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SÍLVIO JOSÉ STESSUK
MAGMA
:
BREVIÁRIO DE ROSA
ASSIS
2006
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2
SÍLVIO JOSÉ STESSUK
MAGMA
:
BREVIÁRIO DE ROSA
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis UNESP Universidade Es-
tadual Paulista, para a obtenção do título de
Doutor em Letras (Área de Conhecimento:
Literatura e Vida Social).
Orientador: Prof. Dr.
ÍGOR ROSSONI
Assis
2006
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3
SÍLVIO JOSÉ STESSUK
MAGMA
:
Breviário de Rosa
COMISSÃO JULGADORA
TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR
Presidente e Orientador.................................................................................................................
Examinador...............................................................................................................................
Examinador...............................................................................................................................
Examinador...............................................................................................................................
Examinador...............................................................................................................................
4
STESSUK, Sílvio José. Magma: Breviário de Rosa. Assis, 2006. Tese (Doutorado em Letras)
Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus de Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho.
RESUMO: Magma é o volume de poemas que marcou a estréia literária de João Guimarães
Rosa, tendo no entanto permanecido inédito por mais de sessenta anos e sido até o momento
relegado à marginalidade pela maior parte da crítica. O presente trabalho tem como objetivo
contribuir para o resgate desse livro, bem como levantar, no discurso do mesmo, elementos
úteis para o reconhecimento da sua inserção ideológica no conjunto da obra do autor. Com
esse intento, procede-se à análise do universo simbológico plasmado por seus textos compo-
nentes, através do que se consegue identificar em Magma a inquietação anagógica que é o
cerne da literatura rosiana.
Palavras-chave: Guimarães Rosa; Poesia; anagogia; iniciação; simbologia.
5
STESSUK, Sílvio José. Magma: Rosas Breviary. Assis, 2006. Tese (Doutorado em Letras)
Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus de Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho.
ABSTRACT: Magma is the poems volume that set out the literary debut of João Guimarães
Rosa, although have stayed inedited over sixty years and until now have been discarded by
the majority of the critique. The aim of the present work is to contribute to the ransom of that
book and to find in its discourse able factors to its insertion into the whole author production.
With that purpose, is accomplished the analysis of the symbological universe shaped by its
component texts, with what is possible to identify in Magma the anagogical inquietud that is
the pith of the Guimarães Rosa literature.
Keywords: Guimarães Rosa; Poetry; anagoge; initiation; symbology.
6
Para
Conchy e as (três) pérolas,
Meus pais, Simey e Elza,
Meus irmãos Sérgio, Evely e Duda,
Os Profs. Drs.
Ígor Rossoni,
Jeane Mari SantAna Spera e
José Carlos Zamboni
E Dom Manuel Bueno
7
Esfoo-me por fazer elevar o que há de divino
em mim até ao que há de divino no Universo.
PLOTINO, in extremis
Feliz, entre os homens da terra, aquele que tem
a visão destes mistérios.
HOMERO
8
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
......................................................................................................................11
1. Apresentação
......................................................................................................................11
2.
Objetivo
...............................................................................................................................14
3. todo
.................................................................................................................................20
4.
Corpus ..................................................................................................................................23
CAPÍTULO
I.
O
POEMA
VESTIBULAR
E
A
ESTRUTURA
DE
MAGMA
....................26
1.
O poeta reza...”
.................................................................................................................27
2.
“... o rosário, conta a conta...”
..........................................................................................32
2.1. O rosário: jardim...
................................................................................................36
2.2.
O rosário: ... de rosas
.............................................................................................42
3. “..., e o fio corre por dentro...”
..........................................................................................45
3.1.
O magma íntimo”
................................................................................................48
4.
“..., sem que o poeta o veja, sem que o sinta, sem que o desminta.”
..............................58
CAPÍTULO II. “A HORA DA VOSSA FUGA
.................................................................69
1.
Nascimento: os poemas hidráulicos
..................................................................................76
2.
Ritmos selvagens: a liberdade em Turbulência”
.....................................................104
3. A ponte do arco-íris
..........................................................................................................142
4. Viagem de trem
.................................................................................................................157
CAPÍTULO III. “DISTÂNCIA SENTIMENTAL
..........................................................170
1. “Iniciação” aos Grandes Mistérios
.................................................................................187
2.
Cantares de amor e medo
................................................................................................193
3. Jardim onírico
..................................................................................................................207
4.
A
terrível parábola”: Morte
..........................................................................................224
CAPÍTULO
IV. A INTEGRAÇÃONA CONSCIÊNCIA CÓSMICA
...................237
1.
Desenho octogonal
........................................................................................................241
2.
Manhã de finados
.........................................................................................................315
3. A
noite escura
...................................................................................................................358
4.
Renascimento
...................................................................................................................402
CONCLUSÃO
......................................................................................................................449
LISTA DOS POEMAS DE
MAGMA
..................................................................................468
BIBLIOGRAFIA
..................................................................................................................469
9
10
G M S O
A A A R
;
M I A S
M V E N
11
INTRODUÇÃO
1. APRESENTAÇÃO
Em 1936, um jovem e então desconhecido poeta mineiro ganhou, com um pe-
queno volume de poemas intitulado Magma, o primeiro prêmio num Concurso de Poesia
promovido pela Academia Brasileira de Letras. Esse livro, e destarte seu autor, causou desde
logo profunda impressão em quantos o leram à época, a tal ponto que assim se expressou o
acadêmico Guilherme de Almeida em seu parecer à Comissão Julgadora:
Vinte e quatro foram os originais, a mim apresentados, que este ano se ins-
creveram no Concurso de Poesia da Academia.
A todos esses trabalhos dediquei, na leitura, uma firme, livre e igual atenção.
Fiz-me assistir, no cuidadoso exame, por um único, bem simples critério: buscar e
premiar poesia, poesia autêntica e completa, que é beleza no sentir, no pensar e no
dizer.
Ora, a meu ver, um único, dentre os trabalhos apresentados, tem isso, e no
mais puro, elevado grau. Poesia que está sozinha – parece-me no atual momento
literário brasileiro. Neste, como em qualquer outro torneio, tal obra mereceria sem-
pre um primeiro prêmio. E tão altamente distanciada paira ela sobre as demais, que
não me parece possível a concessão, a qualquer outra, de um aproximador segundo
prêmio. É o livro Magma (...), inscrito sob o nº 8. Pura, esplêndida poesia. Descobre-
se aí um poeta, um verdadeiro poeta: o poeta, talvez, de que o nosso instante precisa-
va.
Nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma naturalidade livre de
vegetal em ascensão, Magma é poesia centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao
resto do mundo uma síntese perfeita do que temos e somos.
1
O parecer, que prossegue no tom de elogios arrebatados aos poemas de Mag-
ma, e sua conclusão de que não se concedesse a ninguém um segundo prêmio, dada a distân-
cia entre esse e os demais concorrentes, receberam o de acordode Laudelino Freire, presi-
dente da Comissão Julgadora.
A opinião de Guilherme de Almeida a respeito do autor de Magma revelou-se
como um verdadeiro vaticínio: o jovem poeta “de que o nosso instante precisava, indo adi-
ante na carreira de letras, viria a produzir um magistral conjunto de obra que marcaria indele-
1
ALMEIDA, 23. Tb. in: ROSA, 2, págs. 6-7 (trecho) e GUIMARÃES, 49, pág. 97 (trecho final). Esclaro que
doravante, nas notas de rodapé, as o nome do autor ou o título da obra, o primeiro número referir-se-á sempre
à posição da mesma na bibliografia ao final do trabalho e o(s) segundo(s) sempre à(s) página(s) da fonte onde se
localiza a citação. Excetuam-se as transcrições bíblicas e as do Bhagavad Gita, do Tao Te Ching e das Enéadas
plotinianas, casos em que serão seguidos os sistemas usuais para localização de excertos em cada um desses li-
vros, sem a necessidade de indicação de páginas.
12
velmente a literatura brasileira e que, traduzido para diversas outras nguas, faria com que seu
autor viesse a ocupar um lugar de destaque no palco literário mundial do século XX. O nome
desse poeta é João Guimarães Rosa.
A obra rosiana é hoje por demais conhecida, mas convém trazer à lembrança
seus títulos e as respectivas datas de publicação: em 1946, idos dez anos desde a premiação de
Magma pela Academia, vem a lume Sagarana; em 1956 são publicados Corpo de baile (divi-
dido, a partir da 3ª edição, nos tomos Manuelzão e Miguilim, 1964, No Urubuquaquá, no Pi-
nhém, 1965, e Noites do sertão, idem) e Grande Sertão: veredas; 1962 é o ano de Primeiras
estórias; 1967, o de Tutaméia; e em seguida são postumamente editados os volumes Estas
estórias (1969) e Ave, Palavra (1970), ambos organizados por Paulo Rónai com base em tex-
tos alguns inéditos, outros já impressos de forma esparsa e esboços de índices havidos no
eslio de Guimarães Rosa.
Importa também recordar que, embora o escritor mineiro seja na atualidade um
literato festejado, e mais, verdadeiramente iconizado, é certo que o seu estilo inovador e
mesmo a sua progressão estilística chegaram a enfrentar críticas as mais destemperadas. Sa-
garana, por exemplo, quando de sua publicação causou rumor e controvérsia, dividindo a crí-
tica aturdida, eis que enquanto alguns de imediato reconheciam com prazerosa surpresa a re-
volução lingüística e a forte dimensão anagógica da narrativa poética guimarrosiana, outros a
incompreenderam, tachando-lhe a linguagem de esteticista e estéril, apenas um modismo mo-
dernista que, pensaram, haveria de passar. Dez anos depois, Grande Sertão: veredas obteve
uma acolhida mais entusiástica, não faltando porém quem dentre os aplausos o chamasse de
abstruso romance para filólogos, tentando pregar-lhe a pecha de eruditismo alienado. E
mesmo Tutaméia, que agora é tida pela crítica mais lúcida como a mais coerente experiência
poética realizada por Guimarães Rosa, nasceu sob o signo da polêmica: muitos foram os que
se perderam nesse desconcertante labirinto léxico, ignorando que o fio de Ariadne não se en-
contra propriamente na lógica da linguagem, e sim na stica da Poesia. Na vertigem do des-
norteio, houve quem chegasse a afirmar:
Guimarães Rosa em Tutaméia opta pelo anetico em seu sentido mais pal-
mar e trivial. Abandona a estóriapela estoriinha, digamos assim, e, diminuindo
as altas pressões a que submetia a sua linguagem nos píncaros em que um romantis-
mo onírico tornava o ar rarefeito, desce ao nível desse mar morto (diria pântano), no
qual pachorrentamente estadeiam-se as flores tristes e pobres de um trivialíssimo a
cujo significado ascendem todos e que não necessita para sobreviver do talento genial
de um escritor de visão universal como é Rosa.
De Guimarães Rosa, após as Primeiras estórias, não se poderia admitir uma
relativização das forças novesticas, uma redução do poder encantatório e mágico,
um restringir-se à exclusiva e inócua liberdade de deflagrar um instrumento linísti-
13
co poderoso e inusitado sem atribuir-lhe um significado maior, uma força de desve-
lamento que o justifique. É infelizmente o que se com
Tutaméia
.
(...) Como que perdendo a fé nas possibilidades de uma criação que transcen-
da os estritos e reduzidos limites da literatura para tentar a grande aventura do mer-
gulho no inconsciente coletivo e na mitologia, Guimarães Rosa permite-se agora uni-
camente a construção de vazios edicios vocabulares, cada vez mais ininteligíveis ao
leitor comum, cada vez menos plenos dessa substância que era sua, do sutil gênero
de fatos, para usar suas próprias palavras, a marca mais individual e profunda da
sua grandeza.
(...)
Tutaméia
(...) não é mais do que o repousante
divertissement
de um es-
critor genial.
2
Entrementes
Magma
, o louvado livro de 1936, permaneceu inédito até 1997,
quando obteve afinal a primeira edição, trinta anos as a morte do autor. Esse volume de
poemas ocupa, no quadro das obras de Guimarães Rosa, uma posição peculiar: é, ao que
consta, ao mesmo tempo o seu primeiro e último livro,
i. e.
, o primeiro a ser escrito e conce-
bido como uma estrutura e o último a ser publicado, servindo portanto como abertura e fecho
de toda a produção literária rosiana. O poeta pôde assim, quer conscientemente, quer sob a
ação da
soroptimícia
3
, fazer da própria obra uma representação do Infinito, cujo desenho do
símbolo implica num movimento de sinuoso retorno ao ponto de partida um S, que começa
grande frase”
4
e que, duplicando-se ou refletindo-se em espelho, torna invertido sobre si
mesmo, arrematando em quiasmo a
figura serpentinata
do discurso:
\
2
J. G. N. Moitinho,
apud
BALBUENA, 28, 54-55. É interessante notar a flagrante contradição que fragiliza o
comentário crítico: sobre a linguagem, em dado momento fala-se num trivialíssimo
a cujo significado ascendem
todos
, para logo à frente serem denunciados os vazios edifícios vocabulares,
cada vez mais ininteligíveis ao
leitor comum
... Censura-se assim Guimarães Rosa, a um tempo, por exoterismo e por esoterismo.
3
Guimarães Rosa, as falar sobre a chance de topar, sem busca, pessoas, coisas e informões urgentemente
necessárias, explica: Meu colega amigo Dayrell, do Serro-Frio, faz tempo contara-me que isso, transposto do
inglês, chamar-se-ia soroptimícia. Num hotel, fio que no Baglioni de Florença, li numa porta Soroptimist
Clube vi-me em reunião da sociedade internacional, espécie de Rotary feminino. Só mais tarde, no
Brewer´s
Dictionary of Phrase & Fable
, encontrei o nome: SERENDIPITY. Feliz neologismo cunhado por Horace Wal-
pole para designar a faculdade de fazer por acaso afortunadas e inesperadas descobertas. Numa carta a Mann
(28 de janeiro de 1754) ele diz tê-lo tirado do título de um conto de fadas,
Os três príncipes de Serendip
que
estavam sempre obrando achados, por acidente ou sagacidade, de coisas que não procuravam.(ROSA, 12,
157, nota de rodapé; Sobre a escova e a dúvida”).
4
Sobre esse fragmento de O recado do morro,
FERREIRA (46, 31) comenta, em nota de rodapé: Se procu-
rarmos, no trecho que diz desde ali, o ocre da estrada, como de costume, é um S, que começa grande frase(...),
um sentido cabastico, chegaremos até ele a partir do
Samekh
(S), que simboliza o movimento circular, a reno-
vação cíclica, o mesmo S de surreição(...), a última etapa a ser atingida pelos privilegiados durante a longa vi-
agem. Mas também pode ser S de Sertão, como se vê em
Grande Sertão: Veredas
: ... e dele disse somentes
S
...
Sertão... Sertão...
(...), (Grifos do autor), ou ainda de Satanás.
14
2. OBJETIVO
Quem não consegue ver uma palavra não consegue ver
uma alma.
FERNANDO PESSOA
Ao arrepio da calorosa acolhida que lhe marcou a estréia em concurso, quando
da publicação o primeiro título de Guimarães Rosa
foi recebido com desanimada frieza: críti-
cas apressadas de pronto rotularam-no de “simples curiosidade” e, sem se dar ao trabalho de
enfrentar esse
Magma
, descuidadamente consideraram-no obra menor, sem qualquer valor
em face do gigantismo da literatura rosiana, relegando-o ao plano secundário dos exotismos.
Diante disso, faz-se oportuna uma nova leitura compreensiva que venha contri-
buir para resgatar o escrito do limbo literário ao qual têm tentado condená-lo algumas críticas
que representam ter optado apenas pela superfície: urge imergir no
Magma
poético do jovem
Guimarães Rosa e desvendar o real valor intrínseco dessa obra inaugural. Uma vez assente tal
valor,
Magma
pode ser definitivamente acionado como nova ferramenta hábil para uma com-
preensão mais profunda e atualizada do universo de pensamento do poeta mineiro, perfazen-
do-se assim o valor extrínseco do livro ao lado das outras obras do quadro literário guimarro-
siano.
Onde, porém, repousam tais valores intrínseco e extrínseco em
Magma
?
Não divulga novidade, para quem está a par da melhor crítica, o conhecimento
de que a obra de Guimarães Rosa, desde
Sagarana
até
Tutaméia
, tem como precípua razão de
ser o que se pode chamar de
intencionalidade anagógica
: a palavra, acionada poeticamente,
deve servir tanto ao autor quanto ao leitor como um trampolim para que a alma humana su-
pere limites e ascenda – ou transcenda – , retornando assim à sua origem divina. Essa intenci-
onalidade é, de fato, a longarina em função do que se ergue todo o arcabouço textual rosiano,
o qual se caracteriza, materialmente, pela extrema riqueza de inventividade léxica ou ousadia
verbal
5
. Nessa conjuntura se compreende que tal inventividade léxica pica do Guimarães
Rosa maduro, longe de se afigurar como um inconseqüente exercício filológico, é em realida-
de o resultado que ao longo da progressão estilística do autor se ims como a única solução
possível para que a palavra pudesse expressar otimamente a complexidade do pensamento
stico e poético do qual a própria palavra é apenas a manifestação sensível. Em decorrência,
é consentido afirmar que na obra guimarrosiana cada novela e conto, cada verso, cada frase,
cada palavra escrita insere-se num ambicioso empreendimento stico e estético que tem por
5
Valho-me do termo cunhado por SPERA, 85.
15
instrumento a ngua e por escopo a transcendência do ser humano, cuidando-se então de uma
teoria mágica da linguagem concebida como um poético itinerarium mentis ad Deum
6
. Nas
palavras do próprio Guimarães Rosa, são a todo tempo personagens e autor querendo subir à
poesia e à metafísica, juntas, ou, com uma e outra como asas, ascender a incapturáveis planos
sticos.
7
Reflita-se que o modo rosiano de produção poética, autêntico herdeiro da al-
chimie du verbe de Arthur Rimbaud, faz parte de um contexto mais amplo de reaproximação,
no Ocidente, entre a Poesia e o bimio magia/religião. Levando-se em conta a ruptura entre
os procedimentos poéticos, mágicos e religiosos que se tentou estabelecer na Europa notada-
mente durante o vigor do Iluminismo, e que até hoje produz conseqüências no pensamento li-
terário ocidental, tal reaproximação verificou-se mormente a partir de William Blake, Novalis
(Friedrich von Hardenberg) e Friedrich Hölderlin, e depois, num segundo momento, com os
simbolistas Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé. Enfim, para alguns – dentre os quais se
arrola, por exemplo, Octavio Paz esse sentido de reaproximação consiste na verdadeira me-
dula da Modernidade
8
.
Ora, a intencionalidade anagógica que dá suporte à produção guimarrosiana
justamente essa pretensão de “ascender a incapturáveis planos sticos, valendo-se da “poe-
sia” e da “metafísica (...) como asasestá presente também em Magma. A diferença entre o
volume de 1936 e a posterior obra de Guimarães Rosa reside somente, a par da natural dife-
rença estilística existente entre a expressão de juventude e a expressão de maturidade, no fato
de que no livro de estréia a intenção anagógica evola-se por meio do idioma como veículo de
idéias e símbolos, enquanto que a contar de Sagarana, e num crescendo até Tutaméia, essa
mesma intenção vale-se do idioma como instrumento no qual as idéias e símbolos se corpori-
ficam.
É ocioso dizer que a instrumentalização do idioma levada a efeito por Guima-
rães Rosa conflagrou um genial plus expressivo que plenifica o discurso poético. Cabe por
outro lado insistir e veementemente em que esse plus estilístico tão significativo não pode,
6
TOSI (274, 675-676) explica que Essa é uma expressão medieval, que constitui o título de uma famosa obra
mística de [São] Bonaventura de Bagnoregio, escrita em 1259 e ainda em uso para indicar a gradual elevação em
direção à divindade, através do aprofundamento da vida interior e da progressiva purificação dos elementos ter-
renos e pecaminosos. Também é usada para obras de caráter teológico ou poético, cuja conclusão é a chegada à
divindade depois de uma viagem através de pecados e pecadores...
7
Apud BIZZARRI, 29, 20.
8
Guimarães Rosa decerto concordaria em que a proximidade entre os procedimentos poéticos, mágicos e religi-
osos é a medula não só da Poesia Moderna no Ocidente, mas de toda verdadeira Poesia de qualquer época e lu-
gar. Esta parece ser também a opinião de NOVALIS (226), de PAZ (231 e 232) e de BLOOM (136). Para algo
mais a respeito da ruptura mencionada, v. YATES, 288.
16
apesar de toda sua importância e opulência, ocultar o fim a que serve, que é o de expressar de
uma maneira ótima o sempre presente propósito anagógico do autor:
A ngua, para mim, é instrumento: fino, hábil, agudo, abarcável, penetrável,
sempre perfectível, etc. Mas
sempre
a serviço do homem e de Deus, do homem, de
Deus, da Transcendência.
9
Guimarães Rosa
dixit
: sempre”.
A crítica, contudo, tal como procederam al-
guns em relação a
Tutaméia
e salvo meritórias exceções, não tem reconhecido em
Magma
a
presença dessa intencionalidade anagógica que é a própria essência da literatura rosiana, pre-
ferindo o mais das vezes apontar o livro como uma mera extravagância, uma obra descartável
sem interesse algum, senão o de ser a juvenília curiosa porém icua de um autor celebrado.
Ao que parece, essa visão canhestra tem partido invariavelmente do mesmo equívoco: a con-
sideração do volume como uma singela “coletânea” de carmes avulsos, isto é, um texto sem
estrutura, composto por peças colhidas à toa e sem encadeamento entre si. O presente trabalho
intenta fazer ver o engano dessa premissa, desvelando em
Magma
uma estrutura mistagógica
sistematizante que permite aos poemas componentes interagirem e então refletirem, para além
do microssignificado singular, um macrossignificado conjuntural. O que vale dizer que, em
Magma
, cada composição evidencia duas cargas de sentido: uma
solitária
, rasa e de fácil
apreensão, e outra
soliria
, bem mais profunda, complexa e importante, a face que está re-
almente a demandar cuidado.
Aproveita-nos neste ponto relembrar a notória máxima einsensteiniana, perfei-
tamente aplivel ao caso: 2+2 = 5. É sabido que para se assistir a uma pecula cinemato-
gráfica não basta ao olho humano visualizar de maneira isolada cada uma das imagens estáti-
cas que perfazem a cena: faz-se preciso juntar celeremente essas imagens numa exibição se-
encial e globalizante, de tal forma que, cada qual dialogando e interagindo com todas as
demais, tenha o conjunto capacidade de impressionar a retina do espectador com a idéia de
movimento
. Partindo desse princípio óptico básico, Eisenstein estabelece o conceito estético
de montagem e reflete que o resultado da justaposição é sempre qualitativamente superior a
cada um dos fragmentos quando considerados em separado. Igualmente, se se considerar
Magma
como um simples amontoado de textos singulares e soltos, o resultado é meramente
estático e empobrecedor para o entendimento da obra, ao passo que, sendo o livro visualizado
como uma pluralidade dinâmica, na qual cada poema componente dialoga e interage com to-
9
Rosa,
apud
MEYER-CLASON, 62, 132-134 (recomendo a leitura
in totum
dessas págs.). Grifei.
17
dos os outros, o resultado é cinético e enriquecedor. Cumpre investir nesse segundo modo de
visão.
A bem dizer, o que se pretende não é mais do que seguir os passos sugeridos
pela própria Poesia, conforme manifesta Carlos Drummond de Andrade (aliás, conterrâneo,
amigo e leitor dedicado de Guimarães Rosa):
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
calma e frescura na supercie intata.
(...)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra...
10
Reparando-se que “os poemasde
Magma
, “escritosno longínquo 1936, “es-
peramagora apenas por ser
lidos
, temos que a Procura da Poesia” exige que se chegue
mais pertodas palavras” e que se sonde com extrema aplicação essa “superfície intata”. É
com esse procedimento que se poderá vir a contemplar, por detrás da “calma e frescura” da
face neutra” do livro, uma parcela ao menos de toda a agitação ardente das suas mil faces
secretas. Porque, tal como o Compadre Quelemén, o que se “quer não é o caso inteirado
em si, mas a sobrecoisa, a outra-coisa”
11
.
Por outro lado, nos preparatórios parece prudente observar também um pouco
mais de perto, embora
en passant
, os rumos que tem tomado a fortuna crítica em relação ao
primeiro escrito de Guimarães Rosa. Além de ser ainda bastante exígua, não tem ela conside-
rado, como já se disse, a idéia fundamental do livro como um sistema.
O desbravador trabalho de Hygia Therezinha Calmon Ferreira
12
é realmente
inestimável e detém o mérito de chamar a atenção para a obra de estréia guimarrosiana, até
então esquecida, dando-lhe, afinal, ensejo à publicação. Todavia, esse estudo, de âmbito geral,
tem como
corpus
todo o conjunto da literatura de Guimarães Rosa, do qual
Magma
é apenas
uma parte integrante. A dima visão pretendida pela pesquisadora foi, portanto, a do inteiro
maquinário, deixando-se largo espo para perquirições mais aprofundadas sobre a especifici-
dade de cada peça. Ademais, a própria estudiosa adverte que sua descoberta de
Magma
só se
deu na fase final da pesquisa, sendo os poemas do livro trazidos à colação mais como formas
10
Procura da Poesia”, in: ANDRADE, 102, 138-139. V. tb.
id
., 24, 22.
11
ROSA, 10, 197.
12
FERREIRA, 47.
18
de reforço argumentativo a posteriori para pensamentos já a priori devidamente estruturados.
É possível então considerar que, com relação a Magma, Ferreira abriu o caminho, lançando do
mar rosiano o indispensável terra à vista”. A partir daí, ocasionalmente outras investigões
têm se voltado para Magma, preferindo contudo definir parâmetros semelhantes aos de Ferrei-
ra, ao seguir a mesma linha de abordar o volume somente como parte marginal de um corpus
diverso. A acuidade demonstrada por aquela pesquisadora, não obstante, nem sempre é perse-
guida pelos demais.
Verdade que por vezes têm surgido brilhantes trabalhos que adotam determina-
das facetas de Magma como assunto central. Porém, posto que extremamente valiosos e origi-
nais no que toca ao exame de particularidades, são estudos de breve extensão. Sejam citados
como melhores exemplos as interessanssimas produções de Zama Caixetas Nascentes e de
Jeane Mari SantAna Spera
13
.
A propósito, é importante divisar que, salvo essas três mencionadas, as demais
análises sobre Magma têm geralmente enveredado pelo vezo do pitoresco, do qual raramente
conseguem se libertar: são as crônicas informativas da terra rem-descoberta que se detêm,
na orla selvagem, sobre a beleza inerte da aparência. Conquanto válidas, são pesquisas que
pouco acrescem ao conhecimento sobre o interior do vasto território. Por seu turno, o estudo
que aqui se propõe visa a se aprofundar no contato com a obra, embrenhando-se em busca do
osso e do nervo que lhe permitem o movimento da carne ou, mais precisamente, adentrando-a
em busca da anima, a natureza mais íntima e ignota do Magma.
Diga-se outrossim que até o momento o único trabalho de verdadeiro fôlego a
versar exclusivamente sobre Magma parece ter sido o de Maria Célia Leonel
14
, o qual, entre-
tanto, apresenta visada e valia precipuamente genéticas. Ao longo de quase trezentas páginas,
defende-se a idéia de que a obra inaugural de Guimarães Rosa revelaria escasso interesse, va-
lendo apenas como fonte de germes temáticos que seriam no futuro desdobrados pelo escritor
mineiro em textos de sua fase madura.
É observável que nenhuma pesquisa até agora publicada teve o condão de dis-
cutir de modo amplo o que representa ser o mais importante a respeito de Magma: a medula
da intencionalidade anagógica a sustentar uma estrutura poemática coesa e significante. De
forma que parece ter cabimento um esforço no sentido de descobrir-lhe essa essência que o
faz participar da prole rosiana, não como rebento adulterino estranho à família, e sim como
13
Respectivamente NASCENTES, 91, e SPERA, 86.
14
LEONEL, 54.
19
legítimo primogênito de personalidade própria. Essa cogitação medular é, por transplante,
também o cerne da presente pesquisa.
Mais do que tudo, sendo Magma a primeira produção de Guimarães Rosa es-
truturada em livro a revelar preocupação anagógica, uma nova visão sobre a Weltanschauung
do autor nesse estágio inicial pode fornecer elementos que auxiliem a renovação dos estudos
mais abrangentes sobre a literatura guimarrosiana. O volume, deste modo, vem a ser encarado
não como mera fonte temática, mas sim como verdadeira fonte ideológica para uma literatura
de tão rara projeção. A intenção, ao final deste trabalho, é demonstrar como o livro de 1936
aponta caminhos de pensamento que seriam explorados por Guimarães Rosa nas obras mais
amadurecidas: não mais apenas a partir de Sagarana, mas sim desde Magma a Tutaméia é que
se desenha a vereda rosiana pelo Grande Ser-tão
15
.
Ao mesmo tempo, o mais longo traçado dessa vereda anagógica permite que
outras frentes se abram, como, por exemplo, as importantes perquirições acerca do surgimento
da inventividade léxica guimarrosiana: a contar de que momento, por que motivos e de que
maneira passa a ser necessária a instrumentalização do idioma para expressar as mesmas fer-
vilhantes idéias de cunho anagógico? Ocorre porventura alguma alteração de vulto no âmago
dessas idéias, na epiderme delas ao menos, ou a mudança será antes no instrumental estético e
vocabular com que se as discute? Essas são perguntas cujas respostas merecem ser melhor de-
finidas as um esquadrinhamento mais acurado de Magma.
Além disso, importantes alas do pensamento religioso e estético rosiano adqui-
rem relevo em Magma, de maneira talvez mais nítida do que em outros textos da madureza do
autor. São apenas exemplos desse aspecto: a exploração poética de conceitos da Cabala luriâ-
nica tema até agora virgem na crítica sobre Guimarães Rosa; a tematização, ao longo de vá-
rios poemas de Magma, das Dez estampas de condução da boiadado zen-budismo; as no-
ções freudianas utilizadas pelo escritor mineiro na caracterização de personagens fabulares
etc... A recuperação dessas discussões – quando entabuladas ainda no verdor da mocidade de
Guimarães Rosa permite o estabelecimento de novas linhas críticas de vivo interesse.
Aliás, não menos interessante é a perspectiva de que a reavaliação do escrito de
1936 possa concorrer com um novo hausto para a vinda à tona de outras sões ainda insufi-
cientemente estudadas da lavra guimarrosiana: os obscuros “contos da juventude” (Maqui-
15
Sobre esse termo, v. UTÉZA, 88, 56 e passim.
20
né”, Os caçadores de camurças, ùÿ ùù+þ, O mistério de Highmore
Hall) e a novela “O imperador
16
.
À luz do quanto já foi exposto, o objetivo ora pretendido é demonstrar, através
da abordagem do simbolismo textual de Magma, que essa obra também faz parte do projeto
stico e estético rosiano, constituindo-se sua estrutura numa representação literária de um
itinerarium mentis ad Deum que assume no caso uma feição iniciática. Cuida-se, em primeiro
lugar, de contributo ao resgate do livro; em segundo lugar, de sua inserção ideológica e atu-
ante na literatura guimarrosiana; e daí, em terceiro lugar, do fornecimento de elementos novos
para a compreensão dinâmica da Weltanschauung de Guimarães Rosa
17
. Com isso, espera-se
que Magma possa ser realmente entendido como o primeiro e imprescindível passo da trajetó-
ria do autor, ao qual, como na fórmula taoísta
18
, todos os outros passos devem alguma coisa:
se não a obra-prima, ao menos, e com louvor, a indispensável prima obra.
3. MÉTODO
Será a linguagem dos símbolos a verdadeira linguagem do
Paraíso?
HUGO BALL
Estando ausente da obra de estréia de Guimarães Rosa o pico plus expressivo
da maturidade do escritor, em que a palavra e o discurso não traduzem simplesmente, mas são
o próprio símbolo, resta, para apreender Magma, observar aí a presença do símbolo conceitual
veiculado pela palavra e pelo discurso. Este é, por conseência, o método simples de her-
menêutica que naturalmente se ime para o exame desse livro: o deslinde do símbolo en-
quanto imagem traduzida por meio da palavra.
Calha transcrever, em abono, uma anotação de Guimarães Rosa feita em carta,
em que parece ficar patente a preferência do autor pela abordagem do teor simlico de seus
escritos (no caso se fala a propósito de Corpo de baile):
16
V. LEONEL, 54, 217 e segs., para o primeiro conto, e FERREIRA, 47, passim, para os demais e a novela. Le-
onel também tratou dos outros contos em textos vários.
17
Faz-se oportuno esclarecer que este trabalho de Doutorado procura ser o prolongamento de uma pesquisa le-
vada a efeito durante o Mestrado, através da qual se prestou uma introdução ao universo simbológico de Magma,
por meio do exame detalhado dos três primeiros poemas da obra. Os resultados obtidos foram plenamente satis-
fatórios e confirmaram com naturalidade a assertiva proposta de que o livro de 1936 se insere legitimamente no
plano místico-estético da escritura de Guimarães Rosa, revestindo-se assim de um caráter poético de valor bas-
tante digno de apro. O texto da dissertação de Mestrado foi, pois, agregado, com várias alterões, ao corpo da
tese de Doutorado, vindo a constituir sua parte inicial.
18
Tao, 64: Uma viagem de mil léguas/ Comou com o primeiro passo.Grifei.
21
Como escreveu Paulo Rónai, no livro Encontros com o Brasil: A linha
simbólica é predominante nos contos, onde o enredo, propriamente dito, serve antes
de acompanhamento.
19
É de se prevenir que a simlica em
Magma
abebera-se nas mesmas fontes que
sempre impressionaram a concepção de mundo de Guimarães Rosa. São elas, principalmente,
a tradição cristã, o judaísmo e a Cabala, os grandes textos hindus (Vedas, Upanixades, o
Bha-
gavad Gita
), o Tao, a filosofia neoplatônica de Plotino, o idrio alquímico e o folclore brasi-
leiro (notadamente o de extração indígena). Todos esses espaços do pensamento merecerão a
atenção devida, conforme sejam trazidos à baila pelos poemas de
Magma
, os quais serão ana-
lisados um a um segundo a progressividade que o próprio
corpus
define e sem que se perca de
vista o sistema globalizante que os une como engrenagens. Saliente-se que a sucessão dos
textos em
Magma
deixa bem percepvel a concatenão natural da estrutura do volume e con-
firma, sem possibilidade de erro – como será demonstrado –, a perfeita adequação dessa es-
trutura às fases principais de um trajeto mistagógico ideal. A cada composição, portanto, cor-
responde uma etapa que se encaixa simetricamente, através de ajustadas relações dialógicas,
às composições ou etapas imediatamente antecessoras e sucessoras.
Por outro lado, tem valimento uma palavra a respeito do imenso espectro de
sentidos que o termo símbolo” carrega em si, o que muitas vezes dá ensejo a imprecisões in-
desejáveis. A problemática começa no uso natural porém indiscriminado do vobulo para
exprimir conceitos bem distintos: símbolo” é, muitas vezes, utilizado como sinônimo para
logotipo, metáfora, alegoria, analogia
etc
... Assim, é de todo pertinente recorrer a uma noção
que dissipe essas imprecisões de sinonímia.
Partamos de um esclarecedor comentário de Octavio Paz, para quem o poeta é
um ser à parte, um heterodoxo por fatalidade congênita: sempre diz outra coisa, inclusive
quando diz as mesmas coisas que o resto dos homens
20
.
Dizer outra coisa”, mesmo quando
se diz “as mesmas coisas, é valer-se de um mecanismo simlico, é usar um símbolo. Pode-
se, por conseguinte, determinar que o símbolo é, num primeiro momento, simplesmente algo
apreensível que é utilizado para representar alguma outra coisa que não é ou não está apreen-
sível. Deve-se todavia levar em conta que o representante e o representado mantêm entre si
um importante vínculo de homogeneidade, no sentido de um dinamismo organizador
21
; por
19
In: BIZZARRI, 29, 58. Grifei. Outrossim, observo que no Diálogotravado com LORENZ (58,71), Gui-
marães Rosa chega a afirmar radicalmente que A gramática e a chamada filologia ciência lingüistica, foram in-
ventadas pelos inimigos da poesia.(
sic
).
20
PAZ, 231, 231.
21
Cf. Gilbert Durand,
apud
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, XVII.
22
esse vínculo, o símbolo detém em si um essencial e espontâneo poder de ressonância”
22
, i. e.,
ressoa algo da essência (imo organizador de realidade) daquilo que está representando. Deste
modo, a relação entre representante e representado não é meramente especular, mas sim uma
relação de correspondências, para lembrar Baudelaire. E essa correspondência não é casual,
é teleológica. Citando Gaston Bachelard: “a ressonância convida-nos a um aprofundamento
da nossa própria existência... Produz uma reviravolta no existir.
23
O símbolo então, em sua dimensão mais profunda, é a representação vibrante
através da qual o significante procura presentificar o significado. Esse é o cerne não só da
natureza do símbolo, mas também dos procedimentos mágicos e dos procedimentos poéticos,
cujos mecanismos estão em grande medida fundados justamente na manipulão de símbolos,
eis que, conforme afirma Charles Sanders Peirce, o mais alto grau da realidade só é alcança-
do através de signos
24
... e “o mais alto grau da realidade” é exatamente a meta da Poesia e da
religião.
Destarte, quando se fala em símbolo” em Magma é a essa noção fundamental
que se refere.
Ressalvo que, sem interesse de tocar em quaisquer questões de tradução nem
de penetrar nos escaninhos do vasto pensamento de Peirce, e portanto assumindo as responsa-
bilidades ante uma eventual e plenamente sustentável – discordância, ouso, neste estudo,
admitir signo” como um sinônimo adequado para “símbolo. Quer me parecer que esta é
também a postura de risco adotada por Harold Bloom, quando emprega a mesma citação de
Peirce, há pouco referida, como epígrafe num trabalho que versa sobre o simbolismo da Ca-
bala. O próprio Gershom Scholem
25
, aliás, em sua obra magna sobre a cabastica não age de
maneira diferente. Logicamente, jamais me atenho à acepção do termo signo” corrente em
Lingüística. A propósito, a respeito da diferenciação entre “símbolo” e a noção mais sausurre-
ana de “signo, Chevalier e Gheerbrant traçam comentários bastante aclaradores
26
, não obs-
tante se valham, em seu prestigiado elucidário, por mais de uma vez da sinonímia e com fre-
ência citem outros renomados autores que igualmente o fazem. Sinto-me, portanto, autori-
zado e em boa companhia.
O que foi dito não esgota de maneira alguma o assunto a respeito da comple-
xíssima natureza do símbolo. Contudo, muitos e muitos livros, das mais diversas áreas do co-
22
Id., ibid.
23
Apud id., ibid.
24
Apud BLOOM, 136, 61.
25
SCHOLEM, 257.
26
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, XVII e passim.
23
nhecimento, foram escritos a propósito sem esgotá-lo. Assim, como este trabalho não tem a
pretensão de constituir-se em mais um tratado acerca desse tema, a noção proposta parece su-
ficiente e adequada para o momento
27
.
4.
CORPUS
São conhecidas três versões do texto de Magma. Duas delas são documentos
datilografados que exibem nas folhas de rosto as indicões do autor, do título e de uma mes-
ma data: 1936. A terceira é a edição de 1997 pela Editora Nova Fronteira. Cada uma dessas
versões tem suas particularidades, as quais nos convém examinar de forma ligeira.
Quanto à primeira versão, trata-se, muito provavelmente, daquela que foi apre-
sentada pelo poeta ao Concurso da Academia Brasileira de Letras. O fator mais importante a
diferençar esse documento é a presença nele de um poema de abertura sem título e cujo pri-
meiro verso é “O poeta reza o rosário, peça que está ausente nas versões posteriores. No total
contabilizam-se 63 textos, incluindo o poema de abertura e sendo considerados como textos
unitários, em função do parentesco temático e da titulação congregante, alguns complexos que
abrangem subtítulos, a saber: Hai-kais(composto por nove haicais)
28
, Luar na mata(sub-
dividido em I Cinema” e II Rapto), Poemas(contendo dezenove poemetos) e “Impa-
ciência (Duas variões sobre o mesmo tema)(com as variantes Ie II)
29
. Há um caso de
composição rabiscada como que demonstrando a sua eliminação (A casa da Boneca, um
dos Poemas), ficando porém os versos legíveis através dos riscos. Nesse material várias
passagens denotam emendas feitas a mão com a caligrafia do autor, as quais indicam princi-
palmente alterões na colocação de palavras nas frases ou de versos nas estrofes e substitui-
ção, supressão ou acréscimo de termos, além de corrões de acentuação e de datilografia.
Diga-se ainda que foram feitas ilustrações sobre quinze dos textos, não se sabendo se foi o
próprio Guimarães Rosa quem as executou.
27
Para uma apreensão mais detalhada da natureza do símbolo, remeto aos textos de JUNG (os constantes na bi-
bliografia deste trabalho – 193, 194, 196 e em especial 195 –, além de vários outros não elencados), de FRANZ
(colaboradora de Jung), 177, de ELIADE, 170 e 171, e também à introdução de Jean Chevalier a CHEVALIER e
GHEERBRANT, 160. De se mencionar ainda os estudos procedentes da corrente chamada de crítica do imagi-
rio, tais como os de Gaston Bachelard, de Jean-Pierre Richard e, sobretudo, a mitoanálise” de Gilbert Durant.
28
Em Hai-kaisparece clara a intenção do autor – ou pelo menos a sua autorização para tal – de que os sub-
tulos fossem compreendidos num sentido global, eis que na passagem de página aparece indicada, entre parênte-
ses, a continuaçãodo texto, a exemplo de outros tulos sem subtitulação. Sem embargo, cabe frisar que essa
maneira de contar é uma alternativa não excludente, tão válida quanto quaisquer outras. No que concerne à dife-
renciação entre as formas Hai-kais” e haicais, v. a nota 213 (pág. 120).
29
Já o ciclo No Araguaia” permanece computado como quatro textos, apenas em razão do fato de estarem estes
entremeados por outros poemas. Q. v., à pág, 468, a completa Lista dos poemas de Magma...
24
A segunda versão de Magma
30
tem na folha de rosto, além dos dados já referi-
dos, a seguinte menção entre parênteses e manuscrita com a caligrafia de Guimarães Rosa:
Prêmio da Academia Brasileira de Letras. Fazem-se ausentes O poeta reza o rosário” e A
casa da Boneca” e alguns poemas estão em disposição diferente daquela em que aparecem na
versão previamente comentada: na primeira, Reportagemprecede “Sono das águas, dando-
se o inverso na segunda; e a ordem Revolta, Regresso, Pavore Angústianaquela é
modificada nesta para “Pavor, Angústia”, Revolta” e Regresso. A estrofação sofreu alte-
rões em determinados passos, certas palavras que constam da versão anterior foram substi-
tuídas e em outras existem diferenças de grafia (o poema “O gado, por exemplo, aparece
na versão ulterior como O kágado
31
), surgindo ademais um índice datilografado em duas
laudas. Este material também contém emendas manuscritas. A circunstância preponderante
que leva a crer conquanto até o momento não seja possível estabelecer com plena certeza
que esta constitua uma variante posterior é que nela vêm datilografadas (ou seja, aparente-
mente corrigidas) algumas das emendas feitas a mão no outro documento. Por fim, é de se
mencionar que nessa segunda versão ocorrem algumas falhas de coerência textual e de arranjo
estrófico que não se fazem presentes na primeira.
Embora nada informe a respeito do original utilizado, a terceira versão – a pu-
blicação de 1997 – parece ter sido baseada na segunda, a cujo texto em regra obedece, inclu-
sive quanto à ordenação poemática supra referida, optando também, o mais das vezes, pela
observação de suas corrões manuscritas e de sua estrofação e mantendo os mesmos equívo-
cos de coerência textual. Outrossim, verificam-se alguns novos pequenos erros de concerto
estrófico e de grafia que, inexistentes nas duas primeiras versões, devem ser creditados à dis-
tração ou a problemas na leitura do original já deteriorado pelo tempo. No que diz respeito à
atualização ortográfica efetivada, parece ter ela inadvertidamente sacrificado em alguns casos
a intenção do autor, como por exemplo em O kágado, que voltou a ser O gado. O mais
notável, porém, é que “O poeta reza o rosário” e A casa da Bonecapermanecem ausentes.
Sem embargo, o grande mérito da bonita edição, finamente ilustrada por Poty Lazzarotto, foi
tornar acessível a muitos o que era conhecido por poucos e tinha sido lido por menos.
Dessas variantes elegeu-se a primeira para servir de objeto a este trabalho. A
principal razão para isso é que essa é a única das três em que se arrola o poema de abertura “O
poeta reza o rosário, o qual dá mostras de ser deveras importante para uma adequada com-
preensão da estrutura de Magma – daí, por medida de congruência, valer aproveitar esse ma-
30
As informões a respeito dessa versão foram colhidas em LEONEL, 54, passim.
31
Tb. em ROSA, 12, 166: jaboti: quelônio terrestre, espécie de kágado.Grifo do autor.
25
terial na íntegra. Além disso, havendo motivos para se supor que tenha sido essa versão a que
foi entregue à Comissão Julgadora do Concurso de 1936, é conveniente dar preferência ao
texto que teria sido considerado prontopelo autor para a apresentação perante os literatos
da Academia e, por outro lado, nada há que permita dizer que o autor já considerasse a segun-
da versão prontapara a publicação.
Os poemas trazidos à baila, portanto, referir-se-ão sempre à primeira versão
32
,
sendo contudo apontadas, em notas de rodapé e quando necessário, as soluções discordantes
registradas pela edição de 1997, que é das versões a mais difundida. Os textos serão, com os
devidos cuidados, atualizados ortograficamente, e isso porque – no que pese ser um procedi-
mento usual nas transcrições da escritura rosiana a salutar coleta ipsis litteris do original –, no
caso específico de Magma (e mormente na primeira versão), como já foi observado, a palavra
não incorpora o símbolo, e sim o traduz idealmente, pelo que a adequação à ortografia atual
não traz nenhum prejuízo e ainda resulta numa leitura mais palatável
33
.
Previna-se, enfim, que as três composições iniciantes de MagmaO poeta re-
za o rosário, Águas da Serra” e “A Iara” merecerão um enfoque especialmente atencioso,
em razão de os signos que as constituem serem dotados duma máxima valia que se alastra
além, fazendo revelar-se o trio, de fato, como alicerçante de todo o ulterior desenvolvimento
sígnico que o livro experimenta até “Consciência cósmica”, seu derradeiro texto. Em decor-
rência, havendo o interesse de se abordar da forma mais conveniente as facetas mais impor-
tantes de cada simlica, com o fito de não deixar lacunas, e dadas as intrincadas volutas que
por vezes desenham o contorno de certos símbolos de importância ingente em Magma (como
a água, o rosário, a rosa e o jardim), é de se precatar que vez ou outra o pertinente exame de-
verá se alongar por alguns pares de páginas. Nada obstante, o Magma rosiano será sempre a
única baliza a indicar os rumos a se seguir e, assim como a massa vulnica, fluirá sem sus-
pensão – a descoberto ou subterraneamente –, mantendo-se invariável como a causa e justifi-
cativa para quaisquer cogitões, de sorte que o esmiuçar das particularidades dos símbolos
de modo algum consistirá em gratuidade, bizantinismo ou desvio – mas sim em matéria cuja
ponderação minuciosa é requisito para uma melhor aproximação crítica da obra de Guimarães
Rosa. Destarte, com o andamento até o término da análise dos poemas do volume, cada deta-
lhe de cada símbolo até então trazido à tona terá oportunamente revelado a sua utilidade e ca-
pacidade de repercussão no todo.
32
As únicas exceções, explicadas no devido momento, são quanto às peças Lunático” e Primavera na serra”.
33
Excetuam-se a essa regra, vistos a seu tempo, o título dos Hai-kais” e o texto Iniciação.
26
CAPÍTULO I. O POEMA VESTIBULAR
E A ESTRUTURA DE
MAGMA
Rezo, escrevo, amo, cumpro, suporto, vivo – mas só me
interessando pela eternidade. Só acredito na solução religiosa
para o homem; para o
indivíduo
. Quando aprecio como fruidor
uma obra de arte, sinto que isso é para que algo
em mim
se
transforme. Quando faço arte, é para que se transforme algo
em mim, para que o espírito cresça; e desejando ser um so-
mbulo de Deus.
GUIMARÃES ROSA
Magma
é aberto por uma composição que já na sua apresentação espacial se
distingue dos poemas que a seguem, os quais se iniciam todos no alto da página, com margem
superior nima e títulos a cabeçalho, enquanto que o carme vestibular, o único do livro que
dispensa o título, é introduzido por uma margem superior que ocupa cerca de um terço do es-
po em branco disponível. Com tal colocação diferenciada, o proêmio é destacado e situa-se
como que flutuando no início de um segundo terço da área, entre os terços anterior e posterior
em branco. Trata-se de um texto enxuto (exatos cem caracteres, entre letras e sinais de pontu-
ação), de laconismo quase telegráfico, em que as palavras componentes se revestem de uma
carga simlica bastante densa e sugestiva. Ei-lo:
1
O poeta reza o rosário,
conta a conta,
e o fio corre por dentro,
sem que o poeta o veja,
5
sem que o sinta,
sem que o desminta...
34
Indo além de ser uma mera epígrafe temática, a despeito de sua aparência nesse
sentido, o poema desempenha de fato a tríplice função de
introduzir
,
consagrar
e
estruturar
.
Como introdução, à maneira de uma abertura operística, ele apresenta em síntese o motivo
condutor que norteará o desenvolvimento do livro: a reza, que ilustra
o contato ou a busca de
contato com o divino
. Em sua função consagratória, serve ele como uma espécie de intróito
litúrgico, iniciando o ofício poético que, no caso de
Magma
, não é apenas poetar, fazer versos,
mas veramente
rezar
, isto é,
re-ligar
, através de uma perquirição dialógica, o humano à sua
34
Neste trabalho, toda vez que aposta a numeração dos versos à esquerda, o texto poético se encontra reproduzi-
do na íntegra.
27
origem divina; o trabalho do poeta, assim, é despido de qualquer eiva profana e imbuído de
uma inequívoca acepção religiosa, no sentido que Guimarães Rosa dá ao termo: Sou só reli-
gião mas impossível de qualquer associação ou organização religiosa: tudo é o quente diá-
logo (tentativa de) com o .
35
Finalmente, como instância estruturadora o poema vestibular age indicando em
sua própria microarquitetura a macroarquitetura através da qual será instaurada em Magma a
tentativa de” estabelecimento desse magmático, quente diálogo” entre a existência humana
e a essência divina.
Vejamos agora, por meio do levantamento detalhado das principais conotões
simlicas dos elementos que o comem, como o texto de abertura se desincumbe dessa trí-
plice funcionalidade.
1. O POETA REZA...
Meu coração virando em conta de capiá...
NHÔ BENTO,
Rosário de capiá
Temos, por primeiro, que “O poeta reza”. Ora, a reza sempre foi uma atividade
importante na vida do poeta Guimarães Rosa. A propósito disso, sua filha Vilma Guimarães
Rosa informa-nos que o pai,
Místico, espiritualista, cultivando a fé como elemento de ajuda, colecionava
pensamentos cuja essência considerasse importante. Misturava-os com os seus, pro-
curando uma resposta plausível aos incessantes porquês.
Guardava cuidadosamente as orações que lhe chegassem às mãos. (...) Des-
confio que a maior parte são de sua própria autoria.
36
O escritor Tristão de Athayde, amigo do poeta mineiro, dá-nos por sua vez o
seguinte depoimento:
Contou-me ele mesmo [Guimarães Rosa] que, freqüentemente, antes de entrar
no Palácio de Itamarati, para suas tarefas pré-diplomáticas, passava uns bons minu-
tos de meditação na Igreja de são Jorge. E levava sempre consigo um pequeno anel,
que no interior chamam de dezena do Rosário, em que freqüentemente rezava.
37
35
Rosa, apud DANTAS, 43, 9. Grifo do autor.
36
ROSA, 79, 265.
37
Apud FERREIRA, 46, 101. V. nota 62 (pág. 35).
28
Rezar, no entanto, para o stico Guimarães Rosa jamais poderia significar
simplesmente “rogar: é necessário afastar desde logo a noção de prece como mera súplica à
divindade. Tampouco tem relevância qualquer matiz laudatório ou lamentoso. No pensamento
rosiano, a prece tem sim um valor eminentemente transcendental, metafísico, o que vale dizer:
de perquirição pelo divino. E sendo perquirição, a reza traduz-se num movimento, numa ativa
busca espiritual que o ser empreende rumo ao objetivo que o anima, nunca sendo tão-só a sin-
gela espera passiva da divina graça. Ainda quando jovem, numa carta dirigida ao pai, o poeta
afirma que “A oração é coisa muito mais transcendente do que parece. Apenas, há mais de
uma maneira da gente orar.
38
Donde se infere: havendo mais de uma maneirade se “orar,
para Guimarães Rosa uma delas a mais importante é justamente o ato de escrever, o ato de
fazer Poesia. Amiúde aparece na literatura guimarrosiana, incluindo a epistolar e as entrevis-
tas, a aproximação entre Poesia e prece; em Tutaméia, por exemplo, refere-se o autor ao pla-
no da arte e da criação” como sendo “em boa parte subliminar ou supraconsciente, entreme-
ando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza.
39
Em Noites do sertão é dito que “pela oração ou poesia; e pura
40
pode-se al-
cançar a felicidade. A felicidade, por seu turno, consiste em afastar do íntimo o mal, que na
verdade é tão-somente a própria idéia do mal e que “está apenas guardando lugar para o
bem
41
: Apenas na solidão pode-se descobrir que o diabo não existe. E isto significa o infi-
nito da felicidade. Esta é a minha stica.
42
Atente-se: justamente a oração e a Poesia são os mais cristalinos exercícios de
solitude, práticas numinosas do ser a sós consigo mesmo e com a deidade.
Equiparando-se a prece e a Poesia, naturalmente decorre a equiparação hieráti-
ca entre poética e religião, consoante o poeta assevera:
Como homem inteligente, às vezes pode-se sentir necessidade de se tornar um
beato ou um fundador de religiões. A religião é um assunto poético e a poesia se ori-
gina da modificação de realidades lingüísticas. Dessa forma, pode acontecer que uma
pessoa forme palavras e na realidade esteja criando religiões.
43
É também elucidativo o seguinte excerto:
38
Apud ROSA, 79, 155.
39
ROSA, 12, 157 (Sobre a escova e a dúvida”).
40
Id., 9, 153 (Buriti).
41
Id., 12, 165 (Sobre a escova e a dúvida”).
42
Rosa, no Diálogo” com LORENZ, 58, 73.
43
In: id., op. cit., pág. 92. Grifei.
29
LORENZ: Uma vez vome disse que quando escreve quer se aproximar de
Deus, às vezes demasiadamente. Certamente, isto também se relaciona com a ngua.
Como se deve entender isso?
GUIMARÃES ROSA: Isto prom do que eu denomino a metafísica de minha
linguagem, pois esta deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfe-
mo, já que assim se coloca o homem no papel de amo da criação. O homem ao dizer:
eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade da cria-
ção. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança simplesmente com
a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o cientista e eu, devemos encarar a
Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se qui-
sermos ajudar o homem. Seu método é meu método. O bem-estar do homem depende
do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também de-
pende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra
ele se descobre a si mesmo. Com isto repete o processo da criação. Disseram-me que
isto era blasfemo, mas eu sustento o contrário. Sim! a língua dá ao escritor a possibi-
lidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e de vencer o diabo, inimigo
de Deus e do homem. A impiedade e a desumanidade podem ser reconhecidas na n-
gua. Quem se sente responsável pela palavra ajuda o homem a vencer o mal.
44
Desta forma pode-se afirmar que,
sub Rosa
, prece e Poesia, religião e poética
confundem-se, são uma só e mesma coisa: são modos semelhantes de meditação gstica
sobre a palavra”, de ascese levada a efeito
por meio de
e
no
idioma. Aproximar-se de Deus,
afastando-se do mal, é o que se procura, quer quando se reza, quer quando se escreve. E essa
aproximação se desenha, a um tempo, por duas paralelas que se encontram – diz-nos a mate-
mática – no Infinito: na primeira, de retorno, o ser humano que poeta ou ora, criatura feita “à
imagem e semelhança” de Deus, tende a dEle se aproximar voltando à sua Origem, reinte-
grando-se nEle; na segunda linha, de avanço, o ser poetante ou orante coopera com Deus e
repete o processo da criaçãopor meio da palavra (o
fiat lux
), assim tornando-se cada vez
mais Seu semelhante. Conforme tão bem entendeu Novalis, romântico cujo pensamento má-
gico-poético se casa admiravelmente com o do escritor mineiro, Filhos de Deus, germes di-
vinos somos s. Um dia, seremos o que nosso Pai é.
45
Afirmação pietista que ecoa à perfei-
ção o imperativo enunciado por Jesus:
Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste
.
46
Esse conceito de aproximação paradoxal que desenvolve uma teose do humano
é fundamental para a apreensão do verdadeiro sentido não só de
Magma
, mas de todo o con-
junto da obra poética rosiana. É por essa via que a literatura de Guimarães Rosa assume o ní-
44
In:
id.
,
op. cit
., pág. 83-84. Sugere-se evidente a aproximação da metafísica da linguagem guimarrosiana com
o
tikún
da Cabala luriânica. V. a pág. 82 e segs. deste trabalho (Capítulo II, tópico 1).
45
NOVALIS, 226, 144, fragmento 115.
46
Mt
5.48. Neste estudo, todas as transcrições bíblicas são retiradas da
Bíblia de estudo Almeida
, 130, exceto
quando expressamente indicada outra fonte.
30
tido cariz de uma teosofia estética fundada numa teoria mágica da linguagem, a qual deságua,
na sua maturidade, numa práxis das mais fecundas e coerentes que a Modernidade nos legou.
Quanto a Magma, especificamente, ao colocar no primeiro verso do poema de
abertura como ação do poeta o rezar, e não meramente o versejar ou o cantar, Guimarães
Rosa alicerça no livro a atividade poética como um exercício sacralizado de busca deífica.
Nas páginas consecutivas, a Poesia é prece, a prece é Poesia e cada uma é alçada ao nível da
outra. Por conseqüência, os poemas também não são simples cantos: são todos eles rezas,
contas do rosário desfiado pelo poeta. E este, então, não é apenas um versejador: é um sacer-
dote que oficia. É válido citar novamente Novalis:
Poeta e sacerdote eram no como um só, e somente tempos mais tardios os
separaram. O genuíno poeta porém permaneceu sempre sacerdote, assim como o ge-
nuíno sacerdote sempre poeta. E não haveria o futuro de trazer de volta o antigo es-
tado de coisas?
47
Outrossim, a reza em Guimarães Rosa representa sempre a mudança, a capaci-
dade de alteração do real, isto é, a passagem de um estado a outro, como se pode observar à
escolha – nos contos São Marcos, de Sagarana, e “Tresaventura” e “Arroio-das-Antas, de
Tutaméia.
No conto de Sagarana é a enunciação da reza brava de São Marcos que per-
mite à personagem Izé, que se encontra cego por obra de um feitiço, orientar-se em meio à
mata escura e, enfrentando o feiticeiro Mangolô, recuperar a visão: o enredo, que se desen-
volve entre a luz e as trevas, dá margem a uma distinta interpretação soteriológica.
Já em Tresaventura, de acordo com o que explica Jeane Mari SantAna Spe-
ra, sempre aparece o tro stico de Maria Euzinha, através da reza, operando as mudan-
ças.
48
A reza é o modo pelo qual a personagem Maria Euzinha interfere no espaço e no tem-
po reais, pois sua visão e percepção criamoutro espo e outro tempo; ela se recusa a parti-
cipar do comum.
49
A recusa da menina Maria Euzinha e sua atividade criativa traduzem-se
no texto guimarrosiano com as seguintes palavras: Renegava. Reza-e-rezava. A água fria,
clara, dada da luz, viva igual à sede da gente... Até o sol nela se refrescava.
50
Além de estatuí-la, a reza ainda reafirma a visão de mundo da criança: os pas-
sarinhos, que eram só do u, seus alicercinhos. Rezava aquilo
51
.
47
NOVALIS, 226, 78, observação 71.
48
SPERA, 84, 203.
49
Id., op. cit., pág. 200-201.
50
ROSA, 12, 175.
51
Id., ibid.
31
A oração é também ligada à alegria: E ria que rezava
52
.
Para a personagem a reza é um mecanismo tão natural para se estabelecer uma
realidade alternativa que até os animais podem praticá-la. As salvar um sapo em vias de ser
engolido por uma cobra, apedrejando a predadora, a menina conclui: O sapo tinha pedido so-
corro? Sapos rezam tambémpor força, hão-de! O sapo rezara.
53
Maria Euzinha se vê, no
episódio, unicamente como o instrumento que, movido pela oração do sapo – oração capaz de
criar uma nova realidade –, apresentou-se para livrá-lo do perigo de uma situação adversa.
A capacidade de ingerência mágica no estado das coisas, por meio da prece,
chega mesmo a constituir-se na espinha dorsal do conto Arroio-das-Antas, em que as velhi-
nhas tristilendasde um vilarejo buscam (e obtêm) operar o milagre de unir um jovem casal.
Fica certo, porém, que esse milagre não é só um favor que se espera do u, e sim um algo
novo a ser construído pelas velhas e pelos poderes divinos em comunhão de esforços. Pois,
para atingir o seu objetivo, elas agem em silêncio e “Rezavam, jejuavam, exigiam, trêmulas,
poderosas, conspiravam.
54
Percebe-se que a múrmure teia de preces das velhas não é mera-
mente súplice: é exigente, poderosa, conspirativa, isto é, ativa e cooperante com o divino. Tal
como a reza do poeta em Magma. E sendo assim com a prece, assim é com a Poesia, a qual,
como já mencionado, tem origem na “modificação de realidades lingüísticas, ou seja, pode
ser reconhecida como Poesia a partir do momento em que instaura uma realidade lingüística
nova. Sobretudo importante é que, valendo-se da linguagem como ferramenta, a verdadeira
razão de ser da Poesia de Guimarães Rosa assenta deveras na modificação de realidades do
espírito. Assim é que a pequena e rara pedra (calculus) do léxico é lançada ao lago, mas os al-
cances dos círculos da beatitude no espelho das águas hão de ser imensamente mais abran-
gentes e significativos.
É oportuno lembrar que, para o poeta mineiro, Escrever é um processo quími-
co; o escritor deve ser um alquimista”.
55
E quanto à alquimia ou “alquímia (quí), é ela a “ci-
ência-arte iniciática das transmutões
56
. Sendo certo que o quid da transmutação alquímica,
como já é consabido, refere-se propriamente não à metamorfose áurica dos metais, o que não
passa de uma alegoria, mas sim à metamorfose anímica do praticante, a verdadeira meta por
trás do aparato prático.
52
Id., ibid.
53
Id., op. cit., pág. 176.
54
Id., op. cit., pág. 19.
55
Rosa a LORENZ, 58, 85.
56
ROSA, 12, 165. Grifei.
32
Pode-se portanto rematar que, ao declarar em Magma que “O poeta reza”, o
autor quer dizer que o poeta busca provocar mudanças em si mesmo
57
ao se aproximar de
Deus, aproximação essa, mistagógica, que se dá por meio da palavra poética mística. Eis
como, quer em Magma, quer em Sagarana ou Tutaméia, Guimarães Rosa reza.
2. ... O ROSÁRIO, CONTA A CONTA...
Dizia nada , o meu tio Diógenes, de rir mais rir. Somente:
O que este mundo é, é um rosário de bolas...Fechando a
sentença.
GUIMARÃES ROSA,
Tutaméia
E Guimarães Rosa reza o rosário.
O rosário é um símbolo de grande complexidade, cuja apreensão – por ligeira
que seja exige o exame de suas origens e de sua penetração nos diversos sistemas religiosos.
Cumpre por primeiro dizer que, não obstante seja o rosário atualmente considerado por mui-
tos, no mundo ocidental, como um objeto devocional típico ou até mesmo exclusivo da tradi-
ção cristã católica, na verdade o seu emprego como instrumento mnemônico de prece e me-
ditação é mesmo mais antigo do que o cristianismo. Se no século XVI o evangelizador São
Francisco Xavier ainda surpreendeu-se ao verificar que a fiada de contas fazia parte do cotidi-
ano religioso dos budistas do Japão, muito antes Marco Polo já havia relatado em suas memó-
rias de viagem o seguinte sobre a província indiana de Maabar:
Até o rei anda nu; ele distingue-se por certas particularidades na tanga, que é
feita de uma fazenda melhor e mais bonita. Ao pescoço traz um colar todo feito de pe-
dras preciosas, enormemente caras; e do pescoço pende, também, uma cordinha
muito mais comprida do colar, feita de fina seda, onde estão cravadas cento e quatro
pérolas, alternadas com rubis; esta jóia é também de grande valor. O rei usa esse
cordão de seda porque precisa rezar todos os dias cento e quatro orações a seus ído-
los, segundo o mandamento de sua religião. É um costume antigo, respeitado por to-
dos os reis.
58
As viagens do aventureiro pela Ásia deram-se por volta do último quartel do
século XIII, quando a presença do rosário na Europa ainda era recente (tanto que Polo não se
vale do então pouco conhecido termo rosáriopara designar o cordão de orações do rei).
57
Em si mesmo: como será visto com mais detalhes no tópico 3 deste Capítulo.
58
POLO, 242, 110-111. Grifei.
33
Dantes ainda, o hagiógrafo e principal autor da Vulgata, São Jerônimo (c. 347-
419 ou 420), noticiara que no Egito copta o primeiro eremita cristão, São Paulo de Tebaida (c.
228-c. 341), já contava suas orões valendo-se de trezentos seixos desatados que rolava entre
os dedos. Deve-se notar que não se pode dizer do fio, elemento essencial do rosário propria-
mente dito, que esteja ele ausente nesse caso, mas sim que sua presença é imagiria e se
consubstancia na rolagem interdigital das pedras.
Contudo, é no Bhagavad Gita (7.8), cuja origem remonta aos séculos VI a IV
a. C., que se encontra a talvez mais ancestral das alusões à enfiada de contas, pela fala de
Krishna:
Os mundos todos estão enfiados em mim, assim como as pérolas unidas por
um fio.
O uso do rosário, que jamais se restringe ao auxílio mnemônico, mas é sempre
dotado de uma alta conotação stica – o que o distingue de colares ornamentais comuns –,
aparece nas mais diversas regiões e religiões, sob as mais variadas formas. Na África animis-
ta, por exemplo, há nocias de vetustas sartas feitas com dentes humanos ou com conchas de
caracol. Na Ásia a fieira devocional está presente nas três religiões com maior mero de
adeptos: o budismo, o hinduísmo e o islamismo. Podem ser encontrados no Tibete lamaísta
guitas cujos contadores são feitos de sementes, de coral, de madeira e até mesmo de discos
das caixas cranianas de monges eremitas, cada material encerrando um significado próprio.
Entre os hindus também há diferentes tipos de rosário, sendo que a revelação do mesmo aos
homens é atribuída a várias divindades, entre elas o próprio Brahma, o Absoluto, e Saravasti,
o alfabeto. A fiada de Saravasti, em particular, contém cinqüenta contas que remetem às cin-
enta letras do alfabeto sânscrito, estando seu simbolismo ligado ao sentido da audição e ao
exercício do poder criador da palavra, portanto, à Poesia: é o manifestado querendo voltar ao
Manifestante através da meditação do verbo; já foi visto que essa é uma noção cara a Guima-
rães Rosa, sendo pertinente nova referência:
O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e
as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido
original. Meditando sobre a palavra ele se descobre a si mesmo. Com isto repete o
processo da criação.
59
No hinduísmo é freente, assim como no budismo, o rosário de 108 contado-
res, sendo esse um mero cíclico sagrado que expressa o desenvolvimento da manifesta-
59
In: LORENZ, 58, 83. Grifei.
34
ção
60
, ou seja, mais uma vez se retrata o movimento da criação, que sempre tende a voltar ao
Criador. Essa especulação também está presente no Islã: o tesbih tem 99 contas, cada uma das
quais se referindo a um dos Nomes de Deus, e consoante explicam Chevalier e Gheerbrant,
A centésima conta, não-manifestada, exprime o retorno do múltiplo ao Uno, da manifestação
ao Princípio.
61
Não se pode precisar com certeza quando o rosário surgiu na Europa cristã. Há
quem situe esse acontecimento por volta do século IX, com o uso de cordões de s adstrito
aos monges e conversii de uns poucos monastérios, principalmente na Irlanda. O povo do
continente, porém, só adotaria o rosário bem mais tarde. As incursões à Terra Santa nos sé-
culos XII e XIII, quando os cruzados conheceram o rosário muçulmano, parecem ter contri-
buído para a propagação, e por essa mesma época São Domingos, fundador da Ordem dos Ir-
mãos Pregadores, ajudou de tal forma decisiva a popularizar o uso do cordel devocional que
muitos católicos ainda hoje o consideram o seu inventor.
O rosário de utilização hodierna mais difundida entre os católicos romanos é
justamente o dominicano, que é formado basicamente por 150 contas representativas da ora-
ção Ave, Mariadivididas em grupos de dez, os quais são entremeados por mais quinze ca-
mândulas que representam as orações Pai nossoe Glória” (num total de 165 preces). Essa
longa fieira é costumeiramente dividida em terços, divisão que, ao que parece, foi instituída
pelos monges irlandeses como forma de facilitar o desfiar dos contadores pelas pessoas mais
simples (a lenda segundo a qual a divisão por terços teria sido uma contribuição de São Patrí-
cio, nos albores do cristianismo na Irlanda, parece não proceder, pois recuaria a presença do
rosário na Europa até o século V, o que é muito improvável). Há, todavia, outros tipos de sarta
cristã, embora quase todos de inspiração marianista. Um deles, em voga durante o século
XVI, continha sete berloques de padre-nossos entremeando seis dezenas de contas de ave-
marias dispostas em círculo, do qual saía um fio com mais três contas extras de ave-marias e
um crucifixo (em que se rezava o Credo) formando um pingente que foi em seguida agre-
gado ao rosário dominicano; as 63 ave-marias lembravam os anos de vida da Virgem, con-
forme quer a tradição. É também comum a chamada dezena do rosário, um anel com uma
cruz em relevo e dez saliências à guisa de contas, provavelmente surgido entre os Cavaleiros
de Malta que o usavam no cinturão (ou mesmo no cabo da espada) e mais tarde utilizado, de-
vido a sua facilidade de ocultação, pelos católicos ingleses na época das perseguições refor-
mistas, quando a posse do rosário era uma prova de catolicismo contra seu detentor; como já
60
Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 790.
61
Id., ibid. Grifo dos autores.
35
se disse, consta que Guimarães Rosa habitualmente meditasse com um desses anéis
62
. Menci-
one-se ainda o cicotki da Igreja Católica Ortodoxa, composto por cem contas e mais um apên-
dice com outras dez que servem para o cômputo das centenas, podendo-se assim chegar ao
total de mil preces; sob uma forma reduzida e com o nome de “terço bizantino, tal rosário
vem sendo nos dias de hoje ecumenicamente utilizado pelos católicos ocidentais em sua de-
voção.
Ora, a forma de se rezar o rosário, em quaisquer das muitas culturas em que o
mesmo se faça presente, é colocando-se-o em movimento, ao se desfiar entre os dedos os
contadores: tem-se aí, por conseguinte, uma representação do movimento do ser em direção a
Deus, movimento que é circular, isto é, parte-se de um dado ponto e, a cada conta que se
afasta, por um lado, desse ponto de origem, aproxima-se do mesmo pelo lado oposto. É então
possível dizer que até a metade inicial do desfiar se trata de uma cinética de fuga, e na metade
final, de uma cinética de retorno, de volta ao começo, embora o germe de cada uma esteja di-
aleticamente contido na outra: quando se afasta, já se achega, e quanto mais longe, mais perto,
e vice-versa. O rosário configura-se deste modo como um forte símbolo da busca empreendi-
da pelo ser de se unir a Deus (a Origem), e por via de conseqüência, o poeta que reza o rosário
em Magma está também inequivocamente pondo em movimento seu microcosmo a fim de
integrar-se no macrocosmo, e o faz obedecendo à risca ao princípio dialético de fuga-retorno.
É também importante o fato de que o desfiar meditativo do rosário baseia-se
invariavelmente na repetição de palavras, fórmulas, mantras ou preces. Desta maneira, cada
conta tem uma relação muito íntima com todas as outras contas: é um nexo de similitude, rea-
firmação e complementaridade ou, por outras palavras, um nexo de completude que se perfaz
em cada conta meditada, tal qual cada um dos golpes de martelo que se dá na cabeça do prego
para enterrá-lo na madeira. Mesmo que alguns contadores representem na aparência uma pro-
posição diferente – por exemplo, na fiada cristã a presença das ave-marias, padre-nossos e
outras orões e na fiada maometana a recitação dos 99 hierônimos –, a intenção é em essên-
cia sempre a mesma: a vontade de se aproximar do divino, vontade que é confirmada conta a
conta. Os sentidos de sacrifício e de persistência da fé também são válidos. Ademais, nessa
reiteração fica patente a herança do pensamento ancestral que prega a necessidade de renova-
ção periódica dos ritos sagrados a fim de que se não perca a sua pureza e eficácia mágica
63
;
em Magma, isso se reflete pela retomada connua de símbolos mais centrais, como a água, ou
pela constante evocação a momentos especiais, como a morte em sua acepção de passagem
62
V. nota 37 (pág. 27).
63
V. VAN GENNEP, 280, 134.
36
iniciática. Diga-se por fim que no hinduísmo a repetição dos mantras está também relacionada
ao ritmo da respiração, o sopro da vida dado pelo Atman (alma individual) aos seres.
Na peça vestibular fica expressamente declarado que o rosário magmático é re-
zado “conta a conta”, o que vale dizer que texto a texto se renova a mesma idéia fundamental
de movimento rumo a uma realização do espírito. Esta nada mais é do que a Integraçãodo
poeta na “Consciência Cósmica”, de conformidade com as duas composições finais de Mag-
ma. Destarte, cada poema reporta-se a todos os outros poemas do livro, eis que todos são
como que passos que consecutivamente comem o mesmo itinerarium: mentis ad Deum.
Para aperfeiçoar a análise do símbolo rosário” cabe investir ainda na etimolo-
gia do vobulo, bem como no exame do símbolo parente “rosa”.
2.1. O rosário: jardim...
Que prazer passear no jardim! Faço, nele, a volta do infi-
nito...
HI KANG,
séc. XVII-XVIII
Foi na Inglaterra, a partir do século XII, que se comou a aplicar a palavra
rosário” ao fio de contas. Anteriormente, rosário, ou em inglês roserie, vindo do latim ro-
sarium, significava simplesmente um jardim de cultivo de rosas.
De início, o termo praticado para designar o objeto devocional no Ocidente foi
saltério: os monges cristãos europeus utilizavam a enfiada de contas – ou nós feitos num
cordão, geralmente o que cingia o hábito – para a recitação, em latim, dos 150 Salmos, livro
bíblico cujo outro nome é Saltério. Esse extenso recitativo, todavia, era uma tarefa por demais
complexa para ser desempenhada pelos camponeses e conversii analfabetos que acompanha-
vam os serviços religiosos nos mosteiros. Os leigos obtiveram assim a permissão de rezar um
padre-nosso em substituição a cada um dos salmos. Mas logo a devoção marianista se ims,
com o que a ave-maria veio a ser a oração mais rotineira.
Ora, um dos símbolos que já de longa data costumeiramente se votava à Vir-
gem Maria era a rosa. As contas foram então naturalmente associadas a rosas e a fieira passou
a ser chamada pelos fiéis de “grinalda” ou “coroa de Nossa Senhora” (embora a Igreja recha-
çasse esses nomes, tidos como mundanos, tentando em vão impor a denominação de “saltério
de Nossa Senhora”); ainda em nossos dias a palavra alemã para rosário é Rosenkranz, “coroa
de rosas. No entanto, o processo ainda não estava acabado: os livros de orões marianas
37
eram, desde os séculos XI e XII, freentemente chamados pelos nomes de “Jardim de rosas
e de “Rosarium(a exemplo dos tratados alquímicos), termo este que acabou migrando dos
breviários para a enfiada de contas e afinal consagrou-se na maioria dos países católicos.
O Dicionário Oxford ainda hoje registra para roserie ambas as acepções de
objeto devocional e de jardim de rosas. A imagem do jardim deve ser levada em consideração
para a exata compreensão do alcance do rosário como símbolo. É importante lembrar que na
mentalidade medieval, quando o vobulo foi aplicado à sarta, o jardineiro era visto como
uma representação do fiel, eis que, assim como aquele tem que diuturna e cotidianamente cui-
dar de suas flores para tê-las sempre belas e perfeitas, o cristão deveria todos os dias trabalhar
a própria alma, orando, para mantê-la agradável a Deus.
Como parte da simlica judaica desde tempos remotos, o jardim aparece em
vários trechos da Bíblia. Já no Gênesis (2.8-9) se lê:
E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden, na direção do Oriente, e pôs
nele o homem que havia formado.
Do solo fez o SENHOR Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e
boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do co-
nhecimento do bem e do mal.
Éden” é uma palavra hebraica que significa “decia; no judaísmo e nas reli-
giões dele provenientes, o cristianismo e o islamismo, a proximidade com Deus, quer na ori-
gem idílica do ser humano, quer na sua esperança de salvação futura, está sempre ligada ao
simbolismo do jardim de decias. Isso pode ser visto também noutra palavra do mesmo cam-
po semântico de “jardim: paraíso, ou em latim paradiso, a qual tem origem provavelmente
no hebraico pardés, que se traduz por pomarou jardim; pardés, por sua vez, parece provir
do sânscrito paradesha, lugar elevado, região suprema”, através do persa pairi-daésa,
“cercaou cercado, i. e., um recanto íntimo próprio para meditação, situado no centro de
um bosquete florido; com isso, paraíso” evoca ao mesmo tempo as idéias de jardim (como
locus amoenus), de elevação espiritual e de interioridade. Esses significados agregam-se ao
simbolismo semítico do jardim de decias, relacionado tanto ao Paraíso terrestre quanto ao
celeste.
Compreende-se, em tal contexto, que a Queda de Adão e Eva se ultima com a
expulsão do Éden, cuja entrada passa a ser vigiada por um anjo armado com uma espada de
fogo, o que lembra o guardião ignígero das Hespéridas da mitologia helena. Em Magma, entre
outras passagens, o jardim aparece como Paraíso filosófico, em sentido cruzado exatamente
com o Jardim das Hespéridas, sítio sagrado guardado por um dragão e onde eram encontra-
38
dos os pomos de ouro, capazes de conferir imortalidade quando ingeridos. Segundo a lenda, o
monstro, ilustração das vicissitudes que devem ser vencidas por quem intenta entrar no vergel,
é derrotado por Héracles, que se apossa dos frutos num dos notáveis Doze Trabalhos, as os
quais conseguiu elevar-se da condição de semideus terreno até a de deus olímpico.
De volta ao Velho Testamento, vale nos demorarmos por alguns instantes no
Cântico dos Cânticos ou Cantareslivro poético e sapiencial cuja autoria é tradicionalmente
atribuída ao rei Salomão e que consiste numa alegoria da aliança de Javé com Israel e da uni-
ão da alma com Deus. A obra segue a estrutura do oaristo, entremeado a espos pelas mani-
festões de um coro. Chamando a si própria de “rosa de Sarom” e rio dos vales, a amada
é comparada por seu esposo a um jardim fechado(tal como o recanto íntimo dos jardins
persas) e a uma “fonte dos jardins, dentre outras imagens. Os estudiosos ainda não chegaram
a um consenso sobre se a amada representa Javé e o esposo a alma fiel ou se o vice-versa é a
representação ideal; mas em qualquer caso a comparação da esposa com o jardim é significa-
tiva.
Jardim fechado, a propósito, é também o título do primeiro dos Jardins e ri-
achinhosque aparecem em Ave, Palavra. Nesse texto, Guimarães Rosa entrelaça o sentido
salomônico do amor e da sabedoria, apostos ao ambiente végeto, com o valor da inocência
edênica da infância. A estória rosiana nos conta do fascínio que é exercido sobre “O menino
pelo jardim – quase um oceanocujo caminho e a entrada” foram ensinados pelo gato
de grave existência”, o qual sabia abrir ele mesmo a torneira, para beber sua sede de água.
Logo, a criança surge como um aprendiz que é introduzido pelo guia hierático num outro es-
pode “mágica tranqüilação, mansão de mistério, uma “Estância de doçura e de desor-
demque é, a um tempo, fértil para as florões da planta e para as do espírito. E é nesse re-
cinto sagrado, onde “A verdidão arregalava olhos e avese faziam-se espantos, que o me-
nino acaba vendo, no olho do gato, o retrato pupiladode um homem (...) Do tamanhinho
de um dedo, o homenzinho de nada, pousado num ramo de jasmim-do-cabo. Esse “ente
duende” de nome “Mirlygus, Mestrim, Mistryl, Mirilygus– que habita o jardim ensina ao
menino:
Eu vivo de poesia.O menino também sorriu. – Isto é: de sabedoria...o tico de
homem completou; só siso. – O senhor é velho?– quis mais saber o menino. – Sou.
Também você. Agora, você já é, o que vai ser no número de anos. Não há tempo, ne-
nhum: só o futuro, perfeitíssimo...ele disse, Mestrim, tão enxuto. Então o menino se
encorajou: Meu senhor homúnculo... falou (claro que com outras palavras) – ...
este jardim é o meu?E o figurim respondeu: Não. O seu virá, quando amar.E o
menino: Hem? Eu?E o outro: Há flor sem amor?
Daí, longo, disse e falou:
39
– São muitos e miles de jardins, e todos os jardins se falam. Os ssaros
dos ventos do céu – constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira
do mais belo. Este é o Jardim de Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um
grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer
de Fada... Um dia, voterá saudades, dos dentinhos, que nunca viu, que ela jogou no
telhado. Vos, então, saberão...
64
O ensinamento do silvano remete, aliás, a outra peça integrante de
Ave, Pala-
vra
em que o vergel de feição salomônica e edênica faz presença:
trata-se de “Evanira!,
composição de grande complexidade estrutural que se constitui como uma espécie de sinfonia
mallarmaica, composta por temas e subtemas de movimento espacial, os quais ilustram poeti-
camente o percurso da senda mistagógica através da contemplação do sentimento amoroso –
contemplação essa que, como veremos a bom tempo, será levada a efeito também em
Magma
,
com o mesmo interesse iniciático. Por ora, no texto de
Ave, Palavra
O Narrador tenta, em
repetidos ímpetos, narrar o inarrávelde um enredo que se passa em um bosque”, para onde
são trazidostal como Adão e “EVA NASCENTE, PRIMEVADois seres. Estes des-
cobrem que, imemorialmente, se amam, mas acabam sendo separados: deste modo, a “ale-
griado Narrador Joãpaulino, a princípio imensa”, vai, “aos poucos, substituindo-se, em
sutil, pela saudade”. No fim, entretanto, os amantes se reencontram e em colóquio reconhe-
cem que
É preciso ter saudade de ti,
mesmo perto de ti
. PARA MAIS PERTO!
Só a saudade é
sempre
necessária.
É preciso recriá-la sempre, tê-la conosco (
e às árvores deste jardim, prime-
vo, o único
)...
65
Considere-se que, se “São muitos e miles de jardins, e todos os jardins
se
falam
(conforme Mirilygus instruíra o menino no Jardim fechado), então, por força da co-
munhão dialógica e poética entre essas ambiências, o que acaba se estabelecendo em ver-
dade é um só jardim, primevo, o único” e ideal: o do Éden ou de Evanira, do qual todos os
demais jardins são não mais do que desdobramentos. E procurar recriar e ter sempre “conos-
co” a saudade” e as árvores deste jardimsignifica o intento anagógico de retorno do ser
humano àquela primitiva inoncia genesíaca em que se vive em comunhão com Deus. Hygia
T. C. Ferreira reflete, pois, que, muito mais do que um local de hierofania, o Jardim de Eva-
64
ROSA, 14, 282-283. Nesta citação mantenho, no que diz respeito aos grifos, a composição gráfica dada pelo
texto guimarrosiano. Complete-se que os outros dos Jardins e riachinhossão: O riachinho Sirimim, Reca-
dos do Sirimim, Mais meu Sirimim” e As garças.
65
Id
.,
op
.
cit
., p. 52. Aqui também a composição gráfica referente aos itálicos é a mesma do texto de Guimarães
Rosa.
40
nira rosiano seria mesmo um “espaço utópico de partida e de chegada para alguns poucos
eleitos, em busca de perfeição
66
.
Esse jardim seria, destarte, a própria Poesia.
Convém agora retornar mais uma vez à Bíblia. No Novo Testamento o vergel é
o cenário de episódios dramáticos: é no horto do Getsêmani, ao pé do Monte da Oliveiras, que
Jesus é preso. Pouco antes, no mesmo local, havia Ele suado sangue e por três vezes orado ao
Pai. Saliente-se que Jesus, nessas orações, havia pedido a princípio que fosse afastado de Si o
Cálice do sofrimento, mas que afinal fosse feita a vontade do Pai, e não a do Filho: há, por
conseguinte, um primeiro momento que tende ao afastamento da deliberação de Deus e en-
tão da própria presença dEle e, num segundo momento, a situação resolve-se pela aceitação
dos desígnios divinos, isto é, pela aproximação e unificação da vontade do Cordeiro para com
a vontade de Deus.
A Crucificação, o Sepultamento e conseqüentemente a Ressurreição de Jesus
também tiveram lugar num jardim, de acordo com o Evangelho de São João:
No lugar onde Jesus fora crucificado, havia um jardim, e neste um sepulcro
novo, no qual ninguém tinha sido ainda posto.
Ali, pois, por causa da preparação dos judeus e por estar aberto o túmulo,
depositaram o corpo de Jesus.
67
Portanto, no vergel dá-se a morte do corpo, o instante em que o ser mais se
afasta de Deus eis que a mortalidade é pica da existência, enquanto a essência divina é
eviterna –, e ali dá-se também a Ressurreição do espírito em Corpo Glorioso, quando afinal o
ser se dilui na essência, da qual então definitivamente participa. Afastamento e proximidade,
morte passageira e vida eterna no jardim do Calvário, que mais uma vez figura como uma mi-
niatura do Cosmos. Pois é certo que o jardim, nas várias culturas em que se faz presente como
símbolo, é sempre uma representação do mundo em miniatura” e, o mais das vezes, também
o símbolo do próprio centro do Universo. Esse simbolismo cósmico – que aparece desde o
Egito dos faraós e a civilização babilônica, com os Jardins Suspensos de Nabucodonosor II,
até a asteca foi particularmente fecundo na antiga Pérsia: a apreciação dos jardins constitu-
iu-se mesmo na base stica da mundivisão persa, sendo o tema capital de sua música e poé-
tica; os desenhos dos famosos tapetes persas também tiveram origem na representação estilís-
66
FERREIRA, 47, 1 (v. tb. as págs. 217-218).
67
Jo 19.41-42. O local da Crucificação foi o Gólgota, denominação vinda da palavra aramaica que significa ca-
veira” (na forma latina, Calvário, referente a crânio arredondado, donde calva”). Essa designação se devia à
forma capitada do monte, e não à ausência de vegetação, sendo porém razoável supor que se tratava de um local
coberto apenas por plantas de pequeno porte, já que era utilizado para execuções.
41
tica de vergéis evocativos da arquitetura do Universo. No Japão moderno, igualmente, a
construção de jardins e notadamente a topiaria exprimem uma tradicional visão zen-budista de
mundo, enquanto que na China a jardinagem é, desde tempos remotos, uma expressão arsti-
ca do pensamento taoísta.
A imagem do jardim representa, a um tempo, a harmonia da natureza em esta-
do originário – o natio – e a cultura humana que amanha essa selva; plantar um jardim é, pois,
integrar-se à natureza, porém dominando-a, conforme o poder que, no Éden, Deus concedeu a
Adão. E, como natureza domesticada, o jardim é também símbolo do microcosmo humano, o
qual deve ser trabalhado e cuidado a fim de lhe ensejar a restauração da inoncia original em
harmonia com o divino, o que conforma com a figura do jardineiro fiel do idrio medievo. O
próprio nome “Adão, aliás, tem origem nessa simlica, uma vez que provém do hebraico
adamá, terra cultivável, ou seja, o ser humano é “terra” propícia a, sendo cultivada, florir
um jardim. É nesse sentido que no islamismo Alá é tido como Jardineiro dos “altos conheci-
mentos e dos dons da Inteligência e da Alma
68
, devendo o homem prestar-se ao cultivo por
Deus e a cultivar-se ele mesmo. Já para São João da Cruz, o próprio Deus é um jardim, “agra-
dável moradaque cumpre à alma humana encontrar.
Conforme há pouco anotado, o acervo simlico do jardim foi bem explorado
por Guimarães Rosa nos textos de Ave, Palavra. Quanto a Magma, ao passo que pode ser en-
tendido como um rosárioque é desfiado, desponta o livro também como um jardim ou Pa-
raíso Filosófico, um espo onde o ser pode, recolhido a si mesmo, no mais profundo mag-
ma íntimo(o centro de seu microcosmo), meditar poeticamente sobre a palavra e assim ele-
var-se à proximidade com Deus, o Supremo Jardineiro. Além do Paraíso filosófico, são vá-
rias as composições de Magma em que o jardim é evocado: em A Iara, a reunião das sereias
tem lugar
num vale côncavo, transparente e verde,
num recanto abissal, como uma taça cheia,
entre bosques de sargaços, espumosos,
e jardins geométricos de coral...
69
Mais à frente, o poemeto Taumaturgo(dos Poemas) faz referência ao jar-
dim Hagembeck: este zôo alemão, afora aparecer na obra de estréia do escritor mineiro, so-
68
Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 512.
69
Grifei. Em ROSA, 2, 16: em vale côncavo, transparente e verde,/ (...) e rígidos jardins geométricos de co-
ral...
42
brevém, em Ave, Palavra, como título geral de duas séries de chistes
70
. Ainda em Magma, a
cena de Ironia” ocorre “no jardim fechado, a janela de “Derioabre-se para o parque
morno” e o jardim pagão” é o palco de “Hierograma”.
Desse modo, infere-se que cada conta rezada ou poema do livro de 1936 pode
ser entendido como uma flor do rosário que deve ser cuidada e contemplada pelo poeta, o qual
pretende, inspirando-se no trabalho de criação divino, realizar sua jardinagem interna.
Dito isto, faz-se apropriado finalizar o estudo do símbolo rosáriocom a
abordagem do símbolo constituinte “rosa.
2.2. O rosário: ... de rosas
Aquele que quer contemplar a glória de
Deus contem-
pla uma rosa vermelha... E assim como a Realidade última
pode ser talvez percebida na contemplação imóvel de uma rosa
rubra, assim também quando uma flor delicada encanta o co-
ração a gente se sente de novo, por um instante, uma planta. O
místico Deus no jardim e vê a si mesmo na relva.
AL-WASITI,
séc. XIII
Há flor sem amor?
MIRILYGUS
A rosa, desde os albores, tem uma presença marcante no imaginário cristão.
Primeiramente, e num sentido stico que embasa todas as suas demais significões, repre-
senta ela a manifestação que se ergue por sobre as águas primordiais: é a pujante Vida que de-
sabrocha em resposta à lide do Criador.
Em seguida, o símbolo adquire um caráter mais doloroso, como que da dor que
é inerente à vida: de acordo com a tradição, rosas vermelhas brotaram das gotas do suor san-
güíneo de Jesus que caíram ao solo no momento da agonia no Jardim do Getsêmani. Mais im-
portante porém é que, como símbolo também das chagas do Cristo crucificado, a rosa evoca
ou o próprio sangue ou a taça (Santo Graal) que o recolhe, estando, de qualquer forma, asso-
70
Zôo (Hagenbecks Tierpark, Hamburgo – Stellingen): id., 14, págs. 120-125 e 192-195. Há também as séries
Zôo (Whipsnade Park, Londres), Zôo (Rio, Quinta da Boa Vista), Zôo (Jardin des Plantes), Zôo (Parc
Zoologique du Bois de Vincennes)” e, ainda denotando proximidade de tema e estrutura, Aquário (Berlim)” e
Aquário (Nápoles). No conjunto, o zoológico hamburguês é o único que se repete. Aproveito para esclarecer
que uso o termo chiste” conforme a noção novalisiana (v. NOVALIS, 226, passim, especialmente as Anedo-
tas, págs. 171-173: A anedota chistosa consiste na suscitação da atenção – tensão – e incitação ou o-
incitação; grifo do autor), noção, aliás, percepvel nos Prefácios de Tutaméia, sobretudo Aletria e hermenêuti-
ca” (ROSA, 12, 3 e segs.): Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica,
propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento.
43
ciada ao sacrifício do Cordeiro. Mas o sacrifício é, até no étimo (do latim sacrum facere), o
sofrimento ou a privação através do qual o ser ou o objeto se torna sagrado; não é por outro
motivo que o simbolismo rosáceo abrange a realização perfeita do projeto divino na pessoa
do Cristo ressurrecto que venceu a morte – um símbolo da ressurreição e da imortalidade
como desdobramento e reafirmação do símbolo da vida, e ainda um símbolo da alma que em-
preende tal aventura. E como imagem da realização perfeita a rosa anuncia também, por ex-
tensão, a possibilidade de cada homem realizar perfeitamente em si a evolução crística do re-
nascimento: é a perfeição através do sofrimento depurativo, o verdadeiro nascimento do espí-
rito ou a verdadeira vida as a morte, e mais, a vida apesar e atras da morte espinhosa. É
com esse exato sentido que, na Divina Comédia, a Rosa Cândida é a flor que Beatriz oferece
a seu amante quando este, as passar pelo Inferno e pelo Purgatório, chega afinal ao último
círculo do Paraíso; Dante também compara o amor paradisíaco, pleno e puro, Ao centro de
ouro da rosa eterna, que se dilata, de grau em grau, e que exala um perfume de louvor ao sol
sempre primaveril
71
.
O pensamento alquímico herdou da rosa cristã esse aspecto de realização perfi-
ciente através da angústia: os tratados de espagíria são habitualmente intitulados roseiras dos
filósofos(ou Rosarium, tal como os breviários marianistas) e a rosa alba é um dos símbo-
los mais freentes da pedra em branco (albedo), a meta da Pequena Obra, enquanto que a
rosa encarnada é o símbolo por excelência da pedra em rubro (rubedo), meta da Grande Obra;
é ponto pacífico que tais pedras perfeitas poderiam ser obtidas apenas às custas de um labutar
paciente, esforçado e sofrido que se arrastava cotidianamente por longos anos.
A imagem de realização através da provação confere ainda à rosa cristã uma fi-
sionomia fortemente iniciática que deve alguma coisa à mistagogia grega: quando Adônis, fe-
rido de morte, agonizava, rosas também lhe brotaram do sangue como um meio de prolonga-
mento da vida, evidenciando o renascimento stico que era buscado pelos neófitos na cele-
bração dos mistérios (uma outra versão do mito assevera que Afrodite, ao socorrer Adônis, fe-
riu-se nos espinhos das rosas, as quais, originalmente brancas, ficaram desde então coloradas
de encarnado pelo sangue da deusa). Por conseguinte, desde a Antigüidade a rosa e sua cor
têm sido símbolos da iniciação aos mistérios, bem como do segredo que a eles se aplica, de
conformidade com o que depõe o próprio Guimarães Rosa: os de sua filosofia ou seita cos-
71
Apud CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 788-789. V. em ALIGHIERI, 100 ou 101, O Paraíso, Canto
XXX, v. 124-127, e Canto XXXI, v. 4-22.
44
tumam viver ‘sub rosacomo diziam os romanos, a rosa símbolo da secretividade absolu-
ta.
72
Entre os romanos, a propósito, a imagem da rosa vivificante ficou fortalecida
em razão do parentesco fonético, em latim, de rosa com ros, orvalhoou “chuva”, que é
também outro símbolo de regeneração. Daí vem a antiga cerimônia latina da rosalia, a depo-
sição de rosas sobre as tumbas dos ancestrais a fim de agradar os manes com a promessa de
uma nova vida.
É tanto do vínculo com os mistérios gregos quanto com a experiência crística
que resulta o notório simbolismo da rosa como amor. Os gregos consagravam as roseiras a
Atena (nascida em Rhodes, a “Ilha das rosas) e a Afrodite, a deusa do amor, pelo que a rosa
grega, evidentemente, evola um perfume e um sabor mais sensuais, ainda que de uma sensua-
lidade stica, enquanto que a rosa cristã recende a puro ágape. O pensamento rosa-cruz be-
neficiou-se dessa imagem, eis que o emblema da sociedade é justamente uma rosa colocada
sobre uma cruz, representando a rosa o amoroso e Sagrado Coração de Cristo:
Ambos estes emblemas, tomados em conjunto, como sempre o estão no bi-
mio Rosa-Cruz, indicam o Amor pelo Auto-sacricio, o Segredo da Imortalidade e a
doce Fragrância de uma vida santa. Portanto, colocada na intercessão dos dois bra-
ços da cruz, a rosa é um dos mais graciosos emblemas do Mistério da Iniciação.
Em essência a Rosa-Cruz é uma etapa ou grau de cristianização, do despertar do
Cristo místico dentro do coração, do amor oculto que é o âmago da rosa mística, e
que só pode manifestar-se quando o coração é colocado sobre a Cruz do Sacrifício.
73
E recorde-se ainda que, como já explanado, a rosa é um dos símbolos da Vir-
gem Maria, a qual, sendo expoente do amor maternal, até hoje é chamada de “Rosa Mística
nas ladainhas. Por outro lado, cabe trazer à lembrança também o célebre Romance da Rosa de
Guillaume de Lorris (1230-1235) e Jean de Meung (1270-1275), em que, ao se cantar o fine
amor trovadoresco, toma-se essa flor como ilustração do objeto do desejo, o qual deve en-
frentar e vencer, para ser realizado, as aflições personificadas no Perigo, no Medo etc...; desta
maneira, a Ars amatoria de Ovídio é temperada com a devoção medieval, numa espécie de
mescla de amor pagão e cristão.
Ora, o poema vestibular de Magma, que fala em rosário – jardim de rosas já
no primeiro verso, configura-se como a primeira rosa, a rosa sacralizadora de iniciação aos
mistérios, o átrio pelo qual o postulante passa antes de adentrar o recinto do templo propria-
mente dito. Os carmes subseqüentes são também todos rosas desse rosário: é através da me-
72
ROSA, 14, 240 (Fantasmas dos vivos).
73
FIGUEIREDO, 175, 413, verbete ROSA-CRUZ.
45
ditação poética que o ser se manifesta, desabrochando por sobre as águas primevas e agindo
na procura amorosa
74
da proximidade de Deus. Essa proximidade traduz-se na realização per-
feita do renascimento do ser, através da angústia da morte iniciática, para a sua vera “Integra-
çãono plano mais alto da “Consciência cósmica.
Há finalmente que se considerar a presença da rosa no próprio nome do autor, o
que com certeza foi por ele levado em conta para atribuir à rosa magmática mais um particu-
laríssimo caráter. Místico, erudito e obcecado por detalhes, é até bem óbvio que Guimarães
Rosa tenha se sensibilizado quanto à imensa riqueza simlica da palavra que compõe o so-
brenome herdado de seu pai, tanto como sensibilizou-se quanto à etimologia do sobrenome
materno:
poderia jurá-lo pelo corcel do jagunço Riobaldo, os quais, indissolúveis, m a ser um
Weihs Mahr (cavaleiro combatenteou cavalo de combate) que, conforme vejo
num léxico etimológico, e passando por Wimara, Guimara, foi o primitivo nome de
Guimarães.
75
Cada conta, cada
rosa
, cada poema enfim, está em
Magma
como o símbolo de
um aspecto do
eu
do poeta moço em dados instantâneos do combate mistagógico e anagógico
pessoal. Deste modo, o rosário rosiano, além de ser um jardim de rosas e um instrumento de-
vocional que propicia o contato do humano com o divino, é ainda um colégio de seres, pois
cada
rosa
magmática constitui-se num
Rosa
verdadeiro, e tanto verdadeiro porque sincero e
espontâneo em sua juventude. O poeta reza como quem cultiva uma rosa, e esta não é outra
coisa que não o próprio
eu
, uma das muitas flores do Jardim Divino.
Conclui-se, sem margem
de dúvida, que o poeta escreveu o livro de 1936 como a representação literária de uma expe-
rimento stico que transcorre, como todo verdadeiro experimento desse quilate, no mais ín-
timo espo do ser: a sua alma.
Essa qualidade de intimidade extrema da experimentação stica em
Magma
verifica-se mais nítida ainda no tópico a seguir.
3. ..., E O FIO CORRE POR DENTRO...
Segundo Chevalier e Gheerbrant, O simbolismo do fio é essencialmente o do
agente que
liga todos os estados da existência entre si, e ao seu Princípio
76
.
74
Sobre o amor, v. o Capítulo III deste trabalho e NUNES, 67.
75
Apud
MEYER-CLASON, 62, 117 (
sic
). V. tb. LORENZ, 58, 65-66.
76
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 431; grifo dos autores, citando R. Guénon.
46
A própria tessitura do Universo, que assim se revela inconsútil, fica estabeleci-
da por meio desse vínculo que une cada ser à Origem e, em decorrência disso, a todos os ou-
tros seres. E o fio que empreende essa ligação outro não é senão a Alma, a qual, particular na
aparência porém universal na essência, não é do ser, mas passa como um sopro por dentro de
cada ser. Nesse contexto, convém lembrar o enunciado por Krishna no Bhagavad Gita 7.8:
Os mundos todos estão enfiados em mim, assim como as pérolas unidas por
um fio.
Quanto ao cordão do rosário em Magma, detém ele dois significados básicos.
Primeiramente, passando a guia “por dentrodas contas e sendo estas os poemas, depreende-
se que os textos estão atados entre si por uma idéia fundamental que é comum a todos eles.
Essa idéia é justamente a intencionalidade anagógica que move o poeta Guimarães Rosa e
que, apresentada pelo poema vestibular, surge como o fio condutor a unir todos as composi-
ções do livro. Destarte, os carmes constituem-se em partes interdependentes a compor uma
estrutura, exatamente como as contas que se unificam na estrutura integrativa do rosário – e,
tal como o rosário somente se perfaz se unidas estiverem as contas pelo cordel, o Magma ro-
siano somente se estabelece se os textos que o comem forem compreendidos num conjunto
em torno do nexo ideal que os define. Exclui-se assim de todo e inapelavelmente a interpreta-
ção do livro como uma coletânea desconjuntada de poemas avulsos; esse é o primeiro sentido
que se pode extrair do verso em tela.
Todavia, vai mais longe o alcance do fio aí mencionado. Se cada um dos poe-
mas é um eu ou um momento do eu poético e se a linha a engranzá-los é a intencionalidade
anagógica que move o ser, pode-se afirmar que o cordão do rosário de Guimarães Rosa, ao
passar pelos poemas conferindo-lhes unidade, passa também por dentro do eu poético do qual
advieram tais poemas: o fio é então, na verdade, a alma de quem escreve. Por conseguinte, ao
se dizer que a intencionalidade anagógica move o poeta, propriamente está-se dizendo que o
desejo de ascese move a alma do poeta em dirão à Alma Universal. Chega-se assim ao fun-
damental: o fio condutor em Magma “corre por dentrode cada poema apenas porque, em
primeiro lugar, corre por dentrode quem reza, vale dizer, por dentro do poeta que reza o ro-
sário. Esse é o sentido precípuo do terceiro verso da peça vestibular, numa exegese autorizada
pela construção frástica que, ao prescindir de um complemento nominal específico e cerceante
(que no caso seria: por dentrode cada conta ou por dentrode cada uma delas), instaura
uma ambigüidade enriquecedora.
47
Recorde-se contudo que o fio anímico do poeta é tão-somente um tributário, eis
que o poeta é, ele próprio, uma das pérolasque correm pelo Fio Principal da Alma Mater.
Dessa maneira, fica claro que tributário e Curso Principal compartilham da mesma essência
fluida. Essa verdade, a de que é a mesma sutil substância” da Alma Mater que “corre por
dentrode seu afluente, é intuída pelo poeta que reza, o qual não a desmente, embora não a
veja nem a sinta, pois não se trata de algo percepvel pelos sentidos corporais. Segue-se que
falar em ligarou unir” a alma à Alma é, em realidade, uma forma simplificada de querer
dizer re-ligar” e re-unir, então ver” e sentirno espírito o que pela fé já se intui ser a
verdade.
À vista disso, eis o que disse Guimarães Rosa pela boca do anagramático Ro-
maguari Sães: Disse, uma vez, em entrevista, que a poesia devia ser um meio de restituir o
mundo ao seu estado de fluidez, anterior, exempta.
77
Através da Poesia “o mundo, isto é, o ser, pode voltar a sentir em si a fluidez
do Fio Principal. Cada poema de Magma, tomado como parte interdependente de um conjun-
to, revela a busca progressiva de nova consubstanciação com essa anterioridade, a tendência à
origem primeva, a volta à luz. Não se pode deixar de pensar no fio de Ariadne, a guia que
passo a passo conduz à saída do escuro labirinto das paixões, onde perambula o monstro Mi-
notauro, este o símbolo do homem animalizado. E é somente no labirinto do eu, é somente
dentro de si próprio que o poeta pode procurar a “terceira margem, o caminho para a Foz,
pois “apenas na solidão pode-se descobrir que o diabo não existe. E isto significa o infinito da
felicidade.
78
Daí decorre que os mecanismos hábeis para se provocar uma alteração positiva
na realidade do eu podem e devem ser procurados no âmago do próprio eu, conforme o antigo
provérbio grego que constituía a epígrafe lapidar do Templo de Delfos e foi divisa de Sócra-
tes: Conhece-te a ti mesmo(Gthi seautón, que circula também nas formas latinas Nosce
te e Nosce te ipsum)
79
. É mais uma retomada da vetusta noção de que a teognose assenta-se
em realidade na heautognose.
Com isso, o poema vestibular acaba por traduzir o conceito do próprio título
Magma, o que convém analisar mais detidamente.
77
ROSA, 14, 234. Grifos – de suma importância – do autor.
78
In: LORENZ, 58,73.
79
Na Galiléia, pelo menos ao tempo do primeiro século, era corrente um provérbio similar, citado pelo próprio
Jesus: Médico, cura-te a ti mesmo(Lc 4.23).
48
3.1. O magma íntimo
O reino de Deus está dentro de vós.
LUCAS
17.20-21
É divindade que me bate no peito.
WALTER FRANCO
A relação entre o título do livro e o terceiro verso do poema vestibular (“e o fio
corre por dentro,) é tão estreita que se admite pensar até mesmo na hitese de que “Magma”
seria o título do próprio prmbulo, que se teria estendido a todo o volume.
De acordo com o dicionário
Aurélio
, magma” é: Massa natural fluida, ígnea,
de origem profunda, e que, ao esfriar-se, se solidifica, originando a rocha magmática.
A pedra de toque vem a ser que o magma é de origem
profunda
” e, ademais,
de natureza “
ígnea
, ou seja, nasce, estua e corre pelas entranhas da terra como um grosso rio
solar: esse férvido fluido subterrâneo é como que a alma terral, pois que também ígnea e ínti-
ma é a alma de Adão, cujo corpo foi formado por Deus a partir do pó da terra. Sendo assim,
resta indubitável que o fio anímico que “corre por dentrodo ser poético, sua alma pessoal
que guarda nexo de proveniência para com a Alma Universal, pode ser veramente compreen-
dido como...
Magma
.
No discurso que proferiu na Academia Brasileira de Letras em 1937, em agra-
decimento ao prêmio concedido ao livro de poemas, Guimarães Rosa refere-se aos momen-
tos de
febre
inspiradora” em que o artista “tateia formas novas para a exteriorização do seu
magma íntimo
, do seu
mundo interior
.
80
Mais à frente o poeta afirma:
O
Magma
,
aqui dentro
, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, liber-
tou-se do meu desamor e fez-se criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja
muito de acordo, mas a quem a vossa consagração me força a respeitar.
81
Fica pois patente o caráter de
interioridade
que o autor quis conferir ao título
do livro. Pois é a presença desse rio ígneo ou fio anímico, a constituir o mundo interiordo
ser, que permite se possa religar a existência humana, acesa pela manifestação poética, à es-
sência divina. O
Magma
revela-se mesmo como a íntima e ardente vontade do poeta, ou me-
lhor dizendo, a sua
necessidade subterrânea
de ser
algo além do humano
, de fluir transpondo
80
ROSA, 17, e tb. in:
id
., 2, 8-9 (trecho). Grifei.
81
Id
.,
op
.
cit
., pág. 9. Grifei.
49
e destruindo
82
a aparência de um confuso amálgama particular de pensamentos, experiências e
sensões, para integrar-se na essência do Todo, do qual em realidade a Parte nunca se desli-
gou, mas no qual não mais se sente imersa pelas contingências da condição humana. Eis por-
que a precisão de se explicitar no poema que “o fio corre por dentro: é um chamamento à
reminisncia, a fim de que o ser que bebeu do Lethes possa então lembrar-se da própria
alma, a qual está despercebida dentro de si – o que não se vê nem se sente –, e desta forma
não desminta que pelo seu interior passa o germe do divino, o Fio que conduz à Foz. Ou ain-
da, valendo-se do enunciado de Guimarães Rosa no poema “Revolta,
porque a minha tria é a memória.
Isto é, o processo de volver a Deus a “pátria” anímica é tão-somente desco-
brir na obnubilada “memória” do homem que a alma, à vera, jamais se apartou dEle: retornar,
tornar de novo, é reconhecer, conhecer mais uma vez.
Quanto à igneidade do Magma, evidencia ela a ardência do quente diálogo
que o poeta procura travar com a Sarça Ardente do Infinito. Ora, o calor, tanto no Rig-Veda
como no Tratado da flor de ouro taoísta, e ainda na filosofia de Tales de Mileto, é a energia
que permite à manifestão erguer-se do Caos inicial; no caso de Magma, o calorífero diálogo
do ser com o que está além do ser permite que de dentro do próprio ser possa nascer a divin-
dade, tal qual um ovo que se choca.
Importa, outrossim, que a ignescência magmática exprime particularmente a
purificação e a iluminação internas que o desfiar do rosário poético enseja. A purificação e a
iluminação aparecem, a um tempo, como decorrência do processo de gnose e como condição
para que o mesmo possa avançar a bom termo, e isso porque, para que se possa reconhecer
dentro do eu a divindade que se busca, faz-se preciso desbastá-lo daquilo que é meramente
existencial: é a lavagem, a água e fogo, da crosta de barro tenebroso que está a ocultar o se-
creto ouro solar da essência. Ou, na proposição de Plotino (Enéadas, I, 6, 5):
É como se um homem mergulhado na lama de um lodaçal não pudesse mais
mostrar a beleza que possuísse, e como se nós não víssemos nele senão a lama que o
cobre; a fealdade apareceu nele pela junção de um elemento estranho, e se ele tiver
de voltar a ser belo deverá dar-se ao trabalho de se lavar e limpar para ser o que era
anteriormente.
Vem a propósito da purificação Isaías (6.6-7):
82
Cf. Águas da serra”: E então, do sono pleno dos paraísos perfeitos,/ os diques se romperam,/ as forças rola-
ram livres,/ e veio a ânsia que redobra ao se saciar,/ e os pensamentos que ninguém pode deter,/ e novos amores
em busca de caminhos.... Grifei.
50
Então, um dos serafins voou para mim, trazendo na mão uma brasa viva, que
tirara do altar com uma tenaz;
com a brasa tocou a minha boca e disse: Eis que ela tocou os teus lábios; a
tua iniqüidade foi tirada, e perdoado o teu pecado.
Essa é aliás a única passagem da
Bíblia
em que se menciona, com esse nome,
os serafins, anjos dotados de três pares de asas e cuja designação vem do hebraico
Saraf
, que
significa “abrasador, ardente, o que queima” ou o que se inflama”; essas criaturas celes-
tes representam a
escorificação do espírito pelo fogo divino
. O fogo também é purificador
quando, vindo do u como raio, é um sinal de que Deus se agradou com um sacrifício (
I
Reis
, 18.38):
Então, caiu fogo do SENHOR, e consumiu o holocausto, e a lenha, e as pe-
dras, e a terra, e ainda lambeu a água que estava no rego.
Faz-se oportuno salientar que, como alertam Chevalier e Gheerbrant,
A purificação pelo fogo (...) é complementar à purificação pela água, tanto no
plano microcósmico (ritos iniciáticos) quanto no plano macrocósmico (mitos alterna-
dos de Dilúvios e de Grandes Secas ou Incêndios).
83
É pela união da água teofânica, a qual desce do u feito chuva, com o fogo es-
piritual, o qual para o u estende suas labaredas, que surge o vapor quente e sutil que efeti-
vamente se eleva até as nuvens, conforme a fórmula alquímica chinesa fundamental: “a união
da água e do fogo produz vapor dágua; isso guarda nítida associação com o pensamento de
Tales de Mileto, para quem a água é o princípio da vida, que todavia só se manifesta com a
ação do calor sobre o quido primordial. E é dessa maneira que, as o poema de abertura,
Magma
prossegue com poemas hidráulicos (Águas da serra” e A Iara), a partir dos quais a
água desponta como um
Leitmotiv
dos mais freentes e de grande importância no decorrer
do livro, como por exemplo no ciclo No Araguaia”, em O cágado” e no contraste que se ve-
rifica entre a soturna “Toada da chuva” e a “Chuva” alegre do antepeltimo poema, prenun-
ciando a Integraçãodo poeta na “Consciência cósmica; o calor e o fogo do título, por outro
lado, são reevocados a espaços largos, em Boiada”, Alaranjado” e “Bibliocausto. O senti-
do de tudo é que o fogo da alma absterge destruindo e propiciando a regeneração,
i. e.
, redu-
zindo a impureza e a ignorância do intelecto à nigredo que se abre à abrasadora compreensão
do
eu
; a água, por seu turno, purifica o sentimento e, como princípio vivificante, atua sobre as
cinzas da nigredo, regenerando-a com efeito sob a forma do desejo albente. A própria nature-
83
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 441.
51
za do magma geológico, que é ao mesmo tempo fogo e fluido – com o que pode ser aparenta-
do à “água ígneada Obra espagírica reforça essa união de essências paradoxal.
No que diz respeito ao lume ignígeno, é justamente como iluminador do re-
cinto escuro da mente humana, afastando as trevas da ignorância, que o fogo civilizador apa-
rece no mito de Prometeu. Todavia, o fogo interno, conato ao ser, é aquele que Prometeu ne-
nhum precisa subtrair aos deuses, sendo talvez este o verdadeiro significado do castigo do titã:
consumir-se em dores e desespero, num remorso figadal, por ter buscado fora de si e com
macia o que dentro de si mesmo graciosamente já estava. O poeta é então o anti-Prometeu,
pois não furta, apenas reconhece e recebe o que é seu.
O fogo ainda evoca o sopro divino ou a teopsia, tal como as nguas de fogo
que, descendo sobre os discípulos no Pentecostes, imbuíram-nos do Espírito Santo (Atos, 2.1-
4). Embora os evangelistas e máxime o Apocalipse de São João tenham criado no imaginário
cristão a figura do fogaréu infernal, no Antigo Testamento o fogo quase sempre sinaliza a pre-
sença e a atuação do próprio Javé. Assim, lê-se em Êxodo (3.2):
Apareceu-lhe o Anjo do SENHOR numa chama de fogo, no meio de uma sar-
ça; Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo e a sarça não se consumia.
Ainda em Êxodo (19.18-19):
Todo o monte Sinai fumegava, porque o SENHOR descera sobre ele em fogo;
a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grande-
mente.
E o clangor da trombeta ia aumentando cada vez mais; Moisés falava, e Deus
lhe respondia no trovão.
Em Ezequiel (1.26-28):
Por cima do firmamento que estava sobre a sua cabeça, havia algo seme-
lhante a um trono, como uma safira; sobre esta espécie de trono, estava sentada uma
figura semelhante a um homem.
Vi-a como metal brilhante, como fogo ao redor dela, desde os seus lombos e
daí para cima; e desde os seus lombos e daí para baixo, vi-a como fogo e um resplen-
dor ao redor dela.
Como o aspecto do arco que aparece na nuvem em dia de chuva, assim era o
resplendor em redor. Esta era a aparência da glória do SENHOR; vendo isto, caí com
o rosto em terra e ouvi a voz de quem falava.
Deuteronômio (4.24) é inequívoco:
Porque o SENHOR, teu Deus, é fogo que consome, é Deus zeloso.
O Bhagavad Gita (coincidentemente, 4.24) ensina fórmula semelhante:
52
Brahma é o amor, Brahma é o holocausto, Brahma é o fogo, Brahma é o sa-
crificante; de maneira que quem age com a consciência em Deus, realiza Deus em si,
o Eu Supremo.
Mas se a essência divina é fogo, segundo São Martinho também O homem é
fogo; sua lei, como a de todos os fogos, é a de dissolver (seu invólucro) e unir-se ao mananci-
al do qual está separado.
84
Deve-se ressaltar a felicidade desse fragmento, onde são conjuga-
dos numa mesma imagem o fogo e a água, com todas as inferências há pouco comentadas, e
onde, além do mais, fica muito cristalino que a alma humana participa da essência divina, à
qual só volta em plenitude pela dissolução (preciso termo alquímico) do corpo que a acolhe e,
no entanto, a limita. É a erupção do
Magma
, rompendo a terra e buscando o Céu e o Sol.
Com esse sentido, o fogo interior também aparece no budismo (
Sumyutta-
nikaya
, 1.169):
Atiço em mim uma chama... Meu coração é a lareira, e a chama é o eudo-
mado
.
85
Isso nos leva ao Athanor, o forno alquímico, o qual, no dizer de Marcel Griau-
le, é
onde se opera a transmutação, é uma matriz em forma de ovo assim como o mundo
que é, ele mesmo, um gigantesco ovo, o ovo órfico que se encontra na base de todas
as iniciações, tanto no Egito como na Grécia; e do mesmo modo que o Espírito do Se-
nhor, ou Ruah Elohim, flutua sobre as águas, assim também nas águas do atanor deve
flutuar o espírito do mundo, o espírito da vida, para apoderar-se do qual o alquimista
deve ser bastante bil.
86
Ora, o Athanor, ovo órfico, é o próprio microcosmo. Em
Magma
– vale ainda
frisar –, o forno tem sua natureza assumida pelo poeta que reza, em cujo íntimo abrasante
processam-se o diálogo com a deidade e, conseqüentemente, as operões espirituais alquími-
cas que levarão ao raiar ou despertar da essência divina na aparência humana, isto é, à
apro-
ximação
do humano para com Deus, à tomada da “Consciência cósmica”.
Por fim, de se advertir que o magma, ao carrear, conforme explanado, os senti-
dos de
interioridade
,
igneidade
e
princípio anímico
, corresponde, numa ajustada relação sim-
lica, à antiga noção de
Arquê
(termo provindo do grego
arkhe
, princípio), que vem a ser o
84
Apud
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 440.
85
Apud
id
.,
ibid
.
Neste caso, cito livremente.
86
Apud
id
.,
op. cit.
, pág. 96. Conservo na colação a variante atanorempregada pelos autores (ou pelos
tradutores), embora a forma Athanorme pareça de uso mais difundido e, portanto, preferencial.
53
nome dado pelos alquimistas ao fogo central da Terra, bem como ao princípio imaterial que
seria a origem de todos os femenos vitais.
87
Interessa-nos do magma também a etimologia da palavra. Vem ela, através do
latim magma, do grego mágma, pasta de farinha de trigo amassada”. E eis que os elementos
trigo” e farinha” têm grande apelo simlico, participando igualmente desse simbolismo o
pão que é feito desse mágma.
O simbolismo do trigo assenta-se no sentido de renovação cíclica: o grão, que
morre no solo para depois ressurgir em outros grãos, evoca o ciclo perene das estações e, des-
se modo, ainda mais uma vez a inevitabilidade da morte do eu ou de uma parte do eu como
condição para o pleno renascimento stico sob uma forma mais elevada. Tal circunstância
coloca a planta como fator importanssimo na simlica da maior parte dos ritos iniciáticos
da Antigüidade. Assim é que no Egito a espiga tritícea constituiu-se no emblema de Osíris, ao
recordar a morte e ressurreição do deus.
Já nos Mistérios de Elêusis havia em honra a Deméter, a deusa olímpica da
fertilidade e da terra cultivada, a cerimônia crucial da epopsia (“contemplação), na qual os
noviços em assembléia contemplavam, em silêncio, um grão de trigo que lhes era apresentado
pelo mistagogo; a contemplação meditativa preparava o neófito para a significância da sua
própria morte rituastica. Deméter, a Terra-Mãe, era a figura central desses mistérios e o culto
eleusino a ela baseava-se em duas lendas de sumo valor. Conforme a primeira delas, a deusa
havia confiado a Triptólemo, filho do rei de Elêusis, uma espiga de trigo e a missão de ensinar
aos homens a prática da agricultura; o fundo agrário e o stico entrançam-se na lição da ne-
cessidade de semeadura em solo fértil para que a planta possa frutificar. Além disso, há aí a
implicação de que a deusa deu aos homens não o pão em si, mas os meios para se fabri-lo
com as próprias mãos, dessa maneira demonstrando que também a obtenção do alimento espi-
ritual exige uma busca laboriosa a ser desempenhada pelo ser humano através da iniciação. A
segunda das lendas, de caráter ctoniano, é mais conhecida, relatando o rapto de Perséfone, fi-
lha única de Deméter, por Hades, o deus dos Infernos; irada e em desespero, a mãe saiu em
procura da filha e ameaçou não retornar ao Olimpo enquanto a mesma não lhe fosse devolvi-
da: a ausência da deusa da fertilidade deixou a terra estéril. Porém, como Perséfone havia
rompido o jejum obrigatório nos Infernos, já estava a ele irremediavelmente condenada: as
leis avernais determinavam que quem ingerisse qualquer alimento nos donios de Hades fi-
cava impedido de retornar ao mundo dos vivos, e Perséfone, malgrado forçada pelo raptor,
87
Enciclopédia Larousse, 172, verbete ARQUÊ.
54
havia comido uma semente de romã. Para dirimir a questão, Zeus concedeu que a jovem, já
então esposa de Hades, passaria apenas três meses de cada ano nos Infernos, acompanhando-a
Deméter, e no restante do ano ambas permaneceriam no Olimpo, o que teria causado a alter-
nância das estões: trata-se de uma nova figuração mítica da sucessão cíclica entre a vida e a
morte. Por essa lenda, Perséfone foi levada a simbolizar nos mistérios o neófito que deve en-
frentar a morte e a descida aos Infernos (vale dizer: aos mundos subterrâneos) para poder as-
cender à vida nos Céus, exatamente como o grão que passa meses oculto na terra antes de
germinar. Os mistérios seriam assim, fundamentalmente, uma alegoria da entrada do ser em si
mesmo e do retorno posterior ao seio da maternidade, desse modo alcançando-se a verdade
(alétheia) e a libertação do eu de si próprio.
Os cultos dionisíacos apresentavam cerimônia com evocação semelhante à da
epopsia. Ainda, tanto os sacerdotes gregos como os romanos tinham por costume espargir o
trigo em grão ou em farinha sobre a cabeça das vítimas a serem imoladas, ato que funciona
outra vez como prencio de uma nova vida as o sacrifício. O judaísmo e o cristianismo
não se mantiveram insensíveis a esse forte simbolismo de renovação cíclica. No Evangelho
segundo São João (12.23-24), por exemplo, Jesus anuncia aos discípulos a Sua iminente
Morte e Ressurreição da seguinte forma:
(...) É chegada a hora de ser glorificado o Filho do Homem.
Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não
morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto.
No que fica bem claro que a presença simlica do trigo, na stica cristã, re-
cobra o mesmo contorno basilar de morte iniciática que o grão representa nos paganismos
egípcio (dos mistérios de Osíris) e heleno (da tradição de Elêusis). Antes, através da parábola
do joio e do trigo (Mateus, 13.24-30), Jesus havia chamado a atenção para a importância de se
separar, e no tempo certo, o que é mau e venenoso para o espírito do que lhe é bom e saudá-
vel
88
. E eis que o que é bom é o próprio Jesus, a essência da qual a alma deve se alimentar,
como consta em João 6.35:
Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais
terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede.
89
É por isso que na Santa Ceia,
88
Quanto à parábola do semeador presente nos Evangelhos sinóticos (Mt 13.1-9, Mc 4.1-9 e Lc 8.4-8), embora
nela Jesus não se refira de forma específica ao trigo, implicitamente é também o simbolismo inerente a esse grão
que a permeia.
89
V. tb. Jo 6.51.
55
Enquanto comiam, tomou Jesus um o, e, abençoando-o, o partiu, e o deu
aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo.
90
Da simlica do pão mencione-se o significado para os hebreus dos pães da
proposição, que evocam a presença do próprio Deus na liturgia
91
, e o pão ázimo da Páscoa, o
qual, novamente de conformidade com a concludente sabedoria de São Martinho, representa
ao mesmo tempo a
aflição da privação
, a
preparação para a purificação
e a
memória das
origens
.
92
No que toca à farinha de que se faz o pão, mais uma vez vale a lição de Cheva-
lier e Gheerbrant:
Resultado de uma purificação e de uma ascese, como a peneiração separa a
farinha do farelo, a farinha representa o alimento essencial, obtido pelo discerni-
mento e pela seleção. Essa noção se encontra no
Rig-Veda
, onde se diz que a palavra
sai do pensamento dos sábios como a farinha da peneira.
93
A oposição entre a farinha e o farelo recupera aquela verificada entre o trigo e
o joio, ficando porém mais nítido na imagem da farinha o sentido da “purificação” e da “asce-
se” pelo refinamento seletivo. Esses elementos trazem à mente o conto Substância, de
Pri-
meiras estórias
, no qual Guimarães Rosa explora o simbolismo da farinha e traça um paralelo
entre a produção farinácea e o nascimento do amor entre as personagens Sionésio (ou Seo Né-
sio), dono de fazenda, e Maria Exita, agregada ou empregada que trabalha na esfalfante que-
bra do polvilho. É-nos útil destacar alguns fragmentos desse texto.
Passim
:
Para a
azáfama
– de farinha e polvilho. Célebres, de data, na região e longe,
os da Samburá, herdando-a, de repente, Seo Nésio, até então rapaz de madraças vi-
sagens, avançara-se com decisão de açoite a desmedir-lhes o fabrico.
Se o avio da farinha se pelejava ainda rústico, em breve o poderia melhorar,
meante muito, pôr máquinas, dobrar quantidades.
Servia o polvilho – a
ardente
espécie singular, secura mpida, material are-
noso – a massa daquele objeto.
Mesmo, sem querer, entregou os olhos ao polvilho, que ofuscava, na laje, na
vez do sol.
Ainda que por instante, achava ali um poder, contemplado, de grandeza,
90
Mt
, 26.26 e segs. Cf. tb.
Mc
14.22-26 e
Lc
22.14-20.
91
Cf.
Êx
25.30: [Disse o SENHOR a Moisés:] Porás sobre a mesa os pães da proposição diante de mim perpe-
tuamente.Em nota a esse versículo, lê-se na
Bíblia de estudo Almeida
, 130: A expressão hebraica traduzida
aqui por
es da proposição
, do verbo
propor
, lit.
por diante
(de Deus), pode ser traduzida também por
o da
Presença
.V. tb.
Lv
24.5-9.
92
Apud
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 682. Grifei.
93
Id
.,
op
.
cit
., pág. 418.
56
dilatado repouso, que desmanchava em branco os rebuliços do pensamento da gente,
atormentantes.
A alumiada surpresa.
Alvava.
94
A alvura dessa “Substânciafarinácea é continuamente enfatizada, bem como a
sua relação
ardente
” e reflexiva com o brilho do sol – o que nos recorda de maneira efusiva a
ignescência do magma.
Continuando, Sionésio e Maria Exita se amam em silêncio tímido e pontuado
por preconceitos de toda sorte, só se desenredando a situação quando ele, encontrando a moça
que trabalhava, Estendeu também as mãos para o polvilho – solar e estranho: o ato de que-
brá-lo era gostoso, parecia um brinquedo de menino.
O casal declara-se amor no meio da laje onde se fabrica a farinha e onde a luz
do sol exultante se acende em meio ao brancor:
Sionésio e Maria Exita a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco. (...)
Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássa-
ros.
O fato de tratar-se, no caso, inovadoramente, de farinha de mandioca, cujo cul-
tivo é pico do cenário sertanejo, em detrimento do trigo mais tradicional, não elide os con-
sistentes significados de purificação e ascese. O que importa é que no final o amor, pura
substância assim como a farinha, prevalece sobre o farelo dos empecilhos, que são deitados
fora.
A ponto de concluir, diga-se que tanto a acepção atual do vocábulo magma”
quanto a acepção figurada que se pode extrair de sua etimologia guardam o mesmo sentido
essencial de
interioridade
ctoniana: é sob a terra que o magma geológico flui e é no seio da
terra que o grão de trigo (que dá origem à “pasta...) é semeado
95
. Os dois sentidos ainda se
complementam no tocante às respectivas relões com a
igneidade
: o trigo só germina sob a
ação da luz e do calor do sol, isto é, da igneidade extrínseca que vem do Céu, ao passo que o
magma subterrâneo é intrinsecamente ígneo; mantém-se assim uma espécie de “quente diálo-
go” entre o que está no Alto e o que está embaixo
96
. É do entrelaçar-se desses caracteres prin-
94
ROSA, 11, 151 e segs. Grifei.
95
Para o intento deste trabalho não tem alcance o nexo original entre os significados, que parece se assentar na
consistência física de ambas as massas.
96
Cf. a
Tábua esmeraldina
de Hermes Trismegisto: O que está embaixo é como o que está em cima, e o que
está em cima é como o que está embaixo; por estas coisas se fazem os milagres de uma só coisa” (v. ZALBI-
DEA, 289, 23). No mesmo compasso o
Tao
, 2º carme, v. 9: O alto e o baixo formam um todo.
57
cipais de ambas as acepções que se compõe o valor geral da designação Magma conferida à
obra de que nos ocupamos.
Ora, tudo o que Guimarães Rosa quis expressar, ao longo de todo o conjunto de
sua obra, foi justamente o borbulhar desse fio magmático que lhe “corre por dentro, a férvida
inquietação metafísica que norteou a vivência do poeta na busca “de uma purificação e de
uma ascese”. Seus textos são as rochas magmáticas que resultaram da ex-pressão, isto é, da
pressão para fora desse magma. Guilhermino Cesar, cedo e ao que parece sem ter conheci-
mento do livro de 1936, já o anotou en passant:
Muita água correu pelo Rio das Velhas até que esse rapaz de Cordisburgo, ir-
rompendo de dentro de si mesmo com a obstinação da lava, boquiabriu a crítica com
os contos de Sagarana (1946).
97
Aliás, é pertinente notar a proximidade que se instaura entre a valia de interio-
ridade presente no título Magma e o título Tutaméia, o qual, segundo o Guimarães Rosa ma-
duro, tem o seguinte significado: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiri-
qui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase nada, mea omnia.
98
Jeane Mari
SantAna Spera explica: A expressão latina que finaliza a lista de sinônimos confirma a as-
serção de que o Autor colocou no livro tudo de si.
99
De maneira semelhante, em Magma cada poema avoca o tudo de sique o
Guimarães Rosa moço procura fazer passar, feito contas, pelo fio subterrâneo que lhe une o
ser a todos os outros seres e ao Princípio absoluto. Pois que a vida de cada ser nada mais é do
que um desfiar de atos, pensamentos e sensações, os quais, ainda que aparentemente insignifi-
cantes, são todos segmentos de um curso que tende à aproximação entre o humano e o excelso
sempre à espreita, lembrando-se mais uma vez que, sub Rosa, tudo é o quente diálogo (ten-
tativa de) com o .
Tudo. Mesmo as tutaméias, as nonadas e as singelas contas de um rosário. E,
para Guimarães Rosa, tudo é baseado na fé que aguarda um renascimento do ser, um renasci-
mento que o integre na essência do Cosmos. Esta é uma das mensagens capitais não só do li-
vro de 1936, mas de todo o legado poético rosiano.
Com isso, podemos nos dedicar agora a ver os três versos que concluem o po-
ema vestibular.
97
CESAR, 37,19. Grifei.
98
ROSA, 12, 166 (Sobre a escova e a dúvida”).
99
SPERA, 85, 14.
58
4. ..., SEM QUE O POETA O VEJA, SEM QUE O SINTA, SEM QUE O
DESMINTA.
Há Dois em conjunção com o Um; por conseguinte, há
Três, e se eles são Três, logo são UM
.
Rabino SIMÃO BEN JOCHAI
Os versos finais do texto de abertura de
Magma
, a serem presentemente com-
preendidos em tríade, aludem ao fio do rosário que “corre por dentro. Como já vimos, esse
fio exprime menos o conceito físico da guita do objeto devocional e mais precipuamente o
conceito metafísico concernente à
alma
do poeta que reza, donde se extrai a seguinte ilação: o
poeta, ao orar, não está apenas se desincumbindo de uma prática banal ou inconseente, mas
em verdade está – visto que a oração é coisa muito mais transcendente do que parece”
100
realizando uma tarefa de projeção altamente stica, que é
r em movimento ascensional a
própria alma
. Por outras palavras, fazer correr o fio é fazer correr
a alma
rumo a Deus.
Cuidando-se, então, não de um femeno físico observável, e sim de um pos-
tulado metafísico, o fio anímico oculto corre por dentrodo poeta “sem que” este “o veja,
sem que o sinta”, isto é, sem que ele,
num primeiro e num segundo momentos
marcados pela
locução reiterada, se aperceba do movimento ou mesmo da presença da alma em seu íntimo,
como liame entre o ser e a divindade. E não se apercebe porque a invisibilidade e a intangibi-
lidade físicas são alguns dos atributos que a alma pessoal guarda da
Alma Parens
de que pro-
vém. Como bem simboliza a centésima conta do
tesbih
, Deus não pode ser apreendido por
meio dos órgãos
sensoriais
do corpo material e, igualmente, a sutil substância da alma huma-
na não está acessível à visão e aos demais sentidos.
Todavia, a invisibilidade e a intangibilidade do elo anímico não se constituem
em óbice ao neófito que trilha os caminhos da gnose. Pelo contrário, elas alicerçam e dão coe-
rência à
fé
, sabedoria intuitiva e poética que permite ao ser
não desmentir
aquilo que entre-
tanto não consegue
ver
nem
sentir
. A fé, se exigir comprovação fenomenológica, deixa por
definição de ser fé consoante se pode depreender da admoestação feita por Jesus no seguinte
fragmento evangélico (
João
20.24-29), que tem lugar as a Ressurreição:
Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio
Jesus.
100
Guimarães Rosa,
apud
ROSA, 79, 155.
59
Disseram-lhe, então, os outros discípulos: Vimos o Senhor. Mas ele respon-
deu: Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não puser o dedo, e não pu-
ser a mão no seu lado, de modo algum acreditarei.
Passados oito dias, estavam outra vez ali reunidos os seus discípulos, e Tomé,
com eles. Estando as portas trancadas, veio Jesus, pôs-se no meio e disse-lhes: Paz
seja convosco!
E logo disse a Tomé: Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos; chega também a
mão e e-na no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente.
Respondeu-lhe Tomé: Senhor meu e Deus meu!
Disse-lhe Jesus: Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram
e creram.
Com esse gancho, pode-se conceder aparte a Guimarães Rosa:
Cristo (o Cristo verdadeiro) cabe; tem seu ensino, indispensável. (...)
O ensino central
de Cristo, a meu ver (o do Reino do Céudentro de s)
é: 1) o domínio da natureza,
a começar pela natureza humana de cada um – pela fé, que é a forma mais alta e sutil
de energia
, à qual o universo é plástico; 2) o
amor
, possibilitando a coexistência, sem
o mínimo sinal de atrito, conflito, desarmonia, destruição ou desperdício. Sobre esta
plataforma, o Céu, as possibilidades infinitas de um sempre-evoluir, em plenitude,
prazer, alegria ininterrupta; cada um invulnerável...
101
Reportando apenas ao que nos interessa de momento
102
, vemos aí, primeira-
mente, mais uma vez confirmada a crença do autor mineiro na importância da heautognose,
i.
e.
, do
domínio da (...) natureza humana de cada um
. Fica também patente o entendimento
do real significado dessa heautognose como sendo um dos instrumentos para que se possa
obter a teognose ou o alcance “
do Reino do Céudentro de s
que é nada menos do que
O ensino
central
de Cristo, o indispensável, e a matéria mais pura de
Magma
, o livro de
1936. E finalmente atente-se para o poder vislumbrado na fé, “a forma mais alta e sutil de
energia, capaz mesmo de amoldar ao próprio intento o universo plástico, o que remete
tanto ao macrocosmo (a “natureza” em geral) quanto ao microcosmo (a “natureza humana”
em particular). Ora, esse trabalho de amoldar o universo é uma
transformação de realidade
103
,
e quanto à energia potencial da fé, esta é nada mais do que o resultado da transformação, por
via cinética, da energia calorífera ou magmática da alma, energia essa que por sua vez provém
da Geratriz da
Alma Mater
. Reduzindo tudo a um único termo, o que temos é, simplesmente,
reza
. É essa poderosa fé, elemento capital da prece, que, num
terceiro momento
indicado no
verso derradeiro do poema vestibular de
Magma
(sem que o desminta...), possibilita ao ser
suprir as deficiências dos sentidos corporais e divisar dentro de si a alma que o ata à Origem.
101
Em carta a Vicente F. da Silva,
apud
FERREIRA, 46, 126. Grifei.
102
Sobre o amor, remeto ao Capítulo III, adiante.
103
Assim exercendo o homem o domínio sobre a realidade da criação; v. novamente LORENZ, 58, 83-84, cf.
transcrito à pág. 29 deste trabalho (Capítulo I, tópico 1).
60
Ainda sobre a fé, convém trazer à colação uma carta de juventude do poeta a
seu pai, da qual já se citou um trecho e em que Guimarães Rosa pondera:
Creio mesmo que só obtêm êxito na vida as pessoas que contam com um auxí-
lio sobrenatural e que a ele recorrem,
com fé
. Creio ainda mais, que esse é um
recur-
so ilimitado
. Os resultados dependem tão-somente da dose de fé e confiança
calma
. O
excesso de esforço próprio e a agitação demasiada, em geral, são iteis e, quando
não acompanhados de
Fé
, até chegam a tornar-se prejudiciais.
104
Passemos agora a outro ponto. A tríade final também pode ser entendida como
uma expressão do caráter de
imanência
da busca teosófica. Recordemos que, teologicamente,
o pensamento imanentista se pauta pela noção da procura de contato com o divino como a
procura de satisfação de profundas
necessidades
inerentes ao espírito humano
. Uma das mais
importantes implicações desse pensamento é que o desejo de elevação da alma passa a se con-
figurar não como uma opção mas, em verdade, como um atributo natural que mais cedo ou
mais tarde há de se manifestar espontaneamente em cada ser, não podendo de modo algum ser
desmentido
indefinidamente. Doutro lado, compreende-se assim que, pela fé, o ser começa a
procurar Deus antes mesmo de que tome consciência da necessidade que dEle tem, ou seja,
antes que “
sinta
e “
veja
em si tal exigência íntima. Podemos trar uma analogia ao dizer
que o corpo respira “
sem que
” a mente precise determinar de forma lógica, a cada instante, o
funcionamento do processo; a respiração anímica é de ordem semelhante: Soubesse que poe-
sia é remédio contra sufocação
105
.
Essa noção de imanência da busca pelo divino é antiíssima e está presente,
mutatis mutandis
, em vários sistemas religiosos, filosóficos e poéticos. É, por exemplo, com-
ponente essencial da doutrina de Plotino e do Tao – aos quais Guimarães Rosa se demonstra
especialmente afeito – e ainda da poética pietista de Novalis. Sobre o ideário plonico, nota-
damente, H.-Ch. Puech sintetizou-o como sendo uma “stica da imanência nos quadros de
uma metafísica da transcendência.
106
O que parece de todo aplivel também à literatura ro-
siana.
Deve-se agora abordar, para fechar este Capítulo, os elementos capitais para o
estabelecimento da estrutura de
Magma
que estão contidos nos três versos em tela de “O po-
eta reza o rosário, os quais vale reaver:
sem que o poeta o veja,
sem que o sinta,
104
Apud
ROSA, 79, 155. Grifos do autor.
105
ROSA, 19, 447.
106
Apud
BRUN, 145, 28.
61
sem que o desminta...
Na mentalidade brasileira, permeada pela tradição cristã católica, a simples
menção ao rosário já evoca uma estruturação ternária, eis que na cristandade do Ocidente a fi-
eira é costumeiramente dividida em terços para a prática devocional. Em verdade, rosário” e
terçosão, na linguagem coloquial, muitas vezes confundidos como sinônimos
107
. No curto
carme vestibular ainda ressoa o rosáriodo primeiro verso quando vêm os três versos finais,
todos iniciados pela locução sem que” a marcar ritmicamente três segmentos cujas significa-
ções se conjugam. Tais versos funcionam assim como indicativos dos terços” em que se di-
vide o rosário magmático rosiano, a partir do que se fundamenta a compreensão do livro de
1936.
Importa-nos, entretanto, antes conhecer que cada um dos terços da fiada domi-
nicana mais usual corresponde a um grupo de “mistériosque devem ser meditados pelos
orantes em conjunto com as preces propriamente ditas. São os mistérios gozosos (hoje melhor
chamados de mistérios
da alegria
), os
dolorosos
e os
gloriosos
. Os mistérios da alegria evo-
cam a Encarnação do Verbo em cinco momentos narrados pelos Evangelhos: a Anunciação do
anjo Gabriel a Maria, a visita desta a sua prima Isabel, o Nascimento de Jesus em Belém, a
apresentação do Menino no templo e o reencontro do jovem Jesus por José e Maria quando
Ele, novamente no templo, ensinava aos doutores da Lei. Os mistérios dolorosos contemplam
a Paixão do Cristo: Seu solitário sofrimento no horto do Getsêmani, a flagelação, a humi-
lhante coroação com espinhos, a
via crucis
com o madeiro às costas até o Calvário e a Cruci-
fixão e Morte. Por fim, os mistérios gloriosos dizem respeito à Redenção através dos seguin-
tes episódios: a Ressurreição de Jesus, Sua Ascensão aos Céus, a descida do Espírito Santo
sobre os astolos no Pentecostes (narrada em
Atos
) e, saindo do âmbito dos Evangelhos, sob
uma óptica estritamente marianista, a assunção e a coroação de Maria.
Interessa-nos desses mistérios o sentido geral de divisão ternária em função dos
três momentos de maior proeminência, dos quais os outros são apenas desdobramentos: a ale-
gre Natividade, a sofrida Morte e a gloriosa Ressurreição. Levando-se em conta o valor que
Guimarães Rosa confere à meditação da mensagem de Cristo, constando até que
A imitação
de Cristo
atribuída a Tomás de Kempis fosse seu livro de cabeceira
108
, é até natural que o au-
tor pretendesse colocar em sua representação literária da iniciação stica os passos seguidos
pelo Cordeiro. De fato, distinguem-se em
Magma
conforme logo veremos três terçosou
107
Cf. MAIA, 209, 176: dá-se também o nome de Rosário à terça parte do mesmo, cujo nome exato é
Terço
.
Grifo do autor.
108
Informação prestada por sua filha Vilma (v. ROSA, 79, 97).
62
“conjuntos de mistériosimpregnados pelos sentidos mais básicos dos mistérios da sarta
cristã tradicional. Não obstante, taoísta à maneira de Cordisburgo, ou um pagão crente à la
Tolstói
109
como o poeta mineiro se confessava, enriqueceu ele essa herança cristã com o re-
curso a sabedorias mais priscas e paralelas, em princípio niveladas quanto ao grau de autori-
dade e influência, criando deste modo um ecletismo que perpassa não só Magma, mas daí se
transmite também a toda a sua obra posterior.
É-nos agora útil lembrar a etimologia da palavra “mistério, que vem, através
do latim mysterium, do grego mysterion, do verbo myein, fechar, estar fechado. Sabe-se que
na Grécia Antiga a palavra designava
cada um dos ritos religiosos secretos, freqüentemente purificatórios, mágicos, ligados
ao culto a certas divindades. (Os iniciados só conseguiam pleno conhecimento dos
mistérios após longas e penosas provas.)
110
Mistério, destarte, traz à mente muitas das pétalas simlicas de “rosa”: por
primeiro a secretividade, em seguida a purificação e então a plenitude obtida atras do so-
frimento, e tudo tingido de uma coloração religiosa de unificação com a divindade. Resta ób-
vio que os mistérios do rosário católico guardam toda a essência dos mistérios gregos
111
.
Anote-se outrossim que o caráter de secretividade no desfiar do rosário católico resolve-se por
ser este um procedimento que se aperfeiçoa, através da meditação, nos recessos mais íntimos
do ser.
A par disso, há ainda o sentido antropológico dos mistérios, que se coaduna
perfeitamente com o sentido religioso. É Van Gennep quem explica:
Entendo por mistérioso conjunto das cerimônias que, fazendo o neófito
passar do mundo profano para o mundo sagrado, em-no em comunicação direta
com este último.
112
Essa noção dos mistérios, à luz da ciência antropológica, põe em relevo outro
importante fator: o conceito de passagem de um estado a outro. Importa-nos então a classifi-
cação ordenada pelo mesmo Van Gennep:
tentei grupar todas as seências cerimoniais que acompanham a passagem de uma
situação a outra, e de um mundo (cósmico ou social) a outro. Dada a importância
dessas passagens, acredito ser legítimo distinguir uma categoria especial de Ritos de
109
In: LORENZ, 58, 92.
110
Cf. a Enciclopédia Larousse, 172, verbete MISTÉRIO.
111
Cf. VAN GENNEP (280, 85), o cristianismo tomou tanta coisa emprestada dos mistérios egípcios, sírios,
asiáticos e gregos, que é difícil compreender um sem levar em conta os outros.
112
Id., op. cit., pág. 86. V. tb. ELIADE, 170, 137 e segs.
63
Passagem,
que se decomem, quando submetidos à alise, em
Ritos de separação
,
Ritos de margem
e
Ritos de agregação.
113
Deve-se salientar que Van Gennep demonstrou à saciedade que esses ritos de
passagem são os mecanismos invariantes que definem a estrutura de um mero enorme de
cerimoniais iniciáticos, presentes em áreas geográficas as mais distantes e em eras históricas
as mais distintas, desde os homens pré-históricos aos aborígines australianos, passando pelas
civilizões egípcia e asteca e chegando até os nossos dias. É cito dizer que praticamente
to-
dos
os rituais mistagógicos obedecem, de uma forma ou de outra, a tais mecanismos. O que
muda é tão-somente o desenvolvimento e a importância que cada sociedade confere, num
dado momento étnico-histórico e segundo a índole mais específica do cerimonial, a cada gru-
po de ritos. Assim, se se trata, por exemplo, de um funeral, as solenidades separatórias podem
predominar em relação às demais. Se se fala da passagem do adolescente à vida adulta, a ten-
dência é a de dar realce ao período de margem. E se o rito é um esponsório, evidencia-se
muitas vezes a agregação do noivo ou da noiva a uma nova família. Nada obstante, o morto é
velado o mais das vezes em ritos de margem e procedem-se também a rituais que lhe assegu-
rem a entrada no mundo do além, ao passo que os noivos, para ingressarem num clã, têm que
sair de outro. Vale é que o esquema ternário
separação-margem-agregação
é constante, ainda
que possam ser alteradas a intensidade e a duração de cada componente cerimonial.
Voltando a
Magma
,
pode-se dizer que cada terço do rosáriorosiano é forma-
do por um conjunto de poemas que representa os mistérios que “o poetarezador deverá con-
templar nas três fases de seu mistagógico
itinerarium mentis ad Deum
. Apresenta-se o poeta
como um neófito, e o que se segue é o desenvolvimento de sua iniciação, ao longo da qual são
percorridas as fases sucessivas do
nascimento
,
morte
e
ressurreição
– ou
separação
(de
Deus),
margem
e
agregação
(em Deus). Bem assim, é certo que,
Misticamente, existem três vesbulos, que são os três estados de consciên-
cia pelos quais passa a alma peregrina em busca da perfeição: o da Ignorância, o da
Instrução e o da Sabedoria, quando ela alcança a iluminação.
114
É ainda oportuno fazer notar que essa divisão ternária corresponde também aos
três instantes da trajetória humana na famosa fórmula rosa-cruciana:
Ex Deo nascimur, in Jesu morimur, per Spiritum Sanctum reviviscimus.
115
113
VAN GENNEP, 280, 31. Grifos do autor.
114
FIGUEIREDO, 175, 504.
115
V.
Os manifestos rosa-crucianos
, 213, 307.
64
Ou seja: nascemos do Pai apenas para, seguindo o arquétipo vital da Encarna-
ção do Verbo em Jesus, morrer e então poder ressuscitar sob nova forma e ascender, voltando
ao Pai sob o mistério do Espírito Santo.
Nesta oportunidade será dada apenas uma tomada panorâmica do teor dos ter-
ços de Magma, visão essa que será progressivamente aproximada adiante, em Capítulos con-
cernentes a cada uma dessas partes. Por ora cabe alertar que os terços encerram em si múlti-
plos planos de significação, distinguindo-se implicações teológicas, antropológicas e filosófi-
cas, falando-se de um modo geral.
O primeiro terço corresponde ao momento em que o manifestado, nascendo de
Deus, adquire consciência de si mesmo. Essa aquisição de um eu separa o ser do Pai, o qual
Se afigura como um Ele, um Outro. E, maravilhado consigo mesmo e com sua liberdade, o ser
tende a se afastar mais de Deus, não vendo nem sentindo que a Ele permanece ligado pela
alma, o fio anímico que lhe corre por dentro. A entrada no templo do eu
116
corresponde, por
conseguinte, à saída do Outro, o que configura uma queda na Ignorância.
O segundo terço magmático é o instante em que o eu, apercebendo-se da ne-
cessidade que tem de um Outro, entretanto ainda não O nem O sente por perto, i. e., em seu
íntimo, tal a aflitiva distância que aparentemente se estabeleceu entre ambos. Não vendo nem
sentindo a sua conexão anímica com Deus absconditus, o ser sofre a saudade pontilhada por
dúvidas, à qual reage de duas maneiras contrárias: pelo efetivo início da amorosa busca de
proximidade e pela prostração eventual, respectivamente forças ascendente e descendente que
em atividade conjunta causam grande tensão. Esse terço, que flagra o ser aprendiz em sua
atribulada Instrução, é culminado pela morte ritual.
O terço final evoca primeiramente a terrorífica estadia do neófito morto no se-
pulcro, o que no entanto apenas precede a alvorada da ressurreição e da volta ascensional a
Deus: mors janua vitae. O eu, atingindo a Sapiência, reencontra o Outro dentro de si e, dessa
maneira, eu e Outro conjugam-se em Nós superlativo, dissipando-se as dúvidas: a substância
que une o ser a Deus não mais é desmentida.
É indispensável ter em mente que cada terço representa uma tendência, a qual
porém é sempre submetida a forças opostas de decnio e de ascensão, o terrível das forças
verticaisque Guimarães Rosa explicita no poema “Iniciação. Destarte, o primeiro terço ten-
de à separação de Deus, à queda, e contudo o ser poético ab initio se revela sob a ação do em-
puxo anagógico, em momentos, como insights, em que fica patente a prematura vontade de
116
V. nota 169 (pág. 95).
65
retorno à Fonte donde se acabou de sair é, todavia, imprescindível que seja dada vazão a
todo o sofrido processo da circulatio. Já no segundo terço predomina uma tendência à estática
da saudade, intermediária entre a partida e o retorno, podendo sem embargo serem percebidas
as forças agentes que definem um e outro sentido. Por fim, no terceiro terço, embora a ten-
dência seja o definitivo retorno ascensional à Origem, é justamente aí que as forças gravitaci-
onais de afastamento mais se intensificam, causando as agonias da espera na cripta. Logo, a
via Lucis que o ser percorre não se caracteriza pelo caminhar retilíneo e irresisvel, mas é
marcada, como seria de se esperar, por percalços, pedras e atalhos tortuosos em meio à escu-
ridão que insiste em barrar o retorno à Luz: via Lucis e via crucis são pois apenas perspectivas
diferentes de um mesmo percurso. Tal como um processo alquímico, observa-se um connuo
... solve et coagula, coagula et solve..., um labor com um fim específico que sucessiva-
mente dissolve e concentra e vice-versa, alternando períodos de avanço com outros de retro-
cesso, sendo que a predominância destes ou daqueles é que define o sentido genérico de um
determinado segmento nas três fases do processo, sobre cujas naturezas vale a pena insistir:
queda (forças verticais de afastamento), estática (equilíbrio) e elevação (forças verticais de
aproximação ou retorno).
Por outro lado, a própria seência dos textos que comem Magma deixa per-
cepvel, com uma clareza avassaladora, a divisão do todo em três partes marcadas por ten-
dências gerais bem distintas e com estreita adequação às fases principais de um processo ini-
ciático. Nesses terços, o número de poemas componentes não parece ser, em princípio, deter-
minante, sendo bem mais importante o teor expressivo do assunto principal que domina cada
parte. O primeiro carme, as o vestibular, é “Águas da serra, sendo a água, por excelência,
o símbolo que contém as mais fortes conotões de origem, purificação e motricidade, as
quais são nitidamente evocadas pelos versos. A esse texto segue-se A Iara”, em que os sim-
bolismos da água permanecem cristalinos e atuantes. Depois de uma série de composições
com temáticas variadas, e que não obstante guardam o sentido de movimento, tem-se “Inicia-
ção, que inaugura o segundo terço: à primeira vista, pode parecer desconcertante a colocação
de uma peça com esse nome não no início do livro, mas quando já bem avançados estão os
trabalhos; porém, tudo se encaixa com perfeição ao se pensar que os poemas que a antecedem
constituem os ritos preliminares e purificatórios de aquisição dos chamados Pequenos Misté-
rios, somente as o que se admite o noviço na iniciação propriamente dita, com o conheci-
mento dos Grandes Mistérios (o que também remete à Pequena e à Grande Obras Alquími-
cas). Entre Iniciação” e A terrível parábolaeste o derradeiro poema da segunda parte –,
mesmo o leitor mais descompromissado percebe a presença aglutinada de composições com
66
temática amorosa, em que a trajetória do eu pauta-se pelo resoluto desejo em relação ao Ou-
tro. A terrível parábola” é um texto dos mais perturbadores e que, sem dificuldades, pode ser
percebido como o marco da morte ritual a que o neófito se entrega. O terceiro terço inicia-se
com um conjunto intermediário de oito poemas e, em seguida, salta aos olhos a gravidade de
um novo grupo de composições sombrias, representativas da passagem do neófito pelo mundo
dos mortos, do que é expoente a peça “Toada da chuva”, que alude à manhã de Finados.
Ems, com retumbante claridade eclode o Amanhecer, o neófito renasce com a “Primave-
ra na serra” e dá-se afinal a “Integraçãona “Consciência cósmica.
Vale lembrar que a arquitetura toda do livro reflete o sentido predominante da
anagogia, que apresenta, tal como um rosário, uma configuração circular na qual se define o
ponto de chegada pelo retorno ao ponto de partida. Como já ficou dito, os aspectos que com-
em esse todo anagógico ternário, e que foram agora debuxados em pinceladas largas, serão
apreciados com minudências nos posteriores Capítulos correspondentes a cada um dos terços.
No entanto, convém antes saber, como um dado de interesse, que a divisão ter-
nária de Magma evidenciada pela tríade final do poema vestibular parece ser confirmada pela
própria colocação desse texto no espo em branco, numa espécie de avant-Concretismo rosi-
ano. Os dois terços extremos da página são iguais: o vazio, o silêncio, a não-manifestação, o
bimio zerinho zero” a que se refere a personagem Nominemine em O recado do mor-
ro(de Corpo de baile) e que simboliza a divindade em seus semblantes complementares de
Alfa (a Origem do ser) e Ômega (o Fim a que o ser tende); recorde-se que em Páramo(de
Estas estórias), Guimarães Rosa fala sem subterfúgios sobre as necessidades do retorno a
zero– o entendimento, no poeta mineiro, do divino como Plenitude Vazia e Silêncio é com
toda certeza fruto de suas inclinações neoplatônicas e taoístas
117
. Quanto ao terço medial da
página de abertura de Magma, está ocupado pelo poema em si, i. e., pela busca de Deus atra-
vés da palavra e de suas manifestões principais e irmãs: a reza e a Poesia. Deus é Repouso e
Silêncio, o homem é movimento e palavra, Deus espera que o homem a Ele regresse pelo
princípio da circulatio. Chega-se com isso à máxima rosiana exposta pela voz de Amorearte
em O grande samba disperso (de Ave, Palavra): Só há um diálogo verdadeiro: o do silên-
cio e da voz.
118
117
Cf. o poema 11 do Tao: Trinta raios convergentes no centro/ Tem uma roda,/ Mas somente os vácuos entre
os raios/ É que facultam o seu movimento./ O oleiro faz um vaso, manipulando a argila,/ Mas é o oco do vaso
que lhe dá utilidade./ Paredes são massas com portas e janelas,/ Mas somente o vácuo entre as massas/ Lhes dá
utilidade / Assim são as coisas físicas,/ Que parecem ser o principal,/ Mas o seu valor está no metafísico.
118
ROSA, 14, 35-36. V. que o Tao, 2, v. 10, preleciona: O som e o silêncio formam a harmonia.E isso porque,
nas palavras de Humberto Gessinger: Luz– pediu o poeta/ (últimas palavras, lucidez completa)/ Depois: si-
67
Ao ensejo, outro aspecto estrutural que merece ser salientado concerne aos
cortes espaciais a que parece ser submetido o carme em questão. Para visualizá-los correta-
mente, é necessário procurar resgatar a aparência do poema de conformidade com a sua ver-
são datilográfica, tal como nos é dado no manuscrito original de 1936:
O poeta reza o rosário,
conta a conta,
e o fio corre por dentro,
sem que o poeta o veja,
sem que o sinta,
sem que o desminta...
Com o espaçamento isométrico dos caracteres, que é pico do texto datilogra-
fado, parece se desenhar com razoável nitidez e naturalidade a separação da peça tanto no
sentido vertical como no horizontal. Verticalmente, a composição é, por assim dizer, cindida
em dois hemisférios: o setentrional compreende os três primeiros versos, e o austral, os outros
três que são todos iniciados pela mesma locução sem que”. Mais importante do que isso, po-
rém, é a cesura horizontal: depois de uma tomada em conjunto, cada um dos seis versos apa-
rece como que dividido em duas partes, à guisa de “hemisquiosvisuais, de tal forma que se
intere, entre o lado esquerdo e o direito, uma fina mas clara via vazia, o que vale dizer, uma
linha em branco que se estira desde o verso inicial até o último, costurando-se a partir do que
seria, em todos os versos, o sétimo toque no teclado da máquina de escrever (no primeiro ver-
so vindo as O poeta, no seguinte, as “conta aetc...). Ora, essa via vazia funciona
como um eixo central, evocando in corpore exatamente o aludido fioanímico que “corre
por dentrodo ser humano. E ao mesmo tempo que atua separando as metades dos versos, tal
linha medular age interligando, atras do texto poético, os espos em branco inferior e su-
perior da página, ou seja, o embaixo e o em cima que são substancialmente iguais, conforme
supra explicado. A circunstância de que essa linha seja, à primeira vista, pouco percepvel
corrobora de maneira veemente a afirmação textual de que “o fio corre por dentro/ sem que o
poeta o veja,/ sem que o sinta. Por outro lado, uma vez chamada a atenção para esse “fio,
certamente já representa ser bem difícil ignorá-lo ou já não se pode desmenti-lo. Bem assim é
a alma, e aprender a -la, senti-la e não desmenti-la é, de acordo com o que se vem propon-
do, a missão transcendental a ser perseguida pelo poeta que desfia o rosário.
E por fim, um último pormenor: é oportuno anotar o fato de que a letra mais
utilizada na peça vestibular vem a ser a vogal o, com dezessete ocorrências e presente em to-
lêncio(Hora do mergulho, in: Simples de coração, 1995). Entretanto, ainda com Gessinger, Por mais que
a gente grite, o silêncio é sempre maior(Além dos outdoors, in: A revolta dos dândis, 1987).
68
dos os versos. Numa outra conjuntura, essa particularidade decerto constituiria uma micia
desprezível. Entretanto, verificando-se num poema que versa justamente sobre o rosário,
abre-se a possibilidade de que os oo sejam interpretados como remissões às contas que devem
ser rezadas. Outrossim, como um aspecto acessório, convém apontar que a repetição da cir-
cularidade dessas letras talvez sirva para expressar, numa miniatura material, a mais ampla
circularidade ideal do rosário e do próprio livro; perceba-se, aliás, a distinta marcação dos três
oo, um embaixo do outro, bem na parte do meio dos versos que encerram o texto.
Passemos então, sem outros adiamentos, ao estudo mais detalhado de cada um
dos terços e mistérios de Magma.
69
CAPÍTULO II.
A HORA DA VOSSA FUGA
Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação
FERREIRA GULLAR
A viagem te conduzirá a teu ser,
transmutará teu pó em ouro puro.
RUMI
O primeiro terço ou conjunto de mistérios de
Magma
diz, pois, respeito ao
Nascimento
do ser:
ex Deo nascimur
. É sobre esse preciso instante,
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
que discorre “Águas da serra, peça iniciante desta parte.
Comecemos por considerar que a fratura pela qual a existência humana se des-
taca ou
se desprende
da essência divina original acarreta múltiplas conseências, as quais
também são contempladas pelos demais textos desse terço, que prossegue até a composição
Na Mantiqueira”. Tem relevância discutir os aspectos principais das mais importantes dessas
conseências do Nascimento.
Antes de tudo, é através da separação entre Criador e criatura que esta adquire
uma
identidade própria
, um
eu
a que se refira. E esse
eu
diferenciado demanda parâmetros
novos, uma realidade onde possa se situar e exercer sua individualidade. Portanto, a partir do
marco inicial do Passado de todos os passados – o exato momento em que o ser se sensibiliza,
ainda que de forma grosseira, quanto à própria existência surgem o espo, meio propício ao
corpo, e o tempo, meio extensivo no qual o espírito navega.
Para adequar-se a esses ambientes, o ser recebe o predicado do
movimento
: a
Origem é estática e assim permanece, ao passo que a manifestação, impelida pela inércia da
força que lhe provocou a saída,
afasta-se
cada vez mais de Deus. À vera, as Águas da serra”
magmáticas são aquelas que
correm
na fluência eterna do ímpeto da vida...
70
Esse correr das águas é uma nítida retomada do correr por dentrodo fio do
rosário no poema vestibular. Neste texto, porém, fica resguardada a noção de unidade de es-
sência apesar da diversidade na aparência, enquanto que em Águas da serra” enfatiza-se mais
o prisma do distanciamento de Deus, de Quem se diz esteja “talvez ainda dormindo, o que
vale dizer, em repouso, contrastando com a dinâmica aquática que caracteriza “as formas e as
vidas.
A identidade e o movimento definem o contorno de outro predicado da criatu-
ra: a sua liberdade em relação à imobilidade da Origem. O desenrolar da história do ser não é
senão o desempenho de uma cinética libertária pessoal, da qual derivam todos os conflitos, er-
ros e acertos inerentes à experimentação da vida: é, de acordo com o título de outra peça do
primeiro terço de Magma, a “Turbulência” da existência marcada pela responsabilidade do li-
vre-arbítrio.
Recapitulando, temos em síntese que, para o ser, a identidade – que é a outra
face da separação –, o movimento – que implica em afastamento – e a liberdade – que pressu-
e o conflito – são as decorrências imediatas da Nascença.
Daí vem que os carmes que comem o terço inicial de Magma podem ser di-
vididos em quatro grupos, em função da similaridade temática e da progressividade que os
conformam em torno dessas decorrências. Diga-se, em linhas gerais a serem depois minucia-
das, que no primeiro grupo, neste estudo denominado de “Nascimento: os poemas hidráuli-
cos, a água é o motivo preponderante e cuida-se do despertar do ser para a vida, dando-se ên-
fase ao caráter de motricidade aquático. Depois, as composições da segunda série, a que cha-
maremos de Ritmos selvagens: a liberdade em Turbulência, dão continuidade a esse ca-
ráter, traduzindo-o na turbilhonante liberdade de movimento da manifestação. A ponte do
arco-íris” é o conjunto seguinte, em que, por conta do deslocamento, aparece mais patente a
distância que se estabelece entre o ser desgarrado e Deus. E Viagem de trem, que encerra o
terço, segue no mesmo diapasão de estabelecimento de distâncias, com o diferencial em
confronto com os grupos anteriores – de conter um sentido de abordagem bem mais direto e
intenso da idéia de queda do humano no mundo terrestre, em meio a uma soturna atmosfera
de solidão, a qual, antecipando a saudade e a busca amorosa que irão imperar já no segundo
terço, nada mais é do que a lembrança aguda da própria identidade: a percepção da condição
existencial de um eu como sendo diverso e insulado em relação a um Outro que se aparenta
ausente.
Com relação às nomenclaturas adotadas para cada uma das séries poemáticas, é
bastante pertinente frisar que não são elas de maneira alguma arbitrárias, mas antes se esco-
71
ram nos elementos fornecidos pela própria escritura rosiana. Assim, os poemasque se vol-
tam para o Nascimentodo ser são agora reputados como hidráulicosporque é a partir das
águas neles correntes que efetivamente parece se impulsionar o inteiro andamento do livro. Já
Ritmos selvagens” e Turbulênciasão nomes de textos de Magma, sendo que a palavra que
fecha e sobre o qual gira este segundo é exatamente “liberdade. A ponte do arco-íris, por
seu turno, consiste numa denominação absolutamente adequada para arrebanhar um ciclo de
sete carmes intitulados com as designões das cores que comem aquele femeno óptico.
E quanto à “Viagem de trem, trata-se de um complexo que congrega seis composições, em
duas das quais esse veículo é explicitamente mencionado. Decerto que há ainda outros fatores
que contribuem para explicar as escolhas dessas terminologias; serão eles, no entanto, com-
preendidos oportuna e naturalmente, à medida que se for abordando cada conjunto por sua
vez. Vale o mesmo com respeito às outras justificativas para a configuração dos grupos, ou
seja, para a inserção de cada peça nesta ou naquela série, de modo a completar um sistema
distinto dos demais.
Todavia, antes de passar a esses poemas que perfazem o terço inaugural, outras
breves considerações inda merecem ser tecidas.
É proveitoso recordar que, como já referido, o primeiro terço também corres-
ponde ao que se costuma chamar de Pequenos Mistérios ou Mistérios Menores: são os ritos
preparatórios que acompanham a entrada no templo – em Magma, o microcosmo, templo da
existência do eu e contraparte da saída do Outro e realizam a purificação do postulante para
que ele se possa prestar à adquirição dos conhecimentos contidos nos Grandes Mistérios ini-
ciáticos. Sob a óptica antropológica, os Pequenos Mistérios desse terço constituem o que Van
Gennep denomina de “ritos de separaçãoou preliminares.
Cumpre outrossim distinguir os aspectos negativo e positivo do processo do
Nascimento. Do ponto de vista negativo, as almas humanas
utilizam a espontaneidade do seu movimento para correrem em direção oposta a
Deus; chegadas ao ponto mais afastado, ignoram mesmo que vêm dele.
119
A separação da Alma Parens configura-se destarte numa incisiva catástrofe
para o ser, conforme expresso pela Cabala, ou no káthodos da terminologia plonica: a saída
do Uno é a trágica queda no múltiplo. Desenha-se assim uma via descendente: vindo do Altís-
simo, o ser em exílio (ou em Desterro, consoante o poema de Magma) desce ao Mal e ao
Inferno. Mas não se fala no Inferno como é entendido pelas religiões semíticas, a geena do
119
Plotino, Enéada V, 1, 1.
72
supcio eterno que pressupõe uma divindade terrível e vingativa; melhor é adstringir-se ao
étimo da palavra: o latim infernis significa simplesmente “região inferior. Esta é tão-somente
a matéria, o pó da terra ou o lodode que é feito o corpo, onde se vive “a verdade do sempre
descendo(nos termos de “Águas da serra”) e por onde, não obstante, flui o magma anímico
subterrâneo. Por conseguinte, o ser no Inferno está apenas embaixo, apartado, em sua igno-
rância e na aparência da desmemória, de Deus que está no Alto
120
.
Neste ponto acode-nos um antigo ditado hebraico, o qual assevera que o ho-
mem, uma vez decaído, tão-só quando chega ao fundo do abismo pode apoiar os pés no chão
e deste modo conseguir impulso para lançar-se novamente para cima: o solo é a base para
todo salto e para todo vôo.
Donde procede o aspecto positivo do Nascimento: a queda é somente o princí-
pio ou o ensejo da elevação, é o primeiro e imprescindível passo da jornada que conduz ao
mesmo ponto de partida, isto é, ao Alto de onde se caiu. Conquanto ainda insuspeite, con-
quanto desmemoriado não vejanem sinta” em seu íntimo a centelha de essência que é o
nexo com a divindade, pela fé o ser desterrado não desmente o seu único e verdadeiro destino:
voltar. Por outras palavras, somente se cai para se poder levantar, somente se sai para se poder
retornar à suprema Canaã. A implicação do retorno é fundamental: ao espírito humano afigu-
rar-se-ia como a maior ventura, bem melhor do que jamais haver partido, o regresso à Origem
as o sofrimento das experiências vitais, coroamento que satisfaz uma saudade longamente
sentida e transforma o reencontro numa vitória gloriosa: Ad augusta per angusta” e Ad as-
tra per aspera
121
. O Alcorão e a Bíblia são concordes: tudo o que vem de Deus a Ele regressa
e toda a Criação anseia por reencontrar-se com o Criador. E ainda recorrendo à sabedoria is-
lâmica, lega-nos ela uma fórmula inequívoca, por meio de Shabestari: O fim é o retorno.
122
O que se casa maravilhosamente com outra sentença do mesmo Shabestari: Viaja em ti
mesmo.
123
Logo, o eu se coloca como paisagem e passagem –, enquanto que o começo e
o fim, o Alfa e o Ômega, o próprio caminho são Deus. Aliás, Jesus Deus feito filho do
Homemassegurou (João 14, 4-6):
E vós sabeis o caminho para onde eu vou.
120
Permanece sempre presente a sábia advertência hermética O que está no alto é igual ao que está embaixo
e a taoísta: O alto e o baixo formam um todo(v. a nota 96, pág. 56).
121
Cf. ROSA, 11, 42-43 (Pirlimpsiquice”).
122
Apud CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 780, verbete RETORNO.
123
Apud id., op. cit., pág. 952.
73
Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais; como saber o cami-
nho?
Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem
ao Pai senão por mim.
O que, numa leitura arriscada, porém livre, poderia ser entendido desta manei-
ra:
O
Eumera aparência anímica de identidade saída de Deus
é
o caminhoque cada
homem tem condições de saber e de trilhar, “e a verdade” relativa que está ao alcance de toda
humanidade, e a vidaque é vivida por todos; ninguém vem– ou volta “ao Pai– na re-
alidade o único EU SOU, o Porto final e a Verdade absoluta senão
transpondo o eu
, per-
correndo o caminho que vem de Deus, persentindo em si mesmo a verdade e passando pelas
vicissitudes da vida citerior
124
. Em suma, viver é viajar e o Nascimento do
eu
é um convite
para a aprendizagem ou reconhecimento da “semelhança” essencial entre o ser humano e
Deus
125
.
A propósito, não é à toa o grande mero de mitos de viagem e de retorno pre-
sentes em várias culturas e literaturas.
En passant
e sem cuidado diacrônico,
cite-se a
Odis-
séia
homérica, o
Êxodo
bíblico através do deserto, as copiosas novelas medievais acerca da
demanda do Santo Graal, a saga de Dom Quixote e de outros cavaleiros andantes, a travessia
iniciática de Dante, a épica camoniana, Jasão e os Argonautas,
Gilgamesh
e Utnapshtin, a
Arca de Noé, o mito de Orfeu no Inferno, o
tour
interplanetário d
O pequeno príncipe
, as idas
e vindas de
Macunaíma
. Modernamente, Carl Gustav Jung fala da viagem como um símbolo
para a busca da
Mãe perdida
126
, o que, no sentido mais profundo, diz respeito ao seio da
Alma Mater
. Já em Guimarães Rosa, lembre-se da narração feita pelo Grivo
em Cara-de-
Bronze(de
Corpo de baile
) e das peripécias de Riobaldo em
Grande Sertão: veredas
. Todas
essas aventuras ilustram, cada qual a seu modo, o mesmo tema da viagem espiritual, indepen-
dentemente de que ela malogre – o que sinaliza com a exigência de outra tentativa com maior
dose de esforço por parte do peregrino – ou de que tenha por termo a meta desejada. E eis que
a viagem espiritual do ser é, como já aludido, a sua experimentação nas agruras da aparente
ausência divina, sendo a plena presença em Deus o término do exílio. A viagem mistagógica
do poeta em
Magma
também segue essa linha, que é ainda bem representada pela imagem da
124
Em consonância, ensina H.-Ch. Puech: Nesta perspectiva, a questão do nosso destino parece simples: resu-
me-se à relação que o meu eu pode, que
eu
posso manter
comigo próprio
. Sou eu que, ao
singularizar-me
, ao li-
gar-me às minhas manifestões exteriores: apreensão de um objecto do mundo sensível em tal instante ou pros-
seguimento de uma acção que leva a um desenvolvimento do tempo e me transporta para fora de mim, crio a mi-
nha ausência em mim próprio.(
apud
BRUN, 145, 84).
125
Cf.
Gn
1.26: Também disse Deus: Famos o homem à nossa imagem e semelhança”, o que, evidentemente,
não pode ser em nenhuma hitese tomado como referência à semelhança do
corpo sico
, pois que Deus é
Espí-
rito
.
126
Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 952.
74
Ourobouros (ou Uróboro), serpente alquímica que morde a própria cauda, assim reunindo o
fim e o princípio, com o que “Exprime (...) a eternidade, concebida sob o aspecto de um eter-
no retorno. O que não tem fim nem começo
127
.
Ora, se o escopo da saída é a bem-aventurança do retorno, é permitido inferir
que a própria saída se constitui em razão para alegria. Tem pertinência dar atenção a um con-
ceito capital da Cabala, segundo o qual Deus só poderia ser reconhecido através da perspecti-
va de Suas próprias criaturas, i. e., o intento da Criação seria a dádiva concedida aos seres, ar-
rancados ao Nada, de saberem da onipresença do Pai, concomitante à oportunidade de exercí-
cio da teodiia. Dizendo de outra maneira, o ser humano existe apenas para saber – no tempo
apropriado e cada vez mais profundamente – de Deus e confessar a Sua atuação benigna. Isso
se adapta à perfeição com a concepção patrística da felix culpa, que entende como causa de
exultação mesmo a queda do homem no pecado, vez que para resgatá-lo o Filho deu-se a co-
nhecer.
Ao final, temos que a Nascença, ainda que seja separação abrupta e queda, é
motivo de felicidade, pois pressupõe a aquisição de um eu livre apto a encontrar – ou reen-
contrar – o Outro e, desde logo, a expectativa de retorno ao Pai as a conclusão da viagem.
Eis porque a primeira parte de Magma pode ser identificada com os mistérios da alegria do
rosário dominicano, que celebram a Natividade: o gáudio do Nascimento para a vida e para a
aventura da circulatio é, pelo menos por agora, mais consistente do que o trauma momentâneo
da separação. De fato, se no terço inicial do livro de 1936 a tristeza pelo afastamento compa-
rece de forma expressa em vários poemas – particularmente na peça “Desterro–, é tanto ver-
dade que a alegria palpita, subterrânea, ao longo de todo o trajeto das Águas da serra, que
descem
cantando nas pedras a canção do mais adiante,
ou seja, desde a Fonte jubilosamente já pressentindo o vindouro encontro com a Foz. E bem
expoente dessa alegria íntima – que ademais reflete o brilho do fio anímico – surge o diálo-
go, nas estâncias finais da composição Boiada, entre o Patrão” e o vaqueiro João Nani-
co; ao ser perguntado porque canta assim?, já que “seu gado miúdomorreu pesteado, sua
“crioula” fugiu pra Baía” e seu filhofaleceu no eito, (...)/ picado de urutu, o sertanejo
responde:
Ai, Patrão, a vida é uma boiada,
127
Id., op. cit., pág. 780. Grifo dos autores, que citam J. Van Lennep (Art et Alchimie).
75
e a gente canta pra ir tocando os bois
...
E:
Oh João Nanico, mineiro velho,
quer vir comigo pro Paracatu?!...
O gado é bravo?... A pinga é boa?...
Ai, Patrãozinho, vamos embora,
vamos embora pro Paracatu!...
Sabendo que “
Paracatu
quer dizer rio bom” em tupi, fica demonstrada a
vontade do vaqueiro em não se deixar abater pelos reveses de sua experiência de vida, mas, ao
invés, em se deixar levar, com fé, pela fluência do rio que conduz à Foz, vida afora, Sertão
adentro, na cadência da boiada de
Cacundas ondulantes,
desabaladas,
como as águas de um rio
...
Para finalizar este tópico, adiantemos um pouco o assunto dos próximos Capí-
tulos, ao dizer que de tudo se infere ser a saudade, o sofrimento da distância, o que faz com
que o
eu
, uma vez desperto para si mesmo e para sua liberdade, sinta a necessidade de estar
novamente junto com o
Outro
de Quem fugiu e tenha esperança nesse alegre reencontro. Essa
feliz reunião é o condutor que norteia a parábola do filho pródigo, o qual, as sair do lar e
dissipar seus bens na liberdade irresponsável, passa fome e privações que o levam a volver
humildemente à casa paterna, onde é acolhido com festas; e quando o filho mais velho, que
permaneceu trabalhando com o pai, indigna-se ao ver que este matou o novilho cevado para
comemorar a volta do irmão pecador, o pai redargúi que era preciso o regozijo porque o filho
mais novo “estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado
128
. A parábola da ovelha per-
dida tem um fundo semelhante
129
. Poder-se-ia dizer, grosso modo, que o primeiro terço de
Magma
cuida da liberdade do filho pródigo ou da fuga da ovelha, enquanto que o segundo
terço diz respeito à saudade da casa paterna ou do aprisco e o terço final é o reencontro com o
pai ou pastor.
Finda a digressão, podemos avançar sem mais delongas no exame das “contas
do primeiro terço do rosário magmático.
128
V.
Lc
15.11-32. Essa declaração do pai compadecido é pronunciada tanto no versículo 24, quando ordena aos
criados a célere preparão das comemorões, como no 32, quando insta com o primogênito para que este par-
ticipe da alegria.
129
V.
Mt
18.10-14 e
Lc
15.3-7.
76
1. NASCIMENTO: OS POEMAS HIDRÁULICOS
Os ritos sagrados iniciavam-se por uma purificação, uma
lavagem no mar vizinho. Para o mar, ó místicos!, bradava o
mestre das cerimônias, no que era obedecido pelo grupo de es-
perançosos, que mergulhava nas ondas.
A forma como o rito
decorria nunca foi desvendada, pois até aqueles iniciados que
vieram a converter-se ao cristianismo cumpriram a sua pro-
messa de segredo. Todavia, atras de diversas sugestões, po-
demos concluir que se administrava um certo sacramento.
KURT SELIGMANN,
sobre os Mistérios de Elêusis
... Disse Jo a todos: Eu, na verdade, vos batizo com
água, mas vem o que é mais poderoso do que eu, do qual não
sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias; ele vos ba-
tizará com o Espírito Santo e com fogo.
LUCAS
3.16
Iara eu te amo muito mais agora
WALTER FRANCO,
Mamãe dágua”
Os poemas hidráulicos são Águas da serra” e A Iara”. Nessa díade, os con-
ceitos fundamentais são os de
purificação
,
nascimento
e
movimento
, tudo carreado aos textos
pelo mesmo símbolo do quido vital.
Partindo então de “Águas da serra, leiamos essa composição, que progride
numa só estrofe:
1
Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais adiante,
5
vivendo no lodo a verdade do sempre descendo...
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida...
Qual terá sido a hora da vossa fuga,
10
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
talvez enquanto o próprio Deus dormia?
E então, do sono pleno dos paraísos perfeitos,
os diques se romperam,
15
as forças livres rolaram
e veio a ânsia que redobra ao se saciar,
e os pensamentos que ninguém pode deter,
e novos amores em busca de caminhos,
e as águas e as lágrimas sempre correndo,
20
e Deus talvez ainda dormindo,
77
e a luz a avançar, sempre mais longe,
nos milênios de treva do sem fim...
130
É de se r mais uma vez em evidência um ponto de inestimável valor para que
se possa abarcar todo o alcance do símbolo aquático no livro de 1936: não se pode olvidar que
a água que brota em Águas da serra” e que se espraia por várias das composições que se se-
guem, revelando-se como
Leitmotiv
, é de natureza lustral
131
, ou seja, sua propriedade sacrali-
zante é complementada e intensificada quando se a considera juntamente com a ignescência a
que remete o título congregador
Magma
.
Por conseência, o sentido que primeiro nos interessa é o de
purificação
pela
água, rito que constitui uma preliminar indispensável nas iniciões religiosas de toda espécie.
No como das solenidades de Elêusis, por exemplo, logo as arrebanhados os neófitos pelo
hierofante, eram eles levados ao recinto do
Eleusinion
, ainda em Atenas (ao pé da Acrópole),
onde se aspergiam com o quido contido num vaso sagrado colocado à porta de entrada, con-
forme as pias cristãs de água benta. Em seguida, essa consagração era confirmada e ampliada
pela
elasis
(afastamento), a corrida ao mar, onde cada noviço se banhava, lavando fora”
sua qualidade de profano e demonstrando a vontade de cortar os los com a vida anterior.
Somente os assim duplamente santificados podiam participar da imponente procissão que per-
corria, com paradas em várias estações, os vinte quilômetros que iam de Atenas a Elêusis,
onde eram afinal instruídos nos
Mistérios Maiores
.
Também entre os judeus, sendo a lei mosaica pródiga nos preceitos de ablução
ritual, o papel da água como agente purificador sempre foi de suma importância, desde tem-
pos remotos dando margem à existência de numerosas cerimônias, tanto da mais alta liturgia
quanto do cotidiano, destacando-se o pedilúvio e a sacralização de utensílios. Sobretudo, a la-
vagem das mãos antes de se alimentar assentava sua razão de ser não apenas na mera questão
de higiene física, mas sim na exigência de purgação das impurezas do fiel antes que ele se
deixasse prover do sustento concedido por Javé. Os cristãos herdaram muito do sentimento
hebraico a esse respeito, tendo especialmente a
iniciação batismal
, instituída por São João
130
O texto de ROSA, 2, 15, apresenta as seguintes discrepâncias em relação à forma que foi transcrita de
id
., 1
(primeira versão): no verso 4 lê-se do
mais-adiante
, hifenizado; no v. 5, do
sempre-descendo
, também hife-
nizado; no v. 13, do
semi-sono
” está no lugar de do
sono pleno
; no v. 16, ao se
fartar
substitui ao se
saci-
ar
; e no verso final, ainda do
sem-fim
” aparece hifenizado. Observe-se que em
id
., 1, foi datilografado, no v.
15,
as forças rolaram livres
, e no entanto, a pretensão de inversão das palavras rolaram” e livresjá está in-
dicada por um gancho feito a mão, o qual demonstra a anteposição do adjetivo ao verbo, solução que prevaleceu
até a edição de 1997.
131
V. atrás, neste trabalho, as págs. 50-51 (Capítulo I, subtópico 3.1). Ressalvo que aludo à especificidade da
Água lustral, que se trata, conforme explana o Aurélio (FERREIRA, 173, verbete
água
), de uma Água sagra-
da dos antigos, a qual se obtinha extinguindo-se na água comum um
tição ardente
tirado da pira dos sacrifícios.
Grifei.
78
Batista às margens do Jordão, adquirido um caráter de extrema relevância e de sine qua non
para a admissão do crente nas igrejas
132
. É válido trazer à memória que a palavra “batismo
vem do grego baptismos, que se traduz por mergulhoou imersãonas águas do rio, o que
promovia a limpeza hierática da alma do batizando.
À vista disso, resta significativo que, as o poema vestibular, a peça que efe-
tivamente dá início à mistagogia em Magma tenha a água como motivo precípuo: trata-se de
uma límpida representação da mundificação ritual preambular do poeta neófito. Senão veja-
mos: as Águas da serra” escorrem em cascata
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre descendo...
Desta maneira, fica sugerido no texto o quido a precipitar-se, respingando, do
Alto por sobre o catecúmeno, tal como sói acontecer nas aspersões litúrgicas, em que o sacer-
dote, do estrado do altar, derrama a água sagrada por sobre o adepto, o qual se encontra em
humilde reverência (o mais das vezes de cabeça baixa ou no genuflexório), i. e., sempre numa
posição embaixo. Ademais, essa ablução, seguindo as solenidades eleusinas, é confirmada
pela repetição do rito aquático em A Iara”; realmente, no segundo texto da díade a cena se
passa num ambiente undífero, e a certa altura o poeta anuncia:
Enfeitiça-me, oh Iara,
que eu vim aqui para me deixar vencer...
O “aquiobviamente se refere às águas fluviais, onde o poeta em procura da
sereia está imerso, ou seja, batizado. Faz-se ainda menção à “água gorda do rio, o que evoca
também a unção cerimonial, reforçando o aspecto sacralizador do quido pela associão com
substância untuosa.
Ora, o intenso valor da água como elemento depurativo, principalmente nas
lustrões do judaísmo e no batismo cristão, mas também nas religiões pagãs iniciáticas, ex-
plica-se pelo ensejo de contato com o princípio essencial da Vida. De fato, desde o modelo
existencial de Tales de Mileto, aceito como o inauguratório da filosofia grega, a água é apre-
sentada como a geratriz vital, tendo demonstrado esse mesmo cariz em diversos outros es-
quemas de pensamento, tais como os antigos egípcio nilótico e chinês (no Tao, 8, 1: Vida
132
VAN GENNEP (280, 89) observa em nota de rodapé: nas mais antigas igrejas cristãs o batistério encontra-
va-se fora da igreja, de tal sorte que até a Idade Média os catecúmenos, penitentes, recém-nascidos e os recente-
mente batizados deviam permanecer em uma região liminar. Aliás, os templos de todos os povos possuem assim
um pátio, um vesbulo, um paramento que impede a passagem brusca do profano ao sagrado.
79
verdadeira é como a água”) e dentre os quais não se subtrai a ciência moderna. Porém, sobres-
sai-se a visão do Gênesis judaico sobre o assunto, o que é melhor examinar com diligência.
No Gênesis a água tem presença decisiva como símbolo cosmogônico, sendo o
tropo utilizado para exprimir mesmo o mistério da anterioridade da Criação, como atestam os
versículos que abrem esse livro (1.1-2):
No princípio, criou Deus os céus e a terra.
A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abis-
mo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.
Extrai-se que a água abissal é, figurativamente, preexistente a todas as coisas,
compondo – numa metáfora possivelmente embasada no seu caráter de fertilidade e nas sen-
sões que provoca de vacuidade, frialdade e, a posteriori, transparência – o meio em que o
próprio Espírito de Deusflutivagava. Água e Espírito comungam assim da mesma essência
primeva, da qual as trevas também fazem parte, porém de maneira diferente: a escuridão é
negada e banida pelo fiat lux criativo, ao passo que a água e o Espírito são reafirmados como
substânciasda matéria-prima da Criação. Não é, pois, sem razão que a Primeira Epístola de
São João (5.6-8) introduz o Messias do seguinte modo:
Este é aquele que veio por meio de água e sangue, Jesus Cristo; não somente
com água, mas também com a água e com o sangue. E o Espírito é o que testemu-
nho, porque o Espírito é a verdade.
Pois há três que dão testemunho no u: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo;
e estes três são um.
E três são os que testificam na terra: o Espírito, a água e o sangue, e os três
são unânimes num só propósito.
Voltando ao Gênesis (1.6-10), vemos que, feita a Luz no Primeiro Dia, inconti-
nenti Deus age sobre a massa inicial das águas primordiais, delas destacando primeiramente
os Céus e em seguida a Terra seca:
E disse Deus: Haja firmamento no meio das águas e separação entre águas e
águas.
Fez, pois, Deus o firmamento e separação entre as águas debaixo do firma-
mento e as águas sobre o firmamento. E assim se fez.
E chamou Deus ao firmamento Céus. Houve tarde e manhã, o segundo dia.
Disse também Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar, e
apareça a porção seca. E assim se fez.
À porção seca chamou Deus Terra e ao ajuntamento das águas, Mares. E viu
Deus que isso era bom.
É mister esclarecer que uma das formas mais correntes de se ver o mundo na
antiga mentalidade hebraica era tripartindo-o nos estratos celeste, terrestre e subterrâneo. O
80
Céu era entendido como um teto sólido, uma verdadeira abóbada imensa e maciça que conti-
nha – ou firmava – um grande oceano súpero donde as chuvas provinham: seriam “as águas
sobre o firmamento. Em Magma, aliás, uma imagem semelhante é apresentada no poema
Anil, ainda no primeiro terço, em que se faz referência
à calota do céu,
liso, congelado em calmaria,
e quase sólido, em cobalto quido.
E mais à frente:
e o u todo água, num côncavo de bacia
onde lavam o dia...
Quanto às águas debaixo do firmamento, seriam o grande oceano ínfero do
estrato subterrâneo, sobre o qual se fundavam as poderosas colunas que suportavam a Terra,
esta sendo compreendida como um extenso tabuleiro intermediário, de sorte que o quido
primordial circundava inteiramente o mundo criado.
A água é também o habitat dos primeiros seres viventes, a saber, os grandes
animais marinhos, de acordo com Gênesis 1.20-21 – com o que concorda em parte a pale-
ontologia atual, que admite haver sido o meio aquático o berço da vida planetária
133
. Por fim,
não deixa de ter a água participação fundamental na criação do próprio homem: como já ti-
vemos a oportunidade de discutir, o nome “Adãovem do hebraico adamá, que significa “ter-
ra cultivável, o que insinua que o ser humano, assim como o solo, foi criado para que, sendo
cultivado, produzisse bons frutos, e para esse cultivo, para o desenvolvimento ou aperfeiçoa-
mento tanto da planta quanto do homem, é necessária a rega com água, o contato com o prin-
cípio hídrico da Vida. É notório que, além de tudo, a água é o principal componente de todas
as lulas vivas e a ambiência da maioria das espécies animais e vegetais. Poder-se-ia então
dizer, com propício pleonasmo, que a água tem uma relação amniótica com o Nascimento do
ser humano, do qual é a nutriz por excelência.
Em Águas da serra” a visão genesíaca da Criação aparece de maneira bem su-
til, podendo contudo ser facilmente apreendida pelo próprio recurso enfático ao símbolo da
água como expressão das origens. Deve-se outrossim considerar a similaridade, ou melhor di-
zendo, a verdadeira sinonímia poética estabelecida por Guimarães Rosa entre as águas e a luz;
133
Tendo sido, contudo, os microrganismos unicelulares os primeiros seres vivos. De qualquer maneira, conside-
rando-se a época em que foi escrito, o Gênesis revela uma coerência científica avançada e surpreendente.
81
aquelas, que corremno primeiro verso, indo sempre “mais adiante”, sempre descendo,
são a mesma
(...) luz a avançar, sempre mais longe,
nos milênios de treva do sem fim...
Esses versos finais do texto evocam com exatidão o
fiat lux
genético. Note-se
ainda que as águas manam,
claras
,
do
escuro
dos morros,
ficando deste modo bem evidenciada a conotação da saída da luz (águas “claras) de entre as
trevas do Caos inicial (o escuro dos morros).
Portanto, não resta dúvida de que as Águas da serra”, sempre correndo, re-
presentam a manifestação dos seres criados. Ademais, suas ondas fluem
noite e dia,
na fluência eterna do
ímpeto da
vida
...
A alusão à “noite e dia”, por outro lado, inda uma vez reflete o labor divino do
Primeiro Dia e logo o escoar do tempo ocupado pela Criação. Finalmente, embora em dado
momento o poeta indague às águas
Qual terá sido a hora da vossa fuga,
ele próprio responde, nos versos seguintes, ter sido
quando
as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus
...
Ficam também inequívocas as conotões da
separação
e da
liberdade
conferi-
da aos seres por ocasião da Nascença: as águas estão
soltas
” e em
fuga
” e, como “as formas
e as vidas, elas se
desprenderam
das mãos de Deus. Além disso, desde que “os diques se
romperam, passaram as vagas a rolar
livres
” e, como “a luz a avançar,
sempre mais longe
,/
nos milênios de treva do sem fim...A idéia de
queda
na matéria é, por sua vez, indicada com
veemência “no lodoonde se
vive
a verdade do
sempre descendo
. Tudo isso ilustra à mara-
vilha o
movimento
da manifestação, o qual fica outrossim nitidamente marcado pela constela-
ção semântica empregada pelo autor: verbos como “correm, rolaram, “avançar, substanti-
vos como fluência”, ímpeto
etc
...
82
Não obstante, junto com a liberdade de movimento o ser que nasce é dotado de
outros importantes predicados: vontade, consciência, capacidade de amar e de sofrer. É o que
se depreende dos versos:
E então, do sono pleno dos paraísos perfeitos,
os diques se romperam,
as forças rolaram livres,
e veio a
ânsia
que redobra ao se saciar,
e os
pensamentos
que ninguém pode deter,
e novos
amores
em busca de caminhos,
e as águas e as
lágrimas
sempre correndo
...
Convém agora dizer que, concomitante à noção genesíaca judaico-cristã, con-
vergem em Águas da serra” outras duas ópticas distintas a respeito do Nascimento da reali-
dade: são elas o pensamento cabastico luriânico e a filosofia de Plotino, sobre os quais ainda
cabe discorrer antes de dar melhor atenção ao texto de “A Iara”.
Conquanto se constitua num sistema que parte justamente de discussões sobre
os livros da
Torá
, dentre os quais se conta o
Gênesis
, a Cabala esmiúça e aprofunda os temas
sagrados num intrincado e esotérico mosaico de proposições sticas desenhado por diversos
autores, tais como Moisés Cordovero e Isaac Luria. A extrema complexidade teórica da Ca-
bala nos impede de entrar em detalhes, mas é indispensável tecer algumas breves reflexões.
Como aludido, interessa-nos mais de perto o idrio de Luria. Esse célebre hierosolimita do
século XVI entendeu a criação do Universo desempenhada através de um processo que con-
templa três grandes momentos: o
tzimtzum
ou “contração, a
sheviráh há-kelim
ou quebra
dos vasos” e o
tikún
ou restituição. Citando Harold Bloom:
A realidade, para Luria, se dá sempre num triplo ritmo de
contração, separa-
ção e reagregão
, um ritmo sempre presente no tempo, mesmo ao fraturar pela pri-
meira vez a eternidade.
(...)
Tzimtzum
, originalmente, parece ter significado um prender a respira-
ção, mas Luria transformou a palavra numa idéia de limitação, de um auto-
ocultamento de Deus ou, ainda, de Sua entrada em Si mesmo. Neste movimento de
contração, Deus abre um espaço para a criação, para um o-Deus. A este espaço li-
berado o
Zohar
chamará de
tehíru
ou espaço fundamental.
134
Em outros termos, segundo o conceito luriânico do
tzimtzum
, no princípio Deus
concentrou-Se em Seu Supremo Eu, abrindo assim um Vazio que viria a ser ocupado pelo
Universo. Já no que concerne à idéia de “auto-
ocultamento
de Deus, podemos desenvolvê-la,
134
BLOOM, 136, 49. Grifei. Chamo entretanto a atenção para a impropriedade do termo
movimento
de contra-
çãoutilizado por Bloom, pois, como o próprio autor explicita mais à frente, a palavra hebraica que dá origem a
tzimtzum
é
metzamtzem
, que guarda o sentido de prender a respiração, ou seja, precisamente uma
privação do
movimento
respiratório.
83
compreendendo significar a mesma que uma parte dEle, que somos a Criação, não clara-
mente a Outra Parte, que é Deus Ele Mesmo dentro de Si e dentro do ser. Ou, dizendo na lin-
guagem magmática, o fio anímico que nos une a Deus
(...) corre por dentro,
sem que o poeta o veja,
sem que o sinta,
sem que o desminta...
Ainda invocando o texto de Bloom:
Luria e seus discípulos, em seus relatos sobre as origens, se baseiam em dois
grandes e complexos tropos, o tzimtzum e o tikún, e num conceito de conexão entre os
dois, sheviráh há-kelim, que, retoricamente, não é considerado um tropo, e sim uma
violenta dramatização do processo pelo qual uma figura verbal é substituída por ou-
tra. O tzimtzum é, inicialmente, uma ironia retórica para o ato da criação, no sentido
de que significa o oposto do que parece dizer. Ele diz retraimentomas significa
concentração. Deus Se retrai de um ponto só para nele Se concentrar. A imagem de
Sua ausência se torna uma das maiores imagens jamais encontradas para Sua pre-
sença, uma presença que é intensificada pela metáfora original do metzamtzem, o Seu
prender a Sua própria respiração.
135
O que também podemos aproveitar para o exame do Nascimento em Magma é
a noção, já discutida neste trabalho, de que o ser humano somente se constitui como tal
como eu – pela necessária ausência divina, pelo afastamento do Outro, o que, entretanto, dá
ensejo à esperança do reencontro: o ser só pode reconhecer o Princípio e a Ele regressar se
dEle sair, se o Princípio for deveras Princípio de algo que não é Princípio, mas desdobra-
mento.
Prosseguindo, ao liberar o tehíru Deus formou os kelim, vasos, dentre os
quais se destacava Adam Kadmon, o primeiro homem. Aos vasos Ele enviou a luminosa letra
Yod, a primeira de seu Divino Nome, representado pelo Tetragrama Sagrado YHWH (impro-
nunciável, lido pelos hebreus como AdonaiSenhor– ou Yaveh
136
, donde “Javé” e
Jeová). A Luz do Yod chocou-se com a Luz residual que Deus havia deixado no tehíru as
o tzimtzum, e o resultado foi uma espécie de catástrofe, a sheviráh há-kelim: os vasos, incapa-
zes de conter a extrema energia da Luz Divina, romperam-se. De imediato uma parte da Luz
135
Id., op. cit., págs. 83-84.
136
Yaveh, por seu turno, é um arcaísmo hebraico do verbo hayah, ser, cf. Êx 3.14: Disse Deus a Moisés:
EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós outros.Remeto
à Bíblia de estudo Almeida, 130, nota o a esse versículo e nota q ao versículo seg., bem como às numerosas pas-
sagens do Evangelho joanino em que Jesus se revela de forma análoga (por exemplo, 8.24, 8.28, 13.19), especi-
almente Jo 8.58: Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade eu vos digo: antes que Abro existisse, EU
SOU.
84
regressou para Deus. A Luz que restou, compondo a Criação, há também de retornar, mas
para isso deverá levar a efeito o tikún, atinente a que Bloom afirma:
Por mais importantes que sejam estes dois primeiros estágios na visão de Lu-
ria, o tzimtzum e a sheviráh são, contudo, menos fundamentais em sua doutrina do
que o tikún, o processo salvador de restauração e restituição, uma vez que ele é uma
obra do homem, realizada através de uma complexa série de agentes denominados
partzufim ou faces, o equivalente luriânico das behit de Cordovero.
137
Não nos interessa penetrar nos meandros das complexíssimas partzufim (faces
divinas) ou mesmo das behit. Importa sim guardar o sentido geral do tikún:
o tikún, ou restauração da criação, deve ser realizado pelos atos religiosos dos ho-
mens enquanto indivíduos, de todos os judeus no Exílio, e, na verdade, de todos os
homens e mulheres que lutam no Exílio, que Luria via como a condição universal da
existência humana. Mais uma vez, o espaço aqui disponível é muito limitado para ex-
plicar a complexa natureza de tais atos religiosos do tikún, mas eles são, essencial-
mente, atos que elevam e com isso liberam as caídas centelhas de Deus de Seu confi-
namento nos fragmentos das Kelit. Tais atos de meditação são, ao mesmo tempo,
psíquicos e linísticos, mas, para Luria, eles também são mágicos, tanto que entram
na esfera da Cabala prática...
138
As Kelit são, no dizer de Bloom, as forças malignas do universo, os esti-
lhos dos kelim que, a despeito da sheviráh, mantêm “aprisionadas em seu interior” as “cen-
telhas de luzdo Yod. São malignasunicamente porque expressam a extrema distância de
Deus, a queda no Mal e na matéria, o Exílio. Entretanto, as luminosas fagulhas da essência
divina que estão em seu íntimo guardam nexo com a deidade. Ora, sem dificuldades podemos
concluir que essas Kelit são claramente o corpo material em cujo subterrâneo corre o mag-
mático fio anímico.
Fica outrossim por demais evidente a estreita relão que se verifica entre a
natureza psíquica, lingüística e mágica dos atos de meditação do tikún e a empresa stica e
estética de cunho anagógico elaborada por Guimarães Rosa
139
. Bloom, aliás, com muita preci-
são se refere a “uma teoria mágica da linguagem que a maioria dos poetas fortes comparti-
lhou, secretamente, com todos os cabalistas.
140
Vale repetir os versos de “Águas da serraque espelham com nitidez o recurso
do jovem Guimarães Rosa à Cabala:
137
BLOOM, 136, 51. Para detalhes acerca das partzufim e das behinót remeto a esse texto de BLOOM, bem
como a SCHOLEM, 257.
138
BLOOM, 136, pág. 52.
139
V., por exemplo, o depoimento transcrito à pág. 29 deste trabalho (nota 44), Capítulo I, tópico 1.
140
BLOOM, 136, 85-86.
85
Qual terá sido a hora da vossa fuga,
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
talvez enquanto o próprio Deus dormia?...
E então, do sono pleno dos paraísos perfeitos,
os diques se romperam,
as forças livres rolaram,
e veio a ânsia que redobra ao se saciar,
e os pensamentos que ninguém pode deter,
e novos amores em busca de caminhos,
e as águas e lágrimas sempre correndo,
e Deus talvez ainda dormindo,
e a luz a avançar, sempre mais longe,
nos milênios de treva do sem fim...
O sono de Deus, sono pleno dos paraísos perfeitos, representa de modo cris-
talino a Sua “
entrada em Si mesmo
, com o que se franqueia espaço para que o sonho criativo
flua, aquaticamente. As águas oníricas e luminosas que brotam desse sono rompem com es-
trépito os diquesque tentam contê-las, ou seja,
quebram os vasos
. Destarte, esses instantâ-
neos poéticos podem ser prontamente identificados com o
tzimtzum
e a
sheviráh há-kelim
de
Isaac Luria.
No que diz respeito ao
tikún
, preenche ele todo o restante do trajeto iniciático
em
Magma
: o
movimento
livre das águas e da “luz a avançar, sempre mais longe”, desdobran-
do-se nos poemas seguintes, pode ser entendido como referente, ao mesmo tempo, tanto à
prática dos
atos religiosos
” e “
de meditação
da restauração (caracterizados por serem
má-
gicos
,
psíquicos e lingüísticos
), quanto às preces poéticas que comem o rosário do poeta
neófito e que demandam deste, entre outros esforços, a vontade (“ânsia que redobra ao se sa-
ciar), a inteligência (pensamentos que ninguém pode deter) e o amor para se vencer os so-
frimentos que resultam da apartação da Origem. Falando de forma expcita, essas preces
poéticassão nada menos do que genuínos “atos religiososde restauração do ser em Deus.
Apenas por intermédio desses atos poéticos dar-se-á o término do Desterrodas fagulhas ca-
dentes, pela sua elevação e conseqüente “
restituição
” ao seio da Consciência cósmicadon-
de fulguraram. E lembremos: dado que a evolução do afastamento do ser com relação a Deus
assume, como o rosário, uma configuração de
circulatio
, a Foz a que as águas tendem não é
senão a mesma Nascente, entendida sob nova visada. Daí, o homem já empreende o
tikún
muito antes de ter disto conhecimento, o que quer dizer,
já está voltando quando ainda está
partindo
, desde logo
cantando nas pedras a canção do
mais adiante
...
86
Concluída, por enquanto, a matéria sobre a Cabala, passemos agora a examinar
algumas das nuances do pensamento neoplatônico observáveis em Magma. Tem pertinência
trazer à baila a reiterada menção, em Águas da serra, ao sono de Deus. Realmente, em três
oportunidades Guimarães Rosa salienta o assunto. Por primeiro, ao se perguntar
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
talvez enquanto o próprio Deus dormia?...
Logo em seguida, o autor coloca em evidência o sono pleno dos paraísos per-
feitos(matriz donde as forças livres rolaram) e, por fim, reporta-se à probabilidade de estar
Deus talvez ainda dormindodurante o tempo em que estão “as águas e as lágrimas sempre
correndo.
A euipnia divina fica, desta maneira, bem caracterizada em contraposição ao
despertar da manifestação para a atividade connua. Note-se, adrede, que “as formas e as vi-
dasnão são passivamente desprendidas ou despedidas pelas mãos de Deus, as quais per-
manecem inertes, porém delas se desprendem em ato. Isso nos sugere o conceito plonico de
Emanação.
Para Plotino, a Emanação (aporróia) consiste no trasbordamento da plenitude
do Uno, o Qual irradia todas as múltiplas manifestões do ser como um prolongamento de
Sua própria essência, assim como o fogo propaga luz e calor, a neve emite o frio, o perfume
exala o olor
141
. Portanto, o Uno é
um algo anterior a tudo, algo que deve ser simples e distinto de todo o posterior;
existente por si mesmo, transcendente ao que dele procede e, ao mesmo tempo, de
uma maneira típica, capaz de estar presente em todos os outros seres.
142
O ponto crucial do pensamento emanatista é que tudo dimana de Deus sem que
haja, por parte dEste, nenhuma ação ou desejo; o Uno não empurra para fora de Si a luz que
brilha
143
, mas o Universo se Lhe desprende sem que isto implique em qualquer arranjo, en-
gendramento ou labor organizativo. A razão capital para que Plotino descarte a atuação fabril
do Uno para o estabelecimento da realidade é que, nessa hitese, entre o Uno e o múltiplo
verificar-se-ia uma solução de continuidade, uma separação real, eis que o movimento divino
141
Enéada V, 1, 6. Alguns dos termos de que Plotino mais comumente se vale para dar conta da idéia de Emana-
ção são perílampsis (irradiação) e upererrúe (expansão).
142
Enéada V, 4, 1.
143
Enéada V, 3, 12.
87
surgiria, então, como termo mediato, e em conseência o ser não comungaria da mesma es-
sência original de Deus.
Plotino se utiliza das metáforas da fonte dágua que verte seus cursos sem se
esgotar e da seiva que se difunde das raízes através da árvore
144
. A imagem predominante, po-
rém, que aparece em muitas passagens da doutrina plonica
145
, é a do círculo: os raios se
prolongam do centro, abandonando-o sem verdadeiramente abandoná-lo e sem que o próprio
centro percorra qualquer espo; o deslocamento é dos raios manifestados, e não do Motor
manifestante, que se mantém imóvel e imutável. Destarte, paradoxalmente
O Uno é todas as coisas e não é nenhuma delas; princípio de todas as coisas,
Ele não é todas as coisas; mas Ele é todas as coisas...
146
E também:
O ser que vem do Uno não se separa dEle e não é idêntico a Ele...
147
O que podemos dizer de modo diverso, a saber: o ser separa-se de Deus, por-
que já não está imerso na Origem, mas em verdade não se separa, porque por dentro do ser,
posto que momentaneamente insuspeitado, corre o fio anímico, o elo deífico indissolúvel.
Ainda, o ser não é o Uno, porquanto o ser é múltiplo; todavia, o ser é o Uno, já que tudo O é
ou já que o Uno é tudo. A chave desses paradoxos, constantes no neoplatonismo e que o apro-
ximam do
koan
zen e das poéticas mais avançadas, é que o ser deixa de ser ele próprio se for
Outro, mas o Uno permanece sempre Uno e indiviso, mesmo que em aparência se multifracte
em todas as coisas.
Outrossim, a oposição entre a estática divina e a cinética humana, que é outro
aspecto de proeminência no emanacionismo, fica bem frisada por Plotino: em várias das
Enéadas
ele insiste em que “o que vem do Uno vem
sem que haja movimento
148
, por meio de
uma irradiação que vem dEle, dEle que permanece imóvel, tal como a Luz resplandecente
que rodeia o Sol nasce dele, embora ele esteja sempre imóvel
149
, e seguidamente, ao falar da
144
Enéada
III, 8, 10.
145
Como, por exemplo, na
Enéada
IV, 2, 1, em que o filósofo discorre sobre a Alma: Ela é como o centro den-
tro de um círculo: todos os raios puxados do centro para a circunferência deixam no entanto o centro imóvel,
conquanto dele nasçam e nele tenham o seu ser; participam do centro, e este ponto indivisível é a sua origem:
mas avançam para fora, embora fiquem a ele ligados.
146
Enéada
V, 2, 1.
147
Enéada
V, 3, 12.
148
Enéada
V, 1, 6. Grifei.
149
Ibid
.
88
alma humana, o filósofo afirma que ela “tem uma inteligência própria e tem de si própria a
vontade de compreender e de se mover
150
.
O movimento do ser tem estreita relação com o que Plotino denomina de “pro-
cessão(káthodos), que é, nas palavras de Jean Brun,
ao mesmo tempo, um caminho de afastamento e uma via de aproximação, um pouco à
maneira da estrada que sobe e da que desce, formando uma só e idêntica, segundo
Heráclito.
151
Brun prossegue, transcrevendo Jean Trouillard:
Progressão e reintegração, exitus et redituso se mostram antitéticos senão
numa imagem espacial que os representa como acontecimentos justapostos. Na cir-
cumincessãoespiritual, são os aspectos complementares de um mesmo processo. (...)
É preciso resistir à tentação de adotar no estudo da processão uma ordem descen-
dente. (...) O essencial da processão está na conversão em múltiplas formas do ser em
direção à sua origem. (...) A processão plotiniana é antes de mais ascendente.
152
A figura do rosário, escolhida por Guimarães Rosa no poema vestibular de
Magma, serve admiravelmente para ilustrar a processão plonica. O próprio Plotino recorre à
imagem da linha, asseverando que, apesar de cada um de seus segmentos diferir dos outros, a
linha é, em si, connua e uniforme, e o ponto anterior não deixa de subsistir naquele ou na-
queles que lhe são consecutivos, sendo que todas as coisas são como que uma grande Vida
estendida em linha reta
153
. Entretanto, o rosário substitui essa linha reta com vantagens: as
contas são perfeitos pontos, ao passo que a circularidade da fiada, coincidindo fim e come-
ço, alça o símbolo a uma excelência ímpar para exprimir tanto a “conversão (...) do ser em di-
reção à sua origem” como a orientação preponderantemente ascendente dessa evolução, desde
que o ponto inicial, aonde se torna, seja o ponto culminante do círculo.
Aliás, voltando às águas correntes – que, como de antemão se anotou, retomam
o correr do fio do rosário –, também elas traduzem bem adequadamente, na composição rosi-
ana que ora se esquadrinha, o dinamismo do ser desperto, em contraste com a imobilidade de
Deus que dorme. É cito chamar inda uma vez a atenção para a circunstância, mais ou menos
óbvia, de que as Águas da serra” eminentemente descem do escuro dos morros, em cujas
pedras cantam a canção do mais adiante”. Em foco está, portanto, uma cachoeira, a cujo res-
peito Chevalier e Gheerbrant observam:
150
Enéada V, 2, 2. Grifei.
151
BRUN, 145, 44. Grifei.
152
Trouillard, A processão plotiniana, apud id., ibid. Grifei.
153
Enéada V, 2, 2, que recorda a afirmativa de Krishna no Bhagavad Gita 7.8: Os mundos todos estão enfiados
em mim, assim como as pérolas unidas por um fio.
89
Contrapõe-se ao rochedo, no par fundamental: montanha e água, como o
yin
ao
yang
. Seu movimento descendente alterna com o movimento
ascendente da monta-
nha, e seu dinamismo, com a impassibilidade do rochedo. A cascata é (e, neste ponto,
chegamos às formulações do budismo
tchan
) o símbolo da impermanência oposto ao
da imutabilidade.
(...) A queda dágua também está relacionada com o movimento elementar,
indomado, das
correntes de força
, aquelas que se precisa dominar e regrar com vistas
a um aproveitamento espiritual (...).
Através de uma espécie de visão interior, para
além da aparência natural da
cachoeira
, observa Liliana Brion-Guerry,
pode-se encontrar sua significação simli-
ca de emblema do movimento contínuo, de emblema do mundo onde os elementos
mudam incessantemente, ao passo que a forma permanece inalterada.
154
Vemos que o jovem Guimarães Rosa, discípulo de Plotino, foi bastante feliz ao
apor, no mesmo texto, As águas” como expressão da motricidade humana e as pedras da
serra” como representação da imperturbabilidade do manancial divino, com todas as implica-
ções que advém do emprego da imagem do despenho. A água e a pedra, em conjunto, também
têm grande alcance alquímico e psicanalítico, pois, como atesta Marie-Louise von Franz,
É um enorme paradoxo que o líquido – a água amorfa da vida – e a pedra – a
coisa mais sólida e morta – sejam, de acordo, com os alquimistas, uma só e a mesma
coisa. Isso se refere àqueles dois aspectos da realização do Si-mesmo: algo firme nas-
ceu, algo que está além dos altos e baixos da vida, e simultaneamente nasceu algo
muito vivificante que participa do fluxo vital, sem as inibições ou restrições da cons-
ciência.
155
A autora se refere, é claro, ao Elixir da Longa Vida e à Pedra Filosofal.
De regresso ao neoplatonismo, convém ainda explicar, a propósito do Uno, que
para Plotino Ele não seria propriamente “a essência, mas situar-se-ia deveras
para lá da es-
sência
156
, em tal estado de simplicidade e pureza em Si mesmo que toda consideração huma-
na sobre Sua excelsitude seria de todo incompleta e grosseira. Até dizer dEle que “
é o Uno
” e
que “
é a essência
” é falso, pois nenhum predicado ou nome que o espírito humano possa con-
ceber é capaz de exprimir com propriedade Sua Suprema Natureza
157
. E se O nominamos e
Lhe aplicamos atributos, é exclusivamente por nossa vera incapacidade de pensar sem um
objeto a que o pensamento se refira. Por falar em pensamento, ao Uno
154
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 159-160. Grifos dos autores.
155
FRANZ, 177, 150.
156
Enéada
V, 4, 1. V. tb. a
Enéada
VI, 7, 40.
157
Com o que a filosofia de Plotino assume indiscutivelmente um semblante poético, no sentido da definição
dada por Göethe:
Poesie ist die Spreche des Unaussprechlichen
(Poesia é a linguagem do indizível.). Por
outro lado, dessa maneira o Uno se constitui no tema mais fecundo, propício e natural para a Poesia, e até mes-
mo, em última análise e de forma obqua, em seu tema único. V. tb., na Conclusão deste trabalho (pág. 455), o
breve escólio a respeito do conceito de
docta ignorantia
.
90
deve negar-se-Lhe o ato de pensar e de compreender, assim como o pensamento de Si
próprio e das outras coisas
.
158
Isso porque, ponderava o filósofo, o pensamento pressupõe uma dualidade en-
tre o sujeito pensante e o objeto pensado, e no Uno essa dualidade é inadmissível. Além disso,
no pensamento o sujeito não deixa de ter uma necessidade do objeto, e o Uno, que se basta a
Si mesmo, não necessita de nenhum objeto de Seu pensamento. Todavia, não se deve com
base nisso incorrer no erro de se imaginar o Uno como sendo inconsciente. Plotino afirma, ao
invés, que se pode considerá-Lo como uma espécie de
pensamento puro
, mas um pensamento
de índole totalmente diversa do pensamento da Inteligência
159
, a qual procede do Uno e é o
que há de mais perfeito
após
Ele. Por conseguinte, o conhecimento – ou Consciência cósmi-
ca” – que o Uno tem de Si é estreme e identifica-se com Ele próprio
160
.
Com tudo isso, a ontologia neoplatônica se pauta pela negatividade: o pleno
Uno é o Nada superessencial, o máximo
epékeina
(para lá de”), o Vazio. Essa visão antecipa
à larga as ontologias negativas de Jakob Böhme e de Hegel. W. R. Inge reflete que Plotino te-
ria preferido o termo Uno” apenas porque em sua época a mentalidade helênica ainda não ti-
nha importado da Índia e da Arábia o símbolo matemático do zero. Já vimos
161
que essa on-
tologia da neutralidade se faz presente na obra madura de Guimarães Rosa: em Páramo, por
exemplo, toca-se nas necessidades do retorno a zero, o mesmo zerinho zero” consignado
em O recado do morro. Ainda entre s, contemporaneamente – diga-se-o
en passant
–, o
poeta Manoel de Barros parece adotar entendimento semelhante de extraordinária relevância.
Assim, para atingir a contemplação do Uno, que é o Vazio, basta fazer em s
mesmos o vazio. Plotino enuncia:
Que não nos inclinemos sobre as coisas exteriores; que ignoremos tudo, colo-
cando aí primeiramente a nossa alma, e no momento da contemplação, afastando
dEle qualquer forma, ignoremos mesmo que somos s que estamos a contemplar
.
162
E como pode, mais especificamente, o ser realizar em si o Vazio? Em resposta
definitiva, Plotino profere o assaz famoso ditame
aphele panta
, ou suprime todas as coi-
sas
163
. Pois
158
Enéada
VI, 9, 6.
159
O que dá um admirável avanço à noção aristotélica de que o Primeiro Motor é o pensamento do pensamen-
to.
160
Enéada
V, 4, 1.
161
Cf. pág. 66 deste trabalho (Capítulo I, tópico 4).
162
Enéada
VI, 9, 7.
163
Enéada
V, 3, 17.
91
Enquanto estiveres com o resto, Ele não se manifesta. Não é necessário que
Ele venha para estar presente; foste tu que partiste; partir não é abandoná-Lo para ir
a qualquer lado. Porque Ele está lá; mas, ficando perto dEle, tinhas-te afastado.
164
É imprescindível também discernir que
Aqui mesmo pode-se ver Deus e ver-se a si mesmo, tanto quanto é permitido
ter tais visões; vemo-nos brilhantes de luz e repletos de luz inteligível; ou antes, tor-
namo-nos s mesmos uma luz pura, um ser leve e sem peso, tornamo-nos, ou antes,
somos um Deus pleno de amor.
165
Para encerrar por ora as considerões sobre a doutrina plonica, cumpre traçar
um brevíssimo paralelo entre o seu emanatismo e as visões criacionistas expostas no
Gênesis
e na Cabala luriânica. O principal ponto de embate é que os idrios genesíaco e cabastico,
como florões de raízes semíticas deitadas em mundivisões mesopotâmicas, não deixam de
considerar a Criação, de certo modo, como sendo
necessária
para que Deus pudesse exercer a
divindade, eis que, sem o humano, Ele não poderia afirmar-Se como Criador reconhecido de
fato. Quanto ao neoplatonismo, decorre do
epékeina
a rejeição, por Plotino, da concepção de
necessidade
vinculada ao Absoluto, o Qual se situa
para além de toda necessidade
. Bem as-
sim, o filósofo não aceita o Universo como fruto do desejo divino, porque o Uno está
para
além de todo desejo
. Resulta que Plotino se insurge com vigor contra a idéia judaico-cristã de
Deus como o Supremo Arquiteto ou Construtor que estabeleceu o Cosmos organizado a partir
da congérie do Caos. Não obstante, o emanatismo plonico também é diametralmente contrá-
rio a toda a tradição da filosofia grega que lhe é anterior, uma vez que por igual investe contra
a idéia platônica tão afim com o criacionismo semita – do Demiurgo, o “artesãoou fabri-
cante” que, conforme o
Timeu
, reproduziu a realidade sensível do Cosmos a partir da sua
contemplação da beleza das idéias preexistentes.
Deve-se no entanto precatar que, malgrado as discrepâncias, para o momento
atual de nossa análise de
Magma
importam muito mais as parecenças existentes entre o neo-
platonismo, o cristianismo e a Cabala. O fulcro dos três sistemas é o acatamento da assertiva
inelutável de Deus como o Princípio do Qual o homem procede e ao Qual deve ele retornar
mediante o próprio esforço. Também os três são concordes ao vislumbrar na alma humana um
liame que permite ao ser encontrar no próprio íntimo a essência de Deus
166
. Para esse encon-
tro, a fé é sempre um elemento importante. Ademais, muitos preceitos que à primeira vista
164
Enéada
VI, 5, 12. Vale relembrar que em ROSA, 14, 52 (Evanira!), lê-se:
É preciso ter saudade de ti,
mesmo perto de ti
. PARA MAIS PERTO!
165
Enéada
VI, 9, 9.
166
V.
Lc
17, 20-21 e, neste trabalho, a nota 101 (pág. 59) e o subtópico 3.1. do Capítulo I.
92
podem ser erroneamente interpretados como opostos são, na verdade, complementares uns aos
outros: o eloqüente Deus hebreu e cristão que proferiu o fiat lux e lançou de Si o cabastico
Yod é a outra face de Jano do Uno vazio e silente de Plotino. É por isso que, torna-se a falar,
Guimarães Rosa garante haver Só (...) um diálogo verdadeiro: o do silêncio e da voz.
167
Dentre as similaridades entre esses sistemas destaca-se, sobretudo, aquela que
se verifica entre o conceito luriânico do tikún e a processão plonica. Se bem que o mecanis-
mo do tikún seja baseado precipuamente na ação e a processão seja substancialmente contem-
plativa, ambos são processos anagógicos de restituição do ser ao seio da Alma Mater e, ao
imputar ao homem dotado de livre-arbítrio a responsabilidade maior de empreender pelas
próprias forças o caminho de volta a Deus, ambos refutam a condicionalidade da aleatória
Graça divina aos eleitos, espécie de espada de Dâmocles às avessas, muito prezada pela ide-
ologia patrística (falando-se de uma maneira geral, que acolhe numerosas exceções).
Com isso em mente, podemos admitir que “a canção do mais adiante”, cantada
nas pedraspelas Águas da serra, comporta harmonicamente tanto as notas sopradas por
Plotino quanto as oriundas da Cabala, sem prejuízo dos acordes cristãos, fundamentais, e sem
se esquecer das melodias védicas, taoístas etc... O fato de Guimarães Rosa dar, desde Magma,
eclética guarida a tantos sistemas de busca espiritual demonstra, em primeiro lugar, que todos
eles possuem idéias intercambiáveis e parentescos profundos que rechaçam ou se sobreem
às diferenças de superfície; em segundo lugar, esse ecletismo deixa margem para pensar que,
do ponto de vista do autor mineiro, todos os sistemas apresentam proposições úteis e nenhum
é completo e excludente dos demais, sendo válido compor-se um novo sistema individual
consistente porém flexível, capaz de abranger aqueloutros num todo sui generis; e em terceiro
lugar, percebe-se que o poeta moço já quando da produção do livro de estréia estava num adi-
antado estágio de elaboração de seu projeto poético, logo cedo jogando no fervilhante cadinho
espiritual elementos ao mesmo tempo tão sortidos e tão semelhantes. Infere-se que, em Mag-
ma, o itinerarium mentis ad Deum do neófito que desfia o rosário reveste-se de um caráter pe-
culiar, não cabalista nem neoplatonista ou cristão mas, acima de tudo, rosiano.
Dito isto, podemos doravante direcionar nossos cuidados para “A Iara. Apesar
de longo, dada a importância desse texto e para uma melhor apreensão tem cabimento trans-
crevê-lo in totum, a exemplo do que foi feito com os poemas anteriores:
1
Bem abaixo das colinas de ondas verdes,
onde o sol se refracta em agulhas frias,
descem todas as sereias dos mares e dos rios,
167
ROSA, 14, 35-36.
93
irreais e lentas, como espectros de vidro,
5
para os palácios de madrépora de Anfitrite,
num vale côncavo, transparente e verde,
num recanto abissal, como uma taça cheia,
entre bosques de sargaços, espumosos,
e jardins geométricos de coral...
10
Por entre delfins, sentinelas de Possêidon,
afundam, suspensas, soltas, como grandes algas,
carregando os jovens afogados:
Ondinas das praias, flexuosas,
Nixes da água furtacor do Elba,
15
Havefrus do Sund e Russalkas do Don...
Loreley traz no esmalte doce dos olhos
duas gotas do Rheno...
E Danaides laboriosas se desviam dos cardumes
de Nereidas,
20
que descem, ondulando as caudas palhetadas
dos seus vestidos justos de
lamé...
Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque a Iara tem sangue,
25
porque a Iara tem carne,
sangue de mulher moça da terra vermelha,
carne branca de peixe da água gorda do rio...
Iara de olhos verdes de muiraquitã,
cintura pra cima cunhantã,
30
cintura pra baixo tucunaré...
Que veio dormindo, Purus abaixo,
filha do filho do rei dos peixes
com uma índia branca Cachinauá...
Lá bem pra trás da boca aberta do rio,
35
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana, tapuia, morena,
tão orgulhosa,
40
que não quer ser desprezada pelas outras...
E a Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas lentas
em nheengatu:
45
Iquê, ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua quité...
Nem mais se esforça em seduzir
o canoeiro mura ou o seringueiro,
meio vestida com a gaze das águas,
50
na renda trançada dos igarapés...
E eu tenho de chorar:
Enfeitiça-me, oh Iara,
94
que eu vim aqui para me deixar vencer...
Mas custa-me encontrá-la,
55
E só à noite sem bordas dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias desabrocham soltas,
eu posso beijá-la,
nua,
dormida,
60
esguia,
oleosa,
na concha carmesim de uma vitória-régia,
tomando o banho longo
de perfume e luar...
168
A figura da Mãe dÁgua do folclore pátrio à evidência domina, desde o título, a
cena poemática. Entretanto, antes de nos atermos a ela outras considerões merecem lugar.
Já aos primeiros versos da peça vemos que ela dá continuidade ao movimento
de queda posto em pauta pela composição anterior: as Águas da serra”
descem
do morro, en-
quanto que,
Bem abaixo
das colinas
de ondas verdes,
(...)
descem
todas as sereias dos mares e dos rios,
(...)
afundam,
suspensas, soltas, como grandes algas...
Portanto, se é certo que a cinética do rosário que “corre” no poema vestibular é
prolongada pelas águas que corremnum sempre descendoimediato, tanto certo é que,
num terceiro instante desse
continuum
,
as sereias, seres undícolas que “descem
para os palácios de madrépora de Anfitrite,
num
vale
côncavo, transparente e verde,
num
recanto abissal
, como uma taça cheia,
prosseguem com a mesma dinâmica de sentido descendente.
Mas a descida de Águas da serra” não só é continuada, como ainda sofre um
intenso declive em A Iara”: ocupa-se agora de um vale côncavo, isto é, um local já bem
longínquo das alturas da fonte serrana, um recanto
abissal
onde as sereias “afundam” e cuja
passagem é guardada pelos delfins, sentinelas de Possêidon. Isso denota a profundidade do
168
O texto de ROSA, 2, 16-19, apresenta as seguintes variantes: no verso 6,
em
vale côncavo; no v. 9, e
rígi-
dos
jardins; no v. 10, Por entre
os
delfins; no v. 20, que
imergem
no lugar de que
descem
; o v. 31 é inici-
ado com minúscula,
que
veio; no v. 46, tumassaua
quitó
; no v. 53, vim aqui
pra
me deixar vencer; e, fi-
nalmente, um novo verso, composto pelo adjetivo
bronzeada
, é colocado entre
esguia
(60) e
oleosa
na úl-
tima estrofe. Ainda, em
id
., 1, algumas corrões foram feitas a mão: no v. 19,
das
Nereidasfoi rasurado e
substituído por
de
Nereidas; e no v. 44, em
nhennhengatu
, igualmente riscado, foi substituído por em
nhe-
engatu
.
95
abismo que se abriu entre Deus, no Alto, e o ser desterrado, embaixo. Repare-se, contudo, que
esse abismo não deixa de ser um recanto
entre bosques de sargos, espumosos,
e jardins geométricos de coral...
Esses jardins geométricos” evocam o sentido de intimidade do vergel. Diante
disso, o descimento pode também ser tomado pelo ensejo de entrada no borbulhante eu des-
perto, que é, afinal, o templo onde acontece a inicião
169
.
Consideremos então que é no eu que as sirenas se reúnem. O ambiente dessa
reunião é propositalmente apresentado de maneira ambígua, podendo-se entendê-lo tanto
como sendo abaixo das ondeantes “colinas (...) verdes, cobertas de vegetação, da serra
donde jorraram as Águas, quanto como sendo abaixo da tremulina das ondas verdesde
uma superfície quida algácea; mas em qualquer caso a distância da firmeza das rochas fon-
tanas fica bem evidenciada, o que sugere a livre fluência do ser apartado da Origem. É mister,
enfim, ter sempre atual o discernimento de que nesse texto, como nos demais do livro, o autor
sempre se refere à “exteriorização do seu magma íntimo, do seu mundo interior
170
, o que fe-
cha a questão: o mundo interiordo poeta é, nessa hora, indiscutivelmente aquático.
Atente-se agora para a particularidade de que “o sol se refracta em agulhas fri-
as. Recordemos que “Águas da serratermina com os versos:
e a luz a avançar, sempre mais longe,
nos milênios de treva do sem fim...
Fica, pois, com clareza indicado que a refração do sol em A Iara” é uma reto-
mada desse avanço luminoso. Ainda, essa refração ou quebra dos raios solares, que sucede
num sítio inferior (Bem abaixo das colinas...), parece ser mais uma nova ilustração da she-
169
É proveitoso abrir um parêntese para saber que o raciocínio do eu ou do corpo sensível como um templo de-
dicado à busca de proximidade
com Deus ocorre de maneira muito habitual nos escritos rosa-crucianos. Cito o
exemplo recente de VAN RIJCKENBORGH, 281, 123 (grifos do autor): Houve, outrora, em s, um templo
humano inviolado, no qual o homem original vivia em contato direto com Deus. A marcha degenerativa da hu-
manidade fez com que surgisse um templo simlico fora do homem, onde o contato com Deus só podia ser es-
tabelecido com o auxílio da magia dos sacerdotes.// Esse templo externo foi destruído por Jesus Cristo: Ele ras-
gou o véu que vedava a entrada do Sanctum Sanctorum, liberando assim, novamente, para cada ser humano, o
caminho direto em direção a Deus.Deve-se esclarecer que o pensamento rosa-cruciano distingue três espos
principais nesse templo corporal, em ordem crescente de importância: os santuários da bacia (onde se localiza o
osso sacro), da cabeça (o Sanctum) e do corão (Sanctum Sanctorum). Não se cogite, todavia, que essa vi-
são seja exclusiva do rosa-crucianismo. Está ela presente também no Evangelho de São João, cf. 2.19-21: Jesus
lhes respondeu: Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei.// Replicaram os judeus: Em quarenta e seis
anos foi edificado este santuário, e tu, em três dias o levantarás?// Ele, porém, se referia ao santrio do seu cor-
po.Grifei. V. tb. 1 Co 6.19 e O Quinto Evangelho, 212, 62, aforismo 29. Quanto ao rasgar do véu mencionado
por Van Rijckenborgh, refere-se a Mt 27.51.
170
ROSA, 17, e tb. in: id., 2, 8-9 (trecho). Grifei.
96
viráh há-kelim da Cabala, porquanto reúne, num mesmo lance de imagem, a luz, o estilhaça-
mento e a descida. Ao mesmo tempo, a propagação luminescente do astro solar recupera a
idéia do emanacionismo plonico. De resto, o sol, que é um típico símbolo da deidade, re-
frange-se em fragmentos frios que não deixam de ser luminosos, o que, de um lado, evoca a
frialdade do distanciamento dos raios manifestados, que partem do Manifestante ígneo para
uma nova situação na água; doutro lado, fica ressalvada a invencível permanência, nesse frio
manifestado, de algo da Origem incandescente, que é a essência lucífera.
Depois disso, tornemos nossa atenção para a figura primaz da Iara. O panegíri-
co que lhe é dedicado pode ser compreendido como correspondente a uma invocação de natu-
reza dúplice. Em primeiro lugar, a sereia é invocada tal como as musas inspiradoras dos poe-
mas épicos antigos; o poeta suplica:
Enfeitiça-me, oh Iara...
Isso, no entanto, soa nitidamente como um abençoa-me com teus feitiços.
Em segundo lugar, essa personagem do nosso folclore pode ser interpretada no
rosário magmático como uma primeira personalidade feminina substitutiva da Virgem Maria
do rosário dominicano. Tal substituição tem razão de ser, eis que, se em Guimarães Rosa o
erotismo tem flagrante conotação stica (conforme já bem explicado por Benedito Nunes
171
),
é certo que à Virgem logicamente não assiste a mais tênue nuança sensual, pelo que adquire
valia a ocupação de seu lugar pela sedutora Iara, a qual, no contexto do idrio rosiano, é um
ícone feminil dotado de maior riqueza. Diga-se en passant que essa conjugação paradoxal de
um significado erótico com outro transcendente aparenta a nossa Iara às huris do paraíso mu-
çulmano e, em especial, às apsaras das mitologias hindu, khmer e budista; consta que apsara
vem do sânscrito ap, água”, e sara, “essência”, obtendo-se então “essência da água”, o que é
certamente muito instigante
172
.
Ressalte-se que a figura feminina tem proeminência nas solenidades mistagó-
gicas da Antigüidade: Deméter, já o vimos, era a protagonista dos Mistérios de Elêusis, bem
como parte importante dos Mistérios Menores tinha lugar no Templo de Coré em Agra (perto
de Atenas), dedicado a sua filha Perséfone, à qual se dava o nome de Koree (Virgem) antes
de seu rapto por Hades; ainda na Hélade, eram famosos os Mistérios de Cibele, esposa do ir-
mão Cronos e “Mãe dos DeusesZeus, Hades, Possêidon, Hera, Héstia e Deméter. No Egito a
171
V. NUNES, 67, bem como a Introdução ao Capítulo seg. deste trabalho.
172
V. em ROSA, 14, 187 (A caça à lua”): ASAS ALMA/ ALMALMA órfica/ MARMARA/ que
ressalta/ APSARA/ A/ MAIS MAR QUE O MAR.Grifos do autor.
97
deusa Ísis, outra “Grande Mãe cujo culto alastrou-se ao Oriente Médio e a toda a orla do
Mediterrâneo, tinha ilustre participação nos Mistérios de Osíris; tendo ressuscitado o seu ir-
mão-esposo defunto, ela era a grande Iniciadora nos segredos do ciclo da vida, da morte e da
ressurreição: Eu sou a Natureza, a Mãe de todas as coisas, a Soberana dos elementos, a Ma-
triz do tempo.
173
De volta à sereia de Magma, representa ela também, como toda sereia pelo
menos desde Homero, a destruição, a chamada ao perecimento do ego nas vagas existenciais.
Nada obstante, tal simbolismo não é necessariamente maléfico: do ponto de vista alquímico,
toda destruição é propiciadora de uma regeneração, e do ponto de vista mistagógico a morte
ritual é uma etapa absolutamente indispensável para o renascimento. É sem dúvida altamente
significativa a circunstância de que as sirenas vivem imersas na água, a qual excele em ser o
princípio vivificador, e para ela atraem os homens. O poeta não desconhece o valor desse
pormenor, tanto que declara:
Enfeitiça-me, oh Iara,
que eu vim aqui para me deixar vencer...
Transparece que o ser, conquanto não tenha ainda plena consciência do próprio
destino, já neonato anseia pelo simlico afogamento do seu eu nas águas purificadoras, para
assim poder volver ao Outro. Em verdade, é somente a subterrânea esperança na realização
desse futuro que o anima, i. e., que lhe dá alma para o circular movimento vital. Segue-se que
é como um prenúncio do oportuno retorno às Origens que o poeta catecúmeno imerge no res-
quício anímico das águas primordiais, as quais assentam no recantomais “abissalde sua
psique, para aí se submeter ao batismo
174
.
Quanto à encantadora Iara
175
, deduz-se que ela personifica a stica atração
exercida sobre o ser pelas águas iniciais e, por extensão, personifica as próprias águas iniciais.
Convém ponderar que, embora a sereia “brasiliana” revele um nitente apelo erótico, o seu
epíteto mais natural é o de “Mãe dÁgua, o que denota o seu lado maternal, acentuado pelo
vínculo com o Princípio aquoso. Pode-se deste modo dizer, sem se prescindir dos convenien-
tes cuidados, que A Iara”, como sucessora de Cibele e Ísis, avoca o semblante de uma espé-
cie de “prosopopéiada amável Alma Mater, à qual se aplica, com suma suavidade, um deli-
cado matiz edipiano. Além de tudo, observe-se que da Iara se diz
173
Cf. FIGUEIREDO, 175, 255. V. tb. CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 507.
174
V. págs. 78-79 deste trabalho (Capítulo II, tópico 1).
175
Nota bene: encantadora”, adotando-se a acepção rosiana, vez que, cf. ROSA, 19, 457, As pessoas não mor-
rem, ficam encantadas.Grifei.
98
Que veio,
dormindo
, Purus abaixo,
minudência que é confirmada na última estrofe, quando o poeta reflete que só poderá beijar a
Mãe dÁgua “à noite, quando ela estiver dormida”: se as outras sereias dos mares e dos
rios, pervígeis e ativas, descem todase afundam (...) carregando os jovens afogados, a
preguiçosa” Iara entrega-se serena ao mesmo sono plenoque Deus estava “ainda dormin-
dono poema anterior, sono plenoque é o berço no qual as águas e a luz despertaram.
Destarte, uma vez mais postos em paralelo o movimento e o repouso, é óbvio que a impertur-
bável Iara assume nesse texto o contorno de símbolo que faz notar a impassibilidade divina.
Além disso, deixando de participar do congresso das sereias (pois que o poeta
lamenta que a Iara não veio), “ela ficou
Lá bem pra trás da boca aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
o que limpidamente remete ao estrondoso escaru do instante inaugural, em que “os diques
se romperamdando livre vazão às águas manifestadas. Mas cuide-se que a construção frasal
é, outra vez, deliberadamente obscura: a “boca aberta do riodiz respeito à nascente, que se
abre
para o curso minar, ou à foz, que se
abre
para o desaguamento no oceano? E onde solta
seus diabos/ o bicho feroz da pororoca? Na “boca abertado rio ou Lá bem pra trásdessa
abertura? A Iara ficou então Lá bem pra trás, longe
do
local onde a pororoca “solta seus
diabosturbilhonantes ou, ao contrário, ficou Lá bem pra trás, justamente
no
local onde o
macaréu arrebenta? Tal confusão entre a extrema anterioridade da Fonte primeva e o extremo
final da Foz é bem adequada a fazer pensar que a Iara a
Alma Mater
está no Princípio de
tudo e, ao mesmo tempo, está no Fim de tudo, aguardando amorosa que o ser venha para
beijá-la.
Neste ponto cabe lembrar que “Iara” é palavra tupi que para o português se
traslada, indiferentemente, como senhorou senhora; Jesus, a propósito, em tupi é chama-
do de
Iande-iara
, Nosso Senhor. A ilação que se pretende é a de que a
Mãe
dÁgua é a “
se-
nhora
do meio em que vive, ou seja, senhora das águas correntes do manifestado, as quais,
sendo suas progênitas, simbolizam a liberdade concedida ao ser vagante de fluir em
circulatio
rumo à sabedoria e à pureza da Origem. Pode-se então asseverar que, na concatenação de
idéias de
Magma
, intentar o encontro com a Iara é desejar o
regressus ad uterum
, buscar a
Madre divina.
99
O texto inda autoriza o entendimento de que a Iara possa ser tomada como per-
sonificação da Poesia e, mais especificamente, da Poesia brasileira de feição moderna. Veja-
mos que o poeta recebe em seu eu, por primeiro, as sereias e ninfas do Velho Mundo: as On-
dinas” escandinavas, as Nixes (...) do Elba”, as Havefrus do Sund(ou Oresund, canal
entre os mares Báltico e do Norte), as eslavas Russalkas do Don, a “Loreley (...) do Rheno
alemão; a mitologia helena se faz presente através das cinqüenta “Danaides laboriosas” e das
também cinqüenta Nereidasprotetoras dos navegantes (uma das Nereidas, aliás, era “Anfi-
trite”, cujo carro era puxado por tritões e que era esposa de “Possêidon). Observe-se que nas
duas primeiras estâncias do carme, em que as sereias da Europa são apresentadas, não há uma
só palavra de procedência indígena e há até uma palavra estrangeira: lamé, sublinhada e
com acento aberto a indicar que ela está sendo empregada na forma original, em francês. Sem
embargo, o poeta quer ver é a “tapuia” Iara “dos olhos verdes de muiraquitã”, a única sereia
do Novo Mundo, e nos versos a partir dos quais se plange a sua ausência, e até o final, ocorre
uma profusão de palavras nativas: cunhantã”, tucunaré, Cachinauá”, igarapésetc...
Provavelmente influenciado pelo pensamento modernista de afirmação nacional que então
vingava, o jovem Guimarães Rosa já parece aspirar a uma linguagem poética de genuíno sa-
bor brasileiro, as servir-se, antropofagicamente, do extrato das culturas européias.
Pouco importa que, de acordo com o precioso magistério de Câmara Cascudo,
a figura da Iara seja um transporte do folclore europeu
176
. Ela já está mais do que aclimatada
ao populário pátrio e o texto de Guimarães Rosa não deixa dúvidas quanto a isso, ao lhe atri-
buir os adjetivos brasiliana, tapuia, morena. E se é verdade que a Iara “não canta mais as
trovas lentas/ em nheengatu, ela procede assim por preguiça” apenas, pois é certo que esse é
o seu idioma inato:
Iquê, ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua quité...
Esta é a ocasião para recordar que no carme anterior eram as correntes Águas
da serra” que cantavam nas pedras a canção do mais adiante”. Ao expressar seu silêncio, a
Iara personificadora das águas primevas outra vez dá provas do afastamento que se processou
entre o Princípio imóvel e o ser movente.
176
CASCUDO, 155, 453-454: O mito das águas compreendia a outra expressão misteriosa, não defensiva ou
protetora, mas sempre contrária e assassina: a cobra dágua, cobra-grande, mboiaçu, a cobra-preta, boiúna. (...) A
forma da mãe-dágua, inicialmente, é ofídica. (...) Ainda em 1819 Von Martius escrevia que a mãe dágua, para-
namaia, mãe do rio, era serpente esverdeada ou parda (...). Não conho no documentário brasileiro mãe-dágua
cantando, moça bonita do cabelo louro e olho azul, senão na segunda metade do séc. XIX, e mais intensamente
depois da reação romântica que se inicia pelo indigenismo transfigurador de Gonçalves Dias.
100
Não se pode deixar de frisar que se verifica uma nítida preferência pela presen-
ça da sereia brasileira, em detrimento das demais, estas tidas como
irreais
e lentas, como espectros de vidro,
e apertadas em seus vestidos justos de
lamé
, ao passo que a Iara tem a sensualidade de estar
meio desnuda ou tão-só
meio vestida com a gaze das águas,
a qual lhe cobre um corpo bem real, vivo, pois, longe de se parecer com um dos frios “espec-
trosvítreos, ela tem o quente
sangue
de mulher moça da terra vermelha,
carne
branca de peixe da água gorda do rio...
A descrição da Iara demonstra que, malgrado distante, ela está relativamente
bem mais próxima da realidade do poeta do que as irreais sirenas da Europa. Estas afiguram-
se como quimeras que povoam um mundo ilusório e que carregam os jovens afogadospara
permanecerem na fossa abissal do ego. Em contrapartida, a “orgulhosa” Mãe dÁgua reúne
em si as forças telúricas da “
terra
vermelha” e as forças purificantes da “
água
gorda do rio, e
é a quem o poeta deve
buscar
, pois que, altiva, a Iara não vem, ela
não desce
ao ser como o
fazem as sereias do Mundo Velho, mas mantém-se imóvel no Alto, incumbindo ao ser apro-
ximar-se dela. Desta forma, o Princípio não vem ao humano, e sim o humano é quem deverá
alçar-se até o Princípio. Vemos que o poeta inda lastima que a Iara
Nem mais se esforça em seduzir
quem transite pelas margens do grande rio. É que ela, ao contrário, demanda agora o esforço
de quem deseja “encontrá-la”: o neófito deve imergir sim nas águas primordiais do próprio
eu
,
batizando-se, mas em seguida cabe-lhe continuar a senda para procurar a sereia
na renda trançada dos igarapés...
– ou seja, no intrincado caminho da água”, que é a tradução literal para o português do tupi
ygara-apé
.
Agora, para epilogar este tópico o melhor é examinar com cuidado as idéias
apresentadas pela estrofe final da peça, onde se registra que a condição custosa para ir ao en-
contro da Mãe dÁgua e “
beijá-la
” é enfrentar a
101
(...) noite sem bordas dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias desabrocham soltas...
Antes de tudo, repare-se que a oleosa”, isto é, fugidia Iara, é filha de “uma ín-
dia
branca
Cachinauá” e, bem como a lua, tem a “carne
branca
. Guardando isso, e conside-
rando que o negror da imensa “noite sem bordas” exprime o sofrimento da morte iniciática,
temos que é somente nessa escuridão que o ser poderá divisar o recorte da lua alva, ou, para
usar precisos termos alquímicos, somente mediante a nigredo lograr-se-á atingir a albedo. A
introdução do signo da lua, que como
Leitmotiv
será reinvocada em diversos outros poemas
de
Magma
, é muito relevante. Os aspectos básicos do simbolismo lunar devem-se ao fato de o
astro ser privado de luz própria e não passar de um reflexo do Sol” e de “atravessar fases di-
ferentes e mudanças de forma”, com o que, via de regra, a imagem do satélite é utilizada para
exprimir a “dependência e o princípio feminino
177
. E mais:
A Lua produz a chuva; os animais aqticos, professa Huai-nan-tse, crescem
e decrescem com ela. Passiva e produtora da água, ela é fonte e símbolo de
fecundi-
dade
. Ligada às águas primordiais de onde procede a manifestação.
178
Também é patente o papel lunar de ilustração da morte e da ressurreição:
A lua é o
primeiro morto
. Durante três noites, em cada mês lunar, ela está
como morta, ela desapareceu... Depois reaparece e cresce em brilho. Da mesma for-
ma, considera-se que os mortos adquirem
uma nova modalidade de existência
. A lua é
para o homem o símbolo desta passagem da vida à morte e da morte à vida; ela é até
considerada, entre muitos povos, como o lugar dessa passagem, a exemplo dos luga-
res subterrâneos.
179
Esse sentido é o fundo do emblema islâmico do crescente, de importância
análoga à da cruz para os cristãos. Bammate ensina:
O crescente não é uma figura acabada, embora quase o seja. Difere da esfera
fechada. Os teólogos muçulmanos dizem que o crescente é, ao mesmo tempo, aberto e
fechado, expansão e concentração. O contorno, no justo momento de fechar-se sobre
si mesmo, se detém e deixa ver uma abertura. Da mesma forma, o homem não é prisi-
oneiro da perfeição do plano divino... O signo do crescente aparece sobretudo como
um emblema de ressurreição. Parece fechar-se, estrangular-se, mas eis que há uma
abertura para o espaço livre, ilimitado. Assim, a morte parece fechar-se sobre o ho-
mem, mas ele renasce numa outra dimensão, infinita. Põe-se, por isso, o signo do
crescente sobre os túmulos. No simbolismo do alfabeto árabe, a letra n, que tem, pre-
cisamente, a forma de um crescente, arco de círculo coroado por um ponto, é também
177
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 561.
178
Id
.,
op
.
cit
., pág. 562. Grifo dos autores.
179
Id
.,
op
.
cit
., págs. 561-562. Grifos dos autores.
102
a letra da
ressurreição
. As orações destinadas ao serviço dos mortos têm versículos
que rimam principalmente em n.
180
Ora, tal como a lua, o ser não produz luz de per si, mas espelha a luz divina da
qual é dependente
181
. Infere-se que o homem, para ir ter com o Princípio, deverá antes passar
pelas várias fases da iniciação stica expressadas pela mutação lunar e experimentar as
trevas da morte, que é quando a lua plena desabrocha “solta” e se eleva, com o que o ser pode
afinal reconhecer em si o reflexo do brilho da
Alma Parens
. É então justamente no escuro da
noite, quando
não está vendo
, e no torpor da morte, quando
não está sentindo
, que o neófito
deveras
não desmente
suas origens, rememoradas que serão pelo fulgor especular do plenilú-
nio.
Agora é pertinente trazer à tona o simbolismo do beijo, sobre o qual Chevalier
e Gheerbrant asseveram: Símbolo de união e de adesão mútuas que assumiu, desde a Anti-
güidade, uma significação espiritual.
182
Os autores transcrevem, em apoio, Georges Vadja, o
qual comenta o
Zohar
e o
Cântico dos Cânticos
:
Que ele me beije com beijos de sua boca – Por que empregará o texto essa
expressão? Na verdade, ela significa
adesão de espírito a espírito.
É por isso que o ór-
gão corporal do beijo é a boca, ponto de saída e fonte do sopro. Do mesmo modo, é
pela boca que são dados os beijos de amor, unindo (assim) inseparavelmente espírito
a espírito. É por esta razão que aquele cuja alma sai no beijar, adere a um outro espí-
rito, a um espírito do qual ele não se separa mais; esta união chama-se beijo.
183
E ainda: Bernard de Clairvaux, também em seu comentário sobre o
Cântico
dos Cânticos
, fala longamente do
osculum
que resulta da
unitas spiritus
.
184
Podemos de tudo auferir que, dentro do sentido anagógico de
Magma
, o beijo é
uma delicadíssima expressão da
conjunctio
espiritual que o poeta almeja, um símbolo das sa-
gradas núpcias que deverão unir imarcescivelmente a
alma
humana o fioígneo que “corre
por dentrodo ser à
Alma Mater
suprema.
Tem cabimento fazer olhar que a Iara “sópoderá ser beijada quando
à noite
e ainda
na concha carmesim de uma vitória-régia,
180
Apud id
.,
op. cit.
, pág. 300. Grifo do autor.
181
Segundo Rumi (
apud id
.
op
.
cit
., págs. 563-564), o Profeta reflete Deus como a Lua reflete a luz do Sol.
Também o místico, que vive no brilho de Deus, se parece com a Lua, pela qual se guiam os peregrinos de noite.
182
Id
.,
op
.
cit
., pág. 127.
183
Apud
id
.,
op
.
cit
., pág. 128. Grifo dos autores, que convém endossar.
184
Id
.,
ibid
.
103
sendo a concha um símbolo que desde a pré-história guarda os pertinentes sentidos de viagem
pelo mundo subterrâneo dos mortos, fecundidade e nascimento ou regeneração. Sua atinência
com a morte e a regeneração explica-se porque, tendo em tempos antigos sido usada como
moeda, representava a prosperidade para quem a detinha, mas à custa da eliminação do mo-
lusco que originalmente a ocupava; deste modo, a morte do precedente constitui-se em sine
qua non para o renascimento e a riqueza do subseente. A fecundidade da concha está liga-
da, por um lado, à sua participação no simbolismo de fecundidade da água, e por outro, à sua
semelhança com o órgão sexual feminino, evocando o útero e a entrada da gruta que pode es-
conder um tesouro e uma nova vida, pois a concha pode conter em si uma pérola. Não é gra-
tuita a circunstância de que, nas várias representações pictóricas do Nascimento de Vênus,
como as de Boticelli e Ticiano, a bela deusa está invariavelmente sobre uma concha (o que foi
antes observado por Chevalier e Gheerbrant). É útil transcrever P. Bourgeade: Depois, de
concha em concha, cheguei à sua, a original, a concha pálida, de frincha rósea, donde tudo
procede e para onde tudo retorna.
185
Por último deve-se prestar atenção à particularidade de que, no verso trazido à
colação, a imagem da concha está relacionada à planta “vitória-régia” e à nobre cor “carme-
sim. O nome da erva ninfeácea por si mesmo revela a natureza do pretendido contato com a
sereia: uma vitória real; ainda é sabido que sua flor, a maior do continente americano, abre-se
apenas à noite. No poema, essa flor noturna é colorada de “carmesimou púrpura, o que re-
força a dignidade real do triunfo póstero que será o beijo entre o poeta e a Iara: é notório que
tal cor, obtida através do quido extraído de um molusco que habita uma concha, era empre-
gada na Antigüidade romana para tingir os mantos imperiais. E eis que o corpo alvo da sereia
– deitada feito pérola entre as voluptuosas pétalas de vermelho vivo,
nua,
dormida,
esguia,
oleosa,
na concha carmesim de uma vitória-régia,
tomando o banho longo
de perfume e luar...
come um quadro em que novamente se entrelaça o sangue de mulher moça da terra ver-
melha” e a “carne branca de peixe da água gorda do rio. Nesse novo enfoque sucede uma
primorosa ampliação do tom rubro: antes, o alvor ou albedo (“carne) continha o rubor ou ru-
185
Apud id., op. cit., pág. 270. Grifei. Para mais detalhes a respeito do fecundo simbolismo da concha, v. id., op.
cit., 269-270, e ELIADE, 170, 123-149.
104
bedo (sangue”), e depois, é o rubor (as pétalas imensas) que passa a envolver com leveza o
alvor (a nudez da sereia). Isto é um evidente sinal da abertura do íntimo segredo – a alma pes-
soal – para o último sagrado – a Alma Parens.
A modo de concluir as considerões sobre os poemas hidráulicos, é proveitoso
frisar o que mais nos interessa para irmos avante no estudo dos demais textos de Magma: des-
de o como do itinerário iniciático, o poeta, que confessa o intuito de se “deixar vencerpela
Iara, já intui que é unicamente na escuridão que o eu poderá perder-se de si próprio dentro de
si mesmo, e assim recobrar sua Origem. A apreciação dessa escuridão, que se revela íntima
(porque o ser não nem sente o fio anímico que lhe “corre por dentro), será melhor apreci-
ada por Guimarães Rosa a propósito da peça “Gruta do Maquiné” e de outras composições,
especialmente algumas das que fazem parte do último terço do livro. E, em realidade, todo o
desenvolvimento da estrutura de Magma ocorrerá em função do ardente desejo de se alcançar
a união com a divindade, desejo anagógico que por ora fica expresso pela vontade de se beijar
a Iara, sendo que o rico simbolismo do ósculo sagrado será retomado quando da análise das
peças integrantes do segundo terço, tais como Sonho de uma tarde de inverno” e Hierogra-
ma”. Outrossim, atente-se para a circunstância de que, ao declarar que se quer deixar vencer
pela sereia, o poeta está anunciando seu ânimo em se “deixar vencerpelo Amor teosófico,
através do que o eu se dilui na essência do divino Outro. À luz disso, bem adequado é relem-
brar a advertência feita por Jesus no Evangelho de São João (12.25):
Somente se perdendo é que o homem pode se achar.
2. RITMOS SELVAGENS: A LIBERDADE EM TURBUNCIA
O que Aristóteles referiu a respeito dos mistérios em geral
deverá aplicar-se com propriedade aos de Elêusis: Os inicia-
dos não tinham de aprender, mas sim de experimentar.
KURT SELIGMANN
Os poemas componentes da segunda parte do primeiro terço de Magma são,
pela ordem em que aparecem: Ritmos selvagens, Luar, Boiada, as nove peças do com-
plexo Hai-kais, Gruta do Maquiné”, Maleita, Caranguejo, o complexo Luar na mata”
(que contém I Cinema” e II Rapto) e “Elegia. É desnecessário, a partir de agora, citar
todos esses textos na íntegra, bastando-nos em regra para os comentários o destaque dos
fragmentos mais importantes.
105
A tônica desse conjunto de composições libertistas é dada pelo haicai
186
Tur-
bulência”:
1
O vento experimenta
o que irá fazer
com sua liberdade...
Temos que, uma vez cumprido o catecumenato na díade dos poemas hidráuli-
cos, incumbe agora ao noviço batizado promover sua instrução, o que só é possível por meio
da
experimentação do livre-arbítrio
de que foi dotado. Entretanto, cuidando-se de algo novo,
a eólica “
liberdade
de locomoção por entre os
Ritmos selvagens
da existência naturalmente
há de causar conflitos, atritos e tribulões, toda a
Turbulência
vital que o ser rem-
nascido deverá enfrentar. Vê-se que foi de fato muito afortunada a opção do jovem Guimarães
Rosa pela imagem do
vento
, isto é, o
ar
posto
em movimento
turbilhonante, o qual, prosse-
guindo a cinética aquática, derrama-se pela quase totalidade dos poemas do ciclo libertista: é
o Tudo
turbulindo
, conforme no futuro o escritor mineiro expressaria mais sinteticamente.
Note-se, ademais, que, segundo uma perspectiva simlica, todo vento promana do sopro di-
vino que no
Gênesis
(2.7)
foi utilizado para animar a manifestão:
Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas
narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente.
Mais importante ainda, todo fôlego enunciativo empregado pelo ser humano –
isto é, toda Palavra – quer repetir o processo de criação
poética
levado a efeito por Deus em
Gênesis
1.3:
Disse Deus: Haja luz; e houve luz.
Portanto, a liberdade que o vento em
Magma
exerce e “experimenta” é a da
vida e a da Poesia.
Abordemos então o texto que abre esta fase novel: o assunto predominante em
Ritmos selvagens” é justamente a prossecução do sentido de motricidade undífluo que teve
como nas duas composições anteriores. Agora, o
rio
caudal é convertido em
ritmo
fauniano:
a cinética do ser é demonstrada pelo burburinho feito por vários animais selváticos, os quais,
ao traduzirem e passarem adiante os cantos de diversas etnias indígenas, desenham uma espé-
186
De conformidade com o que já foi alertado, v. a nota 213 (pág. 120) para a justificativa da diferenciação,
neste trabalho, entre as formas haicai” e
Hai-kais
.
106
cie de rosário melódico que se estende através da floresta. Cuide-se que a palavra ritmo traz
inequivocamente no bojo o sentido de sucessão de movimentos repetitivos. Assim é que
O pica-pau, vermelho e verde,
(...) martela com o bico, na casca da árvore,
o poema dos índios caiapós...
(...) os estúrdios marimbondos-de-chapéu
saem dos alvéolos e fermentam no ar,
(...) zumbindo o hino dos índios das matas...
(...) O paturi, no alto,
(...) grasna para a lontra, que avança nágua,
(...) nocias novas que trouxe do Xingu...
(...) Um triste tucano, de bico armado,
(...) desprende a queixa dos índios do sul...
187
Ems, numa notável e colorida linha que vai se elevando, progressivamente
mais longe, da terra ao céu, um bandeiroso
(...) jacaré crespo, de lombo verde, de papo amarelo,
ensina à arara,
toda azul, de patas pretas, de pálpebras pretas,
que ensina ao gavião, que passa no vôo, fino e pedrês,
188
que ensina a um bando, que vai de mudança, de maracanãs,
o canto das índias dos carajás...
A seência rítmica traçada pelos pequenos bichos silvestres, que por instante
avançam com o fluir das Águas da serra”, lembra a posterior novela “O recado do morro,
em que Guimarães Rosa confia aos seres de exceção(segundo a expressão criada por
Charles Baudelaire) a transmissão do aviso transcendental vindo do Morro da Garça”, encra-
vado na “Serra da Diamantina.
É importante saber que, desde o início dos Ritmos selvagens, o pica-pau
que “martela” no tronco branco de papel” é apresentado
como um poeta, que desde a madrugada,
vem fazendo o retoque dos seus versos...
189
187
Em ROSA, 2, 23: Triste tucano, sem artigo introdutório.
188
Em id., op. cit., pág. 24: que ensina o gavião, regência que destoa daquela praticada para o mesmo verbo
nos demais versos da estrofe.
189
O autor antes havia escrito a maquillage, termo que foi riscado, sotopondo-se a mão o substitutivo o reto-
que”, o que apropriadamente foi feito para não contaminar com um estrangeirismo o clima indianista do texto
calcado em numerosos sotaques nativos.
107
Portanto, o que os animais transmitem uns aos outros e além é uma mensagem
poética (o poema”, o hino, o canto), a qual, sendo endereçada também às “águas” e às
matas, é por fim repercutida pelo curso fluviátil, de acordo com a última estância da com-
posição:
O dia inteiro, as águas ouviram,
e as matas entenderam,
as vozes que o vento vai levando
para oeste, para longe, para além do Culuene,
onde o sol se apaga, como a fogueira da última taba,
onde os cocares dos buritis pendem imobilizados,
e o rio marulha a canção dos guerreiros
que vão desaparecer...
De sorte que o barulho harmônico das vozesda fauna, que “o ventoliber-
tista “vai levando” e que traslada os Ritmosdos homens, transforma-se depois no marulho
das ondas que repetem a canção dos guerreiros. Recomendando-se que essas ondas repre-
sentam o deslocamento do manifestado, resulta que a melopéia dos bichos devolve, de forma
obqua, ao rio que vai até o mar a cadência das Águasbrotantes da serra”, ou ainda devol-
ve ao ser que se afasta o que é do ser que nascera. Ora, frise-se que as rítmicas dos bichos
consistem em traduções das rítmicas não de quaisquer homens, e sim das cantilenas dos silví-
colas vizinhos, os
Índios escuros, das terras fechadas,
que ninguém pisou,
dos chapadões a meio caminho dos grandes rios,
i. e., os seres humanos que, vivendo em contato com a edênica natureza virgem, estão ainda
bem próximos das Origens aquáticas. Ao retomar o canto puro do sábio bom selvagem (con-
soante proposto por Jean-Jacques Rousseau), os animais – que ocupam o papel de mistagogos
retocam essa sabedoria intuitiva e a restituem, sob uma nova forma mais apreensível, ao
próprio ser humano em trânsito iniciático. Fica destarte impcito o dever do neófito em
aprender consigo mesmo através da experiência, desde que re-conha em si, preserve e des-
envolva as próprias qualidades naturais, ao mesmo tempo em que pode aproveitar o ensina-
mento de seus pares sob Deus, que são tanto os outros homens quanto os bichos, estes genesi-
camente mais velhos e experientes
190
. Das qualidades que o aprendiz deve cultivar, uma delas
é a coragem, igual à dos desbravadores índios caias, os quais
190
V. Gn 1.20-27.
108
fazem tremer, fazem correr as outras tribos,
voam nos campos atrás dos cascos dos veados,
matam veados só com pauladas...
191
O exemplo a observar dos índios das matas” é a perseverança, pois o nham-
biquara
192
fica dez horas, todo encolhido, de bote armado,
os olhos vivos, o arco pronto, muita
paciência
,
à espera da caça. Já o pescador bacairi, belo e tranqüilo,que vive no Xingu, tem a dizer
da extraordinária perícia, do zelo perfeccionista e, mormente, da
intuição
, pois
(...) fica triste, e fica bravo, só porque a ponta da flecha longa
pegou dois dedos mais para baixo, no dorso liso do peixe de ouro,
que ele nem viu
...
Os pobres bororos, índios do sul, além da humildade de falar manso e
dormir no chão podem igualmente ensinar sobre a arte de saber prevenir e superar os perigos,
eis que
sentem a onça a três quilômetros, na mata espessa,
bem antes da fera os farejar...
A última lição é ministrada pelas mulheres carajás, as quais tocam suas pi-
rogas
(...) à flor das águas, como coriscos,
à frente dos
ventos
, batendo piranhas, vencendo asas e pensamentos,
Araguaia abaixo, de Caiapozinho até Conceição
...
193
Elas conduzem impávidas seus destinos ao longo do
ondeante
(“à flor das
águas) e
ventoso
(“à frente dos ventos) fluir da vida, deixando resolutamente para trás os
obstáculos que lhes ameaçam a evolução e aprimorando suas capacidades volitantes de “asas
e pensamentos. O caráter stico do seu trajeto fluneo não é difícil de se vislumbrar, se
posto em cotejo com a realidade geográfica: o ponto inicial é o Caiapozinho, um afluente
do rio Caias, tendo sido exatamente os índios caiasos primeiros a serem mencionados
na composição, assim encabeçando o andamento poemático
194
; esse curso fluvial, por sua vez,
191
Em ROSA, 2, 20: voam
no campo
.
192
Em tupi, lit. o das matas.
193
Anteriormente se lia
vencendo
piranhas, o que foi riscado, sobrepondo-se batendo.
194
O etnônimo, que vem do tupi, indica que os caias são aqueles que trazem o fogo nas mãos, abrindo e
iluminando os caminhos.
109
as encontro com o Barreiros forma o rio Grande, logo chamado de “Araguaia”, o qual é
descido pelas índias e cujas águas e margens serão o palco da série “No Araguaia” (do terço
final de Magma), que tem como clímax a morte de um índio carajá; depois se irá “até Concei-
ção, o ponto final, e se nos valermos da acepção teológica dessa palavra, que procede do la-
tim conceptio e diz respeito à concepção virginal do Cristo, podemos interpretá-la como uma
clara alusão ao ulterior renascimento crístico do noviço.
Fica outrossim desde logo advertido, no derradeiro verso do texto (sobre “os
guerreiros/ que vão desaparecer...), que para essa ressurreição faz-se previamente necessário
o desaparecimento, ou seja, a morte dos guerreirosque se propõem a trilhar os caminhos da
iniciação anagógica; o ser deverá diluir-se, tal como o sol que “se apaga, como a fogueira da
última taba”, e propicia o nascimento simlico da reflexiva lua no poema seguinte.
Desde já se refira que
Sol e lua são, respectivamente, os mais antigos símbolos do duplo aspecto da
natureza: positivo masculino, o espírito engendrador da vida, e o passivo feminino, a
matriz de novas formas de vida.
195
Destarte, o Sol simboliza Deus Ele mesmo, ao passo que a Lua é o Deus mani-
festante e, por extensão, a manifestação dEle oriunda ou Deus oculto no ser. Daí vem todo o
significado, particularmente fecundo na alquimia, da imprescindibilidade da conjunctio para a
plena realização do humano, o que se alcança por meio do espelhamento lunar.
Mas a conjunctio donde brota a renascença ainda é um futuro distante para o
aprendiz: está bem longe, para lá do Culuene,o sítio de repouso onde os cocares dos buri-
tis pendem imobilizadospela cessação da turbulência do ventomanifesto; doutro lado, as
índias dos carajás” encontram-se ainda “quase na hora de dar à luz” a novos seres que irão
empreender a aventura do movimento vital, enquanto que seus filhos mais velhos são somente
(...) cachos de meninos, curumins vivos, equilibrados,
dependurados,
neófitos na infância da vida
196
.
Esta é a deixa para tratarmos de “Luar: preliminarmente se diga que essa pa
recupera tais cachos de meninos, curumins vivosque se dependuravam nas canoas, vistos
195
FIGUEIREDO, 175, 213 (grifos do autor).
196
Guarde-se que o carajá Araticum-uu, do ciclo No Araguaia” (v. o Capítulo IV, tópico 1, em especial as
págs. 313-314), pode perfeitamente ser considerado como um crescido desses curumins vivosque navegam
com suas mães Araguaia abaixo” e que se tornarão eles também guerreiros/ que vão desaparecer” e ainda
poetasque dançam nos fiosestelares em Luar.
110
agora como cachos de poetasque “dançam nos fiospuxados pelas “estrelinhas” a piscar
No alto da noite”. Por seu turno, esses fios que unem as estrelas, compondo o tecido – ou
texto – do Universo, e o funamlico bailar de “poetas” em cima deles reafirmam a conotação
cósmico-metafísica da ação do bardo que “reza o rosáriocujo fio corre por dentrodo
ser
197
.
Todavia, o título não deixa dúvidas de que o destaque de “Luar” é mesmo o
importante símbolo da lua, reavido de “A Iara” e que, já foi dito, reaparece continuamente nas
composições de Magma. A propósito, essa repetitiva presença, alternada com períodos de au-
sência, é ela própria um aproveitamento do aspecto de mutação selênico entre o interlúnio e o
plenilúnio e coaduna-se com os simbolismos lunares do “eterno retorno, da morte e ressur-
reição e da reiteração das etapas das cerimônias iniciáticas
198
.
O satélite é ainda um expoente da feminilidade. Deste modo, recorde-se que a
Iara “não veio” ao encontro das outras sereias no poema que leva o seu nome, tendo o poeta
pensado que adviria a oportunidade de beijá-la “só (...) quando a lua e as ninféiasdesabro-
chassem soltas” e quando a Mãe dÁgua tomasse seu banho longo/ de perfume e luar. Eis
então que,
De brejo em brejo,
os sapos avisam:
A lua surgiu!...
E essa lua
Desliza solta...
Parece ser o momento de oscular a Iara, mas onde ela está? O desabrochar da
lua é frágil:
Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...
E se a lua cair, a assustadiça Iara não virá se banhar em seus raios. Deduz-se
que ainda não é a hora de ir ter com a sereia e com o astro, porque este, seguindo a propensão
descendente do movimento do ser, mal surge e já está deveras em queda:
197
Não é possível resistir à tentação de conectar esse fragmento com a quintilha de Ungaretti: Daquela estrela à
outra/ A noite se encarcera/ Em turbinosa vazia desmesura,/ Daquela solidão de estrela/ Àquela solidão de estre-
la.(cf. a tradução de CAMPOS, 149, 90).
198
Remeto a CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 561-566, e a A caça à lua”, texto de ROSA, 14, 187 e segs.
111
A lua madura
rola, desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
como uma fruta ou flor arrancada
do caule longo
da Via Láctea...
E o poeta se indaga:
Quem a colheu,
quem a arrancou
desse caule galáctico?
Esses versos outra vez insistem no afastamento que se processa entre a mani-
festação e a genetriz: a Via Láctea, a par de evocar o leite do seio da deusa-mãe Juno, é tida,
desde os tempos mais priscos, como a estrada celeste que liga os mundos terreno e divino; se-
gue-se que o
arranque
desse ástreo seio corresponde ao caimento do ser, concomitante à sua
separação violenta da
Alma Mater
. Guimarães Rosa não se esquece de aludir à conseqüente
liberdade, pois, tal como as forças
rolaram livres
” e As águas
soltas
no primeiro poema
hidráulico, no presente “A lua (...)/
rola,
desprendida
” como “as formas e as vidas, e “Desli-
za
solta
das nuvens brancas.
No que toca às nuvens, detêm elas um valor simlico estimável, e para
compreendê-lo acode-nos Marie-Louise von Franz:
Na linguagem da Antigüidade, a nuvem também tinha um duplo significado,
sendo por vezes comparada com a confusão ou o inconsciente. Existem muitos textos
herméticos mais recentes onde se diz que a luz de Deus
não pode ser descoberta antes
da pessoa surgir da nuvem escura do inconsciente
, que envolve as pessoas e que é a
conotação negativa freentemente encontrada na linguagem religiosa. Na linguagem
cristã, a nuvem é produzida pelo demônio, que está no norte e de cujas narinas so-
pram nuvens constantes de confusão e inconsciente sobre o mundo. Mas também en-
contramos a nuvem nos primeiros textos medievais numa conotação positiva, notada-
mente como aquele aspecto desconhecido e desconcertante da Divindade.
Provavelmente, alguns leitores conhecem A Nuvem do Desconhecimento,
um texto místico medieval que descreve o fato de que,
quanto mais perto a alma do
místico estiver da divindade, mais sombria e confusa ela fica
. Esse texto diz, com
efeito, que Deus vive na nuvem do desconhecimento e que a pessoa tem que se despo-
jar de toda idéia, de toda concepção intelectual, antes de poder acercar-se da luz que
está rodeada pelas trevas da mais profunda confusão. Aqui, a nuvem tem o mesmo
112
duplo significado; descreve um estado de profunda confusão, de completa infelicida-
de, que é, ao mesmo tempo,
o início do trabalho alquímico
.
199
Ainda diz a mesma autora, em comentário explicativo de uma gravura seiscen-
tista denominada “Nuvem de Caos:
A
prima materia
ou
massa confusa
, como uma nuvem negra, caótica, um esta-
do de confusão consciente,
pica do como tanto do trabalho alquímico quanto do
processo de individuação.
200
Sabemos que o aprendiz em
Magma
, neonato, está apenas encetando a experi-
mentação mistagógica, perscrutando timidamente o seu
eu
à procura do vínculo com o Abso-
luto, com vistas a uma transmutação. Ele se situa, pois, tão-somente nas bordas da
Nuvem do
desconhecimento
, em cujo luminoso centro Deus repousa encoberto. E nessas bordas, ao Lu-
arda íntima noite clara, as nuvensnovas por enquanto são brancas; porém, névoas de
poeira vermelhajá serão levantadas na composição seguinte, Boiada”, e logo mais a escu-
ridão eclodirá com vigor na “Gruta do Maquiné”, vindo a adensar-se e atingindo oportuna-
mente o auge de força pícea em textos do último terço magmático, como Assombramento,
Necrópole”, Pavor” e Angústia, os quais por sua vez preludiam o definitivo Amanhe-
cer. Cumpre anotar que no zen-budismo, de maneira semelhante, Satori, o despertar, é ge-
ralmente representado pela lua cheia raiando as todas as ilusões (nuvens) terem se dissipa-
do.
201
Por último, num ritornelo ao primeiro verso de “Luar, deve-se um parágrafo
aos saposque avisaram do surgimento do astro. Passando a novidade “De brejo em brejo,
ou seja, ainda em úmido ambiente próximo dos rios, esses animais limfilos dão prossegui-
mento aos Ritmos selvagens” entoados anteriormente. Tal anfíbio é conhecido em várias
culturas como chamador ou mesmo anunciador de chuva
202
e freentemente associado à
lua como um seu representante na terra, o que o ajusta à sua atuação no poema em pauta.
Além disso, de conformidade com a conclusão da protagonista do conto Tresaventura”, Sa-
pos rezam também – por força, hão-de!
203
Ad rem
, Chevalier e Gheerbrant informam de um
ditado maia, o qual complementa que “os sapos
rezam melhor do que s
para pedir chu-
va
204
: como veremos adiante, quando do exame dos carmes Toada da chuva, O gado” e
199
FRANZ, 177, 183. Grifei.
200
Id
.,
op
.
cit
. pág. 181. Grifei.
201
MARSICANO, 214, 15, nota 8.
202
Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 803.
203
V., neste trabalho, a nota 53 (pág. 31, Capítulo I, tópico 1).
204
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 803. Grifo dos autores, citando Raphl Girard.
113
Chuva”, o aguaceiro, que se precipita das nuvens, adquirirá importância como símbolo do
reencontro do ser com o Princípio aquático.
Isso referido, cuidemos do texto Boiada”.
No concernente à “vaca, ao boi” e, por extensão, ao touro (este não mencio-
nado expressamente na pa, embora seja um óbvio parcipe da manada), o leque de suas
simlicas é filigranado em demasia, não nos aproveitando a detença aí por muito tempo.
Quadra então ressaltar o estritamente essencial, o que pode ser feito em poucas palavras: esses
bovídeos, o mais das vezes, ostentam um semblante lunar, estão sempre relacionados aos va-
lores iniciáticos do trabalho e do sacrifício e, é consabido, aparecem como animais sagrados
durante toda a Antigüidade, numa grande faixa que vai da Creta miica (Minotauro) e Egito
(Ápis) até a China; na Índia e Indochina ainda hoje eles são reverenciados. De forma especial,
o boi se fazia presente nos cultos agrários de Elêusis e consta ter sido a montaria utilizada por
Lao-tsé em suas viagens, diante do que esse animal é um dos símbolos mais usuais da figura
do sacerdotee, mais especificamente, do hierofante –, por sua capacidade de auxiliar o ho-
mem em demanda pelo divino. Instaura-se então a ambigüidade na composição rosiana: con-
quanto aparentemente os vaqueiros guiem a “Boiada”, na verdade são os bois quem guiam os
homens e para eles
vão martelando o chão
sertanejo, aplainando assim, no limite do que é permitido, as duras veredas da mistagogia.
Tudo considerado, tem pertinência observar ainda a estrutura textual da com-
posição. Nas palavras de Jeane Mari SantAna Spera,
No poema Boiada, de Magma, percebe-se também uma certa organização
dos bois, o que permite segmentar o texto em três partes.
A primeira parte (até o verso 26), que registra uma profusão desordenada de
expressões auditivas e visuais, também destaca a preocupação com as partes (ancas,
costelas, chifres, corcovas), que compõem o todo (manada). No nível fônico, os recur-
sos expressivos estão dispersos, não se verificando um procedimentos sistemático de
representação sonora (...).
A segunda parte (v. 28 a 64) representa um prolongamento da primeira, se se
considerar a expressividade fônica conferida pela predomincia das oclusivas, a que
se adicionam momentos de preocupação com o estouro da boiada, com a vaca ma-
lhada investindo nos outros, com o boi preto que esparramoue com a ação do
vaqueiro no controle do animal.
A 3ª parte configura o momento da organização da boiada, indicada no texto
pelo marcador temporal agora(O gado agora trota cansado, e a trovoada rola do
fundo do chão), que pressupõe um antes, da 2ª parte, em que a boiada corre, (...)
num tropel de trovão.
205
205
SPERA, 86, 297. Grifos da autora.
114
Essa análise nos permite aproximar a “Boiadarosiana dos seis primeiros qua-
dros da conhecida série pictórica zen-budista “Dez estampas de condução da boiada” ou Dez
figuras do apascentar do boiou ainda “Dez etapas do pastoreio espiritual da vaca” e quejan-
dos. Podemos de início buscar apoio nos esclarecimentos de Alberto Marsicano, em estudo
sobre Bas:
A trajetória deste poeta deve ser antes de tudo analisada à luz das célebres
pinturas
Os 10 Touros Zen
que demonstram todas as etapas iniciáticas do zen budis-
mo. Na primeira, o neófito procura o touro. Na segunda ele é encontrado e na tercei-
ra luta até subju-lo. Na seguinte toca flauta montado sobre o animal cujo olhar
tornou-se calmo. Esta fase inicial representa a luta contra a
turbulência
da mente, es-
píritos e na arte, as dificuldades técnicas iniciais.
206
A origem das estampas, que primeiramente parecem ter sido cinco, seis ou
oito, perdeu-se no tempo, mas a forma decaedra pela qual as conhecemos hoje nos foi dada no
século XII pelo mestre zen chinês Kakuan Shien, a quem também são atribuídas as considera-
ções em prosa e verso que as acompanham
207
. O boi simboliza, na série, a natureza búdica
primária do homem, cuja busca é a demanda pelo
satori
, a iluminação ou despertar da espiri-
tualidade. A primeira das lâminas tem o título de “Procurando o Boi” e o seguinte texto:
O Boi nunca se extraviou realmente, então por que procurá-lo? Tendo voltado as
costas à sua Verdadeira-natureza, o homem não pode vê-lo. Por causa de sua corrup-
ção, perdeu de vista o Boi. Repentinamente, defronta-se com um labirinto de cami-
nhos entrecruzados. A ambição de ganho terreno e o pavor da perda surgem como
chamas ardentes; idéias de certo e de errado projetam-se como adagas.
Desolado através das florestas e aterrorizado nas selvas, ele
procura um Boi que não encontra.
Acima e abaixo, rios escuros, sem nome espraiados;
em matas espessas ele percorre muitas trilhas.
Cansado até os ossos, com o coração pesado, continua a buscar
algo que não pode encontrar.
206
MARSICANO, 214, 14. Grifei. Observe-se, contudo, que o comentarista parece ter se equivocado na enume-
ração das cenas.
207
Mister esclarecer que, na verdade, são conhecidas pelo menos quatro séries distintas de Quadros do pastoreio
do Boi, todas chinesas, das quais a de Kakuan Shien é a mais difundida e considerada, sobretudo no Japão, onde
apareceu pela primeira vez no século XV. As outras três são: primeiramente, a mais antiga e primitiva delas, um
conjunto de cinco ilustrões cuja autoria seria de Seikyo, outro mestre zen, provavelmente coetâneo de Kakuan
Shien e por este citado no prefácio geral das suas gravuras (foi a intenção de corrigir algumas imprecisões de
Seikyo o que levou Kakuan Shien a compor o seu próprio ciclo, mais completo); em segundo lugar, há outro
conjunto de seis estampas, também baseado no de Seikyo e que teria sido criado pelo mestre Jitoku Ki em data
indeterminada; por fim, existe um ciclo de dez estampas vindo à luz em 1585, cujo autor é anônimo, tendo as
belas pinturas sido feitas por um certo Pu-Ming. Além de outras leves diferenças apresentadas em relação ao
conjunto clássico de Kakuan Shien, destaca-se uma circunstância comum apenas aos outros três casos: o boi, ini-
cialmente negro, vai se branqueando ao longo das séries até desaparecer, como indicação do lento desenvolvi-
mento espiritual experimentado pelo aprendiz. V. SUZUKI, 270, 130-131 e137-146.
115
Ao entardecer, escuta cigarras gorjeando nas árvores.
208
Na primeira parte de Boiada, em que, no dizer de Spera, ocorre “uma profu-
são desordenada de expressões auditivas e visuaisevocatórias do zumbido estridente das
“cigarras gorjeando nas árvorese uma “preocupação com as partes (...) que comem o
todo, verifica-se que as reses, na balrdia do início da vaquejada, encontram-se agitadas,
dispersas,
perdidas
em meio à
confusão
das
nuvens
de “poeira vermelha” e ao tropel de tro-
vão, o que corresponde ao primeiro quadro zen de
procura
do boi. O atropelo do gado serta-
nejo sugere ainda o labirinto de caminhos entrecruzadose as muitas trilhasque devem ser
reduzidas, pela mão do vaqueiro, a uma só senda fundamental. Ademais, versos à frente as
“cacundas ondulantes,/ desabaladasdos bovinos rajadose de “lombos queimadosserão
vistas por Guimarães Rosa “como as águas de um rio, o que recobra os mais antigos rios
escuros, sem nome espraiados. Podemos, aliás, perceber que tanto o curso fluneo como a
labiríntica floresta e, de resto, todo o estrídulo ambiente sonoro que emoldura a composição
zen, já estavam presentes em
Magma
desde a peça “Ritmos selvagens. Seja nos poemas rosi-
anos ou na figura budista, a representação diz respeito à agitação ruidosa e multitudinária do
mundo das ilusões sensoriais, que a princípio distraem o ser humano da substância de sua
Verdadeira-natureza” de origem divina, simbolizada pelo boi perdido e pela boiama revolta.
Marsicano explicita mesmo que “Esta fase inicial representa a luta contra a
turbulência
da
mente”, o que condiz de forma exata com a “Turbulênciamagmática e iniciática atual.
Note-se enfim que o discurso budístico é claro ao explicar que “O Boi nunca se
extraviou realmente”, mas sim o homem, que voltou “as costas à sua Verdadeira-natureza”,
é que “não pode vê-lo. Realmente se tem em vista o mesmo sentido de queda que, lançando
o ser em movimento à corrupçãona matéria,
afasta-o
de sua Origem, a qual entretanto per-
manece estática em Sua pureza: cabe ao homem encontrar o boi sublevado e domesti-lo,
cabe ao homem arrebanhar a “Boiada”.
Com efeito, vimos depois que a segunda parte do texto guimarrosiano retrata
“a ação do vaqueiroque, para o controle do animal(Spera), luta até subjugá-lo(Marsi-
cano), o que se harmoniza com os estágios contemplados na segunda, terceira, quarta e quinta
gravuras zen. A legenda da segunda, Encontrando os rastros, diz:
Através das sutras e dos ensinamentos, ele distingue os rastros do Boi. Foi informado
de que, assim como vasos de ouro de feitios diferentes são basicamente do mesmo
208
Apud
KAPLEAU, 197, 313 e segs., assim como as próximas transcrições, as quais, no entanto, submeti a al-
gumas pequenas corrões, em razão de evidentes erros de composição percebidos através do cotejo com as ver-
sões em espanhol contidas em SUZUKI, 266, 407 e segs., e
id
.., 270, 131 e segs.
116
ouro, também cada e toda coisa é uma manifestação do Eu. É, porém, incapaz de dis-
tinguir o bem do mal, a verdade da mentira. Não passou realmente pelo portão, mas
tenta ver os rastros do Boi.
Viu pegadas sem mero
na floresta e à margem das águas.
Em que distâncias vê ele a relva pisada?
Mesmo as gargantas mais profundas das mais altas montanhas
não podem esconder o focinho desse Boi que toca diretamente
o u.
Em
Magma
, de fato, a “Boiada boa”, que começa a ser amansada mas inda
ameaça estourar por esse Goiás afora”, está trilhando os altos da “soltura sem fim do Chapa-
dão do Urucuia”: o boi, animal sagrado que aponta “o focinhopara cima, tem confirmado
seu
status
de hierofante que pode conduzir o homem aos planos elevados, mais próximos do
“céu– não se olvide, outrossim, que com o símbolo bovídeo tratamos sempre de uma repre-
sentação da natureza búdica imanente, a qual é o que deveras atrai o ser para essa amplidão.
Considere-se igualmente que Guimarães Rosa, em mais de uma oportunidade,
e em evidência a variedade de raças e pelagens dos bichos:
Novilhos rajados,
garrotes mateiros,
zebus enormes,
vacas turinas,
o que insinua os vasos de ouro de feitios diferentes” a propósito dos quais o mestre chinês re-
flete sobre a diversidade na aparência de todas as coisas que, entretanto, são fundidas entre si
pela mesma unidade áurica essencial, a proveniência comum da
Alma Mater
.
Quanto à terceira pintura zen, reproduz ela o Primeiro vislumbre do Boi:
Se ele apenas escutar atentamente os sons cotidianos, chegará à compreensão e no
mesmo instante verá a verdadeira Fonte. Os seus sentidos não são diferentes dessa
verdadeira Fonte. Em qualquer atividade a Fonte está manifestamente presente. É
algo análogo ao sal na água ou à liga na tinta. Quando a visão interior está correta-
mente focalizada, chega-se à compreensão de que aquilo que é visto é idêntico à ver-
dadeira Fonte.
Um rouxinol gorjeia num ramo,
o sol brilha nos salgueiros ondulantes.
Ali está o Boi, onde poderia esconder-se?
Essa esplêndida caba, esses cornos majestosos,
que artista poderia retratá-los?
Ensina-se aqui que mesmo os sons cotidianos, isto é, mesmo as ilusões do
mundo material, uma vez que são aspectos do
manifestado
e desde que apreciadas “atenta-
117
mente”, podem se constituir em instrumentos hábeis para elevarem o espírito humano à com-
preensão da essência do Manifestante que está em tudo – o que frisa com o papel do canto da
bicharia em Ritmos selvagens” e com o alerta dos saposem Luar. As coisas do mundo
profano não têm o condão de esconder indefinidamente o boi sagrado que se procura; ao con-
trário, o dulcicanto de “Um rouxinol” é que acaba por denunciá-lo. Essa terceira lâmina deve
ser considerada em conjunto com a quarta, Agarrando o boi:
Hoje ele encontrou o Boi, que tinha estado longamente corcoveando nos campos
agrestes e realmente o agarrou. Por tanto tempo ele se demorou nestes arredores, que
não era fácil fazê-lo romper com os velhos hábitos. Continua a ansiar por pastagens
cheirosas, é ainda obstinado e indomável. Se o homem quiser domá-lo inteiramente,
tem de usar seu chicote.
Ele precisa agarrar o laço com firmeza e não deixá-lo escapar
porque o Boi tem ainda tendências selvagens.
Ora se precipita para as montanhas,
ora vagueia numa garganta nevoenta.
Tem-se agora o outro lado da moeda: encontrado o boi e posta a mão sobre ele,
é então preciso domá-lo inteiramente. Medita-se que a natureza búdica, imersa no mundo
profano das sensões, acostuma-se à liberdade e às pastagens cheirosas” e se recusa a ser
disciplinada. Assim é que o boiadeiro tem que se esforçar por refrear os Ritmosou as ten-
dências selvagensda Boiadabruta, expressas de forma bastante nítida no poema rosiano:
Galopa, Joaquim,
que o gado estoura
por esse Goiás afora!...
Enterra a espora!...
(...)
Golpes de raspa,
refugos tontos, cornadas doidas,
gado selvagem, gado sem ferro...
Olha a vaca malhada
investindo nos outros!...
Ferra a vara, Raimundo!...
(...)
Corre, Zé Grande, cercar o boi preto
que esparramou!...
Olha o bicho atacando!...
Olha o bicho crescendo na vara!...
Firma na vara, mulato bom!...
209
209
Neste trecho, em ROSA, 2, 30, cornadas doídas” e investindo os outros.
118
O “chicote” e o lodo texto budista, que manifestam a atividade do homem
para sujeitar o gado corcoveante, na peça de Magma vêm aventados pela “espora” e pela
vara. Já a selvageria dos animais, tanto nas estampas quanto na composição rosiana, signifi-
cam que nesse estágio os sentimentos ilusórios ainda persistem e sua erradicação requer um
treinamento posterior.
210
A quinta gravura é Domando o boi:
Ao surgir um pensamento, outro e mais outro nasceram. A iluminação traz a compre-
ensão de que esses pensamentos não são irreais, já que brotam de nossa Verdadeira-
natureza. É somente porque a ilusão ainda permanece que eles são considerados ir-
reais. Esse estado de ilusão não tem origem no mundo objetivo, mas em nossas pró-
prias mentes.
Ele deve segurar com firmeza o cabresto e não permitir ao Boi vaguear,
para que não se extravie por lugares lamacentos.
Devidamente cuidado, torna-se limpo e gentil.
Solto, segue de bom grado a seu dono.
E a sexta, Montado no Boi o traz de volta a casa”:
Cessou a luta, ganhoou perdanão mais o afetam. Ele cantarola as melodias
rústicas dos lenhadores e toca os cantos simples das crianças da aldeia. Montado no
Boi, contempla serenamente as nuvens do alto. Não volta a cabeça (na dirão das
tentações). Embora alguém possa tentar pertur-lo, permanece impassível.
Cavalgando livre como ar, ele volta animadamente para casa
através da bruma da tarde, de capa e amplo chapéu de palha.
Aonde quer que vá, produz uma brisa fresca
enquanto profunda tranqüilidade domina em seu coração.
Esse boi o precisa nem de uma folha de relva.
Homem montante e boi montado tornam-se um só. E em Magma, por fim, já
debelada a ameaça de esparrame do gado “cansado” e contido o seu alvoroço, a manada é or-
ganizada num bloco dócil e o boieiro, mais sossegado, pode se dedicar a cantar melodias
rústicas, assim como o neófito budista pudera tocar a “flauta, de acordo com o anterior es-
cólio de Marsicano. Destarte, a algazarra inicial da boiama resta concertada em harmonia,
e a gente canta pra ir tocando os bois...
Encerrando por enquanto no que toca a esse assunto, mais à frente percebere-
mos que, a partir do poema “Bibliocausto(a ser estudado no Capítulo IV, peça final do ter-
ceiro tópico), poder-se-á reevocar o simbolismo global dessas Dez estampaszen com con-
210
KAPLEAU, 197, 317, nota 3.
119
siderões acerca das quatro lâminas restantes. Importa é que no momento, vencida uma etapa
da vereda magmática, o caminho pro Paracatu, como veremos, inda se desenrola longo.
Perceba-se agora que as os frescos poemas hidráulicos, cuja natureza quida
se alastra pelos ribeirinhos Ritmos selvagens” e pelos brejais sob o Luar, Boiada” con-
trasta como um momento de extrema secura e calor sob um sol de fornalha”, consoante as
persistentes exclamões dos pegureiros:
Que sol!... Que poeira!...
– o que, lançado na segunda estância, é reiterado na quarta e quinta. Isso nos leva a cogitar
que o neófito, que juntamente com o gado” é proveniente “do sertãoou
Sertão
,
chega neste
texto a um ponto crítico de afastamento do Princípio undoso: o mais agreste
tão ser
, reverso
componente do Universo. Se bem que o sol seja, pela sua luminescência, tomado como repre-
sentação da deidade, ele também arde e queima a pele e os olhos de quem, não sabendo ainda
-lo
ou
senti-lo
, intenta distanciar-se de sua quentura “de fornalha”. Este é um dos conflitos
básicos da existência: o desejo de conter em si, por amor, o dissolvente máximo, ao passo que,
por medo e fraqueza, há a vontade de se evadir. Outros conflitos mais corriqueiros, nem por
isso menos dolorosos, são ressaltados pela conversa do peão João Nanico” com o Patrão:
Oh João Nanico, porque canta assim?...
Tem aumentado seu gado miúdo?...
Gabarro e peste mataram tudo...
Está pensando será na crioula?...
Fugiu, que tempo, foi pra Baía,
por esse mundão de Deus...
Está lembrando então do seu filho?...
Morreu no eito, no ano passado,
picado de urutu...
211
Apesar das desditas e do clima de seca, o sertanejo não se alquebra e, tal como
as Águas da serra”, prossegue “cantando nas pedrasda estrada “a canção do mais adiante”,
pois
(...) a vida é uma boiada,
e a gente canta pra ir tocando os bois...
Se “a vida é uma boiada” e o boi um sacerdote, é cito admitir que a vivência
pode se configurar, para cada homem, como o exercício de um sacercio transcendental. E
211
Em ROSA, 2, 32, a primeira frase desse fragmento não vem precedida por aspas, embora a segunda as apre-
sente no final; lê-se ainda, no início,
Ó
João Nanico; no meio, foi pra
Bahia
; e, ao fim, no eito,
já faz um
ano
.
120
levando a vida em frente por cima dos percalços, o valente João Nanico decide, fazendo uso
de sua liberdade, acompanhar o Patrão até o Paracatu, topônimo vindo do termo tupi que
significa “rio bom. Desta forma, mesmo num poema em que a aridez é insistentemente lem-
brada, o verso final prega com otimismo a continuidade do movimento rítmico do ser, cuja
fluência terá seu término no desaguamento no Mar: não se descura que a fé e a esperança são
as balizas desse percurso. A crestadura dos versos, aliás, em instante algum estancou o sentido
de deslocamento fluneo do ser, o qual foi levado no compasso de marcha da “manada” de
Cacundas ondulantes,
desabaladas,
como as águas de um rio...
Concluindo com um memento, é por demais notório que o vacum e o vaqueiro
marcam, na literatura rosiana, presença das mais importantes e significativas. Apenas para não
deixar no esquecimento as relões que se podem estabelecer entre o poema magmático e ou-
tras obras mais maduras de Guimarães Rosa, cite-se, en passant, alguns exemplos de relevân-
cia: temos, em Sagarana, o famoso trecho da saída do gado da fazenda do Major Saulo no
conto O burrinho pedrês– do qual o poema de Magma é o germe
212
e ainda “Conversa de
bois; em Corpo de baile, destaca-se a passagem final de “Uma estória de amor (Festa de
Manuelzão), em que o velho Camilo conta o Romanço do Boi Bonitoou Décima do Boi e
do Cavalo; Primeiras estórias nos dá o texto Seência”; Tutaméia, Hiato” e Os três ho-
mens e o boi dos três homens que inventaram o boi; de Estas estórias, Entremeio: com o
vaqueiro Mariano” é pa fundamental; e em Ave, Palavra, há a reportagem Pé-duro, Cha-
péu-de-couro” e o conjunto poemático O Burro e o Boi no presépio.
Com isso findamos, no que nos importa, o exame de “Boiada”.
Para passarmos aos Hai-kais, algumas considerações prévias têm serventia.
Note-se, por primeiro, que à época em que Guimarães Rosa coms seu livro de estréia era
ainda relativamente recente a prática do haicai
213
deste lado do hemisfério: o orientalista Mar-
sicano informa que
212
V. que SPERA, 86, e NASCENTES, 91, já procederam a análises lingüísticas dessa relação.
213
O uso do vobulo haicai” em português ainda é problemático: apesar de ser essa a forma dicionarizada, cf.
FERREIRA, 173, e o recente HOUAISS e VILLAR, 191, um estudioso respeitável como MARSICANO, 214,
ainda há pouco preferiu escrever haikai” e Guimarães Rosa, por seu turno, em 1936 grafou Hai-kais, ao tem-
po em que Guilherme de Almeida falou em haikáis. Neste trabalho, aceita-se a lição já cristalizada dos léxicos
para as considerões críticas, preservando-se porém, para referência ao tulo do complexo poemático em Mag-
ma, a forma eleita pelo autor. As justificativas para se proceder dessa maneira são a intenção de preservar, no
mais estranhável da forma hifenizada e com a letra k, o sabor de novidade que o haicai então apresentava para o
leitor brasileiro, bem como o respeito ao aparente hibridismo proposto pelo poeta, que as o plural próprio de
nossa língua a palavra sublinhada e entre aspas em texto datilográfico (é o único título de Magma assim dupla-
121
A primeira referência do haikai no Ocidente surge em 1905 numa antologia
de poesia clássica japonesa traduzida para o francês por Julian Vacance, que cinco
anos depois publicaria alguns poemas desse gênero em
Cent Visions de Guerre
...
214
No que tange ao idioma
português, o poeta Camilo Pessanha (1867-1926), nascido em Coimbra, dedicou-se
em Macau (antiga colônia portuguesa na China) ao estudo da cultura e literatura do
Extremo Oriente. Tanto em sua obra teórica
Esboço Crítico da Civilização Chinesa,
Ensaio sobre a Literatura Chinesa
como em seus versos
Clepsidra
, Pessanha inaugura
em nossa língua a forma sintética da poesia do Oriente.
215
Entre s, a primazia caberia ao escritor Afrânio Peixoto, que em 1919, no
prefácio de seu livro
Trovas Brasileiras
, apresentaria o haikai ao Brasil
216
. É certo que, não
obstante tenha o haicai se difundido de forma mais intensa em nosso país somente as a Se-
gunda Guerra, nesse ínterim a vanguarda modernista cultivaria o gênero com algum entusias-
mo, através de Oswald de Andrade e seu poema-minuto, de Luíz Aranha, Murilo Mendes,
Manuel Bandeira (que traduziu Bas) e, sobre todos, Guilherme de Almeida, nosso haicaísta
mestre que, entretanto, não deixou de se surpreender com a presença, em
Magma
, da “nota
novíssima
dos haikáis’ (...) – o sutil concentrado poético japonês de dezessete sílabas – que o
autor tão finamente soube compreender e recriarem português
217
.
Ora, bem mais do que um terceto com métrica e rima peculiares
218
, o haicai se
caracteriza fundamentalmente pela “
unidade
estabelecida entre o elemento
efêmero, transitó-
rio e mutável
(
ryuko
) e a
imutável e eterna essência
(
kyo
).
219
Os
Hai-kais
rosianos, coe-
rentemente, trabalham sempre com o encadeamento dos extremos microcósmico e macrocós-
mente marcado, à exceção de
A casa da Boneca
, que se refere ao nome da obra de Hendrik Ibsen), o que pres-
sue o emprego de termo estrangeiro em sua forma original (evidentemente ressalvadas as particularidades de
transliteração dos sistemas ideogrâmicos japoneses para o alfabeto latino). São também mantidas, nas citões,
as formas que cada escritor prefere.
214
Id
.,
op
.
cit
., pág. 67.
215
Id
.,
op. cit
., pág. 75.
216
Id
.,
op. cit
., pág. 76.
217
ALMEIDA, 23, tb in: ROSA, 2, 7. Grifei.
218
CAMPOS (149, 59-60) adverte que, em suas traduções de haicais japoneses, descarta ele, desde logo, a co-
gitação da rima, de todo descabida na transposição de uma linguagem onde, dada a freqüência homofônica (...),
esse recurso estilístico simplesmente inexiste como tal, e quanto ao esquema métrico fixo 5-7-5 sílabas, tam-
bém foi abandonado, eis que a contagem silábica no japonês não obedece ao princípio da tônica final: o verso
japonês é, por assim dizer, plano, nele se computam todas as unidades silábicas.Além disso, o haicai
nipônico
se contém em apenas uma linha, lida no sentido vertical, não se subordinando, portanto,necessariamente ao
arranjo estróficodo terceto. À luz disso, conclui-se que o jovem Guimarães Rosa, que produziu tercetos de ver-
sos livres e sem preocupação com a rima, estava muito bem informado sobre a verdadeira índole do haicai:
SPERBER, 87, noticia fazer parte da biblioteca do escritor o volume BAS
et ses disciples
. Hai Kai.
Traduc-
tion de
Kuani Matsuo
et
Steinilber-Oberlin., uma edição francesa datada justamente de 1936, o ano de
Magma
.
219
MARSICANO, 214, 16. Grifei.
122
mico – o que vale dizer, o eu e o Outro –, saltando à vista as afinidades assinaladas entre as
sensões de pequenez e “Imensidão, este justamente o título do primeiro haicai:
1
Cheiro salgado
de um cavalo suado.
Quem galopa no mar?...
Temos aí um flagrante de “percepção momentânea
220
(ryuko: o odor salgado
do suor do eino em galope) em conexão com um valor mais amplo de “permanência” (kyo:
o Cheiro salgado” e o ritmo das ondas do mar). Em Egoísmo, terceiro dos haicais, é cla-
ramente percepvel o mesmo paralelo entre o micro e o macro:
1
Se fosse só eu
a chorar de amor,
sorriria...
Bem como em Evocação, sétimo texto do ciclo:
1
Lagosta púrpura:
uma galera a remos
conduzindo um César...
221
Por sua vez, cada um dos poemas de circunstância “Romance Ie “II(se-
gundo e quinto haicais) é um flash que condensa em três versos toda uma história de amor
suspensa pela separação, a qual deve ser pensada não somente sob uma perspectiva fática,
mas principalmente stica: no segundo Romance”,
Bem na frente
de um retrato empoeirado,
coberto talvez pelas mesmas nuvens de “poeira vermelha” levantadas pela “Boiada”, jaz
uma aliança esquecida...
Essa “aliança”, no contexto de transcendentalidade que impregna Magma, pa-
rece evocar o consórcio anímico entre Deus e o ser humano; este, entretanto, solto em meio à
liberdade do movimento existencial, não mais se recorda, já não vê nem sente tal união, que
na verdade é inata. Destarte, entre a poeira e o rumor dos vaivéns da vida de todos os dias, fi-
cam esquecidos e perdidos os testemunhos desse vínculo essencial e tudo o que sobra por ora,
de acordo com Romance I, são,
220
Na terminologia de CAMPOS, 149, 57.
221
Césarfoi datilografada com inicial minúscula, a qual foi posteriormente corrigida a mão.
123
1
No cinzeiro cheio
de cigarros fumados,
os restos de uma carta...
Já em Infinito(sexto carme) a coordenação dos elementos se embaraça.
Ante os (...) séculosda “múmia longa”, alguém declara:
eu durmo ainda...
Será Deus, o Infinito, que dorme desde “Águas da serra? Ou quiçá a alma
do homem, brasa dormida no fugaz invólucro do corpo mortal? Seja o que for, o haicai não
pretende dar respostas, mas sim ativar o inconsciente,
acordá-lo
para a dúvida vibrante.
Especial significado detém a peça “Mundo pequeno(quarto haicai):
1
O albatroz prepara
breve passeio
de Pólo a Pólo...
Pois bem, nos termos de Chevalier e Gheerbrant,
O lo é, por definição, o ponto fixo em torno do qual se realizam as revolu-
ções do mundo. É o símbolo da estabilidade no meio do movimento. É o Meio invariá-
vel (...), o núcleo da roda cósmica. A árvore, ou o Eixo do mundo, une o
pólo
terrestre
ao
lo
celeste, o
centro
do mundo à constelação boreal.
222
É quase dispensável explicitar que o vôo da ave é nada mais do que uma nova
ilustração da viagem do ser entre a Origem e o Final, o seu
itinerarium mentis ad Deum
que é
um intervalo cinético e helicoidal entre a fixidez dos dois extremos do
Axis Mundi
. Esse in-
tervalo, de forma algo irônica, é entendido no poema como
breve
e o Mundo
pequeno
:
sub specie Aeternitatis
. Mas realmente
A vida é breve
, a alma é vasta...
E
(...) Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
223
Com o que “a alma” se coloca ao arrepio da “vida” e do Mundo.
222
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 727. Grifos dos autores.
223
PESSOA, 235, respectivamente págs. 20 (Segundo/ O das quinas) e 48 (X. Mar português). Grifei.
124
Ademais, ainda que Guimarães Rosa jamais tenha confessado predileção por
Baudelaire, é nesse poeta francês que o albatroz adquire o status de símbolo mor do gauche,
imagem perfeitamente adequada à figura do homem decaído no Mal ilusório:
O poeta é semelhante ao príncipe do céu
Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar;
Exilado na terra e em meio do escaru,
As asas de gigante impedem-no de andar.
224
O albatroz rosiano – i. e., o poeta que reza está, com efeito, ainda no chão,
pois apenas prepara” a sua interpolar viagem volátil. Neste comenos, a travessia do ser é pe-
las coisas do mundo humano, como deixa entrever o oitavo haicai, Turismo sentimental:
1
Viajei toda a Ásia
ao alisar o dorso
da minha gata Angorá...
Essa metonímica viagem pelo orbe terreno (a “gata” está pela “Ásia” e esta
pelo globo) tem por fito pôr em prática a liberdade de locomoção conferida ao ser. É o que
exe também o já visto Turbulência”, poemeto que fecha a série:
1
O vento experimenta
o que irá fazer
com sua liberdade...
Como um remate a esta etapa, cabe esclarecer que os Hai-kaismagmáticos
não foram os últimos da literatura guimarrosiana. Senão, eis o que conta Alberto Marsicano:
folheava numa fria manhã de inverno Sagarana, de Guimarães Rosa, sob o sissibi-
lardo vento, quando me deparei com o haikai da rã de Basho, sutilmente dissimula-
do na trama poética desse livro:
Velho lago
Mergulha a rã
Fragor dágua
Basho
Tatalou e caiu
com onda espirralada
fragor de entrudo
Guimarães Rosa
Rosa, profundamente influenciado pelo taoísmo e zen budismo (vertente de sua obra
ainda inexplorada), compartilha com Basho o fluxo imagético, a sensibilidade e a
postura de zen ao descrever a natureza. A curiosa transcriaçãodo haikai da rã, bi-
zarra e precisa como as estampas de Hiroshigue traduzidasmagistralmente por
224
BAUDELAIRE, 124, 90, O albatroz”.
125
Van Gogh, impeliu-me a reler a obra do grande escritor brasileiro num trabalho de
minuciosa garimpagem em busca de outros haikais...
225
A seguir, Marsicano elenca vários haicais rosianos maduros por ele colhidos,
dos quais se transcreve, a esmo, apenas alguns:
Entre as folhas
de um livro-de-reza
um amor-perfeito cai
Para onde
nos atrai
o azul?
Sussurro sem som
onde a gente se lembra
do que nunca soube
O arrozal lindo
por cima do mundo
no miolo da luz
Escusa-se a longa digressão em função do acentuado interesse de que se re-
veste. Quanto ao haicai da rã de Bashô, será de novo enfocado ao ensejo do exame do poema
Verde”.
Presentemente, depois de viajar em
Magma
toda a Ásia, mas ainda em plena
vivência turbulenta da “liberdade”, chega-se pela mágica força atrativa do telurismo à “Gruta
do Maquiné”, milmaravilha, a das Fadas
226
. Este é um texto que merece especial atenção, no
qual Guimarães Rosa se debruça sobre os recônditos da famigerada caverna que é uma atra-
ção turística da sua Cordisburgo natal, cidadezinha das plagas mineiras. A espeleologia poéti-
ca é o pretexto para contemplar os mais profundos e sombrios absconsos do
eu
.
Antes, porém, de adentrar a furna propriamente dita, há que se passar pelo pre-
âmbulo que é a primeira estância do poema:
A gruta de Ali-Babá ainda existe,
graças a Deus, ainda existia,
quando eu disse:
225
MARSICANO, 214, 86,
sic
. O referido trecho de Guimarães Rosa encontra-se em São Marcos(ROSA, 4,
258), na verdade sob a forma, pelo menos na edição que consultei: tatalou e caiu, com onda
espirrada e
fragor
de entrudo.
226
Cf.
id
., 19, 425. O escritor também aborda o Maquiné inclusive o ribeirão Maquiné em várias outras pas-
sagens de sua obra, por exemplo em:
id
, 5, págs. 85 e 98;
id
., 7, págs. 11 e 69; e
id
., 14, 272. Um dos chamados
contos de juventude” guimarrosianos é Makiné” (de acordo com FERREIRA, 47, 13, e GUIMARÃES, 49,
90), publicado no periódico carioca
O Jornal
a 9 de fevereiro de 1930; v. a respeito LEONEL, 54, 217-232. Po-
der-se-ia dizer que se trata de um quase
Leitmotiv
rosiano que se estende desde os primeiros até os últimos es-
critos.
126
Abre-te, Sésamo!...,
na fralda da serra,
e fui entrando, deixando cá fora
também o sol, a meio u, querendo entrar...
Nota-se, desde o início, que a entrada na caverna é uma aventura proveitosa: a
menção à gruta de Ali-Babápuxa à imaginação os fabulosos tesouros escondidos na terra.
Deve-se atentar para o exato significado do lendário encantamento Abre-te, Sésamo!...:
o sésamo é uma planta cujo nome cienfico é
Sesamum indicum
(proveniente do grego
sesa-
mon
), no Brasil melhor conhecida como
gergelim
(do árabe
jiljilan
). Cultivada desde a Anti-
güidade, a semente
da erva granjeou a fama de possuir míticas propriedades medicinais, afro-
disíacas e ligadas à fertilidade e longevidade. No famoso conto d
As mil e uma noites
, a invo-
cação à abertura do grão, que é associado à interioridade ctoniana, é um pedido para que o
solo fecundo descerre todas as suas ocultas preciosidades.
Vale ainda observar, quanto a essa estrofe, que do ponto de vista libertista o
narrador penetra na lapa escura por vontade própria e agradece a Deus a oportunidade de ex-
plorá-la: A gruta de Ali-Babá ainda existe,/
graças a Deus
, ainda existia”.
Podemos então nos concentrar no rico simbolismo da caverna. A descida ao
Maquiné e é indubitavelmente uma descida, pois o fojo se localiza “na fralda da serra, de-
certo a mesma donde Ás águasmanaram relaciona-se com a antiga fórmula alquímica do
V.i.t.r.i.o.l
., palavra que resumia todo o trabalho espagírico e cujo alcance se estendeu às tare-
fas mistagógicas. As interpretões desse acróstico são variadas: para Jean Servier significa
Visita interiorem terrae rectificando invenies operae lapidem
, o que poderia ser traduzido
como Desce às entranhas da terra, destilando encontrarás a pedra da obra. Já Kurt Selig-
mann entende de outra forma: para ele,
Visita interiora terrae rectificando invenies occultum
lapidem
ou Explora o interior da terra; retificando, descobrirás a pedra oculta
227
. De qual-
quer maneira, o termo criado a partir das iniciais da sentença refere-se à
lei de um processo de transformação relacionado ao
retorno do ser ao mais íntimo
cleo da pessoa humana... o que significa dizer: Desce ao mais profundo de ti mesmo
e encontrarás o núcleo indivisível, sobre o qual poderás construir uma nova personali-
dade, um homem novo...
228
E ainda
227
Tanto Servier como Seligmann
apud
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 962 e seg.
228
Id
.,
ibid
. Grifo dos autores, citando Jean Servier.
127
trata-se da reconstrução de si próprio a partir dos vários graus de inconsciência, de
ignorância e de preconceitos, em dirão à irrefravel consciência do ser, o que
permite ao homem descobrir a
presença transformadora e imanente de Deus nele
.
229
É conveniente procurar apreender isso sob uma perspectiva psicanalítica:
A caverna simboliza o lugar da identificação, ou seja, o processo de interiori-
zação psicológica, segundo o qual o indivíduo se torna ele mesmo, e consegue chegar
à maturidade. Para isso, é-lhe preciso assimilar todo o mundo coletivo que nele se
imprime com risco de perturbá-lo, e integrar essas contribuições às suas forças pró-
prias, de modo a formar sua própria personalidade e uma personalidade adequada ao
mundo ambiente em vias de organização. A organização do eu interior e de sua rela-
ção com o mundo exterior é concomitante. Desse ponto de vista, a caverna simboliza
a subjetividade em luta com os problemas de sua diferenciação.
230
Temos por conseguinte que, conforme já se aludiu, o espeleólogo em
Magma
acorre ao subterrâneo do seu chão natal como uma tentativa de atingir, simbolicamente, o seu
próprio subterrâneo: é a prática do
Gthi seautón
ou a busca de se reconhecer como
eu
(he-
autognose) de uma maneira mais completa, pelo aperfeiçoamento da individuação que eclodi-
ra com a nascença
231
.
Importa contudo não esquecer que o poeta, ao entrar no Maquiné, deixa do
lado de
(...) fora
também
o sol
, a meio u, querendo entrar...
Com isso, é mais uma vez relembrado o distanciamento entre o ser em queda e
o Altíssimo. De fato o antro, onde reinam as trevas, é um símbolo notório do microcosmo
humano no qual o soltem dificuldade de iluminar. É assim no lebre
mito da caverna
de
Platão
232
: homens agrilhoados desde que nasceram, sem possibilidade de tornar os pescoços
para a entrada da luz, vêem apenas as sombras projetadas de tudo quanto passa pela boca da
lapa e tomam-nas pelo real, donde se extrai a rudeza da condição humana, já que, imerso em
sua própria ignorância penumbrosa, o ser entende apenas dos femenos ilusórios, em detri-
mento da esplendorosa e cegante realidade ideal. A alegoria platônica, cuja essência já se
vislumbrava em Empédocles e que posteriormente seria recuperada por Plotino (
Enéada
IV, 8,
1), expressa o lado negativo do símbolo cavernal. Fica também impcito que qualquer liber-
229
Id
.,
ibid
. Grifei.
230
Id
.,
op
.
cit
., pág. 217.
231
Tem interesse referir que, Em chinês, o mesmo caracter,
tong
, significa
caverna
e, também,
penetrar, com-
preender (as coisas ocultas)
(
id
.,
op
.
cit
., pág. 216). Grifei.
232
V. PLATÃO, 238, 225 e segs. (Livro VII).
128
dade do humano, por ampla que seja, será na verdade sempre uma prisão na labiríntica apa-
rência das coisas, o que no poema de Guimarães Rosa fica lembrado por estas palavras:
Subterrâneos de Poe, (...)
calabouços, algaras, subcavernas,
masmorras de Luíz XI, (...)
buracos negros, onde as pedras jogadas
não encontram fundo, como os sonhos
de um metafísico...
233
Em tal ambiência umbrosa o poeta se defronta com seus mais profundos terro-
res e relata:
(...) O preto
da imensa noite, anterior ao mundo,
com pesadelos agachados
e pavores dormindo pelos cantos,
enrolados nas caudas de gelatina fria,
vem me comprimir o peito e os olhos.
234
Nesses versos, o sono pleno dosideais paraísos perfeitosque Deus dormia
em Águas da serra” é substituído pelos pesadelosdo sobressaltado neófito, os quais o im-
pedem de abrir os olhos” e o peitooprimidos para
ver
e
sentir
a presença divina em seu
próprio âmago. Deus ainda descansa seu sábado, as as fainas do
tzimtzum
e da
sheviráh há-
kelim
, mas para o homem, a quem compete o
tikún
, afigura-se árdua a tarefa de cultivar seu
lapídico jardim de
Flores de pedra,
cachoeiras de pedra,
cabeleiras de pedra,
moitas e sarças de pedra,
e
sonhos dágua, congelados em calcário
.
Apesar das dificuldades, o ser inegavelmente se esforça por fazer recuar o ne-
gror:
E ao acendermos as velas e lanternas,
a treva se retrai, como um enorme corvo...
235
233
Substituí, no segundo verso do trecho,
algaras
por
algares
(vez que
algar
, caverna”, é palavra masculi-
na), tal como ocorre em ROSA, 2, versão em que também se registra (pág. 36):
pesadelos
/ de um metafísico.
No que toca à lembrança de Poe, deve provavelmente dizer respeito aos horrores dos contos O barril de Amon-
tillado” e O poço e o pêndulo, ambos das
Histórias extraordirias
(POE, 241).
234
Em ROSA, 2, 36:
vem comprimir
, sem o pronome pessoal.
235
Em
id
.,
ibid
.: as velas e
as
lanternas.
129
Esse fragmento patenteia o ânimo do aprendiz em prosseguir na jornada ilumi-
nativa: o ser tenta proferir, embora debilmente, seu próprio fiat lux na noite íntima. Ademais,
a menção ao enorme corvo, seguida, poucos versos à frente, pela alusão aos Subterrâneos
de Poe, traz à mente o inesquecível Never more: todavia, num tremeluzente repúdio ígneo
e portanto anímico – ao teor funéreo da máxima proferida pelo black bird, é o homem no
Maquiné quem intenta afastar, para nunca mais, sua própria escuridão.
É de se ressaltar que, vizinhos aos Subterrâneos de Poe” e aos “calabouços,
há também salões de Scheherazada,
236
certamente repletos de riquezas fantásticas: vejamos
que nos Upanixades se fala na “caverna do coração, que “contém o éter, a alma individual e
até mesmo o Atmã, o Espírito Universal
237
. Nesse contexto de invenção de requias espiritu-
ais é, outrossim, digna de nota a alegoria da descoberta da gruta tumular de Christian Rosen-
creutz:
A descrição dessa caverna é uma característica fundamental da lenda sobre
Rosencreutz. A luz solar jamais brilhava nela, contudo era iluminada por um sol inter-
no. Em seus muros estavam gravados os nomes dos Irmãos e figuras geométricas;
nela havia muitos tesouros, inclusive alguns dos trabalhos de Paracelso, sinetas ma-
ravilhosas, lanternas e cantos artificiais. A Irmandade já possuía a sua Rotae
o Livro M.. O túmulo de Rosencreutz situava-se embaixo do altar da caverna.
238
Desde o começo deste trabalho se insiste: a heautognose é sempre ocasião para
a teognose, a busca de se reconhecer na ilusão do eu baço a realidade do Outro refulgente,
pelo que convém pensar a análise da simlica grutesca como simultaneidade de atuação das
suas facetas de microcosmo e macrocosmo, eis que a furna, com efeito, serve também como
um símbolo do centro do Universo: a laje do piso representa a superfície terrena e a capa o
u abobadado, enquanto que as estalactites podem ser entendidas como os ensaios anagógi-
cos dos homens, as estalagmites como as graças divinas e, por seu turno, os pés-direitos ex-
primem a incontestável ligação que há entre um estrato e outro; entretanto, o mais importante
é que além do teto do fojo obscuro existe toda a sobranceira claridade celeste, cuja beleza e
imensidão suplanta de muito a do imediatamente sensível.
Decorre então que o verdadeiro sentido da entrada na caverna tanto a platôni-
ca quanto a do Maquiné é a expectativa da futura saída para a luz, tão logo esteja experi-
mentado o conhecimento da escuridão interna; esta funciona precipuamente como alavanca
para despertar no ser, de modo mais intenso, o anagógico desejo de se desembaraçar dos en-
236
Em id., ibid.: Xerazade”.
237
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 25-216.
238
YATES, 288, 68 (e passim). Grifei. V. nOs manifestos rosa-crucianos, 213, a Fama fraternitatis.
130
traves que barram o retorno à Origem. Eis aí a razão pela qual aparece em incontáveis rituais
iniciáticos a exigência do ingresso dos neófitos numa gruta ou o encerramento dos mesmos
em covas escavadas na terra; tais ritos se faziam presentes, por exemplo, nos Mistérios de
Elêusis e em numerosas solenidades mistagógicas da África, da Austrália, da Melanésia e das
Américas. Tudo figura a necessidade do regressus ad uterum e o enfrentamento da íntima
noite cavernal, o que coloca o ser em contato com a nigredo do Caos iniciativo:
Bafio quaternário. O preto
da imensa noite, anterior ao mundo...
Na “Gruta do Maquinéo noviço realmente encontra os vesgios de seus pri-
mórdios e dos de outros seres:
Rastros de ursos speleus e trogloditas,
candelabros rochosos,
lustres pendentes de ogivas,
e a visão de Lund, sorrindo, sonhando
com fêmures de homens primitivos,
com ictiossáurios e com iguanodontes...
239
É por esta via que se explica a simlica da gruta como ambiente uterino em
mitos de origem e de renascença em diversos sistemas culturais. Vem a propósito o episódio
da ressurreição de Lázaro, narrado em João 11.1-46, no qual o morto há vários dias, uma vez
chamado por Jesus para fora do antro sepulcral, é novamente “dado à luz” aos olhos do povo,
de forma espetacular. Lembre-se outrossim que o próprio Messias, de acordo com o que reza a
tradição cristã, nasceu num estábulo arranjado numa lapa
240
, donde veio a Salvação para o
mundo, e, bem depois, o evangelista conta que José de Arimatéia,
baixando o corpo da cruz, envolveu-o em um lençol que comprara e o depositou em
um túmulo que tinha sido aberto numa rocha; e rolou uma pedra para a entrada do
túmulo.
241
239
Em ROSA, 2, 36-37: ursos apeleus(?) e, no verso final do trecho, com megatérios e megalodontesno lu-
gar de com ictiossáurios e com iguanodontes. É útil esclarecer que Lund” é Peter Wilhelm Lund (1801-1880),
explorador e estudioso naturalista dinamarquês que se destacou em nosso país pela sua abrangente dedicação à
zoologia, à botânica, à espeleologia e especialmente à paleontologia (é considerado o pai da paleontologia bra-
sileira”); tendo viajado pelos rincões do sertão goiano, por São Paulo e pelo Rio de Janeiro, seus férteis trabalhos
renderam grande êxito sobretudo em Minas Gerais, onde o pesquisador deu entusiasmada atenção justamente à
gruta do Maquiné, tendo ainda descoberto em Lagoa Santa os fósseis do chamado Homem de Lagoa Santa; pu-
blicou também diversas obras científicas. Na novela rosiana O recado do morrohá uma passagem em que o
autor fala que tudo ali era uma Lundiana ou Lundlândia, desses nomes(ROSA, 5, 244; grifei) e, por outro
lado, a personagem seo Alquiste ou Olquiste espigo, alemão-rana,pode muito bem ter sido inspirado, mes-
mo que parcialmente, nesse explorador europeu. V. tb. BIZZARRI, 29, 96.
240
Consta que também Lao-tsé teria nascido numa gruta.
241
Mc 15.46. Grifei. V. tb. Mt 27.60 e Lc 23.53.
131
É, pois, da caverna, no caso significativamente esculpida pelas mãos do ho-
mem, que o Verbo exsurge para a glória da Ascensão aos Céus. O sepultamento na furna du-
rante os três dias representa no ideário cristão a descida avernal que universalmente deve pre-
ceder e preparar todo renascimento. Magma não foge a essa diretriz, mas cabe recordar que
por ora o noviço encontra-se apenas na etapa prévia dos Mistérios Menores: incumbe-lhe, por
enquanto, aprender para depois cumprir, eis que o internamento no Maquiné é tão-somente
um ensaio para a mais terrorífica “noite escurado terço final de Magma
242
. É o que parecem
advertir os versos:
Andares superpostos, hieroglifos, colunas,
estalagmites subindo
para estalactites,
marulhos gotejando nas pontas rendilhadas:
Plein!... ritmos de Infinito...
Plein!... e séculos medidos por milímetros...
243
A superposição de andares na gruta sugere a rígida gradatividade da progres-
são iniciática. As colunasrepresentam o eixo do Infinito ou Axis Mundi que muitas culturas
localizam na caverna, e eis que esse “Infinito” é milimetricamente composto pelos maru-
lhosdas gotas ou, dizendo com outras palavras, é vagarosamente construído gota a gota ou
mesmo conta a conta, tal como o são as ascendentes “estalagmitesque procuram tocar as
“estalactites
244
. Desta maneira, enfoca-se a morosidade atual do movimento das Águas da
serramanifestadas. Tudo acena ao neófito um dissimulado aviso de serena paciência no des-
fiar do rosário. Esse alerta sutil é também o fundo da comparação, feita pelo autor, entre as
galerias ressumantesdo mágico Maquiné e as
(...) reentrâncias
de um monstruoso caracol...
Afora o fato de assim se avocar a clássica espiral que delineia o Universo Infi-
nito, aproveita-se que o lento caracol é um animalejo lunar que, tal como o símbolo maior do
satélite, aciona a imagem cíclica do nascimento-morte-renascimento, porquanto continua-
mente exibe e oculta seus tentáculos. E Além do mais, ele participa do (elemento) úmido e só
sai da terra, como costumam dizer os homens do campo, depois da chuva.
245
242
V. à frente o Capítulo IV, tópico 3, em especial as págs. 374-382.
243
Em ROSA, 2, 36: ritmos do Infinito.
244
Um curioso dado biográfico dá conta que Guimarães Rosa teria sido batizado numa pia trabalhada na pedra
branca” de uma estalactite retirada da Gruta do Maquiné, cf. ROSA, 79, págs. 48 e 105.
245
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 186. Os autores, que citam Jean Servier, grifam com negrito enfático o
trecho sai da terra”.
132
Vale-nos trazer à lembrança que a “Chuva” regeneradora cairá deveras so-
mente no antepeltimo poema de Magma, as o que o ser, saindo de si tal como o gastró-
pode do solo ou Lázaro de sua gruta, terá a oportunidade de “Reintegraçãona “Consciência
cósmica”.
Resta ainda considerar que, segundo salientam Chevalier e Gheerbrant,
A caverna – quer seja habitação de trogloditas ou símbolo – tem sempre uma
abertura central na abóbada, destinada à passagem da fumaça da lareira, da luz, da
alma dos mortos ou de xamãs: é a porta do sol, ou olho cósmico (...), por onde se
efetua a saída do cosmo.
246
Em Magma são os
(...) respiradouros
do centro da terra,
através dos quais o neófito pode sair de si mesmo.
E é preciso sair. Já é a hora
da noite deslizar para fora da furna,
e subir desenrolando as voltas
de píton ciclópico,
para encaixar todos anéis, na altura,
com os miles de escamas fosforescendo
e o enorme olho frio vigiando...
247
Vemos que a íntima noite cavernosa do poeta, já ansioso por ascender, con-
substancia-se na mítica serpente “píton” e procura se expandir, fundindo-se “na altura” com a
ampla Noite além do fojo; as escamasdo ofídio pretendem-se estrelas e o “enorme olho
frio” evoca a lua. É, no entanto, absolutamente indispensável repisar que o noviço está apenas
encetando seu trajeto anagógico: ainda que seja “a hora” de sair do Maquiné, cuidam-se ape-
nas dos preparativos (Pequenos Mistérios) para a morte ritual que irá ocorrer apenas no final
do próximo terço. A saída, agora, é apenas um passo adiante, ainda nos limites da paisagem
do eu, e não o definitivo passo de restituição à Alma Mater. Isso fica inequívoco diante da
natureza do monstro que se tenta integrar (encaixar todos anéis) na altura”: o píton é “ci-
clópico, característica que
revela um estado assaz primitivo e sumário da capacidade de compreender. O olho
único, no meio da testa, trai uma recessão da inteligência, ou sua incipiência, ou a
perda do sentido de certas dimensões e de certas analogias.
248
246
Id., op. cit., pág. 215.
247
Em ROSA, 2, 37: Mas é preciso sair, todos os anéis” e, no penúltimo verso, com miles, sem a interpo-
sição de artigo; ocorre ainda vírgula entre as palavras subir” e desenrolando.
133
Ora, bem assim, a percepção que o aprendiz tem das coisas ainda é insuficien-
te: com sua semi-visão pouco experimentada ele não a Alma do Mundo, e só verá o que
deve ser visto quando tiver os dois olhos bem abertos(a partir do poema “Bibliocausto) e
que, já então experientes, sobem, tateando os verdes(em Integração).
Há ainda que se apreciar as implicações da figura do píton na mitologia grega.
Divindade ctoniana que presidia os oráculos, essa serpente com aparência dragontina foi der-
rotada e morta por Apolo. A vitória do deus olímpico, que assumiu os oráculos infernais tor-
nando-os em celestes, é costumeiramente interpretada como a da razão diurna sobre o instinto
e as paixões noturnas, um quadro que ilustra o racionalismo predominante na mentalidade
ocidental embora nunca de maneira inconteste desde o alvorecer da filosofia helênica até
pouco antes do advento da Modernidade romântica e notadamente simbolista; a partir de en-
tão, Baudelaire, Bergson, Sigmund Freud com especial afinco, Jung, os surrealistas e outros
fizeram por recuperar a dignidade do inconsciente.
É consabido que Guimarães Rosa alinha-se dentre os que privilegiam a intui-
ção em desfavor da razão, a qual é chamada pelo poeta de “a megera cartesiana”
249
: deste
modo, o píton que tende a se elevar da “Gruta do Maquiné, buscando no alto a saída para o
cosmos, evidentemente representa a sabedoria intuitiva que deve despertar no ser. O autor,
conquanto faça uso da simlica da serpente para caracterizar a noite do ego, o faz sob uma
óptica eminentemente positiva, o que resta indubitável em face da nítida intenção anagógica
que o píton representa. Essa tentativa, por ora ainda prematura, de fazer acordar a intuição no
ser apresentará bem mais vigor no poemeto Bergson, dos Poemasdo próximo terço. No
atual estágio do andamento iniciático, o monstro está sem dúvida fadado a perecer: a associa-
ção simlica da serpente que tombou sob Apolo com o apodrecimento post-mortem é por
demais relevante para ser posta de lado. Eis o que, as retratar a cena do combate mítico,
Homero diz a respeito:
as trevas ocultaram o olho da Besta e o ardor sagrado do Sol a fez apodrecer nesse
mesmo lugar. Depois, até hoje, chama-se Pito – e se dá ao Senhor o nome de Pítio
pois foi lá que o ardor penetrante do Sol fez com que o monstro apodrecesse.
250
248
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 238. Grifei. Não obstante, v. em id., op. cit., pág. 182 (verbete CAO-
LHO), que se e somente se – o detentor de um só olho não for associado ao bruto ciclope, o rumo do símbolo
pode até ser invertido, para representar a clarividência”, o poder mágico encerrado no olhar” e a visão do In-
visível. Os ciclopes, aliás, seres cavernícolas e extremamente violentos, foram mortos por Apolo assim como o
foi o píton.
249
Em carta a BIZZARRI, 29, 58.
250
Apud CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 748. Grifos dos autores, em negrito.
134
As designões Pito, Pítio” e pítonvêm todas do grego pytho, putrefa-
ção. Note-se que “o enorme olho friodo verso final de “Gruta do Maquiné” parece evocar o
olho da Besta” homérico. Extrai-se, de uma vez por todas, que ainda não é o momento de o
neófito se elevar, ainda que seja por demais legítimo e louvável seu desejo, afigurando-se que
o píton– de conformidade com a outra acepção desse vocábulo – no presente apenas augu-
ra, com a sua subida, a futura ascensão do ser.
A putresncia é a ponte para que se possa passar à composição Maleita”,
cujos elementos principais são exatamente o apodrecimento dos brejos próximos a um curso
fluvial e a doença e o frio que daí procedem.
O ambiente desse poema são as margens do rio Pará”, o qual recua sua en-
chente as uma época pluviátil:
Não vem mais chuva.
Xô, rio velho!...
O Pará está desinchando, devagarinho,
está ajuntando a água.
As várzeas estão vermelhinhas de lama,
e o capinzal virou um brejo podre.
Podemos entender que se verifica a descida de mais um degrau do afastamento
entre o humano e o divino: a “chuvado alto Não vem maise a “mãe-do-riodesincha e se
retira, isto é, as águas originais do rio velhoque transbordara o manifestado, inundando os
terrenos, agora se retraem, deixando em seu lugar as zonas ribeirinhas repletas de poças de
água estagnada onde grassam, a um tempo, peixes (matrinchãs, mandis, timburés, “cas-
cudos, traírasetc...) e mosquitos transmissores da malária. A água insalubre contém assim
abundância de alimento (Até no fundo do quintal/ tempeixes e “no poçãohá piabaspe-
gadiças com a peneira), mas traz também a moléstia e a deterioração física para os homens.
Estes como que enxotam a água (Xô, rio velho!..., Xô, riachão!...), quando na verdade é a
terra que, apartada da água viva, apodrece e contamina as poças remanescentes. Não é imper-
tinente imaginar que os lamacentos brejais podem ser tomados pelos restos tridos do corpo
ctônico do píton do texto antecedente, morto num entreato.
Do ponto de vista alquímico, a putrefação é a operação básica, a qual, ao en-
sejo de provocar a corrupção dos corpos, permite a fermentação que leva à regeneração sob
uma nova forma, superior. Todavia, como toda operação da hiera techné o apodrecimento é
um processo que decorre com lentidão: é mais uma chamada à prudência e à paciência do ne-
ófito.
135
Constata-se ainda na composição que um dos principais sintomas do mal que a
insalubridade pantanosa traz aos homens é o frio febril, um sinal de que o ser, apegado à sua
parte física mais frágil, sofre as conseências do esquecimento do íntimo ardor magmático.
Depois da putredinosa “Maleita
251
, é o momento de se observar a peça “Ca-
ranguejo. Esse crustáceo parece ter saído dos pântanos enlameados do poema anterior, pois
que, além de ser sujo, carrega o
(...) escudo
lamacento
de velho hoplita.
Calha assinalar que, nativo do signo de Câncer que era (nasceu em 27 de Ju-
nho), Guimarães Rosa não deixou de saudar,
in verbis
, o
Câncer meu padrinho
nas folhinhas,
pois nasci sob as bençãos do teu signo
zodiacal...
Sendo o animal dotado
de armadura espessa,
o simbolismo desse signo prende-se principalmente ao
ensimesmar-se
, à laudável capacidade
de recolher-se, quando necessário, aos recessos do
eu
. E o poeta com efeito elogia:
És forte, e ao menor risco te escondes
na carapaça bronca,
como fazem os seres evoluídos,
misantropos, retraídos:
o filósofo, o asceta,
o
gado
, o ouriço, o
caracol
...
O que recupera de forma notável o já discutido conceito do magma íntimodo
título do livro. Essa característica essencial de interioridade o autor revisitará no poema “O
cágado
, tal como já a considerou em Gruta do Maquiné”, cujos corredores foram compara-
dos às reentrâncias/ de um monstruoso
caracol
. A intimidade assim contemplada evoca
também o fechamento do alquímico
ovo filosófico
, com o que convém recordar que o ingresso
na caverna, na terra, na “carapaça, é sempre um auspício da saída. Podemos então abordar
outra importante qualidade do Câncer do Zodíaco: Os seres marcados por esse signo gozam
251
Ao final vale ainda anotar,
en passant
, que Maleita” acabou se constituindo no embrião a partir do qual se
desenvolveu o conto Sarapalha”, de
Sagarana
.
136
de um grande poder secreto, próprio a favorecer os renascimentos futuros.
252
Adicione-se que o Caranguejo, mais um animal lunar, é tido como um dos
grandes cosmóforos, tais como a tartaruga, o crocodilo, o elefante
253
, todos comparecentes
em Magma. Ainda sobre o signo astrológico, não se pode olvidar que ele “representa esque-
maticamente as vagas da vida (i. e., as flutuações, as indecisões ou os altos e baixos etc...)
254
,
o que vale dizer, os conflitos do solve et coagulaespagírico que devem ser vencidos pelo
neófito, o qual deve ter a sabedoria de discernir, no calor do bonum certamen, quando atacar e
quando defender. O crustáceo, aliás, soldado que possui uma “armadura espessa”, é visto por
Guimarães Rosa
como a miniatura
de um tank de guerra...
255
Explicita-se ainda:
Teu par de puãs cirúrgicas oscila
à frente do escudo lamacento
de velho hoplita.
Por outro lado, o uso do verbo oscilar é bem adequado para expressar a ginga
do guerreiro diante das flutuações das vagas da vida.
A estrofe final do poema é:
Caranguejo hediondo,
de armadura espessa,
prudente desertor...
Para as lutas do amor, quero aprender contigo,
quero fazer como fazes, animalejo frio,
que, tão calcariamente encouraçado,
só sabes recuar...
O recuo do “animalejonos diz do retorno às Origens: o poeta parece querer
aprender, desse novo prudente guia, como voltar sobre os próprios passos, já que a tentativa
de ascensão do píton na “Gruta do Maquinéfoi debalde e resultou na podridão da “Maleita”.
Mas a andadura em viés do caranguejo reflete que o verdadeiro recuo ao Princípio pretendido
pelo noviço resolve-se pelo pertinaz avanço, seguindo a linha circular do rosário e atingindo
de entremeio “as lutas do amordo terço medial.
252
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 174. Grifei.
253
Id., op. cit., pág. 186. Cosmóforos são os entes lendários que carregam o mundo em suas costas.
254
Id., op. cit., pág. 173. Grifo, em negrito, dos autores.
255
Primeiro datilografou-se tanque”, sendo as escrito a mão um k substitutivo que cobre toda a segunda síla-
ba, não se tendo sublinhado a palavra. Em ROSA, 2, 42, permanece a forma tanque”.
137
Em adendo, atente-se para a qualificação do crustáceo como calcariamente
encouraçado, particularidade que reforça a sua comunicação com a calcária Gruta do Ma-
quiné”.
Ao Caranguejosegue-se “Luar na mata, complexo binário composto por I
Cinema” e II Rapto, poemas cujo cerne é a contemplação da lua em momentos distintos.
O título I Cinemarememora, por primeiro, o sentido de movimento con-
nuo do ser, sua cinética libertária. A composição tem momentos de ludismo, ao afirmar que
Vagalumes passam, com lanternas tontas,
procurando se ainda tem lugar...
256
Identificam-se desta forma os insetos como lanterninhas (quer dizer, profissio-
nais que trabalham nos cines). A brincadeira continua num trocadilho, ao se falar do instante
quando a onça desliza, procurando
o moleque penetra Saci-Pererê.
257
Prosseguindo, as um espaventoinicial os animais, reunidos na clareira da
mata” como numa sala de cine, logo se aquietam” e se preparam para assistir à “cena já ve-
lha” que passa “no telão da lua”:
um cavalo num prado,
a galopar parado,
carregando
ninguém sabe quem...
Trava-se assim um diálogo entre esta peça e Imensidão, que abrira os Hai-
kais, sendo que no Cinema” o prado” em que o cavalo galopa não é o mar, mas a lua. Sub-
siste a pergunta: Quem galopa ao luar? De modo algum é preciso responder a essa indagação
com uma resposta lógica, e contudo a identidade do cavaleiro parece ser clara: o poeta,
Weihs Mahr, Guimarães
258
. Fica, de qualquer modo, evidente a tensão a que o movimento é
submetido, pois na cena o cavalo está “a galopar parado, num avanço que não parece um
avanço ou num repouso que não é na verdade repouso.
Guarde-se, como em lembrete a ser reavivado quando da análise do poemeto
Bergson, a seguinte colocação:
E as corujas chegam, vestidas de sedas,
256
Em id., op. cit., pág. 45: se ainda têm lugar.
257
Grifo de Guimarães Rosa, realçando o calemburgo com perneta”.
258
V. nota 75 (pág. 45).
138
esvoaçando, sem fazer rumor.
259
Já em II Rapto, adverte-se contra o mais grave tropo que o aprendiz pode
vir a cometer em seu
itinerarium mentis ad Deum
, que é o de se pretender pronto quando ain-
da não o está, e então parar no meio do caminho. Nesse poema tudo se passa
Na
Canoa-Quebrada
, à beira da lagoa,
ou seja, num como que interscio do deslocamento fluvial do ser. Temos que a lua, persegui-
da desde A Iara” como um símbolo da “passagem da vida à morte e da morte à vida”
260
, é
desejada por alguns ansiosos animais que pensam possuí-la quando em realidade possuem
apenas enganos, e com isso estacionam sua movimentação:
a onça está parada,
apontando para cima olhos verdes de brasa,
só com o rabo e os bigodes ainda mexendo.
Ela veio pensando que a água era a lua,
e a lua ficou no alto se enchendo...
261
A onça parece ter se apercebido a tempo do equívoco, porque, se “veio pen-
sando que a água era a lua” e ficou parada, logo
apontou
para cima” o olhar, divisando o
verdadeiro astro argênteo no u. Já
O tamanduá-bandeira parou da outra banda,
balançando o corpo de um para outro lado,
penacho para cima, os braços abertos,
levantado nas patas de trás.
Será que ele pensa que a lua vem vindo,
querendo o abraçar?...
262
Se pensa assim deveras, o tamanduá confunde o rumo das coisas: a lua tal
qual a Iara jamais descerá para abraçá-lo, mas ao contrário é ele, como todo neófito, quem
deverá elevar-se até o objeto do seu desejo. A anta”, porém, é dos bichos quem mais se ilude,
eis que
bateu na água mole e sumiu-se no fundo,
que nem um toro pesado.
E ninguém a convence de que, em cheio, na lua,
não esteja nadando...
259
Anteriormente datilografado:
As
corujas(sem a aditiva) e
vestindo
sedas; as corrões foram manuscritas.
Em ROSA, 2, 45:
E
corujas(sem o artigo) e o mesmo
vestindo
sedasinicial.
260
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 561-562. V. nesta pesquisa a nota 179 (pág. 101).
261
Na passagem de verso mexendo./ Ela” (o pronome pessoal grafado claramente com inicial maiúscula) inter-
e-se, em óbvio erro de datilografia, uma vírgula ao invés de ponto final, o que perdurou até ROSA, 2, 47.
262
Em ROSA, 2, 45: querendo abraçar, sem pronome intermediário.
139
O arrogante ou talvez ingênuo tapir tomou o significante pelo significado e
perdeu-se nas aparências. É importanssimo para o noviço saber divisar que o símbolo, os ri-
tos, as liturgias, conquanto necessários para a devida apreensão da realidade, em última análi-
se nada mais são do que isto: símbolo, a senha intermediária que permite ao ser em queda a
transição do sensível para o inteligível. Quem parece ter percebido essa verdade
Foi a arisca veada,
que veio beber
e saltou, de repente,
no branco da luz,
ainda mais clara,
mais clara,
e fugiu pela trilha,
para longe da mata,
com o corpo esguio e branco de prata
raptando a lua...
A suu audaz é sábia: primeiro goza, na pausa da “Canoa-Quebrada, do fres-
cor que pode aproveitar da água, sem ficar mesmerizada pelo reflexo da lua; então entra “no
branco da luzdo lago e em seguida, tendo ficado mais clara,/ mais clara” ainda, continua a
palmilhar sua “trilha” iniciática, levando consigo, no “corpo esguiotingido branco de pra-
ta”, o que pôde haver do astro: sua cor luminosa. Deste modo procede o aprendiz aplicado,
separando no tempo certo o joio do trigo, o farelo da farinha, o significante do significado.
Eis então que a veada” sai para longe da mata”: chegamos com isso, afinal, à
Elegia” que encerra a Turbulênciados Ritmos selvagens.
É bom fazer notar que todos os anteriores textos libertistas foram povoados por
animais diversos. Lembremos que o ciclo poemático foi aberto pelos Ritmos...da fauna sil-
vícola em concerto; seguiu-se o coaxar dos saposao Luar; logo veio a “Boiada” de “gado
bravo” e então o cavalo suado, O albatroz, a “Lagosta” e a “gata” dos Hai-kais; na
Gruta do Maquiné” havia o píton” e, em Maleita, os variados peixes, “as minhocas” e a
mosquitada”; o Caranguejofoi o próximo; e nas duas peças de “Luar na mata”, ainda re-
centes, viu-se que os bichos selváticos foram outra vez os protagonistas. Quase todos esses
animais tiveram seu quinhão de sabedoria a ensinar ao noviço andante.
Elegia”, entretanto, destoa: não há em seus versos nenhuma alusão à fauna.
Por outro lado, a composição é carregada de apreciável cromatismo:
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes
(...)
140
pequenina como um ídolo de
jade
...
No entanto, o título desse poema o diferencia bastante do cromatismo irides-
cente que define os sete textos seguintes num hepteto exato, pelo que não se pode contá-lo
entre eles. Isso nos leva a pensar essa composição como um suave trecho de
intermezzo
, solto
entre o turbulento ciclo que se finda e a nova série cromática, funcionando mais como um
prelúdio das cores do arco-íris. Mais importante do que isso, porém, é que “Elegiaparece se
constituir ainda como um prenúncio das inquietões amorosas que caracterizam o segundo
terço de
Magma
, ligando-se de forma especial a “Ausência”. Perceba-se, a propósito, que com
a “pequenina” musa de “pijama verdese recupera, com um vulto mulheril, o ícone feminino
que as A Iara” havia sido contemplado tão-somente mediante o filtro do símbolo da lua.
Apliquemo-nos, pois, primeiro à relação que se desenha entre o poema atual e
o segundo da díade hidráulica: um e outro podem ser definidos como
elegias
, pela distância
da figura feminil desejada, e também como
elogios
, em função do persistente tom laudatório.
No que tange ao poeta – que se queixara por não haver podido
beijar
desde logo, num vale
côncavo, transparente e
verde
, a sereia “de olhos
verdes
de muiraquitã” –, ainda agora ele se
lamenta à musa elegíaca aninhada entre tecidos
verdes
:
Não pude calçar, com
beijos
, os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim...
263
Todavia, é com os textos de temática amorosa do terço medial que “Elegia
tem um parentesco bem mais notável. A bem da verdade, essa composição parece que estaria
melhor colocada entre as posteriores peças Derio” e Ausência”. O clima onírico de “De-
rio” encontra eco no último verso de “Elegia”:
Mas é bem assim que meus
sonhos
te possuem.
Quanto a “Ausência, temos que nos seus tercetos inicial e final ocorre o in-
sistente emprego dos fatores “almofada, pés” e ainda “beijo:
Na
almofada
branca,
as sandálias sonham
com a seda dos teus
pés
...
(...)
E na
almofada
de seda,
263
O primeiro verso do fragmento foi em princípio tripartido, com quebras de linha as calçar,” e beijos,; há
contudo um tro sinuoso a uni-los e a indicação marginal manuscrita: r numa linha só.
141
beijo
as sandálias brancas,
vazias dos teus
pés
...
Os mesmos fatores podem ser encontrados em Elegia”:
Estavas de pijama verde,
nas
almofadas
verdes,
os
pezinhos
nus, as pernas cruzadas,
(...)
Não pude calçar, com
beijos
, os teus
pezinhos
...
Apesar de que a cor das almofadas varie, a repetição de motivos é por demais
saliente para ser menosprezada. Além disso, em Ausência” o verdor não se faz de rogado,
pois,
Esfuziante e
verde
,
um beija-flor entrou pela janela.
Bem plausível é imaginar Elegia” como o sonho havido em Derio, as o
que o poeta acorda e se depara com a “Ausência” da amada de “pijama verde, a qual teria
partido de “pezinhos nus” e deixando “as sandálias brancas, como um resquício onírico, na
“almofada de seda”. O que se pode pensar, a respeito da enigmática posição de “Elegia” no
continuum
de
Magma
, é que esse poema seria um
presságio
do desejo amoroso que dominará
os trabalhos futuros ou talvez o pretérito que se fará
déja vu
em Ausência”: isso porque a
transferência de “Elegia” do local que lhe seria melhor adequado parece contribuir para a
mais efetiva captação do leitor pelas malhas do livro, eis que, ao topar com Ausência, natu-
ralmente decorre a tentação de se voltar páginas atrás até saber onde antes se havia lido sobre
pés” e “almofadas.
Ad rem
, é interessante saber que, em seu parecer sobre
Magma
, Gui-
lherme de Almeida espontaneamente uniu num mesmo comentário as composições que no ín-
dice estão bem distanciadas: E, ao lado disso, as mais finas emoções ricas, como, por
exemplo, Elegiae Ausência’(p. 29 e 59).
264
Possível inferir que a função de “Elegiaseria realmente a de amarrar, por via
da repetição de motivos, o primeiro ao segundo terço, demonstrando que no livro inaugural de
Guimarães Rosa todas as peças estão, à vera, em ajustada concatenação teleológica.
Com essas considerações finais, convém doravante passar à terceira parte do
primeiro terço de
Magma
.
264
ALMEIDA, 23, e tb. in: ROSA, 2, 7. A paginação, segundo parece, é do acadêmico.
142
3. A PONTE DO ARCO-ÍRIS
A nova série poemática é formada pelas peças Vermelho, Alaranjado,
Amarelo, Verde”, Azul, Anil” e Roxo. Salta aos olhos que se trata das cores do arco-
íris
265
, o qual se constitui em símbolo dos mais profícuos para manifestar a idéia do contato
entre o humano terrestre e o cefluo divino. Essa idéia é universal, estendendo-se desde o Ja-
pão zen-budista – onde se fala na “ponte flutuante do Céuaté as Américas pré-
colombianas, passando pelo misticismo do Islã e pelo imaginário dos pigmeus da África
equatorial. Na mitologia rdica a ponte irisada, vigiada pelo guardião Heimdall, recebe o
nome de Bifrost” e liga o mundo dos homens, Midgard, a Asgard, a morada dos deuses. Já
para os hebreus o arco da Aliança” é o sinal do concerto firmado entre Javé e a humanidade
depois do Dilúvio, o que pode ser visto em Gênesis, 9.9-19; Chevalier e Gheerbrant ponderam
que
o arco-íris, ao aparecer por cima da Arca, reúne as águas inferiores e as águas supe-
riores, metades do ovo do mundo, como sinal da restauração da ordem cósmica e da
gestação de um ciclo novo.
266
Quanto à designação arco-íris, corrente entre s, vem da Hélade, dizendo
respeito a Íris, outra mensageira olímpica tal como Hermes, a qual possuía um véu matizado
com as sete cores e que era desfraldado quando a deusa, a serviço de Hera, descia à terra para
ter com os homens.
Interessa-nos sobremaneira a perspectiva cienfica do assunto:
Femeno formado na atmosfera atras da refração e reflexão interna da luz
do Sol pelas gotas da chuva que cai. Os arco-íris bem desenvolvidos têm um arco
principal brilhante, com a cor vermelha na parte exterior, seguida de laranja, ama-
relo, verde, azul, anil e violeta na parte de dentro. Um arco secundário menos intenso,
que tem as cores na seência invertida, pode se formar do lado de fora do arco prin-
cipal, com um ou mais arcos mais tênues dentro dele. Todos os arcos têm o seu centro
numa linha formada pelo Sol e o observador. Os arco-íris só podem ser vistos quando
se está de costas para o Sol e de frente para as gotas de chuva iluminadas.
267
265
Outrossim, com exceção do Azul” e do Anilas demais faixas podem ser todas associadas às cores da rosa,
cf. se depreende da leitura de ASSIS, 112, 10, a qual informa haver estruturado os campos semânticos de seu
trabalho em diversos tópicos, um dos quais diz respeito às colorões dessa flor: branco, amarelo, rosa, laranja,
coral, vermelho, roxo, verde”. Azul” e Anil, por sua vez, podem ser interpretadas como evocações da blaue
Blume de Novalis, como será visto mais além.
266
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 77-78. Grifos dos autores, que se aiam em Guénon.
267
Nova Enciclopédia ilustrada Folha, 224, verbete arco-íris.
143
Daí se extraem conclusões importanssimas para a consideração do arco-íris
magmático. Em primeiro lugar, a relação do arco cintilante com os raios solares e com a chu-
va: para a ocorrência do femeno óptico faz-se necessário o concurso de ambos e, no entan-
to, a precipitação deve ser fraca o suficiente para não toldar o sol; o arco geralmente surge
quando uma chuva mais pesada já caiu e agora amaina, em vias de cessar por completo. Por-
tanto, infere-se que o arco-celeste desenhado em Magma pelos sete poemas representa nova-
mente a distância que cada vez mais se abre entre o ser e as jorrantes Águas da serra” inici-
ais, cujo ímpeto troante já se acalmou. Cuide-se mais, que embora pequenos arco-íris possam
comumente ser visualizados também nos véus das cachoeiras, isso depende sempre da tomada
de um ponto de observação relativamente mais afastado do local de incidência do femeno,
e tanto mais longe quanto maior o arco visível.
Em segundo lugar, explicou-se que “Os arco-íris só podem ser vistos quando
o observador “está de costas para o Sol– numa posição de quem parte“e de frente para as
gotas de chuva iluminadas, ou seja, para se apreciar o arco-da-chuva deve-se desviar os
olhos da seção do u onde se encontra a fonte luminosa solar, a qual sabidamente simboliza a
presença deífica manifestante. Tal como o luar, o espetáculo iriante é apenas uma reflexão da
luz do sol, e este não se vê senão indiretamente, intermediado por um espelho que lhe faz as
vezes de símbolo.
Além do mais, é também relevante a ordem em que são apresentadas as cores
do arco-íris em Magma: se o admitirmos como um arco principal solitário, o que é o mais
natural, o elencar das faixas do espectro começando pelo Vermelho” e terminando em
Roxoindica uma via descendente, que vem do mais Alto e externo (Céu) para o mais baixo
e íntimo (terra), o que representa de forma cristalina a descida de novos degraus pelo ser que
saiu de Deus.
Vejamos, pois, o primeiro passo para a travessia dessa ponte iriada. O poema
Vermelho” captura o instante da morte de uma ave:
É uma pomba
– parece uma virgem.
De debaixo das plumas, vem o jorro
enérgico, da foz de uma artéria:
e a mancha transborda, chovendo salpicos,
a cada palpitação.
Pelos indícios colhidos no texto resta indubitável que se trata de um sacrifício:
nos dois versos iniciais, ao se aproximar a “pomba” da “virgem” ata-se num mesmo lanço de
imagem duas das vítimas sagradas universalmente mais propícias a ritos dessa espécie (jun-
144
tamente com o cordeiro), eis que ambas simbolizam à perfeição os caracteres de pureza e de
inoncia requeridos para tanto.
Esse sacrifício intenta a realização de dois objetivos iniciáticos de igual im-
portância. Por um lado, a ave tem seu sangue vertido para a consagração do caminho que se
vai atravessar, o que é uma cerimônia largamente empregada para a preparação purificatória
de pontes que vão ser utilizadas pela primeira vez
268
. Nunca é demasiado recordar que pela
sua etimologia o vocábulo sacrifício traz o sentido de sacrum facere, tornar sagrado.
Ademais, constitui uma parte indispensável, em quase todas as solenidades de
iniciação, a antecipação da morte ritual do neófito através da imolação de oferendas animais
ou da morte simulada de outros indivíduos. Nas encenões mortuárias, o noviço é posto em
presença de corpos inertes com aspecto cadavérico, algumas vezes até mesmo cobertos por
sanguinolentas vísceras de porcos ou bois e outros disfarces; mas em seguida eles se revelam
vivos, ao se erguerem dançando e cantando hinos sacros, o que quer demonstrar ao aprendiz
que a sua própria morte cerimonial deverá ser entendida como a passagem de uma vida profa-
na a outra vida sagrada.
Quanto às oblões imolatórias, além de diversas outras implicações a morte
dos animais também quer r em evidência a inevitabilidade do abandono da vida anterior
para que se possa passar a uma nova forma de vida: na composição em tela, enquanto a pom-
ba morre a mancha do seu cruor Cresce, cresce,” e no verso final a ave que “já está friasur-
ge “colorada, como uma grande flor...Isso evoca o trágico episódio do passamento de A-
nis, que nada obstante tem sua vivência prolongada sob a forma de rosas. A flor rubra, de fato,
é uma metáfora mistagógica da vida superior que se eleva, tanto mais que na alquimia revela
o bem-aventurado advento da rubedo, o que já tivemos a oportunidade de comentar
269
.
Há ainda a menção, em Vermelho, à mudança de gosto na boca do poeta: o
fito precípuo da solenidade sacrificial é justamente que o neófito venha a ter uma percepção
diferente das coisas, da vida e da morte inclusive. Nem importa que se trate, a princípio, de
uma percepção aparentemente amarga e incômoda, mas o que vale é a abertura para novas ví-
vidas sensões da realidade, diferentes das usuais, estas já endurecidas e estéreis. Eis porque
o poeta refere, de forma sinestésica, que a mancha rubra
Cresce, cresce,
parece que meus olhos a tocam,
e que vem aos meus olhos
268
V. VAN GENNEP, 280, 38 e segs. (Capítulo II: A passagem material).
269
V. o Capítulo I deste trabalho, tópico 2, especialmente o subtópico 2.2.
145
passando por meus dedos,
viva, tão viva,
que quase grita...
Essa nova percepção é tão intensa e brusca, ocorre de maneira “tão depressa”,
que o poeta se sente perturbado: o carregado carmim do sangue que se esvai, quente, quen-
te,
i-lhe nos olhos e o irrita
, o que faz entender os distúrbios sinestésicos. O noviço, assim
como quem olha diretamente para o sol, tem a visão toldada e ainda
não
em plenitude,
conquanto avance em seu itinerário.
Compete lembrar que as vítimas solenemente imoladas sempre ocupam, por si-
nédoque, o papel da congregação sacrificante como um todo ou mesmo a alma do ofertante
solitário. No caso particular da pomba, esse sentido é reforçado pelo fato de que essa ave, por
si mesma, afigura-se como um proeminente símbolo da alma humana; outrossim, o sangue é
habitualmente visto, por variados povos e religiões, como o veículo da alma
270
. Por conse-
guinte, pode-se deduzir que o neófito oferece em sacrifício, de maneira simlica,
a sua pró-
pria alma
, a qual deve ser continuamente purificada, seja por água, por fogo ou por sangue, o
qual, pelo matiz e pelo calor, está sempre associado ao elemento ígneo. Anote-se que em vári-
os versos o poeta enfatiza a ardência do cinabrino fluido vital que escorre do corpo da pomba,
numa estreita relação com o seu próprio magma íntimo,
rubro e ardente
,
Ardente e berrante...
Como deve ser quente!...
(...)
Tenho-a agora presa nos meus olhos,
quente, quente...
A próxima composição, Alaranjado, prolonga de forma superlativa a ardentia
do sangue columbino:
No campo seco, a crepitar em brasas,
dançam as últimas chamas da queimada,
tão quente, que o sol pende no ocaso
...
Os simbolismos do laranja e da nuança alaranjada podem ser melhor compre-
endidos pela consideração dessas tonalidades na “explicação das figuras hierogficasdo
Li-
vro de Nicolau Flamel...
, gravadas nos muros e edifícios do Cemitério dos Santos Inocentes
270
De maneira especial entre os hebreus e, modernamente, entre as testemunhas de Jeová. V. CHEVALIER e
GHEERBRANT, 160, 800-801. Não custa aduzir que, em decorrência, o encarnado sangüíneo É a cor da alma,
a da libido, a do coração. É a cor da Ciência, do Conhecimento esotérico, interdito aos não-iniciados, que os sá-
bios dissimulam sob seu manto(
id.
,
op
.
cit
., pág. 944).
146
de Paris. Numa dessas explicações o legendário alquimista contempla um homem e uma mu-
lher desenhados em laranja sobre “fundo azul escuro, o que demonstraria “que o homem e a
mulher não devem ter o seu espírito neste mundo (o laranja indica desespero) ou pôr nele
toda a sua esperança.
271
,
pois é evidente que a esperança dos seres humanos deva repousar
tão-somente em Deus. Flamel prossegue dizendo que
O homem e a mulher estão quase totalmente alaranjados: isto significa que os
nosso corpos (ou o nosso corpo que os sábios chamam aqui Rebis) não têm ainda di-
gestão suficiente...
Uma outra estampa é assim descrita pelo alquimista:
Um homem semelhante a S. Paulo, vestido com roupas de branco alaranjado
bordadas a ouro, com uma espada desembainhada, e um homem ajoelhado a seus pés,
vestido de roupagem laranja, branca e negra com um rolo na mão onde reza: Dele
mala quae feci, ou seja “Livra-me do mal que fiz.
Em escólio a nova gravura, Flamel ainda assevera: Este alaranjado mostra que
as naturezas se digerem e, pouco a pouco, se aperfeiçoam pela graça de Deus.E finalmente
complementa:
O fundo violeta escuro indica que a pedra obteve – por cocção total as belas
vestimentas alaranjadas e vermelhas que pedia a S. Pedro e que a sua completa e per-
feita digestão (indicada pela cor laranja total) a fez abandonar a sua antiga roupa ala-
ranjada.
Percebe-se que Flamel faz distinção entre o Alaranjadoe o laranja puro. O
tom Alaranjadomanifesta uma “digestãoi. e., um processo interno de absorção – por
enquanto incompleta, que ainda está ocorrendo: é a queimada” rosiana que se sustenta “a
crepitar em brasas, espécie de holocausto agrário que sinaliza mais uma etapa da purificação
mistagógica da alma do neófito, o qual dolorosamente procura libertar-se do mal da matéria
para sublimar-se no bem do espírito. Quando dançam as últimas chamas” e o alaranjado se
adensa no sol, tornando-se “laranja totalpela “sua completa e perfeita digestão(Flamel), há
em princípio uma sensão de desespero pela intensidade da experiência abstergente – no po-
ema,
(...) o sol pende no ocaso,
bicado
pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
271
FLAMEL, 176; esta citação e as segs. foram colhidas respectivamente às págs. 87, 96, 97, 102-103 e 104.
Grifei em todos os trechos.
147
como uma tangerina temporã madura...
Destarte, ao passo que a quentura do campo seco, a crepitar em brasas,lem-
bra que a refrescância da fonte serrana já está bem longe, um efeito colateral da árdua purifi-
cação é a
queda
do sol nos versos finais, o que significa que ao inndio do céu no poente se
segue o arrefecimento da luz com a chegada da noite nova. Não se pode esquecer que o pri-
meiro terço de
Magma
diz respeito à separação entre o Uno, que permanece em repouso, e o
ser, que cai no movente mundo múltiplo – justamente onde não há firmeza em que se possa
apoiar a esperança.
É preciso, então, superar o decnio solar: o resto do terço inicial é composto
por uma sucessão de insistentes tentativas diurnas de elevação entremeadas por novas quedas
noturnas, uma conflitiva situação que só há de se resolver Na Mantiqueira”, peça que encerra
esse terço e em cuja
noite
a lua cheia, quase um
sol
frio, erguer-se-á com um arranco.
Antes, contudo, voltemos ao arco-íris: as Alaranjadovem Amarelo,
texto cujo fulcro é, mais uma vez, a necessidade de paciência do aprendiz ao submeter-se à
intrincada, difícil, lenta e sempre repetitiva jornada mistagógica. Assim é que o artista
Kuang-Ling,
pintor chinês de máscara de cera,
(...)
pinta e repinta,
durante trinta anos,
sulfúreos e asiáticos girassóis,
na incrível porcelana
de um jarrão
dos Ming...
A porcelanadestaca a delicadeza e o cuidado com que o neófito deve exe-
cutar seu mister. Quanto ao girassol, suas sementes são consideradas na China, país natal de
Kuang-Ling (e do Huang-Ho, o
Rio Amarelo
tingido por aluviões de loesse), um alimento
de imortalidade”, e mesmo o citrino é tido como “a cor da eternidade
272
. Com isso, os trinta
anosdo trabalho do artista em pintar girassóis isto é, a extrema lentidão do extenso proces-
so iniciático –, não são nada se postos em comparação com o resultado final: a vida nova e
eterna. Perceba-se, ademais, que os trinta anos
três
vezes dez – novamente aventam a
configuração ternária da travessia mistagógica.
É importante ainda que o girassol, flor heliotrópica por excelência, surge no
texto como que em busca do sol que se s no poema anterior, figurando-o ou substituindo-o
272
V. CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, respectivamente págs. 470 e 40.
148
em razão da disposição radiada de suas pétalas – o que confere à sua corola um semblante de
disco solar –, bem como por causa da cor amarela – que evoca a luz dourada do astro.
Mencione-se também o fato de estar o
pintor chinês de máscara de cera,
feliz de ópio e ébrio de dragões...
A máscara de cera” denota a branda impassibilidade da face de Kuang-Ling,
sério e compenetrado, absorvido pelo trabalho arstico que, sendo uma fonte de felicidade,
como um ópioo retira das contingências do mundo ilusório e o enleva a um universo fan-
tástico e ideal, povoado por dragões. Tal deve ser a conduta do noviço ao percorrer o cami-
nho anagógico: deixar-se embriagar, com entusiasmo, pelas alegrias do caminho e adotar uma
postura de serenidade ante as dificuldades que parecem atrasar o progresso.
É hora de analisarmos Verde, poema central do grupo dos sete irisados. Da
cor, diga-se que traz à mente o frescor e a tranqüilidade aquáticas, em contraponto ao Ver-
melho-Alaranjadoque representa toda a agitação do fogo. É bem conhecida a caracteriza-
ção do verde como a cor da Esperança, sendo também a da fertilidade e a da Salvação, o oásis
em pleno deserto
273
. E é como num oásis verdejante que se refugia,
Na lâmina azinhavrada
desta água estagnada,
(...) uma rã bailarina,
que ao se ver feia, toda ruguenta,
pulou, raivosa, quebrando o espelho,
e foi direta ao fundo,
reenfeitar, com mimo,
suas roupas de limo...
Esse fragmento é crucial: ao se defrontar com a feiúra do próprio
eu
, a reação
imediata do anfíbio é quebrar a ilusão do mundo externo refletida na superfície do espelho
aquático e ir
ao fundo
” em busca do Mais Belo. Ainda que sob risco de operar em redundân-
cia, é válido esmiuçar este ponto demasiado importante: temos que, insatisfeita consigo mes-
ma, não obstante a rã penetra
em sua própria imagem
especular a qual representa o micro-
cosmo –, em cujos absconsos intenta encontrar a Beleza. Instaura-se o paradoxo: ela desgosta
do
eu
e destrói a sua efígie, mas para fazê-lo imerge profundamente... no
eu
. Ora, o fundo
da imagem reflexa e o fundoda “água estagnada” são um só: o consolo das Origens hídri-
273
Especialmente nos desérticos países árabes, eis que A bandeira do Islã é verde, e essa cor constitui para o
muçulmano o emblema da Salvação, por ter sido a mesma do manto de Maomé, sob cuja protão refugiavam-
se seus dois filhos, a filha e o genro, os quatro pilares da religião islâmica, conhecidos como os quatro debaixo
do manto(
id
.,
op
.
cit
., pág. 940).
149
cas que assentam no íntimo do ser. Logo, ime-se a conclusão oximórica mas devidamente
firmada em todos os círculos sticos – de que, para evadir-se do eu (a aparência), a melhor
saída é entrar no eu, onde Deus (a essência) se encontra, com o que o anfíbio repete de forma
sui generis a lição anteriormente ministrada pelo coriáceo padrinho Caranguejo” e pelos ou-
tros seres evoluídos,/ misantropos, retraídos.
Abre-se a ocasião para dizer que a peça escrita pelo jovem Guimarães Rosa pa-
rece constituir-se numa paráfrase do afamado haicai da rã” de Bashô, do qual consegue cap-
tar o mais vero sentido. A singela apreciação de Marsicano sobre esse haicai é suficiente-
mente esclarecedora, prescindindo de comentários outros:
Suprimindo as fronteiras entre o mundo interior e exterior, o ser individual
imerge na totalidade como uma gota no oceano.
furu ike ya
kawasu tobikomu
mizu no oto
274
Na tradução de Haroldo de Campos:
o velho tanque
rã salt
tomba
rumor de água
275
Atente-se agora que a água estagnada” no poema irisado relembra a piscosa
água parada de “Maleita”, propiciadora da regenerão no repouso: “a água estagnada seria a
imagem do manifestante imóvel, do qual partem todas as manifestões e no qual todas elas
terminam por se reabsorver.
276
Convém reparar ainda, num adiantamento de considerões sobre o terço final,
que o verdoengo azinhavre em que o anfíbio mergulhou, conquanto situado
entre painéis de musgo
e cortinas de avenca,
difere sensivelmente do vivo tom de verdura a ser colhido nos versos de “Primavera na serra”
e Integração. Nestas composições extremas esmalta-se um sinople vívido, expoente de uma
regeneração completa, enquanto que na peça iriada observa-se mais uma tonalidade de coisa
trida, da qual não se possa dizer que seja regenerada, mas sim regeneradora. Deve-se res-
274
MARSICANO, 214, 11. V. nota 203.
275
CAMPOS, 149, 62.
276
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 160.
150
salvar que não é apesar de podre, mas justamente por ser podre que a “água estagnada” tem o
condão de propiciar vida nova.
No que toca à rã, por se tratar de um animal que passa por sucessivas metamor-
foses, ela é usualmente tomada como um símbolo da ressurreição. Além de ser protetora dos
viajantese por isso dos neófitos –, Diz-se também da rã que ela volta sempre ao ponto de
partida, mesmo se é afastada dele.
277
Tudo isso, aliado à sua característica de ser limfilo, conforma esse anfíbio a
figurar num trajeto iniciático traçado sobre a circularidade do rosário: é por isso que no texto
magmático ela vai – ou volta ao fundoda lagoa, atravessando a superfície especular com
o intento de obter refrigério e redenção no mesmo ambiente aquoso em que o girino nasceu.
E eis que do outro lado do espelho, no poema “Azul, surge “Uma vanessa tro-
pical: a borboleta, metamórfica como a rã, conta em seu acervo simlico a representação da
“alma liberta de seu invólucro carnal
278
e, por conseguinte, renascida, o que é verdade tanto
no imaginário cristão como no asteca e no das populações da África central, e ainda sob a
moderna perspectiva brizomântica da psicanálise.
É-nos proveitoso, a propósito da falena, citar Consuelo Albergaria, a qual, em
prestigiado estudo sobre Grande Sertão: veredas, explica: O motivo borboletaestá pre-
sente em outros textos da obra rosiana, e sempre associado a paz, alegria e valores espiritu-
ais.
279
Depois de colar trechos de “Dão-Lalalão” e de Buriti” em que aparece a figura do in-
seto, Albergaria prossegue:
O motivo borboletavê-se assim transformado em símbolo, cuja interpreta-
ção se dirige à Alma ou elementos superiores, uma vez que é por demais sabido
que o nome grego para borboleta – Psiquê equivale ao latim anima, sopro.
Como a este símbolo está ligada a idéia de movimento e transformação pro-
veniente do processo de metamorfose por que passa o inseto, é lícito acrescentar a
idéia da alma que atravessa diversas etapas, transmigra por espaços diferentes, até
atingir o estágio mais elevado que, nos ensinamentos esotéricos, se aproxima da
identificação com Deus, função preenchida, no romance, pela participação sacraliza-
dora (hierofante, hierofania, hierogamia) exercida por Otacília.
280
Na peça de Magmalivro em que, frise-se, a “identificação com Deusserá
retratada pela Integraçãona “Consciência Cósmica” –, as asas moventes da borboleta
Psiquê por ora pousam sobre as pétalas imóveis da “campânula/ de uma ipoméia”: um fla-
277
Id., op. cit., pág. 764.
278
Id., op. cit., pág. 139. Os autores citam Charbonneau-Lassay.
279
ALBERGARIA, 22, 143. Grifo da autora.
280
Id., ibid. e pág. seg.
151
grante da alquímica conjunctio do volátil no fixo, ilustrando a busca de contato do ser com o
Uno. Come-se desse modo uma ideal flor nova”, azulina e perfumada,
com mais dois estames, buliçosos,
e quatro pétalas, de um esmalte raro,
molhadas nas tintas de céus fundos,
e cromadas com a faiança das lagoas...
Não se deixe de apreciar que na cena o inseto cianóptero traz nas asas molha-
das” as superiores águas dos céus fundos, os quais também se unem às inferiores águas das
lagoasque cromam as pétalas originais da flor: a borboleta atua assim como uma embaixa-
triz celeste, propondo às águas paradas no seio da terra um metonímico casamento por procu-
ração. Tal imagem será revisitada em Hierograma”, composição do terço medial.
E se a rã no Verde” guimarrosiano evocava o haicai de Bashô, a flor nascente
em Azul” evoca com primor a santa blaue Blume cultivada por Novalis no seu Heinrich von
Ofterdingen e que se alçou a máximo símbolo romântico do inalcançável fichtiano (tarefa in-
finita” ou indeterminada”) que, todavia, deve ser insistentemente buscado: a união das meta-
des humana e divina do ser, união pela qual o eu perece e se integra no Deus imperecível. As-
sim,
Desejo ver a flor azul. Ela não abandona a minha mente, e não posso escrever
e pensar em outra coisa (...). É como se antes houvesse sonhado ou caminhado ador-
mecido para um outro mundo; pois no mundo em que até então vivera, quem lá se te-
ria importado com flores?, e eu mesmo nunca ouvira falar de uma tão estranha pai-
xão por uma flor.
281
Embora a imagem criada pelo poeta alemão não discuta a inacessibilidade do
divino, é certo que essa distância extrema não é invencível: para ir ter com a divindade o hu-
mano deve simplesmente deixar de sê-lo, dispor de seu envoltório material tal como a borbo-
leta que se retira do casulo, eis que a lagarta, enquanto for lagarta, jamais voará. Filhos de
Deus, germes divinos somos s, afirmou Novalis, mas incumbe abandonar a mera potenci-
alidade larval, a qual deve resolver-se em ato, somente mediante o que “Um dia seremos o
que nosso Pai é”.
Voltando ao Azulrosiano, essa cor detém as qualidades de frialdade e espe-
cialmente de pureza imaterial, à qual só se sobree a neutralidade do branco. Porém, tanto o
azul do mar quanto o do u são feitos de transparências acumuladas: o mais escuro turqui si-
281
Novalis, apud Cláudia Cavalcanti, Emergir das profundezas de G. T.: uma tentativa”, in: TRAKL, 275, 96;
grifei. Nesse estudo, a pesquisadora tece valiosos escólios sobre o sentido da cor azul na obra do expressionista
austríaco Georg Trakl e, de entremeio, também na do romântico alemão.
152
déreo ou pelágico pode ser visto apenas como uma condensação do vazio incolor. Vem daí o
entendimento dessa tonalidade como o caminho do infinito, onde o real se transforma em
imaginário, sem deixar de ser também o caminho do sonho
282
, onde o imaginário parece
real. Por esse motivo, a cor azul, que é a do firmamento, em Poesia freqüentemente assume o
caráter sígnico de busca da transcendência, tal como ocorre, verbi gratia, em vários textos de
Georg Trakl:
O lito do imóvel. Um vulto rígido
de animal no azul, sua santidade.
283
O mesmo sentido se colhe em Arthur Rimbaud:
A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul: vogais,
(...)
O, supremo clarim pleno de estranhos agudos,
Silêncios cruzados por anjos e mundos:
Ô o ômega, raio violeta de Seus Olhos!
284
Idem para outro simbolista francês, Sthéphane Mallarmé, vate dos lebres
“ângelus azuis
285
, e até mesmo para o nosso aparentemente insuspeitado Machado de Assis,
cuja “A mosca azul,
(...), voando, e revoando, disse:
Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor.
286
Guimarães Rosa, destarte, com seu poema insere-se numa longeva tradição. E
para rematar o estudo do Azulde Magma é perfeitamente adequada uma citação de Kan-
dinsky: disse o pintor e poeta russo que o movimento do azul é, simultaneamente,
movimento de afastamento do homem e movimento dirigido unicamente para seu pró-
prio centro que, no entanto, atrai o homem para o infinito e desperta-lhe um desejo de
pureza e uma sede de sobrenatural.
287
282
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 107.
283
TRAKL, 276, 33, Canção noturna”. Grifei.
284
RIMBAUD, 252, 88-89, Vogais. Grifei.
285
V. MALLARMÉ, 212, 40-43, O Azul, devendo-se entretanto ressaltar que nesse carme se cuida de um ins-
tante de desesperança, em que o Tédioda existência (désert stérile de Douleurs) acaba por conspurcar a vi-
vacidade azulina do u.
286
ASSIS, 114, 138-139.
287
Apud CHEVALIER e GHEERBRANT, 160,107.
153
Aliás: Para onde nos atrai o azul? calei-me. Estava-se na teoria da alma.
288
Vê-se o quão propícia é, para as intenções anagógicas em Magma, o desabro-
char ciano da híbrida “flor nova”.
Bem a propósito segue-se a composição Anil, a qual, sendo uma variação do
Azul, beneficia-se pelo parentesco cromático de vários dos aspectos do texto que lhe é ante-
rior.
O que se tem é o retrato de outra tentativa ascensional:
O vôo, quase vertical, da jaçanã fugida
levantou meu olhar,
no dorso esbelto, de zinco polido,
à calota do céu,
(...)
Pensei que a ave fosse frechar, de cheio,
para pescar peixinhos escamados de ouro:
as estrelas que mergulharam de madrugada...
E que a água longe se abrisse
nos nove círculos concêntricos
das nove beatitudes...
Mas o pássaro foi breve um grânulo dissolvido...
Numa complexa imagem, o olhardo poeta acompanha o vôo como um pas-
sageiro no dorso esbelto, de zinco polido,da ave pescadora. Esta, numa ousada inversão,
parece que ia pegar “as estrelas que mergulharam de madrugada” no “céu todo água” e que
agora estão ocultas no índigo da tarde, como peixinhos escamadosno fundo da lagoa: agora
é o u que espelha a água, e não o contrário. Entretanto, resta baldada a expectativa do pas-
sageiro de se ver abrir na água cerúlea as nove beatitudesdos “círculos concêntricos
289
que
se abririam com o mergulho da jaçanã: porque a ave simplesmente dissolveu-se na distância
do u profundo, fugida” também do olhar de quem a contemplava. O que o poeta não per-
cebeu é que ela, ao se dissolver no Anil, atingiu o seu próprio objetivo de integração, tal
como o sol, o mesmo que se põe em Alaranjado” e que continua “a se desmanchar, como
um sabão redondo.
Pois o u quase sólido, em cobalto quido, e “todo água”, é como um
cadinho alquímico que contém o solvente máximo, em cuja tinta “Aniltudo deve se derreter.
O neófito, porém, ainda preso aos valores terrenos, alcança apenas o lado negativo da experi-
ência, tudo lhe parecendo em vão, e seu efêmero sonho espoca como a luz fugaz no seio de
uma bolha”.
288
ROSA, 12, 165 (Sobre a escova e a dúvida”).
289
V. que FERREIRA (47, 79-80, nota 65) acertadamente considera essa celeste imagem rosiana como uma re-
cuperação, ao avesso, dos nove círculos infernais de Dante.
154
Chegamos assim ao desengano de “Roxo. Nessa peça, o tom do ciclâmen do-
mina o quadro do velório de um “esposo morto, chorado por sua supérstite. O texto é aberto
por um pedido que alguém faz à viúva:
Deixa que o levem, agora,
que a mulher cristã da sala
já quer ir embora...
Essa “mulher cristã” é, segundo parece, uma das benzedeiras ou rezadeiras que
nos rincões do interior brasileiro, onde as sedes das paróquias são longínquas e não há sufici-
entes sacerdotes oficializados, usualmente se transformam em líderes leigas, conduzindo os
ofícios das liturgias mais básicas: são elas que batizam os recém-nascidos, organizam as no-
venas, benzem e exorcizam os doentes, concedem até extremas-unções e, como carpideiras,
encomendam os defuntos, o que é o caso em Roxo. É muito comum que tais personagens
atuem até mesmo de forma paralela à Igreja oficial, seja com ou sem o seu beneplácito.
As a alusão a essa rezadeira o poema prossegue nos seguintes termos:
(...) a mulher cristã da sala
já quer ir embora...
Ela desceu dos teus olhos de choro,
magnética e profunda, como um rastro
de ametistas mortas...
A indefinição do sujeito Elapode levar a pensar que se continue tratando da
mulher cristã: Ela” desceria o
seu próprio olhar
dos olhos de choroda viúva e, numa vi-
sada cinematográfica, passaria a observar o local onde se vela o morto. Mas, noutra jogada de
ambigüidade do autor, Ela” bem pode ser uma
lágrima
derramada pela viúva e cujo curso
amargo é lentamente seguido:
Ela desceu dos teus olhos de choro,
magnética e profunda, como um rastro
de ametistas mortas...
Passou pelas olheiras fundas,
pousou nos ramalhetes de saudades,
tocou na fita das coroas, longas
como equimoses...
E agora, : vai passeando,
de leve, pelos lábios, pelo rosto,
pelo corpo,
pelos dedos, duros, do teu esposo morto...
As Águas da serra”, deste jeito, continuariam a se mover nessa lágrima verti-
da.
155
Ao final da composição repete-se:
Ela quer ir embora...
Deixa que o levem, agora...
Também desta vez o Ela” fica ambíguo: pode ser tão-só uma reiteração do pe-
dido feito de início, atinente à mulher cristã da sala, mas também pode se referir, em proso-
popéia, à lágrima, a qual quer ir embora”,
i. e.
, quer permanecer em movimento, atendendo à
sua índole cinética, soltando-se da imobilidade do falecido e dos férreos dedos, duros,da
morte nos quais por último assentou. Nesta segunda compreensão, o rogo à viúva assume su-
tilmente contornos bem mais amplos: insta-se com ela para que deixe levar o corpo e para
que, apesar da tristeza, não se permita ela mesma prender pelos dedos, duros, do cadáver. É,
portanto, um admonitório à sobrevivente, que não deve deixar o luto paralisar a sua própria
vida, a qual cumpre conduzir adiante. De conformidade com o aviso evangélico,
(...) Jesus insistiu: Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Tu, porém,
vai e prega o reino de Deus
.
290
Viva, a viúva é quem continua: ela simboliza o neófito que, conforme vai sen-
do instruído, deve deixar para trás os despojos de seu
eu
antigo e mormente do ego a ser dis-
sipado pela culminante morte ritual. É possível que Guimarães Rosa tenha se utilizado da co-
nhecida simlica da maçonaria, alterando-a um pouco: os membros dessa sociedade chamam
a si mesmos de “filhos da viúva”, o que quer dizer que cada iniciado prossegue, como nova
pessoa herdeira de uma bagagem espiritual, o caminho encetado pelo iniciante que fora e que
se submetera à morte iniciática.
Por outro lado, há que se lembrar do mito egípcio de Osíris, o qual, assassinado
e esquartejado pelo irmão Seth (dito o Ardente), teve os pedaços de seu corpo reunidos pela
piedosa viúva Ísis, que o reconstituiu e com um sopro o ressuscitou para uma nova vida mais
elevada, no mundo dalém. A propósito, comentando um antigo escrito hermético grego cha-
mado
Codex Marcianus
(ou A Profetisa Ísis para seu Filho), datado provavelmente do séc.
I, Marie-Louise von Franz explica:
Ísis freqüentemente é citada como a viúva no texto e, portanto, desde seus
primórdios na alquimia, a pedra filosofal, o mistério, é chamada o mistério da viúva,
a pedra da viúva ou a pedra do órfão; havia uma ligação entre a viúva e o órfão, mas
tudo aponta para Ísis.
291
290
Lc
9.60, cf. tb.
Mt
8.22.
291
FRANZ, 177, 37.
156
Sob essa óptica, a viúva, por via de Ísis, acaba simbolizando a força Iniciadora
nos mistérios, a fonte da fecundidade mágica e a capacidade de regeneração daquele que esta-
va morto.
Reflita-se que a travessia da ponte do arco-íris comou com uma morte e ter-
mina com um velório. O significado do sacrifício da pomba em Vermelho” é complementado
pelo pedido para que se deixe levar o cadáver em Roxo, eis que o sacrifício é justamente
isto: a privação, a separão, o abandono de algo precioso. O que foi sacrificado, uma vez en-
comendado a Deus, torna-se intovel pelos que ficam, e por isso é que os mortos são enter-
rados ou cremados e as ofertas imolatórias, de uma ou de outra maneira, sempre destruídas, a
fim de que fique impossível o seu retorno ao mundo profano. Desta forma, os vivos devem se
apartar de seus mortos, mas não como se de algo sem valor, e sim como quem dise de algo
sagrado.
Note-se ainda um interessante detalhe: os ramalhetes de saudades(espécie de
florezinhas campestres) e as “coroasfúnebres desse texto prolongam a presença floral que
nos poemas iriados já havia aparecido como uma grande florcolorada em Vermelho, de-
pois sulfúreos e asiáticos girassóispintados de “Amarelo” e então a “flor nova” em Azul,
sem se esquecer das parentes “cortinas de avenca” em Verde”.
Por fim, faz-se oportuno assinalar que se no Ocidente a cor violeta normal-
mente traduz a idéia de luto, isto se explica pela tradição iconográfica medieval, que repre-
sentava Jesus trajando uma túnica roxa no decorrer da Paixão, o que por sua vez tinha origem
num simbolismo que via nesse tom o sentido de obediência, evocando a submissão do Cordei-
ro à vontade de Deus. O noviço, igualmente, deve ter a humildade de obedecer a seu destino e
a coragem de não esmorecer ante as duras provas que ainda deverá enfrentar antes do Renas-
cimento.
Considere-se agora que a travessia do arco-íris significou mais uma passagem
transposta pelo neófito. Ao descer a ponte irisada entre o Céu e a Terra ele se torna uma espé-
cie de pontífice, do latim pontifex, “apto a celebrare conduzir sua própria iniciação, uma vez
que passou por uma importante experiência propiciatória. O que falta para se passar às soleni-
dades dos Mistérios Maiores é aperfeiçoar e em seguida r em prática o ensinamento do sa-
crifício ou abandono dos pesos que atam o ser ao mundo profano: é o que veremos na próxi-
ma série de poemas. Compete contudo prevenir que este será apenas o como de um proces-
so de renúncia que se alongará até ao terço final das preces do poeta.
157
4. VIAGEM DE TREM
Dando prosseguimento à movimentação descendente do primeiro terço de
Magma, a ponte irisada que desceu dos Céus doravante se transforma numa bem mais terrena
linha férrea: as peças Desterro, Paisagem, Lunático, Reportagem, Sono das
águas
292
e “Na Mantiqueira, que formam a quarta e última parte do terço, ilustram uma via-
gem de trem, transporte expressamente mencionado no primeiro e no quarto textos do ciclo;
quanto aos demais, neles são colhidos elementos suficientes para se imaginar um quadro de
paisagens montanhosas vistas através da janela do veículo, o que é melhor examinar.
Desterrodiscorre então sobre uma árdua “viagemde “trem: o passageiro
se queixa de que “cada vez maisvão ficando duros os caminhos” e as estradas arrastadas
que serpenteiam por entre “as montanhas mais duras. Em certo momento se diz:
A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas...
O poema seguinte é justamente “Paisagem, cujo verso inaugural é:
No quadrilátero do arrozal...
À primeira vista a palavra quadriláteroparece se referir ao formato da plan-
tação de arroz no solo; no entanto, ela também pode facilmente ser compreendida como o li-
mite visual imposto pela esquadria de uma janela de trem, através da qual o viajante observa
uma “paisagem sem casas. Tal assertiva é confirmada pelo primeiro verso de “Lunático:
Vou abrir minha janela sobre a noite...
Além do mais, o poeta “Lunáticopensa sobre a hora
quando eu sair a sonhar pelas estradas noturnas,
que podem ser tanto as oníricas quanto as férreas ou, provavelmente, são umas e outras ao
mesmo tempo.
As uma expcita “parada” do trem” em Reportagem” e sua partida poste-
rior, nada há em Sono das águasque indique neste carme a continuação da viagem; todavia,
tampouco nada há que impeça que assim seja, isto é, as divagações nocvagas nesse texto po-
dem ser tomadas como que numa continuidade com os pensamentos sobre a lua em Lunáti-
292
É conveniente lembrar que neste estudo se utiliza a ordem dos carmes adotada em ROSA, 1, sendo que em
id., 2, Sono das águas” antecede Reportagem. Q. v., à pág. 468, a Lista dos poemas de Magma...
158
co. Por seu turno, a pa Na Mantiqueiratambém se ocupa do satélite, cuja visão evoca a
retomada da apreciação do horizonte noturno nas composições anteriores. Assim, mesmo
onde não há a menção expcita ao trem, fica sempre suficientemente claro que se está con-
templando uma “Paisagem.
Outra instigante circunstância também concorre para ligar esses seis poemas:
se no primeiro deles, Desterro, o relevo é montanhoso, o ambiente de “Na Mantiqueirasão
os elevados dessa bem conhecida serra.
Pode-se ainda identificar com facilidade uma significativa sucessão de dias e
noites que trai o transcorrer de uma viagem longa: em Desterrofica bem evidente que “A
tarde subiupara a noite”; já em Paisagem” cintilam os “alfinetes de sol; o Lunáticoso-
nha em outra “noite; em Reportagem” afirma-se que “O trem estacou, na manhã fria”; a
cena de “Sono das águas” é, pela terceira vez, noturna, e bem assim Na Mantiqueira”. Deve-
se divisar que a noite de “Desterro” é muito opressiva, Coagulada em preto, cor que se vai
diluindo ao luar de Lunáticopara se iluminar definitivamente com a lua que “Na Manti-
queira” se ergue
(...) mais clara que as outras luas,
quase um sol frio,
(...)
esfarelando luz...
Podemos ver agora, com mais vagar e detalhes, um a um os instantâneos dessa
nova fase do
itinerarium
mistagógico.
A locomotiva do “comboiopoético é a merencória peça “
Desterro
, que ex-
e o passo da serra, a queda cada vez mais acentuada do ser que,
exilado
da celeste presença
divina, vai indo
cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha,
o esforço maior, as montanhas mais duras...
O poeta, cansado e entristecido, sente-se como mais uma das “almas cheias de
distância, a penetrar no longe”
.
E dessa forma, levando-se em conta a
tristeza
torpe” e a
fa-
diga
desolada”, pode-se dizer que o noviço está, como no soneto de Olavo Bilac avocatório de
Dante, quase “
nel mezzo del camin
iniciático, às vésperas de iniciar o terço medial de
Mag-
ma
.
O neófito afasta-se também das cores do arco-íris da parte anterior, eis que,
Coagulada em preto,
159
a noite isolou as cousas dentro da tarde...
Trata-se de um momento difícil, de desanimada dúvida e falta de fé por parte
do aprendiz. Os sinais ascensionais e de descenso confundem-se, criando paradoxos de ex-
trema tensão: A tarde subiu do chãopara que a noite pudesse descer; o trem se esforça bra-
vamente por galgar a serra, mas cada vez” estão “as montanhas mais duras, mais íngremes,
e deste modo a composição, ao invés de subir, acaba por avançar em sentido contrário, des-
cendo sempre “mais longe, mais fundo,
e o barulho do trem foi um rumor de soçobro
no fundo de um mar sem tona.
Tudo porque a tristeza” que “pesava mais do que todos os pesos” atrai o poeta
para baixo, fazendo-o intuir que é por causadele e de sua “fadiga desolada, a fazer carga,
que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta, bracejava,
puxando com esforço vaes quase vazios...
– os quais, sem embargo, irão naufragar nesse abissal mar sem tona”.
Uma das razões para toda essa melancolia é que, embora a travessia da ponte
irisada tenha terminado em Roxo” com uma séria advertência para que abandonados fossem
os restos já vencidos do ego, o noviço em Desterropondera que ainda se encontra a eles
agrilhoado,
tão preso aos lugares
de onde o trem já me afastara estradas arrastadas,
que talvez eu não estivesse
todo inteiro
presente
ao horror dessa viagem.
É então a parte de si que deveria ter sido deixada para trás, e ainda não o foi, o
que segura o aprendiz no fundo: ele tem asas para alçar vôo rumo ao metafísico, mas tam-
bém tem raízes bem aferradas ao solo da matéria.
Rememorando-se que por enquanto estamos em vigência dos mistérios da ale-
gria, esboça-se nos versos finais uma estranha reação contra o desalento:
Nem mesmo foi a noite: foi a ausência
brusca e absurda do dia.
Tão definitiva e estranha, que eu me
alegrei
, esperando
o não continuar da vida,
o não-regresso da luz, o não-andar-mais do trem...
293
293
Em contraste com o não-regresso” e o não-andar-mais, o não continuarvem sem hífen. Assim também
em ROSA, 2, 60.
160
Esse contentamento extravagante, ao avesso do gáudio da nascença e da liber-
dade, é motivado pelo fraquejo do neófito, o qual acusa os efeitos da separação da Origem di-
vina, bem como as marcas de todo o cansaço da jornada. Desta maneira, o prazer libertista dos
mistérios do terço inicial começa em Desterropouco a pouco a se transformar na saudade
aflita que caracteriza os mistérios dolorosos do segundo terço
294
.
De tudo quanto foi visto até o momento extrai-se a ilação de que o Desterro
ora em pauta é um aprofundamento do abismo aberto entre o ser degredado e Deus, o que
provoca, em última análise, o tom consternado do poema. Segue adiante o trem e conquanto
sejam duros os caminhosde ida para o exílio, por eles “a gente vai,
só pensando na volta
,
tendo em mente apenas o regresso ao Princípio de tudo. Entretanto, sendo o progresso vital do
ser calcado sobre uma trajetória de
circulatio
, já sabemos que o ponto de chegada é o mesmo
de partida e, não sendo possível retornar sobre os próprios passos, o único meio de se alcançar
o Futuro é não se apegar ao Passado. O neófito, contudo, ainda
não nem sente
o liame aní-
mico que o ata ao Uno e, achando-se solitário, deplora a “ausência brusca e absurda” de Deus,
que lhe parece ser definitiva”: com isso, apesar de desejar a “volta, num momento de pros-
tração e desespero ele preferiria até mesmo o término da aventura,
o não continuar da vida,
o não-regresso da luz, o não-andar-mais do trem...
Mas a viagem prossegue e a tristeza é atenuada quando se aprecia, pelo qua-
driláteroda janela, a colorida “Paisagemde um garço “arrozal” cortado por
canais azuis de água polida...
e pleno de vida seria quiçá o mesmo dos sonhos da menina Maria Euzinha no conto Tresa-
ventura” (de
Tutaméia
), o arrozal lindo, por cima do mundo, no miolo da luz – o relembra-
mento.
295
O que vale dizer: relembramentodas Origens. De uma forma ou de outra,
Um
arrozal é sempre belo.
296
Ainda mais quando riscado, como o é em
Magma
, pela leveza das
libélulas verdes,
jóias faiscantes, broches de jade,
duplas cruzetas, lindos brinquedos,
294
V., a propósito, o carme “Ais do desterro, da mística espanhola Santa Teresa de Ávila (in: CARVALHO,
154, 133-136).
295
ROSA, 12, 174.
296
Id
.,
ibid
.
161
que voam caçando muriçocas. Os signos de ascenso e de descenso no poema ainda se cru-
zam: o vôo das libélulas brilhantes, embora “horizontal, somente por ser vôojá tende à
elevação, ao passo que, quando uma delas de caçadora se torna caça “de um sapo cinzento, o
símbolo, num primeiro instante, parece ser de poda da ascensão, de caimento.
Porém, “as outraslibélulas continuam aeroplanando,
(...) assestando
para o submersível,
os grandes olhos redondos,
com quarenta mil lentes facetadas...
Nessa imagem do submersívelna “água polida” dos Canais azuispredo-
mina não o sentido de queda, e sim o de imersão refrescante nas águas primordiais. Cuide-se
que as libélulas assestam a visão, preparando o mergulho. Pudesse o poeta emprestar as pode-
rosas quarenta mil lentes facetadasdos insetos e ver melhor o fioque lhe “corre por den-
tro, também conseguiria a proeza. No entanto, ainda não é a hora: sem tardança o espetáculo
da natureza ao sol
297
dá lugar à “noite” em que o Lunáticodevaneia.
E mais uma vez “a lua” domina a cena. Vai ela bem
alta a um terço do seu arco,
e, de fato, também o desfiar do primeiro terço do rosário magmático está quase no fim.
Ao passear pelo rosto do poeta, o luar faz com que ele sonhe
(...) com mares muito brancos,
de águas finas, como um ar dos cimos,
onde o meu corpo sobrenada solto,
e onde se ouve
(...) a rainha do País do Suave Sonho,
cantando no alto sempre o mesmo canto,
como a sereia do sempre mais alto...
Eis aí a lembrança da Iara, a “sereia” que não desce ao ser, mas ao invés cha-
ma-o para o sempre mais alto, esse “País do Suave Sonhocujas primevas águas finas” e
brancas são “como um ar dos cimosda serra. Aliás, o ambiente do texto atual, hídrico, sob o
luar e povoado por nelumbos” e “nenúfares, bem recorda a estrofe final do panegírico à
297
Remeto à lúcida análise que NASCENTES (91, 9-12) faz de Paisagem, destacando o autor os elementos
pictóricos utilizados por Guimarães Rosa na feitura desse poema e ademais traçando variados cotejos entre ou-
tros textos de Magma e contos de Sagarana.
162
Mãe dÁgua, em que se fala sobre “a lua e as ninféias” e a “concha carmesim de uma vitória
régia”. De modo bem semelhante às ervas, o Lunático” embevecido flutua, “adormecido e
vido, em meio a vagas correntes numa direção oposta à das Águas da serra, as quais
cantavam nas pedras a canção do mais adiante” e viviam no lodo a verdade do sempre des-
cendo. O neófito deseja, como nos versos derradeiros de “Desterro, que as oníricas ondas
retornem à Fonte, ao sono pleno dos paraísos perfeitosde Deus,
onde remoinham as formas inacabadas,
onde vêm morrer as almas, afogadas,
e onde os deuses se olham como num espelho...
298
Não há dificuldade em perceber que “as formas inacabadassão os seres nas-
cituros ou renascituros, ainda não de todo formados, enquanto que “as almas, afogadas,são
as criaturas já novamente imersas em Deus e o “espelhoquido em que “os deuses se
olham” é o intervalo da existência, o palco em que os seres manifestados desempenham seus
papéis vitais e exercem sua liberdade de improvisação. A unir esses três instantes está o bran-
co mar dos nefares grandes, o Princípio aquático donde tudo proveio, onde tudo se move
e para onde tudo regressa. É nesse oceano que o Lunático” anseia soçobrar, mesmo que du-
rante apenas o breve suspiro de um sonho diáfano:
Para que eu soçobre no mar dos nenúfares grandes,
(...) onde os deuses se olham como num espelho...
299
Com esse desejo o poeta parece ter invertido a polaridade negativa do signo do
naufrágio no fundo de um mar sem tona, como foi assinalado em Desterro, imprimindo
ao soçobro uma nova carga positiva. Incumbe por ora ao Lunáticoapenas não se deixar en-
ganar, como enganou-se “A anta” em Luar na mata (II Rapto), ao tomar a ilusão lacustre
pela vera lua
300
.
Outrossim, não se deve perder a chance de fazer notar que o último verso re-
mete à noção sufista segundo a qual o Universo é como se um “conjunto de espelhos nos
quais a Essência infinita se contempla sob múltiplas formas ou que refletem em diversos
298
Excepcionalmente transcrevo este trecho de ROSA, 2, 64. Em id., 1, foi escrito, num evidente engano: onde
vêem morrer as almas; anote-se que a forma original do verso era: onde as almas infelizes vêem morrer, afoga-
das,tendo sido a mão alterada a posição de as almas” e eliminado o adjetivo infelizes. V. nota 583 (pág.
312).
299
Anteriormente: E eu soçobrarei no mar dos nefares, o que foi corrigido a mão.
300
V. Mt 17.15: Senhor, compadece-te de meu filho, porque é lunático e sofre muito; pois muitas vezes cai no
fogo e outras muitas, na água”.
163
graus a irradiação do ser único
301
. Essa imagem também faz parte dos idrios platônico e
neoplatônico, dentre outros.
Podemos então concluir os comentários sobre “Lunático, dizendo que esse
texto parece responder à tristeza e falta de fé que pesaram em Desterrocom um leve aceno
de esperança, ainda que envolta em brumas de sonho.
E precisamente esperança é o que o poeta viajante tenta dar, através de um so-
cito sorriso, a um companheiro de estrada, o homemque aparece em Reportagem
302
.
A nota pungente do poema é marcada pela paragem momentânea do trem
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...
Mas o homem” em tela “saltourápido da composição, sem perceber o gesto
amistoso do narrador, e
(...) ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas...
Muito se pode tecer a respeito desse carme. Destaque-se, por primeiro, que a
intenção do poeta em chamar o possível doente e lhe sorrir espelha uma tentativa de aproxi-
mação diametralmente oposta à reação de “Todos os passageiros, que demonstraram
(...) medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...
303
– um medo tão entranhado que acaba por contaminar a própria máquina:
O trem se s logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...
304
A conduta isenta do narrador, que não obedece à regra geral de afastamento,
parece relacionar-se com alguns episódios dos Evangelhos, em que Jesus curou leprosos im-
pondo-lhes as mãos
305
, contrariando o rigor da lei mosaica que proibia que os impurosto-
301
Titus Burckhardt,
apud
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 396.
302
De acordo com o que já se preveniu, lembro que em ROSA, 2 (calcada sobre a segunda versão manuscrita de
Magma
), Sono das águas” antecede este carme, e, no entanto, neste trabalho observa-se a ordenação dos textos
conforme efetuada na primeira versão manuscrita do livro (
id
. 1). V. atrás as explicações às págs. 23-25 (Intro-
dução, tópico 4).
303
O mais incisivo vobulo
medo
, manuscrito, substitui
receio
, riscado.
304
O verbo
s
foi manuscrito e sotoposto em substituição à forma anteriormente datilografada
z
, a
qual foi riscada.
305
V., por exemplo,
Mt
9.1-8,
Mc
2.1-12 e
Lc
5.17-26.
164
cassem ou fossem tocados pelos puros. Dentro de suas exíguas possibilidades, o poeta afa-
velmente procura agir como o Cristo, expondo-se até mesmo à desconfiança e ao temor dos
outros passageiros, a quem o sorriso lenitivo e o intento de chamar o indivíduo que desceu do
trem podem não ter passado despercebidos
306
.
No entanto, malgrado a inquietação que a personagem causou, em momento
algum o texto deixa claro que se trate de fato de um doente: tratado apenas como Um ho-
memou o homem, talvez seja algum caridoso que foi servir ou visitar os necessitados do
Leprosário. Constata-se que no bauzinho humilde” lançado ao chão
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro...
Não fica, pois, estreme de dúvidas se o Socorroé algo que o homem busca
para si ou que procura prestar a outrem. A hermenêutica do poema deve levar em conta essa
possibilidade.
Temos então várias vertentes: se a personagem for um leproso, a ididade de
Reportagemtalvez repouse, considerando-se a visada iniciática, muito mais sobre a cir-
cunstância de que o breve consolo prestado pela solicitude do viajante não encontra seu desti-
natário, eis que o possível hanseniano parte com pressa,
(...) sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...
Descrente da bondade das outras pessoas e abatido pelo seu mal, o enfermo –
caso o seja não recebeu o ligeiro conforto que o poeta tentou lhe dar, preferindo ficar à mar-
gem da linha” do trem e da vida: falto de coragem e de forças, o homemprefere estacio-
nar, negando o caminho que ainda teria pela “frente” e dando as “costas, que suportam sozi-
nhas seu fardo, a tudo. A parada do Leprosáriorepresentaria deste modo a barragem ou ne-
gação do movimento que compete a todo ser, o deixar de correr da linhado rosário. E, sob
tal intelecção, sublinhe-se que o termo Leprosáriopode até ser imaginado como uma pala-
vra-valise que junge uma faceta mórbida (
Lepr
-) a outra de natureza mais sã (-
rosário
),
como se a doença, numa “parada, corrompesse por um átimo o movimento anagógico.
306
Guimarães Rosa abordou a hanseníase em diversas outras passagens de sua obra. V. a respeito o esclarecedor
trabalho de BUENO, 30, em que, dentre outros aspectos, a autora fala da
desumanização
a que os leprosos são
muitas vezes submetidos pelas populões aterrorizadas: em vez de homem, o doente passa a ser o leprento,
o maldelazento, o guaimoré, a coisa viva(pág. 591). Não obstante, na peça de
Magma
a personagem é
sempre encarada como um verdadeiro homem.
165
Por outro lado é também possível que, ao invés, o leproso simbolize exata-
mente o desprendimento da corrupvel matéria à qual o neófito ainda está tão apegado. O
homempode assim ser alguém que, apesar da moléstia física, já esteja num estágio bem
avançado de crescimento espiritual, talvez um iniciado que abandona tudo por não necessitar
de mais nada que o mundo vão tenha a lhe oferecer
307
, tal como o padre do conto Umas for-
mas, de Tutaméia, de quem se diz:
Todavia, desde a data, ele se transformara – afinado, novo diáfano, reclaro,
aí se sorrindo – parecia deixado de toda matéria. Também, e tão velhinho moço, de-
pois logo morreu, suave, leve, justo, na sacristia ou no jardim, de costas para tudo.
308
Note-se que, na peça de Magma, o homem deixa o baú à beira da linha” e vai
“andando, sem qualquer preocupação com a bagagem. Neste caso, o fulcro de “Reportagem
seria a libertação das pesadas contingências da vida, o abrencio de toda matéria. O racio-
cínio mantém-se o mesmo se a pessoa em questão não for um doente, mas apenas um compa-
decido visitante àquela instância. Diante da lição de desapego que o neófito ainda está por
apreender de todo, esta interpretação se afigura bem adequada para o continuum da trilha
mistagógica. A prevalecer tal hitese, o que ficaria então assinalado é que, mesmo por dentro
da corrupção da mais maligna enfermidade que possa acometer o corpo, sempre fica intacta a
capacidade cinética do espírito que procura a elevação; e a palavra “Leprosáriooutra vez dá
conta desse sentido, pois contém o componente trissilábico -rosário, o qual como que pare-
ce querer se desprender, talvez até num arranco de máquina de ferro, da fixidez ensejada, tal
qual numa “paradamalsã, pelo monossílabo Lepr-.
De um jeito ou de outro, o homemfica, o rerter vai e se depara com o
Sono das águasmanifestadas: nessa composição o grosso do fluxo aquático, que estava em
seu movimento natural de descida desde as Águas da serra, é estancado. Se no poema de
abertura do terço era Deus quem dormia, no texto atual
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos dágua,
nos grotões fundos.
307
Cabe lembrar, apenas a título de curiosidade, que, consoante Porfírio, Plotino teria sido acometido de uma
grave doença de pele diagnosticada como lepra, em razão da qual abandonou a tumultuada Roma e se retirou
para uma propriedade rural em Campânia, onde faleceu. Para esse particular e outros elementos acerca da bio-
grafia de Plotino, v. BRUN, 145, passim.
308
ROSA, 12, 183. Grifei.
166
Nesse momento sem vida,
Quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar
a queda
e o choro,
que a água foi dormir...
E eis que dormindo
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
Pode-se então vislumbrar, mesmo no ócio aquático, uma fagulha criativa, um
esmaecido reflexo do sono pleno dos paraísos perfeitosde Deus: ao se tornarem as águas
correntes em dormida água estagnada, podem aí germinar sonhos. Mas
Há uma hora certa
para esse descanso, uma hora
morta
, passada a qual a índole hídrica da vida há de prosse-
guir caminho. E ainda no instante do cochilo uma parte do ser tem que permanecer em vigília
e levar avante a missão motriz, eis que o movimento faz parte da natureza do ser. É assim que
(...) nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...
Precisamente “a água dos olhos– olhos cuja tarefa é
ver
continuam vigian-
do. Não se olvide que, em Roxo, a metagógica lágrima da viúva
quis
ir embora”,
quis
se
manter em ativo deslocamento. As outras águas, ao chegar ao mais fundo, por um certo inter-
valo de tempo estacionam, mas o choro insone adverte que cumpre estar sempre atento para
não se repetir o engano da onça, do tamanduá e da anta em Luar na mata (II Rapto). Aliás:
Com o que proferiu Gotama Buddha, o
pastor dos insones
, sob outras bana-
neiras e mangueiras outras, longínquas:
Aprende, do rolar dos rios,
dos regatos monteses, da queda das cascatas:
tagarelante, ondeia o seu caudal
só o oceano é silêncio.
309
À luz do que se recorda que o definitivo repouso do ser, em silêncio, só será
possível com a chegada à Foz e ao oceano, ems a morte que propicia o término do Des-
309
Id
., 4, 217 (Minha gente”). Grifei.
167
terro” e do turbulento curso de fuga das Águas da serra. O neófito, destarte, sem se render a
tosquenejos, permanece com fé. E a perseverança lhe será recompensada: Na Mantiqueira”,
Por entre as ameias da cordilheira
dormida
a lua se esgueira,
como um lótus branco...
e logo
Dá para o alto um arranco
repentino,
de balão sem lastro.
E sobe
...
Necessário esclarecer que o nome da serra, vindo do tupi, significa “lugar que
goteja: embora a cordilheiradurma e a “cachoeiraque brotara em Águas da serratam-
bém tenha, em Sono das águas, cessado a “queda” e ido dormir, é certo que restou um fio
remanescente, que é a água dos olhospervígeis a gotejar. E, tal como água e luz foram en-
trançadas nos versos finais da peça de abertura do terço em pauta, Na Mantiqueira” a lua
também se esvai esfarelando luz, como um sangue fulgurante que goteja dum corpo ferido
pelas “ameias da cordilheira”.
Um fator de relevância é que o satélite é de pronto associado ao fecundo sim-
bolismo dealbante do lótus branco, atuante desde o Antigo Egito e do qual tem pertinência
destacar-se rapidamente alguns aspectos: A flor do lótus é, pois, antes de tudo, o sexo, a
vul-
va arquepica
, garantia da perpetuação
dos nascimentos e dos renascimentos.
310
Além disso,
Os grandes livros da Índia fazem do lótus, que surge da obscuridade e
desabrocha em plena
luz
, o símbolo do
crescimento espiritual
.
311
Por fim, essa flor, ninfcea como as plantas de
A Iara” e Lunático(o lótus-sagrado indiano é uma das espécies de “nelumbos), no bu-
dismo é vista como “a
natureza de Buda
, não afetada pelo ambiente lamacento do
samsa-
ra
312
, ou seja, o ardor anímico do neófito que não é apagado pela queda na matéria:
Como um lótus puro, admirável, não é de modo algum maculado pelas águas,
eu não sou maculado pelo mundo.
313
310
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 558. Grifei
311
Id
.,
op
.
cit
., pág. seg. Grifei.
312
Id
.,
ibid
. Grifo dos autores.
313
Anguttaranikaya
, 2.39,
apud id
.,
op
.
cit
., pág. 558-559.
168
Em conseência, nada melhor do que coroar a primeira etapa do itinerarium
mentis ad Deum com uma plácida postura de lótus (em sânscrito, padmasana, e em japonês,
zazen, posição em que Siddharta Gautama, o Buda, teria atingido a iluminão).
Quanto à lua em si, nesse poema que encerra o terço inicial de Magma pode o
astro ser tomado em seu simbolismo alquímico de representação da pedra em branco, o ar-
gênteo resultado da Pequena Obra ou a aquisição da experiência exigida nos Pequenos Misté-
rios da alegria. Depois de ter sido percorrido o primeiro ciclo vital, o poeta acompanha o im-
pulso ascendente do satélite, que dá novo rumo ao deslocamento descendente que até então
havia caracterizado o fluir das águas manifestadas. É mister realçar que a lua se ergue com um
ímpeto
de balão sem lastro...
com o que se pode concluir haver o noviço deixado para trás todo o peso da tristeza que o
ameaçara em Desterro– o lastroque o ancorava às regiões mais inferiores do mundo pro-
fano –, alcançando portanto um salto decisivo para a elevão.
O plenilúnio Na Mantiqueira” é o acme do Luar, composição que prognos-
ticara o arranco/ repentinodo satélite “do caule longo/ da Via Láctea”; todavia, se antes a
lua era frágil a ponto de cair a um simples toque, agora ela é vigorosa,
(...) mais clara que as outras luas,
quase um sol frio...
É ainda oportuno fazer notar que o satélite só pôde ressurtir na noite da “Man-
tiqueira” porque o sol divino lhe franqueara espaço ao pôr-se em Alaranjado. Podemos as-
sim dizer, invocando a Cabala de Luria, que o Deus solar se contrai no tzimtzum para abrir o
tehíru onde, as a catástrofe da sheviráh há-kelim, o ser humano lunar poderá exercer sua li-
berdade no desempenho do tikún.
E desta forma a lua, espelho do brilho do sol, sobe
esfarelando luz pelos rases, do bojo
farpeado nas pontas da montanha...
imagem que evoca toda a reluzente alegria que deverá advir mesmo dos ferimentos provo-
cados pelos percalços do acidentado e pedregoso trajeto iniciático, ao mesmo tempo em que
demonstra que a visão do neófito já está progressivamente se abrindo para a contemplação,
conquanto o que ele veja agora seja apenas o reflexo do verdadeiro fulgor: o que importa en-
169
tão é se dedicar também ao aprendizado do sentimento. Por outras palavras, a noite em que a
lua desabrocha solta
como um lótus branco
chegou: onde estará a Mãe dÁgua? A busca do ícone feminino é o que define o teor do pró-
ximo terço.
170
CAPÍTULO III.
DISTÂNCIA SENTIMENTAL
Passava-se então à iniciação propriamente dita, da qual
Plutarco nos dá uma velada descrição.
KURT SELIGMANN,
sobre os Mistérios de Elêusis
O amor é fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói e não se sente...
CAMÕES
... Deus é amor.
1 JOÃO
, 4.8,
in fine
Se no primeiro terço de
Magma
o
eu
toma consciência de si próprio e começa
debilmente a
ver
, no segundo ele toma plena consciência do intenso desejo que
sente
pelo
Outro
longínquo, do qual tenta se aproximar. Essa busca de aproximação assume a forma de
um impulso amoroso: o
Outro
, demasiado distante, para ser compreendido num plano propín-
quo é amado na figura do
outro
que lhe faz as vezes de
símbolo
e que
veste, para adequar-se à
voz masculina do poeta, a
persona
da
efígie feminina tudo exatamente como o sol, cuja res-
plendência abrasante é por ora projetada na imagem mais fria do espelhamento lunar. São
portanto
eros
, o amor sensual,
e
ágape
, o amor espiritual, conjugados num só e mesmo arre-
batamento anagógico, pois que o
quid
supremo dessa demanda sentimental é a subterrânea
aspiração do ser humano em realizar a osculatória
conjunctio
da sua alma fugitiva com a
Alma fontana, o divino momentoque será “o momento de todos os momentos(de acordo
com Impaciência Ie “II). Cuida-se então dos
novos amores em busca de caminhos,
tal
como expresso no poema “Águas da serra: o mesmo
itinerarium mentis ad Deum
percorrido
por novos modos de se conceber a relação entre o ser e sua genetriz. Ao ensejo, cumpre anotar
que as refrescantes águas evocativas das primícias divinais, as quais aparecem em várias das
composições do primeiro terço, bem como de forma decisiva no terceiro, estão praticamente
ausentes do segundo (à exceção do rio no texto O Caboclo dágua”, a ser visto oportuna-
mente, e outras alusões rápidas): entende-se que, no entremeio da saída fluvial e do retorno
pluvioso, o poeta sofre a abrasadora saudade de suas Origens, das quais se encontra afastado.
Para bem compreender a natureza do amor no terço medial deve-se aproveitar
o magistério de Benedito Nunes, que no estudo O amor na obra de Guimarães Rosa”, ao
171
abordar as diferentes formas do impulso erótico nas personagens Diadorim, Nhorinhá e Ota-
cília, de Grande Sertão: veredas, reporta-se a
um escalonamento semelhante ao da dialética ascensional, transmitida por Diotima a
crates em O Banquete, de Platão: eros, geração na beleza, desejo de imortalidade,
eleva-se, gradualmente, do sensível ao inteligível, do corpo à alma, da carne ao espí-
rito, num perene esforço de sublimação, que parte do mais baixo para atingir o mais
alto, e que, em sua escalada, não elimina os estágios inferiores de que se serviu, por-
que só por intermédio deles pode atingir o alvo superior para onde se dirige.
Procuraremos mostrar, neste estudo, que a tematização do amor, na obra de
Guimarães Rosa, repousa principalmente nessa idéia mestra do platonismo, colocada,
porém, numa perspectiva mística heterodoxa, que se harmoniza com a tradição her-
mética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, que exprime, em lin-
guagem mítico-poética, situada no extremo limite do profano com o sagrado, a con-
versão do amor humano em amor divino, do erótico em místico. Tal seria a síntese da
visão erótica da vida entranhada na criação literária de Guimarães Rosa.
314
Prosseguindo, ao discorrer sobre a alma Nunes pondera:
Una também em sua essência, transcendente e impessoal, ligada ao corpo
pela mesma necessidade interna que forçou a Unidade a irradiar-se em emanações
escalonadas que constituem o Todo universal, – ela busca incessantemente restaurar
a sua integridade, recuperar a sua perfeição origiria. Essa vontade de restituição
manifesta-se no élan
amoroso e na ascese mística, duas vias de retorno que se equi-
valem, pois o homem tenta vencer, por meio delas, a alteridade, identificando-se com
outrem no amor ou com a divindade, na culmincia do êxtase.
A Alquimia exprime simbolicamente a recuperação da alma, como um proces-
so de espiritualização, que passa por etapas sucessivas e depende de determinadas
operações, as quais têm por fim reunir o que foi separado, fundir as partes dispersas
da unidade primordial que se fracionou, ultrapassar a diviso elementorum. Possuindo
um sentido erótico e místico, o que a particulariza é que ela visa formar o espiritual
por uma ativação da matéria, e alcançar o superior por meio de uma explicitação das
potencialidades contidas no inferior, sem quebra do princípio da unidade subjacente
de todas as coisas.
315
O estudioso conclui que, Em Guimarães Rosa, o amor carnal gera o espiritual
e nele se transforma.
316
A situação em Magma é semelhante, cum grano salis. Tudo o que Nunes dis-
cute a respeito da obra madura de Guimarães Rosa é aplivel, praticamente ipsis verbis, ao
livro de 1936, importando que ao longo de toda a poética rosiana o amor sensual jamais é
visto como incompavel com o amor teosófico mas, pelo contrário, ambos são toda vez to-
314
NUNES, 67, 145-146.
315
Id., op. cit., págs. 152-153. Grifo do autor.
316
Id., op. cit., pág. 156. E complementa: Por isso, o seu misticismo [o rosiano], platônico quanto à essência,
segue uma linha erótica, (...) heresia contida na idéia do amor como (...) sexo e espírito, que se desenvolve se-
gundo uma dialética imanente.Ainda (pág. seg.), Essa idéia (...) inspirou o erotismo místico dos trovadores
(...) e se consubstanciou nas figuras exemplares de Tristão e Isolda amantes perfeitos, que uniram, num só
amor, (...) a volúpia e a espiritualidade.
172
mados como duas vias de retorno que se equivalem, ao ter como fito a mesma vontade teo-
gâmica de “reunir o que foi separado, fundir as partes dispersas da unidade primordial que se
fracionou, ultrapassar a diviso elementorum. Contudo, podemos verificar em Magma o dife-
rencial de que o impulso amoroso erótico é empregado mais como um signo do impulso amo-
roso stico: eros não tanto se transmuta nem propicia o aparecimento de ágape, e sim, eros
está como símbolo da procura do ser pelo ágape. Destarte, ao confessar o desejo que nutre por
sua “esquiva amada(nos termos propostos pela pa “Meu papagaio), o neófito que reza o
segundo terço do rosário magmático está em verdade e sempreconfirmando simbolica-
mente o sublime amor que o atrai à sempiterna Alma Mater. A “esquiva amada, por conse-
guinte, é sempre a efígie simbolicamente apreensível da Alma Mater inapreensível pela visão
e os sentidos. Esta é a Distância sentimental” a ser vencida por meio do símbolo amoroso
criado pelo homem, o qual por sua vez atua dentro do universo simlico advindo de Deus
317
:
1
Mesmo ao sonhar contigo,
só consigo que me ames noutro sonho
dentro do meu sonho primitivo...
Vimos que Benedito Nunes mencionou O banquete platônico e “a tradição
hermética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, e ao fazê-lo acenou com
o caráter de nitente vetustez de que se reveste a idéia universal que entrelaça os amores eróti-
co e hierático. Entretanto, hodiernamente a mentalidade ocidental mais corrente tende a disso-
ciar e mesmo a r em oposição esses modos de amar, sufocando o liame entre eles; a primei-
ra causa disso é a extrema pudicícia imposta, durante séculos, pelas doutrinas judaico-cristãs
mais ortodoxas, castração que foi incrementada pelos processos degenerativos internos expe-
rimentados pelos simbolismos eróticos, constantemente submetidos a graves erros de inter-
pretação licenciosa perpetrados mesmo no âmbito do sistema em que a simlica se insere e
que acabam por desviar e liberar os significantes de seus significados originais. Com o intuito
de apagar algum possível resquício preconceitual, tem valia trazer à tona certos notáveis espa-
ços do pensamento stico em que o erotismo é considerado com relevância. É imperativo
não se olvidar, em momento algum, que temos em foco um simbolismo, e assim convém citar
o teósofo sueco Emmanuel Swedenborg, para quem O macho e a fêmea foram feitos para se-
rem o modelo perfeito da união entre o bem e o verdadeiro.
318
317
Digamos com PESSOA, 234, 45: Eu, o que estive em ilusão toda esta vida/ Aparecida,/ Sou grato Ao que do
pó que sou/ Me levantou./ (E me fez nuvem um momento/ De pensamento.)/ (Ao de quem sou, erguido pó,/ Sím-
bolo só.)Grifei.
318
Apud ALEXANDRIAN, 98, 421.
173
Antes que tudo, deve se realçar o fato de que em todas as religiões politeístas
da Idade Antiga a sexualidade foi um fator determinante nas alegorias das relações dos seres
humanos com os deuses (teogamias) e também das relões cosmogônicas entre os deuses
(hierogamias), do que resultou um fértil acervo de representões eróticas, o mais das vezes
calcadas em profundas significações metafísicas. Foi assim nas civilizões da Mesopotâmia,
na Grécia, na China, complexos culturais em que a mitografia de cena lasciva e a prostituição
sagrada floresceram com vigor. Freqüentemente havia uma ligação marcante com o impor-
tanssimo sentido de fertilidade dos campos e rebanhos e mesmo das populões humanas ou
com a renovação primaveril da natureza, como nas formas mais ancestrais dos cultos a As-
tarté, Príapo e Pã. Além disso, por toda a Ásia e a orla do Mediterrâneo ocorreram numerosos
relatos lendários de encontros sexuais havidos entre as filhas dos homens” e anjos ou deuses,
pelos quais as mulheres tiveram a oportunidade de subtrair ou foram pagas com segredos de
técnicas fabris e metalúrgicas
319
. No panto egípcio destaque-se, dentre outros mitos, a trans-
cendentalidade emprestada ao amor entre os gêmeos Osíris e Ísis, sendo um dado interessante
o de que, nalgumas versões da lenda, a deusa teria sido fecundada pelo próprio irmão ainda
quando no ventre materno e nascido já grávida do filho Hórus.
Na Índia se sobressaem os tons sensuais que colorem o enlace de índole cósmi-
ca entre Shiva manifestante e sua parte feminina, Shakti manifestada, e a união entre os espo-
sos Krshina e Raddha (amor celebrado por Jayadeva no Gita Govinda), aspectos religiosos
que se sustentam até os tempos atuais. Por outro lado, os Upanixades e o Mahabharata são
abundantes em passagens nas quais o prazer sensual e o êxtase espiritual se confundem. Cite-
se outrossim, falando agora sem preocupação diacrônica, os cantos de amor da princesa Mira-
bai (1498-1550), os de Toukaram (1598-1650) e os novíssimos de Shri Anandamayi Ma
(1896-1982). A propósito, é de se recordar também o papel fundamental do sexo nalguns ritu-
ais do Tantra e da Ioga; em tal contexto, deve-se aludir à história do legendário e polêmico
lama tibetano Drukpa Kunley (1455-1570), iogue itinerante tido como um santo e que, ao
longo de suas peregrinões, dispunha-se a iluminar através do sexo tântrico as mulheres que
encontrasse, nas quais se revelassem os sinais de dakini, a emanação feminina dos Budas
320
.
319
V., por exemplo, Gn 6.1-4 (e, na Bíblia de estudo Almeida, 130, a nota a ao versículo 6.2), em cotejo com a
escatologia acrifa do Livro de Enoch. V. tb. FRANZ, 177, 36-37.
320
É útil trazer à luz, via CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 319, o nexo que se estabelece entre a figura das
dakinis e a linguagem: A expressão ngua das dakinis designa o sentido íntimo dos termos utilizados nos textos
tântricos. O yogin que executa a cosmização do próprio corpo deve também viver a destruição da linguagem, in-
dispensável à sua preparação espiritual. Ela rompe o universo profano substituindo-o por um universo em níveis
conversíveis e integráveis. Não é apenas para esconder aos o-iniciados o Grande Segredo, que ele é convida-
do a compreender bodhicitta ao mesmo tempo como Pensamento de Iluminação e sêmen viril. O yogin deve pe-
netrar, pela própria linguagem, pela criação de uma ngua nova e paradoxal, até o nível onde a semente se
174
Ressalve-se que quase sempre a inquietação erótico-stica deu ensejo à pro-
dução de ricas literaturas, sendo importanssimo saber discernir, caso a caso, o que resulta re-
almente em práticas de acasalamento cerimonial daquilo que é pura imagem ou alegoria. To-
davia, em qualquer hitese persiste sempre o fundo religioso essencial, logicamente pondo-
se à parte os fesceninos excessos decorrentes das deturpões interpretativas. Interessa-nos
mais dedicar nossa atenção preferencialmente aos escritos alegóricos.
Dentre os textos erótico-hieráticos da Antigüidade adquire vulto o paradigmá-
tico Cântico dos Cânticos (ou Cantares) atribuído a Salomão:
Cântico dos Cânticos é um poema distribuído em estrofes, nas quais, alterna-
damente, dois namorados manifestam os seus recíprocos sentimentos numa linguagem
apaixonada, de alto nível literário e brilhante colorido. Tudo nesse poema enfeitado
de símiles e esplêndidas metáforas orienta-se para a exaltação do amor entre o ho-
mem e a mulher, nessa irresisvel e mútua atração que inspira as palavras e determi-
na as atitudes dos namorados. Em Cântico dos nticos, o esposo olha a esposa como
um modelo de perfeições, contempla-a pelo cristal daquilo que considera mais apete-
cível, seja vinha ou fonte, jardim ou nardo e açafrão(...). A beleza dos namorados
e as delícias do amor são como os frutos da terra, os lírios, o vinho, o leite ou o favo
de mel (...). Também, desde os mais altos expoentes da lírica, o poema expressa, às
vezes, a angústia pela ausência do amado (...), a felicidade do encontro (...) e, sobre-
tudo, o desejo intenso da mútua entrega (1.2-4; 8.1-3).
321
Fique bem claro que
Aquilo que (...) se deve ressaltar é que a figura da união conjugal, tão bela-
mente louvada por Cântico dos Cânticos, é usada freqüentemente no Antigo Testa-
mento como símbolo excelso da aliança de Deus com Israel (Jr 2.1-3; Ez 16; Os 1-3)
e, no Novo Testamento, do relacionamento de Cristo com a Igreja (Ef 5.23-32; Ap
21.2, 9).
322
Chamo a atenção, dentre os textos mencionados, para Ezequiel 16, no qual Je-
ová, através do profeta, diz o seguinte a Jerusalém(cito o versículo 8):
Passando eu por junto de ti, vi-te, e eis que o teu tempo era de amores; esten-
di sobre ti as abas do meu manto e cobri a tua nudez; dei-te juramento e entrei em
aliança contigo, diz o SENHOR Deus; e passaste a ser minha.
Em retorno aos Cantares, temos que a hermenêutica desse epitalâmio sofreu
variões ao longo da História, mantendo-se porém inalterável o entendimento de seus versos
de cunho oarístico como expressão de um bem mais alto ideal metafísico:
transmuta em pensamento, e inversamente.Grifos dos autores. Parece restar bem cristalina a convergência com
o pensamento poético de Guimarães Rosa.
321
Bíblia de estudo Almeida, 130, 715 (Antigo Testamento).
322
Ibid.
175
Assim, o Judaísmo o interpretou como uma exaltação alerica da aliança de
Jacom Israel. Depois, a Igreja viu o seu relacionamento com Cristo prefigurado
nos namorados protagonistas do poema.
E, por último,
a mística cristã descobriu ne-
les a mais perfeita referência à união da alma com Deus
.
323
A referência à stica cristã” traz à mente os nomes de Santa Teresa de Ávila
e de São João da Cruz, em cujas fervorosas obras espirituais o extremado desejo amoroso por
Deus é quase sempre exprimido através de metáforas sentimentais e declarações apaixonadas:
Atirou-me com uma seta
envenenada de amor,
e minha alma ficou feita
una com seu Criador.
Eu já não quero outro amor,
que a meu Deus me hei entregado,
meu Amado é para mim,
e eu sou para meu Amado.
SANTA TERESA DE ÁVILA
Quão manso e amoroso
Acordas em meu seio
Onde em segredo só tu moras:
E em teu aspirar gostoso,
De bens e glória cheio,
Quão delicadamente me enamoras!
SÃO JOÃO DA CRUZ
324
De São João da Cruz rememore-se ainda a Noite escura” (texto que aborda-
remos com mais vagar em relação a outra etapa de
Magma
325
) e sobretudo as Canções entre a
Alma e o Esposo, uma metáfrase dos
Cantares
.
Uma obra stica de importância ímpar é
A Divina Comédia
, sobre a qual não
é
necessário se alongar, eis que é suficientemente conhecido o semblante transcendental do
amor votado por Dante a Beatriz. Apenas para rememorar e para fazer notar o elo entre o
material (os formosos olhos de Beatriz) e o imaterial (“aquela que elevou a minha alma), o
Canto XXVIII de “O Paraíso” assim se inicia:
Tendo
aquela que elevou a minha alma ao Paraíso
me revelado a verdade
, por
completo oposta à vida atual dos míseros mortais, como o que vê em um espelho a luz
da tocha colocada atrás dele, antes de tê-la visto ou pensado nela, se volta para veri-
ficar se o cristal copia a chama com exatidão, e constata que sim, como a nota musi-
cal combina com o compasso, assim recorda a minha memória que,
ao fixar a vista
nos formosos olhos de Beatriz, o amor estendeu as suas redes para aprisionar-me
.
326
323
Ibid
. Grifei.
324
In: CARVALHO, 154, respectivamente págs. 139 (estrofe final de Sobre aquelas palavras
Dilectus meus
mihi
)
e 157 (estrofe final de Chama viva de amor).
325
V. à frente as págs. 362-363 (Capítulo IV, tópico 3) e 411 (
loc
.
cit
., tópico seg.).
326
ALIGHIERI, 101, 339. Grifei.
176
Por seu turno, o final do Canto XXXIII de “O Paraíso, chave-de-ouro da Co-
média, é:
Assim se estendeu o sublime vigor de minha fantasia; mas já impulsionava o
meu desejo e a minha vontade, como roda cujas partes giram todas igualmente, o
Amor que move o sol e os outros astros.
327
A produção máxima do florentino é um dos mais sofisticados exemplos de
como o amor pelo humano significante e o amor pelo divino significado podem – ou mesmo
devem caminhar de mãos dadas ao longo do itinerarium mentis ad Deum.
Ora, tal como o misticismo cristão, o islâmico não se furtou a explorar a grande
riqueza do diálogo metafórico travado entre o erótico e o hierático. Dão veemente testemunho
disso os poetas sufis Djalal Ud-din-Rumi (1207-1273) iniciador da famosa confraria dos
dervixes girantes e Yunus Emre (1238-1320), bem como Ibn Arabi (1165-1240), este o autor
do Cântico do desejo ardente:
Quando meu Amado aparece
com que olhos O s?
Com os Seus olhos, não com os meus,
pois ninguém O a não ser Ele mesmo.
328
Mais um nome da tradição sufi do Islã que merece ser lembrado é o da poetisa
Rabia Al-Adawwya (717-810), autora dos seguintes versos de impressionante complexidade
anagógica:
Amo-te com dois amores:
com o amor da paixão
e com outro amor
do qual somente tu és digno.
O amor da paixão absorve-me em teu nome único.
O amor do qual és digno
arranca o teu véu
para que te veja.
329
No campo da alquimia, farto em imagens conjugais, é proveitoso recordar as
Bodas alquímicas de Christian Rosencreutz. Trata-se da narrativa, ambientada num castelo,
de certas cerimônias esponsais que duram uma semana e às quais foi convidado o lendário
fundador da Irmandade Rosa-Cruz. Nas palavras de Yates,
327
Id., op. cit., pág. 358.
328
In: CARVALHO, 154, 78.
329
In: id., op. cit., pág. 55-56.
177
é uma alegoria de processos alquímicos interpretados simbolicamente como uma ex-
periência do
enlace místico da alma
experiência esta sofrida por Christian Rosen-
creutz, atras de visões a ele transmitidas no castelo, através de representações
dramáticas, de cerimônias de iniciação nas ordens de cavalaria, e através da socie-
dade na corte do castelo.
330
E ainda:
Basicamente, é uma fantasia alquímica, usando a imagem fundamental da fu-
são elementar, o casamento, a união do
sponsus
e da
sponsa
, aludindo também ao as-
sunto da morte, o
nigredo
, através do qual os elementos devem passar no processo da
transmutação (...).
A alegoria, evidentemente, também é espiritual, caracterizando processos de
regeneração e modificação dentro da alma. A alquimia sempre usou esses duplos
sentidos...
331
Por fim:
E é a obra de um gênio
profundamente religioso
, transcendendo todos os dís-
ticos políticos e sectários, para converter-se numa alegoria de uma experiência espi-
ritual progressiva, comparável em sua intensidade ao
Pilgrims Progress
, de
Bunyan.
332
Outro tratado hermético em que se descortina de maneira notabilíssima o ele-
vado valor espiritual da imagem da
conjunctio
dos consortes é a
Aurora consurgens
(séc.
XIII), sobre cuja autoria pairam dúvidas, havendo contudo quem a impute a Santo Tomás de
Aquino
333
. Independente dessa questão, a
Aurora consurgens
se constitui num documento
stico precioso, de importância inversamente proporcional ao relativo desconhecimento a
que vem sendo relegado. Raia o texto como um tipo de paráfrase do
Cântico dos Cânticos
,
abrilhantada por uma complexa constelação de citões bíblicas (do Velho e do Novo Testa-
mentos), alusões filosóficas e alquímicas. Com o discurso disposto em parábolas, a
Aurora
apresenta um par de enamorados em que a figura feminina simboliza a “Sabedoria de Deus
330
YATES, 288, 91-92. Grifei.
331
Id
.,
op
.
cit
., págs. 96-97. Grifo da autora.
332
Id
.,
op
.
cit
., págs. 100-101. Grifei.
333
Marie-Louise von Franz diz alimentar a terrível suspeita de que a Aurora consurgenspoderia, na verdade,
ter-se originado nos apontamentos do último seminário de Santo Tomás de Aquino, eis que, compulsando os
relatos originais, em latim, das mais antigas testemunhas do processo de canonizaçãodo religioso, constatou ela
que o mesmo teria morrido em pleno púlpito do convento de Santa Maria di Fossa Nuova (1274), enquanto mi-
nistrava um seminário sobre os
Cantares
de Salomão, justamente sobre o que versa a
Aurora consurgens
, e mais,
esta obra
termina no ponto preciso em que, segundo rezam os autos e a tradição, Santo Tomás teria expirado,
as as palavras Vem, meu bem-amado, saiamos para o campo(correspondente a
Cantares
7.11, primeira
parte). Para melhores detalhes v. FRANZ, 177, 156-158. Há, em português, uma tradução da
Aurora consurgens
feita por Dora Ferreira da Silva, poetisa que, juntamente com o marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva, foi
correspondente de Guimarães Rosa; mas infelizmente não pude localizar essa versão.
178
presa na matéria tal como as princesas dos contos de fadas encarceradas em castelos e a
figura masculina, o ser que deve “salvá-la” e desposá-la:
Em nosso texto, a Sabedoria de Deus decaída clama por um ser humano com-
preensivo que a reerga. Ela pergunta onde está o ser humano que viva, que a entenda,
e promete vida eterna a essa pessoa – alguém que a ame e em cujo abraço todo o seu
corpo se derreta, etc. Assim, ela se entrega a uma apaixonada declaração de amor ao
homem desconhecido que a entenda e a liberte da matéria.
334
Essa Sabedoria, por conseguinte, tanto quanto o ícone feminino em
Magma
,
personifica a centelha anímica que, sendo proveniente da
Alma Mater
, repousa oculta, nua” e
dormida” tal qual A Iara, no íntimo da manifestação, e à espera de um despertar: é “o fio
ardente do rosário que, segundo Guimarães Rosa,
(...) corre por dentro,
sem que o poeta o veja,
sem que o sinta,
sem que o desminta...
E temos aí exatamente “O amor,
indesmenvel
fogomagmático que, nas
palavras de Camões, arde
sem se ver
” e i e
não se sente
. O chamado feito pela Sabedoria
de Deus é então – podemos dizer – para que o ser
veja
,
sinta
e não desminta
, chamado que li-
terariamente vem sendo feito desde o Antigo Testamento, eis que lemos no livro de
Sabedoria
(6.16-20):
Ela mesma vai por toda parte, procurando os que são dignos dela: aparece a
eles bondosamente pelos caminhos, e lhes vai ao encontro em cada um dos pensa-
mentos deles.
O princípio da Sabedoria é o desejo autêntico de instrução, e a preocupação
pela instrução é o
amor
.
O amor é a observância das leis da Sabedoria. Por sua vez, a observância das
leis é garantia de imortalidade.
E a imortalidade faz com que a pessoa fique perto de Deus.
Portanto,
o desejo pela Sabedoria
conduz ao Reino.
335
334
Id
.,
op
.
cit
., págs. 192-193. De conformidade com a autora, Jung também a descreveu em
Psicologia e Al-
quimia
como um dos grandes temas mitológicos do pensamento alquímico, ou seja, a idéia de que a alma divina,
ou a Sabedoria de Deus, ou a
anima mundi
uma espécie de figura feminina se separa do homem original, o
Adão original, e entra na matéria, quando então tem que ser resgatada” (
id
.,
op
.
cit.
, pág. 185). Desta forma, a
pedra filosofal, o elixir, o ouro alquímico buscado, nada mais são do que essa alma. Aliás, a divindade feminina
em todas as religiões é sempre projetada no conceito de matéria e a ele vinculada” (
id
.,
op
.
cit
., pág. 187). E ain-
da em abono (
id.
,
op
.
cit
., pág. 189): é sabido que, quando o Papa Pio XII declarou a
assumptio Mariae
, seu
propósito consciente era atingir o materialismo comunista elevando, por assim dizer, um símbolo da matéria na
Igreja Católica, de modo a tirar o vento das velas dos comunistas. Existe uma implicação muito mais profunda,
mas essa foi a sua idéia consciente, ou seja, a de que o único modo de combater o aspecto materialista seria er-
guendo a uma posição mais elevada o símbolo da Divindade feminina e com ele a matéria. Como é o corpo da
Virgem Maria que se eleva ao Céu, a ênfase recai sobre o aspecto material e físico.
335
Grifei. Todas as citões de
Sabedoria
são extraídas da
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral
, 132.
179
E em Prorbios 1.20-21:
A Sabedoria grita pelas ruas e levanta a voz nas praças.
Ela grita no burburinho da cidade e anuncia nas praças blicas...
É-nos útil transcrever outros versículos, de sabor teogâmico, da Sabedoria bí-
blica:
Amei a Sabedoria e a busquei desde a minha juventude, e procurei tomá-la
como esposa, pois fiquei enamorado de sua formosura.
A união com Deus manifesta a nobre origem dela, porque o Senhor do univer-
so amou-a.
E de fato, ela é iniciada na ciência de Deus e seleciona as obras dEle.
336
Voltando à Aurora consurgens,
Ocorre então uma virada sumamente surpreendente, pois ela diz: Aquele em
cujo abraço todo o meu corpo se derrete, para quem serei pai e ele será meu filho.
Isso foi extraído da Epístola aos Hebreus, 1:5 e foi o que Deus disse a Cristo. Quando
se lê o texto, é fácil passar por cima dessas estranhas alusões, mas a Sabedoria diz aí
claramente que ela própria é Deus Pai e que quem a salvar é filho do próprio Deus.
Essa frase é a chave para tudo o que se segue no texto. A Sabedoria de Deus é sim-
plesmente uma experiência do próprio Deus, mas em Sua forma feminina, e o noivo
bem-amado de Deus é o autor, que substitui Cristo e se torna semelhante a Cristo.
337
Tornar-se semelhante a Cristo e noivo bem-amado de Deus não é mera-
mente observar preceitos externos, e sim reconhecer-se no íntimo como Filho de Deus, en-
frentar a morte como janua vitae e enfim renascer sob o Mistério do Espírito Santo
338
. É in-
dispensável saber que no Apocalipse a cidade santa, a Nova Jerusalém, desce do céu “atavi-
ada como noiva adornada para o seu esposo, que é o Cordeiro
339
: essas são as núpcias ex-
celsas a que a Sabedoria invita o seu noivo, a aventura crística vital a que cada ser é concla-
mado. Porém, os Prorbios (1.21-24) já alertaram:
Ela grita no burburinho da cidade e anuncia nas praças blicas:
Até quando, ó ingênuos, vocês vão amar a ingenuidade? E vocês, zombado-
res, até quando se empenharão na zombaria? E vocês, insensatos, até quando odiarão
o conhecimento?
Voltem-se para ouvir o meu aviso: eu vou derramar meu espírito sobre vocês,
e lhes comunicarei as minhas palavras.
Contudo, eu chamei, e vos recusaram; estendi a mão, e ninguém deu aten-
ção.
336
Sb 8.2-4. Grifei.
337
FRANZ, 177, 192-193. Grifos da autora.
338
V. Jo 14.12 e 17.
339
V. Ap. 21.2-9.
180
Muitos – ou todos são os convidados, poucos os que aceitam o chamamento,
e assim a Sabedoria é recusada pela maioria dos homens que, não sabendo -la nem senti-la,
preferem desmentir e permanecer dormindo o Sono das águasno mundo das ilusões, no
fundo escuro da caverna. A esse respeito a Aurora consurgens diz que a Sabedoria é pisada
nas ruas e desprezada por todos, utilizando assim termos alquímicos muito notórios, empre-
gados numa infinidade de obras espagíricas com atinência à prima materia da pedra filosofal.
A Aurora prossegue prescrevendo que somente mediante um labor longo e ár-
duo é possível encontrá-la, para logo depois afirmar, paradoxalmente, que uma só tarefa se
exige de quem pretenda alcançá-la: saber auscultar a verdadeira natureza dessa Sabedoria. E
Segue-se a isso uma citação ainda mais impressionante do nosso conhecido
Sênior: Se fizerem isso, vosso pensamento comará a fluir e a seguir a sua concu-
piscência.Na linguagem escolástica medieval, concupisncia significa os apetites
comuns desejos sexuais, desejo de alimento, etc., mas sobretudo o desejo sexual, a
base comum, vulgar do amor superior. O próprio Santo Tomás de Aquino tinha uma
teoria de amor, a saber, que este comou sempre com a concupisncia e tinha que
ser sublimado no amor de Deus.
340
Vemos que a “idéia mestra do platonismo” exposta por Benedito Nunes encon-
tra eco no pensamento aquiniano e também na Aurora consurgens, quem quer que seja o seu
autor. Ademais recordando os ensinamentos dos vaqueiros Tadeu e Moimeichego –, para ir
além, em busca do quem das coisas, É preciso é vir aquém
341
. Ou sempre a heautognose.
Ainda é imprescindível saber que a Sabedoria da Aurora, simultaneamente,
mata e vivifica quem a procure. E sendo ela personificada numa mulher, acontece uma grande
inovação, a qual altera a tradição cristã que punha em oposição as figuras de Eva e da Virgem
Maria: aquela teria sido a fêmea que abriu o mundo à Morte, ao aceitar o fruto proibido e
compartilhá-lo com Adão, ao passo que esta, dando à luz o Messias, teria possibilitado a defi-
nitiva vitória da Vida. Mas na Aurora uma e outra são a mesma femina, quem Arrebata sua
alma e devolve sua alma. Retira a umidade destrutiva e alimenta-a com a umidade natural, e
isso será a perfeição.
342
O que tem também um flagrante significado alquímico, no que toca à
produção do Corpo Glorioso:
A extractio animae, a extração da alma, significa, em linguagem química, uma
destilação. Se evaporarmos uma substância química, obteremos uma fórmula vaporí-
fera; é a sua alma e, se fizermos de novo uma precipitação ou coagulação, ela retor-
340
FRANZ, 177, 166. Grifei. Quanto a Sênior, é o nome latino pelo qual ficou conhecido no Ocidente o al-
quimista árabe Mohammed Ibn Umail Al-Tamini (c. 900- c. 960).
341
ROSA, 7, 125 (Cara-de-Bronze”).
342
Aurora consurgens, apud FRANZ, 177, 200-201.
181
nará ao corpo, um símile óbvio. Assim, o símile da umidade interm também, visto
que pelo fogo a umidade corruptível tem que ser destilada e depois é vertida a umida-
de vivificante.
343
Agora, perto de concluir as considerões sobre a
Aurora consurgens
, convém
dar a palavra aos contraentes do matrimônio stico, o que será feito pela simples colação de
fragmentos
344
que interessem ao nosso estudo de
Magma
, dispensando-se demais comentários,
a fim de que possamos sem mais demora passar a novos assuntos.
Eis que o noivo pressagia:
Ressuscitarei e irei até a cidade e buscarei nas alamedas e ruas se posso en-
contrar uma virgem casta, bela de rosto e de corpo, e mais belamente trajada,
que
role para um lado a pedra de meu túmulo e me dê penas como a pomba, e com ela vo-
arei para o u
. E dir-lhe-ei que vivo agora em eternidade e repousarei nela, pois ela
ficará à minha direita vestida num manto dourado. Escuta, minha filha,
inclina teu
ouvido para mim e ouve minha prece, pois com todo o meu coração ansiei por tua be-
leza.
A Sabedoria responde, numa saraivada de alusões bíblicas (retiradas do Penta-
teuco, dos
Salmos
,
Cantares
, Evangelhos
etc...
) que a identificam sem sombra de dúvida
como Deus:
Sou a flor do campo e o lírio dos vales.
Sou a mãe do amor belo
, do reconhe-
cimento virtuoso e da santa esperança. Sou a vinha fértil que produz o fruto de doce
aroma, e minhas flores são as flores da honra e da beleza. Sou o leito de meu amado,
em redor do qual estão sessenta heróis portando suas espadas à ilharga contra os
horrores da noite. Sou bela e imaculada.
Olho pela janela e vejo meu bem-amado atras da rótula. Feri seu coração
com um de meus olhos e com um cabelo de meu pescoço. Sou a fragrância das unções.
Sou a mirra escolhida. Sou a mais arguta
entre as virgens que surgem como a aurora
,
escolhida como o sol e bela como a lua sem menção do que está dentro. Sou como os
grandes cedros e ciprestes no Monte Sião. Sou a coroa com que o meu noivo será co-
roado no dia de seus esponsais e de seu júbilo, pois meu nome é como o óleo derra-
mado.
Sou a vinha eleita para onde o Senhor enviou trabalhadores a cada hora do
dia. Sou a terra prometida em que os filósofos semearam seu ouro e sua prata.
Se este
grão não cai em mim e morre, então não produzirá o tríplice fruto
. Sou o pão de que os
pobres comerão até o fim do mundo e nunca terão fome de novo.
Dou e nada exijo em troca. Dou pasto e nunca falto. Dou segurança e nunca
tenho medo. Que mais direi ao meu amado?
Sou a mediadora entre os elementos que
se interem entre um e o outro
.
O que é quente eu esfrio e o que é seco eu umedo, e vice-versa.
Sou o fim e
meu amado é o como.
Sou o trabalho integral e a ciência está toda escondida em
mim. Sou a lei no sacerdote, a palavra no profeta, o conselho no sábio.
Fo viver e fo morrer, não há quem possa eximir-se de mim
345
. Ofero
minha boca ao meu amado e ele me beija. Ele e eu somos um
. Quem pode separar-nos
343
Id
.,
ibid
.
344
Todos os trechos segs.
apud id
.,
op
.
cit
., págs. 236-240. Grifos meus.
345
Esta declaração, em especial, encontra-se em
Dt
32.39.
182
de nosso amor? Ninguém em comprimento ou largura, pois o nosso amor é mais forte
do que a morte.
Terminemos com as seguintes palavras de Sabedoria: Aquele que tem ouvidos
para ouvir ouça o que o espírito da doutrina diz aos Filhos da disciplina sobre a união do
amante e da amada.E todavia ressalve-se, com Guimarães Rosa, que “As coisas que estão
para a
aurora
, são antes à
noite
confiadas
346
, bem de acordo com o que será visto por inter-
médio do lento desenrolar do trajeto anagógico em
Magma
, onde, previamente à voluptuosa
nudez do
Amanhecer
, contempla-se o Pavor” e a “Angústia” das roupas da
noite
.
Sem se prender por mais tempo à
Aurora consurgens
, mas em sua esteira, vale
desenvolver um pouco mais a “teoria de amorde Santo Tomás de Aquino bosquejada pági-
nas atrás. Essa teoria, com raízes fincadas em conceitos aristotélicos e na filosofia de Avicena,
surge em torno de perquirições sobre o
nous poiétikos
, que seria o seguinte:
Dentro da realidade cósmica do mundo, há uma inteligência criativa que
existe nas coisas em si mesmas; ela existe no cosmo, é criada por Deus. Deus criou o
mundo e, neste, Ele criou um espírito criativo ou, como geralmente se interpreta, uma
inteligência criativa que é responsável pela intencionalidade dos eventos cósmicos.
Essa intencionalidade – o fato de que o cosmo não é o caos nem um motor que sim-
plesmente continua funcionando de acordo com leis causais, mas também é um misté-
rio em que ocorrem sincronismos significativos foi atribuída ao
nous poiétikos.
Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino, seu discípulo, embrenharam-
se no estudo dos escritos de Avicena e viram-se metidos em grandes dificuldades, pois
estavam absolutamente fascinados pela idéia da intencionalidade do cosmo, a noção
de que o cosmo tem uma inteligência, e não sabiam como reconciliar isso com suas
idéias cristãs. Santo Alberto era um intuitivo e um grande gênio, mas não um pensa-
dor muito acurado, e limitou-se a observar habilmente que isso era algo como o Espí-
rito Santo. Santo Tomás, que era do tipo que pensa, nãode aceitar completamente
isso e, portanto, cortou o
nous
em dois, dizendo que, em parte, o
nous poiétikos
não
estava no cosmo mas na mente humana, da qual era a base em termos modernos,
chama-la-íamos de base do mistério da consciência – e a outra metade, disse Santo
Tomás, era simplesmente a Sabedoria de Deus.
347
Recapitulemos: para Tomás de Aquino o
nous poiétikos
, inteligência criativa”
que perpassa todas as coisas do Universo criado, estaria cindido em duas partes, sendo uma a
base” da “mente humana” e outra a Sabedoria de Deus. Múltiplas inferências podem daí
fluir, e a que mais nos importa é a de que essa “base
espiritual
da “mente humana” (que po-
demos facilmente compreender como a
alma
, o
fio anímico
), uma vez divorciada da “Sabedo-
ria de Deus(a efígie mais próxima a que podemos chegar da suprema
Alma Parens
), busca
com ela novamente se unir, fundindo as metades separadas através da
conjunctio
. É claro que,
346
ROSA, 11, 111 (Luas de mel).
347
FRANZ, 177, 163. V. no presente trabalho, à pág. 440 e segs. (Capitulo IV, tópico 4), a análise do poema
Consciência cósmica”.
183
apesar da apartação, a alma e a Sabedoria são, em essência, unas (pois que a Sabedoria, já o
vimos, clama por sua libertação da matéria, que é onde o espírito humano está preso), e con-
seentemente é a atração essencial entre elas o que provoca a propensão ao restabeleci-
mento da unidade. Assim, a um tempo, alma e Alma são e não são uma e a mesma, o que nos
aproxima sobremodo da doutrina plotiniana: conquanto divergentes em muitos pontos, o neo-
platonismo e o raciocínio tomista do nous poiétikos convergem no mais importante, que é o
entendimento da unidade essencial inerente a todas as coisas. E realmente muito se pode tecer
a respeito das simpatias do nous poiétikos para com os conceitos de emanação e das hista-
ses (Uno, Inteligência, Alma) que encontramos em Plotino (as quais, a propósito, seriam as-
similadas por Santo Agostinho no conceito da Sanssima Trindade: Pai, Filho e Espírito
Santo). No momento, entretanto, não nos cabe tocar novamente em teclas cujo som ainda res-
soa nem fazer soar outras que, embora harmônicas, desviar-nos-iam do que por ora nos inte-
ressa tratar. Ipso facto, consideremos logo que a Sabedoria de Deus é comumente designada
pela palavra grega Sophia, com o que se pretende uma definitiva espécie de “personificação
da Sabedoria de Deus, que se apresenta como uma figura feminina”, a qual já estava junto de
Deus antes que o mundo e a humanidade fossem criados, sendo que alguns pensadores medi-
evais viam nela a anima Christi, outros o Verbo eterno, o Logos, e outros ainda a “soma
de todos os arquétipos (...) ou idéias eternas na mente de Deus quando ele criou o mundo.
348
Sophia conceito e mulher teve importante papel na poética e na vida de
Novalis, e para angariar mais informões sobre ela, vejamos o que disse o tradutor português
do romântico alemão:
Leio, num autor que vários comentadores necessariamente ligam a Novalis,
em Jacob Bohme, Mysterium Magnum, edição notavelmente prefaciada por N. Berdi-
aeff – que sublinha a sophiologia de Bohme: A alma não pode ver Deus senão na sua
imagem renascida, por e na virgem Sophia; e mais adiante: ... o fogo mágico da
alma entra em noivado com a nobre Sophia(isto pela expansão, digamos, do Ser do
Cristo).
Releio, depois, O Mistério da Divina Sophia do pietista Gottfried Arnold
(1700). E cito: o é possível alcançá-la [Sophia] com o nosso velho nascimento ou
natureza; ela reside tão somente no novo homem ou no homem renascido... Ela prepa-
ra a alma para a purificação e diluição...: dass icht mit dir inniger mich mische,
dirá Novalis. A noção de renascimento (Wiedergeburt) é bem conhecida e essencial
no Pietismo, corrente religiosa alemã do século XVII que sublinha a conversão por
intensa experiência religiosa individual, a união do coração com Cristo e o zelo pelos
textos bíblicos.
(...)
348
Id., ibid. V. à frente (tópico 3 deste Capítulo, pág. 214 e segs.) a análise do poema Gargalhada”, cujos versos
finais são: e me ri/ da inutilidade das torturas predestinadas,/ guardadas para nós, desde a treva das épocas,/
quando a inexperiência dos Deuses/ ainda não creara o mundo...(q. v. a nota 362, à pág. 191).
184
Quanto a Sophia von Kühn (se traduzirmos: Sophia (de), a de Ânimo!), a jo-
vem amada morta do iniciado Novalis, ela tem o nome necessário e terá sofrido a
morte necessária.
349
Novalis chega mesmo a sintetizar seus pensamentos e sentimentos – numa
equação lapidar:
Cristo e Sophia
350
.
Tudo deságua na teoria novalisiana da mulher amada lida como uma “abrevia-
tura do universo” e deste como sendo não mais do que uma “elongatura da amada, com o
que é possível fechar a questão: a “esquiva amadade Guimarães Rosa, herdeira do poder en-
cantatório da Iara, é também a mesma Sophia, Sabedoria, Beatriz, Shakti,
aquela com quem o
fogo mágico da alma” leia-se
Magma
intenta unir-se em
conjunctio
, eis que “A alma não
pode
ver
nem sentir
Deus senão na sua
imagem
renascida, por e na virgem Sophia”.
Ora, Sophia “prepara a alma para a purificação e diluição,
i. e.
, para a
Morte
, uma vez que
somente o novo homemou o homem renascidopode encontrá-la, compreendê-la e liber-
tá-la: o matrimônio stico é, pois, a
Morte iniciática
, por meio da qual o ser se conhece, re-
conhece Sophia em seu próprio íntimo, desposando-a, e pode então triunfalmente ressurgir
sob nova forma aprimorada, com uma visão e um sentido mais acurados de todas as coisas
uma vera “Consciência cósmica”.
É oportuno ressaltar que, também de acordo com a visão psicanalítica junguia-
na mais moderna,
a morte é uma espécie de casamento místico com a outra metade da per-
sonalidade
.
351
Desse modo, o segundo terço do livro de 1936 consiste, como veremos por-
menorizadamente, num tipo de noivado metafísico, na
preparação purificatória
do neófito
para o enfrentamento do mistério da Morte mistagógica, a ser contemplada em A terrível pa-
rábola”, o que relembra o segundo instante do adágio rosa-cruz:
in Jesu morimur
352
. Esse ter-
ço corresponde, outrossim, aos ritos de margemou liminares, estágio que, conforme o
autorizado entendimento antropológico de Van Gennep,
compreende ao mesmo tempo ritos de separação e ritos preparatórios de agregação;
a duração deste período não era limitada; o indivíduo podia permanecer nela até a
spera da morte. Em seguida vinham os ritos de agregação propriamente ditos.
353
349
BRANDÃO, 143, 9-10. Grifei. A tradução do fragmento em alemão é: para que eu possa misturar-me conti-
go mais intimamente”. Reparo que o filósofo místico russo Nicolas Berdiaeff (1874-1948), o mencionado prefa-
ciador de Jakob Böhme, é freqüentemente citado por Guimarães Rosa em suas cartas, cf. as enviadas a Vicente
F. da Silva (
apud
FERREIRA, 46, 124), a Dora F. da Silva (
apud
id
., 47, 47) e a BIZZARRI, 29, 58 (q. v., no
presente trabalho, a nota 383, pág. 200); para detalhes, v. FERREIRA, 46, 121 e segs.
350
Anotado em seu diário (28 de junho de 1797), de acordo com o que informa BRANDÃO, 143, 12. A propó-
sito, a poética do simbolista mineiro Alphonsus de Guimaraens, o qual ao longo de toda a vida lamentou a perda
da musa Constança, parece se aproximar de forma notável do âmago religioso da poética novalisiana.
351
FRANZ, 177, 156. Grifei.
352
V. nota 115 (pág. 63).
353
VAN GENNEP, 280, 89.
185
Por tudo isso o terço medial afigura-se como um Purgatório, “aquela segunda
região onde a alma se purifica e conquista méritos para subir ao céu...São palavras de Dante.
Cuida-se então, em Magma, de um local onde o amante se debate entre o desejo que o inflama
e ilumina por dentro e o medo sombrio de não ser desejado. O espicar dos ferrões da dúvida
afligem constantemente o poeta de Magma, e temos assim que o desejo empurra o ser para o
Alto, ao passo que o medo e a incerteza puxam-no para baixo: é esse o terrível das forças
verticais que se evidencia em Iniciação. Essa extrema tensão faz com que o segundo terço
seja marcado por connuos desenganos e crises de fé vividos pelo neófito, que em várias oca-
siões sente-se rejeitado por sua amada: tão importante quanto sentir amor é que o amante não
se sente amado, não sente próximo de si o Outro que, no entanto, já está oculto em seu cora-
ção. Tais angústias são, sob uma óptica cristã, as torturas predestinadas(v. o texto Garga-
lhada”), as provações que o humano deve enfrentar, mas cuja única razão de ser é intensificar
cada vez mais o desejo de conjunctio, o amor por Deus, até que esse amor se torne tão forte e
insuportável que não mais possa ser contido no íntimo do ser, desmentido: e por fim extrava-
sará numa erupção vulnica, ardente e catártica e ao mesmo tempo, sem embargo, tranqüila
e silente.
É a hora de lembrarmos que o novo terço magmático relaciona-se com os mis-
térios dolorosos do rosário cristão dominicano, os quais, por sua vez, contemplam os graves
episódios da Paixão de Cristo. Paixão, aqui, assume à perfeição o seu significado ambiva-
lente de amor entusiasmado e sofrimento excruciante: a partir do texto Iniciação, o neófito
vê-se envolvido nas responsabilidades dos Mistérios Maiores, a penosa Via Crucis que condu-
zirá à Ressurreição deveras, mas que antes passará pelo amargor da solidão no Getsêmani e
pelas estões do Calvário e já no terço magmático final – do Sepulcro. Não se deve des-
considerar que, em meio a tão grande marrio, mesmo a alma mais forte e fiel pode chegar a
se lamuriar num brado de desesperança:
Eli, Eli, lamá sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me abando-
naste?
354
Agora, antes de passar aos poemas que compõem o terço medial, calha nos
determos apenas mais um pouco sobre a natureza do desejo erótico que arde em praticamente
todos esses carmes e que é na verdade o hierático Desejo que o ser amante vota ao Deus ama-
do e figurado na “esquivaSophia que tão longínqua parece. Até este instante discutimos vá-
354
Mc 15.34 (grifei), cf. tb. Mt 27.46.
186
rios escritos alegóricos que cuidavam desse Desejo; porém, resta-nos saber como o neoplato-
nismo lida com o mesmo. Para tanto, invoquemos Jean Brun, estudioso que afirma o que se
segue sobre a filosofia de Plotino:
Se a emanação nos conduziu do centro à circunferência, o Desejo conduzir-
nos-á da circunferência ao centro.
A experiência do Desejo (
óreksis
), que nada tem a ver com o que a psicologia
atual entende geralmente pela expressão, encontra-se em Aristóteles, cuja filosofia,
esquecemo-lo bastantes vezes, é uma filosofia do Desejo, desejo esse que se exerce ao
nível mais elementar do cosmos, já que nos é dito que a matéria deseja a forma como
a fêmea deseja o macho, até ao seu máximo, pois Aristóteles escreve que Deus move
todas as coisas enquanto objeto de desejo
355
. Mas no aristotelismo estamos perante
um mundo em movimento e o femeno do qual temos de nos dar conta é o da mudan-
ça.
Nada disso se verifica em Plotino. Plotino emprega pouco mais ou menos in-
diferentemente:
éphesis
,
thos
,
ormé
,
eros
, para designar o Desejo. É o que permite
à introversão ser ao mesmo tempo o caminho do êxtase, e é graças a ele que podemos
passar do
interior
para o
exterior
, sem por isso sair do primeiro nem entrar no segun-
do, visto que, afinal de contas, um e outro coincidem.
Encontraremos certamente em Plotino algo da filosofia de Aristóteles, na me-
dida em que a matéria é desejo indeterminado, vão e estéril; mas um tal desejo, para
falar com propriedade, não é uno. A febre do desejo (
odís
) demonstra uma procura do
complemento (
plérosis
) em falta, uma sede de perfeição (
teleíosis
): na língua dos
Mistérios este termo designava igualmente a iniciação; mas deverá dizer-se simulta-
neamente que o Desejo implica a imanência, naquilo que deseja, daquilo que é dese-
jado. O que não impede, no entanto, o objetodo Desejo de permanecer transcen-
dente, pois é possível que uma coisa esteja presente noutro ser, conquanto seja dele
distinta(VI, 4, 11).
356
Brun acaba por considerar que o Desejo, consoante visto por Plotino, é uma
verdadeira emanação invertida
357
, isto é, um
Desejo que conduz à restituição
(em conse-
ência, esse Desejo também pode ser tomado,
mutatis mutandis
, como um legítimo meca-
nismo do
tikún
luriânico). Fica então simples alcançar o significado da idéia de Plotino quan-
do diz (na
Enéada
VI, 9, 9,
in fine
) que “
toda alma é uma Afrodite
. Ou seja: toda alma con-
tém em si o idálio impulso amoroso capaz de realizar a sua
conjunctio
definitiva com o Uno,
toda alma
deseja
tal enlace. E basta tão-somente
não desmentir
esse profundíssimo Amor para
que o último milagre se opere.
Abordemos, por fim, os poemas que comem o terço intermédio de
Magma
,
nos quais inequivocamente
arde
a “febre do desejo (
odís
)plonica. Para efeitos de uma me-
lhor visualização investigativa, porém sempre com base nas particularidades de individuação
ou analogia temática impostas por Guimarães Rosa e que mais adiante serão naturalmente
355
V. nota 318 (pág. 172) e adjacências.
356
BRUN, 145, 41-42. Grifos do autor.
357
Id
.,
op
.
cit
., pág. 43.
187
deslindadas, podem eles ser divididos em quatro partes. A primeira delas, formada exclusiva-
mente pelo texto Iniciação, delimita o como do aprendizado dos Mistérios Maiores. À se-
gunda podemos denominar conjugando o título da obra sapiencial de Salomão com o famo-
so verso do rico fluminense Casimiro de Abreu – Cantares de amor e medo, eis que se
trata de composições que efetivamente introduzem a problemática romântica da afeição apa-
rentemente não correspondida. O terceiro grupo, ao qual chamaremos Jardim onírico, é in-
tegrado por peças que se pautam por uma mais densa atmosfera de fantasia e sonho em torno
da relação amorosa. E as é contada “A terrível parábola, carme rosiano que flagra o mo-
mento da Morte mistagógica.
Vejamo-los.
1. INICIAÇÃOAOS GRANDES MISRIOS
Assim, o calor, operando sobre e contra a umidade radical
metálica, viscosa e oleaginosa, engendra negrura no sujeito,
pois a matéria dissolve-se ao mesmo tempo, corrompe-se, ene-
grece e concebe para engendrar, porque toda a corrupção é
geração e deve-se sempre desejar essa negrura. É também essa
a vela negra com que o barco de Teseu voltou vitorioso de
Creta, e que foi a causa da morte de seu pai. Por isso, é neces-
sário que o Pai morra, para que das cinzas desta Fênix renasça
outra, e que o Filho seja rei.
NICOLAU FLAMEL
Mas tu não podes ver-me
com teus próprios olhos;
dar-te-ei olhos divinos
para que contemples meu poder e minha majestade.
BHAGAVAD GITA 11.8
Inicia-te, enfim, Alma imprevista,
Entra no seio dos Iniciados.
Esperam-te de luz maravilhados
Os Dons que vão te consagrar Artista.
CRUZ E SOUSA,
O Grande Momento
Vencidos no primeiro terço de Magma os Mistérios Menores, de feição exotéri-
ca, a peça Iniciaçãovem inaugurar o segundo terço e a Instrução nos Mistérios Maiores,
esotéricos.
Por primeiro tratemos dessa distinção entre exoterismo e esoterismo. Deve-se
observar que os Pequenos Mistérios e o exercício da liberdade são abertos a todo e cada ser
188
que nasce de Deus, a todas As águasque brotam da serra”; daí dizer que se trata de uma
doutrina exotérica, do grego exoterikos, termo que os iniciados da Grécia Antiga aplicavam
para se referir aos ensinamentos de natureza mais singela e acessíveis ao público em geral,
isto é, até mesmo àqueles que permaneciam de fora da comunidade mistagógica. Pois que, de
conformidade com o que foi proposto em Sono das águas(peltimo texto antes de “Inicia-
ção),
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos dágua,
nos grotões fundos.
Essas águas dormentes representam, como já foi comentado, aquelas criaturas
que, exaustas pelo turbulento esforço da existência, preferem livremente cessar seu movi-
mento nos caminhos anagógicos e estacionar, por um momento, nos grotões fundos, sob o
torpor quido e inocenteda Ignorância
358
. Não se trata de iniciados, e sim de iniciantes que
percorreram tão-somente as primeiras etapas do itinerarium mentis ad Deum.
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...
As águas em vigília, por seu turno, simbolizam os seres que, insatisfeitos com
o Desterrodurante a noite toda” nas regiões mais ínferas a que a queda os guiou e saudo-
sos do Princípio divino, procuram ir mais além e aplicar seus olhos” à contemplação do al-
ndor. Para tanto, é mister vencer a noturna distância que os aparta do Altíssimo, e por con-
seguinte os vigilantes consubstanciam-se no astro selênico – signo aquático e especular que
passeia “Na Mantiqueira” e
Dá para o alto um arranco
repentino,
de balão sem lastro...
Com esse molime “para o alto” é que o noviço se apresenta para a Instrução
nos mais altos Grandes Mistérios. Estes Mistérios Maiores, que se mantêm ocultos aos profa-
358
V. nota 114 (pág. 63).
189
nos, constituem a doutrina esotérica, do grego esoterikos, designação reservada pelos antigos
helenos aos conhecimentos e experiências ministrados apenas aos de dentro, isto é, àqueles
que, manifestando de modo inequívoco e espontâneo o desejo de prosseguir nas veredas
gsticas, prestavam-se às novas provas secretas, somente ao fim das quais ingressavam de
fato na restrita comunidade dos iniciados.
Sabe-se que nas solenidades mistagógicas da Antiidade havia sempre um
momento em que o mistagogo comunicava ao noviço, em tom de prédica, o que o aguardava
no decorrer das cerimônias, o mais das vezes dando ênfase à importância stica da Morte
iniciática e incitando à coragem no enfrentamento das vicissitudes, além de augurar o ventu-
roso futuro que coroa o final da jornada dos que persistem na fé. Essa exortação é exatamente
o que podemos divisar na “Iniciaçãorosiana:
E nem mais existirá a esperança do trágico...
E no vazio,
em vão apelareis para as grandes catástrofes,
para a vaidade do ranger de dentes,
para o pavoroso das formas não de todo feitas,
sob o terrível das forças verticais...
359
Desse modo é feita uma advertência contra os comportamentos nocivos que
podem turbar ou atrasar o desenvolvimento da mistagogia: o pessimismo (“a esperança do
trágico), o sentimento escatológico exacerbado (o apelo às grandes catástrofes) e “a vaida-
de do ranger de dentes, além da insegurança, que pode aparecer como uma intenção de per-
manência no pavoroso das formas não de todo feitas, isto é, o Caos ainda disforme do
ponto de vista do microcosmo humano –, o Universo íntimo desprovido de “Consciência cós-
mica” e ainda por acontecer ou enfim, em palavras mais simples, o ser sem realizar todas as
divinas potencialidades latentes em sua alma.
Entretanto, a admoestação tem também um matiz de incentivo: ao se dizer que
o neófito apelará em vãopara tais atitudes quer se indicar que o mesmo, ainda que por ins-
tantes possa porventura vir a fraquejar, mais além já deverá ter se tornado forte e sábio o bas-
tante para não mais se permitir prender sem remédio pelas malhas dos desesperos iteis, os
quais não mais conseguirão opor barreiras ao avanço do aprendiz resoluto.
Note-se outrossim que a dissipação dos apelos àqueles procedimentos nocivos
acontece “no vazio, um ou-topos que não deve ser interpretado em sua acepção desvalorati-
va, mas sim de acordo com as ontologias da neutralidade que já tivemos a oportunidade de
359
O quinto verso era de início introduzido por um e” aditivo que foi riscado.
190
discutir
360
e que encontramos sintetizadas no pensamento guimarrosiano sob a expressão ze-
rinho zero: em Iniciação, o vaziodiz respeito ao tranqüilo silêncio zen que futuramente
deverá imperar na alma do iniciado que tiver enfim cumprido o trajeto anagógico e se liberado
do terrível das forças verticais, as quais ilustram nada mais, nada menos do que a pressão
resultante das ações em sentido contrário das forças ctonianas (descensionais) e celestes (as-
censionais) que se promovem sobre o ser e vão se intensificando à medida que ele progride.
O hierofante também vaticina que
Sumirão as espadas suspensas de fios,
sumirá a mão que escreve nas paredes
do festim velho,
e a Esfinge dormirá nas areias eternas...
O primeiro verso desse fragmento refere-se à conhecida estória da espada de
Dâmocles (c. 367 a. C.): esse membro da corte siracusana, tendo invejosamente aventado so-
bre as facilidades e privilégios da vida do governante de sua cidade (Dionísio II), foi por ele
punido sendo convidado para presidir um banquete, durante o qual Dâmocles percebeu sus-
pensa sobre a própria cabeça uma espada presa ao teto apenas por um frágil fio de crina de
cavalo; o cortesão, então, viu comprometidas a dignidade que lhe fora concedida e o prazer
particular do repasto – o qual continuou até o fim –, e com isso o soberano quis lhe demons-
trar os riscos que a realeza corre ao ter que se interpor entre belicosas facções políticas inimi-
gas e ao conviver com constantes conspirões sucessórias, situação periclitante que impedi-
ria o despreocupado desfrute das prerrogativas régias.
Já o verso seguinte, ao que parece, relembra a narração contida em Daniel, 5:
Belsazar, último reibabilônico (filho, segundo a fonte, de Nabucodonosor II ou de Naboni-
de, de quem na verdade seria regente), ofereceu um faustoso banquete em cujo transcorrer
praticou-se a idolatria e foi consumido vinho nas taças de ouro e prata que haviam sido retira-
das do Templo de Jerusalém. De repente, no ar “apareceram uns dedos de mão de homem e
escreviam, defronte do candeeiro, na caiadura da parede do palácio real(versículo 5), visão
fantástica que atemorizou a todos. O monarca convocou o profeta Daniel, o qual anunciou ha-
ver sido a mão enviada “da parte” de Deus e esclareceu o sentido das palavras escritas:
Esta, pois, é a escritura que se traçou: MENE, MENE, TEQUEL e PARSIM.
360
V., neste trabalho, as págs. 66 (Capítulo I, tópico 4) e 90 (Capítulo II, tópico 1). FERREIRA, 47, 152-153,
entende de maneira diversa: Para o neófito rosiano, crer é dificultoso, como viver também o é. No vazio da
existência, aquele que não crê pode deixar escapar a última esperança dos desafortunados.Grifei. Embora coe-
rente e respeitável a opinião da autora, parece-me que desse modo esses versos de Iniciação” adquirem uma
coloração pessimista que entra em choque com o sentido de otimismo dos versos subseqüentes.
191
Esta é a interpretação daquilo: MENE: Contou Deus o teu reino e deu cabo
dele.
TEQUEL: Pesado foste na balança e achado em falta.
PERES: Dividido foi o teu reino e dado aos medos e aos persas.
361
Segundo o relato bíblico, o rei foi morto na mesma noite, e outras fontes histó-
ricas asseguram que a Babilônia foi pacificamente conquistada pelo exército persa (sob Ciro
II) em 539 a. C., enquanto seus maiorais estavam todos embriagados numa festa.
Ora, tanto a severa e acusadora “mão que escreve nas paredes/ do festim velho
quanto “as espadas suspensas de fiossimbolizam os castigos e perigos que parecem ameaçar
a vida de todo ser que admita a idéia de um Deus cenhoso que julga e exerce ditatorialmente o
direito da psicostasia. O iniciado que entrar na “Consciência cósmica”, entretanto, passará a
entender os reveses e tristezas da existência como eventos efêmeros e sem peso, incapazes de
perturbar a serenidade do Amor entre a manifestão que se esforça e o Manifestante que es-
pera, com o que todas as atribulões simplesmente
somem
, se esfumaçam.
Frise-se: as tradições mistagógicas são unânimes ao afirmar que o homem ver-
dadeiramente desperto e ocupado apenas em Deus
não resolve os problemas
, mas para ele
os
problemas deixam de ser problemas
, simplesmente deixam de existir como acontecimentos
dignos de importância, e assim é o próprio iluminado quem define os rumos de sua vida:
Teu pensamento, tua fé e teu desejo,
creando, à tua escolha, o teu destino...
362
No tocante à Esfinge que “dormirá nas areias eternas..., primeiro se verifique
que o seu sono se dá num local bem seco, cuja aridez contrasta com a corrente das águas. Essa
alusão evoca que no futuro não mais haverá
enigmas
entre Deus e o homem que O buscou, e
terá valia
Somente o segredo,
acordado, no caminho claro
,
na encruzilhada de todos os caminhos,
361
Mene”, tequel” e parsimsão nomes de moedas antigas, associados respectivamente aos verbos caldaicos
maná
(medir),
takal
(pesar) e
parás
(dividir), sendo este último relacionado também com o povo
persa
.
362
Foram rasuradas a conjunção
E
” antes de teu pensamento” e a palavra
bem
antes de à tua escolha”. Op-
tei por manter, com cautela, a forma verbal
creando
, empregada por Guimarães Rosa em 1936, visto que, em
alguns círculos pensantes,
crear
tem um significado diferente de
criar
; v. a Advertência” do tradutor Huberto
Rohden, em preâmbulo a
O Quinto Evangelho
, 245 (
sic
): A substituição da tradicional palavra latina
crear
pelo
neologismo moderno
criar
é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa
esforço mental mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento.//
Crear
é a ma-
nifestação da Essência em forma de existência
criar
é a transição de uma existência para outra existência.// O
Poder Infinito é o
creador
do Universo – um fazendeiro é
criador
de gado.// (...) A conhecida lei de Lavoisier
diz que na natureza nada se
crea
e nada se aniquila, tudo se transforma, se grafarmos nada se
crea
, esta lei
está certa mas se escrevermos nada se
cria
, ela resulta totalmente falsa.
Se não chega a ser provável, é pelo
menos possível que o jovem Guimarães Rosa pudesse ter se filiado a uma maneira de pensar semelhante.
192
andando na tua frente,
desvendado
,
mais difícil de crer do que de decifrar...
363
A “encruzilhada de todos os caminhos” é evidentemente o próprio Deus Pai,
em Quem tudo se
encontra
, bem como o Filho, que padeceu na
Cruz
. É no Centro do círculo
que se resolve
o
segredo, e não apenas
um
segredo qualquer: para um homem voltado para a
religião – o religamento com o Uno – como o era Guimarães Rosa,
o
segredo último só poder-
se-ia referir ao
encontro
face a face
com Deus
364
: o iluminativo reconhecimento de que Deus
está no
eu
desperto, de que “o fio corre por dentro. Essa é a suprema
Alétheia
que, conquanto
difícil de “decifrar, é ainda “mais difícil de crerou de
desmentir
: porque o seu persenti-
mento implica na percepção de que o
eu
que crê é um mero envoltório, uma casca ilusória, a
qual, uma vez escorificada para revelar o que contém, perde a
raison dêtre
e se desvanece,
como um papel de bala que se deita fora.
E a forma de se efetivar essa união epifânica é a imitação de Cristo, cujo sacri-
fício é rememorado nos versos finais:
E se fores forte,
olha bem para cima,
para ver como é sorrindo
que morre o teu Pai...
Não deve causar espanto ou confusão o fato de que se fala na
morte do
Pai
365
,
pois que Ele, encarnando-se no Filho pelo mistério da
homoousios
, morre” como todos os se-
res o fazem e ressuscita como todos o podem fazer, tão-somente para demonstrar aos homens
que a morte é apenas a passagem para uma nova e gloriosa Vida:
in Jesu morimur
. Fazendo
coro com Hygia Therezinha Calmon Ferreira:
Por isso, olhar para o alto – poderoso símbolo de ascensão –, bem na tua
frente, e dividir com Deus Pai o sofrimento, a morte e a ressurreição do Filho, são
sinais de que, pela
graça
, é possível alcançar a eternidade.
366
A morte de Jesus – o dilaceramento de Sua carne através do látego, dos espi-
nhos, dos cravos e da cruz –, com efeito, significa o rasgar do véu do Templo
367
, o desvela-
363
Havia quebras de linha entre acordado,” e no caminho” e entre frente,” e desvendado, as quais foram
suprimidas por ganchos sinuosos feitos a mão que indicam a junção dos versos.
364
V.
Nm
12.6-8.
365
V.
Mt
23.9.
366
FERREIRA, 47, 152-153. Grifo da autora. Aproveito o ensejo para fazer notar que essa estudiosa chama a
atenção para o fato de que o assunto de Iniciação” é uma retomada” da temática” de
, conto rosiano de juventude (v. id., ibid., pág. 206-207).
367
V. Mt 27.51 e nota l a esse versículo na Bíblia de estudo Almeida, 130.
193
mento do segredooculto. Ao neófito que queira ver a Verdade e senti-la na alma é mister
arrostar o Grande Mistério da Morte, eis que a Iniciaçãotem intrinsecamente o
Sentido de teleutai: fazer morrer. Iniciar é, de certo modo, fazer morrer, pro-
vocar a morte. Mas a morte é considerada uma saída, a passagem de uma porta que
dá acesso a outro lugar. À saída, então, corresponde uma entrada. Iniciar é também
introduzir.
O iniciado transpõe a cortina de fogo que separa o profano do sagrado, passa
de um mundo para outro, e sofre, com esse fato, uma transformação, muda de nível,
torna-se diferente.
368
E sendo a morte mera transição para a verdadeira Vida, podemos concluir com
Fernando Pessoa, que em texto homônimo ao guimarrosiano em tela e que traz o mesmo
sentido exortativo deste é incisivo em assegurar:
Neófito, não há morte.
369
2. CANTARES DE AMOR E MEDO
És bela – eu moço; tens amor eu medo!
CASIMIRO DE ABREU
Qual o rio entre os espinhos,
tal é a minha querida entre as donzelas.
CÂNTICO DOS CÂNTICOS, 2.2
Ai, essa mulher
na minha cabeça
Faz que não me quer,
quer que eu enlouqueça
(...)
Ai, essa mulher
me fere pra que eu cresça
WALTER FRANCO
Os textos que integram a segunda parte do terço intermédio de Magma são as
peças do complexo Poemas” e mais Impaciência”, Mil e uma noites, Ironia” e Meu pa-
pagaio.
O ciclo dos Poemas” esboça uma paixão nascente, algo hesitante,
368
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 506. Grifo dos autores.
369
PESSOA, 234, 53, Iniciação, o que parece repetir a lição do Tao (carme 50, últimos versos): Porque o sá-
bio é invulnerável./ Porque para ele não há morte.
194
Sombras de amores
que se hão de definir decididamente apenas nas composições seguintes. Todavia, se o amor se
firma em sua autenticidade, não deixará o poeta amante de se sentir sujeito ao medo de não
ser amado por sua musa, a qual sempre aparece distante e fria, até indiferente aos arroubos do
enamorado.
Portanto, o relacionamento entre o amante e a “esquiva amada” desponta como
um desfiar de oaristos unilaterais, em que o poeta fala e a musa emudece
370
,
Cantares
em solo
entoados em função do amor que
tende a aproximar
e do medo que
tende a afastar
, as duas
balizas do desejo entre as quais o ser se debate.
Passemos, pois, aos Poemas, conjunto de dezoito tercetos formalmente muito
parecidos com os
Hai-kais
. Seriam dezenove, se contássemos A casa da Boneca, rasu-
rado pelo autor:
1
No verão tropical fez frio, de repente.
Quem abriu uma geladeira sobre a vida?...
Ah, fechem, depressa, esse livro de Ibsen!
371
Embora possa se imaginar que a eliminação desse terceto tenha se dado por
motivos exclusivamente formais, parece mais correto pensar que
idealmente
o carme não se
adequasse aos outros Poemas, os quais, como foi exposto, cuidam do nascimento de um
amor: ora, Guimarães Rosa provavelmente tenha considerado uma incoerência associar e
tão cedo – o calor magmático e “tropicalde uma paixão que nasce à tão álgida abertura de
uma geladeira sobre a vida, atmosfera que é bem mais glacial do que o fugaz vento frio
que sopra no terceto Medo da felicidade.
Seja como for, os dezoito poemetos restantes servem como uma espécie de
passadiço entre Iniciação” e os demais textos do segundo terço: assuntos se misturam, tra-
zendo à baila símbolos eminentemente ascensionais e mistagógicos, como o besouro(Ri-
queza”), a “fumaça impalpável(Definição), “a borboleta” (Madrigal gravado em laca”),
O louva-deus(Oração) e máxime a “águia” em Bergson. Porém, o tom predominante
da série é dado mesmo pelos Poemasde temática amorosa: Encorajamento, Epigrama”,
Para os almanaques, Música de Schubert” e sobretudo Distância sentimental.
O primeiro dos Poemas” é Riqueza”:
1
Veio ao meu quarto um besouro
370
V. nota 118 (pág. 66).
371
O pedo
vro de Ibsen
foi manuscrito antes da litura do texto.
195
de asas verde e ouro,
e fez do meu quarto uma joalharia...
372
Essa delicada peça reflete o preciso surgimento do amor: “ao (...) quartodo
poeta, ou seja, ao seu
recesso mais íntimo
, vem um besouro, cujas brunidas “asas” auriver-
des iluminam de modo intenso o ambiente interno, transfigurando-o.
O besouro pode naturalmente ser associado ao escaravelho, inseto cuja simbo-
logia mantém-se inalterável desde o Antigo Egito, onde já representava o
eterno retorno
do
Sol ressurgente que nasce e morre cotidianamente para se renovar incólume no amanhã.
Muito importante é também que o escaravelho egípcio simboliza
o deus abscôndito que reside
no coração de cada homem
: nosso fio” anímico. Logo, o besouro que raia espargindo Ri-
queza” pode ser entendido como o acordar da
alma
do neófito para o amor que há de uni-lo à
Alma
.
Ademais, se em Iniciaçãofoi predito que
sumirá a mão que escreve nas paredes
o libelo da psicostasia, deve-se dizer que os defuntos egípcios, de acordo com a mitologia an-
tiga, ao comparecerem para a pesagem das almas levavam sobre o coração um amuleto em
formato de escaravelho que promovia a harmonia do ser com a própria consciência, a qual se-
ria responsável por confessar os pecados imputáveis, abrandando-se assim o rigor do julga-
mento.
Lembremos ainda que a tradição taoísta tomou o inseto humilde como exemplo
mais apropriado da
habilidade aparentemente inábil, da perfeição aparentemente imperfeita
,
das quais Lao-tsé fala (capítulo 45) e que são os critérios da Sabedoria
373
.
Podemos concluir que, uma vez começados os
Grandes Mistérios
, de pronto
vem ao âmago do noviço uma
jóia
, pequeno vislumbre da Verdade e do segredo tão ansiado, o
da presença de Deus no ser. Contudo, essa “Riqueza” alada é ainda um fugidio
sonho dentro
de outro sonho
, como proposto pela segunda peça, Distância sentimental:
1
Mesmo ao sonhar contigo,
só consigo que me ames noutro sonho,
dentro do meu sonho primitivo...
372
Em ROSA, 2, 72: de asas
verdes
e ouro. Compare-se, a propósito, com as anteriores libélulas
verdes
de
Paisagem, as quais vão espetando/
jóias
faiscantes, broches de
jade
,/ duplas cruzetas, lindos brinquedos,/ nos
alfinetes de sol.
373
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 383. Grifo dos autores.
196
Temos que no quarto, as a entrada do besouroque faísca aos olhos as
nuances verde e ourode uma “Riqueza”, o poeta adormece e sonha com a etérea amada.
Então, o sonho duplicado do amante talvez seja uma tentativa humana de resposta ao sonho
criativo de Deus a que se aludiu em Águas da serra”.
Outrossim, mais uma vertente interpretativa pode ser traçada: o sonho primi-
tivoseria, quem sabe, o divino, dentro do qual se acomoda o desabrochar de um outro sonho,
o humano e restitutivo. Recorrendo à Cabala luriânica, é no espo do tehíru que o ser dese-
nha o tikún ou, invocando Plotino, a alavanca do Desejo que promove a processão insere-se
no Universo da emanação. Destarte, Deus sonha amorosamente com o ser e, por sua vez, este
sonho ou personagem de sonho sonha com o supremo Sonhador. Deve-se considerar que, na
Bíblia, Deus usualmente dialoga em sonhos com os profetas e outras figuras
374
.
E ainda no contexto do sonho como aproximação do ser para com Deus, cite-
mos a Mensagem de Pessoa:
1
ESPERAI! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
5
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
375
Em escólio a esse texto pessoano, Elêusis M. Camocardi avalia que “A segun-
da estrofe enfatiza a intersecção do homem predestinado com a divindade, através do so-
nho.
376
E no mesmo trabalho sobre a obra do bardo português, em outro excerto, a autora
adita: A mensagem transmitida por essa voz supra-terrena só poderá ser apreendida em esta-
do onírico (ou de vigília), voz de anunciação às criaturas de pureza interior.
377
Tais considerações, em especial ao equacionar o sonho com a “vigília”, pare-
cem se ajustar ao acorde proposto pela peça rosiana que ora se discute.
De qualquer modo, é na diafaneidade onírica da “Distância sentimentalque se
desenrola todo o segundo terço de Magma, num clima frico sobre o qual se insiste em vári-
as composições, mas sobretudo nas do próximo grupo. Entretanto, continuemos por ora com
os Poemas.
374
V., por exemplo, Dt 13.1-5, os sonhos de Salomão (1 Rs 3.5-15) e os de José (Mt 1.20-24; 12-13, 19, 22).
375
PESSOA, 235, 51, Primeiro/ D. Sebastião.
376
CAMOCARDI, 147, 69. Grifei.
377
Id., op. cit., pág. 77. Grifei.
197
A Riqueza” do sonho de que o poeta é agora possuidor provoca-lhe um Pu-
dor estóico(é o terceiro carme do ciclo):
1
Acuado entre brasas,
um escorpião volve o dardo
e faz o hara-kiri...
O estoicismo a que o título alude foi desenvolvido pelo filósofo Zenão de Cítio
(c. 335-c. 264 a. C.) e pauta-se pelo ideal de impassibilidade perante as dores existenciais,
bem como pelo ativo esforço do ser para atingir a virtude através do abandono de tudo quanto
é supérfluo, o que fica resumido no adágio suporta e abstém-te
378
. Consta que Zenão ter-se-
ia suicidado ao considerar encerrado seu aprendizado filosófico, o que é sumamente interes-
sante frente ao escorpiãorosiano que comete o hara-kiricom seu próprio aguilhão. Sabe-
se que esse animal perigoso, sempre pronto a atacar, é habitualmente tomado como um sím-
bolo da malevolência que deve ser combatida: portanto, o seu suicídio ritual nos moldes da
solenidade japonesa serve para representar o abandono, pelo neófito, de aspectos nefastos da
sua própria personalidade.
Atente-se que o lacrau fica “Acuado entre brasas: em Definição, sétimo
texto da série, a “brasa colorida” é um dos componentes do “cigarroque, fumando-se “a si
mesmo num cinzeiro, é associado a “um poeta, sendo que essa brasa constitui-se ainda
numa transposição nima, adequada ao objeto “cigarro-poeta”, da ardência maior do
Magma interno. Os demais elementos dessa relação são a “fumaça impalpável” a se evolar,
símbolo do ctoniano que se eleva até o celeste, e o consumir-se a si mesmo, o ensimesma-
mento do ser que se concentra no eu e se dissipa até não sobrar senão o sutil elo entre o hu-
mano e o divino, resultante do sacrifício do ego: ou a imolação “entre brasasdo escorpião
terrestre, premido pelo ardor anagógico. Esse “hara-kiride proporções ainda modestas é
como que um ensaio para o transe mais grave de “A terrível parábola”, composição que fe-
chará o segundo terço.
Já em Encorajamento(quarto dos Poemas) o poeta refere-se ao seu dese-
joque “corre a” sua musa “com velas enfunadas. O que o noviço pede a quem ele ama é, no
entanto, apenas um porto, ou seja, uma escala, uma parada momentânea, mero intervalo de
avio, pois que o seu desejo (...) não traz âncora”
379
: é que no atual estágio da rota iniciática
378
A máxima é de Epicteto (c.55-135). Outros aspectos do estoicismo serão discutidos quando do exame de
Consciência cósmica”, carme que encerra Magma (v. as págs. 446-447, Capítulo IV, tópico 4).
379
O verbo trazsubstitui o eliminado leva.
198
não deve o ser se tardar numa estação por mais tempo do que o necessário, a fim de que possa
prosseguir viagem até a definitiva Meta.
O conhecimento que o poeta tem do amor ainda é recente, inábil. Assim, em
meio a dúvidas ele tem Medo da felicidade(quinta composição) e ocorre um Mal entendi-
do(sexta), vícios comuns que afligem a vivência humana do amor, mormente nos comos
de namoro. Também em Para os almanaques(décimo carme) há uma espécie de queixa
contra a lentidão do ponteiro das horas do relógio, o qual tece “lembranças(ou, na melhor
terminologia platônica, reminiscências) com vagar, em comparação às céleres intrigasque
minuto a minuto teimam em embaçar o brilho do tenro amor. A morosidade do caminho inici-
ático também fica simbolizada pelos pachorrentos caracóis de “Falta de armas(11ª pa), os
quais, aliás, atravancam sua evolução com o excesso de “mil desculpas. O amor novo, su-
jeito a todos esses contratempos, por vezes é visto como um dos vagos “amores platônicos
vistos de longe, muito longe, através da
(...) lua cheia,
ocular de um longo telescópio branco...
Parece que nesse oitavo dos Poemas, Epigrama”, o autor não se apega tanto
à acepção propriamente filosófica da expressão amor platônico, que diz respeito à ideal pure-
za da philo Sophia, e prefere se valer mais da acepção popular do conceito, querendo então
abordar a modo sarico aquele afeto petrarquiano cultivado à distância e que se afigura quase
impossível de ser realizado eroticamente na plenitude extática da conjunctio. São os amores
de sombras ou
1
Sombras de amores
em bailado longínquo, num palco sem fundo
como um fundo de espelho...
– o que lemos no romântico Música de Schubert(composição de mero quatorze). Cons-
tate-se, por outro lado, que o palco sem fundo/ como um fundo de espelho” em que os amo-
res bailam é o mesmo tablado da existência “onde os deuses se olham como num espelho, a
que se aludiu a propósito de “Lunático.
Não obstante, entre os momentos sombrios fulgem também clarões alegres.
Sérgio Lifar, o 13º texto, dedicado ao bailarino russo-frans (1905-1986), é um flash em
que se flagra o Desejo espiritual fazendo uso do frêmito da matéria (corpo) e da Arte para
alcançar a exultação musical no Amor:
199
1
No palco em penumbra,
como os violinos e as cigarras,
alguém canta com o corpo...
Bem assim, as cores da alegria tingem o idílico Madrigal gravado em laca” (o
nono carme), cena em que uma “borboleta coroou a flor amarela, tendo essa suavidade régia
sido saudada pela reverência dos rios. Nesse instantâneo de leveza é rememorado o abro
havido entre a vanessa tropical” e a ipoméia” no Azuldo arco-íris. A borboleta, como
vimos, representa a alma em ascensão, liberta do peso do casulo material, e por conseguinte o
renascimento do iniciado, ao passo que os rios são a imagem clássica do amor, tanto o mais
espiritual quanto o mais erótico, e ainda símbolo do “abandono stico à graça de Deus
380
.
Além do mais, conta-se que Perséfone estivesse colhendo um lírio quando foi raptada por Ha-
des, o que se coaduna com o sentido mistagógico da descida do neófito ao reino das sombras.
Com isso podemos interpretar o terceto como uma metafórica “saudãoou homenagem a
quem já tenha cumprido o trajeto iniciático, realizando a harmonia do celeste com o terreno e
liberando-se das contingências do profano; os que laudam compõem uma assembléia de novi-
ços (o jardim de “rios) esperançosos de cumprir seu itinerário com sucesso igual ao da
venturosa “flor amarela”, uma aspiração a ser inequivocamente efetivada, eis que o rio tam-
bém significa a realizão das possibilidades antitéticas do ser
381
.
Um dos mais importantes Poemas” é o de mero doze, intitulado Bergson:
1
Uma águia continua,
ao sol do dia,
os vôos do mocho de Minerva.
Recordemos que na noite de “Luar na Mata” (I Cinema”), “as corujases-
voaçavam sem fazer rumor. Agora, é “Uma águia– ou seja, Bergson– quem “continua,/
ao sol do dia,/ os vôos do mocho. A presença dessas duas aves na composição é assaz rele-
vante:
Ave noturna, relacionada com a Lua, a coruja não consegue suportar a luz do
Sol e, nesse particular, oe-se portanto à águia, que recebe essa mesma luz com os
olhos abertos. Guénon observou que se podia ver nesse aspecto, assim como na rela-
ção com Atena-Minerva, o símbolo do conhecimento racional percepção da luz (lu-
nar) por reflexo – em oposição ao conhecimento intuitivo – percepção direta da luz
(solar).
382
380
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 554. V. os Cantares, passim, e Mt 6.28-29.
381
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 554.
382
Id., op. cit., pág. 293. Grifo dos autores.
200
Esta é a oportunidade para se transcrever o seguinte fragmento de uma carta de
Guimarães Rosa:
Ora, Vojá notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essência, são
antiintelectuaisdefendem o
alssimo primado da intuição
, da revelação, da inspi-
ração,
sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva
, a megera cartesiana.
Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Pau-
lo, com Platão, com Plotino, com
Bergson
, com Berdiaeff com Cristo, principal-
mente.
383
Depreende-se que a razão, megera cartesianaque voa com as asas do mo-
cho, foi mais útil no umbroso primeiro terço, em que o aprendiz ainda ignorante completava
os
Pequenos Mistérios
. Mas já sendo instruído nos
Grandes Mistérios
, o poeta deve fazer bem
melhor uso da aquilina sabedoria intuitiva, o que concorda com a filosofia espiritualista de
Henri Bergson, um dos pensadores diletos de Guimarães Rosa e que chegou a receber o epí-
teto de “o Davi destinado a matar o Golias do materialismo
384
. Nesse contexto, as imagens da
coruja e da águia são absolutamente pertinentes, pois se a soturna estrige tem visão adaptada à
noite, doravante convém que ela seja substituída pela águia que valentemente abre os olhos
para a luz do Sol, submetendo-se com fé à dor cegante que trazem as grandes e ardentes re-
velões. Fica claro que é desde
Magma
que o pensamento rosiano já demonstra preferência
pela
intuição
bergsoniana como instrumento para se enxergar de uma maneira muito mais efi-
caz as verdades que estão fluindo pelos recônditos mais
íntimos
do ser.
Os quatro Poemasfinais são Taumaturgo, Oração, Justificação” e Pai-
sagem. Essas peças parecem cuidar de algumas das qualidades que o poeta deve cultivar em
sua busca iniciática.
Taumaturgo” é um retrato da relação criativa do ser humano para com a natu-
reza: as a menção ao preservacionista “jardim Hagembeck(inovador zoológico localizado
em Hamburgo, que teria sido projetado pelo dadaísta Johannes Baader e no qual os animais
não são enjaulados, mas vivem ao ar livre, em ambientes separados dos visitantes por fossos,
um modelo posteriormente copiado por zoológicos do mundo todo) e à Arca de Noé (onde o
homem salvou os animais da extinção), Guimarães Rosa alude ao gênio
taumatúrgico
de
Rudyard Kipling, escritor que
cria “Muitos bichos reunidos” ao longo de sua literatura, em
especial nos dois volumes do
Livro do jângal
. O fulcro do texto guimarrosiano parece ser a
amizade e a benevolência que o ser humano deve demonstrar no contato com a natureza, uma
vez que a perfeita integração com o Universo e com todas as outras criaturas deve fazer parte
383
Rosa, em carta a BIZZARRI, 29, 58. Grifei.
384
DURANT, 165, 412.
201
dos ideais do neófito
385
. Aliás, de se lembrar que os Aquários e Zôos são motivos que se des-
tacam no conjunto de Ave, Palavra, obra em que há duas séries de pequenos textos que com-
partilham o mesmo nome de “Zôo (Hagensbecks Tierspark, Hamburgo – Stellingen); na
primeira delas lemos este
PÓRTICO: Amar os animais é aprendizado de humanidade.
386
Em Justificaçãonovamente se evoca a imensidão e a pequenez abordadas
nos Hai-kais. Trata-se de um convite à humildade dos homens pequeninosdiante da natu-
reza criada por Deus, mas há também o convite à ação criativa do gênio: r o Amazonas ao
pé do Himalaia” é com certeza possível apenas na imaginação ou na criação arstica, talvez
num livro de Kipling. A justaposição do rio mais caudaloso do globo à mais alta cordilheira
de montanhas ressoa todos os significados das origens em água e pedra, conforme vimos
quando do exame de “Águas da serra. É pertinente, outrossim, atentarmos ao sentido teoló-
gico de “Justificação, que é, Na teologia de São Paulo, ato pelo qual Deus faz passar o ho-
mem pecador do estado de pecado àquele da justiça, isto é, da salvação pela fé.
387
Destarte,
podemos pensar que é também com a humildade em face do Universo criado que o ser se jus-
tifica perante Deus.
Passando agora a Oração, nesse terceto aparece a figura do louva-deus
que, “ereto, num caule de junquilho,
reza, de mãos postas, com punhais cruzados,
como um bandido calabrês...
388
O comparecimento desse inseto, cujo macho tem a cabeça devorada pela fêmea
as a cópula, significa mais uma vez que o noviço itinerante deve se preparar para enfrentar
a morte do ego – lance que, é sempre oportuno recordar, será matéria do carme “A terrível pa-
rábola” como sine qua non para a stica união amorosa com a divindade. E a morte é
igualmente o destino certo” anunciado pela “cascavel” em Paisagem
389
, composição que
conclui esse ciclo de tercetos.
385
Cf., a propósito, o peltimo poema de Magma, com o justo título de Integração(neste estudo, remeto ao
Capítulo IV, tópico 4, pág. 430 e segs.)
386
ROSA, 14, 120; v. nota 70, pág. 42 deste trabalho.
387
Enciclopédia Larousse, 172, verbete JUSTIFICAÇÃO.
388
Na palavra calabrêsforam manuscritos o acento circunflexo e o s (este sobre um z original).
389
Parece que no conto Bicho mau(originalmente previsto para figurar em Sagarana, mas depois incluído em
Estas estórias; v. explicações em ROSA, 4, 10), o autor desenvolveu narrativamente o miniaturismo desse derra-
deiro dos Poemas, o qual também guarda alguma espécie de relação obqua com seu homônimo, a segunda
das peças da Viagem de trem(v. neste trabalho o Capítulo II, tópico 4, págs. 160-161), bem como com o já
comentado Tresaventura”: é que na Paisagemda janela do comboio vê-se o quadrilátero do arrozal” e libé-
202
Findos os Poemas, devemo-nos aplicar ao estudo das Duas variões sobre
o mesmo tema”: Impaciência. Essa sofreguidão diz respeito à vontade de se alcançar com a
máxima rapidez possível o póstero momento de todos os momentos(II) no qual o poeta
pressente que a amada há de ser sua, afortunada ocasião que será, inequivocamente, o divino
momento(I).
E eis que, cansado da viagem até agora palmilhada, o amante cogita alguns
métodos de apressar a chegada da epifania, burlando a solidão rondante. Na variação I, ele
pensa em
(...) dormir
longamente...
(um sono só...)
Para esperar assim
o divino momento que eu pressinto,
em que hás de ser minha...
Quer o neófito deixar de correr, como os quidos de “Sono das águas, no
aguardo de que “o divino momentovenha até ele. Contudo, desde “A Iaraficou claro que
isso não é possível, pois é ao ser que compete a busca e o movimento. Ademais, a incerteza na
valia do subterfúgio logo vem assaltar:
e se essa hora
não devesse chegar nunca?...
Se o tempo,
como as outras cousas todas,
te separa de mim!?...
Então...
ah!, então eu gostaria...
que o meu sono,
friíssimo e sem sonhos
(um sono só...)
não tivesse mais fim...
Esse sono sem fim, frssimo e sem sonhos, equivale à idéia profana da
morte absoluta, o perecimento da alma que assim se dissiparia sem se reintegrar na essência
lulas, uma das quais é devorada por um sapo cinzento, enquanto que na Paisagemdos Poemas” a casca-
vel” chocalha o guizo anunciandoo bote e, no texto de Tutaméia, quando Maria Euzinha se dirige para o seu
arrozal, pelo caminho ela frustra o ataque de uma cobra a um sapo. A associação entre a Paisagemdos Poe-
mas” e Bicho mau, aliás, já havia sido registrada por NASCENTES (91, 7-8), na mesma passagem em que
esse especialista vincula o poemeto Oração” a este trecho do conto São Marcos, de Sagarana: E isto é tam-
bém com o louva-a-deus, que acolá, erecto, faz vergar a folha do junquilho. Ele está sempre rezando, rezando de
mãos postas, com punhais cruzados. Mas, no domingo passado, este mesmo, ou um qualquer louva-a-deus outro,
comeu o companheiro.(ROSA, 4, 260).
203
donde saiu. É a hitese que nesse instante de exaustão o poeta elege como preferível à dolo-
rosa alternativa de continuar vivendo sem nunca” acontecer o retorno ao seio da Alma Mater.
A pressa na concretização da conjunctio apresenta nova visada em II:
Se eu pudesse correr pelo tempo afora,
vertiginosamente,
futuro adiante,
saltando tantas horas tediosas,
vazias de ti,
e voar assim até o momento de todos os momentos,
em que hás de ser minha!...
Afoito, o que o poeta imagina agora é vencer o tempoque o ameaçou na va-
riação anterior. Entretanto, a sombra da dúvida ainda o angustia:
e se esse minuto faltar
nas areias de todas as ampulhetas?...
390
Melhor do que enfrentar a solidão sem termo seria, então, não ter vivido nem
usufruído da liberdade da existência, e assim o amante declara que quereria antes
(...) desviver para trás, dia por dia,
para parar só naquele instante,
e nele ficar, eternamente, prisioneiro...
(Tu sabes, aquele instante em que sorrias
e me fizeste chorar...)
Esse “instante”, como podemos constatar, é o Passado de todos os passados, o
preciso átimo em que “as formas e as vidas se desprenderam/ das mãos de Deus” e as Águas
da serra” jorraram como lágrimas sempre correndo.
O que deve restar das duas variantes é que, malgrado a “Impaciência” do novi-
ço, a “Distância sentimentalque o separa do sagrado enlace com a divindade é um caminho
sem atalhos, que deve ser percorrido in totum, minuto a minuto, conta a conta. É justamente
esse sentido que vemos na próxima composição: as Mil e uma noitesevocam o longo perí-
odo de escuridão em que os seres ficam enquanto estão afastados da Origem, quando
(...) nossas almas espiam,
temerosas,
e tristes, por detrás das cousas vagas
(odaliscas da Armênia
atrás das grades do harém...)
390
Anteriormente grafado faltasse, o que foi substituído por faltar” ao se manuscrever o r por sobre o seg-
mento sse.
204
Ai!... tantas cousas,
que só graças a Alá não sufocaram nosso amor
ao nascer...
As “cousas vagassão nada mais do que as ilusões e aflições da vida, o véu de
Maya
que enreda o espírito em malhas que, conquanto se assemelhem a duras grades, são
em verdade “vagas, efêmeras, e portanto não têm o condão de
sufocar
o vero “amor. Então,
o poeta afirma:
Continuemos...
a narrar as estórias, essas criações de nossa imaginação intuitiva. Tal circunstância, a de dar
continuidade ao desenvolvimento da fantasia, tem um valor considerável: psicanaliticamente,
a concepção fantasista está ligada à organização do indivíduo, eis que ela trabalha com a tra-
dução dos desejos, sejam eles conscientes ou não. Deve-se ressalvar que, do ponto de vista de
Freud, as fantasias podem ser originárias aquelas que recuperam episódios recalcados da
vida infantil e comem a estrutura mais ou menos fixa da criação fantasista – ou secundárias
as quais consistem em modos de elaboração que quase sempre deformam a cena originária,
dificultando o seu reconhecimento. Já para Jacques Lacan, a fantasia corresponde a uma inter-
secção entre o Simlico e o Imaginário, sendo aquele o acervo cultural que determina as leis
positivas e negativas da produção fantasista ao conferir-lhe significantes primários, e este o
conjunto dos subsídios próprios que cada pessoa constrói ao longo da vida. Ora, podemos
aplicar os dados tanto do pensamento freudiano como do lacaniano à Poesia, a qual pode ser
explicada como um modelo lingüístico simlico utilizado por todo e cada ser para poder se
voltar sobre os lances pretéritos de sua existência espiritual – havidos desde o Nascimento,
desde a saída da
Alma Mater
e poder assim expressar o Desejo de retorno
ad uterum
sob a
forma de uma fantasia que seja mais apreensível pelo
eu
, o qual ainda não sabe
ver
ou
sentir
a
si próprio e a sua essência, senão mediante o auxílio de signos. No atual momento de
Magma
essa fantasia é o impulso da
conjunctio
amorosa, e a desistência no prosseguimento da produ-
ção fantasista equivaleria a uma prevalência do recalque, e logo a uma vitória dos maus dji-
nosde atalaia (conforme a expressão da peça rosiana em pauta).
Continuemos, por conseguinte, a desfiar os contos das Mil e uma noites,
tal como as contas do rosário, porque
A hora decisiva
reponta, sempre nova,
qual furtiva gazela
que vem ao lago beber...
205
A furtiva gazela” sucede à “arisca veadade “Luar na mata” (II Rapto): se
naquela ocasião o cervídeo pôde raptar a lua, também o neófito alcançará, no devido tempo, a
sua “hora decisiva”. É assim que ele insiste:
Desistir?... Terminar?...
Os maus djinos espreitam...
Voltemos a contar...
Pois
(...)
O dia vai raiar...
E assim espero
a milésima primeira madrugada,
quando Scheherazada
conta a última história
ao Sultão Schahriar...
É desse modo que a perseverança responde à Impaciência”.
A peça seguinte é Ironia”, em que
A noite fria, no jardim fechado,
joga convites
para os namorados.
Enlevado por esses “convites, o amante ousa pedir:
Beija-me, querida, nesta noite fria,
toda de alegria...
Mas
Não queres beijar-me?
Queres ir embora?
Perdoa... Eu pensava
que gostasses de mim...
Quanta ironia
nesta noite fria,
no escuro do jardim...
Esse “jardim, que vai ficando cada vez mais “escuroe frio (até “Os vagalu-
mes já vão (...)/ apagando as lanterninhas frias), representa o
eu
que se sente abandonado.
Porém, se a “querida” não quis beijar o namorado, procedeu assim não por desamor, e sim
apenas porque ainda não é a hora: o sentimento e a saudade do ser, sua fé, devem fortalecer-se
muito mais antes que os amantes possam se unir.
206
Chegamos por fim ao poema “Meu papagaio, em que o poeta, pateticamente,
dá-se a ouvir as poliglóticas confissões de amor palradas pelo bicho tagarela, o qual, empavo-
nado em seu fraque verde com botões cor de ouro,
Repete, discursando,
gravemente:
Io tamo!...
Je taime!...
I love you!...
“Te amo!...
“Te quiero!...
Iá vás liubliú!...
Vai repetindo, amigo,
caridoso,
a cada instante, sem parar,
tudo o que a minha esquiva amada
teima em não me dizer...
O noviço, assim, de acordo com as constantes oscilões que marcam o segun-
do terço, recorre neste comenos a uma farsa para compensar a falta de confiança dele mesmo
no amor de sua musa. Noutros termos, pode-se dizer que, defrontado com o silêncio negacea-
dor da tão esquiva amada, o neófito por um instante se volta para a mais acessível ilusão da
Babel multitudinária do mundo, o qual, repleto de afirmões ocas, acaba agora sendo encar-
nado pelo papagaio. E este, apesar de reputado como Real, vive “empoleirado” e preso em
sua gaiola alta, então uma ave sem qualquer possibilidade de levantar vôo e fruir a liberta-
ção. Outrossim, por mais que se admita um eventual afeto por parte do simpático animal de
estimação em relação ao dono, decerto que se afigura muito difícil acreditar na sinceridade
das suas quase que automáticas declarões amorosas, pois que o bicho fala sem atinar com o
sentido de sua própria falação.
Por outro lado, é mister enfatizar que o Papagaio Louro, tido como um “con-
fidente”, um amigo” e um consolador, apenas Repete” o que ouve de outrem no confessi-
onário sentimental: o
discurso
aprendido pela ave é, portanto, um testemunho
eloqüente
da
franqueza do desejo que o iniciando – a verdadeira fonte das confidências – permanece nu-
trindo, em seu magmático âmago, pela divina musa.
Ouvidos todos os Cantares de amor e medo” em
Magma
, acompanhemos do-
ravante o cultivo das flores do Jardim onírico.
207
3. JARDIM ONÍRICO
Que belo é o teu amor,
ó minha irmã, noiva minha!
Quanto melhor é o teu amor do que o vinho,
e o aroma dos teus ungüentos
do que toda sorte de especiarias!
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
, 4.10
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a
[cara dela no meio.
FERNANDO PESSOA
A partir de “Derioinstaura-se uma brumosa ambiência de sonho que se pode
aparentar à embriaguez sagrada universalmente experimentada pelos neófitos no decorrer das
solenidades mistagógicas.
Nas palavras de Van Gennep,
A anestesia do noviço é um elemento importante dos ritos de iniciação. Na
América é obtida pela ingestão de tabaco, toloache, peiotl, e em outros lugares medi-
ante fumigações, flagelações, maus tratos, suplícios, etc. A finalidade consiste em fa-
zer morrero noviço, fazê-lo perder a lembrança de sua primeira personalidade e do
mundo anterior.
391
Chevalier e Gheerbrant complementam que
A ebriedade espiritual é um símbolo universal: pertence não só à linguagem
dos místicos cristãos e muçulmanos, para os quais engendra a perda do conhecimento
de tudo o que é alheio à Verdade, i. e., o esquecimento até do nosso esquecimento
,
mas também à linguagem dos próprios esoteristas. A embriaguez do espírito não é
apenas um
transporte
das faculdades mentais, uma vez que o vinho é, ele mesmo, si-
nônimo de conhecimento. Não é também um símbolo verbal, analógico, pois que, um
pouco por toda parte, o homem recorre à embriaguez física como meio de acesso à
espiritual, libertando-se do condicionamento do mundo exterior, da vida controlada
pela experiência: era assim nos mistérios gregos e no taoísmo, cujos sábios
beberrões
são famosos.
392
Do exame das composições Derio, Ausência”, Gargalhada, O Caboclo
dágua”, Sonho de uma tarde de inverno” e Hierograma” resulta cristalino o sentido de ar-
rebatamento inebriante que toma o aprendiz e cujo fito é tão-somente “fazê-lo perder a lem-
brança de sua primeira personalidade e do mundo anteriorprofanos, preparando-o para se
submeter à gravidade da Morte ritual que será apresentada na subseente peça “A terrível
parábola, que fecha o segundo terço.
391
VAN GENNEP, 280, 80, nota 230.
392
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 364. Grifos dos autores.
208
O estado de arroubo é claramente induzido, em Derio, pelo perfume de
heliotrópios” e pelo gosto de papoulas. Ausência”, em que se faz alusão a um frasco
abertodonde “voam violetassinestésicas, e “Sonho de uma tarde de inverno, onde paira
um fumaroso hálito de incenso, seguem a mesma linha de embriaguez aromática, bem como
Hierograma”, cujo ar é odorado por lácteos jasmins de cheiro ucarado. Nota-se que o
inebriamento é, o mais das vezes, provocado por fragrâncias florais.
Quanto a “Gargalhada” e “O Caboclo dágua”, a “anestesia” é provocada pre-
cipuamente pelos maus tratos, supciossentimentais e o medo a que o noviço é submetido,
além de que esses textos, circundados pelos demais do ciclo atual, ficam tocados pela olorosa
atmosfera extravasante que predomina. O tom fantástico da composição sobre a figura de nos-
so folclore também contribui para o clima onírico.
Observemos então esses poemas, um a um.
Deriotem um sabor sensual que à primeira vista parece indicar a concreti-
zação do desejo erótico do poeta, ou pelo menos a iminência desse evento:
Minhas mãos sabem de cor o teu corpo
e a alcova é morna...
Apaguemos a luz...
Porém, os símbolos presentes no poema imem duas conclusões: a primeira é
a de que o desejo erótico é inconfundivelmente apenas uma representação do desejo anagógi-
co; a segunda é a de que esse desejo, quer erótico quer anagógico, não chega a se cumprir, isto
é, o Derionão é o frêmito febril do encontro realizado mas, pelo contrário, a sensação de
realização do encontro é o resultado ilusório do Delíriogerado pela embriaguez de “helio-
trópios” e “papoulas. Ocupemo-nos desses signos.
O termo heliotrópioserve para designar tanto uma flor em particular, de co-
loração azul, como, no geral, qualquer das várias espécies de plantas cujas flores, folhas ou
hastes têm a propriedade de se mover em busca da luz solar mais direta, e dentre as quais o gi-
rassol é a mais característica. E justamente essa
propriedade (...) de mover-se constantemente para acompanhar a evolução do Sol
simboliza a
atitude do amante, da alma, que volta continuamente seu olhar e seu pen-
samento para o ser amado
, a perfeição sempre dirigida para uma presença contem-
plativa e
unitiva
.
393
393
Id
.,
op
.
cit
., pág. 486. Grifei.
209
Por isso o heliotrópio, stricto sensu, também está associado à prece, inclusive
no pensamento neoplatônico: Para Proclo [lebre filósofo do séc. V], o heliotrópio, com a
sua cor celeste, reza, pois que se volta incessantemente, com insigne fidelidade, para o seu
Senhor.
394
O apelo simlico dessa flor abrange ainda, na cristandade, a representação da
presença iconográfica das pessoas divinas ou santas, tais como a Virgem Maria, os anjos, pro-
fetas e astolos, elenco no qual se insere Sophia. De outro lado, o olor da planta é tido como
capaz de despertar a sensualidade e por si só simboliza também a embriaguez e o arrebata-
mento, tanto da stica quanto da glória ou do amor.
395
Vemos como tudo se liga de forma notável à inteligência da peça “Derio” e de
toda a orientação magmática anagógica que no segundo terço se pauta pela atração amorosa.
Cabe outrossim destacar que qualquer perfume sempre evoca o sentido de memória de quem
está ausente
396
, memória que, no poema em discussão, quer se referir à ausência da mulher
amada, cuja proximidade é apenas imaginada pelo enamorado em meio ao estado febricitan-
te. Mas antes de passarmos à especificidade do texto, quadra destacar mais um aspecto do
simbolismo do heliotrópio:
Na lenda grega, Clítia foi amada, depois abandonada pelo Sol – que a deixou
por amor de outra donzela. Inconsolável, Clítia se consome de mágoa e se transforma
em heliotrópio, a flor que gira sempre em torno do Sol, como que em torno do amante
perdido. Simboliza a incapacidade de superar a paixão e a receptividade ao influxo
do ser amado.
397
Temos que o poeta, em Derio, aspira a fragrância de “heliotrópiosque “um
perfumista oculto/ ordenha”: a particularidade de ser o perfumista ocultojá antecipa a au-
sência da própria amiga. A solicitação Deixa aberta a janela...é por seu turno indistinta, -
pica de um quadro delirante, e diz respeito não a um pedido feito a outrem, mas sim a um es-
tímulo que o amante envia a si próprio para que ele se abra de forma cada vez mais receptiva
aos eflúvios narcotizantes que, na intimidade do eu ou na “alcova (...) morna” e sem luz, in-
duzem à “febre”. Esta, significativamente, fala baixinho, ao (...) ouvidodo apaixonado, so-
bre sua amada, e daí o inevitável Derio” em que o enamorado sonha com o “corpoda
mulher, o qual diz conhecer de cor, isto é, de coração. A presença da femina, que está lon-
gínqua como o sol, é portanto apenas uma efígie lucilante desenhada pela condição febril. É
394
Id., ibid.
395
Id., ibid.
396
V. id., op. cit., págs. 709-710.
397
Id., op. cit., pág. 486.
210
também significativo que o tresvariado chega a pedir à etérea imagem vislumbrada que “não
me digas nada: pois é certo que a palavra poderia simplesmente quebrar o encanto da “fe-
bre” que fala “baixinho. Ora, essa “febre, afinal de contas, não é mais do que um sintoma
percepvel do entranhado ardor magmático, o qual sussurra ao ser sobre a presença divina
que não deve ser buscada no mundo exterior, e sim, de uma forma precípua, no espaço aními-
co de cada indivíduo.
E a embriaguez do delirium amoroso é tão intensa que o poeta indaga à amiga
imaginária:
Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?...
É que ele, certamente, sente-se como que opiado ou, por outra, o ópio concorre
com o perfume de heliotrópios para o estabelecimento da narcose que, anestesiando as sensa-
ções físicas, prepara o neófito para a experimentão de sentimentos de outra ordem, mais in-
teriorizados, ou seja, prepara-o para o descobrimento do correr do fio do rosário por dentro
do ser. Recorde-se ainda que, quando da análise da peça “Vermelho, aludiu-se à mudança de
gosto na boca do poeta como ensejadora da abertura para uma nova percepção da realidade: é
o mesmo mecanismo de utilização do estímulo sensorial como preparação para alcance de ex-
periências anímicas, tal como em Derioo gosto de papoulasna “boca” é um indicativo
do estado onírico, isto é, um indicativo de que se passa da realidade profana para o sonho sa-
grado.
Neste ponto, deve-se igualmente mencionar o nexo que pode ser traçado entre
Derio” e o poema Amarelo, também dos iridescentes: em ambos se faz referência a
plantas heliotrópicas (antes soubemos dos sulfúreos e asiáticos girassóispictóricos) e, se na
peça irisada o artista Kuang-Lingse encontrava “feliz de ópio, e ébrio de dragões, agora o
poeta delirante faz referência a um gosto de papoulas, as flores das quais se extrai esse nar-
cótico.
Dessa nova componente do Jardim oníricomagmático pode-se observar o
seguinte:
No simbolismo eleusino, a papoula que é oferecida a Deméter simboliza a ter-
ra, mas representa também a força de sono e de esquecimento que toma os homens
depois da morte e antes do renascimento (...). A terra é, com efeito, o local onde se
operam as transmutações: nascimento, morte e esquecimento, reaparecimento. Com-
211
preende-se que a papoula seja o atributo de Deméter, com a qual se identifica simbo-
licamente.
398
Embora em
Magma
o momento da Morte ritual ainda não tenha chegado, os
vínculos da papoula com a força de sono e de esquecimento” e com as propriedades regene-
rativas da interioridade da terra, onde se processam as operões alquímicas do magma ínti-
mo, são plenamente relevantes para o presente estágio iniciático.
Cumpre deixar bem transparente que a nuance onírica do Deriose espraia e
perpassa as composições que o seguem: em Sonho de uma tarde de invernoo narrador des-
fia as cenas do
vago torpor do meu subsonho
” e em Ausência” até “as sandálias sonham. E
tudo, por fim, está tocado pela “Distância sentimentaldo sonho/ dentro do meu sonho pri-
mitivo...
Tornemos agora a atenção para o poema imediatamente posterior. As o De-
rio, em que “a alcova é morna, o namorado acorda “no quartoe depara-se com a “Ausên-
cia” da amada:
Na almofada branca,
as sandálias sonham
com a seda dos teus pés...
Partiste...
Mas a alegria ainda ficou no quarto,
talvez no ninho
morno
, calcado por teu corpo
no leito desfeito...
Repare-se que a mornidão do ninhono leito desfeito, ainda que seja credi-
tado pelo amante ao calor do “corpoda fêmea, bem pode ser resultado dos movimentos dele
próprio em meio à febre”.
Mais importante, no entanto, é atentar para a diafaneidade da mulher, cujos
péssão de “seda”, mais que macios: frágeis, fugidios, leves a ponto de ir embora com o
vento. Esses pésseferos, que se afastam deixando “as sandálias, relacionam-se com o
lenço de seda das tuas mãosque feericamente haviam se aproximado da “frontedo delirante
no texto anterior.
Os pés descalços têm um apreciável valor mistagógico, mas na imensa maioria
das vezes fala-se mais sobre o
monocrepide
, ou seja, a figura calçada com uma só sandália
(um eufemismo para a claudincia), tal como nos Mistérios de Dioniso, em cujas dramatiza-
398
Id
.,
op
.
cit
., pág. 684. Grifo dos autores, que citam a obra de Victor Magnien,
Les mystères dEleusis (leur
origine, le rituel de leurs initiations)
.
212
ções o deus freentemente aparece apenas com o pé direito calçado
399
. No que tange a Au-
sência”, considere-se que, ao ter se descalçado em presença do poeta, a amiga dá mostras da
intimidade que já se estabeleceu entre o casal, uma vez que esse gesto se constitui numa pre-
liminar do completo desnudamento.
Vale ainda notar: partindo descalça a mulher, as sandálias ficam como uma
prova tangível de sua presença. Isso não vai contra a idéia de que a personagem feminina em
questão é uma imagem esvanecente de um Derio: ao invés, voltamos por essa via à clássi-
ca situação dos contos de fadas em que se instaura a hesitação entre a realidade e a fantasia
400
,
o que enriquece sobremodo a atmosfera onírica. Destarte o sonho, conquanto névoa impalpá-
vel, revela-se absolutamente apto a imprimir no real as vigorosas marcas de sua energia
transmutativa, o que é verdade não somente sob a mais alta perspectiva anagógica, mas tam-
bém de uma visada tecnológica mais corriqueira: o Homo faber é aquele que recria, na reali-
dade cotidiana, os objetos previamente criados na idéia ou no sonho.
Interessa-nos, em conseência, ver mais de perto o simbolismo das sandálias.
Estas são tomadas, em diversos sistemas mitológicos, como o substituto do corpo dos Imor-
tais(China taoísta) ou como vestigia pedis a serem rastreados na caça, inclusive, simboli-
camente, na caça espiritual:
Observe-se caso muito particular – o sentido esotérico que al-Jili dá às san-
dálias: vestígios dos dois aspectos polares da Essência (os pés) no mundo manifes-
to.
401
O fato de ter a musa deixado seus calçados feminis para serem encontrados
pelo amante é um nítido convite para que ele, tal como no conto de Cinderela, vá ao encontro
da amada e identifique-a com certeza entre tantas outras falsas pretendentes. Ademais, de pos-
se das sandálias o noviço tem confirmada a sua condição e disposição de viajante, eis que os
solados em geral são o símbolo da viagem e do peregrino, sentido que também se aplica ao
itinerarium mentis ad Deum.
Por outro lado, é de se lembrar que no Velho Testamento (Rute 4.7)
Este era, outrora, o costume em Israel, quanto a resgates e permutas: o que
queria confirmar qualquer necio tirava o seu calçado e o dava ao seu parceiro; as-
sim se confirmava necio em Israel.
399
V. GINZBURG, 182.
400
Mutatis mutandis, Jeane Mari SantAna Spera parte deste ponto para levar a efeito o seu primeiro estudo so-
bre Tutaméia, apoiando-se no trabalho de Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica. V. SPERA, 84,
7-24.
401
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 800. Grifos dos autores. V. tb. as págs. 694-696.
213
À luz dessa antiga prática bíblica podemos entender melhor a presença das
sandálias na peça de Magma: legando-as aos cuidados do amante, a divina amada estabelece
simbolicamente a posse amorosa que ela detém sobre ele, eis que calcar os pés ou mesmo lar-
gar o calçado sobre um terreno significa afirmar de maneira fática o direito de propriedade. E
eis que esse direito é aceito e veementemente selado pelo poeta com um ósculo, o que vemos
na estrofe que finaliza “Ausência:
E na almofada de seda,
beijo as sandálias brancas,
vazias de teus pés...
402
Muito mais do que a mera satisfação de um fetiche pelatra, o beijo deposita-
do nas sandálias brancasquer significar a profunda reverência do ser diante do divino. Po-
demos apreender isso através da colação de certas passagens evangélicas. Primeiramente, em
Marcos 1.7 lemos o testemunho de João Batista:
E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais poderoso do que eu, do
qual não sou digno de, curvando-me, desatar-lhe as correias das sandálias.
403
Fica aí bem patente o recurso do Batista à humildade perante os vestigia pedis
do Messias para demonstrar o extremo respeito votado ao próprio Messias. É consabido que
entre diversos povos e ao longo de várias eras, inclusive na atualidade, a saudação honorífica
é usualmente acompanhada por ósculos nos pés, o que para os judeus era também associado à
prestação do pedilúvio. Deste modo, conta-se em João 12.3:
Então, Maria, tomando uma libra de bálsamo de nardo puro, mui precioso,
ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos; e encheu-se toda a casa com
o perfume do bálsamo.
404
O mesmo episódio é narrado em Lucas 7.37-38 com estas palavras:
E eis que uma mulher da cidade, pecadora, sabendo que ele estava à mesa na
casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com ungüento;
e, estando por detrás, aos seus pés, chorando, regava-os com suas lágrimas e
os enxugava com os próprios cabelos; e beijava-lhe os pés e os ungia com o ungüento.
Nesse caso, além de tudo, consoante Jesus ensinou a seu anfitrião, os beijos nos
pés representavam o sincero amor e a contrição da “pecadora, a qual teve assim suas faltas
402
A forma inicial eu beijo as sandáliasfoi alterada a mão com a supressão do pronome.
403
V. tb. Mt 3.11, Lc 3.16 e Jo 1.26-27.
404
Cf. Mt 26.6-13, Mc 14.3-9 e Jo 12.1-8.
214
perdoadas. No clima iniciático de Magma podemos pensar também em mais um passo da pu-
rificação do noviço.
É a hora de recordarmos a cena de “Elegia, em que o poeta se queixa à “pe-
quenina” musa, por não ter tido ele a oportunidade de “calçar, com beijos, os teus pezinhos:
em Ausência” o enamorado pôde ao menos manifestar o seu amor com um reverente ósculo
deposto nas metonímicas sandálias brancasque a amada deixou como sacra, um sinal claro
e inconteste de sua teopsia onírica.
Visto o mais importante, para desembararmo-nos de “Ausênciabasta tão-só
a verificação rápida de um detalhe, já de passagem para a próxima peça. Interessa anotar que,
Esfuziante e verde,
um beija-flor entrou pela janela.
(Pensei que a tua boca ainda estivesse aqui...)
O colibri tem evidente parentesco cromático e de subitaneidade aérea com o
besouro/ de asas verde e ouroque vem ao quartodo neófito no primeiro dos Poemas.
Outrossim, a ave faz o poeta pensar na “bocada mulher, decerto a mesma “bocaonde quiçá
houvesse um gosto de papoulas” e da qual podem sair severas palavras, como propõem os
versos iniciais de “Gargalhada, texto ao qual já passamos:
Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Todavia, o anúncio da musa não se deve a qualquer desapro ou falta de amor,
conquanto assim se afigure ao poeta. Trata-se mais de uma negaça cujo objetivo é manter o
neófito em movimento, ao instigá-lo a ir atrás da mulher que parte; deve ele vencer o medo da
rejeição e provar seu amor, entregando-se totalmente, ainda a despeito do aparente menospre-
zo da amada. Pois que o amor, para ser fidedigno, há que ser incondicional. É desta maneira
que, ao breve instante do pavor das cavernas vazias, i. e., do medo do eu sozinho de volta
ao escuro da “Gruta do Maquiné, sucede a seguinte reação por parte do apaixonado:
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como as lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
215
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não creara o mundo...
405
Portanto, apesar da “impassibilidade” da amada, a qual como um executorse
prepara para propiciar o sabor da morte ao amante, ele vislumbra “nos olhosdela, por meio
da
intuição
, o verdadeiro motivo de tudo, e então simplesmente se “ri. Esse riso ou Garga-
lhada” não é porventura qualquer expressão histérica de desespero perante o sofrimento mas,
ao contrário, refere-se justamente à
inutilidade
das torturas predestinadas, à fatuidade das
dores da existência, as quais não têm força para tolher o ímpeto do grande Amor contra o qual
parecem investir e então somente o temperam em forja ardente para mais robuste-lo. Ou:
A SAUDADE é necessária. A SAUDADE, o delicado sofrimento. A angústia/
que varre/ das folhas secas/ a árvore. A SAUDADE que sorri? A SAUDADE que
avança. SAUDADE é quando os semicegos tentam fazer-se olhos?
E:
É preciso ter saudade de ti,
mesmo perto de ti
. PARA MAIS PERTO!
406
Não se deve descuidar de que o poeta fala das lágrimasque lhe marejam os
olhos: malgrado a tristeza que evocam, elas também dizem respeito ao
movimento do ser
, eis
que estão as águas e as lágrimas sempre correndo(Águas da serra”) e “a água dos olhos/
nunca tem sono(Sono das águas), do que podemos inferir que, se o noviço não chorasse,
encerrado estaria agora o caminho iniciático, ou pelo peso da prostração diante do abandono
imposto pela efígie feminina ou então pela indiferença do próprio poeta, o que denotaria o seu
falho amor ou, por outra, o seu desamor. Entretanto, reagindo com o pranto catártico conco-
mitante ao poder desmistificador do riso, o ser divulga o ânimo de prosseguir com sua trajetó-
ria. Ouvimos aqui novamente ecos de Bergson: com alguma licença se diga que o amante ro-
siano abandonado se
ri
dos maquinais reveses da vida, totalmente impotentes que são para
impedir o avanço do ser, caso este se resolva a assumir a responsabilidade de tomar as rédeas
de seu próprio movimento rumo à mutação para a verdadeira Vida. Logo, a “Gargalhada”
consiste num grito de triunfo do
élan
em face do mundo, triunfo já preludiado na prédica de
Iniciação” e a ser definitivamente confirmado pelo sereno silêncio em Consciência cósmi-
ca”.
Quanto aos olhosda
femina
,
405
Sobre a forma
creara
, v. a nota 362 (pág. 191).
406
ROSA, 14, respectivamente págs. 51 e 52 (Evanira!). Grifos do autor. V., neste estudo, a nota 65 (pág. 39).
216
belos como o veludo das lagartas
verdes,
têm eles também sua razão de ser, uma vez que evocam os olhos
verdes
de muiraquitã” que
tem A Iara”. A sereia, aliás, é expressamente mencionada em O Caboclo dágua, composi-
ção que vem em seguida a Gargalhada”, sendo que essa alusão mais uma vez deixa patente
que o ícone feminino no segundo terço de
Magma
é sempre uma atualização da mesma efígie
sedutora original da Mãe dÁgua.
Vejamos, pois, o texto sobre “O Caboclo dágua”, que se divide em metades
bem demarcadas. A abertura, que compreende duas estrofes, descreve o ambiente ribeirinho,
alinhavando diversos
flashes
que poderiam até ser destacados como poemetos soltos, às vezes
bastante próximos do haicai:
No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas se ensaboam
antes de saltar.
(...)
entre as moitas de sarãs e canaranas,
o puraquê tem pensamentos
de dois mil
volts
.
(...)
dois botos zarpam, resfolegando,
com quatro jorros,
a todo vapor.
E os jacarés compridos, de olhos esbugalhados,
soltam latidos, e vão fugindo,
estabanados, às rabanadas, espadanando...
407
Depois dessas cenas à guisa de intróito, as três outras estâncias se detêm sobre
o aparecimento do Caboclo dágua. Esse ente folclórico, que segundo a lenda habita as pro-
funduras por sob as ribanceiras mais sossegadas do São Francisco, é de início descrito pelos
versos como grotesco e “ameaçador, mas ao final do poema se revela “choroso” e “com
olhos tristonhosde lastimar o abandono de “tantos anosque lhe foi impingido pela “ingrata
Iara. Por conseguinte, à primeira vista ele poderia até ser tomado pelo poeta, o qual foi dei-
xado pela mulher que em Gargalhadahavia noticiado sua partida. Importa perceber, contu-
do, que o poema em questão dá indícios de que o Caboclo, bem de conformidade com a tradi-
ção popular, mora no poço/ da quarta volta do rio, no
407
Eis o comentário de NASCENTES (91, 3) a respeito desse fragmento: vemos, sobre o peixe, a projeção do
processo de crião arstica vivido pelo autor. Afinal, pensamentos de dois mil
volts
teve-os Guimarães para
humanizar o puraquê, atribuindo-lhe a racionalidade vista no boi Rodapião de
Conversa de bois
, mediante a
simples substituição do complemento de
ter
, quebrando a expectativa do leitor, cujo conhecimento de mundo o
predispunha a combinar dois mil voltscom o elemento
descarga
e não com pensamentos. Que choque leva-
mos!Grifos do autor.
217
(...)
fundo
do grande remanso
, onde ninguém acha o fundo...
Vindo das
profundas
mais abissais da “água
parada
, o Caboclo não pode
ser o aprendiz que há tempos já acompanhou, Na Mantiqueira, o
salto
lunar para o
alto
. O
gorila de olhar humano” é, em realidade, uma personificação fantástica dos
jovens
afoga-
dosque ficaram estagnados nas águas das profundezas em companhia das sereias européias,
à espera de que “A Iara” viesse, e, bem assim, é uma personificação simiesca das criaturas
das formas não de todo feitas” aludidas em Iniciação, ou seja, os dormentes que preferiram
algures gozar do Sono das águas” e não foram avante com o movimento ascensional. Agora
o Caboclo vem subindo” à procura da sereia, o que demonstra que todo ser pode, a qualquer
tempo, reencetar o seu caminho para Deus, contanto que o faça a partir do mesmo ponto em
que parou outrora. Entrementes, o que mais nos interessa saber é que o poeta que “
reza
o ro-
sário” está por ora representado na seguinte personagem:
E o
canoeiro
, de facão pronto,
fica parado,
rezando
baixo,
sempre a tremer.
O canoeiro, que vem no remo, é quem toca o próprio destino à flor das on-
das,
rezando
e
movendo-se
. Ele “fica paradopor um átimo, temeroso de que o gemido
que ouve signifique algum perigo capaz de levar a pique a “canoinhajá “quase a virar. Não
obstante, o homem logo já não tem medo, ao entender que o Caboclo está somente se lamu-
riando com saudades da Iara. Assim tranqüilizado, o canoeiro não tem mais motivo para tar-
dar-se por mais tempo naquela “volta do rio, e deverá então prosseguir viagem.
A próxima estação é “Sonho de uma tarde de inverno, em que a ambientação
onírica é outra vez acentuada: o poeta narra os lances do vago torpor do meu
subsonho
408
,
ecoando-se o sonho/ dentro do meu sonho primitivoque ressoara em Distância sentimen-
tal.
A circunstância de se passar o quadro numa “tarde de invernojá ilustra o
frioda solidão em que o noviço se encontra. E nessa “tarde quieta, as excitar a imagina-
ção com a leitura de
uma crônica do tempo merovíngio,
dos monges da Abadia de Cluny,
409
408
Foi feita uma litura sobre a forma
de um
subsonho.
409
Antes escrito
dos tempos merovíngios
, tendo os indicativos do plural sido riscados.
218
o poeta ouve “pela janela” aberta, gritado por um rádio,
todo o banzo e o azougue de um samba sensual...
– o qual é de pronto associado a
um vôo de cantáridas tontas
no hálito de incenso de uma nave,
fenestrada de ogivas e ventanas
e toda colorida de vitrais...
É significativo que toda a imponência sacra da catedral onírica, cuja “nave” é
odorada pelo hálito de incenso, seja erguida sobre a saudade e a vivacidade que caracteri-
zam o samba
sensual
: novamente se flagra o estreito entrelaçamento que se verifica entre os
signos eróticos e sagrados. Em tal contexto, adquire proeminência o vôo de cantáridas ton-
taspelo ar incensado: as cantáridas são uma espécie de insetos que, em virtude de suas famo-
sas propriedades
afrodisíacas
, foram largamente utilizados na Antigüidade, depois de secos e
reduzidos a pó, em elixires medicinais; de outra parte, o incensamento é uma solenidade an-
cestral que se estende ao redor de todo o mundo e que se pauta pela intenção sacerdotal de
elevar a prece humana até a atenção divina,
unindo
, por meio do perfume e da fumaça,
a terra
e o Céu
.
Das cantáridas se diga ainda que o seu designativo vem do grego
kantharos
,
“escaravelho, tratando-se de coleópteros reconhecíveis pela coloração
verde-dourada
, o que
de novo traz à mente o besouro/ de asas
verde e ouro
de “Riqueza” (e mesmo, por afinida-
de, o jacaré (...) de lombo verde, de papo amarelo,que figurou em Ritmos selvagens).
Quadra falar também que a quantidade “de ogivas e ventanasque
fenestram
a
nave” é uma recuperação e ampliação das janelas abertas em Derio, Ausência” e mesmo
nos versos anteriores de “Sonho de uma tarde de inverno, pelas quais entraram, respectiva-
mente, o perfume de “heliotrópios, um beija-flore as notas do samba”. Todas essas aber-
turas para o mágico culminam nos vitrais, cuja utilidade tem sido, desde o tempo merovín-
gio, fazer com que a luz divinal possa penetrar, iluminando e
colorindo
os interiores dos
templos, o que deve ser interpretado, dentro do subsonhodo poeta, como uma extrema re-
ceptividade do seu
eu
templário ao esplendoroso nume que vem do Alto.
E desta forma o neófito devaneia com as duas faces de sua amada: a lasciva
Vênus/ com um Cupido ao colo, convidando ao amor, e a espiritual e materna “Virgem
219
com um menino Jesus. Essas duas personae do ícone feminino são, no subsonho, talhadas
numa obra de ourivesaria por
um monge
rendilhador de jóias de ouro...
Eis o trabalho inicial do santo joalheiro:
depois de modelar um cimo de coroa,
com Virtudes de auréola,
em meio de anjos louros,
e de cinzelar,
na pasta de sol frio do rebordo
de um anel real,
uma rosácea, um gládio e um globo,
deixou errar seus dedos e seus sonhos
e fez crescer, no jalde de um cirio,
o relevo de uma Vênus
com um Cupido ao colo...
Cuidemos antes dos detalhes: primeiro, atente-se para a insistência com que o
narrador se refere à dignidade áurica da obra, com alusões aos “anjos louros, à dourada
pasta de sol frio” e ao tom jalde, os quais tocam até a idéia” do frade, tornando-a em
ouro. Além do que, é “flavamesmo a “poeira do (...) êxtase” que envolve o artista. O ex-
tenso alcance simlico do ouro repousa sobretudo nos significados de conhecimento, ignei-
dade e aperfeiçoamento de metais vulgares, tudo isso bem caracterizado no sentido da de-
manda alquímica. A nobreza régia do trabalho fica, outrossim, cristalina ao se prestar atenção
ao “cimo de coroa” e ao anel realmodelados. Têm também importância as filigranas de
uma rosácea, um gládio e um globo, cinzelados no rebordodo anel: a par de manter vívi-
do todo o simbolismo da rosa, já analisado, a “rosácea”, sendo aparentada à roda, quer ex-
pressar o movimento cíclico da manifestação em torno do Uno e, conseentemente, o ideal
de retorno da circunferência a seu centro
410
, o que fica confirmado pela presença do globo;
quanto ao gládio, é um símbolo iniciático especial da franco-maçonaria e representa a inci-
siva decisão do espírito em combater o mal. Ainda, a guarda da empunhadura e a lâmina con-
ferem ao gládio também o formato de uma cruz, a qual, ajustada à rosácea numa moldura
globular, resulta num evidente emblema da sociedade secreta Rosa-Cruz.
Cumpre agora nos atermos à figura feminina. A lúbrica Vênus é regiamente
coroada “com Virtudes de auréola” e tem por corte um grupo de anjos, numa representação
410
V. o que dizem a respeito CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 783-786 (verbete RODA) e 788-790 (ver-
bete ROSA).
220
óbvia de santidade que fica indiscuvel diante do fato de que o relevoda deusa é traçado
no jalde de um cirio, este uma taça litúrgica dedicada exclusivamente a receber as stias
consagradas. E o texto continua descrevendo o arroubo de que o ourives é tomado:
E era tão bela a sua idéia de ouro,
e foi tão casto e cristão o beijo longo
que ele pôs na deusa,
que a tênue poeira flava do seu êxtase
de pronto se esvaiu.
Depreende-se que a castidade e a cristandade do beijo longodedicado a
Vênus foram tão intensos que o “êxtase” sagrado não pôde perdurar por mais do que um ins-
tante, como ocorre com a maioria dos femenos epifânicos.
E então, febril,
murmurando, constante, um exorcismo,
santificando traços, disfarçando os nus,
fez depressa da Vênus uma Virgem,
e do pagãozinho alado um menino Jesus.
Depois, sorrindo, o santo joalheiro
rezou, com outro beijo, a sua contrição...
411
Porém, o arrependimento febrildo monge não parece ter rendido bons frutos
ao contrário de Goya vestindo a Maja desnuda –, uma vez que, ao beijo dado na Virgem,
(...) mil diabinhos crepitaram nas chamas,
rubros, rindo,
porque agora o seu beijo
fora ardente e pagão...
O quid do poema e do sonho – parece ser alertar o neófito contra o engano
das aparências. Os diabinhosriram não apenas porque o beijo derradeiro fora ardente e
pagão, mas porque o fora no momento em que se o pretendera contrito, bem como porque
substituíra o ósculo anterior que, tão casto e cristão, acabou por ser lamentavelmente exor-
cizado. Destarte, o que importa não é que o primeiro beijo tenha sido deposto na Vênus lasci-
va, e sim que ele tenha se revestido de pura santidade, ao passo que o beijo posto na santa
Virgem foi insincero e, em conseqüência, vão e pecaminoso.
Deve restar bem esclarecido que a ardência e o paganismo do segundo beijo
não são em si, de forma alguma, qualidades negativas: não se olvide que tratamos sempre da
férvida inquietação de um íntimo Magma ardente, enquanto que a Vênus que deu causa ao
411
O artigo entre disfarçando” e nus, no terceiro verso do fragmento, foi colocado a mão pelo autor, mediante
chave.
221
ósculo “casto e cristãotrazia ao colo um amorável pagãozinho alado. Frise-se com vee-
mência que o equívoco do monge foi tão-só no tocante à insinceridade e à inoportunidade do
beijo deposto na Virgem, o qual serviu unicamente como uma espécie de engodo, e não como
um legítimo ato de amor.
Ademais, a cena veneranda do poema consecutivo se passa
No jardim pagão,
e podemos assim passar à análise de “Hierograma”. Desde logo se explique que o termo que
come o título vem do grego hieros, sagrado, e gramma, letra”, isto é, temos uma escritu-
ra que cuida de acontecimentos de índole sagrada. Sem embargo, o quadro é efusivamente
orgíaco:
entre os panos de púrpura de uma fúcsia
poliandra,
oito estames preguiçosos
amam um pistilo voluptuoso...
A brisa baralhou
o enxame azul de borboletas
que se casavam, nas corolas,
e logo todas trocaram de par...
No palco, pois, encena-se novamente, a exemplo de “Azul” e Madrigal grava-
do em laca, a estória do namoro entre flores e borboletas, e desta feita também o “enxame”
das falenas é azul. E eis que todo o enlevo polinizador se passa em meio à “Suburra do
charco: Suburra(ou Subura) diz respeito a uma via e um bairro da Roma Antiga, famosos
por seus bordéis. É de se ressaltar o significativo paradoxo que se estabelece, vez que a “es-
critura sagrada” a que remete o título da composição versa sobre um festim licencioso que
transcorre num jardim pagão, um ambiente muito propício a trazer à idéia as sticas dioni-
síacas e bacanais da Antiidade greco-romana, solenidades em honra a Dioniso ou Baco em
que, outra vez, o erótico e o hierático confundiam-se de forma indissociável. Outrossim, não
se pode desconsiderar a chistosa proximidade fonética e anagramática que se desenha entre
Suburra” e o termo chulo suruba, maneira vulgar de se referir exatamente à orgia.
Ora, tanto o pistilo voluptuosoque se entrega aos ardores dos “estames,
quanto as borboletasbacantes e casadoiras são nada mais do que argumentos retirados da
Natureza e empregados pelo poeta para conquistar a graça de sua musa única, como quem diz:
entrega-te a mim sem pudor, como o pistilo se dá ao amor dos estames, como as falenas se
dão a seus pares. Nessa atmosfera lúbrica, ainda “um jasmineirose “desfolha” e se “derra-
222
ma/ (...) em lácteos jasmins de cheiro ucarado, trocando carícias com uma distinta “Impe-
ratrizde “beijos mais raros: tal Imperatrizgrafada com inicial maiúscula, a reforçar sua
dignidade é certamente uma referência à borboleta imperador, a qual é também chamada de
agripina ou tisânia (Thisania agrippina) e que consta ser um dos maiores insetos conhecidos,
chegando até 27cm a envergadura de suas asas; a feminilização do nome do invulgar lepi-
dóptero justifica-se não só em razão de seu nome cienfico no feminino
412
como também pela
conseente melhor adequação à masculinidade do termo jasmineiro. O que o texto quer
afinal passar é que mesmo a altiva Imperatriz chega a conceder seus rarosbeijos ao jasmi-
neiro, o qual, de seu lado, mais prodigamente se desfolha em olorosos ósculos jasneos.
Bem assim é a situação do poeta, que também se desfaz (vale dizer: desfaz seu ego) em amo-
res e versos derramados aos pés da “esquiva amada”, pelo que ele ousa mais uma vez pedir
que esta, seguindo o exemplo da mênade Imperatriz, conceda o beijo tão ansiado desde “A Ia-
ra”:
Beija-me...
Depois, se não me quiseres,
eu te direi, depressa, o nome
de alguém que te ama...
413
Essa quadra reflete a entrega irrestrita e incondicional do neófito ao amor: é ra-
zoabilíssimo concluir que “o nome/ de alguém que te amanão é outro a não ser o do próprio
poeta, o qual se propõe a confessar de forma definitiva o seu sentimento, ainda “se não me
quiseres, ou seja, mesmo que a amada não corresponda. É indispensável levar em conta que,
sob uma perspectiva mágica, dizer o próprio nome a alguém é entregar-lhe a vera essência
individual, uma vez que, em imeros sistemas de magismo, saber o nome do sujeito é deter
poder sobre ele. Assim é que no Antigo Egito as pessoas recebiam sempre dois nomes, um
social e de somenos importância, que era de conhecimento de todos, e um secreto de valor
transcendental, ao qual somente o próprio indivíduo tinha acesso; também, em várias religiões
animistas da África o rem-nascido deve ser o primeiro a ouvir o próprio nome, dito-lhe ao
ouvido pelo pai, a fim de que possa possuí-lo sem contestões. Entendimentos semelhantes
são encontrados na Antiga China, na América pré-colombiana e entre os aborígines da Aus-
trália. O valor do nome tem ainda especial e complexa relevância nos misticismos hebraico e
412
Trata-se, decerto, de uma menção à célebre imperatriz Júlia Agripina, a Jovem, esposa do próprio tio, o impe-
rador Cláudio (dentre outros consortes), e mãe de Nero. Poderosa e bastante devassa, consta que ela chegou a
praticar incesto com o filho, quando ambos passeavam numa liteira pelas ruas de Roma.
413
A forma me quiseres, manuscrita, substitui a original gostares, riscada.
223
muçulmano, em que se destacam os intrincados estudos dos encobertos Hierônimos de
Deus
414
.
Por outro lado importa esclarecer que, a despeito da libertinagem no jardim
em que as borboletas, mal se casavam, trocavam logo todas (...) de par–, fica de todo
afastada a conjetura de que “alguém que te ama” seja outro que não o poeta. Para entender-
mos isso, bem como para encerrar o estudo de “Hierograma”, é mister trazer de novo à tona o
simbolismo do ósculo sagrado, já comentado a propósito da composição A Iara. Vimos que
desde essa peça o bardo almeja receber o beijo da figura feminina. Vale repetir Chevalier e
Gheerbrant, os quais explicam representar o beijo um Símbolo de união e de adesão mútuas
que assumiu, desde a Antigüidade, uma significação espiritual.
415
Por esse motivo, o gesto é
empregado com proeminência em diversos cerimoniais mistagógicos, servindo como exemplo
a cena final da solenidade na Ordem dos Cavaleiros Pobres de Salomão – os templários:
Terminada a leitura, o mestre pedia que ele
[o freire já ordenado]
se levantas-
se e lhe dava um beijo na boca, concluindo com este ato simlico expressar não só a
aceitação dele como seu mais novo integrante, mas também render-lhe uma homena-
gem pela maneira com que ouviu e aceitou tudo aquilo que lhe fora dito durante a ce-
rimônia de iniciação.
416
Ainda hoje o ósculo é o selo que fecha os esponsais, sendo pertinente fazer
notar que, em várias culturas, a noiva, que até então permanecera oculta sob um véu, ao tér-
mino do rito
se desvela
, e o beijo trocado entre os noivos expressa o ideal de unidade insepa-
rável do casal a partir desse momento. Do ponto de vista hierático, quando havido entre o ser
e a divindade o ósculo sela a
unitas spiritus
e manifesta a
conjunctio
anímica,
i. e.
, a absorção
da
alma
humana pela
Alma Mater
. Por via de conseqüência, desde que a amada concedesse,
no jardim, seu beijo ao poeta, o par de amantes far-se-ia
um só
, indiviso: e tal unidade não
deixaria espo para a contemplação de outro “alguém, que não o vero
Uno
.
Entretanto, ainda não é a hora para consumar-se a tão ansiada união, já que o
texto não noticia que o beijo se concretizou. O passo mais peremptório para a celebração do
matrimônio sagrado será, em verdade, o solene instante da Morte iniciática,
conjunctio
que
pressupõe o ósculo e ao qual, pela demonstração de constância, entrega e fidelidade no amor
definitivamente evidenciados na última estrofe de “Hierograma” –, o noviço já se habilita. Por
414
V. CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 640-642.
415
Id
.,
op
.
cit
., pág. 127.
416
SILVA, 262, 30.
224
conseguinte, cabe doravante nos dedicarmos à compreensão da crucial peça “A terrível pará-
bola”, texto que finaliza o terço medial do rosário magmático
417
.
4. A TERRÍVEL PARÁBOLA: MORTE
O Narrador sabe-se transformado novamente e que passou
por uma espécie de morte, propiciatória e necessária.
GUIMARÃES ROSA,
Evanira!
Esta dissolução é chamada, pelos filósofos que a procu-
ram, morte, destruição ou perdição, porque as naturezas mu-
dam de forma. Daí saíram muitas alegorias sobre os mortos,
túmulos e sepulcros.
NICOLAU FLAMEL
VIVECELONLHEVREDELAMORT.
GUIMARÃES ROSA,
Do Diário em Paris III
... porque o amor é forte como a morte...
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
, 8.6
Ao se falar em parábola”, sem demora vêm à mente as parábolas bíblicas, es-
pecialmente as do Novo Testamento, por meio das quais Jesus se dirigia às multies. Trata-
se de uma espécie de narrativa alegórica cujas imagens, que encerram sempre um sentido
doutrinário, querem evocar veladamente uma verdade de natureza superior. Podemos assim
considerar que se cuida da comunicação aberta, por meio de símbolos, de um alto conheci-
mento esotérico, cujo alcance mais elevado depende do nível de entendimento do receptor:
Quando Jesus ficou só, os que estavam junto com os doze o interrogaram a
respeito das parábolas.
Ele lhes respondeu: A vós outros vos é dado conhecer o mistério do reino de
Deus; mas, aos de fora, tudo se ensina por meio de parábolas,
para que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam;
para que não venham a converter-se, e haja perdão para eles.
E com muitas parábolas semelhantes lhes expunha a palavra, conforme o
permitia a capacidade dos ouvintes.
E sem parábolas não lhes falava; tudo, porém, explicava em particular aos
seus próprios discípulos.
418
417
Sobre Hierograma” apenas se anote ainda que NASCENTES (91, 7) considera que a tematização da nature-
za erogenizada” explorada por essa composição revela mostras da continuidade, não da ruptura, entre
Magma
e
Sagarana
, o que coroa a análise de um trecho de São Marcoslevada a efeito pelo pesquisador.
418
Mc
4, respectivamente versículos 10-12 e 33-34. V. tb.
Mt
13.10-23 e 34-35 e
Lc
8.9-15.
225
Quanto à parábola magmática, traz ela uma mensagem cujo teor é reputado
como terrível: a composição aborda o instante de efetivação do enfrentamento da morte
como condição inevitável para que o noviço possa ascender enfim a uma nova Vida. É neces-
sário outrossim lembrar que, de conformidade com o entendimento psicanalítico, Marie-
Louise von Franz atesta que “a morte é uma espécie de casamento místico com a outra meta-
de da personalidade
419
.
Do confronto dessa afirmação de nuances junguianas com o poema em tela res-
saem duas ilões de interesse capital: a primeira delas é que, com efeito, o encontro do ser
com a morte é retratado como uma extraordinária conjunctio que significa a culminância do
erotismo desfiado ao longo de todo o segundo terço de Magma; a segunda ilação é que se faz
possível pensar os consortes desse enlace stico como faces distintas, e no entanto comple-
mentares, de uma mesma individualidade, qual seja, a do neófito. A primeira conclusão, de
apreensão mais fácil, será homeopaticamente discutida juntamente com outras questões que
forem surgindo, ao passo que a segunda merece atenção imediata, diante das implicações que
dela decorrem e que embasam o inteiro desenrolar do texto.
Vejamos, portanto, que “A terrível parábola” consiste numa estória contada
pela “Mãe-Preta, a qual nos apresenta três personagens bastante complexas, a saber: uma
meninazinha” de nome “Zabelinha, uma cachorrinha” e o Kibungo-Gerê
420
. Todas as três
são representações de diferentes aspectos da personalidade do neófito, e para a correta com-
preensão desse ponto delicado ime-se uma vez mais o recurso à psicanálise. Destarte é
oportuno estudar, de forma sucinta, as instâncias psíquicas do id, do ego e do superego, tal
como são explicadas por Freud
421
, advertindo-se, contudo, que sendo poética aididade de
nossas preocupões, o exame da classificação freudiana não se pretende rigorosamente
exaustivo do ponto de vista psicanalítico, operando-se apenas uma aproprião da essência
desse instrumental teórico, o qual se faz bem útil e plenamente adequado para a devida her-
menêutica da peça em pauta.
Eis então que Freud divide o aparelho psíquico humano em dois los dinâmi-
cos e antagônicos, o id e o superego, aos quais se une um estrato intermediário, o ego. A rela-
ção entre essas instâncias é marcada pela interdependência.
419
V. nota 351 (pág. 184). Grifei.
420
No poema, todas as menções ao Kibungo-Gerê foram sublinhadas a mão.
421
No Diálogo” com LORENZ (58, 87-88), Guimarães Rosa, indagado sobre sua relação” com a literatura
alemã em geral, responde: Conho bastante bem a literatura alemã. Por exemplo, o Simplizissimus [em nota
de rodapé: Primeiro romance em língua alemã, de Grimmelshausen, publicado em 1663.] é para mim muito
importante. Amo Goethe, admiro e venero Thomas Mann, Robert Musil, Franz Kafka, a musicalidade de pensa-
mento de Rilke, a importância monstruosa, espantosa de Freud.Grifei.
226
O id (do latim id, isto, neutro de is, “ele; em alemão, das Es) é a parte mais
íntima e irracional da personalidade, de constituição biológica e hereditária. Pólo pulsional
presente em todos os indivíduos, tem por objetivo satisfazer os desejos mais básicos e incons-
cientes da libido animal, a qual compreende tanto os impulsos sexuais de preservação da es-
pécie quanto o impulso de agressão defensiva. O superego e o ego são alterões do id que
surgem como resultantes do contato com a realidade do mundo exterior.
Por seu turno, o superego – ou supereu – vai sendo construído aos poucos pela
absorção constante de valores culturais, morais e religiosos que influenciam impressivamente
cada personalidade. Sua função primordial é criar mecanismos cerceantes que contenham as
pulsões primárias do id através da instauração de uma consciência moral. Logo, o superego se
instala na psique como forma de moldá-la às interdições inerentes à vida em sociedade. No
entender de Freud, um momento decisivo para a definição do superego é o da dissolução do
complexo de Édipo, quando a criança renuncia aos desejos mais elementares e adota em sua
psique o tabu do incesto.
Finalmente, o ego – ou eu – é a razão ou inteligência que emerge do id como
fiel da balança no conflito entre o próprio id e o superego. Sede da consciência e palco onde o
inconsciente se manifesta, o ego busca preservar a personalidade de crises neuróticas, ao ten-
tar manter em equilíbrio harmônico e sob controle as pulsões naturais do id, as exigências e
proibições do superego e ainda as agressões do mundo exterior. É a organização do ego que
permite ao sujeito dominar imaginariamente a realidade, através do estabelecimento de ar-
senais de defesa e de sistemas de identificação de objetos. Distingue-se ainda o “ego idealou
ideal do ego, instância diferenciada que seleciona e determina, dentre os valores éticos im-
postos pelo superego, quais efetivamente haverão de compor o acervo das aspirações do indi-
víduo.
De se dizer que para a psicanálise o equilíbrio entre o id e o superego, que deve
ser alcançado pela intercessão do ego, é condição para a normalidade da saúde mental. A exa-
cerbação desse pensamento levou muitos psicanalistas, como os que se filiam à escola cha-
mada de “Psicologia do ego, a elegerem tal instância como a parte central da personalidade e
a transformarem as medidas para o seu reforço no objetivo precípuo de qualquer tratamento.
A maior parte dos profissionais, todavia, rechaça esse modo de pensar que insufla o perigo do
narcisismo sem freios, insistindo no maior benefício do equilíbrio entre as instâncias. Seja
como for, independentemente do seguimento dessa discussão dentro da psicanálise, compete-
nos agora voltar ao universo místico que vigora em Magma. E no contexto da perspectiva
mistagógica, como temos visto até agora (quer se invoque os mistérios gregos ou egípcios, o
227
idrio neoplatônico, o Tao, a hiera techné, os preceitos védicos ou a mundivisão do misti-
cismo cristão), o verdadeiro sine qua non para a ascensão do espírito do ser é sempre a disso-
lução simlica do eu (ou ego) através da morte – o que, para uma mentalidade profana, afi-
gura-se realmente como uma expectativa “terrível, e daí o qualificativo que informa a pará-
bola rosiana. Vem a propósito recordar os versos finais de “Iniciação, que evocam Cristo:
E se fores forte,
olha bem para cima,
para ver como é sorrindo
que morre o teu Pai...
E, para deixar bem clara a noção cristã de “morte para o mundo, propícia para
a correta visualização da morte iniciática, cabe o cotejo com a seguinte passagem das epísto-
las de São Paulo (Romanos 6.11):
Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para
Deus, em Cristo Jesus.
De sorte que cumpre concluir: à luz da classificação freudiana, e com o uso
imprescindível de um filtro stico de índole junguiana, as personagens de “A terrível pará-
bola” podem ser compreendidas como perfeitas ilustrações das instâncias do aparelho psí-
quico, da seguinte maneira: a menina Zabelinha é o “egodo neófito, ego velho que simboli-
camente deve morrer ou dissolver-se, a fim de que se possa alcançar uma nova forma de eu
que, em sintonia com o Outro, goze de uma diversa natureza de Vida; já a cachorrinha é o
superegode arraigadas conviões seculares que ingenuamente pretende defender o “ego
do mistério da morte, conservando-o na vida antiga; e doutro lado o Kibungo-Gerê é o mons-
truoso idque personifica a libido, o desejo secreto que o ser tem de submeter-se ao impera-
tivo da pulsão de morte, a qual é a condição prévia para o Renascimento. Importa-nos ver em
detalhes os simbolismos de que se revestem tais personagens e que, em conjunto com os da-
dos poemáticos, dão sustentação às assertivas feitas. Abordemo-los, pois, na ordem em que
aparecem na composição.
A meninazinha da parábola rosiana revela, à primeira vista, um temperamento
bem distinto daquele apresentado pelas crianças nos contos, o mais das vezes tidas como mo-
delos de pureza, inocência, simplicidade, espontaneidade e disposição sincera e entusiasmada
para a aquisição de conhecimentos. Em Mateus 18.3, por exemplo, Jesus parece privilegiar
esses caracteres:
228
E disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e o vos tornar-
des como crianças, de modo algum entrareis no reino dos us.
E em
Lucas
18.16-17:
(...) Deixai vir a mim os pequeninos e não os embaraceis, porque dos tais é o
reino de Deus.
Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criança
de maneira alguma entrará nele.
A infância, no raciocínio cristão, simboliza “o
estado anterior ao pecado
e,
portanto, o estado
edênico
422
. Mas essa visão não é exclusiva do cristianismo: encontramo-la
também no
Tao Te Ching
(poema 55), no hinduísmo e mesmo na interpretação psicanalítica
dos sonhos, em que “a imagem da criança pode indicar uma vitória sobre a complexidade e a
ansiedade, e a
conquista da paz interior
e da autoconfiança.
423
No entanto, todo esse simbolismo positivo contrasta, em princípio, com as ati-
tudes violentas de Zabelinha, figura selvagemente voluntariosa: esperando o bicho/
Kibungo-
Gerê
, a menina, com raiva,/ matou a cachorrinha” que afastava o monstro, depois a “enter-
rou, queimou” e jogou no rio a cinza/ da brava cachorrinha”. O motivo fundamental de
toda essa irascibilidade é que Zabelinha
quer
o encontro com o
Kibungo-Gerê
,
quer
enfrentá-
lo, no que era impedida pela cadela. Tal como declarou o poeta em A Iara”, a menina
quer se
deixar vencer
pela Morte ritual da qual o bichoé a personificação.
Nesta altura tem validade trazer a lume um pormenor que, presente em grande
parte dos antigos contos-de-fadas, foi maquiado ou de todo abandonado nas sucessivas refor-
mulões do gênero (as quais, atentas às mudanças de sensibilidade e refinação das platéias
modernas, têm vingado desde que Perrault e os irmãos Grimm coletaram as primeiras estórias
das tradições orais européias): faz-se referência à
resoluta rejeição do Mal
que freqüente-
mente provoca reões até mesmo cruéis por parte das personagens que representam o Bem e
a inoncia. Lembre-se o caso de Branca de Neve: nas versões mais recentes, plasmadas pelo
filme de Walt Disney, a madrasta má morre vitimada por um raio ou por outro femeno natu-
ral, sendo o Mal derrotado sem que as personagens do Bem tenham que, por assim dizer,
sujar suas mãos com sangue”; porém, essa conveniência não eclode nas primeiras versões da
estória, nas quais, as o casamento com o príncipe, Branca de Neve tortura sua madrasta até
a morte, fazendo-a dançar por vários dias calçando pesados tamancos de ferro em brasa. Por
outro lado, em outros contos persiste algum lance de crueldade mesmo nas variações mais re-
422
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 302. Grifos dos autores.
423
Id
.,
ibid
. Grifei.
229
centes: João e Maria ainda costumam assar a bruxa malvada no forno que estava a eles desti-
nado, e o Lobo Mau continua sendo destroçado truculentamente pelo lenhador ou caçador que
salva Chapeuzinho Vermelho e a avó. É necessário romper com a tentação de ver nesses epi-
sódios tão-somente a satisfação de ímpetos vingativos: repita-se que tais atos representam, no
universo fantástico infantil que é bem afeito ao maniqueísmo, fundamentalmente a destruição
decisiva do Mal. Destarte, a despeito da violência com que agem, João e Maria, Chapeuzinho
Vermelho e seu salvador e bem assim Branca de Neve, aos quais se une Zabelinha, simples-
mente manifestam de modo contundente e irrefutável a sua repulsa pelo Mal que, no caso do
texto rosiano, é representado pela índole ctoniana e materialista da cadela, o que passaremos a
ver agora.
Comecemos por dizer que
O Islã fez do cão a imagem daquilo que a criação comporta de mais vil. Se-
gundo Shabestari, apegar-se ao mundo é identificar-se ao o, devorador de cadáve-
res...
424
Essa visão alastra-se por todo o pensamento semítico. A Bíblia também está
repleta de alusões depreciativas a esse animal, considerado pelos judeus tão ou mais impuro
do que o porco. No idrio contemporâneo a péssima imagem resiste; várias passagens de
Grande Sertão: veredas, por exemplo, dão testemunho de que para o sertanejo brasileiro ain-
da hoje o epíteto o Cãoserve para designar o diabo. A causa principal dessa associação é
justamente o irrefrvel apego do o às imundícies do mundo sensível e transitório. Nesse
contexto, é importante saber que há no taoísmo uma solenidade especial de queima de cães de
palha que reflete o abandono das efemeridades materiais pelo ser iluminado:
O uso ritual dessas miniaturas, sugere M. Kaltenmark, pode ser de origem
xamânica; elas constituem, escreve Wieger, filtros de malefícios que são destruídos
após terem sido usados. O símbolo utilizado por Tchuang-tse apóia-se precisamente
na existência passageira do objeto que se joga fora, que se pisoteia e queima, uma vez
que ele tenha exercido seu ofício (...). Aquilo que cessou de ter utilidade deve ser re-
jeitado – conclui ele sob pena de tornar-se nefasto. Lao-tse faz dessas miniaturas o
símbolo do caráter efêmero das coisas deste mundo, às quais o sábio renuncia a ape-
gar-se...
425
A redução da cachorra a “cinzas” em A terrível parábolatem um sentido se-
melhante: trata-se de um decisivo gesto de ablegação dos aspectos mais profanos da persona-
424
Id., op. cit., pág. 180.
425
Id., op. cit., pág. 181.
230
lidade, renúncia que vem sendo requerida do neófito em Magma desde pelo menos a pa
Roxo.
É possível determinar a contumaz aderência da cadela ao mundo material di-
ante das circunstâncias colhidas no texto ora em foco. Primeiramente, deve-se levar em conta
as implicações da resposta do animal à indagação do Kibungo-Gerê pela menina; “a cachorri-
nha, acordada,/ cantou:
“Zabelinha já lavou,
já deitou,
já dormiu!...
O que podemos interpretar da seguinte forma: Zabelinha já teria cumprido a
parte que lhe incumbiria na iniciação, eis que se lavar corresponderia a ter se banhado nas
águas iniciais, batizando-se e purgando seus pecados, depois do que a menina teria deitado e,
como as ondas que pararam de correr em Sono das águas, dormido, ou seja, Zabelinha teria
deixado de vigiar ao receber os Pequenos Mistérios e desistido de ir adiante, resolvendo de li-
vre vontade interromper o trajeto mistagógico sem se entregar à culminância da morte ritual.
Note-se que a cachorrinha está “acordada” ao dar essa resposta, vale dizer, está plenamente
consciente do significado de suas palavras; ela, então, mente e procede com macia para evi-
tar que Zabelinha seja devorada pelo monstro, pretendendo, por medo, que a garota se mante-
nha estacionada onde está, sem arriscar nem progredir. Além do mais, esse medo animal da
morte denota falta de fé e vontade de se demorar na segurança ilusória da vida profana. Nas
palavras de Rumi:
Só a morte e fim seguro
às dores e aflições da vida.
A vida, porém, temerosa,
tudo faz para adiar esse encontro.
426
Outro fator relevante é que, enquanto a menina ficava no andar de cima do
sobrado(pois o monstro teve que subir “a escadapara alcançá-la), a cachorra, morta, foi
deixada “no quintal” e em seguida “enterrada: de um lado, Zabelinha se esforça por ascen-
der, e de outro a cadela está fortemente ligada às forças ctonianas. Mesmo morta” e “enterra-
da” e ainda feita em “cinzas” a cadela insistia em “cantarpara repelir o Kibungo-Gerê, e a
única solução para fazer o medo da morte se calar foi jogar no rio a cinza/ da brava cachor-
426
A morte e o amor, in: CARVALHO, 154, 98.
231
rinha”: com isso, seus receios foram lançados fora, ao sabor do rítmico movimento vital da
manifestação
427
.
Faz-se conveniente uma recapitulação para não se perder o lance psicanalítico
da presente conjuntura: temos que a cadelinha se aferra às vãs seguranças do mundo material
e quer impedir que a menina atenda aos apelos do monstro que representa o desconhecido;
deste modo, a cachorra pode ser entendida como o superegoque, em contato com as ilusões
do mundo exterior e por elas seduzido, ime proibições ao “ego” consubstanciado na meni-
na, e por outro lado o Kibungo-Gerê é o id, o impulso libidinoso do sexo e da morte em
suma, da devoração – que por três vezes chama a menina com o intuito de realizar a conjunc-
tio, através da qual uma parte da personalidade dissolve e absorve outra, purificando-se.
Voltemos agora à figura canina. Apesar do que vimos até aqui, não se deve
desprezar outra faceta importanssima do simbolismo do o: mesmo no idrio islâmico a
sua fidelidade para com o dono é reconhecida e elogiada. E realmente a cachorrinha, que fez
de tudo para evitar que Zabelinha encontrasse o monstro, se agiu por medo, foi também moti-
vada pelo desejo leal de proteger a menina. Por conseguinte, o sacrifício do animal adquire
mais um novo significado:
A primeira função mítica do cão, universalmente atestada, é a de psicopompo,
i. e., guia do homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida.
De Anúbis a Cérbero, passando por Thot, Hécate e Hermes, ele emprestou seu rosto a
todos os grandes guias de almas, em todos os escalões de nossa história cultural oci-
dental.
428
Chevalier e Gheerbrant chegam a mencionar alguns ancestrais ritos mexicanos
em que
o cão era sacrificado sobre a tumba de seu amo para ajudá-lo, ao cabo de sua longa
viagem, a atravessar os nove rios (...) que defendiam o acesso da morada eterna dos
mortos.
429
Ainda
Entre os iroqueses (...) o cão também é considerado como mensageiro inter-
cessor: todos os anos, por ocasião das festas do ano-novo, sua tradição exigia que se
427
Quanto ao adjetivo brava”, aplicado à cachorrinha, de início refere-se mais à fúria e à agitação com que ela
se esforça, ainda depois de morta, enterrada e queimada, por manter longe o Kibungo-Gerê. Mas, como veremos
logo à frente, não deixa de haver nessa bravura também uma expressão de destemor do animal na defesa fiel de
sua dona, mesmo que suas razões para tanto sejam equivocadas.
428
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 176. Grifo, em negrito enfático, dos autores.
429
Id., ibid. Grifo dos autores. A propósito de Cérbero e Hécate, v. à frente, nas págs. 329-331 (Capítulo IV, tó-
pico 2), as considerões sobre Assombramento.
232
sacrificasse um cão branco (...).
Com efeito, o o era um mensageiro que se apressa-
va em ir para o u levando a prece dos homens...
430
Esse cariz da simbologia canina se explica porque
Não há, sem dúvida, mitologia alguma que não tenha associado o cão – A-
bis, Tian-kuan, Cérbero, Xolotl, Garm etc. – à morte, aos infernos, ao mundo sub-
terrâneo, aos impérios invisíveis regidos pelas divindades ctonianas ou selênicas.
431
Realmente, como veremos em micias, os poemas que em
Magma
se seguem
à “terrível parábola”, desde o contíguo A aranha” até “Bibliocausto, representam a passa-
gem do neófito morto pelo mundo escuro do sepulcro; e nesse estado de coisas o símbolo do
o, sob a forma de três fantásticos cachorrosnoturnos que evocam o tricípite Cérbero,
guarda do Hades grego, reaparece em Assombramento, quando se aproxima o fim da esta-
dia umbrosa.
Em conclusão, dois são os motivos pelos quais Zabelinha mata a cadela: em
primeiro lugar, porque o animal se prende às coisas do externo mundo ilusório e quer barrar a
ascensão da menina; e em segundo lugar, para que a cachorrinha sirva-lhe de companhia no
mundo de trevas pelo qual incumbe passar as a efetivação da iminente morte ritual.
E agora podemos nos dedicar ao exame da figura do
Kibungo-Gerê
, espécie de
bicho-papão do folclore brasileiro, ao que parece oriundo das mitologias negras de Angola e
Congo. Sobre ele esclarece-nos o próprio Guimarães Rosa, em carta que dirigiu ao seu tradu-
tor italiano, Edoardo Bizzarri, a respeito de trecho de “O recado do morro:
O
quibungo-branco
. Este, existe. Isto é, existe o QUIBUNGO. Monstro, devo-
rador de meninos, das lendas africanas, trazidas pelos escravos. Deve ser entidade da
mitologia bantu. É o
quibungo-gerê
ou tibum-tererê, das estórias, muito contadas no
interior.
432
A maioria dos contos folclóricos descreve o
Kibungo
como um ser antropo-
morfo, às vezes descrito como um grande macaco ou como um
lobo
de duas bocas: uma de
suas principais características, além da macrocefalia, é uma bocarra imensa, localizada no
meio das costas, que o bicho abre e fecha conforme abaixa ou levanta a caborra e pela qual
devora as crianças.
No dizer de Câmara Cascudo,
430
Id
.,
op
.
cit
., pág. 178. Grifo dos autores, que transcrevem Walter Krickeberg.
431
Id
.,
op
.
cit
., pág. 176.
432
In: BIZZARRI, 27, 54. Grifos de Guimarães Rosa, o último em negrito sublinhado.
233
O Quibungo surge sempre num conto romanceado, com episódio feliz ou trá-
gico mas indeterminado, inlocalizado, vago, nebuloso, infixo. (...) Saturno preto, infe-
cundo e bruto, devorador permanente de crianças, tema de espantos, expressões para
disciplinar as insubmissões precoces ou as insônias persistentes. É uma variante do
tutu e da cuca, da dinastia informe dos pavores noturnos... Em quase todos os contos
em que aparece o Quibungo, há versos para cantar. Esse detalhe denuncia sua arti-
culação aos alôs, às
estórias
contadas e declamadas na África equatorial e seten-
trional. (...)
Em idioma de Angola, o Quibungo vale dizer lobo.
433
De fato, A terrível parábola” nos é contada por uma “Mãe-Preta” que relem-
bra os
griots
africanos, enquanto que os diálogos entre a cachorrinha e o
Kibungo-Gerê
são
todos cantados. A parábolatem também um final aberto, conquanto facilmente imaginável.
E afinal, sendo um devorador permanente de crianças, o
Kibungo
inequivocamente aparece
como a personificação da Morte, no caso de
Magma
a Morte iniciática, perante a qual o neó-
fito deve escolher uma das alternativas: ou afastá-la e permanecer na vida profana, como quer
a cachorra, ou aceitá-la como prévia condição para o alcance da Vida sagrada. A menina,
matando a cachorrinha, opta por continuar com a iniciação e desta maneira se entrega, deste-
midamente, ao morfero ogro.
Convém não olvidar que, ao passo que a cachorra age com dissimulação, men-
tindo para impedir o encontro entre Zabelinha e o
Kibungo-Gerê
, este em momento algum
tenta se impor pela força ou enganar a menina mas, ao contrário, cortesmente
bate
na porta”
e desde logo deixa patente a sua identidade, bem como suas intenções:
Kibungo-Gerê
!...
Kibungo-Gerê
!...
Cadê Zabelinha, que eu quero comê!...
O perseverante e faminto
Kibungo
por três vezes vem ao sobrado procurar a
garota: nas duas primeiras é afastado pela cadela, mas na terceira finalmente sobe “a escada”
para ter com Zabelinha, a qual o esperava com todas as luzes do sobrado
acesas
,
i
.
e.
, em
meio a uma voluntária iluminação interior.
Embora o desfecho da composição fique em suspenso, é evidente que o
Kibun-
go
devora Zabelinha. Essa
devoração
guarda um claro sentido sexual: é consabido que, obe-
decendo a tentativas de eufemização ou de desvio psicológico de culpa, a libido humana e em
especial os desejos mais inconfessáveis são freentemente encarnados em entidades sobre-
naturais como anjos, demônios (súcubos e íncubos) e até mesmo no Lobo Mau das estórias in-
fantis, às quais o fantástico
Kibungo
indubitavelmente se aparenta.
433
CASCUDO, 155, 532-533. Grifei a oração final.
234
Entretanto, a devoração em A terrível parábola” detém ainda outro significado
de bem maior relevância: rememore-se que partimos da interpretação de que a menina e o
monstro, que vestem respectivamente os fatos de devorada e devorador, representam aspectos
distintos de uma mesma psique, a do noviço; logo, está em foco um episódio de autofagia.
Repare-se outrossim que antes de se entregar à devoração pelo Kibungo a própria Zabelinha
matou a cachorrinha e, queimando-a, consumiu o corpo do animal até as cinzas, sendo cito
dizer que, figurativamente, a garota também devorou a cadela. E eis que tanto a menina
quanto o loboKibungo, em suas respectivas relões selvagens e ferozes para com as víti-
mas a serem consumidas, ilustram o conceito espagírico da dissolução:
para os alquimistas, o cão devorado pelo lobo representa a purificação do ouro pelo
antimônio penúltima etapa da grande-obra (transmutação dos metais em ouro; bus-
ca da pedra filosofal). Ora, o que são neste caso o cão e o lobo, senão os dois aspec-
tos do símbolo em questão, que sem vida encontra, nessa imagem esotérica, sua re-
solução e, ao mesmo tempo, sua mais alta significação? Cão e lobo a uma só vez, o
sábio (ou o santo) purifica-se ao devorar-se, ou seja, sacrificando-se em si mesmo,
para alcançar finalmente a etapa última de sua conquista espiritual.
434
Vemos nesse fragmento que o devorado – cãoe o devorador lobosão
os dois aspectos do símbolo em questão– o canino –, e a devoração de um pelo outro ex-
prime a autodevoração do sábioou do santoque busca atingir sua “conquista espiritual.
Outra famosa imagem alquímica que também manifesta (dentre demais simbolismos) vigoro-
samente o ideal de autofagia é a da Ourobouros, a serpente que engole a própria cauda. Tudo
reflete a necessidade de o adepto consumir a si próprio, dissolvendo o seu eu a fim de que a
abertura para a realização da Grande Obra tenha lugar, sentido que ainda está presente no im-
portante símbolo do Rebis (res bina, coisa dupla”), que é o Andrógino,
porque ele é feito de duas coisas a saber, o macho e a fêmea, isto é, o dissolvente e o
corpo dissolúvel, mesmo que no fundo isso seja apenas uma mesma coisa e uma mes-
ma matéria...
435
A figura andrógina do Rebis consiste num ser bifronte, cuja metade masculina
é associada ao Sol, sendo a feminina relacionada à Lua, e que se posta em atitude de vitória
por sobre um dragão, situação que representa o triunfo sobre as tendências maléficas da mani-
festação: fica cristalino o vínculo com a morte da cachorrinha na peça de Magma, somente
as o que o Kibungo-Gerê e Zabelinha podem se unir em conjunctio. Além disso, o Rebis se
situa sempre no centro do ovo filosófico, o qual evoca simultaneamente o Athanor, a cripta e o
434
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 182, verbete CÃO. Grifei a frase final.
435
Dom Antoine-Joseph Pernety (Dictionnaire mytho-hermétique) apud id., op. cit., pág. 771. Grifei.
235
ovo cósmico, signos que denotam a morte mundificante e o engendramento de uma nova
Vida, e é desse modo que o Andrógino é entendido como uma “matéria que se basta a si
mesma para colocar no mundo o filho régio mais perfeito que seus pais.
436
Todo esse aparato espagírico corrobora a hermenêutica das personagens de “A
terrível parábola” como os três aspectos da personalidade do noviço que se defronta com a
Morte ritual, esta a peltima etapa” da carreira anagógica: esses aspectos devem devorar-se
um ao outro com o fito de que o que reste da psique seja apenas um cerne intensamente puri-
ficado, cada vez mais próximo de vislumbrar em si nada mais do que a ardência do fio aními-
co que une o ser humano à Alma Mater.
Sob essa óptica, Zabelinha mata e queima a cachorra para, em última análise,
purificar-se a si mesma pelo fogo; e depois, o monstro libidinoso devora a menina para puri-
ficar-se a si mesmo pela absorção de toda a inoncia e voluntariedade infantil. A morte da
cachorrinha e a devoração da meninazinha querem também significar a decomposição do cor-
po profano do neófito, ao qual cumpre em seguida recompor-se sob a forma mais celsa de
Corpo Glorioso. Para tal recomposição, a peregrinação pelo mundo sepulcral surge como a
nova etapa iniciática a ser vencida, num mecanismo seencial que se fazia presente em todos
os ritos mistagógicos da Antigüidade e que no cristianismo é manifestado pelos três dias em
que o cadáver de Cristo permaneceu sepultado antes da Ressurreição. A passagem pelo mun-
do dos mortos, como já foi mencionado, em Magma transcorre a partir da peça “A aranha” e
até Bibliocausto.
Entretanto, antes de cuidarmos dessas composições é conveniente, para puxar
as amarras, uma vez mais rever, em palavras breves, o desenrolar de “A terrível parábola” sob
o ponto de vista da psicanálise: em síntese, de tudo podemos auferir que o ego (a menina Za-
belinha), colocado entre a postura defensiva do superego (a cachorra influenciada pelo mundo
material) e o chamado do id (o Kibungo-Gerê, pulsão liberativa dos desejos mais íntimos),
opta por atender a este, pelo qual se deixa absorver, e tal tomada de posição significa o esta-
belecimento de um ideal do ego que expressa a vitória dos esforços de progressão ascensio-
nal sobre as forças que impelem o ser para baixo.
Resta-nos ainda contemplar um derradeiro e decisivo detalhe para considerar-
mos conclusos os trabalhos sobre o terço medial do rosário magmático: em A terrível pará-
bola”, a perspectiva de visualização do ícone feminino que vem sendo perseguido sofre uma
inversão; se antes a femina era vislumbrada como um reflexo da divindade no mundo exterior,
436
Id., ibid. Grifo dos autores.
236
no texto em pauta ela significativamente é interiorizada, uma vez que, como vimos, Zabeli-
nha faz parte da psique do poeta que reza o rosário. Essa inversão de perspectiva manifesta
uma nítida aproximação dos consortes, a tal ponto que o amante, sem deixar de ser ele mes-
mo, passa a ser também a amada, o que lhe possibilita realizar no próprio íntimo a sublime
conjunctio. Não é ocioso alertar que transitamos num universo simlico e poético em que as
essências, por si mesmo inapreensíveis, são focalizadas em signos apreensíveis ou personae
cambiáveis, e dessa nova situação podemos extrair que a efígie feminina e divinal sempre foi
não mais do que um aspecto diferenciado da mesma personalidade humana do neófito, pois
que ele jamais deixou de procurar em si mesmo, em sua própria paisagem anímica, em seu
Magma enfim, os indícios da presença deífica: a heautognose como medida simlica da te-
ognose. Ademais, rememore-se que, no pensamento neoplatônico, o Desejo implica a ima-
nência, naquilo que deseja, daquilo que é desejado
437
.
Afinal, venha também à lembrança que, desde que “o poeta” principiou a rezar
o rosário, a excelsa Verdade que se busca, e que está cada vez mais próxima de ser abraça-
da, é a de que “o fio corre por dentro. Ao neófito resta apenas deixar de ser ele mesmo, lim-
par-se do restos do ilusório eu submetido à Morte ritual, com o que abrirá em si um espaço
pleno, a ser ocupado com exclusividade pela presença ofuscante da Alma Parens.
Isso esclarecido, é a hora de se encetar a desfiadura do terço final de Magma.
437
V. nota 356 (pág. 186). Grifei.
237
CAPÍTULO IV. A INTEGRAÇÃONA
CONSCIÊNCIA CÓSMICA
Lá onde nasce o verdadeiro amor
morre o eu, esse tenebroso déspota.
Tu o deixas expirar no negro da noite
e livre respiras à luz da manhã.
RUMI
Ao arrostar a Morte mistagógica o adepto empreende um extraordinário avanço
em seu
itinerarium mentis ad Deum
. Não obstante, os trabalhos restam incompletos, faltando
lançar, por sobre a base delineada apenas em morte-cor, a reluzente demão final. Se se avocar
a antiga sentença iniciática,
mors janua vitae
, tem cabimento dizer que o peregrino se encon-
tra por ora exatamente sob o lintel do pórtico conducente ao sacrossanto recinto e, para aden-
trá-lo, há que se cumprir antes a tarefa de desatrelamento de todo o opressivo lastro material
que ainda tolhe a ascensão do espírito. Recorde-se que desde a composição Roxo, dos poe-
mas irisados do primeiro terço, já havia sido feita enfática exortação ao desapego em relação
aos despojos cadavéricos que manifestam a ilusão do mundo físico; esse alerta foi reeditado
em outras oportunidades e será agora novamente um importante tema no progresso do poeta
que reza o rosário. Todavia, o desapego não significa que tais despojos devam ser simples-
mente postos de lado: como
sacra
, é absolutamente indispensável que se opere a consumpção
dos mesmos, pelo apodrecimento alquímico, até a total aniquilação. Somente assim é que se
ultima a dissolução do
eu
profano e sombrio (
mentis
...) até o nada, com o que definitivamente
se franqueia o deseclipsar do
Outro
sagrado (...
Deum
). Complete-se ademais que, sabendo-se
que o
Outro
já estava
ab initio
oculto no
eu
, a questão foi sempre de reconhecimento, de não
se
desmentir
a Verdade íntima que não se
sente nem
. Outrossim, até a neutralização extre-
ma do
eu
, é em suas estrumosas cinzas que o
Outro
germina, vindo a florescer como um
Nós
:
as aparências de ipseidade e alteridade então se desfazem, e a rigor não há mais
eu
e
Outro
,
havendo unicamente a consubstanciação.
O terço terminante de
Magma
, pois, contempla primeiramente o trabalho de
admissão da recente condição mortuária e – por conseguinte renascitura do neófito, proces-
so putrefaciente que só pode ter lugar no caliginoso mundo
post-mortem
. Exclusivamente
as esse último e decisivo esforço, que resulta na plena purificação, o noviço poderá ser con-
siderado um perfeito iniciado, um
renascido
, uma vez que só pode renascer aquele que admite
238
ter morrido e se submete, qual semente no solo, a um novo período de gestação na terra do
túmulo. Tem ampla relevância fazer notar que tal período de estadia no mundo escuro dos
mortos, prévio ao Renascimento, é uma constante em todo e qualquer ritual iniciático. Co-
lhemos o melhor exemplo disso na provação de Jesus,
porque ensinava os seus discípulos e lhes dizia: O Filho do Homem será entregue nas
mãos dos homens, e o matarão; mas, três dias depois da sua morte, ressuscitará.
438
Esse tríduo que se interpõe entre a Morte e a Ressurreição constitui-se numa
espécie de regressus ad uterum evidentemente imprescindível para que haja o Nascimento de
um novo ser ou para que haja um novo Nascimento do ser, para que a carne, enfim, volte a ser
Verbo. Ad rem, Chevalier e Gheerbrant explicam:
O neófito parece operar um processo de regressão, seu novo nascimento é
comparado a um retorno ao estado fetal no ventre de uma mãe. É verdade que ele pe-
netra na noite, mas uma noite que lhe diz respeito; embora comparável à do seio ma-
terno, é, de maneira mais ampla, a noite cósmica.
439
A menção à “noite cósmica”, aliás perfeitamente divisável em Magma, indica
que se trata de uma missão árdua que exigirá ainda grandes doses de fé e aplicação por parte
do peregrino. Em verdade, pode-se dizer que a noite tumular, que é ao mesmo tempo noite
uterina, consiste no momento de maior perigo e cuidado de toda a busca espiritual, eis que, à
medida que se aproxima o fecho da trilha anagógica, com o advento de uma nova Vida, mais e
mais se intensificam as forças ctonianas que puxam o frágil ser para baixo, tentando retê-lo na
Morte. É oportuno trazer à lembrança “que, quanto mais perto a alma do místico estiver da
divindade, mais sombria e confusa ela fica.
440
Por outro lado, nunca é demais insistir em que, de conformidade com o que já
vimos, o ingresso no túmulo, o regresso ao útero, a passagem pela noite sempre manifestam
nos cerimoniais de iniciação a entrada ou enterramento no mais profundo eu, por fim a con-
quista do tevel subterrâneo cavernoso, ensaiada em Magma desde a Gruta do Maquiné.
Conclua-se destarte que o terceiro terço magmático – dizendo respeito à Res-
surreição do ser, mas não sem antes observar os preparativos crípticos dessa Ressurreição –
pode ser dividido, em função de tais preparativos, nos seguintes quatro grupos, cada qual
permeado por uma atmosfera própria: Desenho octogonal, Manhã de Finados, A noite
438
Mc 9.31. Grifei. V. tb. Mc 8.31 e 10.33-34, Mt 17.22-23, Lc 9.43b-45 etc...
439
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 506.
440
V. nota 199 (pág. 111-112). Grifei.
239
escura” e Renascimento(sendo que tal terminologia é exclusiva do presente trabalho de
pesquisa).
As três primeiras partes representam o perambular do neófito morto pelo reino
das sombras, podendo, conseentemente, ser entendidas até como uma evocação dos três di-
as na sepultura noticiados pelos Evangelhos. As particularidades que definem a individuação
de cada uma dessas etapas, aliás demarcadas com muita nitidez por Guimarães Rosa, serão
vistas em pormenores nos tópicos que lhes cabem. Por ora importa dizer, em linhas gerais,
que nos oito textos que inteiram o Desenho octogonal(nomenclatura retirada do primeiro
verso da peça “A aranha) o peregrino, ainda entorpecido pelo transe recente, toma as primei-
ras lições dessa fase novel, avultando a figura do índio Araticum-uaçu – um dos psicopompos
que o irá auxiliar a compreender o sentido da vida e da morte –, e dá-se também a travessia ao
longo do rio que, a exemplo da imensa maioria dos mitos ctônicos, marca em Magma a paisa-
gem subterrânea. Na “Manhã de Finados(tópico cujo título alude a um verso de “Toada da
chuva”) o noviço já adquiriu consciência da própria morte e a lamenta amargamente, surgindo
outros psicopompos que o acompanham, tais como O gado” e os homens de túnica longa
no Paraíso filosófico. Quanto à terrível A noite escura” (denominão emprestada da céle-
bre obra do stico espanhol São João da Cruz), nela o poeta é deixado sozinho a fim de de-
frontar-se com seus maiores temores e vencê-los. O norte a que essas três séries de poemas
apontam é a paulatina compreensão do significado da Morte iniciática e a sua aceitação pelo
homem, o que condiciona e possibilita o Renascimento.
As angústias que afligem o adepto submetido a tão duras provas seguem num
crescendo ao longo desse percurso em três etapas. Entretanto, findo o aprendizado, a derradei-
ra parte é a redenção, a tão aguardada “Integraçãona “Consciência cósmica” que é o término
do desfiar do rosário da existência profana, pelo retorno ideal à Pátria Celeste donde o huma-
no fora exilado. Esse retorno corresponde ao ánodos da filosofia de Plotino, o instante de êx-
tasenstase que com efeito opera a elevação do ser até o Uno; têm valia os comentários de Je-
an Brun:
Poderíamos encontrar em Plotino textos que parecem convidar o homem a um
desnudamento de si próprio e a um abandono de si, e outros onde nos é exigido que
mergulhemos em nós mesmos para aí redescobrirmos Deus. A contradição é apenas
aparente e seria necessário recordarmo-nos, primeiro que tudo, do que dissemos, re-
correndo aos textos, sobre a purificação.
Parece tratar-se de um desnudamento de si, na medida em que aquele que
pensa não deve estar atento a si próprio enquanto individualidade no ato de pensar.
Mas, se podemos falar de um mergulho dentro de s, para aí descobrirmos a verda-
de e a divindade, é porque conaturalidade entre o pensante e o pensado porque
240
não devemos procurar os inteligíveis fora da inteligência(
óu toínum dei ãnte ekso
tá noetá zetein
) e dizer que nela há apenas as marcas dos seres (V, 5, 2).
O espírito humano deve pois voltar-se sobre si mesmo para meditar em todas
as coisas; como fortemente o diz Marcel De Corte, que vê em Plotino o primeiro de-
fensor do idealismo absoluto, o pensamento é plenamente
transparente
para si pró-
prio (
ekei dé phána pánta kai ékaston
, IV, 9, 5) porque a sua realidade pensante não
faz senão unidade com a sua realidade pensada(...). Diferentemente do Pensamento
que se pensa, como Aristóteles definia Deus permanecia separado (
choristós
), a Inte-
ligência de que fala Plotino é imanente.
Por conseguinte, não contradição entre a passagem onde Plotino nos con-
vida a uma saída de s (
ékstasis
), a um abandono de s mesmos (
epídosis
) (VI, 9,
11, 23) e aquela em que nos diz que a alma que se eleva não vai para um ser dife-
rente dela, mas [que] regressa a si própria, e [que] não está então em nenhuma outra
coisa senão em si própria; mas, uma vez que está em si própria e não já dentro do ser,
ela está por isso mesmo nele; porque ele é uma realidade que não é uma essência,
mas que está
para lá da essência
, para a alma com a qual se une (VI, 9, 11, 38).
Chegamos ao fim da viagemquando nos vemos a nós próprios tornar-nos
no ser (
ei tis óun tónto antón gemenon idoi, VI, 9, 11, 43
). Restituímos então o que
em s de divino ao próprio divino com o qual coincidimos; qualquer separação
entre o divino e o humano acha-se abolida, o desvelamento é perfeito, o viajante já
não é senão um só com aquilo que se encontra no coração do santuário. Faz mais do
que ver: tornou-se visão pura.
(...)
Por conseência, o
êx
tase é, na realidade, uma
íns
tase, visto que o acesso
ao cimo se opera no mais profundo da interioridade.
441
Oportunamente há de se constatar que a mesma tensão, “apenas aparente”, en-
tre o “abandono de si” e o mergulho dentro de s, perpassa todos os carmes desse terço
conclusivo de
Magma
, sobretudo as peças Bibliocausto, Integraçãoe Consciência cós-
mica”.
Doutro lado, aproveitando a deixa de Brun ao afirmar que no fim da viagem
(...)
Restituímos
então o que em s há de divino ao próprio divino com o qual coincidimos,
é pertinente considerar a simulcadência entre o
ánodos
plonico e o aperfeiçoamento dos atos
restitutivos do
tikún
da Cabala, conforme o entendimento de Isaac Luria. Em ambos os casos,
o ser humano garimpa no próprio íntimo a centelha celeste, de posse da qual reconhece a sua
verdadeira natureza e se expande até o Infinito.
É de se recordar ainda a insigne conclusão da fórmula iniciática rosa-cruciana,
que reza: ...
per Spiritum Sanctum reviviscimus
442
.
Tudo perfaz os mistérios gloriosos que encerram as preces do poeta, corres-
pondendo esse terceiro terço também aos ritos de agregaçãoou s-liminares, de acordo
com o magistério de Van Gennep. Diga-se ainda que ao final da próspera aventura, atingindo
441
BRUN, 145, 82-83 (
sic
). Grifos do autor.
442
V. nota 115 (pág. 63).
241
com a Ascensão os cimos da Sabedoria, o homem estabelece o Paraíso em seu íntimo e redi-
me toda a via crucis até então percorrida, transmutando-a em via Lucis.
Adiantemo-nos, pois, sem mais demora na análise das composições que coro-
am o experimento mistagógico rosiano.
1. DESENHO OCTOGONAL
As pessoas não morrem, ficam encantadas.
GUIMARÃES ROSA
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
[estradas
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
[e os ariticuns maduros.
MANOEL DE BARROS
Os poemas que enformam a primeira parte do terço concludente de Magma
são, conforme a ordem em que se apresentam: A aranha”, No Araguaia I, Batuque,
No Araguaia II, Reza brava, No Araguaia III, Madrigal” e “No Araguaia IV.
Antes de examiná-los um a um, tem interesse compreender qual é o nexo que permite a reuni-
ão dos mesmos num só grupo distinto, e para tanto é válido discutir desde logo quão impor-
tante é o traçado da obra de engenharia da aranha na peça que abre a série, conforme se lê em
sua estrofe introdutória:
Num desenho octogonal,
a aranha, noite e dia,
traça e destraça linhas, teimando em resolver
o seu problema de trigonometria.
O octógono, forma que Guimarães Rosa concede à sua teia aracnídea (a qual,
na natureza, nem sempre consegue ser tão perfeita e regular), é dotado de uma gama simli-
ca que, embora bastante extensa, faz jus a um estudo acurado, e cujo cerne é a circunstância
de que essa figura geométrica representa “um valor de mediação entre o quadrado e o círculo,
entre a Terra e o Céu, e está, portanto, em relação com o mundo intermediário.
443
Tal característica de mediação é sobremodo relevante para a hermenêutica do
presente trânsito iniciático em Magma. Considere-se que o quadrado, como foi aludido, re-
flete o plano material e terrestre (o que, adrede, ficou cristalizado na expressão os quatro
443
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 651, verbete OITO. Grifos dos autores, o primeiro em negrito, o se-
guinte em itálico.
242
cantos do mundo), ao passo que o círculomanifesta o plano celeste e a perfeição do Uno
em sua imutabilidade sem como ou fim que é, simultaneamente, o começo e o fim de todas
as coisas cambiáveis. Ora, sendo o octógono uma forma geometricamente intermediária entre
um e outro ambiente, resulta expressa, através do emprego da figura, a idéia de passagem de
um a outro.
É ainda de se levar em conta que
As pias batismais têm freentemente uma base de forma octogonal ou são
erigidas sobre uma rotunda de oito pilares. A forma octogonal simboliza a ressurrei-
ção (...), segundo a simlica cristã de Santo Ambrósio, herdada aliás da simlica
pagã. O octógono evoca a vida eterna que se atinge, imergindo o neófito nas pias ba-
tismais.
444
Tudo ajusta-se ao atual estágio de entrada do adepto na tumba: tendo sido, por
meio de “A terrível parábola”, firmada a Morte ritual para o mundo profano quadrangular, há
agora a expectativa do posterior Renascimento para o mundo sagrado circular; a impedir a
mudança brusca entre as duas realidades (hitese em que o noviço teria dificuldades tanto
para se desvencilhar da primeira como para se adaptar à segunda), interpõe-se necessaria-
mente uma estação preparatória que se passa no mundo octangular do sepulcro.
A partir desse entendimento, há razões para se cogitar que as oito faces do de-
senho octogonalmagmático sejam constituídas pelo próprio texto A aranha” e mais as sete
peças que lhe são imediatamente consecutivas. Já a relevância da simlica do octógono para
a visualização da natureza dos procedimentos mistagógicos post-mortem autoriza o pensa-
mento de que o alcance da imagem oitavada se alastre por mais de uma composição, adotando
assim o exemplo do que acontece com outros signos em Magma, como a água, a lua e o arco-
íris. Entretanto, o fator que mais contribui para corroborar tal assertiva é a seencialidade em
que são arranjados os oito objetos em tela: ocorre que o ciclo No Araguaia” é dividido em
quatro poemas, entre os quais são intercaladas outras composições (Batuque, Reza brava
e “Madrigal), sendo que o primeiro daqueles (No Araguaia I) é contíguo à peça que in-
troduz o símbolo do polígono, e o último (No Araguaia IV) é exatamente o texto que fe-
cha a figura octonada, ficando em decorrência integradas numa mesma comunidade ideal to-
das as composições que se desenrolam entre “Ie “IV. O entremear desses escritos por Gui-
marães Rosa, atitude que a princípio parece enigmática e desnecessária, resolve-se justamente
em virtude do raciocínio de integração, o qual vale a pena apreender com vagar: resistindo à
segura comodidade de se ignorar a atitude do autor, começa-se a perceber que a colocação a
444
Id., ibid., verbete OCTÓGONO. Grifo dos autores.
243
intervalos leva o leitor a prestar atenção no liame que se deve desfiar entre os componentes do
complexo quádruplo; esse liame não pode consistir simplesmente numa eventual temática
indigenista, pois assim não se justificaria a intromissão de peças estranhas a tal assunto, de-
vendo portanto ser de outra espécie, e espécie que por congruência se comunique aos três
poemas intervenientes. Mas qual seria esse liame? A resposta é dada pela “aranhaque, com
seu fino chamalote”, delineia o desenho octogonal” e enlaça as oito composições em torno
do ocio comum de propiciação ao Renascimento do neófito – e o traçado poligonal termina
com o sacrifício crístico do psicopompo Araticum-uaçu, acontecimento solene que faz com
que o poeta abra os olhos para a sua própria situação de morto, desta maneira ensejando a
abertura de um novo agrupamento poemático a partir da peça “Toada da chuva, em que até
mesmo o “céuparticipa do luto da “manhã de Finados.
A propósito, da oitavária se pode extrair uma somatória de significado apreciá-
vel, que se escora no pensamento agostiniano:
Segundo Santo Agostinho, toda ação, nesta vida, se refere ao número 4, ou,
ainda, à alma, cujo número é ternário. Depois do 7º dia vem o 8º, que assinala a vida
dos justos e a condenação dos ímpios...
445
Em conjunto, os oito poemas se referem ao enterro do corpo material no solo,
onde lhe incumbe apodrecer e se desvanecer, como requisito para que a alma liberta possa as-
cender e tornar ao Uno. Já vimos que o número da alma celeste é o três, ao passo que quatro é
o número do corpo terrestre; infere-se assim que o trabalho do corpo – 4 – em associação com
a alma – 3 –, a qual anseia por sua reintegração com o Uno – 1 –, totaliza 8, que é o número
do Renascimento e do Infinito. Deste modo, na engrenagem do sistema octal de Magma, A
aranha, primeira das peças que diz respeito ao mundo intermédio e cuja protagonista simbo-
liza ela mesma a “criadora cósmica”
446
, pode ser tomada como a expressão do um, enquanto
que o corpo ao qual cumpre se putrefazer é traduzido pelas quatro composições de “No Ara-
guaia” e a alma à qual cabe se elevar é traduzida pelos três textos de permeio.
Deve-se ainda evidentemente reparar, dentro do simbolismo do octógono, no
mero de seus lados. O oito denota a abertura do numerável para o Infinito imensurável, o
que fica bem pautado até mesmo pela escolha do sinal gráfico do lemniscate tido como um
algarismo oito deitado– para evocar matematicamente o Infinito. Interessantemente,
445
Id., op. cit., pág. 652.
446
V. nota 453 (pág. 246).
244
o Japão, desde épocas muito recuadas, é chamado pelos japoneses Ilhas do Grande
Oito, para dizer que o país é constituído por uma quantidade inumerável de ilhas. Tal
cifra é encontrada com freência nos antigos textos sagrados xintoístas, sempre com
o sentido de grande mero. Tornou-se uma cifra sagrada. Mas o oito não é o
inumerável indefinido e disperso, é o inumerável enquanto entidade que pode ser ex-
pressa pelo nº 8.
447
Discorrendo sobre o significado desse mero na mitologia dos dogons do
Mali, Chevalier e Gheerbrant informam que, para tal povo,
O verbo é (...) simbolizado pelo número oito, que engloba, além do mais, a
água, o esperma, e o conjunto das forças fecundantes. (...)
Enfim, a sacralização do número oito, entre os dogons, se sobree à da re-
generação periódica, pois oito é o número do Gênio e do Antepassado – o mais velho
dos ancestrais que se sacrificou para garantir a regeneração da humanidade quan-
do do seu estabelecimento definitivo na terra (...). Só depois desse sacrifício caíram
sobre a terra as primeiras chuvas fecundantes e purificadoras, o primeiro campo foi
semeado, e soou, no norte da aldeia, o primeiro ruído de forja.
448
Deste modo, num lance de nítido contorno iniciático, o oito exprime, as a
conclusão das atividades de limpeza e aradura do solo, o “estabelecimento definitivo na terra
da semente que, morrendo, renascerá em nova planta – não sem que antes venham as “chuvas
fecundantes. No trajeto mistagógico de
Magma
, Araticum-uaçu faz as vezes do Gênioou
Antepassadoou ainda do Cristo que “se sacrificou para garantir a regenerãodo noviço
ora sepultado; as precipitões vivificantes terão lugar nas peças Toada da chuva” e, sobre-
tudo, Chuva” e Integração.
Porém, de maneira alguma se pense que tal teor simlico seja exclusivo do
idrio africano. Em prosseguimento, os autores supra citados complementam que
A tradição cristã, no que concerne a esse mero, lembra de maneira espan-
tosa a dos dogons, e faz do oito um acabamento, uma completude.
(...)
Quanto ao Oitavo Dia, que sucede aos seis da criação e ao sabbat, ele é o
símbolo da
ressurreição
, da
transfigurão
, anúncio da era
futura eterna.
Comporta
não só a ressurreição do Cristo mas também a do homem. Se o número 7 é, sobretu-
do, o do Antigo Testamento, o 8 corresponde ao Novo. Anuncia a beatitude do século
futuro num outro mundo.
449
Buscando através da Cabala luriânica as raízes hebraicas desse simbolismo
cristão, temos que no Oitavo Dia” bíblico, estando já realizados o labor criativo e o descanso
de Deus, abria-se o advento do porvir e a vida plena dos seres criados, cujas tarefas consistem
447
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 652.
448
Id
.,
ibid
.
449
Id
.,
ibid
. e pág. seg. Grifos, em negrito enfático, dos autores.
245
precisamente nos atos mágicos e restitutivos do tikún, os quais dão continuidade ao trabalho
divino.
A reforçar o sentido do numeral na composição rosiana, não se esqueça de que
A aranha” que projeta o desenho octogonal” é um animal octópode: desta maneira, o oito
araneiforme, menor, engendra dentro de si e se abre para a construção de um oito de maior
amplitude, cuja função – logo o veremos mais detalhadamente é a de apreender em suas
malhas o divino.
Os comentários sobre o octógono, todavia, não se completam sem a discussão
de suas relações com outra forma geométrica: o triângulo, pois é certo que o octógono regular
é composto por oito triângulos eiláteros ou isósceles justapostos. No poema de Magma,
Guimarães Rosa se refere ao problema de trigonometria” da aranha, sendo trigonometria” o
ramo da matemática que, em associação com a geometria euclidiana, estuda o cálculo das
medidas dos lados e ângulos do triângulo. Podemos interpretar essa alusão como dizendo res-
peito, dentre outras coisas, aos três terços do rosário, do que se deduz que o problema de tri-
gonometria” a ser resolvido pela “aranha fiandeira” nada mais é do que a decifração das cor-
respondências que se definem entre a empresa mistagógica, figurativamente trigonal porque
rendilhada por terços, e o octógono resultante dessa tecedura, um quase-círculoque tende a
se desdobrar para o êxito da Ressurreição e do Infinito. Por outro lado, na simlica cristã
tanto o oitavo como o terceiro podem ser o dia do Renascimento – e em Magma o início do
terceiro terço coincide exatamente com a oitavária.
O valor transcendental do trígono é bem notório: O triângulo equilátero, na
tradição judaica, simboliza Deus, cujo Nome não se pode pronunciar.
450
No cristianismo, a figura trilátera designa igualmente a Sanssima Trindade
(Pai, Filho e Espírito Santo), enquanto que no hinduísmo denota a Trimurti (os deuses
Brahma, Vishnu e Shiva). Na alquimia, é o símbolo do fogo, com o que se pode associá-la até
mesmo ao magma. Por fim, é mister recorrer também à simbologia maçônica, em que a base
do triângulo – chamado de “delta luminosoou ternário cósmicomanifesta a Duração
dos trabalhos iniciáticos, enquanto que os dois lados que sobem para se unir no vértice su-
premo representam a Luz e as Trevas com as quais todo neófito tem de operar para alcançar o
seu objetivo anagógico. Destarte, sendo o octógono formado por meio da justaposição de oito
triângulos, é permitido dizer que “A aranha” ilustra, com seu traçar de linhas, a longa e lenta
450
Id., op. cit., pág. 904.
246
duração do desfiar “conta a contado rosário magmático, desde as trevas da Ignorância até a
luz da Sabedoria.
Depois dessa explanação algo longa, e no entanto necessária para se visualizar
com propriedade o conglomerado do Desenho octogonal, podemos de agora em diante cui-
dar mais especificamente do texto A aranha”, cuja protagonista como que retoma o fio do ro-
sário do poema vestibular de Magma e busca tecê-lo numa “teia”, para aí prender a “mosca
que não vem. Adquirem notabilidade, pois, os símbolos da aranha, da mosca e da tecelagem.
Dentre os múltiplos aspectos simlicos que a aranha detém, comecemos por
destacar sua atribuição de condutora de almas e, portanto, de intercessora entre os mundos
das duas realidades – humana e divina
451
.
Item, universalmente
A aranha torna-se, às vezes, símbolo da alma ou um animal psicopompo. En-
tre os povos altaicos da Ásia Central e da Sibéria, principalmente, representa a alma
liberada do corpo. Entre os muiscas da Colômbia, quando ela própria não é a alma, é
quem transporta ao longo do rio, num barco feito com sua teia, as almas dos mortos
que devem ir para o Inferno. Entre os astecas, torna-se símbolo do próprio deus in-
fernal.
452
Logo, a aranha é hábil a interpretar o duplo papel de “condutora de almas
(“animal psicopompo) e da própria “alma” que, liberada do corpo, é conduzida pelo mun-
do subterrâneo. Pode-se com propriedade afirmar que ela, ao mesmo tempo condutora e con-
duzida, seria a alma que conduz a si mesma pelos espaços avernais, tudo outra vez em conso-
nância com o entendimento deste período magmático como sendo a passagem do neófito pelo
estrato ctônico entre as duas realidades – humana e divina, aquele intervalo sepulcral em
que o ser humano tem a oportunidade decisiva de liberar sua alma divina da crisálida material
(o que – não é demais lembrar – num sentido aprofundado diz mais respeito ao apego às ilu-
sões que infestam a matéria do que propriamente ao corpo físico).
O aracnídeo constitui-se, por igual, em símbolo da deidade que a partir de si
própria engendra o Universo, pois,
conforme os diversos povos, (...) pode representar a criadora cósmica, a divindade su-
perior ou o demiurgo.
(...) Tecelã da realidade, ela é, portanto, senhora do destino, o que explica
sua função divinatória, tão amplamente atestada ao largo do mundo.
453
451
Id., op. cit., pág. 72.
452
Id., ibid. Grifo dos autores.
453
Id., op. cit., pág. 71. Grifo dos autores.
247
Por via de conseqüência, o artrópode manifesta também e bem de acordo
com sua característica de “símbolo da alma” e de mediador – o divino dentro do humano.
Cuidando-se que é por dentrode seu corpo e de dentro dele que passa e sai o filamento de
seda com que “A aranhatece, fica patente que nesse texto o animal aparece como uma nova
persona do poetaque “reza o rosáriodesfiando por dentroo fio anímico com o qual
busca compor uma nova realidade. Ainda condizentemente com o atual passo de Magma, uma
das tônicas da simlica araneídea é indicar com justeza
também um grau superior de iniciação. Entre os bambaras, por exemplo, ela designa
uma classe de iniciados que já alcançaram a interioridade, a potência realizadora do
homem intuitivo e meditativo.
454
Anote-se entretanto que essa “interioridade” é uma “potência, a qual ainda há
que se desenvolver em ato para que o adepto se torne um iniciadodeveras, cabendo por en-
quanto melhor o termo neófito: os mitos ctonianos unanimemente advertem que é necessá-
ria a saída do eu as a definitiva entrada nele e valha-nos a narrativa de Orfeu. Em coro a
esse alerta, na psicanálise o aranídeo aparece como um excelente símbolo da introversão e do
narcisismo, a absorção do ser pelo seu próprio centro.
455
É por esse motivo que o ingresso no mundo infernal, quando o ser pervaga os
profundos escuros do eu, surge como a passagem mais perigosa da iniciação, eis que a cada
instante o noviço corre o risco de ser tragado pelas sedutoras malhas de seda da ilusão de sua
própria morte. E mais uma vez a figura da aranha tem uma dupla face que concerne à situa-
ção: no idrio semita, sua teia manifesta a fragilidade das coisas, como o atestam a Bíblia (Jó
27.18) e o Alcorão (29.40), o que parece ser
um eco da mentalidade oriental; secundando
Chevalier e Gheerbrant,
Essa fragilidade evoca a de uma realidade de aparências ilusórias, engana-
doras. Assim, será a aranha a artesã do tecido do mundo ou a do véu das ilusões que
esconde a Realidade Suprema? A partir do segundo milênio a. C., é justamente esta a
questão colocada pelo mito, diferentemente interpretado, de Maya, a Xácti ou compa-
nheira de Varuna. Para a filosofia budista, Maya evocará uma realidade ilusória,
porque é vazia de ser, i. e., desprovida de todo substrato metafísico. Para o brama-
nismo, ao contrário, a realidade é a existência, que é verdadeira, porquanto é ma-
nifestação da essência: o véu de Maya, assim como a teia da aranha, exprime a bele-
za da criação, e Maya é uma deusa prestigiosa.
456
454
Id., op. cit., pág. 72. Grifo dos autores, citando Dominique Zahan (La dialectique du Verbe chez les Bamba-
ra).
455
Beaudoin, apud id., ibid.
456
Id., ibid.
248
Nessa conjuntura, tem interesse trazer à discussão o mito grego de Aracne, no
qual uma jovem que rivalizou com a deusa Atena na arte de fiar foi por castigo transformada
numa aranha. Para Chevalier e Gheerbrant, isso ilustra “a ambição demiurga punida, intelec-
ção plenamente aplivel à composição de Magma, na qual o poeta pondera que o artrópode
(...) bem que poderia
pescar pequenos arco-íris, nas gotas de orvalho
penduradas do fino chamalote...
se fosse poeta...
Foi visto que o animal deve ser compreendido como mais uma das personae do
poeta na expressão do seu magma íntimo. Ora, ao se fazer transformar em aranha no texto,
o poeta primeiro repete a pena infligida por Atena a Aracne e as, ao duvidar da condição de
poeta do aracnídeo, está ele em realidade duvidando da sua própria condição de poeta orante,
que “reza o rosário” como o desempenho de uma ação anagógica. Neste momento da travessia
iniciática, o poeta está se punindo a íntima “ambição demiurga” com relação ao próprio desti-
no, i. e., está punindo o seu desejo ascensional que aparenta ter malogrado com a morte e,
de fato, nos rituais mistagógicos o neófito na sepultura, absorvido pelo seu próprio centro,
sempre tem a sensação de ter fracassado. Sintomaticamente, o modo de reagir ao aparente in-
sucesso é que o noviço está se projetando em outra figura, atitude equivalente a se esconder
de si mesmo na alteridade: trata-se afinal de uma desesperada recusa em admitir que ele se
encontra morto. Deste modo, julgando-se incapaz de prosseguir, o poeta de Magma considera
o longo percurso já percorrido desde o nascimento nas Águas da serra” e pensa em todos os
árduos ensaios de ascese, vistos como treinos/ no trapézio e na corda: ambas evocões de
acrobáticos volteios circenses, esta insinua o fio do rosário, talvez encarado sob uma balou-
çante perspectiva funamlica, e aquele pode ser entendido tanto como o aparelho suspenso
de ginástica quanto como a forma geométrica que
foi comparada por M. Schneider à testa de um boi e, por conseguinte, evocaria uma
idéia de sacricio. Podemos também considerá-la como um triângulo truncado; o tra-
pézio sugere uma impressão de não-acabamento, de irregularidade ou fracasso. Isso
pode provir do fato de que a figura está em transformação, foi desviada, bloqueada no
decorrer do seu desenvolvimento, ou que é mutilada. Todas estas observações podem
ser transpostas, simbolicamente, para o plano físico e resumir-se na percepção de
uma certa dificuldade no dinamismo de um ser. O trapézio é um apelo ao movimen-
to.
457
457
Id., op. cit. pág. 896. Grifos meus. As alusões, em A aranha”, ao octógono, ao triângulo e agora ao trapézio
fazem recordar Plotino, para quem os geômetras tram figuras enquanto contemplam(Enéada III, 8, 4). Ali-
ás, no portal da Academia fundada por Platão em Atenas lia-se esta advertência: Que aqui não entre quem não
for geômetra”.
249
Diante dessa “impressãode incompletude e dificuldade” é que se lamenta a
bem triste
velhice
de uma profissional...
E no final da peça, bastante exaurido desde o enfrentamento do decesso ritual,
o adepto se indaga:
Aranha triste, aranha fiandeira,
podendo envolver-te na tua própria teia,
porque tanto tardas em te
amortalhar
?...
Cogita ele abandonar a
teima
“em resolver/ o seu problema de trigonometria” e
manter-se inerte nos tecidos da Maya iludente, submetendo-se assim ao estagnado Sono das
águas: seria a rendição ao entorpecimento da morte. Afinal, a aranha
Já remendou, mais de uma vez, a rede,
para a
mosca que não vem
.
458
É oportuno agora emendar os comentários sobre o simbolismo desse inseto
que não vem. Ao se falar sobre “a mosca, logo é ativado o lado negativo do signo, refe-
rente às relões do animal com a sujeira e a podridão, como agente vetor de doenças, e à
aflição que causa quando, em nuvens, assola e pica os homens, até mesmo alimentando-se do
sangue humano – esses aspectos infaustos presentes na cultura ocidental são oriundos mor-
mente da tradição bíblica, onde o deus sírio Belzebu, cujo nome se traduz por senhor das
moscas, foi entronado pelos hebreus como príncipe dos demônios. Contudo, por estranho
que possa parecer, a mosca revela outrossim uma signifincia mais sublime, procedente do
antigo ideário heleno. Apesar de voejar sobre as imundícies e a decomposição, as moscas
também simbolizam uma
busca incessante
459
e,
Entre os gregos, a mosca era um animal sagrado, ao qual se referiam certos
nomes de Zeus e de Apolo. Talvez ela evocasse o turbilhão da vida ompica ou a oni-
presença dos deuses.
460
Já Consuelo Albergaria disserta sobre o matiz mistagógico do símbolo da
mutuca” em
Grande Sertão: veredas
:
458
Datilografado para as moscas que não
vêem
, tendo sido a mão riscados os indicativos de plural e o verbo e
colocada a correção
vem
.
459
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 623.
460
Id
.,
ibid
.
250
A
mutuca
se relaciona com o aprendizado da
coragem
e está ligada ao nosce
te ipsumsocrático, cuja fonte é a inscrição délfica: Conhece-te a ti mesmo e conhe-
cerás o Universo e os deuses. Será apenas por coincidência que Diadorim traz sem-
pre os braços marcados por picadas de mutuca?
(...) Aliás, outra personagem de Guimarães Rosa, a Lalinha do
Buriti
também
apresenta a mesma ligação com os mosquitinhos chupadores(...).
Já se a tomarmos numa caracterização mais precisa, o
mosquito
que se ali-
menta de sangue alheio, temos o símbolo da
agressividade
proveniente do fato de vi-
olar a intimidade da sua vítima. Nesta acepção, o mosquito se liga ao mito edipiano e
aparece metaforizado na tragédia de focles.
Entretanto, a chave que nos permite ligar o mosquito ao processo do conhe-
cimento nos é dada pelo próprio Rosa no seu discurso na Academia...
461
A pesquisadora cita, então, trecho do discurso rosiano O verbo e o logos:
A fartura de antenas sensitivas provia-o de incomparável tino, quase adivi-
nhador. Funcionavam-lhe engenhadas as imaginosas aspirações, vezesmente, sem
relaxe (...). Tremendo, ei-lo, contendor duro, conspirador sério, conferindo força de
persuasão e evidência convincente, inchante fermento; pequeno-polegar, malasarte,
malino não maligno nem maquiavelhaco,
mutuca
como Sócrates de si mesmo na
Apologiadiz-se a mutuca de Atenas...
462
Albergaria conclui:
Outro fato que nos permite associar a
mutuca
ao processo iniciático é a opo-
sição Diadorim/Hermógenes, já evidenciada e aqui reforçada. Se Diadorim atrai os
mosquitos, Hermógenes sabe livrar-se deles (...).
Incorporando o sentido simbólico do inseto (agressividade/busca inces-
sante) vemos que a sua aproximação se traduz em termos de luta e procura – proce-
dimentos ensinados por Diadorim, a quem as
mutucas
não deixam em paz. Por outro
lado, o inverso se nota com relação ao Hermógenes, duplo invertido de Diadorim, que
caminha em dirão contrária à aquisição do conhecimento.
463
Entre parênteses recorde-se que, assim como Diadorim traz sempre os bros
marcados por picadas de
mutuca
, em Ritmos selvagensos índios do sul(bororos) têm
as pernas ensangüentadas/ das ferroadas das
muriçocas
. Ademais, em Paisagemsurgem
“as libélulas verdesque, em pleno vôo de caça,/ (...) hipnotizam as
muriçocas
tontas.
Entre s, a faceta stica da simlica do muscídeo pode ainda ser vislum-
brada por meio de “A mosca azulperdida pelo polno poema machadiano:
ERA UMA MOSCA azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.
461
ALBERGARIA, 22, 141-142. Grifos da autora.
462
V. ROSA, 19.
463
ALBERGARIA, 22, 142. Grifos da autora.
251
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que to ensinou?
Então ela, voando, e revoando, disse:
Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor.
464
Tanto no texto de Machado de Assis como no de Guimarães Rosa a mosca ma-
nifesta um dom a ser recebido. Na peça de
Magma
ela evoca um
alimento
que a predadora
muscívora pretende interiorizar (e para isso
remenda
“a rede”) ou, por outras palavras, um
en-
sinamento
a ser intimamente apreendido pelo neófito. Tal ensinamento, aproveitando-se o
magistério de Albergaria, poderia ser o da insistência na busca e o da coragem de conhecer-se
a si mesmo e ver-se como depositário do fio anímico e, pois, como receptáculo do
Outro
divi-
no – lições bastante úteis para a atual etapa de nossa trilha mistagógica. Esse sentido aproxi-
ma a mosca mencionada em A aranhado besouro/ de asas verde e ouroque adentrou a
janela do poeta em Riqueza” (o primeiro dos Poemas), bem como do colibri Esfuziante e
verde” de “Ausência; diga-se de passagem que também A mosca azulmachadiana tem
“asas de ouro e granada” (sendo este um mineral cuja cor, dependendo da composição, oscila
do vermelho acastanhado ao branco esverdeado) e surgiu dentre “as folhas (...) de uma rosa
encarnada. Perceba-se ainda que a teia, preparada para “a mosca que não vem, igualmente
(...) bem que poderia
pescar pequenos arco-íris, nas gotas de orvalho
penduradas
do fino chamalote...
Equiparados desta maneira “a mosca” e os pequenos arco-íris, ambos como
possíveis presas da teia, fica o símbolo da primeira como que idealmente “contaminadopelo
colorido do rocio irisado e, destarte, alçado a suas mais nobres significões: uma e outros re-
presentam centelhas do divino a serem coletadas pela aranha. Observe-se ademais, num pa-
rêntese, que o verbo pescar, utilizado por Guimarães Rosa, tem seu matiz de misticismo e
intuitividade, desde os Evangelhos (em que Jesus chamou a Pedro de “pescador de homens),
464
ASSIS, 114, 138-139.
252
passando pelos tratados alquímicos (em que a pesca do coralé uma metáfora freqüente para
a procura da Pedra Filosofal) e chegando à psicanálise moderna:
Pescar, no sentido psicanalítico, é também proceder a uma espécie de
anamnese, extrair dos elementos do inconsciente, não atras de uma exploração di-
rigida e racional, mas deixando jogar as forças espontâneas e colhendo seus resulta-
dos fortuitos. O inconsciente é aqui comparado à extensão de água, rio, lago, mar,
onde estão encerradas as riquezas que a anamnese e a análise trarão à superfície,
como o pescador de peixes, com sua rede.
465
Mas a “rede” da aranha resta vazia: por ora, nem mosca nem arco-íris são pes-
cados.
Com a menção à rede, voltemos nossa atenção para o trabalho de
tecelagem
da
“aranha fiandeira, do qual inda podem ser extraídas valiosas ilões. Para a sua fiadura, o
artrópode setígero traça (...) linhasde “fino chamalote”, o que conforme já foi anotado –
recobra “o fioque corre por dentrodo poeta desde o carme vestibular. Por extensão, reto-
memos o anteriormente analisado simbolismo do fio, complementando que
No plano místico, esse fio evoca o cordão umbilical, ou a corrente de ouro
que une a criatura ao criador, e atras da qual aquela tenta içar-se até este, tema
evocado por Platão e que será retomado por Dionísio o Areopagita:
Esforcemo-nos,
pois, através de nossas preces, por elevar-nos até o cimo desses raios divinos e benfa-
zejos, como se nos agarrássemos, a fim de puxá-la em nossa dirão com as duas mãos
alternadas, a uma corrente infinitamente luminosa que pende do alto do u e desce até
s, dando-nos a impressão de que a estamos atraindo para baixo; mas na realidade
nosso esforço é incapaz de movê-la, pois ela está tanto no alto quanto embaixo, e so-
mos s, isto sim, que subimos.
466
É válido ressaltar os tons neoplatônicos que tingem esse fragmento do Areopa-
gita e, doutro lado, seu notável vínculo com a essência da
Tábua esmeraldina
. Saliente-se ou-
trossim que, para o mártir ateniense,
nossas preces
são os instrumentos capazes de alçar o
humano movente até o divino imóvel, ficando evidente a correspondência com a atitude do
poeta noviço que “
reza
o rosário. E recordando-se outra vez – nunca demasiadamente – que
prece
e
Poesia
são irmãs, observemos que
os
Upanixades
fazem da aranha que se eleva ao longo de seu fio um símbolo de
liber-
dade
. O fio do
iogue
é o monossílabo
aum
(ou
om
); graças a ele o iogue eleva-se até a
liberação. O fio da aranha é o meio, o
suporte
da realização espiritual.
467
465
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 714.
466
Id
.,
op
.
cit
., pág. 72.
467
Id
.,
ibid
.
253
Se singularmente o fio aranhoso já serve para representar a ascese por meio da
entoação minimalista da sílaba fundamental ompalavra em sua extrema concentração poé-
tica e predical –, em trama resulta a similaridade entre a teia do animal e o texto poético, ca-
lhando lembrar a etimologia do termo texto, que se refere precisamente a algo tecido com
os filamentos das palavras. Também, Na tradição do Islã, o tear simboliza a estrutura e o
movimento do universo.
468
Complemente-se, assim, que sempre “O trabalho de tecelagem é um trabalho
de criação, um parto
469
.
Com o que concorda Mircea Eliade:
Tecer não significa somente predestinar (com relação ao plano antropológi-
co) e reunir (com relação ao plano cosmológico), mas também criar, fazer sair de sua
própria substância, exatamente como faz a aranha, que tira de si própria a sua teia.
470
E finalmente:
Tecido, fio, tear, instrumentos que servem para fiar ou tecer (fuso, roca) são
todos eles símbolos do destino. Servem para designar tudo o que rege ou interm no
nosso destino: a lua tece os destinos; a aranha tecendo sua teia é a imagem das forças
que tecem nossos destinos. (...) Tecer é criar novas formas.
471
A urdidura da teia na composição de Magma significa, enfim, a organização de
novas realidades espirituais para o poeta itinerante. Mas se é ele quem o fia, ainda hesita entre
qual seja o seu destino: amortalhar-se ou pescar pequenos arco-íris. A supressão dessa -
vida entre os desejos de morte e de renascimento constitui lance crucial para a determinação
do progresso anagógico – e afinal, para o peregrino o reconhecimento da própria morte será
um requisito inescusável para que se possa atingir a ressurreição.
Por último, destaque-se que o desenho octogonalda aranha, delineado que é
pelo discurso poético, sendo disposto em formas geométricas que se interpenetram e deixando
cair de si fios de gotas de orvalho/ penduradas/ do fino chamalote” (este um tecido de pele
ou de lã, às vezes entremeado por linhas de seda), bem pode ser concebido como o traçado de
um pentáculo de virtudes talismânicas, o qual, genericamente, consiste num tipo de
selo mágico impresso em pergaminho virgem feito de pele de bode, ou gravado em
metal precioso, tal como o ouro ou a prata. Triângulos, quadrados, estrelas de cinco
ou seis pontas inscrevem-se nos círculos do selo; letras hebraicas, caracteres caba-
sticos, palavras latinas se desenham sobre figuras geométricas. Considera-se que os
selos têm relação com realidades invisíveis, cujos poderes eles permitem comparti-
468
Id., op. cit., pág. 872.
469
Id., ibid.
470
Apud id., ibid. Grifo do autor.
471
Id., ibid.
254
lhar. Eles podem servir para suscitar os tremores de terra, o amor, a morte e para
lançar toda a espécie de sortilégios. Eles simbolizam, captam e mobilizam, ao mesmo
tempo, os poderes ocultos.
472
Outras variadas considerões poderiam ser alinhavadas a propósito das férteis
simlicas que se entrelaçam em A aranha.
A vereda iniciática, entretanto, impele à mar-
cha, convindo seguir até o próximo pouso, que é “No Araguaia I. Nessa peça o peregrino
narra o seu encontro com um amigo, o carajá Araticum-uaçu
473
, às praias sem cercas
e sem dono/ do velho Araguaia”.
Aproveita-nos esquadrinhar primeiro o alcance simlico do curso fluvial.
Antes de mais, diga-se que o Araguaia” ora corrente não é senão o reaviamento do signo
aquático que bem dantes brotara com as iniciantes Águas da serra, fazendo-se presente de
modo categórico durante os misteres do terço inaugural e que, não obstante, já a partir da peça
Maleita” foi, com O Pará”, progressivamente “desinchando, devagarinho,ou seja, foi
so-
frendo uma sutil retração, até se ausentar quase de todo enquanto se mantinha, no segundo
terço, a vigência da “Distância sentimental” aberta entre a criatura em trânsito e o Princípio
imóvel. Com o segundo texto do terço final, a água reaparece e se efunde por diversas das
subseentes composições de maior relevo, nelas funcionando como símbolo dominante e sob
variadas formas, a saber: rio, precipitação, poço azul” em O cágado, o oceano
fechado
numa gota” em Saudade. Logo, as considerões pertinentes à água anteriormente traçadas
devem ser agora tomadas em correlação com os comentários atuais sobre a simlica do
rio
474
.
Indo avante, no que toca ao concerto dos carmes do ciclo No Araguaia, é in-
teressante que,
Na China Antiga, o simbolismo da travessia do rio possuía também certa im-
portância. Os casais jovens costumavam realizá-la no equicio da primavera: era
uma verdadeira
travessia
do ano, a
passagem
das estações, e a do
yin
ao
yang
; era
igualmente a purificação preparatória à fecundidade, sendo esta consecutiva à res-
tauração do
yang
; e era, ainda, um chamamento à chuva: fecundação da terra pela
atividade celeste
. A Tecelã legendária atravessa o rio do Céu (a Via-Láctea), no mo-
472
Id
.,
op
.
cit
., pág. 706. Grifos dos autores. Esclareça-se que no ocultismo a palavra
pentáculo
, originariamente
empregada com a especificidade de designar o
pentagrama pitagórico
(estrela de cinco pontas feita com traçado
connuo), evoluiu daí para ser aplicada a
qualquer
figura de caráter mágico,
independente do formato
, em espe-
cial
ao
duplo triângulo de Salomão
(estrela de seis pontas feita pela sobreposição de dois triângulos eiláteros).
473
A forma registrada por ROSA, 1, no que toca ao sufixo aumentativo, é Araticum-
uassú
(com
ss
e a sílaba
final acentuada); em
id
., 2, 102 e segs., lê-se Araticum-
uassu
(
ss
e sem acento na sílaba final), conforme prefe-
rido também por BUENO, 146,
passim
; respectivamente o mesmo para No Araguaia II, III” e IV. Já
NAVARRO (219,
passim
) opta por utilizar
-ûasu
. Porém, parece-me não haver prejuízo no uso da forma
-uaçu
com
ç
,
o que se aproxima do corrente nos topônimos mais conhecidos, como
Mogi-guaçu
. Apesar disso, talvez
haja algum valor no uso dos
ss
, que iconograficamente sugerem a sinuosidade dos cursos fluviais.
474
Para tanto, remeto ao Capítulo II, tópico 1. V. tb. a pág. 170 (Introdução ao Capítulo III, 1º §,
in fine
).
255
mento do equicio, para unir-se ao Boieiro: o rito sazonal encontra seu protótipo na
paisagem celeste...
475
Concorde com o sentido geral da rituastica chinesa, temos que em
Magma
houve há pouco a união hierática de um casal – o
Kibungo-Gerê
e Zabelinha –, sendo que
ambos os consortes traduziram diferentes aspectos de uma só psique, a do neófito que se ren-
deu à morte cerimonial; ao enlace seguiu-se a stica obra de tecelagem da aranha fiandeira,
artrópode que quer também expressar outros estados de alma do adepto. Ora, a este, então,
cumpre doravante passar pelas
quatro margens
poemáticas do rio, isto é, cumpre atravessá-
lo,
tal como o fazem Os casais jovens” e a “Tecelã legendária”, com o que se realiza uma
passagemmágica que detém, dentre demais significados, o de “chamamento à chuva: fe-
cundação da terra pela atividade
celeste
. E conforme já se preveniu, no
continuum
de
Mag-
ma
, imediatamente as a presente paragem no octogonal mundo subterrâneo, cuja paisagem
é sulcada pelo Araguaia”, haverá a oportunidade de se ouvir a “Toada da chuva” e depois, já
perto do término da viagem, ainda há de se precipitar outra mais fecundante “Chuva” poética,
sem se descuidar que, entrementes, a seu tempo será reencontrado não propriamente o Boiei-
ro” em pessoa, mas sim o contorno ideal das quatro últimas estampas zen de condução da boi-
ada.
Sem intenção de apressar o passo, porém, relembre-se agora que as águas do
rio, de acordo com o que vem sendo discutido, desde as Águas da serra” denotam o movi-
mento do manifestado:
O curso das águas é a corrente da vida e da morte. (...)
Seja a descer as montanhas ou a percorrer sinuosas trajetórias atras dos
vales, escoando-se nos lagos ou nos mares, o rio simboliza sempre a existência huma-
na e o curso da vida, com a sucessão de desejos, sentimentos e intenções, e a varieda-
de de seus desvios.
(...)
No sentido simbólico do termo, penetrar (ou mergulhar) num rio significa,
para a alma, entrar num corpo. O rio tomou o significado do corpo. A alma seca é
aspirada pelo fogo. A alma úmida é sepultada no corpo. O corpo tem uma existência
precária, escoa-se como a água, e cada alma possui seu corpo particular, a parte
efêmera de sua existência – seu rio próprio.
476
Cabe sublinhar que o fundo dessa associação entre rio e alma se deve ao fato
de que, geograficamente, o fluxo da primicial água corrente é circunscrito pelo leito de terra.
Em desdobramento da idéia, se a imersão num rio significa, para a alma, entrar num corpo
475
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 781. Grifos dos autores, sendo que as menções ao
yin
e ao
yang
vêm
em negrito.
476
Id
.,
op
.
cit
., págs. 780-782.
256
onde ela é sepultada, atravessar a correnteza fluvial – ou melhor, transpor as margens co-
arctantes corresponderá a uma das etapas necessárias para sair do corpo em que se entrou,
então ressuscitando e ultrapassando a matéria tátil, que é a “parte” mais “efêmerada condi-
ção do homem. Aliás, no sistema quaternário No Araguaia, a representação da “existência
humana” e do “curso da vida” fica robustecida pela quantidade de peças integrantes: de se tra-
zer à memória que o numeral quatro invariavelmente exprime,
Desde as épocas vizinhas da pré-história, (...) o sólido, o tangível, o sensível.
(...)
Existem quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro pilares do Universo,
quatro fases da lua, quatro estações, quatro elementos, quatro humores, quatro rios
do Paraíso, quatro letras no nome de Deus (YHVH) e no do primeiro homem, quatro
braços da cruz, quatro Evangelistas etc. O quatro designa o primeiro quadrado e a
década; a tétrade pitagórica é produzida pela adição dos quatro primeiros meros
(1 + 2 + 3 + 4). O quatro simboliza o terrestre, a totalidade do criado e do revelado.
Essa totalidade do criado é ao mesmo tempo a totalidade do perecível. É sin-
gular que a mesma palavra shi signifique em japonês quatro e morte. Por isso, os ja-
poneses evitam com cuidado pronunciar essa palavra; substituem-na na vida quotidi-
ana por Yo ou Yon.
(...)
Quatro é ainda omero que caracteriza o universo na sua totalidade (mais
freqüentemente trata-se do mundo material, sensível). Assim os quatro rios que saem
do Éden (Gênesis, 2, 10 ss.) banham e delimitam o universo habitável.
477
Os referidos rios do Éden são o Geon, o Pison, o Tigre e o Eufrates. Por meio
deles voltando à imagem do rio, e num aprofundamento da sua circunstância de evocação do
material semovente, é sabido que em diversas mitologias como a egípcia, a grega e a irlan-
desa – o mundo do além-túmulo era cortado ou delimitado por um ou mais cursos fluneos.
São especialmente famosos os rios do Hades heleno: Flegetonte, Cocito, Lete (ou Lethes) e
sobretudo o Estige (ou Styx), cujo afluente Aqueronte deveria ser cruzado na barca de Caron
(ou Caronte), à custa de um óbolo, pelas almas dos mortos sepultados que chegavam ao Infer-
no. Em contrapartida, na tradição hebraica, que se transmitiu ao cristianismo, a travessia do
Jordão pelos israelitas quando entraram em Can(Js 3.1.-4.24), as o Êxodo de quarenta
anos pelo deserto, veio a se revestir de um simbolismo paráclito bastante conhecido: até hoje
transpor o Jordão” é uma metáfora recorrente para a passagem entre a vida de ilusões, a
morte – quer física, quer iniciática e o além, o que frisa com o deslocamento entre o exílio
no Egito, passando pelos errores no Sinai, até ao advento à Terra Prometida, e tudo outra vez
em estrito ajustamento com o teor stico de cada um dos três terços do rosário que “O poeta
477
Id., op. cit., pág. 758-760. O primeiro grifo dos autores indica uma citação de Champeaux (Introduction au
monde des Symboles) e os demais estão em negrito.
257
reza”; além do que, as margens do Jordão foram igualmente o palco do batismo de Jesus (Mt
3.13, Mc 1.9), marcando o início do ministério que O levaria à Morte e Ressurreição.
Não é pois sem razão que se insiste em que o complexo No Araguaia” deva
ser admitido em Magma como uma ilustração do período de permanência do neófito morto no
sepulcro, antes de ressurgir, entendimento autorizado até mesmo pelo topônimo: segundo Sil-
veira Bueno, Araguaia provém de “ara (arara)” e guaia (mansos), significando então Rio
das araras mansas
478
; e Chevalier e Gheerbrant aduzem que “Os índios bororos acreditam em
um ciclo complicado de transmigração das almas, no decurso do qual elas se encarnam numa
arara
479
. Conquanto Araticum-uaçu seja apresentado como pertencente à nação carajá, é certo
que os bororos, hoje em dia reduzidos, antigamente habitavam uma extensa área que compre-
endia as margens do velhoAraguaia. Daí, as relações que se travam entre o nome do rio ob-
servado em Magma e a mitologia post-mortem dos velhos habitantes do lugar, na qual a arara
ocupa papel de destaque, resultam demasiado fortes para serem ignoradas.
Por fim, reflita-se que no livro de estréia de Guimarães Rosa, quase toda vez
em que a palavra “rio” é mencionada, incide no poema também a presença de personagens in-
dígenas ou ao menos de elementos da cultura nativa ligados aos cursos fluviáteis. A Iara,
Ritmos selvagens, O Caboclo dágua” e os quatro carmes de “No Araguaiao comprovam.
A instituição de tal vínculo imagético parece assumir de fato foros de simbolização hierática,
depreendendo-se que os silvícolas, por viverem sempre avizinhados dos grandes rios(o que
está escrito em Ritmos selvagens), são em Magma vistos como seres dotados de um conhe-
cimento melhor – porque natural – dos mágicos segredos dos caminhos hidrográficos ou da
renda trançada dos igarapésque veste a Mãe dÁgua
480
. Venha à lembrança que as índias
dos carajás,
Carajás das praias do Araguaia,
(...)
m nas pirogas, que são simples troncos, finos, compridos,
com cachos de meninos, curumins vivos, equilibrados,
dependurados,
e as canoinhas passam, à flor das águas, como coriscos,
à frente dos ventos, vencendo piranhas, vencendo asas e pensamentos,
Araguaia abaixo, de Caiapozinho até Conceição...
481
478
BUENO, 146, 562.
479
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 73. Grifei. Os autores se aiam em Claude Lévi-Strauss (Le symboli-
que cosmique dans la structure sociale et lorganisation rémonielle de plusieurs populations nord et sud-
américaines, le symbolisme cosmique des monuments religieux, série orientale).
480
V. neste trabalho a pág. 100 (Capítulo II, tópico 1).
481
V. as págs. 108-109 (Capítulo II, tópico 1) e a nota 193. Observo que corrigi a forma manuscrita original -
em nas pirogas.
258
Item, é desde os Ritmos selvagensque
(...) o rio marulha a canção dos guerreiros
que vão desaparecer...
Por conseguinte, afigura-se absolutamente adequado que, para auxiliar o pere-
grino em sua estadia pelo mundo subterrâneo às bordas do Araguaia, surja como psicopompo
e também como hierofante – um índio carajá, o patrício, irmãoe “amigoAraticum-
uu, o qual pode ser compreendido como um daqueles “curumins vivosque, atingindo a
idade adulta e se tornando um valoroso guerreiro detentor dos mistérios, saberá ensinar ou fa-
zer ver ao noviço a mais grave de todas as lições mistagógicas:
mors janua vitae
ou a verda-
deira significação da morte como abertura para a ressurreição.
Assim é que, revestidas de caráter transcendente, as virtudes mestrais de Arati-
cum-uu – sua força, habilidades e a sabedoria no relacionamento com a Natureza são des-
de logo evidenciadas pelo poeta:
Seus músculos são cobras grossas
que incham sob o couro moreno;
suas narinas têm sete faros;
e nos seus ouvidos há cordas sutis, onde ressoa o pio
curto e triste, que, mais de um quilômetro distante,
solta o patativo borrachudo.
Quando o rio ensolado enruga, em qualquer ponto,
a lâmina lisa de níquel molhado,
ele traduz, na esteira da mareta,
com o binóculo faiscante dos olhos,
o tamanho e a raça do peixe escondido.
E a flechada vai harpoar, certeira, debaixo dágua,
o pacemã ou o pirarucu.
A mata não lhe dá mais surpresas
(tem nove presas de onça preta no colar),
nem o rio lhe conta mais novidades
(ele é capaz de flutuar, até dormindo,
correnteza abaixo, como um pau de pita).
482
Revelam-se dignas de apro as apties do índio: ele
“com o biculo fais-
cante dos olhos,
ouve
com as “cordas sutisdos ouvidos” e
fareja
com as narinasde “sete
faros. Indo além e numa performance até mais notável do que a do exigente “bacairide
482
Em ROSA, 2, 102, o quinto verso desse fragmento foi partido em dois, com quebra de linha as triste,; e
ainda se lê: o patativo
borrageiro
, peixe
que navega
escondidoe “(tem
vinte
presas de onça preta no colar).
Encontra-se também
arpoar
por
harpoar
; embora não tenha encontrado a segunda variante dicionarizada,
parece-me não haver risco em seu uso, já que a palavra
arpão
e o verbo derivado provêm do latim
harpago
.
259
Ritmos selvagens
483
–, Araticum-uu, as desvendar o tamanho e a raça do peixe” oculto
sem sequer vê-lo, confiante apenas nas leves ondulões que o animal vai provocando na su-
perfície aquática, é capaz de “harpoar” a pesca com uma “flechada (...) certeira. Assim sen-
do, mais do que possuir sentidos agudos para perscrutar o que é visível, o carajá sabe deveras
pressentir e atingir o invisível, trazendo-o à tona mesmo
sem que (...) o veja,
sem que o sinta,
sem que o desminta...
Em acentuado contraste, A aranha, na peça imediatamente anterior fazendo
as vezes do neófito, ainda esperava em vão “a mosca que não veme vacilante costurava in-
certezas quanto à própria competência para “pescar pequenos arco-íris. Do confronto resulta,
em suma, que Araticum-uu demonstra uma sobranceira segurança no seu estar no mundo:
A mata não lhe dá mais surpresas (...) nem o rio lhe conta mais novidades, i. e., ele sabe da
existência tudo aquilo que lhe compete saber.
Neste quadro, tem extrema validade detalhar o exame dos versos que são dados
entre parênteses no fragmento citado: tem nove presas de onça preta no colar” e “ele é capaz
de flutuar, até dormindo,/ correnteza abaixo, como um pau de pita”. Longe de se configurarem
como meras expletivas, tais complementos contêm inestimáveis informações acerca do sem-
blante de Araticum-uaçu, permitindo-nos com efeito reconhecê-lo como alguém que se en-
contra num estágio avançado da carreira iniciática, à dianteira do poeta que “reza o rosário” e,
em decorrência, habilitado para doutrinar. Vejamos.
No que diz respeito ao colar” com nove presas de onça preta, verificam-se
motivos suficientes para propiciar a interpretação do mesmo como sendo não um atavio banal
qualquer, mas sim um objeto de signifincia sagrada, de espécie porventura aparentada a um
rosário bárbaro. Por primeiro, é consabido que dentre os costumes bélicos indígenas, mor-
mente os dos brasis, se conta o de o guerreiro marcar suas vitórias com incisões no próprio
corpo ou com o uso de enfeites compostos por requias havidas aos corpos dos inimigos aba-
tidos – o vobulo presa”, adrede, a par de sinonimizar com o colmilho, também se refere
exatamente ao eslio apreendido junto aos adversários. No caso, as nove presas manifestam
igual mero de embates vitoriosos contra o jaguar ou onça preta” (em tupi, yaguara-eté
pixuna), animal que figura, nas diversas mitologias ameríndias de Norte a Sul do continente,
como uma divindade noturna, selênica e ctoniana que, de maneira semelhante à lua, preside e
483
V. a pág. 108 (Capítulo II, tópico 1).
260
simboliza a vinda ou o regresso à luz, freqüentemente em associação anpoda e complemen-
tária com a águia e a arara, estas de feições solares e uranianas: Entre os tupinambás do Bra-
sil, por exemplo, “as crianças do sexo masculino recebiam, por ocasião do nascimento, patas
de jaguar e pés de águia
484
.
Deriva que vencer a “onça preta” e lhe tomar as presas como sinal de triunfo
remete à noção de que Araticum-uaçu já tenha passado pela escura noite iniciática, simboliza-
da pelo fedeo, e dela retornado, não uma nem duas, mas novevezes, pois nove são os tro-
féus a que o índio faz jus. A singularidade no que toca à quantidade das presas não é gratuita,
pois desde pelo menos os
escritos homéricos este mero tem um valor ritual. Deméter percorre o mundo du-
rante nove dias à procura de sua filha Perséfone; Latona sofre durante nove dias e
nove noites as dores do parto; as nove Musas nascem de Zeus, por ocasião de nove
noites de amor. Nove parece ser a medida das gestações, das buscas proveitosas e
simboliza o coroamento dos esforços, o término de uma criação.
485
Conclui-se que, com ligação a Araticum-uaçu, as nove presasdo colar ex-
primem a conquista de nove “buscas proveitosas, as quais, levadas a cabo, demonstram o
coroamento dos esforços, o término de uma criaçãoou o aperfeiçoamento da gestação de um
novo ser, de sorte que o carajá se apresenta como um iniciado que executou in totum as provas
mistagógicas e se sagrou renascido, sendo por isso que “A mataisto é, a selva das ilusões
multitudinárias não lhe dá mais surpresas. Consente-se afirmar que ele se encontra já na
etapa epilogal da busