gaúcho Raul Ellwanger também é muito citado nos documentos dos DOPS.
Novamente a causa principal não se deve diretamente às suas composições. Sua ficha foi
encontrada no DEOPS/SP e a dois mil quilômetros de distância no arquivo do DOPS do
Estado da Paraíba, cujo prontuário de nº. 230, trazia apenas seu local de nascimento e filiação,
além da informação de que era “militante foragido da VAR Palmares, Rio Grande do Sul”.
No mesmo arquivo aparece numa lista de procurados, sob o pseudônimo de “Gaspar”. No
229
arquivo paulista, aparece na relação dos elementos envolvidos em subversão, “implicados
com a VAR – Palmares e procurados pela SSP/RS”.
374
Ainda em São Paulo, a ficha de Ellwanger remete a outros 120 documentos, trazendo
num deles um outro pseudônimo, “Juca”. Num outro documento do DEOPS está anexa sua
ficha originada na 2
a
Seção do II Exército: “Comunista fanático. Elemento ligado à ex-UNE
[União Nacional dos Estudantes]. Considerado um dos mais violentos esquerdistas dentro da
PUC. Orador com temas esquerdistas (festivais de canção)”.
375
Sua ficha é adensada com:
“Agitador. Orador de alguns recursos. Participa de concursos de música com temas
esquerdistas (Festivais de Canção).”
376
Percebe-se nestas fichas a preocupação da polícia
política com sua inserção no movimento estudantil, na oposição política e na música, em
ambas as descrições ficam latentes as carregadas cores que se atribuíam aos opositores do
regime.
Raul Ellwanger teve uma significativa inserção no meio musical do Cone Sul. Gravou
em 1984 um disco intitulado Gaudério que contou com a participação de dois argentinos: o
músico argentino León Gieco e a cantora Mercedes Sosa, além da participação do cubano
Pablo Milanés. Este disco teve duas de suas dez faixas gravadas em Buenos Aires e as demais
no Rio de Janeiro. Em Pialo de Sangue, contou com a produção de León Gieco, autor da outra
faixa Eu peço a Deus, numa versão de Raul, mais tarde gravada por Beth Carvalho. Estes
contatos foram iniciados ainda durante seu exílio na Argentina entre 1973 e 1977. Em seu
disco Raul Ellwanger, de 1980, grava uma canção intitulada O Pequeno Exilado, composta
em homenagem ao filho de um casal de amigos que conviveu com ele durante o exílio no
Chile. Segundo o encarte do disco, é “dedicada a Charles Hugo Metzger, Bobito, radicado em
Paris”. Esta gravação contou com a participação de Elis Regina.
374
Pasta 30-Z-10-7113, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
375
Pasta 50-Z-9-181728, idem.
376
No pasta 50-Z-30-735, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
230
Para além da atuação específica dos músicos junto à oposição política, a música
também foi um dos elementos aglutinadores dos grupos de oposição. No Brasil, no final da
década de 1960, apenas um único show ou festival no Maracanãzinho chegava a reunir 20 mil
pessoas. Sobre o musical Opinião
377
, com Nara Leão, Kéti e João do Vale, afirma Élio
Gaspari (2002ª, p. 229): “O show rodou o Brasil, foi visto por 100 mil pessoas e por alguns
anos foi paradigma da militância cultural oposicionista.” Portanto, a canção encontrava
ressonância nestas grandes aglomerações e, dialeticamente, também eram delas que surgiam
muitos dos motivos musicais.
Logo, a canção política tinha uma inserção significativa no meio oposicionista. Na
página da Internet sobre os Desaparecidos Políticos
378
, por exemplo, uma recorrência nos
depoimentos dos familiares dos desaparecidos e mortos políticos, ou seja, o fato destes jovens
terem uma forte ligação emotiva com a música popular.
Estas canções estavam presentes nos espetáculos, nos atos políticos, nas festas, nas
mesas dos bares, nas reuniões políticas, nas trilhas das peças teatrais, nas escutas domésticas
dos LPs, nos programas de televisão e de rádio, nos festivais de música e até mesmo nas
matas, quando da Guerrilha do Araguaia. que se ressaltar que a produção musical
pesquisada nos inúmeros trabalhos de diferentes áreas do conhecimento, tem, na maioria das
vezes, se restringido aos eventos, intérpretes e registros fonográficos de maior envergadura
em termos de difusão.
Todavia, inúmeros programas locais das rádios, bem como os festivais de música nas
médias e pequenas cidades também se constituem em seu conjunto em experiências marcantes
para o país. É possível mapear estes outros espaços por intermédio dos processos legais de
377
A canção homônima de Kéti, que deu título ao espetáculo, teve também uma versão gravada na Espanha,
com o título Opinión (apesar de cantada em português), pelo cantor galego Bibiano Moron. In: Alcabre. Espana:
CFE, 1977, nº. ES-34124. Bibiano participou do movimento musical conhecido por nova canção galega, do qual
fazia parte também o nosso entrevistado Benedicto. Para ouvir a canção, disponível em:
<http://www.ghastaspista.com/historia/alcabre.php>. Acesso em 02 out. 2005.
378
Conforme: <http://www.desaparecidospoliticos.org.br>.
231
censura das canções e das programações das rádios, das listas de canções de festivais de
música, bem como das fichas policiais dos músicos fichados.
A documentação da Censura revela que este órgão não se pautou unicamente no
campo censório, também se valia do consumo e da produção de informações para os serviços
de repressão. Um caso que ilustra esta questão pode ser observado na documentação da
Censura em Brasília. Em meio aos pareceres da Censura encontra-se um documento
confidencial do Ministério do Exército, datado de 01.12.1971, com o assunto: Elis Regina.
São duas folhas de informações sobre a cantora e duas folhas anexas, na verdade, uma carta
escrita à mão pela Elis, em que afirma não ter ligações com grupos de oposição política.
Esta carta decorre de uma entrevista concedida na Holanda onde teria afirmado que o
Brasil, em 1969, era “governado por gorilas”. A Embaixada brasileira teria emitido uma cópia
desta declaração ao SNI, o que levou Elis a um interrogatório quando de seu retorno ao Brasil.
De acordo com a própria Elis, em depoimento a Regina Echeverria (1985, p. 91), em razão
deste caso ela teria sido obrigada a cantar nas Olimpíadas do Exército de 1972, o que de fato
fez. Isto gerou uma insatisfação de setores da esquerda, como a revolta do cartunista Henfil
que a enterrou em sua coluna do Pasquim Cabôco Mamadô e seu fantástico Cemitério dos
Vivos ao lado de outros artistas que seriam apoiadores ou omissos em relação à ditadura,
como Roberto Carlos, Paulo Gracindo e Marília Pêra.
Segundo Araújo (2002), a justificativa de que a participação de Elis Regina no evento
se deu pelo receio de uma possível reação à sua negativa é desmentida pelo próprio
empresário da cantora na época, Marcos Lázaro, em entrevista à jornalista Léa Penteado
379
,
que “afirmou que a cantora participou daquele evento porque o coronel responsável pela
contratação dos artistas aceitou pagar um bom cachê que ele pediu” (p.288). Além de
379
Segundo Araújo (2002), em: PENTEADO, Léa. Um instante, maestro! A história de um apresentador que fez
história na TV. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 156. O autor traz este caso para mostrar como a MPB também
teve seus arroubos de ufanismo ou de colaboração ao regime, muito embora sua reflexão traga um tom um pouco
revanchista.
232
participar do espetáculo, Elis também fez o convite ao público por meio de propagandas
televisivas. O autor elenca outros músicos que participaram de eventos similares: “além de
Elis Regina e Jair Rodrigues (e Dom & Ravel), [...] Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, Jorge Ben,
Wilson Simonal, Cauby Peixoto, Marcos Valle, Agostinho dos Santos, Ronnie Von, Zimbo
Trio e a ‘divina Elizeth Cardoso’...” (ARAÚJO, 2002, p. 187).
Apesar desta acusação, Elis Regina teve a partir de meados da década de 1970
algumas incursões no campo dos direitos dos músicos, inclusive compondo a direção do
sindicato da classe, fazendo doações para o fundo de greve dos metalúrgicos do ABC paulista,
entre outras ações de solidariedade. Para poucos, isso pode soar como estratégia de marketing,
fato sempre desmentido pelas pessoas mais próximas à cantora. De acordo com o depoimento
do ex-preso político português no Brasil, Alípio de Freitas
380
, ele conheceu a Elis quando,
coincidentemente, ambos foram convidados a serem padrinhos de um casamento de uma
amiga sua. Dali teriam cultivado uma amizade mesmo no período em que ele esteve na
clandestinidade durante sua militância no PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores).
O ex-padre Alípio
381
recorda um outro gesto de solidariedade de Elis, apesar dela ter
preferido o anonimato: “Elis sempre ajudou os grupos que estavam na clandestinidade. Uma
vez ela deu-me um cheque, assinou, mas não tinha o quanto”. Essa proximidade levou Alípio
a sugerir que Elis gravasse canções do José Afonso e ele afirma que ela teria se interessado.
Assim, depois de uma conversa em janeiro de 1982, retornou para Moçambique para onde
levou discos dela autografados para um amigo. De Portugal planejou trazer naquele mesmo
ano alguns discos do Zeca para Elis ouvir. O fato é que os dois dias que levou para chegar até
Moçambique foi justamente o período em que morreu a cantora e ele se recorda do espanto do
amigo que, provavelmente, recebeu os últimos autógrafos e dedicatórias de Elis Regina. Outra
380
Depoimento ao autor em 27 nov. 2004, em Lisboa.
381
Apesar de ter sido um dos organizadores das Ligas Camponesas e de ter sido tima de uma das mais longas
prisões da ditadura, tem sido muito mais lembrado como um dos suspeitos de ter arquitetado o violento atentado
ao Aeroporto de Guararapes em que o Presidente Costa e Silva era o alvo principal, em 25 de julho de 1966.
233
referência à sua posição política é enfatizada pelo escritor e jornalista Flávio Rangel ao
lembrar que, após sair da prisão política, foi a um show da Elis e ela acrescentou seu nome a
uma das canções, no caso Samba da Benção de Vinicius e Baden Powell: “[...] quem sabe o
que era o Brasil de 68, entenderá que Elis se arriscou a ser presa naquele mesmo instante”
(RANGEL, 1982, p.160).
Voltando ao caso do documento citado sobre a Elis, este traz uma questão pouco
esclarecida: “1. O CIE recebeu de um repórter credenciado na imprensa Guanabarina uma
entrevista concedida pela cantora nacional Elis Regina à revista holandesa ‘Tros-Nederland’,
edição de 23 de maio, sem a indicação do ano, sob o título ‘A primavera impetuosa de
Elis’”.
382
Para comprovar as acusações não explicitadas neste documento, a informação inclui a cantora
na lógica da desconfiança: “Nos anos de 1966 e 1967 atuou ao lado de alguns cantores de
esquerda, considerados subversivos após as agitações de 1968, destacando-se, entre eles,
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré e Edu Lobo [...] de orientação filo-comunista”.
383
Esta informação contribui no entendimento das razões da prisão de Gil e Caetano em 1968.
Na seqüência, o mesmo documento informa o depoimento que Elis prestou:
Em 22 de Nov 71, foi convidada a prestar esclarecimentos no Centro de
Relações Públicas do Exército (CRPE), por solicitação do CIE, quando
caracterizou sua posição de artista isolada e desligada de qualquer vínculo
político-ideológico, tendo, inclusive, negado terminantemente ter recebido,
durante a entrevista concedida na Holanda, qualquer pergunta sobre Cuba ou
outro assunto político e mesmo relacionado com o Brasil e seu povo. Nessa
oportunidade, escreveu de próprio punho a declaração anexa, tendo gravado,
em imagem e som, o seu depoimento, cujo tape se acha arquivado neste
Centro.
384
382
Informações sigilosas, Informação 2919/ S-103.2.CIE, Ministério do Exército, Rio de Janeiro, datado de
01.12.1971, Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas/ Brasília, p. 1-4. Também encontram-se
referências a esta entrevista na Holanda no Arquivo DEOPS/ SP, no ofício do SNI datado de 11 out. 1971 e nos
seguintes docs. nº. 52-Z-0-12799/ 22757/22758/756-A.
383
383
Informações sigilosas, Informação nº 2919/ S-103.2.CIE, Ministério do Exército, Rio de Janeiro, datado de
01.12.1971, Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas/ Brasília.
384
Idem.
234
Esta informação guarda algumas particularidades passíveis de análise. Primeiro há que
se ressaltar que o depoimento é prestado por Elis no ano de 1971, período em que a repressão
estava no auge. Outro dado é que mesmo numa carta escrita de próprio punho, não se prova o
posicionamento político do envolvido. Afinal, prestar depoimento durante a ditadura não era
sinal de garantia de que algo não fosse acontecer ao inquirido, muito embora, em relação à
Elis, fosse algo muito improvável. Contudo, o caso muito conhecido do jornalista e diretor
do Departamento de Telejornalismo da TV Cultura Vladimir Herzog que foi assassinado
depois de se apresentar espontaneamente para prestar depoimento em 1975. Herzog foi morto
durante um interrogatório nas dependências do DOI- CODI.
A canção O bêbado e a equilibrista, composta por João Bosco e Aldir Blanc e
interpretada por Elis, narra o assassinato dos opositores ao regime: “com tanta gente que
partiu num rabo de foguete[...] choram Marias e Clarisses/ no solo do Brasil”, uma
referência às es e viúvas dos mortos ou “desaparecidos”, no caso, “Maria” tanto podemos
pensar na mãe do Betinho (1935-1997), quanto na viúva do operário Manoel Fiel Filho, 49
anos, morto nos porões da repressão. Quanto à Clarisse, este era o nome da viúva de Herzog,
que teve uma trajetória de luta para provar que o marido não se suicidara.
No início, os militares forjaram um “suicídio”
385
, mais tarde, porém, ficou provada a
culpa do Estado na sua morte. Um dos médicos legistas que assinou o laudo médico que
caracterizava o suicídio foi Harry Shibata, por coincidência, o mesmo que assinou o laudo
quando da morte da Elis por overdose de cocaína. Na época de sua morte, Elis era namorada
de um dos advogados da família Herzog, Samuel MacDowell, que conseguiu provar a autoria
do Estado na morte de Vlado, bem como a invalidade do laudo médico de Shibata.
Em 27 de outubro de 1978, a 7 ª Vara da Justiça Federal em São Paulo responsabilizou
a União pela prisão, tortura e morte de Vlado, sendo a primeira condenação do Estado por
385
Os documentos do DOI-CODI, como a Perícia de encontro de cadáver e o Exame de corpo delito que
"atestavam" o suicídio, estão transcritos na obra: A sangue-quente: a morte do jornalista Vladimir Herzog, de
Hamilton Almeida Filho.
235
crime político após o golpe. Somente em 1996, a família recebeu uma indenização pela morte
de Vlado, por meio da Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos, debaixo de muitos
protestos de setores militares que ainda se encontram na ativa, inclusive, exercendo cargos
públicos.
Logo, prestar depoimento era motivo para, no mínimo, alguns dias de prisão, por
vezes, incomunicável. Assim também ocorreu na prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Levados para prestar depoimento em 27 de dezembro de 1968, ficariam presos por dois meses
e ao serem soltos, seriam “aconselhados” a partirem do país. Na carta de Elis Regina anexa ao
documento citado anteriormente, a cantora elenca questões feitas pelos jornalistas holandeses:
“Também me perguntaram das razões da ausência de Caetano Veloso e Gilberto Gil no
MIDEM, em 1969. Me neguei a responder, a despeito da insistência de um repórter”.
386
Provavelmente, o depoimento que ela prestou e a carta escrita não condizem com a realidade,
caso contrário ela não estaria sob esta pressão. Apesar de o documento informar que um
repórter teria entregue uma cópia da matéria com a entrevista ofensiva ao Governo brasileiro,
é mais provável que embaixada seja mesmo a responsável pela informação junto à
comunidade de informações.
Este papel desempenhado pelas embaixadas atingiu inúmeros músicos brasileiros e
portugueses. Numa pesquisa junto à documentação do Ministério da Justiça sobre a
espionagem contra os brasileiros exilados, Samantha Quadrat (2004, p. 320) apontou quatro
frentes desta observação: a possibilidade de retorno dos exilados, as campanhas contra a
tortura e pela anistia, a atuação política destes brasileiros no exterior e, por fim, uma
preocupação com as pessoas que viajaram para estes países, embora não na condição de
exilados. Este monitoramento foi comprovado pela pesquisadora, por exemplo, num
386
Informações sigilosas, Informação 2919/ S-103.2.CIE, Ministério do Exército, Rio de Janeiro, datado de
01.12.1971, Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas/ Brasília.
236
depoimento de uma banida que retornou ao Brasil em 1978, vinda de Portugal, em cujo
interrogatório é perguntado minuciosamente sobre atividades realizadas naquele país.
Estas informações sobre as ações da oposição no exterior guardam estreitas relações
com os serviços escusos prestados pelas embaixadas e consulados. Em relação às campanhas
pela anistia no exílio e mediante a análise da documentação encontrada junto à Divisão de
Segurança e Informações (DSI) do Ministério da Justiça, em que a maior parte:
“[...] da documentação diz respeito às ações do Comitê Pró-Anistia em Portugal. Considerado
um dos mais ativos, o comitê português reuniu não apenas os exilados que viviam na
península, como também os que deixaram os outros países para aguardarem a anistia naquele
país” (QUADRAT, 2004, p. 324).
Esta “assessoria” foi prestada pelas representações diplomáticas também nos países de
regime democrático. A colaboração entre estes governos e as ditaduras foi freqüente.
inúmeros relatos que denotam este dado, por exemplo, a negativa da entrada na Inglaterra de
Ricardo Vilas, de sua então esposa Teca Calazans e de sua pequena filha. Eles ficaram presos
no aeroporto de Londres e tiveram que voltar para Paris, onde Vilas era o único músico
brasileiro exilado.
387
Vilas relata ainda as dificuldades em se obter vistos e passaportes e
como isto preocupou os exilados brasileiros e prejudicou a difícil experiência no
estrangeiro daqueles que não tiveram a mesma sorte dos que sofreram com o gosto amargo
do caviar do exílio”. Diferente de boa parte de políticos e intelectuais brasileiros que
começaram a se exilar a partir de 1964 e que recebiam convites para lecionar ou realizar
pós-graduação com bolsas no exterior e para atuar em suas profissões mais qualificadas, os
novos exilados de fins da década de 1960 e início de 1970 enfrentaram dificuldades diversas
para obter emprego, geralmente braçais, em razão de serem ainda estudantes e trabalhadores
não especializados.
387
Depoimento ao autor, em Paris, 14.09.2004.
237
Havia dificuldades na obtenção de vistos de permanência em determinados países
europeus para onde foram os exilados. Num caso extremo, diante desta e de outras condições
adversas, Maria Auxiliadora Lara Barcellos (Dora) - que chegou a conhecer também o músico
José Rogério Licks quando estava exilada na Alemanha Ocidental, denunciou à Anistia
Internacional a situação dos refugiados políticos em Berlim Ocidental e suicidou-se em maio
de 1976 ao se jogar nos trilhos do metrô desta cidade. Conforme Cristina Machado, em seu
livro Os exilados: 5 mil brasileiros à espera da anistia (1979), durante uma temporada de
jogos, sem documentos, Dora teve que se apresentar três vezes por dia ao posto policial.
Acredita-se que tal exigência guarda relações com as informações que o governo brasileiro
fornecia a estes países qualificando os exilados como “perigosos terroristas”. Além disso, a
Interpol e as agências de notícias também se prestavam a este papel. Sobre esta questão
também se ocupa a historiadora Denise Rollemberg (1999): “Depoimentos de diversos
exilados em países democráticos, como a Alemanha e a França, não deixam dúvida de que
suas polícias recebiam informações da polícia brasileira e não se privaram de usá-las visando
pressionar, intimidar e humilhar” (p.144).
A preocupação com os vistos e com os passaportes era freqüente para estes exilados.
Esta documentação garantia a entrada em outros países, o acesso aos serviços públicos e ao
emprego. José Rogério Licks
388
afirmou que o passaporte era tão importante que se arriscou a
sair do Chile e entrar na fronteira gaúcha para retirar um passaporte. Apesar de sua prisão
anterior no DOPS, após sua participação numa passeata, não havia então impeditivos e
registros sobre suas atividades políticas e o passaporte foi emitido normalmente.
Fernando Gabeira, em seu livro de memórias O Crepúsculo do Macho (1980), relata o
caso de um exilado chileno que trabalhou na emissão de passaportes do Governo chileno e
que, ao pular os muros para se refugiar na Embaixada da Argentina após o Golpe Militar de
388
Depoimento ao autor, no Rio de Janeiro, em 22/03/2005.
238
Pinochet, não trouxe sequer um passaporte em branco: “Se soubessem como passaporte e
dinheiro fazem falta quando você começa a correr da polícia, creio que saltariam com a mala
cheia e hoje estaríamos todos sorridentes, sobretudo os brasileiros”. (GABEIRA, 1980,
p.155). Neste mesmo livro aparece o personagem “Gaúcho”, na realidade, o músico José
Rogério Licks: “[...] um refugiado do sul do Brasil, [que] conseguira saltar com um violão e
dedilhava algumas notas(p.153). O mesmo Licks deixaria um de seus passaportes com o
exilado Carlos Minc, hoje deputado estadual no Rio de Janeiro, devido à semelhança física
entre ambos.
O gaúcho Licks teve uma trajetória incomum. Não participou de movimentos
guerrilheiros e até mesmo havia concluído um curso de tenente em Porto Alegre, mas sequer
compareceu ao Centro Preparatório de Oficiais da Reserva da Aeronáutica (CPOR) para
buscar seu certificado. Colocou o violão nas costas e fez uma viagem pelo Brasil para
conhecer os diferentes gêneros musicais do Brasil e de alguns países fronteiriços:
No Brasil tinha sido preso em uma passeata contra a ditadura em
Porto Alegre, fiquei um fim-de-semana em cana, fui interrogado no
DOPS onde encontrei pessoas conhecidas (da casa de estudante em
que vivia) em estado de inconsciência, corpo inchado dos
espancamentos. Mas tive sorte, um dos inspetores era um conhecido da
minha cidade natal e intercedeu por mim, me soltaram ileso.
389
Licks partiu para o Chile em 1972 e lá conheceu inúmeros músicos, escritores e outros
brasileiros exilados. O fato é que no Chile a canção popular e de cunho engajado já vinha num
processo dinâmico de popularização na sociedade chilena e teve, no Governo Allende, o apoio
oficial para se desenvolver e atingir seu ápice. Assim, o início da década de 1970 no Chile, é
marcado por este fundo sonoro e a canção também é utilizada como meio de politização e
radicalização dos movimentos populares. Por outro lado, o sucesso ou não desta estratégia,
389
Depoimento ao autor em 23 fev. 2005, no Rio de Janeiro.
239
não necessariamente arquitetada, é difícil de ser medido. O músico Licks viveu este processo
e suas respectivas contradições:
No Chile eu fazia "trabajos voluntários". Ia a uma fábrica, tocar para os
operários. Ou ao campo, para uma colheita, tocar para os camponeses. Mas
tocava aquilo que eu achava bonito. De repente vinha alguém do partido
(porque tudo estava na mão de algum partido) e me cobrava: "Mas porque
você não canta coisas revolucionárias? Para chamar a massa para a luta?"
Não era sempre que acontecia isto, mas quando acontecia, ficava clara a
diferença de visões.
390
Este período guarda claras semelhanças com o período pós-25 de abril pelo qual
passou Portugal. Nesta etapa, a máxima “a canção é uma arma”, do músico português José
Mário Branco, é levada até as últimas conseqüências, mediante a utilização de gêneros
musicais e semas tradicionais no campo da canção política, bem como da exploração de novas
experiências estéticas que inovaram o panorama da canção portuguesa. Nesse contexto, as
cooperativas de música também desempenhavam este mesmo papel junto aos movimentos
populares.
Diante das freqüentes adversidades, como afirmara o produtor cultural António Loja
Neves
391
, que chegou a organizar algumas destas apresentações, inclusive com Zeca Afonso,
os espetáculos eram na maioria das vezes realizados em condições difíceis, sem sonorização e
acústica adequadas, com voz e violão, em ambientes impróprios e, na maioria dos casos, sem
que os músicos nada recebessem por este trabalho. Isto, se por um lado contribuiu de alguma
maneira nas transformações sociais que se operaram nesta fase, por outro, adiou o processo de
profissionalização destes mesmos músicos e desde o início levou a um caloroso debate entre
os “engajados” e os “profissionais”, muito embora, no tocante à particularidade de suas
canções, continuassem muito próximos.
390
Depoimento ao autor em 23 fev. 2005, no Rio de Janeiro.
391
Depoimento informal ao autor em 2004.
240
Sobre o efeito ou não da canção enquanto instrumento de intervenção, o sociólogo
Ciro Marcondes Filho também lança uma dúvida: “A questão que permanece é se esses
encontros de centenas de milhares de pessoas possuem qualquer efeito realmente aglutinador,
organizador e principalmente formador de consciência e de definição política”
(MARCONDES FILHO, 1985, p. 159). Particularmente ao caso chileno, o autor reitera a
importância deste cancioneiro: “A Unidade Popular do Chile chegou ao poder também com
muita festa e ‘canções do poder popular’, com grupos como os Quilapayún e Inti-Illimani. O
sabor da música permaneceu, mas a dura realidade do poder político acabou com a festa, em
todos os sentidos” (MARCONDES FILHO, 1985, p.161).
Aglutinadora ou evasiva, a canção engajada no Brasil tinha como espaço de difusão e
de recepção amplos setores de oposição política à ditadura. Isso fez com que alguns músicos
partissem para o exílio em razão do chamado obscurantismo cultural trazido pelos militares,
enquanto outros partiram do país em razão de suas atividades políticas, não totalmente
desvinculadas de sua atuação artística. Além dos conhecidos casos de exílio de músicos
brasileiros, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara, Raul Seixas,
Geraldo Vandré e Nara Leão, outros músicos menos conhecidos também se exilaram e foram
acompanhados no exílio pelos órgãos de informação brasileiros e dos países onde viveram.
O caso de Taiguara envolveu duas experiências de exílio que imprimiram em sua
carreira uma cicatriz difícil de desaparecer. Aqui tem-se o caso em que a Censura também era
expressão da repressão. Seu disco Imyra, Tayra, Ipy (Odeon, 1976) foi recolhido das lojas 72
horas após sua distribuição e seus espetáculos foram imediatamente proibidos. Antes deste
fato ocorrido em 1976, um manuscrito do músico asseverava: “Verão de 1974. 44 proibições,
cancelamentos de shows, prisões desaparecimentos, torturas [...] O exílio entrara no Brasil!
restava sair”.
392
O disco, apesar da gravadora informar que suas matrizes haviam se
392
Manuscrito de Taiguara enviado ao autor por sua filha Imyra, em 23 dez. 2005.
241
perdido, foi lançado no Japão em 2002, pela EMI-Toshiba. Em razão disso, a família tem
movido uma campanha pelo “repatriamento” do disco para o Brasil. Trata-se de uma obra-
prima censurada pela segunda vez, desta feita pelas artimanhas do mercado discográfico.
Dez anos depois do manuscrito de Taiguara, ele novamente teria um show proibido.
Desta vez, o espetáculo Canções de amor e liberdade foi proibido em razão do não
cumprimento da programação aprovada pelo escritório regional da Censura no Rio Grande do
Sul. Com base neste fato ocorrido em Porto Alegre, o chefe da repartição enviou um
radiograma para a Polícia Federal e um ofício
393
à diretora da DCDP para ver o que poderia
ser feito em relação aos espetáculos que também seriam realizados em Pelotas e em Santa
Maria.
Entre os exilados, destaca-se os casos dos que estavam no Chile e dos quais obteve-se
depoimentos: os músicos José Rogério Licks e Leopoldo Paulino, o escritor Tabajara Ruas e a
historiadora Cristina Portas. Com o Golpe militar no Chile, em 1973, as embaixadas em
Santiago foram rapidamente ocupadas por inúmeros estrangeiros e chilenos de oposição ao
regime recém-instalado. A Embaixada da Argentina chegou a reunir cerca de 800 pessoas
394
,
sendo cerca de uma centena de brasileiros. Sobre este caso foram realizados filmes,
documentários e três romances e memórias escritas por brasileiros (GABEIRA, 1980;
GABEIRA, 1979; RUAS, 1998).
Esta estada foi permeada por ameaças, doenças, falta de comida e água, de roupas,
colchões e mesmo espaço para as pessoas dormirem no chão da casa de dois andares em que
se localizava a Embaixada.
395
Em razão do número de asilados e do restrito espaço em que se
393
Ofício nº 119/84-SCDP/SR/RS, datado de 10 mai. 1984, Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas/
Brasília.
394
Uma lista com os brasileiros ali asilados foi encontrada no prontuário nº. 20.104 de José Rogério Licks
presente no arquivo do DOPS/RJ. Material consultado com a presença do fichado.
395
Conf. depoimentos ao autor de José Rogério Licks e de Cristina Portas, entrevistada pelo autor quando da
apresentação de uma comunicação sobre o caso dos músicos brasileiros exilados no Chile nas Segundas
Jornadas de História e Integración Cultural del Cono Sur, em 2005, na cidade de Concepción del Uruguay, na
Argentina. Ela estava na mesma mesa em que o autor desta tese e prontamente afirmou que também esteve na
Embaixada e que era muito amiga de dois brasileiros que lá estavam. Ela só conhecia o apelido dos dois: Gaúcho
242
localizava a residência do embaixador, foi: “[...] preciso organizar o dia-a-dia para tornar
viável o convívio e tentar evitar a proliferação de doenças, o que não impediu a ocorrência de
inúmeros episódios constrangedores e o surgimento de crianças com diarréia e adultos com
hepatite” (ROLLEMBERG, 1999, 179).
Este episódio se repetiu em outras embaixadas
396
para onde fugiram inúmeros
militantes de vários países. Segundo Leopoldo Paulino (2004), a situação foi extremamente
complicada também na Embaixada do Panamá, afinal, quando ele lá chegou com sua mulher e
seu filho, a pequena casa já contava com 40 pessoas. Diante da lotação, o refugiado brasileiro
Teotônio dos Santos também ali presente ofereceu sua residência para que fosse transformada
em embaixada. Com a tensa transferência de local, a situação melhorou, mas continuava
chegando novos exilados, o que voltou a tornar o local pequeno demais para tantos asilados.
Isto levou à: “[...] alguns exilados, a tese de que não deveríamos deixar entrar ninguém, em
virtude do desconforto generalizado que experimentávamos, idéia essa que foi abraçada
também por alguns refugiados brasileiros [...]” (PAULINO, 2004, p. 293). Essa proposta
levou a um clima de guerra no interior da Embaixada entre as trezentas pessoas ali asiladas,
mas foi vencida pelo coletivo.
Entre estes asilados estava também Betinho, o “irmão do Henfil”, homenageado pela
dupla João Bosco e Aldir Blanc na canção O Bêbado e a Equilibrista. As mulheres e as
crianças foram as primeiras pessoas a serem retiradas da embaixada. Dias depois, foi a vez
dos homens: “[...] durante o trajeto fomos cantando canções revolucionárias que, embora
agradassem a muitos transeuntes, causavam a ira dos militares que nos escoltavam. O coral,
e Taba. descobriu o paradeiro dos dois quando foram revelados seus nomes José Rogério Licks e Tabajara
Ruas. Não foram poucas as vezes que isso aconteceu nas andanças do autor também em Portugal. Muitas
histórias se cruzaram não por uma razão subjetiva, mas porque a trajetória destes envolvidos, seus espaços de
atuação política e cultural coincidiam, e não apenas no Brasil.
396
Denise Rollemberg também se ocupa dos casos destas embaixadas mediante entrevista a alguns dos
brasileiros que lá se asilaram. Ver em: Exílio: entre raízes e radares, 1999.
243
no ônibus em que eu me encontrava, foi dirigido pelo companheiro Ângelo Pezutti”
(PAULINO, 2004, p.299).
Após voltar do Brasil, e antes do Golpe de 11 de setembro de 1973, Licks voltou a
trabalhar na “Caixinha” de ajuda aos brasileiros exilados no Chile. Este era o nome dado a
uma organização criada para amparar as pessoas que não paravam de chegar ao Chile, como
no caso da intermediação de bolsas de estudos para os exilados. No caso, Licks trabalhou no
restaurante da Caixinha e recorda o que aconteceu nos dias seguintes ao Golpe Militar
encabeçado por Pinochet: “[...] chegou meu chefe do Restaurante, o Camacho, e ele me falou
o seguinte: ‘Olha vou dar um conselho, você corta a barba e o cabelo e você vai ter que
procurar um jeito de escapar porque seu nome saiu numa lista de buscados, com outra gente
conhecida aí’”.
397
Segundo o então exilado Leopoldo Paulino, após sua detenção pela polícia civil
chilena, afirma: “[...] levaram-me para uma sala onde estava o exilado brasileiro Carlos
Camacho, pessoa a quem eu conhecia, e que possuía um restaurante em Santiago, tendo um
policial me dito que poderia conversar com meu compatriota, se quisesse”. Em 1998,
Leopoldo reencontraria Camacho em São Paulo e perguntaria a razão de sua presença naquela
delegacia, tendo como resposta: “[...] que esteve na sede da polícia chilena no dia 17 de
setembro de 1973, para fornecer comida naquela repartição, que trabalhava no ramo da
alimentação” (PAULINO, 2004, p. 284).
Com uma verba advinda do Conselho Mundial das Igrejas, a direção da Caixinha
decidiu investir a doação na montagem de um restaurante e de uma fábrica de alimentos (que
não chegou a se efetivar). Segundo Rollemberg (1999), não foram poucas as acusações contra
a direção da Caixinha de desvio de dinheiro e colaboração com os golpistas chilenos: “[...] os
dois responsáveis pela Caixinha não foram presos, ao contrário, continuaram a trabalhar
397
Depoimento ao autor no Rio de Janeiro, em 23 mar. 2005.
244
fornecendo alimentação para os refugiados nas embaixadas e para os presos do Estádio
Nacional” (p.157). Uma outra “caixinha” deste período é de triste lembrança, trata-se da
“Caixinha da Operação Bandeirantes - OBAN” que financiava a repressão, tortura e morte de
opositores ao regime. Ela começou a funcionar em 1969 com capitais de Gastão Vidigal
(dono do Banco Mercantil de São Paulo) e apoio estratégico de empresas como a
Volkswagen, Ford, Ultragaz, entre outras (GASPARI, 2002b, p.62).
Os refugiados políticos que antes estavam asilados na Embaixada da Argentina na
capital chilena foram sendo instalados pelo interior da Argentina. vivendo em Buenos
Aires, os músicos brasileiros Raul Ellwanger, Eliana Lorentz Chaves
398
, Zeca Leal, José Luís
Sabóia, Edu, José Rogério Licks e Márcia Savaget Fiani, dirigidos pelo teatrólogo Augusto
Boal
399
, formaram o grupo Caldo de Cana que apresentou em Buenos Aires o espetáculo
Canción del Exilio
400
. Segundo o ex-integrante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e hoje
vereador na cidade de Ribeirão Preto, Leopoldo Paulino:
398
Cantora também conhecida como Nana Chaves e ativista da VPR – Vanguarda Revolucionária Popular, presa
em 1970. Eliana Chaves aparece, por exemplo, numa lista de nomes presente num “relatório mensal de
informações” que elencava as pessoas que tinham voltado do exílio, no seu caso constava “MAI 77”. Este
documento encontra-se microfilmado no arquivo do DOPS/SP. Teve uma curta carreira no final da década de
1960 na chamada Frente Gaúcha da MPB, atuando em casas de espetáculos e em programas de televisão. Com
sua prisão teve sua carreira severamente prejudicada. Foi exilada na Argentina e ao retornar ao Brasil, atuou
novamente no campo da música. Participou do coro de algumas gravações de discos, como nos LPs Keiton e
Kledir (1983) e Na Fonte (1981), de Beth Carvalho. Foi a intérprete da canção Num dia de Sol tema principal da
trilha sonora da novela da Bandeirantes, Meude laranja lima, de 1980. Esta novela foi um dos maiores êxitos
deste canal até a atualidade. Constava ainda no mesmo disco a canção Coração Catarina, composta e
interpretada pelo seu ex-marido Raul Ellwanger. Também gravou Lugarejo, de Giba Giba e Wanderley
Falkenberg, que fez parte da trilha sonora da novela Cavalo Amarelo, da mesma emissora. Além de comporem a
trilha de ambas novelas, as duas canções foram também gravadas no compacto simples: Nana Chaves, pela
Gravadora WEA/ Bandeirantes Discos, stereo, nº. BR 13013, 1980. Por fim, foi a intérprete da canção Jacobina,
da novela Um homem muito especial, da TV Bandeirantes, exibida entre 1980 e 1981. Atualmente trabalha na
área da Psicologia. Fonte das informações sobre a carreira: Depoimento da cantora ao autor por correspondência
eletrônica entre 18 e 20 de janeiro de 2006.
399
O diretor se exilou após sua prisão e tortura sofridas, “acusado de colaborar com a ALN – por exemplo, como
intermediário de mensagens em viagens ao exterior” (RIDENTI, 2000, p. 159). Na verdade esta “direção” feita
por Augusto Boal esteve mais ligada à movimentação dos sicos no palco. Assessoria semelhante foi feita
também por Boal durante a apresentação de Ponteio no III Festival da TV Record, de 1967. Além do compositor
da canção, Edu Lobo, a perfomance contou com Marília Medalha no vocal, e com os grupos Quarteto Novo e
com o Momento Quatro (do qual fazia parte o entrevistado Ricardo Vilas). Segundo o letrista de Ponteio, o poeta
Capinan: Ponteio vendeu quarenta mil discos em uma semana, enquanto a edição de quinhentos exemplares de
meu livro de poemas, Inquisitorial, não me trouxe dinheiro nenhum”. In: Capinã – o poeta da canção. Manchete,
ano 15, nº. 821, 13 jan. 1968, p. 120.
400
Conforme folder obtido junto ao músico José Rogério Licks, conhecido na Alemanha pelo nome artístico de
José Rogério. Ver algumas letras de canções de Licks compostas para o grupo, em anexo.
245
Sob a direção de Augusto Boal, organizamos um show de música popular
brasileira no último final de semana de março de 74, que foi apresentado no
Teatro Latino, localizado na esquina das Ruas Cochabamba e Defensa.
Denominamos o grupo de “Caldo de Cana”, e era integrado por Márcia,
Edu, Saboia, Gaúcho, Raul e eu, cuja apresentação foi uma denúncia contra
os crimes da ditadura brasileira (PAULINO, 2004: p. 309).
É também o mesmo Leopoldo quem narra em seu livro de memórias, Tempo de
Resistência
401
, a vida em Buenos Aires e o difícil exercício do ofício de músico no exílio:
[...] organizamos um trio para tocar em bares noturnos da cidade. Eu tocava piano e violão,
Edu
402
na percussão e Márcia [Fiani] cantando, e com essa atividade, consegui sobreviver
durante todo o tempo em que permaneci na Argentina” (PAULINO, 2004, p.308).
Alguns destes músicos e outros exilados moraram num hospital desativado em Buenos
Aires. Segundo Paulino Leopoldo, era um: “hospital em reforma da Rua Combate de los
Pozos, local esse batizado pelos companheiros exilados que viviam de Aparelhão”. Apesar
das difíceis condições não faltaram também momentos de sociabilidade entre os exilados,
como nos jogos de: “[...] futebol e quase todos os dias, no final da tarde, realizávamos um
jogo contra os argentinos que trabalhavam nas obras de reforma do hospital, sempre havendo
grande rivalidade nessas disputas” (p.309).
Durante seu breve exílio na Argentina, o também morador do Aparelhão, Licks lembra
a certa altura que havia sido procurado por uma outra exilada (muito embora não lembrasse
seu nome) que buscava informações sobre seu marido. Ele acompanhou-a até uma das
instalações do Exército argentino, mas não obtiveram informações. na fase de pesquisa,
pude-se confirmar os nomes e as condições deste caso com o próprio Licks. Na verdade, o
desaparecido tratava-se de João Batista Rita, um dos setenta trocados após o seqüestro do
embaixador suíço Giovani Enrico Bucher, em 1971. Todos foram mandados para o Chile e de
401
Obra que desembocou na realização de um documentário homônimo.
402
Não identificado por nenhum dos entrevistados.
246
Rita foi para a Argentina, onde se casou justamente com esta moça que pedira ajuda ao
Licks, a exilada chilena Amelia Barrera.
Segundo a matéria “Inteligência e coragem a serviço da luta armada” publicada no
jornal A Notícia, Rita teria sido preso no dia 11 de dezembro de 1973, junto com outro
exilado, o ex-major Joaquim Pires Cerveira, “por um grupo de homens armados falando
português e liderados por um homem que, mais tarde foi apurado, seria o delegado Sérgio
Fleury”. De acordo com informações de sua família, acreditavam que ele tivesse “[...] sido
seqüestrado e trazido de volta ao Brasil, via Operação Condor, onde teria sido torturado e
morto”.
403
Outro depoimento vem do músico Leopoldo Paulino:
No dia 11 de dezembro de 73, foi seqüestrado em Buenos Aires o
companheiro João Batista Rita, chamado de “Catarina” por todos nós, exilado
que morava conosco no Aparelhão. Com João Batista, foi seqüestrado
também o major Cerveira, exilado político brasileiro, cuja operação foi
realizada em Buenos Aires pela polícia brasileira, com o aval dos órgãos de
segurança do governo argentino. Os dois companheiros foram vistos, pela
última vez, por alguns presos políticos no DOI-CODI do Rio de Janeiro,
arrebentados pela tortura, nunca mais se conhecendo seu paradeiro
(PAULINO, 2004, p. 311-2).
Esta prisão levou os moradores do Aparelhão a agilizarem sua saída do país. As
relações entre os dois governos, como afirmado anteriormente, propiciaram a fácil entrada de
militares brasileiros em território argentino e a realização de ações conjuntas. Além disso, a
DINA (Dirección de Inteligencia Nacional), a polícia secreta chilena, também passou a fazer
incursões pela Argentina em busca dos integrantes chilenos do Movimiento de Izquierda
Revolucionaria (MIR) e de seus aliados. Ainda de acordo com Leopoldo Paulino, houve uma
tentativa frustrada de seqüestro de outro companheiro brasileiro, desta vez sem êxito, do
403
A Notícia, Joinville, 02 Jul. 2003. Disponível em: <http://an.uol.com.br/2003/jul/02/0ger.htm>. Acesso em:
14 jun. 2005. Mais informações na lista dos desaparecidos políticos no site oficial do grupo Tortura Nunca
Mais. Disponível em: <http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mor/mor_desaparecidos/mor_joao_rita.htm>.
Acesso em: 14 jun. 2005.
247
também: “[...] exilado brasileiro Amarílio Vasconcelos, antigo militante do PC do B, que
conseguiu escapar, correndo por uma rua do centro de Buenos Aires, gritando aos populares
que por transitavam que estava sendo perseguido por policiais brasileiros” (PAULINO,
2004, p.312).
sem Raul Ellwanger e Eliana Chaves e agora com o músico Madureira
Vasconcellos, os músicos do Caldo de Cana exilaram-se em diferentes países europeus, mas
se reuniam esporadicamente para se apresentar pela Europa, como na Dinamarca, Alemanha,
Bélgica, França e em Portugal, este último em 1977, na Aula Magna da Universidade de
Lisboa
404
, palco de muitas apresentações dos músicos portugueses aqui abordados. Três anos
antes, num campo de refugiados na Alemanha, Licks conheceu o poeta Thiago de Mello
405
e
no mesmo ano se apresentou na cidade alemã de Mainz com Alexandre Manuel Thiago de
Mello, o Manduka, filho do poeta. A exemplo do que faziam os portugueses em França
406
,
eles se apresentavam denunciando as atrocidades cometidas pelas ditaduras latino-americanas.
Uma marca muito forte nesta pesquisa é que, apesar de não ter entrevistado os
“medalhões” da MPB, encontrou-se na trajetória destes músicos um “encurtamento do
mundo”. O que quer dizer tal assertiva? Refere-se ao fato de que quase todos os músicos
entrevistados se conheceram em algum momento e em diferentes países durante o exílio. A
princípio poderia ser evocada uma explicação baseada na coincidência, mas não foi uma
causa subjetiva a razão destes encontros. O fato é que as áreas de atuação coincidiram:
primeiramente a música, na seqüência, as comunidades brasileiras” de exilados no Chile,
404
Provavelmente, trata-se do mesmo evento citado pelo DEOPS no documento confidencial emitido pelo
Ministério da Aeronáutica/ CISA, datado de 29 abr. 1977, no informe nº. 0096 , classif. A-2, que afirmava: “de
13 a 19/4/77, org. Pelo Comitê Pró-Anístia Geral no Brasil e realiz. Sua abertura na Universidade de Lisboa”. In:
Pasta 50-E-29-222, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
405
O poeta chegou a participar da preparação da guerrilha de Caparaó, ao lado dos escritores Otto Maria
Carpeaux e Antonio Callado (RIDENTI, 2000, p.145).
406
Por exemplo, a União dos Antifascistas Portugueses em França foi criada em março de 1946. Em resposta a
tal política de denúncia, a ditadura portuguesa enviou ao exterior o livro Portugal, Breviário da Pátria para os
portugueses ausentes, destinado aos países europeus, às colônias, ao Brasil, Argentina, EUA. Nesta obra, e em
suas separatas, os valores de Portugal salazarista são tratados por especialistas alinhados ao governo, como
Marcello Caetano, Luís de Pina, Amadeu Cunha, entre outros (PAULO, 1994, p. 95-6).
248
Argentina, França, Portugal, Alemanha e Dinamarca, entre outros países. Um outro ponto de
confluência estava no campo político: os movimentos pela anistia e contra as ditaduras e as
relações entre integrantes de grupos políticos de esquerda, além da ngua comum entre
brasileiros e portugueses.
Portanto, uma recorrência nas entrevistas com estes músicos sobre os breves
contatos estabelecidos. Por exemplo, ao perguntar ao português Luís Cília se ele conhecia
algum músico brasileiro ele prontamente respondeu negativamente. Ao insistir se ele em Paris
tinha conhecido o brasileiro Ricardo Vilas, ele se lembrou imediatamente respondendo:
“como não conheceria, se foi eu quem o apresentou ao produtor e à gravadora que lançou o
seu primeiro disco na França?”. Outras histórias se repetiaram de participação nos mesmos
espetáculos, encontros em festas particulares, nas ruas. O gaúcho José Rogério Licks, por
exemplo, lembra de estar na casa de um amigo chileno numa das poblaciones da periferia de
Santiago, no Chile, e de adentrar sem pedir licença, o músico Geraldo Vandré. Ele afirmara
que entrou na casa depois de ouvir o violão e a canção brasileira cantada por Licks. Naquela
mesma noite compuseram uma canção.
Estas referências sobre os contatos entre os músicos, de certa maneira, apontam
também para uma preocupação prévia do entrevistador, apesar da fluidez também subjacente
à entrevista. Por outro lado, este direcionamento também tem sido objeto de críticas, muito
embora a exigência de uma neutralidade no processo de pesquisa seja também passível de
dúvida.
407
Em 1977, o mesmo Licks reencontraria Augusto Boal, que dirigira o Caldo de Cana,
em seu exílio em Lisboa. O diretor teatral brasileiro estava na altura ensaiando a peça
407
Para Rosenthal (2005), a “atitude geral como pesquisadores sociais é freqüentemente destrutiva desde o
começo mesmo da coleta de dados, quando sabemos ao certo o que o biografado deve narrar e o que é
importante para nosso assunto, e quando fazemos as perguntas adequadas a nossos propósitos” (p.194). A autora
revela, apesar do aparente exagero, uma preocupação pertinente relacionada à necessidade de uma separação
entre o conhecimento cotidiano (“o contar histórias”) em relação à produção do conhecimento científico e da
formulação de categorias explicativas.
249
teatral A Barraca conta Tiradentes, uma adaptação da peça brasileira Arena Conta Tiradentes
para o grupo português A Barraca.
408
O próprio Licks tocou violão num dos ensaios da peça.
No elenco estava a que, mais tarde, reaproximaria a canção brasileira e portuguesa: Eugênia
de Mello e Castro. Esta intérprete portuguesa teve um de seus primeiros contatos com a
música brasileira ainda muito jovem. Numa entrevista à revista Isto É e ao ser inquirida sobre
a semelhança de sua técnica musical com a de Elis Regina, respondeu:
Quando eu tinha dez anos, Elis foi a Lisboa fazer nem sei o quê, era na
época do Upa neguinho, cabelo supercurto a rapaz, vestido tubinho branco,
ela foi numa noite de tertúlia de exilados brasileiros numa galeria de arte, a
Quadrante, e tinha gente pendurada no teto. Elis chegou meio já tarde,
todos pediram para ela cantar, tinha uns cabeludos com uns violões, enfim,
ela disse que estava rouca como eu a compreendo hoje e sentou-se
timidamente num banco comprido, perna cruzada. E quem estava sentada
no outro lado do banco??? Eu!” (grifos nossos).
409
Apesar das tentativas de controle das ditaduras latino-americanas sobre os músicos,
houve um significativo intercâmbio entre os músicos brasileiros exilados e os portugueses
(como se na citação anterior), argentinos, uruguaios, chilenos e cubanos. Um exemplo
deste contato encontrado nesta pesquisa relaciona-se ao músico Manduka, que, em razão do
exílio de seu pai no Chile, iniciou uma parceria com os músicos chilenos do grupo Los Jaivas.
Eles se conheceram no início da década de 1970 no Chile, de onde surgiu um coletivo de
músicos chamado: [...] Los Piratas del Bembirá, formado por Los Jaivas, Illapu, Manduka,
Geraldo Vandré, Antonio Smith, Matías Pizarro”.
410
408
Mais informações: BARRACA conta Tiradentes. Lisboa: Grupo de Acção Teatral A Barraca, 1977. Livreto
adquirido num sebo brasileiro. Nele consta, além de uma explicação histórica da peça feita por seus autores
Augusto Boal e de Gianfrancesco Guarnieri, também um texto sobre o grupo A Barraca, seus projetos e
dificuldades financeiras.
409
Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/1601/artes/1601projetoatlantico.htm>. Acesso em: 23 out.
2005. Reproduz uma entrevista do ano de 2000.
410
LOS SUEÑOS de América. Disponível em: <http://www.jaivaamigos.com/discografia/id48.html>. Acesso
em: 13 mar. 2005.
250
Tais contatos levaram também o músico exilado brasileiro Geraldo Vandré a participar
da gravação do disco El Volantín
411
, de Los Jaivas, em 1971, cantando a faixa Bolerito.
Quanto à parceria entre Manduka e Los Jaivas, esta renderia o disco Los sueños de
América
412
, gravado na Argentina em 1974. Neste disco, além de atuar como violonista
também imprimiu uma marca muito pessoal de sua música na percussão. Contudo, a repressão
que também chegou à Argentina trouxe mudanças:
Ya conocidos en Argentina, Los Jaivas son trastocados por la detención de
Eduardo por los militares argentinos, sin explicaciones y sin argumentos...
afortunadamente Eduardo es liberado después de cerca de tres meses. Eso y
las nuevas restricciones a las visas de viaje hacia otros países de
Latinoamérica obligan a Los Jaivas a partir de Argentina, escogiendo como
destino París, Francia.
413
Quanto à Manduka, ele teve uma trajetória incomum. Viveu em inúmeros países
durante o exílio: Chile, Argentina, México, Venezuela, França e Espanha. Em 1979, venceu
no Brasil o Festival 79 da Música Popular (da Tupi) com sua composição e de Dominguinhos
Quem me levará sou eu, interpretada por Fagner; em 1986, gravou o disco Sétima Vida com
Pablo Milanés em Cuba. Apesar da efervescência de seu trabalho plural (era também
ilustrador), morreu em 2004, sem o reconhecimento do chamado grande público.
O grupo Caldo de Cana também é desconhecido no Brasil, apesar de suas
apresentações entre os exilados políticos, em sua breve existência. Por exemplo, o grupo
realizou um espetáculo em 1976, na Dinamarca, no evento “Brasilianski kultur i eksil”, numa
programação que englobava debates e apresentações artísticas. Contou ainda com a presença
dos exilados Augusto Boal, Reginaldo Faria Leite, Marta Maria Klagsbrunn
414
, Luis Vagner
411
Los Jaivas. El Volantín. Santiago do Chile: RCA, 1971. 33 rpm, stereo.
412
Los Jaivas. Los Sueños de América. Madrid: Movieplay, 1979. 33 rpm, stereo.
413
CANCIÓN del Sur. Disponível em: <http://www.jaivaamigos.com/discografia/id50.html>. Acesso em: 29
mar. 2005.
414
Marta também aparece como vítima na carta-denúncia Torture in Brazil – Ilha das Flores. Em 2005, seu caso
continua sendo analisado pelo Ministério da Justiça para fins de indenização, conf. Pauta da Comissão de
251
Cacasu, Jorge T. Michel, Virgínia Paiva, Humberto Silva, Apolônio de Carvalho, Orestes
Gomes e Arthur José Poerner, entre outros. No folder do evento, uma carta “ao povo da
Dinamarca” dava a tônica do embate, pois a: “[...] ditadura é servil defende diretamente
interesses do imperialismo americano, das multinacionais e da burguesia nacional. A ditadura
custa dor e sangue mais de três mil assassinatos, incontável número de prisões ilegais,
violência, terror e exílio”. O folheto continua em outra frente, a do embate cultural:
[...] A ditadura é obscurantista por necessidade política. Fecha
universidades, expulsa alunos e professores, cientistas e juízes. Proibiu mais
de 500 peças de teatro. Censurou mais de 1000 canções. Interditou mais de
três centenas de livros e de filmes. Exerce na imprensa a censura prévia.
Impõe a noite mais absoluta. Mas o povo resiste [...] A Semana da Cultura
Brasileira no Exílio quer mostrar uma pequena parte dessa resistência a
produção de artistas e intelectuais brasileiros impedidos de se expressarem
em seu país.
415
A oposição não tinha como precisar os números da repressão, mas imprimia no
exterior a imagem da violência produzida pelo Estado. Nesse sentido, estes exilados
envolveram-se em inúmeras organizações de denúncia contra a ditadura, construindo redes de
solidariedade no exterior, num exemplo de movimento semelhante ao ocorrido em Portugal
(após o 25 de Abril de 1974), França, Alemanha, Chile (até o Golpe de 1973), Argélia,
Holanda, Canadá, Suíça, Itália, EUA, entre outros. Em 1969, tais redes de divulgação das
denúncias foram aperfeiçoadas com a criação da Frente Brasileira de Informações que
difundiiu os diferentes tipos de violência exercidos pela ditadura brasileira.
Esta rede de denúncias gerou frutos. Na França, em maio de 1970, uma escultura
simbolizando a tortura no Brasil foi construída inspirada na imagem de Cristo crucificado,
com uma estátua feita de cera, com fios elétricos ligados ao corpo, em particular nos genitais.
Anistia, datada de 23.02.2005. In: <http://www.mj.gov.br/anistia/pdf/2005/plenario/Pauta2302.pdf>. Disponível
em 03 abr. 2005.
415
No programa do evento: Brasiliansk kultur i eksil Ugens Program fra d.15 til d.20. november 1976,
fornecido por José Rogério Licks.
252
Tal escultura provocou indignação das autoridades brasileiras e se traduziu num documento
intitulado “Cristo das Torturas”, que conta com um texto e com três fotos advindas da
imprensa internacional, presente no arquivo do DOPS de Pernambuco
416
. Sobre o mesmo
caso, afirma Gaspari:
A atividade da Frente Brasileira de Informações e da esquerda católica fez a
bola de neve rolar novamente na direção do Vaticano. Durante a Semana
Santa de 1970, a igreja parisiense de Saint-Germain des Prés expôs em seu
altar-mor um Cristo algemado, com um tubo na boca e um magneto na trave
da cruz. Sobre sua cabeça havia uma bola com uma inscrição “Ordem e
Progresso” (2002b, p. 306).
Estas campanhas contra a ditadura brasileira reuniam inúmeros escritores e artistas, a
exemplo dos filósofos Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, ou do cineasta Jean Luc
Godard, que teria oferecido os lucros de seu filme Vento Leste à ALN (GASPARI, 2002b, p.
145). O historiador francês Michel de Certeau atuou também contra o governo brasileiro
mediante uma freqüente denúncia à repressão existente no Brasil, como transparece em sua
ficha encontrada no Arquivo do DOPS/PR e originada no SNI, criada porque: [...] tomou
parte em um grande congresso público em data de 10 de janeiro de 1970, realizado pela Front
brésilien d’information (criada por Arrais [sic!] e composta de fugitivos políticos) em
Paris”
417
.
Outra causa do embate entre Michel de Certeau e a ditadura brasileira advém de um
texto que o historiador publicou na revista chilena Mensaje e na uruguaia Cuadernos de
Marcha, de janeiro e maio de 1970, respectivamente. Para o jesuíta Certeau, a Política de
Segurança Nacional seria: [...] uma tática sem estratégia [...] uma concepção destinada a
416
Ficha Cristo das Torturas, n. º 29737, datado de 18.05.1970, Arquivo do DOPS/ PE, Arquivo Público do
Estado de Pernambuco.
417
Fichário Individual, n. º 10704, datado de 29.09.1970, Arquivo do DOPS/PR, Arquivo Público do Paraná.
253
transformar-se em vítima dos seus pressupostos impensados e de sua própria lógica”
(CERTEAU, 1970 apud GASPARI, 2002b, p.188).
Voltando aos músicos brasileiros exilados, Márcia Fiani, outra integrante do grupo
Caldo de Cana, que mais tarde trabalharia no ramo da diplomacia, ficou conhecida junto aos
grupos de direitos humanos por ser uma das presas pela ditadura militar brasileira e uma das
signatárias da carta-denúncia “Torture in Brazil Ilha das Flores” publicada em inúmeros
periódicos internacionais no início de 1970. Esta carta denunciava a tortura de presos políticos
em 1969, na central de torturas criada ao fundo da baía de Guanabara, descrevendo os
métodos empregados e listando as vítimas e as torturas sofridas. Márcia foi seqüestrada,
torturada e presa incomunicável por quarenta dias. Gaspari (2002b), com base no mesmo
documento, embora com outro título Statement of female prisioners held at Ilha das Flores/
RJ, datado de 08.12.1969, após descrever que as denúncias de tortura que chegavam ao
exterior eram enviadas até mesmo por funcionários do Itamarati, assevera:
Pouco depois chegava à Europa e a Nova York um documento provindo do
cárcere da Ilha das Flores. Era o primeiro depoimento autografado e trazia a
autenticidade da valentia. Assinavam-no diversas prisioneiras que
continuavam na ilha e afrontavam as represálias que o gesto poderia lhes
custar. Listaram dezesseis jovens supliciadas. Eram militantes do MR-8, do
PCB e da AP. Salvo uma, todas tinham entre vinte e 25 anos. (GASPARI,
2002b, p.273-4).
Neste mesmo documento são listados ainda o músico brasileiro Geraldo Azevedo e o
casal Celso Simões Bredariol e Priscila Magalhães Bredariol. Segundo o músico
418
, era muito
comum que casais amigos alugassem apartamentos juntos para baratear a estadia na cidade do
Rio de Janeiro, acontece que sua esposa Victória Pamplona e o casal Bredariol, com quem
dividiam apartamento com mais um outro casal, eram ligados à Ação Popular (AP). Não
418
Depoimento ao autor em 24 mar. 2005, no Rio de Janeiro.
254
demorou para que o apartamento fosse invadido pelos serviços de repressão por ser
considerado um “aparelho”, isso no ano de 1969.
De acordo com Geraldo Azevedo, ele não tinha nenhuma ligação direta com a AP,
mas sabia que este tipo de organização permitia conhecer o que estava acontecendo no país
em meio à censura aos meios de comunicação e mesmo às canções. Ele também
questionava a luta armada, mas atuou em alguns momentos junto à AP como ilustrador no
jornal A Voz do Morro que defendia os interesses de moradores de favelas.
Em razão destas relações foi preso e levado para o CENIMAR, onde foi espancado até
ser levado para a Ilha das Flores, onde ficou dezenove dias na solitária. Quando passou para a
cela coletiva, por mais vinte dois dias, conheceu rios dos que freqüentavam seu
apartamento, agora pelo nome correto e não mais pelos codinomes. Ele lembra que havia uma
tortura psicológica, em que os policiais rompiam às vezes o silêncio e gritavam chame um
médico rápido”. Seu amigo Celso Bredariol foi torturado no primeiro dia. Azevedo
acreditava que os torturadores usavam cocaína, pois atravessavam a noite de forma alucinada.
Sob o pseudônimo de Letícia, em depoimento à jornalista Lucy Dias, temos uma mesma
acusação de uma outra vítima, desta vez presa por porte de drogas:
Fui levada para o DEIC, me espancaram muito, peguei pau-de-arara, passei
uma noite inteira pendurada para dizer onde a Clarisse [procurada pelos
mesmos motivos] estava. Não contei. Fui espancada perante treze homens
de terno e gravata, fui um espetáculo para eles, todos sentados assistindo à
tortura. Eu vi os próprios se drogando. Fizeram a Manuela aplicar neles as
anfetaminas apreendidas. Tomaram os ácidos, e um deles ficou na cela com
a gente, querendo barbarizar. Quase pirei. Me demoliram lá. (DIAS, 2003,
p. 149).
Voltando ao depoimento de Geraldo Azevedo, ele relata também a tortura que sofreu
na prisão. Ao seu lado estava preso o escritor Aguinaldo Silva, bem como seu editor devido à
publicação de um livro sobre Che Guevara. Havia também nesta cela um bancário e um
255
cobrador de ônibus, entre outros. Assim, a primeira prisão do músico brasileiro Geraldo
Azevedo decorre de um processo da Justiça Militar descrito no documento do arquivo do
DEOPS/SP, cuja sentença condenou pessoas supostamente ligadas à A). Neste documento, há
a informação que Bredariol: “Foi preso em sua própria residência, de onde foram arrecadados,
material pertencente a AP. Confessa ser militante da área próxima da AP, juntamente com os
demais detidos: sua esposa Priscila, Vitória, Lúcia Pamplona e Geraldo Azevedo.”
419
Um dos
materiais encontrados seria um mimeógrafo, e percebe-se ainda nesta documentação oficial
sinais do exercício da força, afinal não se “confessava” algo que não fosse pelo uso da tortura
física e mental, como transparece no “confessa” e como se comprova com o depoimento do
músico Geraldo Azevedo que presenciou as sessões de tortura sofridas pelo amigo.
A segunda prisão política de Geraldo Azevedo, por sua vez, é descrita em uma matéria
do Jornal do Commércio: “Em 1976, por causa de um abaixo-assinado, encontrado em seu
apartamento, o autor de Dia Branco foi levado, novamente com a esposa, para a temível Ilha
das Flores, no Rio de Janeiro. Desta vez as sessões de tortura foram ainda mais cruéis.”
420
Diferente de Caetano, Geraldo Azevedo não teve inspiração para compor, mas os:
carcereiros, no entanto, possuíam maldade suficiente para aumentar o som do televisor,
quando a [sua] canção Caravelas tocava na novela Gabriela da Globo, e seu autor amargava
uma sessão de pau-de-arara.”
Diferente do que aponta acima a matéria do jornal, isto ocorreu em 1975 e a canção
em apreço é Caravana, de Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Conforme relato do músico
421
,
após ser transferido do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de
Defesa Interna (DOI-CODI), os guardas descobriram que ele tinha uma música na novela
419
Pasta 50-D-26-4170, sem a data (provavelmente do mesmo ano de 1969), Arquivo do DEOPS, Arquivo
Público do Estado de São Paulo.
420
Jornal do Commércio, Recife, 29 de setembro de 1999.
421
Depoimento ao autor em 24 mar. 2005, no Rio de Janeiro.
256
Gabriela, da Rede Globo, foi por isso duas vezes agredido e obrigado a cantar junto com o
som da TV.
Em 07 de setembro de 1975 foi seqüestrado e encapuzado em frente de sua casa, ao
voltar de um passeio no parque com a filha e com o filho de um amigo. Esta segunda prisão,
ainda de acordo com o músico, veio de uma denúncia de um conhecido que, para não entregar
pessoas chaves na organização, listou nomes de simpatizantes, o que permitiu que as pessoas
mais estratégicas na organização percebessem a falta do preso nos pontos de contato e
pudessem fugir e também para que a repressão perdesse tempo prendendo outras pessoas.
Geraldo Azevedo relato ao autor que foi colocado no assoalho de um carro, teve a cabeça
pisada por um militar por horas. Em seguida foi levado para um centro de tortura, onde viu
logo uma pessoa sendo torturada. Sofreu uma agressão violenta: uma paulada nas costas que
ainda provoca-lhe dores na coluna.
Depois desta violência, outras viriam: “[...] me tiraram a roupa, me botaram um capuz,
botaram numa cela molhada como se fosse um frigorífico assim, com zero grau. E uma sirene
tocando o tempo todo.” Este tipo de sala foi montada em outros locais, sempre com as
mesmas características e recebendo o nome de “geladeira”. No mesmo local ele foi colocado
numa outra sala metálica, vazia, e que havia unicamente um álbum de fotos com seus
conhecidos e que os militares pediram-lhe que colocasse os nomes que conhecia numa folha
de papel. Num outro momento, fizeram-lhe perguntas e iniciaram os preparativos para os
choques elétricos, entretanto o cantor reagiu contra os agressores, até ser dominado e
atravessar uma sessão de choques. Simulando um ataque cardíaco livrou-se da continuidade
da tortura. Veio um médico encapuzado e que foi asua cela acompanhado por um militar,
que seria mais tarde o futuro secretário de Segurança Pública no Rio de Janeiro, já no período
de redemocratização.
257
Ainda segundo Geraldo Azevedo, durante esta prisão presenciou os gritos de uma
pessoa sendo torturada e seu silêncio abrupto, em seguida ouviu os gritos dos torturadores
dizendo que “Armando Frutuoso” tinha morrido e chegou a ouvir as reprimendas de um
superior sobre o suposto “acidente”. Ouviu um médico ser chamado. O fato é que Armando
Teixeira Frutuoso foi morto no dia 07 de setembro e teria sido visto no DOI- CODI/RJ
também pelo radiotécnico Gildásio Westin Cosenza, que chegou a conversar com Geraldo
nesta mesma prisão, de acordo com seu depoimento
422
em 1976:
[...] que foi então levado a um cubículo onde os torturadores, ficando às costas
do interrogando, levantaram-lhe o capuz; que, então, se viu bem à frente de
um senhor que estava sentado, encostado à parede e que, ao tentar levantar-se,
não conseguiu; que este senhor devia ter de 55 a 60 anos, bastante calvo,
cabelos grisalhos, pele bastante clara, nariz grande e (adunco) que nunca fora
visto pelo interrogando anteriormente, mas ficou sabendo, posteriormente,
através dos próprios interrogadores, de que se tratava de Armando Frutuoso,
ex-líder sindical que teria sido preso usando documentos com o nome de
Armando David de Oliveira; [...]
423
Armando Frutuoso era militante do PC do B e delegado sindical junto ao Sindicato
dos Trabalhadores da Light, no Rio de Janeiro. havia sido preso em 1961 por sua atuação
no sindicato e a partir de 1964 entrou na clandestinidade. Logo, tanto Geraldo Azevedo como
Gildásio foram testemunhas de uma morte nunca reconhecida como resultante da prisão de
Frutuoso. Uma segunda injustiça pode ser observada no mesmo site oficial do PC do B, onde
paradoxalmente ele também figura como mártir, em que a reprodução de um documento de
análise de conjuntura de 1983 discutia a derrocada advinda da “traição” dos que não
resistiram à tortura:
422
Junto à Auditoria Militar e em cartas enviadas ao Superior Tribunal Militar, sobre as torturas que levaram
Armando à morte no DOI/CODI-RJ. O Relatório do Ministério do Exército mantém ainda a mesma versão de
que "nunca esteve preso" Disponível: <http://www.vermelho.org.br/pcdob/80anos/martires/martires51.asp>.
Acesso em 04 abr. 2005.
423
Desaparecidos políticos. In: < http://www.dhnet.org.br/memoria/tnmais/politico.html> . Disponível em 04
abr. 2005.
258
Em 1975 é preso Armando Frutuoso que capitula e entrega grande parte dos
militantes que conhecia. [...] Se, porém, alguns desses elementos da
Guanabara enodaram o nome do Partido, outros souberam ter
comportamento digno, revolucionário, e resistiram com bravura e heroísmo
às sevícias na prisão, nada delataram.
424
Finalizando o caso Geraldo Azevedo, ele foi também confundido com um certo
“Valério” por sua aparência física, sendo muito agredido por isso. Após sua prisão, revistaram
seu apartamento e encontraram um abaixo-assinado a favor da democracia. O documento
contava com as assinaturas de Tom Jobim, Otto Maria Carpeaux e Jards Macalé. Após ser
solto, obrigaram-no a tocar no almoço dos oficiais. Ele já havia tocado antes num depoimento
para provar que era músico e o torturador chamou outros oficiais para assistir, não mais o
agrediu, tirando-o da solitária e transferindo-o para a cela comunitária.
Outro músico que acusou a ditadura de ter lhe torturado foi Raul Seixas. Numa
entrevista de 1987, ele lembrou que, em 1974, foi preso por organizar a Sociedade
Alternativa, que era um movimento espiritual e não político, segundo o mesmo, teve “[...]
uma ordem de prisão do Exército e me detiveram no Aterro do Flamengo. Me levaram para
um lugar que não sei onde era. Imagina a situação: estava nu, com uma carapuça preta. E veio
de mil barbaridades” (ALEXANDRE, s./d., p.43). Ainda nesta entrevista Raul declarou ter
sido torturado e de ter ficado três dias incomunicável, até se exilar nos Estados Unidos. Esta
denúncia de tortura não foi levada a sério por muita gente em razão dos depoimentos
contraditórios que ele costumava conceder. Entretanto, tal fato é confirmado pelo seu amigo
Sylvio Passos e por seu então parceiro de canções e de Sociedade Alternativa, Paulo Coelho
(ABONÍZIO, 1999, p. 132).
424
In: Análise crítica do processo de incorporação de segmentos que se desligaram de outras organizações e da
Ação Popular 1983. In: <http://www.vermelho.org.br/pcdob/80anos/docshists/1983c.asp>. Disponível em 04
abr. 2005.
259
Na detenção de presos políticos se a canção servia como alento, como aponta
exemplos citados anteriormente, ela também foi utilizada para outros fins. De acordo com
“Violeta” (aqui um pseudônimo utilizado pela autora), militante da AP e do PC do B, já havia
sido presa em outras duas ocasiões, a terceira foi em Porto Alegre, em 1975, de onde foi
levada para o DOI-CODI e depois para o DOPS/ RS. A exemplo do relato do músico Caetano
Veloso (1997, p. 379), não foi torturada, mas ouvia os gritos da tortura de presos comuns. Ela
também afirma que a “música de Brasília” que os soldados cantavam durante as sessões de
tortura era a canção “Charlie Brown”
425
. Numa de suas transferências, lembra Violeta:
De madrugada, parei em um lugar que eu calculo que fosse Brasília;
imagino pela distância de horas e, principalmente, porque a gente tinha uma
fórmula de conhecer os lugares onde estava pelas músicas que a repressão
cantava. A gente começava a ouvir os soldados, eles tinham o costume de
cantar, muitos deles cantavam enquanto torturavam, apara escapar, para
tirar aquilo da cabeça. (COLLING, 1997, p.57)
Um outro caso abordado, desta vez pelo jornalista Élio Gaspari, recorda que no
Batalhão de Infantaria Blindada, em Barra Mansa/ RJ, o tenente-coronel Gladstone Pernasetti
Teixeira chamava suas sessões de tortura de “missas” e obrigava os torturados a cantar “Jesus
Cristo” (1970), de Roberto e Erasmo Carlos, também uma provocação aos novos rumos que a
Igreja tomara após seu apoio inicial ao Golpe de 1964 (GASPARI, 2002b, p.320). Esta “trilha
sonora da tortura”, novamente a partir da memória de suas vítimas
426
, é completada por
Amada Amante, de Roberto e Erasmo Carlos, cantada no PIC (Pelotões de Investigação
Criminal da Polícia do Exército) de Brasília para abafar os gritos da tortura.
425
Canção de Benito di Paula que, contraditoriamente, fala da beleza da música brasileira e seus grandes nomes,
como Caetano Veloso e Vinicius de Morais, dois nomes da MPB, obviamente não identificados com o regime.
Outro dado é que Benito di Paula teve seu primeiro LP, de 1971, retirado das lojas por conter a gravação da
canção Apesar de Você, de Chico Buarque, proibida depois do lançamento do disco (ARAÚJO, 2002, p.103).
426
Depoimento presente no documentário: Tocantins: cadê profiro? Dir. Hélio Brito. Brasil, COR, Co-
Produção: Virtual Áudio &Vídeo/ TV Palmas/ Fund. Padre Anchieta - TV Cultura, 2005.
260
Esta informação é confirmada por Alípio de Freitas ao relembrar que, no prédio onde
se localizava o PIC e o DOI-CODI de Brasília, havia um som que chegava a qualquer lugar,
com duas aparentes finalidades: “abafar os possíveis gritos dos torturados e torturar
coletivamente os presos” e que, em 07 de setembro de 1971, “[...] por volta das cinco horas da
manhã, os alto-falantes internos começaram a tocar, a todo volume, a música Amada, Amante,
do Roberto Carlos. Tocar não uma, mas dezenas de vezes até que por todo o prédio reboasse
um imenso eco” (FREITAS, 1981, p. 173).
A canção que serviu como fundo sonoro nestes momentos trágicos, também serviu de
alento em outras ocasiões nos meios oposicionistas. Uma trajetória de luta no Brasil, exílio no
Chile, Argentina e pela Europa desembocou num cancioneiro popular e numa literatura de
denúncia por meio de relatos de exilados, como na obra publicada em Portugal, Memórias do
Exílio Brasil: 1964-19/?, em 1976. Outro exemplo desta literatura vem do escritor Tabajara
Ruas, um dos asilados na Embaixada da Argentina durante o Golpe no Chile, que conseguiu ir
para a Dinamarca. Ruas escreveu mais tarde o romance O Amor de Pedro por João. Segundo
José Rogério Licks, um dos personagens desta obra, relata a importância de um outro tipo de
leitura que “fazia a cabeça” de parte desta militância, ou seja, os gibis. Segundo este
músico
427
, vários apelidos advinham dos quadrinhos, como por exemplo, os “Irmãos
Metralha”, da família José de Carvalho, do PC do B e depois da Ala Vermelha do mesmo
partido. Isto denota uma outra característica perceptível nas memórias publicadas e nas
entrevistas, ou seja, um freqüente exercício de ironia
428
e mesmo a rememoração de eventos
engraçados ligados às ações absurdas das ditaduras
429
e da própria oposição.
427
Depoimento ao autor em 23 mar. 2005, no Rio de Janeiro.
428
Durante a ditadura brasileira era comum circularem pelas escolas paródias dos hinos à Bandeira e Nacional e
aos slogans (como o clássico: “Brasil: ame-o ou deixe-o” completado por “O último que sair apague a luz”);
como o fato descrito anteriormente do “abaixo a dentadura”; a dupla caipira “Costa e Silva”, entre outros casos
contados por Stanislaw Ponte Preta, nos dois livros do Festival de Besteiras que Assola o País, citados
anteriormente.
429
Os sicos portugueses José Jorge Letria e Manuel Freire citaram nas entrevistas um caso, para eles, de
grande piada e cujo documento referido foi encontrado no arquivo do Centro de Documentação 25 de Abril.
Trata-se de uma ordem de apreensão de nº. 184-SC encaminhada à DGS a pedido do Secretário do Estado da
261
Ainda segundo José Licks, a música tendia a ser um indicador da situação política. Ele
ainda não sabia do golpe de 1973 no Chile, mas os indícios eram muito fortes que isto estava
prestes a acontecer desde a primeira tentativa frustrada de Golpe Militar, ainda em 1973,
durante o tanquetaço. Na manhã de 12 de setembro, Licks afirmou ter se assustado ao notar
que ao invés das canções engajadas nas rádios, o fundo sonoro passou a ser música americana
e que ele não se esqueceu do Strangers in the Night, com Frank Sinatra, que ouviu no
primeiro dia após o Golpe de 11 de setembro. Em seu livro Canção inacabada, Joan Jara,
viúva do músico chileno Victor Jara, tem uma outra lembrança deste fundo musical. Ela se
lembra que após o derradeiro discurso de Salvador Allende, antes do ataque final ao Palácio
de la Moneda, a “música marcial substituiu a voz de Allende” (JARA, 1998, p. 317).
Ao contrário do caso chileno, no ano seguinte, as pessoas perceberam que em
Portugal estava acontecendo uma revolução de esquerda quando escutaram canções engajadas
e proibidas na programação das rádios do país a partir da manhã posterior à Revolução dos
Cravos. Nos meses seguintes outras rádios foram ocupadas pelos militares e canções e
opiniões proibidas de diversos setores da população foram ouvidas nas mais recônditas
aldeias, além disso, os cantores: “[...] principais timas da censura, podiam agora livremente
trazer à luz do dia muitas das suas obras censuradas e criar tantas outras em tempo fecundo
como aquele” (CRUZEIRO, 1994, p. 461). O exemplo do Chile ainda era muito recente e as
canções dos cantores de oposição foram novamente um alento de que desta vez, diferente de
todas a ações militares de até então, tratava-se um movimento de cunho progressista.
Um dos casos mais trágicos e representativos das relações entre as ditaduras e as
similaridades de seus métodos é o do desaparecimento do músico Tenório Jr. na Argentina,
Informação para que [...] sejam urgentemente apreendidos os invólucros do disco TAGUS TG 121
TROVAS de Manuel Freire, que contem a canção O Sangue não dá flor devendo também ser apreendidos
os discos que estão dentro dos referidos invólucros [...] 08 de março de 1969”. Por sua vez, Augusto Boal,
lembra dos livros apreendidos pela polícia na casa de um arquiteto amigo seu: Resistência dos Materiais e
História do Cubismo. Cf.: BOAL, A. Teatro do Oprimido: aula-espetáculo. Palavra Amordaçada/ 8ª. Jornada
Nacional de Literatura. Passo Fundo: UPF, 2001, p.266.
262
em 1976. No disco de Elis Regina, de 1979, “Elis, essa mulher”, esta intérprete registra na
capa do disco a frase: “dedicado à ausência do Tenório Jr.”. Pianista da banda de Vinicius de
Moraes (1913-1980), desapareceu naquele país durante uma turnê. Imediatamente seus
amigos Toquinho, Vinicius e Ferreira Gullar iniciaram sua procura por Buenos Aires.
Contudo, Tenório:
Foi levado para a delegacia Comisaria 5ª, na rua Lavalle, onde foi
interrogado. Contou que era apenas um músico que acompanhava Vinicius
de Moraes em seus shows, o que aumentou a insânia dos policiais que
consideravam o poeta um “artista comunista”. De lá foi levado para a
Escola Mecânica da Armada e interrogado novamente. Foi encapuzado e
morto com um tiro na cabeça, em sua cela. (CASTELLO, 1994, p.383).
Este caso foi resolvido mais de dez anos depois do fato ocorrida. O pianista Francisco
Tenório Cerqueira Júnior
430
havia descido de seu quarto de hotel, no centro da capital, para
comprar cigarros ou remédios quando foi preso e levado como suspeito unicamente pelo seu
tipo hippie. Segundo depoimento do músico Raul Ellwanger ao autor, ele esteve com Tenório
poucas horas antes de seu desaparecimento, acompanhado do baterista Mutinho. A página na
Internet Tortura Nunca Mais
431
esclarece ainda mais as condições de sua morte:
[...] Em 1986, o ex-torturador argentino Claudio Vallejos, que integrava o
Serviço de Informação Naval, em entrevista à revista Senhor (n° 270)
menciona o destino de diversos brasileiros nas mãos da ditadura argentina:
Sidney Fix Marques dos Santos, Luiz Renato do Lago Faria, Maria Regina
430
Era um pianista conhecido. Também foi um dos músicos da peça Calabar, de Chico Buarque, ensaiada, mas
não representada naquele momento devido à censura já citada anteriormente.
431
Em resposta a esta importante organização, um grupo de militares, ainda imbuídos pelo espírito de 1964,
organizou um site chamado “Terrorismo Nunca Mais” ou “TERNUMA” para denunciar as “atrocidades” da
esquerda armada. Reúnem textos de vários autores que comungam dos ideais da ditadura militar e que
estabelecem uma relação entre os movimentos sociais atuais (em particular o Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra) com os grupos de luta armada das décadas de 1960 e 1970. Além de construírem, digamos, a “memória
da direita militar”, realizam passeatas no dia 7 de Setembro, escrevem textos ridicularizando as frases do atual
Presidente Lula, fazem campanha contra as propostas de desarmamento, além de outros temas caros ao
pensamento conservador, por fim, pairam dúvidas quanto à origem de algumas das informações divulgadas pelo
grupo, pois parecem advir de documentos secretos não liberados à consulta pública. Ver:
<http://www.ternuma.com.br>.
263
Marcondes Pinto de Espinosa, Norma Espíndola, Roberto Rascardo
Rodrigues e Francisco Tenório Jr.
432
Logo, foi possível obter estas informações mediante o relato do torturador, visto
que a ocultação dos corpos e a destruição ou desaparecimento da documentação sobre as
ações militares que levaram à prisão e à morte destas vítimas, inviabilizaram a elucidação dos
casos. As relações entre as ditaduras latino-americanas podem ser mais uma vez observadas
na documentação apresentada pelo mesmo Vallejos:
"Do dia 20 de março de 1976 quando o Capitão Acosta solicita ao Contra-
Almirante Chamorro autorização para estabelecer contato com o agente de
ligação, código de guerra 003, letra C, do SNI do Brasil’, para que informasse
a central do SNI no Brasil que o grupo de tarefa chefiado por Acosta estava
‘interessado na colaboração para a identificação e informações sobre a pessoa
do detido brasileiro Francisco Tenório Jr.’" Outro documento, em ofício
assinado por Acosta é dirigido ao embaixador, em nome do "Chefe da
Armada Argentina", e datado de 25 de março de 1976, quando a embaixada
brasileira era comunicada sobre o seguinte:
"1) Lamentamos informar a essa representação diplomática o falecimento do
cidadão brasileiro Francisco Tenório Júnior, Passaporte n° 197803, de 35
anos, músico de profissão, residente na cidade do Rio de Janeiro; "2) O
mesmo encontrava-se detido à disposição do Poder Executivo Nacional, o que
foi oportunamente informado a esta Embaixada; "3) O cadáver encontra-se à
disposição da embaixada na morgue judicial da cidade de Buenos Aires, onde
foi remetido para a devida autópsia."
433
Este é um outro caso em que as embaixadas brasileiras atuavam no apoio logístico da
ditadura no exterior, em particular, no envio de informações da atuação dos exilados. No caso
Tenório, a Embaixada do Brasil na Argentina foi novamente conivente com o Governo
Brasileiro na sonegação de informações aos familiares de desaparecidos políticos. Este caso
432
Desaparecidos políticos -Francisco Tenório Júnior. Disponível:
<http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mor/ mor_desaparecidos/mor_francisco_junior.htm>. Acesso em
01 abr. 2005.
433
Desaparecidos políticos -Francisco Tenório Júnior. Disponível:
<http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mor/ mor_desaparecidos/mor_francisco_junior.htm>. Acesso em
01 abr. 2005.
264
revela que a repressão atingia os músicos também pelo que representava a canção dos
opositores para estes regimes autoritários. Esta história individual exemplifica ainda a dor da
espera dos familiares dos desaparecidos políticos e a existência de uma prática corrente nas
ditaduras latino-americanas, com o mesmo tipo de abordagem e de final trágico.
Com a Anistia decretada em 1979, os músicos brasileiros aqui abordados, a exemplo
do que aconteceu após o 25 de abril de 1974 em Portugal, voltaram ao Brasil. Os gaúchos
Raul Ellwanger e Nana Chaves retornaram em 1977, antes mesmo de sair a Anistia em razão
da condenação de Raul ter expirado. O músico Leopoldo Paulino, por não ter sido incluído em
nenhum processo, também antecipou seu retorno. Os músicos Ricardo Vilas, José Rogério
Licks e Manduka aguardaram a publicação da Anistia para voltarem ao seu país natal. Suas
chegadas estão documentadas nos DOPS e foram encontradas nesta pesquisa. No caso de
Licks, sua permanência no Brasil foi curta. Não havia espaço no Brasil para a música
instrumental naquele período e sua carreira na Alemanha havia gerado frutos. Em razão desta
realidade, Licks voltou para a Alemanha, onde até hoje desenvolve uma carreira como
compositor e músico com uma dezena de discos lançados.
434
Diferente de Licks, Ricardo Vilas voltou ao Brasil
435
onde teve uma profícua
participação na televisão. Foi o diretor musical de dois programas de grande importância na
Rede Globo, o primeiro foi o programa infantil Sítio do Pica Pau Amarelo e o segundo foi o
Globo de Ouro. Ao final da década de 1980, Vilas decide voltar a Paris e continuar uma
434
Com o nome artístico de José Rogério, gravou na Alemanha alguns discos, todos de música instrumental,
como: Improviso, Are Musik, 1988, LC-9084; Três Fontes, Are Musik, 1991, LC-9084; Música da Rua, Are
Musik, 1996, LC-9084. Seu único trabalho feito no Brasil foi composto a partir da poesia de Mário Quintana,
num disco intitulado Fios de Vida José Rogério Licks canta Mário Quintana, produzido por Dinorah Araújo,
em Porto Alegre, 1998. Este CD traz um belo encarte com os poemas de Quintana que foram musicados por
Licks e uma breve biografia do músico e do poeta. Ele também inventou um instrumento musical chamado
Morgumel, semelhante à mbira africana, mas que é tocado com todos os dedos e não apenas com o polegar. Ao
invés de uma única caixa de ressonância, tem mais duas, o que lhe deu um formato de asas de morcego, como
mesmo esclarece o seu criador.
435
A partir de 1980, o músico acostumado com a liberdade na França, voltou a dinâmica de enviar as letras para
Censura. Uma delas, Imagem Moderna, apesar de seus trechos: “Teus planos/ um tal gigante/ severo impune
autoritário”, seria liberada em 10 abr. 1980. Cf.: Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas/ Brasília.
265
carreira solo, visto que durante o exílio fez carreira junto com sua ex-mulher Teca Calazans
436
na dupla Teca & Ricardo. Nesta última década e meia, Ricardo Vilas tem dividido suas
apresentações entre os dois países.
Outra questão que deve ser levada a termo refere-se às famílias formadas no exterior.
A questão dos filhos dos exilados foi analisada por Denise Rollemberg em seu livro Exílio:
entre raízes e radares (1999). A uruguaia Cristina Portas
437
também realizou uma pesquisa
junto aos filhos dos exilados, ou seja, os filhos de militantes que voltaram dos países em que
viveram durante o exílio. Portas aborda as dificuldades da readaptação em outro país e as
dificuldades também relacionadas ao retorno. Sua metodologia contou com entrevistas junto
aos filhos (onze entrevistados com idade entre 20 e 32 anos) de exilados que voltaram ao país
natal, também analisou correspondências e material fotográfico dos mesmos. A autora
enfatiza a particularidade que envolve o exílio de motivação política:
[...] debemos tener en cuenta que las circunstancias familiares y
socioculturales que rodearon a estos niños escaparon a las reglas de lo
común, de lo humanamente predecible. Abarcaron territorios vivenciales de
extrema particularidad, tanto en el ámbito familiar como en el entorno
creado por el hecho de estar en el exilio.
438
Uma de suas entrevistadas aponta o histórico familiar e uma narrativa que, apesar de
não ser lembrada pela mesma, recebe um processo de incorporação com a carga dramática
vivida por sua mãe: “Digo, mi madre me tuvo a mí, tuvo que hacer 15 días de reposo con unas
436
Teca Calazans foi citada na entrevista realizada com Geraldo Azevedo, pois antes da vinda dele para o Rio de
Janeiro teve uma atuação no campo musical em Recife junto com Teca e Naná Vasconcelos.
437
Ao apresentar alguns dados desta pesquisa num Congresso Internacional de História, na cidade argentina de
Concepción del Uruguay, tratando justamente do caso dos exilados brasileiros no Chile e na Argentina, estava na
mesma mesa esta uruguaia, ex-militante de um grupo revolucionário uruguaio, que coincidentemente esteve
asilada na Embaixada da Argentina junto com Tabajara Ruas e José Rogério Licks, seus dois melhores amigos
entre aquelas 800 pessoas que se encontravam. O fato é que conhecia os dois por Taba e Gaúcho,
respectivamente, e perdera o contato com eles desde o exílio europeu de ambos, em fins de 1973. Eles
retomaram o contato após a intermediação do autor da tese.
438
PORTA, Cristina. La cuestión de la identidad en los hijos de los exiliados Desexiliados. In: Anais -
Segundas Jornadas de História e Integración Cultural del Cono Sur. Concepción del Uruguay/ Argentina:
Universidad Autónoma de Entre Ríos, 2005 (CD-ROM).
266
pérdidas, y tuvo que ir a esconderse a la casa de no sé quién, y no tenían una casa, en el medio
del embarazo tuvo que desmantelar una base”.
439
de se ressaltar a dificuldade enfrentada
pelos filhos dos exilados, muito mais grave quando envolvia a morte dos pais.
A mesma autora escreveu um depoimento importante sobre a situação dos exilados
que estavam na Embaixada da Argentina no Chile e que foram para a Argentina e ficaram
presos no Hotel Internacional de Ezeíza
440
, convertido em prisão durante o mês de novembro
de 1973. Foram fotografados e fichados pela polícia argentina, além de proibidos de saírem de
uma área que compreendia os quartos, corredores e restaurante. Nesta difícil estada, houve até
o nascimento da filha de um casal de uruguaios, que teve como fundo musical as canções de:
“[...] Vinicius, de Víctor Jara, de Toquiño, de Violeta Parra, de Viglietti, de Soledad Bravo, de
Zitarrosa, que un par de compañeros empezaron a pasar y a pedirnos, en voz baja, que
cantáramos más fuerte, más alto”.
441
Estas trajetórias sugerem que a adaptação à condição de estrangeiro destes músicos
exilados, gerou uma inquietação permanente refletida numa instabilidade de fixar uma
residência, principalmente fora de países latino-americanos, ibéricos ou africanos. Estes
músicos tiveram dificuldades muito maiores em relação aos que ficaram seguiram suas
carreiras artísticas no Brasil. Afinal, era uma outra língua a ser aprendida, havia as
dificuldades em relação à documentação, uma nova realidade de constituir uma família no
estrangeiro, as condições adversas para o exercício da profissão. Apesar de tudo isso, viveram
experiências impensadas nos dias de hoje. Conviveram com inúmeros músicos de diversas
nacionalidades, tiveram a oportunidade de mesclar diferentes referenciais musicais em sua
criação, enfim, viveram e participaram de toda uma efervescência cultural e política que
marcou aqueles anos.
439
Segundo sua entrevistada Dyamila, de 28 anos, nascida no Uruguai em 1973 e que, com poucos meses,
acompanhou seus pais para o exílio na Argentina.
440
O documento encontra-se em anexo.
441
PORTA, Cristina. Un nacimiento en ezeiza. Uruguai: Escritos Documentales/ Ediciones del Movimiento,
mimeo., 2004.
267
CAPÍTULO 3: A CANÇÃO
Apesar do trânsito da canção brasileira em Portugal, a recíproca não é verdadeira.
Embora unidos por uma língua comum, os contatos entre músicos portugueses e brasileiros
foram tímidos. Essa condição não impediu, no entanto, que estes artistas brasileiros tivessem
uma marcada influência em Portugal e na produção de alguns de seus músicos. Por outro lado,
esta diversa “música brasileira” também pôde ter este trânsito naquele país justamente por
trazer uma forte influência da música que se produziu em Portugal e que se espalhou e se
metamorfoseou nos diferentes gêneros musicais brasileiros. Logo, a sensação de déjà vu
quando se ouve os ritmos brasileiros e portugueses é recorrente. Para confundir ainda mais a
tentativa de se encontrar raízes comuns, esbarra-se também na similaridade entre os ritmos de
alguns países africanos e a música popular brasileira.
Ainda hoje a canção brasileira e as novelas têm uma penetração marcante nos meios
de comunicação portugueses. Diga-se de passagem, as novelas brasileiras foram (e são) um
verdadeiro fenômeno televisivo em Portugal, mas não apenas isso. Acredita-se que as novelas
tiveram um papel destacado na renovação e na liberalização dos costumes. Particularmente é
significativo o caso da novela brasileira Gabriela
442
, transmitida pela RTP em 1977, apenas
três anos depois do final da “longa noite”, cuja repressão política teve como aliada fiel a
repressão moral. A novela Gabriela teve também como componente decisivo na sua
popularidade o fato de ser a adaptação de uma obra de Jorge Amado, um dos escritores mais
lidos em Portugal, e também o escritor brasileiro mais proibido pela Censura. O fato é que a
novela interferiu até na língua portuguesa falada em Portugal, em novas formas de
comportamento social adotadas, além de uma incorporação da moda e de uma outra ótica de
442
Mais informações: CUNHA, Isabel Ferin. A revolução da Gabriela: o ano de 1977 em Portugal. Disponível
em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/cunha-isabel-ferin-revolucao-gabriela.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2004.
268
consumo, inclusive televisivo. Em razão de sua audiência, “[...] nunca mais, desde então, a
telenovela deixou de preencher o imaginário das multidões” (FERREIRA, 1995, p.170).
O lançamento da novela foi feito em um hotel lisboeta, com apresentação de Raúl
Solnado, sob o patrocínio da TV Globo, com a participação dos atores principais e com um
show de Vinicius de Moraes. Este sucesso não se restringiu à Portugal, como esclarece Paulo
César de Araújo (2002, p. 311), ao: “[...] acompanhar um grupo de artistas numa viagem à
Angola, em 1979, Djavan surpreendeu-se ao constatar que a platéia africana já o conhecia por
causa da canção Alegre Menina, tema que embalava o personagem de nia Braga na novela
Gabriela”.
Sobre esta turnê da qual participou Djavan, assevera o músico Ruy Faria: “[...] fui
sozinho [em relação ao grupo MPB-4, do qual participava] e apresentava o espetáculo que
tinha a participação de muitos artistas importantes da nossa música, como Chico, Caymmi,
Martinho, Djavan, Elba, João do Vale, etc... Boas lembranças!”
443
Antes dessa passagem por
Angola, Ruy havia estado em Portugal, onde conheceu o poeta Ary dos Santos, de quem
musicou o poema Mulher Maio, de 1978, que foi gravada pelo MPB-4 no disco Tempo,
Tempo, em 1981. Conforme depoimento ao autor:
Sou muito desligado pra esse negócio de datas, mas o Ary dos Santos é esse
mesmo. Nos conhecemos quando fui a primeira vez a Lisboa, com o Chico.
Ele me deu um livro de poesias e estava o Mulher Maio, que musiquei.
Imagino que pelos anos 70. Depois ele veio ao Rio. Tempos mais tarde
faleceu.
444
Segundo Araújo (2002), a música brasileira “cafona” também teve um relativo trânsito
em Angola e Moçambique. Numa das turnês de Nelson Ned à África, esteve presente também
443
Depoimento ao autor através de correspondência eletrônica em 27 abr. 2005.
444
Idem.
269
Cláudio Fontana que teve uma inspiração para compor uma canção sobre a questão racial:
“Quando eu cheguei na portaria de um hotel em Luanda, testemunhei uma cena que me
marcou muito: vi um cidadão branco, português, agredir de uma forma terrível um negro que
estava ali carregando as malas dos hóspedes” (ARAÚJO, 2002, p. 330). Dali nasceu a canção
Se Jesus fosse um homem de cor, gravada em 1973 por Tony Tornado, cujo registro e
apresentação pública levou os dois, intérprete e compositor, a deporem numa Delegacia da
Polícia Federal acusados de apologia ao movimento negro.
Outro caso narrado por Araújo (2002) advém de uma canção proibida pela Censura, de
autoria de Lindomar Castilho, também ligado ao universo “cafona”, intitulada Eu canto o que
o povo quer, de 1968: “[...] Estou com a maioria/ para o que der e vier/ eu faço parte do povo/
e canto o que o povo quer” (p. 114). Com o veto integral, só pode gravá-la em 1974. O fato é
que sua linguagem simples, mas reivindicativa, encontrou ressonância numa Angola em sua
luta pela independência: “A repercussão da música foi imediata e ela foi cantada tanto pelos
partidários do Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA) como pelos da gente
Nacional de Libertação (FNLA), ambos afirmando estarem com a maioria do povo para o que
der e vier” (ARAÚJO, 2002, p. 115).
Na transmissão feita na Internet pela RTP Internacional
445
, a canção brasileira é
freqüentemente escolhida entre as mais pedidas pelos ouvintes. Quanto ao Brasil, por
exemplo, houve alguns midos casos de músicos portugueses incluídos em trilhas sonoras de
novelas. O mais importante intérprete de fados da atualidade, o cantor Carlos do Carmo
446
,
teve as canções Fado dos Cheirinhos e Lisboa menina moça incluídas na trilha da novela Os
Imigrantes, da TV Bandeirantes, de 1981. Na TV Globo, a novela Semideus, de 1973, contou
com a bela interpretação de Amália Rodrigues (1920-1999) na faixa Solidão. A mesma
445
Disponível em emissão on-line: <www.rtp.pt>.
446
Além de cantor de fado, também é um estudioso do tema, o autor da tese chagou a assistir uma palestra sua no
Museu do Fado com a participação de outros estudiosos no debate que se seguiu, inclusive com participação de
Marisa, a mais prestigiada cantora da atualidade em Portugal.
270
cantora voltaria com a canção Gostava de ser quem era, na novela Jogo da Vida, de 1981.
Apesar do alcance obtido pelas trilhas (ou bandas sonoras, como se diz em Portugal), foram
experiências curtas e não freqüentes.
Apesar destas tímidas inserções de artistas portugueses, com exceção de Roberto Leal,
nas décadas de 1960 e 1970, na TV brasileira, o espaço para divulgá-las em Portugal foi ainda
mais ínfimo. Isto pode ser comprovado no arquivo da Censura portuguesa. Na matéria “Por
que não exibe a RTP os programas que Raul Solnado gravou no Brasil?”, do Platéia, de
setembro de 1973
447
. Nela é enfatizada a significativa participação do ator português em O
Emigrante e em episódios do programa Fantástico, ambos da TV Globo. O jornalista também
acresce à matéria as participações do cantor Carlos do Carmo
448
na TV brasileira. Na matéria
que busca responder a questão, verificam-se os seguintes trechos vetados: “Problema de
dinheiro, certamente não os havia [...] Problemas de Censura, também não os haveria [...] O
que se passa no Brasil, passa certamente em Portugal”. Curiosamente, a assertiva do jornalista
é comprovada pelo próprio censor.
O músico Sérgio Godinho foi um dos que tentou estreitar estas relações entre os
músicos portugueses e brasileiros. Como afirmado anteriormente, sua prisão de 1981 ocorreu
justamente quando voltava para Portugal após realizar no Brasil um trabalho com
compositores brasileiros.
449
Esta experiência de Sérgio Godinho havia sido realizada por
Vinicius de Moraes quando de sua participação numa festa feita na casa de Amália Rodrigues,
em Lisboa, na noite de 19 de dezembro de 1968, tudo registrado graças a um prestativo
microfone que captou o encontro entre Vinicius, Amália e os poetas David Mourão-Ferreira,
José Carlos Ary dos Santos e Natália Correia. Anos mais tarde esta gravação daria origem a
447
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 181, prova nº 2, Platéia, nº 657, de 01 set. 1973, matéria de Vitoriano Rosa.
448
Sua ficha na PIDE indica sua eleição para “Corpo Gerente do Grêmio Nacional das Empresas Teatrais e
Similares”, de 15 abr. 1970. IAN/ TT, PIDE/DGS, Bol 561404, NT-8453.
449
Projeto novamente realizado por meio de seu trabalho: O irmão do meio, EMI/ Valentim de Carvalho, 2003,
nº. 7243 5 81793 2 3. Disco que contou com a participação de Caetano Veloso, Gabriel o Pensador, Zeca Baleiro
e Milton Nascimento.
271
um disco duplo lançado no Brasil
450
e em Portugal. Numa mensagem final deste encontro
permeado por poesias e canções, Vinicius assevera: “Minha Pátria é a humanidade [...] Nós
somos os últimos povos que amam e que cantam e que escrevem uma poesia direito”.
451
Segundo seu biógrafo José Castello, em 1968, quando da decretação do AI-5, Vinicius
encontrava-se em Portugal numa seqüência de shows ao lado da cantora Márcia e de Baden
Powell. No mesmo dia da decretação do artigo, em 13 de dezembro, o poeta fez uma dura
crítica ao fato ocorrido: “No meu país foi instaurado, hoje, o ato institucional nº. 5. Pessoas
estão sendo perseguidas, assassinadas, torturadas. Por isso quero ler um poema” (1994, p.
282). O poema escolhido foi Pátria Minha: [...] Por isso, no exílio/ Assistindo dormir meu
filho/ Choro de saudades de minha pátria”. O show foi gravado pela RTP e seria
transmitido ao país na noite seguinte à Revolução dos Cravos, seis anos depois. Na saída do
teatro, um grupo de estudantes salazaristas o esperavam para protestar. Contudo, ele declamou
alguns versos de sua Poética (I) em meio aos estudantes, até que as ânimos mais exaltados
arrefeceram-se.
Apesar desta imagem quase cinematográfica construída por seu biógrafo, a
unanimidade do poeta foi eficaz: “Um primeiro rapaz, mais corajoso, tira o casaco e lança no
chão diante do poeta. Outros, logo, o imitam. Vinicius sai de cabeça erguida e coração
estraçalhado sobre aquele tapete de paletós e sobretudos” (CASTELLO, 1994, p. 285). A
partir dali, Vinicius teria seu processo de afastamento (iniciado já em 1964) agilizado, até que
a decretação de sua aposentadoria compulsória, em maio de 1969, afastou-o definitivamente
das atividades diplomáticas.
450
Fonte: álbum duplo Amália/ Vinicius – Amália Rodrigues e Vinicius de Moraes, da gravadora Chantecler, em
1978, 4.33.503.001/2. Mais informações sobre este encontro: FROTA, Lélia Coelho. Os vínculos da poética
de Vinicius de Moraes com a cultura portuguesa. Brasil e Portugal: 500 anos de desenlaces. Rio de Janeiro:
Gabinete Português de Leitura, v. 2, 2001, p. 200-07.
451
Segundo Nuno Galopim, em artigo de 2001: “É sabido que Amália regravou depois, em estúdio, alguns dos
seus fados, por exigências técnicas... Ninguém nota. A montagem precisa de Hugo Ribeiro salva a ilusão”.
Disponível em: <http://attambur.com/Noticias/Amalia/serao_de_memorias.htm>. Acesso em: 23 out. 2005.
272
Além da língua portuguesa (apesar das entonações e de pequenas diferenças
ortográficas, sintáticas e semânticas), as canções brasileiras e portuguesas tinham em comum,
nas décadas de 1960 e 1970, uma similaridade dos lugares de produção e recepção do
cancioneiro de cunho mais engajado politicamente. Reiteramos uma outra particularidade, ou
seja, uma estratégia semelhante dos compositores de utilização de metáforas para evitar os
cortes dos censores. Isso gerou também uma construção de mbolos, bem como o uso de
imagens que circulavam no mundo ocidental e que eram entendidas em diferentes culturas,
como no caso da idéia da flor e da primavera como símbolos da mudança, do nascimento de
um mundo ideal, por vezes utópico, da paz, do fim da violência.
Outra similaridade se refere não apenas aos temas abordados nas canções, mas
também a alguns dos setores de oposição: a luta não unicamente contra a ditadura, mas
também pelo socialismo. Nesse sentido, uma construção histórica que revela e dá
contornos mais explícitos à luta contra o regime autoritário quando, na verdade, também
outros ideais inspiraram as lutas e esta produção artística. Portanto, as canções mais engajadas
politicamente não se resumiam a uma crítica à ditadura, mas também ao capitalismo e as
desigualdades sociais que lhes eram (são) inerentes. Uma outra forte vertente advém do
campo comportamental. As canções também criticavam os costumes defendidos pelos
regimes, contrapondo-se à moral defendida pela ditadura, como no controle exercido nas
escolas, a repressão sexual e contra os preconceitos.
Ao apresentar o seu livro Em busca do povo brasileiro, Marcelo Ridenti remete a uma
outra essência que permeou as bandeiras destes grupos: “nos anos 60 e início dos 70, nos
meios artísticos e intelectualizados de esquerda, era central o problema da identidade nacional
e política do povo brasileiro (2000, p. 25)”. Na mesma perspectiva, Marcos Napolitano
(2001, p. 220) assevera:
273
A formulação de uma consciência nacional libertadora, política e
socialmente falando, passava necessariamente pela ‘justa’ colocação,
estética e ideológica, dos temas que, segundo os padrões da época,
deveriam ser característicos de nossa nacionalidade mais profunda.
Segundo Ridenti, um outro componente que fez parte desta classe artística e
intelectual esteve assente num romantismo que, em parte, também pode ser estendido aos
portugueses:
O romantismo das esquerdas não era uma simples volta ao passado, mas
também modernizador. Ele buscava no passado elementos para a construção
da utopia do futuro. Não era, pois, um romantismo no sentido da
perspectiva anticapitalista prisioneira do passado, geradora de uma utopia
irrealizável na prática. Tratava-se de romantismo, sim, mas revolucionário.
(2000, p. 25).
O fato é que a luta contra a ditadura nos dois países, também reuniu em sua fase de
decadência setores da sociedade completamente distintos dos citados anteriormente e por
outros motivos. No final da década de 1970, a ditadura brasileira já não interessava a algumas
facções da elite econômica e política, grupos, por sua vez, em processo de metamorfose
visando uma adequação ao novo regime que se vislumbrava. Tal “adaptação” foi também
incorporada por significativas parcelas de ex-integrantes dos próprios governos, inclusive no
caso português.
Voltando aos temas das canções, um diferencial significativo entre o cancioneiro
produzido no Brasil e em Portugal vem do tema da Guerra Colonial. Analisou-se
anteriormente os casos de canções alinhadas ao ideário do regime ditatorial que defendiam as
ações armadas na colônia, por outro lado enfatizou-se também uma crescente denúncia contra
a guerra por meio das canções, da Imprensa, entre outras manifestações. No Brasil, como não
havia esta mesma realidade de guerra externa, o tema foi pouco trabalhado. Quando era
274
abordado, geralmente trazia uma crítica mais ampla contra a violência, contras as guerras,
como a do Vietnã.
452
Por outro lado, o cancioneiro brasileiro aborda uma outra guerra, a
interna, da ditadura militar contra os movimentos armados e suas inúmeras divisões:
Além das divisões calcadas na estratégia, tática e programa de cada
organização clandestina, outros pontos serviam para distinguir a esquerda.
O alinhamento internacional teve um peso especial. O conflito sino-
soviético no início da década de 60, a revolução cubana. O stalinismo e o
cisma trotskista constituíram temas de discussão permanente e de
controvérsias entre os resistentes à ditadura militar.
(COLLING, 1997, p. 29).
A canção refletiu também este debate, ora criticando a opção pela luta armada, ora
conclamando as pessoas a pegarem em armas contra a ditadura
453
. Outro tema que reverbera
neste cancioneiro no Brasil é sobre o aviso do perigo que era enfrentar a ditadura militar.
Assim, temas como o medo, a insegurança, o risco, a incerteza também aparecem como
preocupação entre os compositores brasileiros, o que não foi tão diferente em relação ao
cancioneiro português.
452
Como na canção Guerra, interpretada por De Kalafe e sua Turma, no final da cada de 1960, como se
nos trechos: “Paz palavra que encerra/ dentro de mim/ o medo do fim/ fim pra acabar/ acabar pra matar [...] Paz
eu sei não mais/ mas tento esquecer/ que vamos morrer/ morrer muito cedo/ por causa do medo/ por causa de
loucos/ que eu sei não são poucos/ que querem pra si/ pra todos um fim/ por meio da guerra/ fazendo varrer/ a
face da terra...”. In: De Kalafe e turma. Rozenblit CS7018, s./d.
453
Como em Viola Enluarada, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle: “A mão que toca um violão/ Se for preciso
faz a guerra/ Mata o mundo/ Fere a Terra/ A voz que canta uma canção/ Se for preciso canta um hino/ Louva a
morte/ Viola em noite enluarada/ [...] Pra defendê-la se levanta/ E grita/ Eu vou!/ Mão, violão, canção, espada/ E
viola enluarada/ Pelo campo e cidade/ Porta-bandeira/ Capoeira/ Desfilando vão cantando/ Liberdade”.
275
3.1 A CANÇÃO PORTUGUESA: MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS
VONTADES
Um bom pretexto para iniciar este capítulo vem de uma gravação de Amália
Rodrigues, intitulada Barco Negro. Esta é uma de suas melhores interpretações e um de seus
maiores sucessos internacionais. Este êxito também pode ser explicado por sua atuação no
filme de Henri Verneuil Os Amantes do Tejo, produção francesa filmada em Paris e Lisboa,
em que Amália canta Canção do Mar e Barco Negro. Tanto em Portugal, como no Brasil,
comumente atribui-se a autoria de Barco Negro
454
a algum fadista português. Acontece que
esta canção é uma versão de Mãe Preta, de autoria dos gaúchos Matheus Nunes (Caco
Velho)
455
e Antonio Amábile (Piratini). Segundo o jornalista português José Niza, no encarte
do CD de Dulce Pontes, Caminhos, em que está gravada Mãe Preta, informa que Amália
Rodrigues (provavelmente em meados da década de 1950) havia tentado gravar esta canção, o
que não foi possível “porque a censura salazarenta da altura a proibiu”.
456
Em razão da proibição, Amália procurou o poeta David Mourão-Ferreira que, por sua
vez, escreveu uma nova letra para a melodia de Caco Velho, dando o título de Barco Negro:
De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.[Bis]
Vi depois, numa rocha, uma cruz,
454
Como afirmado anteriormente, esta canção foi gravada no Brasil, em 1975, por Paula Ribas, no disco Fados
Brasileiros.
455
O sambista porto-alegrense Caco Velho (1919-1971) atuou em diversas casas de espetáculo no Brasil (como
no bar Jogral, citado anteriormente), EUA, França, Portugal (inclusive na Madeira), entre outros. Em Paris,
chegou a se apresentar com Amália. Segundo informações de sua página oficial na Internet, feita por sua família,
sua música é tocada ainda nos dias de hoje nos seguintes países: Alemanha, Angola, Austrália, Bélgica, EUA,
Egito, Espanha, Índia, Inglaterra, Japão, Suíça, Suécia, Portugal”. Viaja para Portugal em 1966 a vive por
alguns anos, atuando em espetáculos e programas de TV ao lado de artistas como Maria Dulce, Paula Ribas,
Luisa Durão, o fadista Tristão da Silva, Antonio Mourão, Maria José Valério, Maria Helena, entre outros. Ainda
segundo sua página oficial: “Walt Disney conheceu Caco Velho antes de criar Carioca, o seu personagem
brasileiro. Sua primeira aparição foi em um filme chamado Alô Amigos, em 1943”. Disponível em:
<http://www.cacovelho.rg3.net/>. Acesso em: 23 set. 2005.
456
Apresentação de José Niza para o CD Caminhos, de Dulce Pontes, Alpha Music/ Movieplay, .
7896410698059, 2002.
276
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:
São loucas! São loucas!
Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
Me diz qu'estás sempre comigo.[Bis]
No vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.
Nesse sentido, a letra original foi descartada em razão de seu forte e lírico conteúdo
político, dando origem a uma, não menos bela, canção de cunho mais romântico. Por outro
lado, a letra original de Mãe Preta, em sua simplicidade, revela a tragédia da escravidão no
Brasil e, paradoxalmente, também podia ser interpretada enquanto uma crítica à exploração
dos povos africanos nas colônias portuguesas:
Velha encarquilhada
carapinha branca
gandola de renda
caindo na anca
embalando o berço
do filho do sinhô
que há pouco tempo
a sinhá ganhou
era assim que mãe preta fazia
criava todo branco
com muita alegria
enquanto na senzala
seu bem apanhava
mãe preta mais uma lágrima enxugava
mãe preta, mãe preta,
mãe preta, mãe preta
enquanto a chibata
batia em seu amor
mãe preta embalava
o filho branco do sinhô.
Segundo informações da página oficial na Internet do músico Caco Velho, esta canção
teria um ritmo de toada, em outras fontes a mesma aparece como sendo um samba ou um
277
jongo. O fato é que uma versão com o ritmo de fado possibilitou uma perfeita simbiose entre
texto e música. Quanto à situação retratada na canção, esta tem uma forte carga de
sensibilidade, pois, apesar de abordar o trágico cotidiano do escravo e da ama de leite em
apreço, também remete a outras injustiças. Uma outra canção, composta em meados da
década de 1980, que revela uma realidade semelhante é Velha Chica, do músico angolano
Waldemar Bastos, também interpretada pela cantora portuguesa Dulce Pontes, mas em
1999
457
:
Antigamente a velha chica
vendia cola e gengibre
e lá pela tarde ela lavava a roupa
do patrão importante;
e nós os miúdos lá da escola
perguntávamos à vóvó Chica
qual era a razão daquela pobreza,
daquele nosso sofrimento.
Xé menino, não fala política,
não fala política, não fala política.
Mas a velha Chica embrulhada nos pensamentos,
ela sabia, mas não dizia a razão daquele sofrimento.
Xé menino, não fala política,
não fala política, não fala política.
E o tempo passou e a velha Chica, só mais velha ficou.
Ela somente fez uma kubata com teto de zinco, com teto de zinco.
Xé menino, não fala política, não fala política.
Mas quem vê agora
o rosto daquela senhora, daquela senhora,
só vê as rugas do sofrimento, do sofrimento, do sofrimento!
E ela agora só diz:
"- Xé menino, quando eu morrer, quero ver Angola viver em paz!
Xé menino, quando morrer, quero ver Angola e o Mundo em paz!"
Nesta canção, o universo de guerra em Angola, colonial ou civil, revela o sentimento
que abateu muitos angolanos, como a desesperança e mesmo a frustração com os rumos que o
país tomou após o fim do colonialismo, apesar das esperanças depositadas nas lutas de
libertação colonial. Afinal, o grau de violência atingido na repressão colonial é muito mais
457
PONTES, Dulce. O primeiro canto. Polydor/ Universal Music, 73145431352, 1999 (CD).
278
grave do que o ocorrido na Metrópole, como bem expressa o que aconteceu após uma série de
ações revolucionárias em Luanda (capital angolana), em 1961: “A repressão foi feroz: do dia
5 ao dia 12 de fevereiro daquele ano, três mil pessoas foram mortas pelas forças coloniais”
(SERRANO, 1995, p. 108). A canção revela o terror e o medo que povoam este ambiente e
numa única frase de forte tensão: “não fala política”, a tônica de uma experiência de uma
dúbia opressão durante décadas: a do senhor (que revela o colonialismo) e a da repressão
(trazida pela ditadura e personificada pela PIDE/ DGS).
Num caminho semelhante, desta vez temos uma música contemporânea ao período
abordado pela tese, que fala também de uma velha e de sua labuta diária. Trata-se de Mulher
da Erva, de José Afonso, gravada pelo mesmo, no seu mais importante disco, Cantigas de
Maio, de 1971. Aqui temos uma particularidade da obra do músico, ou seja, uma capacidade
de retirar de situações cotidianas, banais, uma dramaticidade da vida do homem comum:
Velha da terra morena
Pensa que e já lua cheia
Vela que a onda condena
Feita em pedaços na areia
Saia rota
Subindo a estrada
Inda a noite
Rompendo vem
A mulher
Pega na braçada
De erva fresca
Supremo bem
[...]
Na calçada
Uma mancha negra
Cobriu tudo
E ali ficou
Anda, velha
Da saia preta
Flor que ao vento
No chão tombou
No Inverno
Terás fartura
Da erva fora
279
Supremo bem
Canta rola
Tua amargura
Manhã moça
... nunca mais vem.
458
Acima, temos uma outra leitura da vida destas senhoras que se contrapõe às imagens
do Portugal rústico veiculadas pela ditadura entre as cadas de 1950 e 1960, em que o:
“uso da censura, o controlo dos meios de comunicação e da produção artística contribuem
para que estas imagens, como as das camponesas portuguesas, sorridentes nas suas brancas
aldeias, se tornem parte de um mundo de aparências, próprio destes regimes” (PAULO, 1994,
p. 175).
Podemos traçar um paralelo entre estas três histórias de vida retratadas nas canções
citadas. Um dado comum é que o sofrimento humano aqui exposto revela a ausência de
limites geográficos para a música: em Mãe Preta (na América), Velha Chica (na África) e
Mulher da Erva (Europa). Também não há barreiras para as injustiças sociais e para as
tragédias humanas (coletivas ou individuais) aqui poetizadas literária e musicalmente.
A canção Mulher da Erva denota também uma versatilidade temática e musical muito
grande. Nesta gravação, a modernidade e o tradicional compõem uma tessitura musical que
irá caracterizar os discos de José Afonso a partir do início de 1971, com seu disco Cantigas de
Maio. Se seus textos eram de uma qualidade literária incontestável, a partir de então a
melodia, o ritmo, o arranjo e a percussão converteriam sua canção numa linguagem mais
universal. Logo, paradoxalmente, a influência do popular, e mesmo do folclore, em
confluência com a moderna música popular ali empregada, traduzir-se-iam numa linguagem
musical que se revela ainda mais contemporânea. Outra marca presente nos discos de José
Afonso são as experiências com ritmos africanos que ele realizou ainda na década de 1960 e
que só foram retomadas na canção ocidental nos últimos anos, como “invenções”.
458
Letra completa em anexo.
280
O cancioneiro produzido em Portugal contou com uma significativa mudança quando
da renovação do Fado de Coimbra por José Afonso e por Adriano Correia de Oliveira, no
início da década de 1960. Todavia, o salto qualitativo no campo estético e mesmo técnico tem
nos anos de 1971 e 1972 seu ponto de partida. Há uma recorrência na bibliografia portuguesa,
diga-se de passagem muito plausível, em apontar cinco discos como determinantes nesta nova
canção portuguesa: Cantigas de Maio, de José Afonso; Mudam-se os tempos, Mudam-se as
vontades, de José Mário Branco; Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho; Gente de aqui e
agora, de Adriano Correia de Oliveira; e Movimento Perpétuo, de Carlos Paredes, de 1972.
Esta produção rompe, não definitivamente, com a canção acompanhada unicamente pelo
violão e pela guitarra portuguesa. Até então este acompanhamento caracterizava a chamada
“balada”, e a partir de uma crescente produção musical tornou-se um aspecto delimitador das
possibilidades timbrísticas e percussivas do que se fazia na canção portuguesa. Mesmo no
disco instrumental de Carlos Paredes, esta fase experimental se faz presente e lúcida.
Com estes discos não temos um rompimento com uma tradição, mas a ampliação das
potencialidades desta canção mediante novos arranjos musicais e vocais, além de uma
decisiva mudança também nas letras das canções, em que se manteve o uso da metáfora, mas
com um exercício mais freqüente da ironia e de uma crescente modernidade inerente ao texto.
Por fim, a fase do violão à tira-colo dentro e fora dos estúdios de gravação, daria lugar a uma
modernização e a uma maior inserção na indústria fonográfica.
Retomando a questão das canções que têm como tema a situação dos angolanos, temos
uma forte crítica à dominação portuguesa através de Monangambé. Esta canção de Rui
Mingas e do poeta António Jacinto alcançou um êxito considerável em Portugal na medida
em que, ao expor a violência colonial, também revelava a natureza do regime salazarista.
Trata-se de uma canção que expõe as relações de dominação e de exploração entre o
colonizador e o colonizado: “Naquela roça grande/ não tem chuva/ é o suor do meu rosto/ que
281
rega as plantações/ naquela roça grande/ tem café maduro/ e aquele vermelho-cereja/ são
gotas do meu sangue feito seiva”. O fruto do cafeeiro revela o que ocorre com os
trabalhadores: “o café vai ser torrado/ pisado, torturado/ vai ficar negro/ negro da cor do
contratado/ perguntem às aves que cantam/ os regatos de alegre serpentear/ e ao vento forte do
sertão/ quem se alevanta cedo”. Aponta que aqueles camponeses que, mesmo pagando pelos
produtos: “quem paga recebe desdém/ fuba podre, peixe podre/ panos ruins, cinquenta
angolares/ “porradas se refilares?”/ quem faz o milho crescer/ e os laranjais florescer/ quem
dinheiro para o patrão comprar/ máquinas, carros, senhoras [...] quem faz o branco
prosperar?”.
Nesta canção o explorador recebe sua clássica representação imagética: “ter barriga
grande?/ ter dinheiro? quem?/ E as aves que cantam/ os regatos de alegre serpentear/ e ao
vento forte do sertão/ Responderão: Monangambé, Monangambé”. Por fim, traz a crítica ao
controle até mesmo do ócio e do direito de poder ao menos sublimar a dura realidade que
atingia não apenas Angola, mas igualmente as outras colônias portuguesas: “Ah! deixe-me ao
menos subir as palmeiras/ deixe-me beber maruve/ esquecer diluído nas minhas bebedeiras/
Monangambé, Monangambé...”.
Voltando à questão da incursão dos músicos no universo do folclore e da música
popular tradicional portuguesa, que se enfatizar que o próprio conceito destas
manifestações foram objeto de debate, e não em Portugal. Por exemplo, o termo “popular”
está envolto numa acirrada controvérsia. Como afirma, Pierre Bordieu, seu uso é deveras
aleatório e passível de observação. Ele exemplifica suas diferentes aplicações, como na idéia
de “meios populares”, para o autor: “de extensão indeterminada, [que] deve suas virtudes
mistificadoras, na produção erudita, ao fato de que qualquer um pode, como num teste
projetivo, manipular inconscientemente essa extensão para ajustá-la aos seus interesses,
preconceitos ou fantasmas sociais” (1996, p.17). Nesta reflexão, o sociólogo expressa
282
também sua preocupação com o uso do termo “popular” pelos políticos, que a usam de acordo
com seus interesses pontuais.
Quanto ao folclore, Carvalho (1976) alertava em texto de 1972 sobre o uso do termo e
sua relação com o pitoresco, “ao ridículo de certos espectáculos, concebidos para-turista-ver”.
Por outro lado, o autor caracteriza a natureza do mesmo: “É claro que o verdadeiro folclore
não se confunde com isso. O verdadeiro folclore é a música rústica, a música que os
camponeses conservam na sua tradição e que corresponde a situações precisas de sua vida
quotidiana...” (p. 33). Estas reflexões já eram feitas por Fernando Lopes-Graça ainda no início
da década de 1950, como resultado de sua preocupação com os rumos da “canção popular
portuguesa”. Para o maestro, este cancioneiro estaria ligado às raízes populares e não ao que
se nomeou posteriormente de “nova canção” portuguesa, de expressão urbana.
No tocante ao folclore, o músico criticava a vulgarização do termo “folclórico” e seus
produtos de “divertimento banal” ou “turístico”, como os “ranchos folclóricos”, “pratos
folclóricos”, “estilo folclórico”, o que ele chamou também de “folclorite aguda” (LOPES-
GRAÇA, 1974, p.13-4). Esse uso do pitoresco é duramente criticado quando também aplicado
à canção popular portuguesa, que para ele é: “realmente a crônica viva e expressiva da vida do
povo português quer dizer: da vida rústica do povo português, visto que por canção popular
portuguesa se deve entender, antes de tudo, a nossa canção rústica” (p.15). Esta concepção de
folclore e de música popular difundida pela ditadura portuguesa foi reverberada
principalmente por meio das emissões radiofônicas portuguesas entre as décadas de 1940 e
1950:
Na Rádio, a mensagem da “cultura popular transparece no repertório
musical e em eventos
459
como os Jogos Florais [...] a acção de mesclar
“doutrina” com “alegria”, a programação da Emissora Nacional é, neste
campo, a mais abrangente possível, mantendo um amplo espaço para a
459
Por exemplo, o I Grande Festival Nacional de Folclore, organizado pelo SNI, em 1958, mediante a
participação de ranchos folclóricos de várias regiões do país.
283
“música popular”, dita tipicamente portuguesa [...] A criação de um
Gabinete de Estudos Musicais completa a política de incentivos para
“recuperação” dos sons “típicos” da “cultura popular” (PAULO, 1994, p.
135).
No livro A canção popular portuguesa, de Lopes-Graça, é feita uma dura crítica à
canção urbana e, particularmente, ao fado, como este sendo também expressão desta
utilização do pitoresco de forma ainda mais caricatural, considerado por ele como o execrado
“fado, produto de corrupção da sensibilidade artística e moral” (p.15). Isto lhe valeu severas
críticas naqueles anos, afinal, suas palavras traziam uma generalização em relação aos
fadistas, suas obras e aos ouvintes do gênero. O fado, como afirmamos anteriormente, teve
seus temas políticos e amorosos (quando considerados imorais) varridos pela ditadura. Com
isso as gerações seguintes tiveram pouco contato com textos interditos, muito embora alguns
fados pudessem, fora da indústria fonográfica, trazer estes temas não aceitos pela ditadura.
Nesse sentido, talvez a crítica de Lopes-Graça se voltasse mais ao que “representava” o fado,
que propriamente aos seus signos musicais. Outro dado é que até mesmo os livros sobre o
fado que atentassem contra a moral e a política defendida pela ditadura eram passíveis de
veto.
460
O fato é que Lopes-Graça e o córsego Michel Giacometti tiveram um papel
fundamental no campo da pesquisa musical e etnográfica. Todavia, enquanto o Estado
estimulava uma cultura popular representativa da Nação em sua forma mais caricatural
possível, estes dois pesquisadores buscaram construir um genuíno mapa sonoro do país,
particularmente na área rural. Segundo Giacometti, reuniu durante 25 anos a cifra de 3706
registros sonoros (em 144 horas de gravação) de músicas tradicionais, apresentações teatrais,
460
No arquivo da Censura encontra-se um documento enviado ao presidente do Grêmio Nacional dos Editores e
Livreiros com a seguinte informação: “Tenho honra de comunicar V. Exª. Que por despacho destes Serviços, foi:
‘PROIBIDO DE CIRCULAR NO PAÍS’ o livro TUDO ISTO É FADO da autoria de Carlos Silva [...] A bem da
Nação. Lisboa, 18 de dezembro de 1965”. In: IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 457, pasta nº. 3. Já na caixa 462, deste
mesmo acervo, localiza-se uma complementação sobre a proibição de “Tudo isto é fado, de Carlos Silva, ‘por
sua índole anti-social e imoral’”, por meio do ofício 702/65 – L.R. Confid. Urgentíssimo, PSP, 17/12/65.
284
entrevistas e recitas, entre outros. Suas pesquisas se iniciaram em 1932: “A mim, as
dificuldades estimulavam-me. Senti-me impulsionado pelo vazio quase total de estudos, pela
indiferença quase generalizada do público e pela quase oposição das entidades oficiais”
(PEDROSA, 1985, p. 10).
Um estrangeiro viajando pelo país e gravando tudo, certamente provocou a
desconfiança dos órgãos de repressão, afinal ele viu até mesmo nos camponeses o medo de
cantar quadras consideradas pouco convenientes para o momento político, como afirma
Giacometti: “Apareciam de repente uns senhores que
se diziam vendedores da Volkswagen, às vezes notava que me tinham revistado a mala, mas
nunca tive problemas [...] O Lopes-Graça, coitado, é que passou muito. Mas raramente teve a
oportunidade de me acompanhar no campo” (PEDROSA, 1985, p.10).
Quanto à Lopes-Graça desde cedo suas atividades despertaram a atenção da PIDE.
Numa carta enviada a um amigo, em 1932, o maestro explica a razão de sua ausência
justamente num espetáculo de uma obra que tanto havia lhe impactado: a primeira execução
do revolucionário Pierrot Lunaire, de Arnold Schönberg: “Não calcula o pesar que senti por
não poder assistir a esse concerto, visto como me estão interditas, por força das
circunstâncias, todas as manifestações da vida civilizada...” (LOPES-GRAÇA, 1986, p. 35).
Contudo, o controle da ditadura junto às atividades do maestro não se resumiria à proibição
citada anteriormente. No arquivo da Censura portuguesa pode ser encontrado seu livro
Marchas, Danças e Canções, lançado pela Seara Nova, em 1946. Nesta obra apreendida
consta a chancela: “Direcção de Serviços de Censura Proibido em 2/11/1946. Registado em
4/ IV/ 1949”.
461
461
IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 406, “provas de monografia”. Nesta mesma série encontra-se o livro Os homens e
as sombras, de Alves Redol, cujo título anterior era Terra Mártir. Este exemplar está com inúmeras páginas
riscadas, o que na época comprometeria qualquer lógica do texto, uma prova do quanto era perversa esta
atividade censória e, como, provavelmente, pode ter causado um desânimo dos escritores que viam suas obras
completamente destroçadas pelo “lápis azul” (como se referem os portugueses aos cortes da Censura).
285
No universo da música erudita, destacam-se ainda as ações de uma outra geração de
compositores, posterior a Lopes-Graça, como afirma o pesquisador português Mário Vieira de
Carvalho: “impõe-se citar o nome de Jorge Peixinho, que deu a algumas das suas obras títulos
tão inequívocos como CDE
462
, Quatro Peças para Setembro Negro, Morrer em Santiago, ou
Elegia a Amílcar Cabral, todas escritas e realizadas anteriormente à queda do fascismo”
(CARVALHO, 1976, p. 15). Portanto, o rompimento com uma tradição incentivada pela
ditadura foi realizado pelos cantores e também por estes pesquisadores e maestros, geralmente
esquecidos nas análises sobre a música popular. Nesta seara, destacou-se ainda o trabalho de
Pedro Caldeira Cabral em suas pesquisas com os instrumentos musicais antigos e sua
participação em inúmeros discos dos cantores de intervenção.
Outro músico que trilhou esta seara da renovação da música de raiz popular, mas
imprimindo-lhe uma sofisticação e uma densidade sem precedentes, foi Carlos Paredes, desta
vez no campo da música instrumental portuguesa, muito embora também estivesse ligado à
canção de intervenção. Segundo Mário Vieira de Carvalho (1976), Paredes: “[...] pôs
inteiramente a sua guitarra portuguesa, o virtuosismo da sua técnica de executante e o seu
estilo tão característico de compositor de compositor a sério, fique bem entendido ao
serviço duma acção revolucionária (e desde muito antes do 25 de abril)” ( p. 14).
Na bibliografia da música portuguesa também poucas referências à atuação das
mulheres compositoras e cantoras. Algumas vezes é unicamente lembrada a produção poética
de Sophia de Mello ou de Natália Correia vertida para canção pelos compositores. Uma das
razões desta lacuna talvez advenha da ausência da confluência do trabalho de compositora
com a de cantora. Nesse sentido, em razão destas artistas atuarem enquanto intérpretes, sua
trajetória foi até mesmo negligenciada pelos autores. No Brasil, o trabalho das compositoras
também não despertou significativamente o interesse dos pesquisadores. Mesmo as
462
Numa ditadura como a salazarista, falar em Comissão Democrática Eleitoral – CDE era proibido e perigoso.
286
compositoras
463
que também atuavam como intérpretes durante a produtiva fase da década de
1970, quando o movimento feminista tomou força, não foram objeto de observação naquele
período e mesmo nas décadas seguintes, salvo raras exceções.
464
Esta tese, como afirmado anteriormente, não teve o intuito de classificar e escolher os
mais importantes músicos portugueses, mas aqueles que em razão das contingências da
pesquisa foram surgindo na documentação e nos depoimentos. Aqui, por exemplo, caberia
uma análise da trajetória de outros músicos, como Júlio Pereira, Eduardo Paes Mamede,
Samuel, Pedro Barroso, Duarte Mendes, António Vieira da Silva, Carlos Alberto Moniz,
Deniz Cintra, Carlos Mendes, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Francisco Naia, Samuel,
Duarte e Ciríaco, Nuno Gomes dos Santos, Afonso Dias, Alberto Júlio e Pedro Barroso, entre
outros. Além do cancioneiro daí advindo, a declamação de “poesias de intervenção” seria um
capítulo à parte devido ao seu significativo papel nos espetáculos de antes e depois do 25 de
Abril, onde destacaram-se Ary dos Santos e José Fanha. Entre as cantoras portuguesas que
atuaram no campo da nova canção portuguesa há de se destacar: Luisa Basto
465
, Ermelinda
Duarte, Antónia Tonicha, Teresa Paula de Brito, Madalena Leal, Maria do Amparo, Maria
Antónia Vasconcelos (Tóinas), Ana Maria Teodósia, entre outras. Por vezes, algumas delas
alternavam a gravação de canções alinhavadas aos músicos de esquerda com outras sem o
conteúdo político que caracterizou esta rede de compositores.
que se enfatizar que esta imagem de uma “canção de protesto” (após o 25 de abril,
“de intervenção”) voltada, única e exclusivamente, à crítica ao regime e às mazelas sociais
não é percebida quando se analisa o complexo cancioneiro daí advindo. Certamente esta
imagem de “canções de luta” também foi amplificada pelos próprios compositores quando da
463
Por exemplo, Sueli Costa, Fátima Guedes, a dupla Luli e Lucina, Ana Terra, Rosinha de Valença, Joyce, Rosa
Passos, Kátia de França e Teca Calazans, entre outras.
464
Como em: MATOS, Maria Izilda. Dolores Duran: experiências boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
465
Foi quem gravou a canção de Luís Cília, Avante camarada, escolhida pelo Partido Comunista Português
como seu hino oficial. Segundo Carvalho (1976, p. 14), Luísa Basto foi durante anos militante clandestina.
287
sua atuação política em meio à ditadura portuguesa. Por outro lado, os discos do período
apontam uma significativa diversidade de gêneros e de temas durante as décadas de 1960 e
1970. A partir da Revolução dos Cravos estes músicos vão instrumentalizar ainda mais as
suas canções junto aos movimentos políticos e culturais do qual participam em maior ou
menor profundidade o que, de certa maneira, contribuiu para a preservação de uma imagem
de músicos unicamente voltados para o embate político.
Este cancioneiro de cunho mais engajado não se desenvolveu exclusivamente entre os
músicos profissionais, afinal, os amadores também compuseram e interpretaram as canções
mais conhecidas. Um dos registros mais conhecidos desta vertente vem do chamado
“Cancioneiro do Niassa”, surgido de uma série de paródias feitas com canções populares
portuguesas na frente de batalha, em particular, no Norte de Moçambique, no distrito do
Niassa. Foi composto por militares que então lutavam na Guerra Colonial e teve uma
veiculação entre as tropas por meio de fitas cassetes e de apresentações de militares que
fizeram ou aprenderam as versões. Estas canções teriam sido recuperadas “duma gravação
realizada pelo pessoal da Marinha em 1969 e que circulou em cassetes em 1970”.
466
Seus
temas tratavam da revolta contra a guerra e seus superiores, do cotidiano, da chegada dos
novos soldados, das diversas inquietações dos militares. Elas foram feitas a partir de versões
de fados e de outras canções de fins da década de 1960, e segundo a gravação que antecede o
cancioneiro na fita cassete:
O cancioneiro do Niassa é uma colectânea de fados, que tem como assunto
central a vida dos militares em serviço nesse distrito do Norte de
Moçambique durante os últimos anos da década de sessenta. Os autores das
letras, que as adaptaram a melodias em voga nessa época, o
desconhecidos, apenas se sabendo que pertenceram aos diversos ramos das
Forças Armadas, nelas ocupando variadas funções e postos. Esta
diversidade de origens faz, contudo, realçar uma unidade temática,
facilmente detectada através de todas as letras. E é nessa unidade que
466
Disponível em: <http://www.joraga.net/cancioneirodoniassa/pags/001checa.htm>. Acesso em 13 mai. 2005.
Nesta página da Internet encontram-se fotos, letras e gravações do Cancioneiro.
288
reside, precisamente, o maior interesse folclórico e documental do
Cancioneiro, como testemunha duma época e como tradução do sentir
daqueles que a viveram.
467
Apesar de constar neste registro a informação de que eram versões de fados mais
conhecidos, foram encontrados também outros gêneros, como se observou na versão feita da
canção Os Vampiros, de José Afonso
468
. Num contraponto a este Cancioneiro, outras
iniciativas foram feitas em relação aos militares em guerra. No natal de 1971
469
, por exemplo,
os soldados receberam a visita da cantora de música ligeira Florbela Queiroz e discos com
mensagens e canções de seus familiares. Apesar deste projeto ter sido organizado por
“senhoras” da alta sociedade portuguesa, contou com o apoio do regime em sua distribuição e
produção e teve um caráter oficial.
Por fim, este capítulo pode ser encerrado com uma análise da mais importante canção
portuguesa contemporânea, senha, hino do 25 de Abril, acalentadora, uma canção que une e
uniu as pessoas que lutaram contra a ditadura: Grândola, Vila Morena
470
, do não menos
emblemático José Afonso, que assim definiu a origem da mesma: “pequena homenagem à
Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, onde actuei juntamente com Carlos
Paredes” (AFONSO, 1995, p. 104). Apesar de ter sido gravada por ele no disco Cantigas de
Maio, de 1971, teve sua primeira versão escrita em 1964:
Grândola, Vila Morena
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
467
Idem.
468
Em 1997, Rui Veloso lançou um interessante intertexto com Os Vampiros e seu refrão, numa parceria com
Carlos Tê, intitulada Eles compram tudo, em que o poder do mercado paira sobre todos.
469
Este caso é lembrado no documentário: CARDOSO, Margarida (dir.). Natal 71. 52 min., COR, RTP/ Filmes
do Tejo, 1999.
470
AFONSO, José. Cantigas de Maio. Orfeu/ Arnaldo Trindade, 1971. 33 rpm, stereomono, STAT 009.
289
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade
Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Esta canção, antes de ter sido a senha de uma revolução, foi uma homenagem do autor
ao operariado, representado pelos operários da Vila de Grândola, em Portugal, por onde José
Afonso passou em suas andanças pelo país. Embora não tivesse se referido diretamente à
ditadura, o autor utilizou um recurso literário muito eficiente ao expressar quem, de fato,
ordenava. Ao reforçar a idéia de valores inerentes ao povo idealizado por Afonso, realizou um
exercício de intertextualidade ao ocultar quem, então, ordenava: a ditadura, representada pelos
órgãos de repressão e censura, marcada pela cooptação, pela desinformação, pela fascitização,
pela militarização. Esta idéia de oposição no texto traduz-se em valores universais como a
fraternidade, a igualdade e a vontade popular como motor das mudanças sonhadas pelo autor.
Uma outra estratégia do músico é a repetição de um brado, de uma idéia de marcha presente
no texto.
Na canção Grândola, Vila Morena é perceptível através dos passos de diversas
pessoas presentes ao longo de toda a canção - uma linguagem metafórica. Uma analogia
290
entre os passos e o som extraído das batidas em uma "caixa-de-guerra”
471
, com células
rítmicas aplicadas comumente em bandas marciais, transparece uma intenção do autor em
incitar no ouvinte uma tensividade, um sentimento de angústia frente a um desafio, ou uma
batalha por vir, sensações produzidas a partir das propriedades físicas do som: altura,
intensidade, duração (ligada à questão rítmica) e o timbre, sendo este último a principal
característica que nos faz identificar uma proximidade analógica do som dos passos com os da
caixa-de-guerra.
Grândola, Vila Morena, marcada pela melodia e ritmo apenas, não traz um campo
harmônico comum ao cancioneiro popular ocidental, talvez a ausência da harmonia na canção
denote igualmente a falta de "harmonia" social, como resultado da ditadura salazarista. Outro
elemento “sonoro-metafórico”
472
observado nesta canção é o avanço melódico de quatro em
quatro notas em cada frase cantada, “onde se estabelece um salto de quarta justa, ou seja, um
intervalo melódico que causa uma tensão em cada nova frase cantada, o que estimula em
qualquer ouvinte aquela mesma sensação obtida pelos passos: aflição, tensão e angústia”.
473
Por fim, na segunda estrofe de cada parte da canção, é estimulado um sentimento de
união e força social frente à ditadura, quando ocorre a união de várias vozes em coro e em
uníssono, repetindo a primeira estrofe de trás para frente. Foi realizada ainda uma outra
referência à cidade de Grândola, que se encontra na região do Alentejo, mediante a utilização
do canto alentejano.
Logo, Grândola, Vila Morena e uma parte significativa da produção musical de José
Afonso remete a um embate em que a canção, ao se contrapor a um ideário da ditadura, o fez
471
Instrumento de percussão com uma esteira de fios de arames encostados à base do tambor, que proporciona
um som agudo, comumente relacionado ao som das bandas marciais.
472
Termo utilizado pelo pesquisador musical Ricardo Denchuski. Mais informações: FIUZA, Alexandre,
DENCHUSKI, Ricardo. Grândola, Vila Morena: a canção de intervenção portuguesa. Anais da XV Semana de
Letras: Cultura Clássica e formação do homem contemporâneo. Cascavel: EDUNIOESTE, 2003, p. 167-82.
473
Idem, p. 180.
291
mediante uma rica experiência estética, tanto no campo musical, quanto no poético. Tais
experiências também foram realizadas no Brasil, como se verá na seção seguinte.
292
3.2 A CANÇÃO BRASILEIRA: E NO ENTANTO É PRECISO CANTAR
A opção por abordar determinados músicos da década de 1970 não deve ser entendida
unicamente como advinda de uma gradação com base num conceito de qualidade e de
relevância. Por exemplo, no campo do rock e da música instrumental, em ambos países, foram
inúmeras as experiências inovadoras na cena musical e comportamental. Os grupos musicais
deste campo, por si só, constituir-se-iam numa outra tese. Em Portugal, Filarmónica Fraude,
Brigada Victor Jara, Trovante, Grupo Intróito, Objectivo, entre outros. No Brasil, fusões com
o rock repercutiram em bandas como Mutantes, A Barca do Sol, O Terço, Som Imaginário,
Bixo da Seda, O Som Nosso de Cada Dia, A Bolha, O Peso, O Bando, Equipe Mercado e
Joelho de Porco, entre outras. Com uma experiência a partir de referenciais musicais e
poéticos da “cultura nordestina” e de outros ritmos brasileiros, surgiram ainda grupos como
Orquestra Armorial, Quinteto Armorial, Novos Baianos, Banda de Pau e Corda, Quinteto
Violado, entre outros.
Além da história destes grupos, ainda a possibilidade de trabalho com redes de
compositores que surgiram no mesmo período e em diferentes regiões do país. Nesse sentido,
haveria uma lacuna pouco explorada no tocante à produção musical ocorrida fora do eixo Rio
-São Paulo - Belo Horizonte
474
, em que uma série de movimentos localizados (embora
antenados com o nacional e com uma certa idéia de universalidade) em torno da música
popular contribuiu sobremaneira na construção da chamada “MPB” em sua fase áurea na TV,
rádio e discos. Tal fenômeno foi observado também na Paraíba, em Pernambuco, na Bahia, no
Rio Grande do Sul e no Ceará
475
. Muitos destes músicos se encontravam nos festivais da
474
Muito embora, em relação à canção mineira, foram mais freqüentes pesquisas sobre os grupos ligados ao
chamado “Clube da Esquina” (Milton Nascimento, e Márcio Borges, Toninho Horta, Beto Guedes, Fernando
Brant, Ronaldo Bastos, e até mesmo Nelson Ned – segundo Márcio Borges, entre outros).
475
Um dos raros estudos sobre a música popular no Ceará foi realizado por Vanderly Campos de Oliveira na
monografia “Massafeira Livre: entre a algazarra criativa e a marmota do mormaço”, de 1999, como trabalho de
conclusão de curso junto ao Departamento de Comunicação Social e Biblioteconomia da UFCE. Segundo a
293
canção de finais da década de 1960 e do início da década seguinte. Por vezes, muitos deles
deixaram sua terra natal para tentar prosseguir uma carreira musical já iniciada em suas
cidades de origem. No eixo Rio - São Paulo estavam os diferentes ramos da indústria cultural:
as redes de televisão, os programas radiofônicos, as gravadoras, enfim, o “grande público”.
Em Fortaleza, no final da década de 1960, também ocorreu uma efervescência cultural
muito grande em torno da canção entre os universitários. A repressão dadvinda também foi
semelhante aos processos ocorridos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em 1976, foi gravado
um disco chamado O Pessoal do Ceará,
476
com Ednardo (José Ednardo Soares Costa Sousa),
Rodger (Rodger Franco de Rogério) e Tetty (Maria Elisete Morais de Oliveira). Neste disco
uma rie de canções experimentais, com traços regionais e, ao mesmo tempo, antenadas
com a tecnologia, com crítica ao regime militar, entre outros. Esse pessoal organizou uma
série de shows na época da ditadura, em que ocorreram casos de prisão, agressões e
espetáculos proibidos. Geralmente há uma atenção mais voltada aos dois músicos desta
vertente que ficaram mais conhecidos, no caso, Fagner e Belchior. Apesar de o primeiro ter
sido um dos músicos surgidos na capital cearense, foi criticado pelos demais por ter trilhado
um caminho posterior mais comercial. No caso de Belchior há uma particularidade em seu
cancioneiro de uma fusão da MPB mais tradicional com o rock e com uma determinada
experiência poética. Além destes, também havia os músicos Clodô, Clésio, Climério e a
cantora Amelinha.
O inovador trabalho de Paulo César Araújo, Eu não sou cachorro não (2002), traz
uma profícua análise da censura junto a um outro cancioneiro interdito, e não apenas pela
autora, o disco duplo Massafeira (lançado em 1980) juntou os mais expoentes músicos e poetas cearenses de fins
da década de 1970, contudo, não houve empenho por parte da gravadora CBS em divulgá-lo e, o pior, suas meras
dez mil cópias receberam na capa uma humilhante tarja com os dizeres: “2 LP’s pelo preço de 1”. Esta
monografia foi disponibilizada on line em: < http://www.gd.com.br/ednardo/materi31.htm#mono_c02>. Acesso
em: 07 mai. 2005. Numa pesquisa junto ao portal do CNPq encontra-se a dissertação: “Educação Estética -
Pessoal do Ceará: Trajetórias Formativas da Sensibilidade”, de Pedro Rogério, do Mestrado em Educação.da
UFCE, defendida em 2005.
476
Em 2002 foi lançado o CD: PESSOAL DO CEARÁ - Ednardo, Amelinha & Belchior, que traz algumas
canções do trio do disco de 1976.
294
ditadura, a chamada canção “brega” no Brasil. O jornalista e historiador, mediante uma
cuidadosa pesquisa junto aos arquivos da Censura, encontrou uma rie de canções vetadas
que, apesar de não terem como marca a crítica à ditadura ou às desigualdades sociais, traziam
em cena personagens das periferias, seus dramas pessoais e sua malícia tão bem expressa nas
canções de duplo sentido, presentes neste cancioneiro popular. Para o historiador: “‘brega’ ou
‘cafona’ é toda aquela produção musical que o público de classe média não identifica à
‘tradição’ ou à ‘modernidade’”. Portanto, o músico que não se encontra vinculado a nenhuma
destas duas vertentes: “está condenado ao desprezo da crítica e ao esquecimento por parte dos
‘enquadradores’ da memória da música popular brasileira” (ARAÚJO, 2002, p. 353).
O autor reitera que o gênero “MPBfoi alçado a uma posição privilegiada nos meios
de comunicação e da crítica como resultado direto de sua divulgação nos meios de
comunicação de massa. Esta obra demonstra como uma “memória musical” negligenciou a
trajetória destes músicos “cafonas”, fato corroborado por suas consultas às enciclopédias,
coleções de história da música popular, gravações e entrevistas presentes no Museu de
Imagem e do Som (RJ), além de uma extensa bibliografia de diferentes áreas do
conhecimento. Como prova desta tese, ele mostra também que a maior parte das trilhas
sonoras das novelas era (e ainda é) composta por canções mais tradicionais da chamada MPB.
Sua tese traz ainda uma reflexão em que parece haver uma contraposição forçada
destes supostos gêneros musicais, colocando os músicos da MPB como “abençoados” pela
indústria cultural em detrimento dos “injustiçados” da chamada música “brega”, aliás, um
termo que é pejorativo e depreciativo de uma gama muito grande de temáticas e de gêneros
musicais
477
que se reúnem em torno do conceito. Vale ressaltar que alguns destes mesmos
“nomes da MPB” também tiveram suas carreiras quase que completamente destruídas pela
ação da Censura, como os paradigmáticos casos de Taiguara e de Sirlan.
477
Para Araújo, esta vertente abarcaria basicamente três ritmos: sambas, boleros e, majoritariamente, baladas
(2002, p.14). Acresceria a estes ritmos o forró, o baião, a música caipira.
295
A exemplo das críticas às patrulhas ideológicas
478
, que cobravam dos artistas uma arte
engajada na década de 1970, ao tratar da perseguição levada a cabo pelas esquerdas em
relação à dupla Dom e Ravel, o autor afirma: “patrulhas que, como definiu Caetano Veloso
em seu discurso no Tuca e como também ilustra o depoimento de Ravel -, não diferem em
nada daqueles que invadiram o teatro e espancaram os atores da peça Roda Viva (2002, p.
285). Portanto, para o autor, a essência do autoritarismo estava presente também do “outro
lado”. Para comprovar tal tese, equivale as vaias e tomates de parte do público oposicionista a
ditadura às ações do CCC Comando de Caça aos Comunistas
479
, que invadiram o teatro,
seqüestraram os atores e espalharam o terror mediante o disfarçado apoio oficial. Esta
nivelação dos opostos é sempre perigosa, ainda mais em tempos de um suspeito revisionismo
que busca transformar este período da história em um embate entre setores que buscavam
unicamente ocupar o poder.
Por outro lado, esta obra coloca em discussão uma vertente da canção popular
negligenciada por setores mais letrados da sociedade e pelos pesquisadores de diferentes
campos das ciências humanas. O gosto estético, como enfatizou o sociólogo Waldenyr
Caldas, guarda relação direta com a classe social a que pertence o ouvinte e, por conseguinte,
àquele que pondera acerca da música. Logo, o juízo estético sempre tem o risco de trazer
implícitos juízos de ordem social. Considerando que determinadas canções podem, de fato,
também não satisfazer o gosto estético de uma parcela da sociedade na medida em que não
478
Sobre elas, opinou Chico Buarque: “O surgimento dessas patrulhas é inevitável, em Portugal aconteceu coisa
parecida: essa gente afoita demais ouve o galo cantar e não sabe onde. Prefiro acreditar que não seja fé, que
seja apenas um lapso na inteligência e na sensibilidade dessas pessoas”. Nesta mesma entrevista, ele novamente
faz uma crítica á pecha recebida por alguns músicos: “‘cantor de protesto’ um termo que aqui no Brasil
quem usa são os reacionários, são as direitas. Canção de protesto’ tem um tom pejorativo aqui, uma conotação
esquisita. fora, não. Em Portugal, eles dizem ‘canção de intervenção’. Mas eu não estou intervindo em nada”
(grifos nossos). Entrevista à Revista Playboy, em fevereiro de 1979 e reproduzida integralmente no site oficial do
compositor, disponível em: <http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html>. Acesso em: 03 fev. 2004.
479
Esta comparação havia sido feita por Augusto de Campos, em 1968, no “calor da hora”, quando das vaias a
Caetano Veloso e sua canção É Proibido Proibir, quando das eliminatórias do FIC no auditório do TUCA: “ter
coragem de dizer que aqueles que insultaram a mil vozes o cantor nos deram um espetáculo do mais tolo e
irracional histerismo coletivo; que aquele público juvenil instigado por um grupo fascistóide, tapado e stalinista
(o novo C.C.C.)...” (CAMPOS, 1993, p. 267).
296
encontrariam ressonância uniforme entre os ouvintes, isso não explica o fato dos
pesquisadores ignorarem esta produção. Partindo do debate das estéticas da recepção, estas
canções, que encontram ressonância nas classes populares, poderiam ser objeto de maior
atenção acadêmica.
Esta pesquisa não é necessariamente inauguradora na análise de gêneros musicais
marginalizados como objeto de trabalho acadêmico. Por exemplo, a análise do amor e da
paixão no cancioneiro de Roberta Miranda, também foi explorada na dissertação de Sebastião
Costa Andrade, com o título de Amor e Amantes: homem e mulher no cancioneiro sertanejo
(uma abordagem antropológica), publicada em 2000. Segundo Andrade, seria mais fácil,
prazeroso e socialmente aceito analisar a obra do músico brasileiro Djavan, mas não teria a
mesma possibilidade de identificação de traços de recepção e produção de subjetividades
nesta troca entre o compositor e os ouvintes das classes populares.
Se pensarmos numa divisão entre dois distintos grupos de músicos, grosso modo: os
cantores abordados por Araújo e um outro grupo mais sofisticado da MPB de letras garrafais,
ainda sim não teríamos a divisão entre privilegiados e não-privilegiados pela indústria cultural
e seus críticos. ainda os compositores e intérpretes anônimos, como aqueles que atuavam
nas pequenas gravadoras, entre os inscritos de pequenos festivais de música, entre outros.
Nesse sentido, uma outra questão polêmica é levantada por Ricardo Cravo Albin, em seu livro
Driblando a Censura. Afirma o autor:
Os autores mais pobres, desamparados de um reconhecimento oficial por
parte da imprensa, eram tratados sem dó nem piedade pela DCDP [...]
quando recorriam do veto, mesmo através de suas eventuais gravadoras, os
advogados dessas não os defendiam com empenho. Eu acho até que, ao
contrário, algumas gravadoras viam neles um bom pretexto para exercitar a
política do boi-de-piranha, ou seja, os compositores pobres e desconhecidos
eram vetados em massa para ajudar a gravadora a melhor negociar a
liberação daquilo que fosse do seu interesse mais direto (ALBIN, 2002,
p.106-7).
297
que se levar em consideração que, em outros momentos da história brasileira,
diferentes ritmos também foram vistos como oriundos da “ralé” e daí sofreram um processo
de estigma. Contudo, mais tarde também foram alçados a uma canção aceita socialmente,
como aconteceu com o maxixe, o samba, o baião e o forró, entre outros. Neste universo
musical dos “esquecidos” pela memória construída por uma produção historiográfica caberia
ainda uma outra gama infindável de gêneros e músicos, como os citados anteriormente.
Temos ainda o caso dos chamados “malditos”, como Sérgio Sampaio, Antônio Adolfo,
Angela Rô-Rô, Arnaldo Baptista, Ednardo, Guilherme Lamounier, Itamar Assumpção, Jards
Macalé, Lanny Gordin, João Ricardo, Jorge Mautner, Tom Zé, Torquato Neto, Walter Franco,
Xangai, Elomar, Geraldo, Miriam Batucada e Rosinha de Valença, entre outros. As duas
últimas citadas, apesar de se vincularem a “tradição” da MPB, foram também negligenciadas
pelos mesmos grupos citados no livro em apreço, por mais que não se enquadrassem no grupo
dos “cafonas”.
Estes músicos “malditos”, em razão de suas composições e de posicionamentos em
relação à música e à sociedade, seriam vistos como de “difícil compreensão”. Mesmo
encarados como pertencentes à “MPB” ficaram na periferia deste “conglomerado”. Por outro
lado, têm suas carreiras sempre em “estado de alerta” na medida em que podem ser
relembrados e até mesmo receberem para si a gravação de discos “tributo”. Por vezes, de
“malditos” são alçados a gênios. Tome-se como exemplo o caso de Tom Zé, conhecido
integrante do Tropicalismo, que viveu durante as décadas de 1970 e 1980 um exílio em seu
próprio país.
Segundo o compositor
480
, sobreviveu de shows em circuitos universitários paulistas.
Até que foi redescoberto, em meados da década de 1980, pelo músico David Byrne, do
Talking Heads, quando este ouviu o disco de Tom Zé, Estudando o Samba, de 1976. Na
480
Disponível em: <http://www.tomze.com.br>. Acesso em: 23 jun. 2005.
298
seqüência deste encontro foram relançados discos de Tom nos EUA, onde recebeu prêmios
como “músico de vanguarda”. Hoje, Tom Zé é uma referência da música brasileira na Europa
e nos EUA e sua trajetória é muito representativa dos percalços da música popular brasileira.
Em seu disco Palavra Cantada, de 2003, a década de 1970 ressurge com força em alguns
temas, como em Requerimento à censura, de 1975 e que estava na “gaveta”:
Ilustríssimo Senhor Diretor
Da Divisão de Censura de Diversões Públicas
Do Departamento de Polícia Federal, Brasilia
Antonio José Martins, brasileiro,
Avenida Brigadeiro Faria Lima, 1857, 1.o andar,
Conjunto 112 e 113 e 114, São Paulo, Capital,
Vem mui respeitosamente solicitar
A Vossa Senhoria
Que se digne mandar
Censurar as letras musicais anexas.
São Paulo, 10 de fevereiro
De mil novecentos e 2010.
Nestes termos, nestes termos, nestes termos
Pede, pede defé defé
De fede fede fede
De-fe-ri-men-to.
Portanto, Antonio José, o próprio Tom , fez o improvável: musicar um documento
enviado à Censura Federal. Ele trocou o 1975 por 2010, mas a crítica à burocracia é explícita
e reforçada pelo texto musical. O “deferimento” transforma-se em “fede” e em “ferimento”
numa representação do que foi o controle censório naqueles anos e reforçando o lado
histriônico da Censura por meio de uma fina ironia. Neste mesmo disco, seu trocadilho atinge
outras instâncias de poder em Companheiro Bush, com um som mais jazzístico e com o Hino
Nacional dos EUA de forma incidental e estilizada, escrita antes da Guerra do Iraque: “Se
você sabe quem/ vendeu aquela bomba pro Iraque/ desembuche/ eu desconfio que foi o
Bush/ foi o Bush, foi o Bush/ foi o Bush”.
Ainda em relação à Censura, numa crítica que atinge a censura política, moral,
comercial, também compôs Sem saia, sem cera, censura: “É a rima, a rima ditada por lei, por
299
decreto/ É a múmia que mama no feto/ É a luz que se filtra nas grutas/ O insosso temperando
as frutas/ O medo, o medo tem que censurar para criar”. Para o compositor a censura destrói o
belo, inviabiliza o exercício criativo em sua plenitude e é expressão de uma violência:
“A parceria da pedra com a vidraça/ Do elefante com a graça, com a taça/ A parceria da bala
de canhão, canhão, canhão/ Com a bolinha de sabão/ A censura, ela gosta da arte/ Mas é a
Medusa retocando a musa”. Por fim, vemos aqui não apenas uma crítica a um mecenato
canhestro, mas também a impossibilidade da liberdade coexistir com o controle censório, seja
qual for sua instância: “A censura, ela ama a arte/ Mas é como a fera penteando a bela/ A
censura, ela morre de amor pela arte/ Mas é a enxada/ Acarinhando a fada/ A censura, ela
adora a fragrância da arte/ Mas é o machado/ Entre as flores do prado”.
481
Por fim, em Portugal um cancioneiro também diversificado floresceu em meio ao
rígido controle de quase meio século de ditadura. Mesmo quando uma vertente desta
produção atingiu um certo grau de canção panfletária, foi caudatária e inspiradora para o que
se produziu de qualidade musical, na seqüência dos dois anos revolucionários por que passou
a sociedade portuguesa.
igualmente uma grande diversidade de gêneros musicais brasileiros passíveis de
análise e que revelam uma complexa cultura regional, muito embora passível de influências
de outras regiões do país e internacionais. Nesse sentido, os arquivos da Censura permitem o
vislumbre do controle de todos estes gêneros e as principais interferências do Estado no
processo criativo destes compositores. Por outro lado, esta ingerência estatal não impediu que
a música brasileira se tornasse um dos maiores produtos da exportação brasileira e vitrine
límpida de um país freqüentemente lembrado no estrangeiro por suas mazelas.
481
ZÉ, Tom. Palavra Cantada. Trama, 2003, nº. T004/ 894-2 (CD).
300
CONCLUSÃO
O Brasil foi o país para onde muitos dos opositores ao regime salazarista se exilaram.
Aqui participaram da vida cotidiana do homem comum brasileiro ou se lançaram em
empresas de maior visibilidade pública como os artistas, intelectuais e professores
universitários. Após 1974, também vieram para o Brasil os antigos salazaristas, desde a alta
hierarquia ao baixo escalão da ditadura portuguesa. A recíproca também é verdadeira, afinal,
inúmeros exilados brasileiros viveram em Portugal, outros ali estiveram em temporadas mais
curtas. Em ambos os casos, suas respectivas polícias políticas, os consulados e embaixadas e
mesmo agentes dos serviços de repressão e das comunidades de informação saídos de seus
países de origem, mapearam as trajetórias destes portugueses e brasileiros exilados.
Houve entre as décadas de 1960 e 1970, e mesmo antes, uma freqüente e estreita
relação entre as duas ditaduras, fato comprovado pela troca de informações sobre seus
respectivos exilados, pela ação repressiva contra os opositores e pela atividade censória
também contra brasileiros e portugueses que viviam fora de seu país natal.
É perceptível ainda que num ponto desta mesma cronologia as realidades nacionais se
cruzaram. Afinal tal similitude está expressa igualmente na “crise” por que passou a produção
desta nova canção popular nos dois países. No Brasil, a MPB de cunho mais engajado teve
seu declínio ainda no final da década de 1960, fato semelhante ao ocorrido com a “balada” em
Portugal, ao menos em sua suposta aplicabilidade prática a partir de uma linguagem musical e
literária mais direta.
Ao longo da década de 1970, as canções saídas destes períodos de radicalização
política, desembocaram numa experimentação estética e literária complexa que gerou frutos.
Porém, no início da década de 1980, estas experiências musicais, já então solidificadas, foram
sendo substituídas por outros gêneros musicais e, cada vez mais, por canções internacionais.
301
Tal processo pode ter relação com a nova configuração dos meios de comunicação que
incorporaram uma maior sazonalidade de gêneros imposta pela indústria fonográfica.
O fato é que uma série de fatores pode ter contribuído para esta mudança no cenário
musical. Uma delas está relacionada ao fim dos grandes festivais com cobertura midiática
no início da década de 1970, o que impediu o surgimento dos chamados “novos valores” tanto
no Brasil, como em Portugal. Muitos festivais de música (alguns de caráter regional que
duram até hoje) se mantiveram durante todo este período, mas sem a vitrine da televisão que
impulsionara a carreira dos valores surgidos nos festivais a partir de meados da década de
1960.
Os nomes que despontaram na canção brasileira no auge dos festivais tiveram
oscilações em suas carreiras, mas ainda fazem parte do complexo cenário musical brasileiro.
É sabido que para a indústria fonográfica, estes cantores não possibilitam as grandes
vendagens dos gêneros musicais sazonais. Contudo, continuam vendendo por mais de trinta
anos, tanto sua produção contemporânea quanto seus discos de catálogo. É provável que este
fenômeno também tenha ocorrido no caso português e, no mesmo período, ou seja, no início
da década de 1980. Isto transparece na bibliografia portuguesa e nos periódicos
especializados. Logo, uma dinâmica internacional da indústria cultural refletiu para além das
fronteiras nacionais, muito embora o mercado fonográfico português seja infinitamente
inferior ao brasileiro.
Apesar das ditaduras, o Brasil teve uma safra musical que faz jus à sua dimensão
continental, Portugal, teve uma produção inversamente proporcional ao seu tamanho. O
contato com a produção musical portuguesa permitiu ao autor perceber o desconhecimento
brasileiro em relação ao cancioneiro português, fato similar ao observado nas canções dos
países africanos de língua portuguesa. A identificação do universo musical com os
movimentos musicais, temas e gêneros portugueses é notória. Ao comparar a canção
302
portuguesa e parte da africana com a brasileira percebem-se muito mais afinidades do que
diferenças. Outro dado que vale enfatizar: é muito mais rica a herança da luta e da música
nestes países. Portanto, apesar dos efeitos das ditaduras, quando se volta os olhos saudosos ao
passado enxerga-se José Afonso e Elis Regina, e não unicamente Salazar e Médici. A
memória da tragédia não anulou as conquistas e as permanências do que se produziu de
salutar nestes mesmos anos, por mais relativa que seja esta assertiva.
Nos dois países abordados, um outro dado perceptível é que, durante as décadas de
1960 e 1970, os espaços de difusão e de divulgação das canções aqui referenciadas
coincidiam com os espaços de debate e organização política da juventude universitária e de
parte do ensino secundário das grandes cidades. Até mesmo os militares brasileiros
enfatizaram esta faceta ao produzir informações sobre estes espaços. Em Portugal não foi
diferente, ou seja, uma relativa parte da resistência cultural e armada era composta da classe
estudantil.
Os arquivos destes países guardam uma série de documentos e relatórios de shows
ligados aos estudantes, então observados pelos serviços de Censura e repressão. Logo, não
como refletir unicamente sobre a relação entre música e política apenas a partir dos músicos
envolvidos nos movimentos de contestação política, afinal a ligação era bem mais complexa.
O fundo sonoro destes estudantes secundaristas e universitários, dos trabalhadores
organizados e não alinhados às ditaduras, de todos aqueles que foram tocados pelos temas da
canção participativa, o era o som harmônico esperado pelas ditaduras. Para muitos estas
canções serviram de válvula de escape e de engessamento de práticas e ações efetivas contra
as ditaduras. Para outros, como se nos depoimentos de inúmeros compositores, foram
canções que reafirmaram certezas de então ou que serviram de alento às mudanças e
intervenções imediatas.
303
Não obstante, é necessário que se faça uma ressalva, a máquina da Censura nestes dois
países era um dos componentes de uma complexa estrutura ditatorial e, certamente, não era a
sua faceta mais trágica. Afinal, em Portugal e no Brasil foram centenas de mortos,
desaparecidos e outros milhares de torturados. No caso brasileiro, a questão da abertura de
parte dos arquivos da ditadura ainda é um tabu, visto que muitos dos envolvidos em casos de
tortura e de assassinatos continuam na ativa, alguns até ocupando postos em diferentes
instâncias de poder. Enquanto isso, inúmeras famílias de desaparecidos políticos aguardam
informações para que possam ao menos conhecer o passado, localizar e enterrar os restos
mortais de seus entes, mas deparam-se com aqueles que preferem enterrar o passado e junto
dele as páginas sombrias da história brasileira. Conhecer profundamente a história deste
período é também compreender a natureza da violência contemporânea, suas mutações e
adaptações.
Os sistemas políticos de ambos os países não se traduziam em regimes totalitários,
havia além de concessões do Estado, saídas encontradas e criadas pelos grupos de oposição
política. Outro ponto comum é que tais estruturas refletem um quadro mais imediato que se
configurou a partir da Guerra Fria e de sua conseqüente bipolarização, remetendo ainda à
defesa de preceitos morais advindos da vida castrense e cristã. Entretanto, apesar das
disparidades entre os dois processos e da natureza distinta dos dois regimes, a documentação
consultada demonstrou que os mecanismos de Censura e de repressão guardaram similitudes e
afinidades nos processos formais, na legislação e, principalmente, nas estratégias encontradas
pelos músicos para burlar este controle.
Por fim, um exercício de imaginação: inúmeras canções censuradas não foram
posteriormente gravadas pelos seus autores ou intérpretes. Nesse sentido, seria possível fazer
um inventário deste cancioneiro interdito? Seria possível uma “história do que não foi” da
304
música popular nestes países? O que ficou nestes países e nas pessoas que viveram neste
período em meio a décadas de censura, auto-censura e repressão?
Uma questão pertinente no debate sobre a censura, é que hoje, com a configuração da
indústria cultural e os interesses mercadológicos que lhe são fundantes e inerentes, ocorre a
fossilização de uma outra censura, que existia de forma concomitante à censura moral e
política: a do mercado, que não é nova, menos ou mais proibitiva que a anterior, é diferente.
Como tal, deve ser combatida, afinal, trata-se também de uma política perniciosa à formação
cultural dos compositores e dos ouvintes e também representa mais um dos resquícios destes
mesmos anos de ditadura e do posterior esvaziamento da memória da “longa noite” que
algumas “primaveras” não venceram de todo. Afinal, como diria Chico Buarque na canção
Tanto Mar, será que ainda há “alguma semente perdida n’algum canto de jardim”?
305
BIBLIOGRAFIA
ABONIZIO, Juliana. O Protesto dos Inconscientes: Raul Seixas e micropolítica. Assis: Pós-
Graduação em História/ UNESP, 1999 (Dissertação de Mestrado).
AFONSO, José. Cantares. 4 ed. Coimbra: Fora do Texto, 1995.
_______. Textos e canções/ José Afonso. Lisboa: Assirio e Alvim, 1983.
ALBERTI, Verena. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 1990.
ALBIN, Ricardo Cravo. Driblando a Censura: de como o cutelo vil incidiu na cultura. Rio de
Janeiro: Gryphus, 2002.
ALEXANDRE, Ricardo. A verdade do universo. História do Rock Brasileiro Anos 70. São
Paulo: Abril/ Super Interessante, fascículo 2, s./d., p.34-45.
ALMEIDA FILHO, Hamilton. A sangue-quente: a morte do jornalista Vladimir Herzog. São
Paulo: Editora Alfa-Omega, 1978.
ALMEIDA, Maria Hermínia T. de; WEIS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da
oposição de classe média ao regime militar. História da vida privada no Brasil: contrastes na
intimidade contemporânea. São Paulo: Cia das Letras, v. 4, 1998.
ALMEIDA, Regina. A Ideologia e a Canção Popular: Estudo para um relacionamento entre
a história contemporânea do Brasil e do Chile e a canção popular. Porto Alegre: Pós-
Graduação em História da Cultura, 1984. (Dissertação de Mestrado)
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 2 ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 1984.
ANDRADE, John. Dicionário do 25 de Abril: Verde Fauna, Rubra Flora. Lisboa: Nova
Arrancada, 2002.
ANDRADE, Sebastião Costa. Amor e amantes: Homem e Mulher no Cancioneiro Sertanejo.
João Pessoa: UNIPÊ, 2000.
306
ANDREUCCI, Álvaro; OLIVEIRA, Valéria. Cultura amordaçada: intelectuais e músicos sob
a vigilância do DEOPS. São Paulo: Arquivo do Estado/ Imprensa Oficial, 2002.
ANHANGÜERA, James. Corações Futuristas: notas sobre música popular brasileira.
Lisboa: A Regra do Jogo, 1978.
APOLINÁRIO, João. 25 abril 1974: Portugal Revolução Modelo. Rio de Janeiro: Nórdica,
1974.
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). Bauru:
EDUSC, 1999.
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona e ditadura
militar. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
ARQUIVO da PIDE/ DGS na Torre do Tombo Guia da Exposição. Lisboa: Instituto dos
Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo, 1997.
ARRUDA, José Jobson, FONSECA, Luís (orgs.). Brasil-Portugal: História, agenda para o
milênio. Bauru, SP: EdUSC, 2001.
ARRUDA, José Jobson, TENGARRINHA, José Manuel. Historiografia Luso-Brasileira
Contemporânea. Bauru, SP: EDUSC, 1999.
AUDIBERT, Pierre. Portugal: os novos centuriões. São Paulo: Difel, 1975.
AUTRAN, Margarida. O estado e o músico popular: de marginal a instrumento. In: Anos 70:
música popular. Rio de Janeiro: Europa, 1979.
AZEVEDO, Cândido de. A censura de Salazar e Marcelo Caetano - imprensa, teatro,
cinema, televisão, radiodifusão, livro. Lisboa: Caminho, 1999.
BARRACLOUGH, Geoffrey. A História. Venda Nova/Portugal: Bertrand, 2 vol., 1987.
(Colecção Ciências Humanas).
BARROS, Adirson de. Março: Geisel e a Revolução Brasileira. Rio de Janeiro: Artenova,
1976.
307
BECK, Julian, MALINA, Judith. Living Theatre: La Prision y El Legado de Caim. Madrid:
Edicusa, 1975.
BECK, Julian. Living Theatre. Madrid: Fundamentos, 1974.
BERG, Creuza. Mecanismos do Silêncio: expressões artísticas e censura no Regime Militar
(1964-1984). São Carlos: Edufscar, 2002
BLACK, Jeremy, MAcRAILD, Donald. Studying History. 2 ed. London: Macmillan, 2000.
BLOCH, Marc. Marc Bloch: História e Historiadores (Textos reunidos por Étienne Bloch).
Lisboa: Teorema, 1998.
______. Pour une histoire comparée des societés européennes. In: Mélanges Historiques.
Paris: Sevpen, v.1, 1963. – (Bibiotheque Generale de L’École Pratique des Hautes Études).
BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Autoritarismo.
Dicionário de Política. 4 ed. Brasília: Edunb, v.1, 1992, p. 94-104.
BOCCIA PAZ, Alfredo. “Operativo Cóndor”: ¿un ancestro vergonzoso? Cuadernos para el
Debate, nº. 7, Buenos Aires, octubre de 1999.
BORDIEU, Pierre. Você disse “popular”? In: Revista Brasileira de Educação. nº. 1, jan.-abr./
1996, p. 16-26.
BOUTIER, Jean, JULIA, Dominique (orgs.). Passados Recompostos: Campos e Canteiros da
História. Rio de Janeiro: UFRJ/ FGV, 1998.
BUARQUE, Chico, GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. 6 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1974.
BUARQUE, Chico. Chapeuzinho Amarelo. (Ilustrações de Ziraldo). 11 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2002.
BURGUIÈRE, André. Comparada (História). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de
Janeiro: Imago, 1993, p. 166-8.
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002.
308
______. Sociologia e História. Porto: Afrontamento, 1980.
BUSTAMANTE, Regina Maria, THEML, Neyde. História Comparada: olhares plurais.
Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXIX, dez. 2003, p.07-22.
CAETANO, Marcelo. Depoimento. Rio de Janeiro: Record, 1974.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva,
1993.
CAMPOS, J. M. Opressão (fascismo) e repressão (PIDE) - Subsídios para a história da
PIDE. Lisboa: Amigos do Livro Editores, v. 1, s/d.a.
CAMPOS, J. M., GIL, L. P. Opressão (fascismo) e repressão (PIDE) - Subsídios para a
história da PIDE. Lisboa: Amigos do Livro Editores, v. 2, s/d.b.
CANCIONEIRO para mocidade: canto colectivo. Lisboa: Serviço de Publicações da
Mocidade Portuguesa, 1969.
CÂNDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CANTOS DE LUTA. Lisboa: Grupo de Acção Cultural, 1974.
CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no
peronismo. Campinas, SP: Papirus, 1998. – (Coleção Textos do Tempo)
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciadas: História da Censura no Brasil.
São Paulo: EDUSP/ Imprensa Oficial do Estado/ Fapesp, 2002.
______. Livros proibidos, idéias malditas: o DEOPS e as Minorias Silenciadas. 2 ed. São
Paulo: Ateliê Editorial/ USP/ Fapesp, 2002
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. 4 ed. São Paulo: Ática, 1999.
CARVALHO FILHO, Luís Francisco da S. Pedido de reconsideração do processo de Zuzu
Angel. Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? 2 ed. São Paulo:
Humanitas/ FFLCH/ USP, 2001, p. 345-61.
CARVALHO, Mário Vieira. A música e a luta ideológica. Lisboa: Editorial Estampa, 1976.
309
______. O essencial sobre Fernando Lopes-Graça. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da
Moeda, 1989.
______. Ópera como estetização da política e propaganda do Estado. In: O Estado Novo: das
origens ao fim da autarcia – 1926-1959. Lisboa: Fragmentos, v.2, 1987, p.209-28.
CARVALHO, Otelo Saraiva de. Alvorada em Abril. 4 ed. Lisboa: Editorial Notícias, 1998.
CARVALHO, Pinto de. História do fado. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982.
CASCUDO, Teresa. A música soviética entre o degelo e a Perestroika (1953-1989). Música
russa: um breve panorama. Lisboa: Público, 2001, p. 69-93.
CASTELLO, José. Vinicius de Moraes: o poeta da paixão. 2 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
CASTRIM, Mário. Televisão e Censura. Porto: Campo das Letras, 1996. (Campo das Media;
1).
CASTRO, Demetrio. Comprender comparando. Valores de uma búsqueda en historia y
ciências sociales. Studia Histórica Historia Contemporanea. Salamanca: Ediciones
Universidad Salamanca, v. X-XI, 1992, 1993, p. 77-90.
CASTRO, Engrácia. O director de turma nas escolas portuguesas: o desafio de uma
multiplicidade de papéis. Porto: Porto Editora, 1995.
CAVALCANTI, Pedro Celso Uchoa; RAMOS, Jovelino. MEMÓRIAS do Exílio Brasil:
1964-19?? Lisboa: Arcádia, 1976.
CELIBERTI, Lilian, GARRIDO, Lucy (org.). Meu quarto, minha cela. Porto Alegre: L&PM,
1989.
CERRI, Luis Fernando. Ensino de História e Nação na Propaganda do “Milagre Econômico”.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº. 43, 2002, p. 195-224.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2000.
310
______. A Invenção do Cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL/
Bertrand Brasil, 1990.
CHENTALINSKI, Vitali. A palavra ressucitada: nos arquivos literários do KGB. Venda
Nova, Portugal: Bertrand, 1996.
CHEVALIER, Jean, GHERRBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 17 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2002.
CISQUELLA, Georgina (et. al.). La represión cultural en el franquismo: diez años de
censura de libros durante a Ley de Prensa. 2 ed. Barcelona: Editorial Anagrama, 2002.
(1977).
CLAUDÍN, Víctor. Canción del autor en España: apuntes para su historia. Madrid:
Ediciones Júcar, 1981. (Série Los Juglares).
COGGIOLA, Osvaldo (org.). Espanha e Portugal: o fim das ditaduras. São Paulo: Xamã,
1995.
COLLING, Ana Maria. A Resistência da Mulher à Ditadura Militar no Brasil. Rio de
Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.
COMISSÃO do Livro Negro sobre o Fascismo. A política de informação no regime fascista.
Mira-Sintra, Portugal: 1980.
COMITÊ D’AUTODÉFENSE SOCIALE KOR. Les archives de la censure polonaise.
Esprit. Nº. 14, v.2, fev/ 1978, p. 160-65.
CONTIER, Arnaldo D. Arte e Estado: Música e Poder na Alemanha dos Anos 30. In: Revista
Brasileira de História: Sociedade e Cultura. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, v.8, 15, set.
de 1987/ fev. de 1988.
______. Edu Lobo e Carlos Lyra: O Nacional e o Popular na Canção de Protesto (Os Anos
60). Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, vol.18, nº 35, 1998.
311
______. Memória, História e Poder: a Sacralização do Nacional e do Popular na Música
(1920-50). In: Revista Música. São Paulo:[s.n.], v.2, n.1, mai./1991.
CORREIA, Mário. Música Popular Portuguesa: um ponto de partida. Coimbra: Centelha,
1984.
CORTEZ, Lucili Grangeiro. Pensamento e acção política de exilados brasileiros pela
independência das colônias portuguesas. Actas Congresso Luso-Brasileiro - Portugal-Brasil:
memórias e imaginários. Lisboa: Ministério da Educação, v. 1, 2000, p. 650-64.
COSTA, Caio Túlio. Cale-se: A saga de Vannucchi Leme A USP como aldeia gaulesa O
show proibido de Gilberto Gil. São Paulo: A Girafa Editora, 2003.
COSTA, Eugénia Ribeiro da. Apresentação. In: Guia da Exposição: O Arquivo da PIDE/DGS
na Torre do Tombo. Lisboa: Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo/ Ministério da
Cultura, 1997.
CRUZEIRO, Maria Manuela. O imaginário político do 25 de abril. Revista de História das
Idéias. Coimbra: Faculdade Letras da Universidade de Coimbra, vol. 16, 1994, p. 433-75.
CUADERNOS para el Diálogo: Revista Mensual: Liberdades Públicas en España. 35.
Madrid: Iberoamericanas, Junio, 1973.
CUNHAL, Álvaro. A Revolução dos Cravos. In: Espanha e Portugal: o fim das ditaduras.
São Paulo: Xamã, 1995, p. 138-52.
DAVIES, R. W. Censura e falsificações na História da URSS. Lisboa: Edições 70, 1991.
DELGADO, Ivã. O Brasil e a saga de Humberto Delgado. In: Espanha e Portugal: o fim das
ditaduras. São Paulo: Xamã, 1995.
DIAS, Lucy. Anos 70: enquanto corria a barca. São Paulo: Senac, 2003. 360 p.
DINIZ, Maria Augusta. As fadas não foram à escola: a literatura de expressão oral em
manuais escolares do ensino primário. Porto: Edições ASA, 1994.
DOPS: a lógica da desconfiança. 2 ed. Rio de Janeiro: APERJ, 1996.
312
DOSSIER A Revolução das Flores: do 25 de abril ao governo provisório. Lisboa: Editorial
Áster, s./d.
ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1985.
ESCRIHUELA, Joan Manuel. Joan Manuel Serrat. Barcelona: Edicomunicación, 1992.
ESSINGER, Silvio (org.). O Baú do Raul Revirado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p.94.
FABRE, Geneviève. O movimento negro. In: Descolonização. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1977, p. 181-97.
FADO: vozes e sombras. Lisboa: Electa, 1995.
FAJARDO, Sinara Porto. Espionagem política: Instituições e Processo no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: IFCH-UFRGS, 1993 (Dissertação de Mestrado).
FERNANDES, Millôr. Bons tempos, hein?! Porto Alegre: LP&M, 1979. (Coleção Teatro de
Millôr Fernandes; 6).
FERREIRA, José Medeiros. A evolução cultural e das mentalidades. História de Portugal.
Lisboa: Editorial Estampa, v. 8, 1995, p. 166-73.
FICO, Carlos. Como eles agiam Os subterrâneos da ditadura militar: Espionagem e polícia
política. São Paulo: Record, 2001.
_____. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: FGV, 1997.
FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio: a história do serviço secreto brasileiro de
Washington Luís a Lula. (1927-2005). Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 2005.
FIUZA, Alexandre. Entre cantos e chibatas: a pobreza em rima rica nas canções de João
Bosco e Aldir Blanc. Campinas: FE/ Unicamp, 2001 (Dissertação de Mestrado).
FREIRE, Alípio, ALMADA, Izaías, PONCE, Granville (orgs.). Tiradentes, um presídio da
ditadura: Memórias de presos políticos. São Paulo: Scipione, 1997.
313
FREITAS, Jânio de. A memória não se anistia. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 ago. 1999.
Caderno Brasil, p.01.
FROTA, Lélia Coelho. Os vínculos da poética de Vinicius de Moraes com a cultura
portuguesa. Brasil e Portugal: 500 anos de desenlaces. Rio de Janeiro: Gabinete Português de
Leitura, v. 2, 2001.
FRUET, Luiz Henrique. Portugal, hoje: anarquistas e monarquistas andam soltos pelas ruas.
São Paulo: Editora Arte & Texto, 1975.
GABEIRA, Fernando. Nas asas de 1968: rumos, ritmos e rimas. Rebeldes e Contestadores:
1968 – Brasil, França e Alemanha. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
_____. O Crepúsculo do macho. 14 ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1980. (Coleção Edições do
Pasquim; 82).
_____. O que é isso, companheiro? 11 ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. (Coleção Edições
do Pasquim; 66).
GALVÃO, Walnice Nogueira. MMPB: uma análise ideológica. In: Saco de gatos: ensaios
críticos. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
GASPARI, Élio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b. (As
ilusões armadas).
______. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002a. (As ilusões
armadas).
GERALDO Azevedo quase perde o gosto pela música. Jornal do Commércio. Recife, 29 set.
1999.
GODINHO, Sérgio. Canções de Sérgio Godinho. 2 ed. Lisboa: Assírio e Alvim, 1983.
______. O pequeno livro dos medos. Ilustrações de Sérgio Godinho.2 ed. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2004.
GOMES, Manuel João (org.). Léo Ferré. Lisboa: Ulmeiro, 1984.
314
HOBSBAWN, Eric J. História Social do Jazz. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
HOBSBAWN, Eric J., RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
HOMEM DE MELLO, Zuza. A Era dos Festivais: uma parábola. 3 ed. São Pulo: Ed.34,
2003.
IGNATIEV, Oleg. Três tiros da PIDE. Lisboa: Prelo, 1975.
JARA, Joan. Canção Inacabada: a vida e obra de Victor Jara. Rio de Janeiro: Record, 1998.
JOBIM, Tom. Depoimento – Tom Jobim. Rio de Janeiro: Rio Cultura, s./d.
KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa: pelas ruas da cidade. São Paulo: Brasiliense, 1985,
p.79.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
______. Pelo buraco da fechadura: o acesso à informação e às fontes (os arquivos do Dops
RJ e SP). Minorias Silenciadas: História da Censura no Brasil. São Paulo: EDUSP/ Imprensa
Oficial do Estado/ Fapesp, 2002, p. 553- 83.
LENHARO, Alcir. Cantores do rádio A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio
artístico de seu tempo. Campinas: Edunicamp, 1995. (Coleção Viagens da Voz)
______. Luzes da Cidade. Óculum - Revista universitária de arquitetura, arte e cultura.
Campinas: PUC, nº. 1, p. 50-55, ago. 1985.
LEONZO, Nanci. Boas Vindas, General! O Brasil e a resistência contra a ditadura em
Portugal. In: Espanha e Portugal: o fim das ditaduras. São Paulo: Xamã, 1995.
LETRIA, José Jorge. A canção política em Portugal. Porto, Almagráfica, 1978.
______. Cantos de Revolução. Lisboa: Seara Nova, 1975.
LETRIA, José Jorge; FANHA, José. José Afonso: o que faz falta. Porto: Campo das Letras,
2004.
315
LIVROS proibidos no regime fascista exposição bibliográfica. Biblioteca Pública de Braga,
1994.
LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. Imigração Portuguesa no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2001.
LOPES, Norberto. Visado pela Censura. Lisboa: Editorial Asper, 1975.
LOPES-GRAÇA, Fernando. A caça aos coelhos e outros escritos polêmicos. Lisboa: Ed.
Cosmos, 1976.
______. A canção popular portuguesa. 2 ed. Lisboa: Europa-América, 1974.
______. Obras literárias: música e músicos modernos. 2 ed. Lisboa: Caminho, 1986.
LORCA, Federico García. Antologia Poética. 2 ed. Barcelona: Plaza & Janes, 1998.
LUCINI, Fernando González. Veinte años de canción en España (1963-1983). 1. Dela
esperanza/ apéndices. Madrid: Ediciones de la Torre, 1989.
MACHADO, Cristina Pinheiro. Os exilados: 5 mil brasileiros à espera da anistia. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1979.
MACIEL, Ayrton. A História Secreta (Prontuários do DOPs). Recife: Edições Bagaço, 2000.
MAFFI, Mario. La cultura underground. Barcelona: Anagrama, v. II, 1975.
MAGALHÃES, Marionilde de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época
da ditadura militar. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, v.17, n. 34, 1997, p.
203-20.
MAIER, Charles. La historia comparada. Studia Histórica Historia Contemporanea.
Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, v. X-XI, 1992, 1993, p. 11-32.
MANUEL, Alexandre, CARAPINHA, Rogério, NEVES, Dias. PIDE: História da Repressão.
Lisboa: Jornal do Fundão, 1974.
MARCONDES FILHO, Ciro. Carnaval eleitoral: o outro lado da festa é a tragédia. In:
Política e Imaginário nos meios de comunicação para massas no Brasil. São Paulo: Summus,
1985, p. 157-63. (Novas Buscas em Comunicação; 4).
316
MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. A bem da Nação: o sindicalismo português entre
a tradição e a modernidade (1933-1947). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MARTINS, João Paulo, LOUREIRO, Rui. As organizações armadas em Portugal de 1967 a
1974. História, nº. 18, abril/ 1980, p. 14-26.
MARTINS, Roberto. Segurança Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986. (Tudo é História;
112).
MATOS, Sérgio Campos, ADÃO, Áurea. A Imprensa periódica: memória da educação.
História (re) construídas: leituras e processos educacionais. São Paulo: Cortez, 2004, 59-77.
(Questões de Nossa Época; 114).
MATOS, Sérgio Campos. Historiografia e memória social (1945-2000): Balanço e
perspectivas futuras. In: Brasil-Portugal: História, agenda para o milênio. Bauru, SP:
EDUSC, 2001, p. 537-58.
______. O Brasil na historiografia oitocentista. Brasil e Portugal: 500 anos de desenlaces.
Rio de Janeiro: Gabinete Português de Leitura, v. 2, 2001, p.319-32.
MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.
______. Apresentação. Guia da Exposição O Arquivo da PIDE/ DGS na Torre do Tombo.
Lisboa: Ministério da Cultura/ Torre do Tombo, 1997.
MELO, Rose Nery Nobre de. Mulheres portuguesas na resistência. Lisboa: Seara Nova,
1975.
MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São
Paulo: Hucitec, 1982.
MOBY, Alberto. Sinal Fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-45/ 1969-
78). Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1994.
MORAES, José Geraldo Vinci de. A cidade de São Paulo: cultura e música popular no ar.
História. São Paulo. nº. 17/8, 1998/1999.
317
MORAIS, Armindo José. Vinte anos de cinema português - 1930-1950: conteúdos e práticas.
In: O Estado Novo: das origens ao fim da autarcia 1926-1959. Lisboa: Fragmentos, v. 2,
1987, p. 187-208.
MORAIS, Washington. Nora Ney – A pioneira do rock no Brasil. São Paulo: Edicon, 1997.
MOURA, José Barata. Estética da canção política: alguns problemas. Lisboa: Horizonte,
1977.
MOUTINHO, José Viale. Cancioneiro de Abril. Lisboa: Ulmeiro, 1999.
______. Nosso amargo cancioneiro. 2 ed. Porto: Paisagem, 1973.
MUGGIATI, Roberto. Rock: o grito e o mito. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1983.
MUGNAINI JR., Ayrton. Adoniran: dá licença de contar... São Paulo: Ed. 34, 2002.
NAPOLITANO, Marcos. “Hoje preciso refletir um pouco”: ser social e tempo histórico na
obra de Chico Buarque de Hollanda 1971/1978. História, São Paulo: UNESP, v.22, nº. 1,
2003, p. 115-34.
______. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância
política (1968-1981). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, 47, p. 103-126,
2004. (versão on line disponível em: <http://www.scielo.br >. Acesso em: 07 out. 2005).
______. Os festivais da canção como eventos de oposição ao regime militar brasileiro (1966-
1968). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc,
2004, p.315-28. (Coleção História).
______. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969).
São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2001.
NETTO, José Paulo. Portugal: do fascismo à revolução. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1986.
OLÁBARRI, Ignácio. Qué historia comparada. Studia Histórica Historia Contemporanea.
Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, v. X-XI, 1992, 1993, p.33-76.
318
OLIVEIRA, Flávia Arlanch M. Globalização, Regionalização e Nacionalismo. (Org.). São
Paulo, EdUNESP/FAPESP, 1999.
OSÓRIO, Sanches. O equívoco do 25 de abril. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
1975.
PAULINO, Leopoldo. Tempo de Resistência. 5 ed. Ribeirão Preto: COC Empreendimentos
Culturais, 2004.
PAULO, Heloísa. Aqui também é Portugal: a Colônia Portuguesa do Brasil e o Salazarismo.
Coimbra: Quarteto, 2000.
______. Estado Novo e Propaganda em Portugal e no Brasil: o SPN/SNI e o DIP. Coimbra:
Minerva, 1994.
PEDROSA, Inês. Michel Giacometti Entrevista. In: Jornal de Letras, Artes e Idéias. Ano
IV, n.137, 19-25 fev. 1985, p. 10-1.
PELEGRINI, Sandra C. “Ação cultural no pós-golpe: um destaque à produção musical
contestadora.” In: Anais do V Encontro Regional de História da ANPUH-PR. Ponta Grossa:
Imprensa Universitária, 1997, p. 49-63.
PEREIRA, Nuno. A Arquitetura do Estado Novo. In: O Estado Novo: das origens ao fim da
autarcia – 1926-1959. Lisboa: Fragmentos, v. 2, 1987, p. 323-57.
PINA, Luís de. Panorama do Cinema Português (Das origens à actualidade). Lisboa: Terra
Livre, 1978.
PINTO, António Costa. O salazarismo e o fascismo europeu: problemas de interpretação
nas ciências sociais. Lisboa: Estampa, 1992.
______. Portugal Contemporâneo: uma introdução. Portugal Contemporâneo. Madri,
Sequitur, 2000, p. 01-38.
______. Salazar e a elite ministerial do Estado Novo (1933-1945). In: Análise Social -
Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Lisboa: Universidade de
319
Lisboa, n. 157, 2001.
PIRES, José Cardoso. Dinossauro Excelentíssimo. 6 ed. Lisboa: Publicações Europa-
América, 1974.
POESIA DE RESISTÊNCIA: 21 poetas para o século XXI. Lisboa: Biblioteca-Museu
República e Resistência, 2003.
PORTELA, Artur. Salazarismo e artes plásticas. 2 ed. Amadora, Portugal: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa/ Biblioteca Breve, 1987.
POSSENTI, Sírio. Sobre o ensino de português na escola. In: O texto na sala de aula. São
Paulo: Ática, 2001.
POULANTZAS, Nicos. A crise das ditaduras: Portugal, Grécia, Espanha. 2 ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976.
PRESOS Políticos: documentos 1972-1974. Lisboa: Garcia & Carvalho, 1975.
PRÍNCIPE, César. Os segredos da Censura. Lisboa: Editorial Caminho, 1979.
PRONKO, Marcela. A comparação histórica e a história do que não foi: desafios para a
pesquisa histórica em América Latina. In: Anais da ANPHLAC/ V Encontro. Belo Horizonte:
UFMG, 2003.
QUADRAT, Samantha Viz. Muito além das fronteiras. O golpe e a ditadura militar:
quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004, p.315-28. (Coleção História).
RANGEL, Flávio. Diário do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
RAPOSO, Eduardo M. Canto de Intervenção (1960-1974). Lisboa: Museu da República e
Resistência, 2000.
______. Cantores de Abril: entrevistas a cantores e outros protagonistas do “Canto de
Intervenção”. Lisboa: Edições Colibri, 2000.
RÊGO, Raul. Os Índices Expurgatórios e a Cultura Portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, s./d.
320
REIS FILHO, Daniel Aarão. Vozes silenciadas em tempo de ditadura: Brasil, anos de 1960.
Minorias Silenciadas: História da Censura no Brasil. São Paulo: EDUSP/ Imprensa Oficial
do Estado/ Fapesp, 2002, p. 435-50.
REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo (orgs.). O golpe e a ditadura
militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004. (Coleção História).
REVISTA Histórica DEOPS. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, n.2, ano 2,
agosto, 2000.
RIBEIRO, Maria da Conceição. A Polícia Política no Estado Novo (1926-1945). Lisboa:
Estampa, 2000.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv.
São Paulo: Record, 2000.
______. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: EDUNESP, 1993.
RIVERA, Gloria García. Autores e personagens censurados e proibidos. Palavra
Amordaçada/ 8ª. Jornada Nacional de Literatura. Passo Fundo: UPF, 2001, p. 208-10.
ROCHA, Francisco. Adoniran Barbosa: O Poeta da Cidade. São Paulo: Ateliê Editorial,
2002, p. 95.
RODRIGUES, Graça Almeida. Breve História da Censura Literária em Portugal. Lisboa:
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, s./d.
ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999.
ROSAS, Fernando (coord.). Portugal e o Estado Novo (1930-1960). Lisboa: Editorial
Presença, v. XII, 1992. (Coleção Nova História de Portugal).
ROSENTHAL, Gabriele. A estrutura e a gestalt das autobiografias e suas conseqüências
metodológicas. Usos & Abusos da História Oral. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005,
p.193-200.
RUAS, Tabajara. O amor de Pedro por João. São Paulo/ Rio de Janeiro: Record, 1998.
321
SALAZAR visto do Brasil: antologia de textos de autores brasileiros e portugueses. São
Paulo: Felman-Rêgo, 1962.
SALVADORI, Maria Ângela Borges. “Malandras canções brasileiras”. Revista Brasileira de
História. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, v. 7, n.13, set. de 1986/ fev. de 1987, p.103-24.
SANFELICE, José Luís. Movimento estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. São
Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986.
SANTANNA, Affonso Romano de. Música Popular e Moderna Poesia Brasileira. 2 ed. rev. e
ampl. Petrópolis, RJ: Vozes, 1980.
SAUTCHUK, João Miguel. O Brasil em Discos: Nação, Povo e Música na Produção da
Gravadora Marcus Pereira. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/
Universidade de Brasília, 2005. (Dissertação de Mestrado).
SEABRA, Zita. As mulheres na clandestinidade: a minha experiência. Camões Revista de
Letras e Culturas Lusófonas (25 de Abril, a Revolução dos Cravos). abr./ jun., nº. 5, 1999,
p.26-30.
SERRANO, Carlos. A luta de libertação nacional na África de língua portuguesa e a crise do
fascismo português. In: Espanha e Portugal: o fim das ditaduras. São Paulo: Xamã, 1995.
SILVA, Douglas Mansur da. Tensões pós-coloniais entre imigrantes portugueses em São
Paulo. In: Temáticas: Revista dos Pós-Graduandos em Ciências Sociais. Campinas:
UNICAMP, ano 10, nº. 19/20, 2002, p.61-74.
SILVA, Walter. Vou te contar Histórias de Música Popular Brasileira. 2 ed. São Paulo:
Codéx, 2002.
SILVEIRA, Paula. Os valores do quotidiano no Estado Novo: ruptura ou continuidade? In: O
Estado Novo: das origens ao fim da autarcia 1926-1959. Lisboa: Fragmentos, v. 2, 1987,
p.303-20.
322
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. 5 ª reimpr. Trad. Mariano
Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
SONORIDADES luso-afro-brasileiras. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004. (Estudos
e Investigações; 32).
SOUZA, Tárik de . Vinte anos de MPB: as principais tendências da discografia entre 1964 e
1984. In: RETRATO do Brasil (Da Monarquia ao Estado Militar). São Paulo: Política
Editora, v. I e II, 1984.
STHEPANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e militarização das artes. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2001.
TAPAJÓS, Renato. Influências de 1968 na criação artística. In: Rebeldes e contestadores:
1968 Brasil, França e Alemanha. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.
TELES, Janaína (Org.). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? 2 ed.
São Paulo: Humanitas/ FFLCH – USP, 2001.
TELES, Viriato. Zeca Afonso: As voltas de um andarilho. 3 ed. Lisboa: Ulmeiro, 2000.
TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal. 2 ed. Bauru, SP: EDUSC, 2000.
______. A historiografia portuguesa pós- 74. In: Historiografia Luso-Brasileira
Contemporânea. Bauru, SP: EDUSC, 1999.
TINHORÃO, José Ramos. O encanto histórico da palavra cantada. In: Ao Encontro da
Palavra Cantada. – poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001, p. 200-6.
______. Com pandeiro, cuíca, surdo e tamborim. In: História da Música Popular Brasileira:
Samba de terreiro e de enredo. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Fascículo que acompanha
disco homônimo).
______. Pequena história da música popular: da modinha à lambada. 6 ed. rev. e aum. São
Paulo: Art Editora, 1991.
323
TORTURA na Colônia de Moçambique (1963-1974) – Depoimentos de presos políticos.
Porto: Afrontamento, 1977.
TYTELL, John. The Living Theatre. Arte, exilio y escândalo. Barcelona: BCN, 1999.
VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria uma caetanave organizada por Waly Salomão. 2 ed.
Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, s/d. (1ª edição, 1971).
______. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
VILARINO, Ramon Casas. A MPB em movimento: música, festivais e censura. São Paulo:
Olho d’Água, 1999.
VILLAÇA, Mariana. Tropicalismo (1967-1969) e Grupo de Experimentación Sonora (1969-
1972): engajamento e experimentalismo na canção popular, no Brasil e em Cuba. São Paulo:
FFLCH-USP, 2000. (Dissertação de Mestrado).
VINHAS, Manuel. Profissão exilado. Rio de Janeiro: Portugália Editora, 1976.
324
Referências da INTERNET
ALMEIDA, Luís Pinheiro de. O “London London” de Zeca. Disponível em: <http://www.
instituto-camoes.pt/bases/zeca/testemunho5.htm>. Disponível em: 25 jun. 2002.
ANÁLISE crítica do processo de incorporação de segmentos que se desligaram de outras
organizações e da Ação Popular – 1983. In:
<http://www.vermelho.org.br/pcdob/80anos/docshists/1983c.asp>. Disponível em 04 abr.
2005.
ANOS 20 – VERDE-AMARELOS:
http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos20/ev_arteecultura_verdeamarelos.htm>.
Disponível em 25 abr. 2005.
ARMANDO Frutuoso. In:
<http://www.vermelho.org.br/pcdob/80anos/martires/martires51.asp>. Disponível em 04 abr.
2005.
CANCIÓN del Sur. In: <http://www.jaivaamigos.com/discografia/id50.html>. Disponível em:
29 mar. 2005.
COIMBRA, Cecília. Tortura ontem e hoje: resgatando uma certa história. Disponível:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
73722001000200003&script=sci_arttext&tlng=pt>.
Acesso em 13 nov. 2005.
CORREIA, Carlos. Grândola, gravada às 3 da manhã. In: <http://www. instituto-
camoes.pt/bases/zeca/testemunhos.htm> Disponível em: 23 mai. 2002.
CUNHA, Isabel Ferin. A revolução da Gabriela: o ano de 1977 em Portugal. Disponível em:
<http://www.bocc.ubi.pt/pag/cunha-isabel-ferin-revolucao-gabriela.pdf>. Acesso em: 13 mar.
2004.
325
DANTAS, Vera, VAZA, Marcos. Interdito a todas as idades. In: <http://www. instituto-
camoes.pt/bases/25abril/interditotods.htm> Disponível em: 25 jun. 2002.
DESAPARECIDOS políticos - Francisco Tenório Júnior. In:
<http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mor/mor_desaparecidos/mor_francisco_junior.ht
m>Disponível em 01 abr. 2005.
DESAPARECIDOS POLÍTICOS. In: <
http://www.dhnet.org.br/memoria/tnmais/politico.html> . Disponível em 04 abr. 2005.
DISCOGRAFIA José Afonso - Centro de Documentação AJA In:
<http://www.aja.pt/centrodedocumentacao/discografia.htm> Disponível em: 25 jun. 2002.
DUARTE, António. Liberdade para Sérgio Godinho. In: <http://www.instituto-
camoes.pt/bases/godinho/liberdade.htm>. Disponível em 12 jan. 2005.
LOS SUEÑOS de América. In: <http://www.jaivaamigos.com/discografia/id48.html>.
Disponível em: 13 mar. 2005.
MARELLI, Sergio. Medios cómplices: Censura y autocensura durante la dictadura
argentina. Disponível em: <http://www.etcetera.com.mx/pag73ne41.asp>. Acesso em 20 jul.
2005.
MATOS, Maurício. O poder do gesto em Fernando Lemos. Disponível em:
<http://www.triplov.com/surreal/lemos.html>. Acesso em: 27 set. 2005.
MILONGA, Silvia. Entrevista - Amadeu Amorim: a herança do N’gola Ritmos deve ser
preservada. In: Casa de Angola. Disponível em:
<http://www.casadeangola.org/FIGURAS/ngola.htm>.Acesso em: 23 out. 2005.
MINISTÉRIO da Justiça - Pauta da Comissão de Anistia, datada de 23.02.2005. In:
<http://www.mj.gov.br/anistia/pdf/2005/plenario/Pauta2302.pdf>. Disponível em 03 abr.
2005.
326
PALMAR, Aluízio. Documentos revelam participação de Itaipu na Operação Condor. In:
<http://www.torturanuncamais-rj.org.br/Artigos.asp?Codigo=32>. Disponível em 05 abr.
2005.
QUEM Somos: Conheça mais sobre a história da Universal Music. In:
<http://www.universalmusic.com.br/quemsomos.asp>. Disponível em: 06 jul. 2003.
TELES, Viriato. Música Popular Portuguesa: Uma Bibliografia. Disponível em:
<http://attambur.com/Recolhas/Bibliografia/MPP_uma%20bibliografia_fichas_de_leitura.htm
>. Acesso em 23 mai. 2004.
TERRORISMO Nunca mais. In: <http://www.ternuma.com.br>. Disponível em 29 mar. 2005.
THE LIVING THEATRE - historical notes. In:
<http://www.livingtheatre.org/abou/history.html>. Disponível em 25 mar. 2005.
327
DISCOGRAFIA
25 de ABRIL de 1974 – Cravos: as canções. Lisboa: Companhia Nacional de Música/ Sony,
nº. CNM BX 100, s./d. (Box com 4 CDs).
AFONSO, José. Cantigas de Maio. Orfeu/ Arnaldo Trindade. 33 rpm, stereomono, STAT
009, 1971.
______. Com as minhas tamanquinhas. Lisboa: Movieplay (Orfeu), n º. JA8008, 1996 (1976).
______. Contos velhos rumos novos. Porto: Orfeu, 33 rpm, stereo, n. STAT-004, 1969.
______. Eu vou ser como a toupeira. Movieplay, nº JA8005, 1996 (1972).
______. Venham mais cinco. Orfeu, 33 rpm, nº. STAT-017, 1973.
Amália/ Vinicius Amália Rodrigues e Vinicius de Moraes. Chantecler, 33 rpm,
4.33.503.001/2, 1978.
AZEVEDO, Geraldo. A Luz do Solo. Polygram/Barclay, 33 rpm, n.º 827.904-1, 1985.
______. Adoniran Barbosa. Odeon, 33 rpm, stereo, nº SMOB-3877, 1975.
BELEN, Ana. Grandes Éxitos. Madrid: CBS, nº. 4625722, 1997.
BRANCO, José Mário. Margem de certa maneira. Lisboa: Sassetti, 33 rpm, stereo, nº. DP
020, 1972.
BRANCO, José Mário. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Lisboa: EMI/ Valentim
de Carvalho, nº. 7243 8 35655 2 8, 1998 (1971).
BUARQUE, Chico. Chico Canta. Philips/ Polygram, nº. 510 008-2, 1993 (1973).
BUARQUE, Chico, BARDOTTI, Sérgio, ENRIQUEZ, Luis. O Saltimbancos. Phonogram/
Philips, 33 rpm, nº. 6349.321, 1977.
CARLOS, Roberto. Roberto Carlos canta a la juventud. Rio de Janeiro: Sony Music (CBS),
n. 721.266/2-492027, 1998 (1965).
CHAVES, Juca. Ninguém segura este nariz. Phonogram, 33 rpm, nº 2451501, 1974.
328
CÍLIA, Luís. La poésie portugaise de nos jours et de toujours (mise em musique et chantée
par Luís Cília). Paris, Moshé-Naim, 33 rpm, nº. MN-10002, 1967.
De Kalafe e sua Turma. De Kalafe e turma. Rozenblit, 33 rpm, nº. CS7018, s./d.
EU não sou cachorro não. Universal Music, 2004.
FAUSTO. A Preto e Branco. CBS, nº. 4661272, 1989.
FAGNER, Raimundo. Traduzir-se. Sony Music, nº. 138.238, 1993 (1981).
______. Homenagem a Picasso. CBS. 33 rpm, stereo, n. 138.253, 1982.
GABRIELA: trilha sonora original. Rio de Janeiro: Som Livre, nº. 3013-2, 2001 (1975).
GODINHO, Sérgio. Coincidências. Polygram Portugal, nº. 518 872-2, 2001 (1983).
GODINHO, Sérgio. O irmão do meio. EMI/ Valentim de Carvalho, nº. 7243 5 81793 2 3,
2003.
GONZAGA JR., Luiz. De volta ao começo. Rio de Janeiro: EMI, 33 rpm, stereomono, n. 064
422863D, 1980.
HAROLDO Lobo: Nova História da Música Popular Brasileira. São Paulo: Abril Cultural, 33
rpm, stereomono, n. HMPB-15-B, 1977. (acompanha fascículo).
LEAL, Roberto. Roberto Leal. São Paulo: RGE/ Fermata, 33 rpm, stereomono, n. 303.0028,
1974.
LEÃO, Nara. A senha do novo Portugal. Portugal: Philips, 33 rpm, n. 6069111, 1974.
(compacto simples).
LEGIÃO Urbana. Uma outra estação. EMI Brasil, n º. 859321 2, 1997.
LOBO, Edu. Cantiga de Longe. CBD/ Elenco, 33 rpm, stereo, nº SE 1006, 1970.
LOPES-GRAÇA, Fernando. Canções Heróicas Canções Regionais Portuguesas. EMI
Classics, nº. 7 243 5 55501 2 5, 1998.
LOS JAIVAS. Los Sueños de América. Madrid: Movieplay, 33 rpm, stereo, 1979.
LOS JAIVAS. El Volantín. Santiago do Chile: RCA, 33 rpm, stereo, 1971.
329
MANOEL, Abilio. América Morena. Som Livre, 33 rpm, nº. 410.6010, 1976.
MARQUES, Dércio. Terra, Vento, Caminho, Kuarup, KCD-134, 1997 (1977).
MORON, Bibiano. Alcabre. Espana: CFE, 33 rpm, nº. ES-34124, 1977.
MPB-4 Coringas. Rio de Janeiro: Barclay Discos, 33 rpm, stereo, n. 823.330-1, 1984.
Nana Chaves, WEA/ Bandeirantes Discos, stereo, nº. BR 13013, 1980.
Nova História da MPB - João Bosco e Aldir Blanc. São Paulo: Abril Cultural, 33 rpm, stereo,
nº HMPB-04, 1976.
NOVA História da Música Popular Brasileira. Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. São
Paulo: Abril Cultural, 33 rpm, stereo, nº HMPB-49, 1978.
PAREDES, Carlos. Movimento Perpétuo. Columbia, 33 rpm, nº. 8E074–40150, 1971.
PASTOR, Luis. Vallecas. Madrid: Fonomusic, 1976.
Phono 73: O canto de um povo 2. Rio de Janeiro: CBD Phonogram, 33 rpm, stereo, n.
6349074, 1973.
PONTES, Dulce. Caminhos. Alpha Music/ Movieplay, nº. 7896410698059, 2002.
PONTES, Dulce. O primeiro canto. Polydor/ Universal Music, nº. 73145431352, 1999.
Portugal canta e dança no Brasil: Douro Coimbra Algarve. CBS/ Tropicana, v. 4, mono,
nº 01147, 1972.
REGINA, Elis. Falso Brilhante. Rio de Janeiro: Phillips, 33 rpm, stereo, nº 6349.159, 1976.
______. Elis. Rio de Janeiro: Philips, 33 rpm, stereo, n º 6349.032, 1972.
______. Elis. Rio de Janeiro: Philips, 33 rpm, stereo, n º 6349.121, 1974.
______. Elis. Rio de Janeiro: Philips, 33 rpm, stereo, 1973.
RIBAS, Paula. Fados Brasileiros. Discos Marcus Pereira, 33 rpm, MPL-1012, 1975.
RIBAS, Paula, N’GAMBI, Luís. Portugal Hoje. Discos Marcus Pereira, 33 rpm, nº. MPL
9330, 1974.
RICARDO, João. Musicar. Polygram, nº. 6349 418, 1979.
330
ROGÉRIO, José. Fios de Vida José Rogério Licks canta Mário Quintana, Porto Alegre,
1998.
______. Improviso, Are Musik, LC-9084, 1988.
______. Música da Rua, Are Musik, LC-9084, 1996.
______. Três Fontes, Are Musik, LC-9084, 1991.
RPM ao Vivo, Epic/CBS, 33 rpm, nº. 144500, 1986.
SEIXAS, Raul, COELHO, Paulo. O Rebu. Rio de Janeiro: Som Livre, 33 rpm, stereo, nº. 403-
6059, 1974.
SEIXAS, Raul. Krig-há, bandolo! Philips, 33 rpm, nº. 6349078, 1973.
SERRAT, Joan M. Dedicado a Antonio Machado, Poeta. Milán: Novola, 33 rpm, nº. NLX
1015, 1969.
VALENÇA, Alceu, AZEVEDO, Geraldo. Quadrafônico. Rio de Janeiro: Copacabana, 33
rpm, nº CLP11695, 1972.
ZÉ, Tom. Palavra Cantada. Trama, 2003, nº. T004/ 894-2.
331
LEVANTAMENTO DE FONTES/ PESQUISA DE CAMPO
BIBLIOTECAS CONSULTADAS
No Brasil:
Biblioteca do IFCH – UNICAMP; Biblioteca da UNESP/ Assis; Biblioteca do Arquivo
Público do Estado de São Paulo; Biblioteca da FFLCH e da ECA da Universidade de São
Paulo; Biblioteca Nacional e Gabinete Português de Leitura (Rio de Janeiro); Biblioteca do
Senado Federal e da mara Federal (em Brasília); Gabinete Português de Leitura (Recife);
Biblioteca da PUC e da UFRGS (Porto Alegre).
Em Portugal:
Universidade de Coimbra, Universidade de Évora e Universidade de Lisboa, Rede de
Bibliotecas Municipais de Lisboa, Biblioteca Municipal do Porto, Biblioteca Nacional
(Lisboa), Biblioteca Museu da Resistência (Lisboa), Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Na Espanha:
Universidades de: Valladolid, Salamanca, Santiago de Compostela e Complutense de Madrid;
Biblioteca Nacional de España.
ARQUIVOS PÚBLICOS E PRIVADOS
No Brasil:
Arquivo Nacional de Brasília/DF e do Rio de Janeiro;
CEDAP/ UNESP-Assis;
Arquivos dos DOPS de Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e
Paraíba.
Em Portugal:
Associação José Afonso – AJA (Lisboa)
Centro de Documentação 25 de abril (Coimbra)
Fundação Mário Soares (Lisboa)
Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo (Lisboa): Censura e PIDE.
Museu da República e da Resistência (Lisboa)
332
Rede Municipal de Bibliotecas de Lisboa.
Na Espanha:
Archivo General de la Administración (Madrid);
Arquivo pessoal do cantor Benedicto García Vilar – Galícia/ Espanha;
Archivo de la Guerra Civil Española (Salamanca).
ENTREVISTAS GRAVADAS
Alípio de Freitas Lisboa, 27 nov. 2004 - apesar de não ser músico, o ex-padre português foi
amigo de alguns músicos, como José Afonso que lhe escreveu uma música quando da sua
prisão no Brasil por ser um dos organizadores das Ligas Camponesas e por ter participado da
guerrilha urbana. Outro fato é que foi padrinho de um casamento que teve como madrinha
Elis Regina, que, segundo ele, meses antes de morrer, havia lhe falado que gravaria José
Afonso e que também afirmou ter contribuído financeiramente com grupos armados de
esquerda. É sempre lembrado como um dos suspeitos de ter arquitetado o atentado ao
Aeroporto de Guararapes em que o Presidente era o alvo principal, em 1966.
Benedicto Garcia Vilar Na Galícia/ Espanha, 30 out. 2004 - Músico galego, o líder da
chamada Nova Canção Galega e o responsável pela inserção dos músicos portugueses na
Galícia na década de 1970, tendo acompanhado José Afonso em inúmeros espetáculos pela
Espanha, Portugal, França, Suíça, entre outros;
Francisco Fanhais Lisboa, 13 nov. 2004 - Ex-padre que foi expulso da Igreja por suas
atividades de cantor de protesto e de opositor político ao regime salazarista e marcelista. Foi
um dos mais freqüentes companheiros de José Afonso em apresentações por todo Portugal e
pelo exterior. Foi, durante os últimos anos da ditadura, um dos mais vigiados músicos pela
PIDE/ DGS. Hoje é professor de música e continua participando de espetáculos
comemorativos ao 25 de Abril em Portugal e em outros países europeus;
Geraldo Azevedo Rio de Janeiro, 24 mar. 2005 - importante compositor brasileiro, parceiro
de Geraldo Vandré e preso duas vezes no Brasil pelo CENIMAR e pelo DOI- CODI, onde foi
torturado e testemunhou a morte de outro preso político. Em Recife, durante sua atuação no
movimento estudantil compôs um grupo musical ao lado de Naná Vasconcelos e Teca
Calazans;
José Jorge Letria – Lisboa, 16 nov. 2004 - Músico, estudioso da canção de protesto, jornalista
e ator de teatro no período, um dos mais citados nos processos de censura e um dos jornalistas
333
que participaram da organização da Revolução. Hoje é o vice-presidente da Sociedade
Portuguesa de Autores;
José Mário Branco Lisboa, 17 nov. 2004 - ex-ativista do PCP durante a ditadura, ex-preso
político, fugiu para o exílio na França e foi responsável por uma revolução” na canção
portuguesa com o lançamento de seu disco Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
(1971), além de seu trabalho como arranjador do também inovador disco de José Afonso, e do
mesmo ano. Considerado pelos músicos, ao lado de José Afonso e Sérgio Godinho, como um
dos grandes responsáveis pela moderna canção portuguesa;
José Rogério Licks Rio de Janeiro, 23-24 mar. 2004 - Músico natural do Rio Grande do Sul
e que esteve exilado no Chile, Argentina e Alemanha Ocidental;
Luís Cília Lisboa, 29 set. 2004 - Músico, exilado em Paris e o primeiro a compor canções
contra a guerra colonial, sendo no início da década de 1960 o maior nome no estrangeiro da
canção de protesto portuguesa, realizando inúmeros shows pela Europa, inclusive ao lado do
espanhol Paco Ibáñez. Foi o responsável pela inserção do músico cubano Carlos Puebla na
Europa, ao trazer um fonograma de Cuba, com a canção Hasta Siempre, gravada na França e
rapidamente elevada a ícone da canção de protesto. Hoje, o músico trabalha na criação de
trilhas para teatro, dança, cinema e televisão;
Manuel Freire Lisboa, 23 nov. 2004 Músico e autor de um dos maiores sucessos
radiofônicos da canção portuguesa, bem característica das canções interventivas de então,
também foi muito citado nos processos da PIDE/ DGS por suas atividades musicais de
oposição. Hoje é o Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores;
Raul Ellwanger Garopaba/ SC, 04 jan. 2006 - Também músico gaúcho, muito procurado
pelo DOPS e exilado na Argentina. Teve suas canções gravadas por Pablo Milanés, Mercedes
Sosa, Beth Carvalho e Elis Regina.
Ricardo Vilas Paris, 14 set. 2004 - Músico brasileiro e um dos ex-integrantes do grupo
musical Momento Quatro, de fins da década de 1960, e que ingressou na luta armada contra a
ditadura brasileira, sendo preso. Foi um dos trocados no seqüestro do embaixador norte-
americano em 1969 e foi exilado no México e depois na França. Neste país, teve contato com
músicos portugueses, entre eles o músico Luís Cília, que contribuiu para a assinatura do
primeiro contrato de Vilas (ao lado de sua então esposa Teca Calazans) com uma gravadora
francesa. Também participou de inúmeros movimentos em Paris de solidariedade às causas
sociais e de anistia. Também teve contato com o músico português Vitorino. Ao voltar ao
Brasil, no início da década de 1980, atuou na direção musical de dois programas de televisão
334
da Rede Globo, o Sítio do Pica Pau Amarelo e no Globo de Ouro. Em fins da década de 1980
decide voltar a viver em Paris;
Sérgio Godinho Lisboa, 20 out. 2004 - Músico e ator português, exilado na França (onde
atuou na peça Hair) e no Canadá. Viveu alguns meses no Brasil quando fazia parte do grupo
teatral internacional Living Theatre, até que a companhia fosse presa em Minas Gerais,
acusada de porte de drogas. Foram meses de prisão, o que rendeu uma expulsão sumária de
todos os atores estrangeiros, em resposta às campanhas internacionais pela libertação do
grupo. Foi preso novamente no Brasil, sendo desta vez torturado. É considerado o maior
compositor e intérprete da canção portuguesa em atividade;
Vitorino Lisboa, 20 out. 2004 - Músico e ex-militar que viveu em Paris e teve contato com
alguns músicos brasileiros nas apresentações contra as ditaduras e pela anistia em Portugal e
no Brasil. Estudioso da música popular portuguesa e um dos mais produtivos músicos em
atividade no país.
DEPOIMENTOS INFORMAIS
Em Portugal:
Ana Maria Colling Coimbra, 2004 - Historiadora brasileira que trabalhou com a
documentação do DOPS do Rio Grande do Sul, em particular, abordando a resistência das
mulheres na luta contra a ditadura brasileira, tema central de seu livro citado na bibliografia e
no corpo do texto. Nossa conversa ocorreu em Coimbra durante o VIII Congresso Luso-Afro-
Brasileiro de Ciências Sociais, em 2004, numa mesa que discutia os papéis das mulheres na
clandestinidade no Brasil e em Portugal;
António Brotas – Lisboa - Ex-preso político na PIDE e no DOPS/ Pernambuco;
António Loja Neves Lisboa - Jornalista e produtor cultural e que, na década de 1970,
organizou inúmeros shows dos cantores de intervenção;
Carlos do Carmo – Lisboa/ Cintra - Cantor e o grande nome do fado português, como
intérprete e estudioso;
Eduardo Raposo Lisboa - Historiador da música portuguesa e autor da única dissertação
sobre a canção de intervenção portuguesa;
Isabel do Carmo Lisboa - Ex-presa da PIDE e ex-militante de organização armada de
esquerda.
335
Ivan Lins Cintra, 2004 - Músico brasileiro que manteve contatos com músicos portugueses
depois do 25 de abril;
João Afonso – Lisboa - Músico e sobrinho de José Afonso, desenvolve projetos em Portugal e
Espanha ao lado músicos como o brasileiro Chico César;
João Medina Lisboa - Historiador especialista em Salazar e cultura portuguesa
contemporânea;
José Fanha – Lisboa - Poeta e organizador de espetáculos em Portugal;
José Viale Moutinho – Lisboa - Jornalista e especialista em música popular portuguesa;
Luis Pastor Lisboa - Cantor espanhol e parceiro de inúmeros músicos portugueses, em
particular Zeca Afonso;
Miguel Urbano Rodrigues Lisboa - Jornalista, ativista internacionalmente conhecido e ex-
preso no DOPS de São Paulo, irmão do escritor Urbano Tavares Rodrigues;
Ruben Carvalho Lisboa - Estudioso da música popular mundial e diretor musical da Festa
do Avante do PCP;
Urbano Tavares Rodrigues Lisboa - Escritor e jornalista, autor de poemas musicados e ex-
preso político em Portugal e cuja ficha política consultamos no arquivo da PIDE;
Viriato Teles – Lisboa - Jornalista, produtor de TV e historiador da música portuguesa;
No Brasil:
- Pessoalmente:
João Bosco Toledo/ PR - Cantor brasileiro que participou do disco de Sérgio Godinho
intitulado Coincidências;
João Carlos da Silva Cascavel/ PR - Professor universitário e ex-radialista da Rádio Cultura
da cidade de Maringá, Paraná, durante a transição democrática. Relatou ao autor que
inúmeros discos tinham faixas riscadas, tanto pelas proibições da Censura quanto pela posição
política da diretora da empresa em questão e que isso era comum também em outras rádios;
Paulo Thiago de Mello Rio de Janeiro - Jornalista brasileiro do jornal O Globo, sobrinho do
poeta Thiago de Mello e primo do músico Manduka (Alexandre Manuel Thiago de Mello),
sobre quem prepara um livro e que está montando um projeto de documentário junto com o
filho de Glauber Rocha, o Erik Rocha;
- Por correspondência eletrônica:
336
Crispin del Cistia Ex-integrante da banda que acompanhava Elis Regina, como no
espetáculo Falso Brilhante.
Eliana Lorentz Chaves (Nana Chaves) Cantora, ex-integrante da VPR, ex-presa política,
exilada na Argentina e participante do grupo musical Caldo de Cana. Hoje atua no campo da
Psicologia.
Imyra - Filha do músico Taiguara que repassou uma série de documentos e informações sobre
seu pai.
Ruy Faria Ex-MPB-4, um dos maiores agitadores culturais no campo da música desde fins
da década de 1960.
Tânia Pinto – Professora de Comunicação e esposa do músico João Ricardo (Secos &
Molhados) e que intermediou seu breve depoimento ao autor.
Por via telefônica:
Leopoldo Paulino – Músico, ex-integrante da ALN e vereador.
Abílio Manoel Músico português radicado em São Paulo desde a infância, ex-participante
de festivais da canção, radialista e diretor de cinema.
Dércio Marques – Músico com forte inserção nas raízes populares brasileiras e na nova
canção latino-americana, um dos que mais gravou os músicos portugueses no Brasil.
Frederico Mendonça (ou Fredera) Ex-integrante do grupo Som Imaginário, atua na área da
música instrumental e escreveu um livro sobre o desaparecimento de seu amigo Tenório Jr. na
Argentina.
PALESTRAS ASSISTIDAS EM PORTUGAL
António Lobo Antunes
José Saramago
Urbano Tavares Rodrigues
Miguel Urbano Rodrigues
Ramalho Eanes
Ruben de Carvalho
337
ANEXOS
338
Relação das canções portuguesas ou brasileiras em homenagem a Portugal, lançadas no Brasil
pela Gravadora Marcus Pereira:
PORTUGAL HOJE - Paula Ribas e Luís N'Gambi - 403.5018 (RCA) / MPL-1010 (Copacabana 1) /
MPL-9330 (Copacabana 2) LP
001. Grândola, Vila Morena (José Afonso)
002. Eu vou ser como a toupeira (José Afonso)
003. Maria Faia (adapt. e arr. Luís N' Gambi)
004. Epígrafe para a arte de furtar (Jorge Sena; José Afonso)
005. Canto Moço (José Afonso)
006. Traz outro amigo também (José Afonso)
007. Avenida de Angola (José Afonso)
008. Por trás daquela janela (José Afonso)
009. Moda do Entrudo (adapt. e arr. Luís N' Gambi)
010. No comboio descendente (Fernando Pessoa; José Afonso)
011. Canção do Desterro (José Afonso)
012. A caminho de Urga (José Afonso)
FADOS BRASILEIROS - Paula Ribas - 403.5020 (RCA) / MPL-1012 (Copacabana 1) / MPL-9331
(Copacabana 2) LP, 1975.
001. Saudades do Brasil em Portugal (Vinicius de Moraes; Homem Cristo)
002. As mãos que trago (Cecília Meireles; Alain Oulman)
003. Calvário (Marcos Calazans; Cau Pimentel)
004. Tremendos enganos (Walter Marques)
005. Saudade-esperança (Chico Alves; Luiz Iglésias)
006. Fado Tropical (Chico Buarque de Holanda; Rui Guerra)
007. As dádivas (Carlos Pena Filho; Eduardo Gudin)
008. Naufrágio (Cecília Meireles; Alain Oulman)
009. A solidão e sua porta (Carlos Pena Filho; Luís N'Gambi)
010. Argonautas (Caetano Veloso)
011. Francisca Santos das Flores (Dorival Caymmi)
012. Barco negro (Caco Velho; Piratini)
339
Letras de canções de José Rogério Licks (Gaúcho) que fizeram parte dos shows do
Caldo de Cana, fornecidas pelo autor e com comentários deste:
1-Canción del refugiado (Tierra mía)
“Era a que abria o show no Teatro Latino em Buenos Aires”.
Sí, esta tierra es tan linda,
su pueblo es tan pueblo como el de mi hogar...
Sí, yo agradezco esta tierra
vivir nuevamente y de nuevo esperar...
Pero es que allá he dejado
la gente sufrida que me acompanó.
Allá quedaron mis muertos
en la tierra herida de amor que cayó.
Tierra lejana y tan mía,
escupida de agravios no más estarás.
Y en la semilla de sangre
de todos tus muertos
renacerás,
renacerás.
2 - A Travessia do Mar – “Na iminência de partir para o exílio”.
Vamos seguindo...
Vamos seguindo esta caminhada pro mar.
À beira deste caminho
os gritos debaixo das pedras não param de gritar...
É tudo o que temos prá levar
do tempo da grande promessa,
dos punhos erguidos no ar...
O sangue ficou derramado nas ruas
e ninguém vai apagar.
Vamos seguindo...
Vamos seguindo esta caminhada pro mar.
3 - Catavento da Esperança – “Rabiscada a bordo do avião rumo à Alemanha”.
Monstro sonâmbulo,
Este avião aonde me levará?
Vejo luzes lá embaixo,
Pode ser o meu lugar...
Ou ilha perdida
No turbilhão desta noite
A me esperar...
Daqui de cima
Minha vida se resume,
Lá embaixo está o Bojador
E eu vou sonhando um novo amor
Capaz de afagar
340
As minhas mãos imprudentes
Sem perguntar...
Sem se inquietar
Com o que vem pela frente,
Sei que num dia radiante
Eu voltarei pro meu lugar.
(A loura serpente
com sua bandeija de ouro
já vem aí me tentar)
Rosa dos mistérios,
Dos meus tempos de criança,
Catavento da esperança
Tá girando, tá dizendo:
A estrela abrirá
Caminho na escuridao
Prá me beijar.
Um beijo merecido
Prá quem vai perder seu lar
E aí vai sonhando com pescar
Da profundeza abismal:
Navios afundados
E os corpos dos afogados
Das guerras do bem contra o mal.
341
Mulher da Erva (José Afonso)
Velha da terra morena
Pensa que e já lua cheia
Vela que a onda condena
Feita em pedaços na areia
Saia rota
Subindo a estrada
Inda a noite
Rompendo vem
A mulher
Pega na braçada
De erva fresca
Supremo bem
Canta a rola
Numa ramada
Pela estrada
Vai a mulher
Meu senhor
Nesta caminhada
Nem m'alembra
Do amanhecer
Há quem viva
Sem dar por nada
Há quem morra
Sem tal saber
Velha ardida
Velha queimada
Vende a fruta
Se queres comer
A noitinha
A mulher alcança
Quem lhe compra
Do seu manjar
Para dar
À cabrinha mansa
Erva fresca
Da cor do mar
Na calçada
Uma mancha negra
Cobriu tudo
E ali ficou
Anda, velha
Da saia preta
Flor que ao vento
No chão tombou
No Inverno
Terás fartura
Da erva fora
Supremo bem
Canta rola
Tua amargura
Manhã moça
... nunca mais vem.
342
Artigo de Cristina Portas sobre exilados que estavam na Embaixada da Argentina e que
ao chegarem á Argentina ficaram presos num hotel de Ezeíza:
UN NACIMIENTO EN EZEIZA
Esta es la historia de las circunstancias en que nació una niña en el Hotel Internacional de
Ezeiza, convertido en cárcel, en Buenos Aires, República Argentina, en los primeros días del
mes de octubre de 1973.
Fue en el momento en que pasaron diciéndonos que cantáramos más alto, más fuerte, fue ahí
que empezó a nacer.
Estábamos como siempre, como todos los días desde que habíamos llegado y nos habían
metido de a cuatro en habitaciones para dos, de a seis en las que eran para tres; sólo que ya
habían pasado los días en que, dos veces en el transcurso de la noche, abrían a patadas (a
botazos, debiera decir) las puertas de los cuartos, encendían la luz y, apuntándonos, nos
contaban en voz alta y concluían a los gritos “están todos”.
¿Pensaban que podíamos fugarnos? Evidentemente sí.
Estábamos como siempre, sentados en el piso del pasillo en grupitos diversos.
No eran fogones o cosa por el estilo lo que nos agrupaba.
No hay fogones en los hoteles; como tampoco había ningún hogar a leña, puesto que el
ámbito de circulación que teníamos permitido se reducía a los dormitorios, el pasillo y un
comedor inventado en la planta baja, a la que accedíamos sólo a la hora de las comidas que
eran tres: desayuno, almuerzo y cena, si es que ase les podía llamar, dada la infame calidad
de lo poco y nauseabundo que nos servían, pero esto es otra historia, y no quiero desviarme
porque ya pasaron 30 años y los recuerdos están siempre ahí, pero a veces disparan como si
mi cabeza los asustara, y quiero contar cómo fue que empezó a nacer.
Los “fogones” eran los temas de conversación, eran las diferentes filiaciones políticas, eran
las nacionalidades, y eran las guitarras que nos habían permitido sacar de Chile cuando el
ciclón del golpe de estado del 11 de septiembre del 73 nos arrancó de cuajo y nos dispersó por
el mundo.
En las circunstancias que narro, éramos unos cuarenta, no recuerdo exactamente.
En realidad, los que tenían guitarras eran, mayoritariamente, brasileros y chilenos.
Los uruguayos y argentinos ( a estos últimos los liberaron enseguida, al fin y al cabo estaban
en su patria, bueno fuera que no) que yo recuerde, no teníamos ningún instrumento musical.
Eso fue lo que determinó que empezáramos a mezclarnos, las guitarras nos juntaron en voces
rioplatenses, chilenas, brasileras, cubanas, colombianas, peruanas. Y así, en aquella torre de
babel donde el colonialismo había plantado el huevo idiomático, las habitaciones y el largo
corredor se convirtieron -pese a la presencia de los soldados armados con ametralladoras- en
peñas donde Latinoamérica insurrecta, prisionera en el Hotel Internacional del aeropuerto de
Ezeiza, resistía a la desolación, el miedo y el desamparo.
Fue un mediodía, o tal vez una tarde - cuando arremolinados en grupitos cantábamos
canciones de Vinicius, de Víctor Jara, de Toquiño, de Violeta Parra, de Viglietti, de Soledad
Bravo, de Zitarrosa, que un par de compañeros empezaron a pasar y a pedirnos, en voz baja,
que cantáramos más fuerte, más alto.
En el momento no supimos de qué se trataba, pero algo en el pedido, tal vez lo perentorio del
tono, quizá aquella confianza de gente acostumbrada a responderle a la vida desde lo
colectivo, lo solidario, hizo que aceptáramos con naturalidad el asunto.
Al fin y al cabo la situación toda, era muy loca, ya que nadie entendía porqué la embajada
argentina nos había asilado- y embarcado en un avión de la Fuerza Aérea que nos llevó por
343
encima de los Andes con una ración de un huevo duro por cabeza (yo le di el mío a un flaco
que estaba sentado a mi lado con cara de “me muero”, lo cual no me convierte en heroína,
sino en alguien que tenía el estómago ahíto de miedo y obedecía a reflejos de compañerismo)
para dejarnos presos ni bien pusimos un pie en territorio argentino, el 1 de octubre de 1973.
En la desesperada búsqueda de salvación, jugaba la esperanza de que llegábamos al territorio
de un pueblo que esperaba, eufórico, la llegada del General Perón para terminar con años de
dictadura crónica. ¿Salíamos del infierno para caer en el purgatorio?. Aparentemente sí.
Los análisis sobre coyuntura de transición y las complejidades de la política argentina, fue
algo que empezamos a vislumbrar mientras esperábamos en fila -apuntados por soldados
armados a guerra- para ser interrogados, fichados y fotografiados (cuatro de perfil y cuatro de
frente) desde que aterrizamos a la medianoche, hasta que nos mandaron a dormir, cinco horas
después.
Cantamos, entonces, cada vez más alto, más fuerte. Cuando aquello era ya un coro donde
retumbaban voces de todos los rincones y las guitarras (y alguna que otra improvisada
maraca brasilera) se desgañitaban en medio de una incógnita indomable, pasaron nuevamente
los compañeros. Y dijeron.
-Ya pueden aflojar. El hijo de Francisco y Cristina ya nació. Es una nenita.
Hubo, si es que hubo, una fracción de silencio por el que se filtró el vagido de la nueva
compañerita de exilio.
Inmediatamente, de algún lado se elevó una voz que empezó a cantar “Palabras para Julia”.
Las voces galopaban a lo largo del pasillo donde los soldados se revolvieron inquietos.
“Y si algún día te sientes perdida o sola
acuérdate lo que un día yo escribí
pensando en ti, pensando en ti
como ahora pienso...”
Y más allá, sonaba una canción de Viglietti...
“Niño, mi niño, vendrás en primavera te traeré
gurisito lindo, collar de madreselvas yo te haré”
Y fue una fiesta, cargada de incertidumbres, de locura, de atropellados temores, de preguntas
sin respuestas, pero fue.
Fue la fiesta de los náufragos que éramos, con un bote salvavidas, al menos para Francisco y
Cristina, sobrevivientes del golpe de estado uruguayo y luego del chileno.
Le habíamos ganado a la orden de las autoridades de inmigración quienes le habían prohibido
a la madre que parieran su hijo en Argentina, no fuera cosa que tuvieran que otorgarle el
derecho (constitucional) de permanecer en el territorio de su hijo argentino, argentinita, dado
el resultado.
Debo decir que, ante las presiones recibidas por los padres para que abandonaran el país antes
del parto, la fecha del mismo había sido alterada en las declaraciones y que, para más
seguridad, la mayoría de nosotros ignoraba (pese al tamaño del vientre de la compañera) la
proximidad del nacimiento.
El parto se realizó en una de las habitaciones del hotel, en una cama común. Asistieron a la
compañera, la médica-ginecóloga a quien permitían entrar para los controles rutinarios, y otro
médico que ingresó al hotel ocultando su condición de tal.
Finalmente, luego de casi un mes de confinamiento, alrededor del 30 de noviembre el
parlamento votó un Habeas Corpus y nos dieron la salida, no así la residencia.
Fueron muchos los que nos visitaron, ayudaron y abogaron por nosotros en casi un mes que
estuvimos en el cuartel de lujo.
Recuerdo a Zelmar Michelini, y Enrique Erro, parlamentarios uruguayos, a quienes el
régimen de facto instituido en Uruguay en ese año de 1973 obligaba a permanecer en
Argentina (el primero de ellos asesinado luego en el año 1976); los argentinos Héctor Sandler,
344
abogado y diputado nacional, así como Eduardo Luis Duhalde, abogado defensor de presos
políticos durante la dictadura de Onganía y otro abogado, de apellido Yacub, quien s
adelante fue “desaparecido”. Y como éstos, tantos otros argentinos como ellos, de corazón–
cabeza sin fronteras, cuyos nombres la memoria me escamotea, y que estén donde estén,
ojalá puedan disculparme.
Cuando nos liberaron, a condición de abandonar de inmediato el territorio argentino,
iniciamos un largo peregrinaje en busca de soluciones para quedarnos, pero esa es otra
historia.
Yo tenía veintiún años, cumplidos en julio de ese mismo año, en Santiago de Chile.
Cristina Porta / escrito en el año 2003.
Escritos Documentales/ Ediciones del Movimiento, 2004.
345
EXEMPLOS DE DOCUMENTOS
DA CENSURA E DA REPRESSÃO
DO BRASIL E DE PORTUGAL
346
FONTE: Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas – Arquivo Nacional/ Brasília
347
FONTE: Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas – Arquivo Nacional/ Brasília
348
FONTE: Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas – Arquivo Nacional/ Brasília
349
FONTE: Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo - Arquivo da Censura
350
FONTE: Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo - Arquivo da Censura
351
FONTE: Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo - Arquivo da PIDE/ DGS
352
FONTE: Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo - Arquivo da PIDE/ DGS
353
FONTE: Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo - Arquivo da PIDE/ DGS
354
FONTE: Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo - Arquivo da PIDE/ DGS
355
FONTE: Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo - Arquivo da PIDE/ DGS
356
Arquivo do DOPS/PR, Arquivo Público do Paraná
357
FONTE: Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas – Arquivo Nacional/ Brasília
358
FONTE: Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas – Arquivo Nacional/ Brasília
359
FONTE: Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas – Arquivo Nacional/ Brasília
360
FONTE: Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas – Arquivo Nacional/ Brasília
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo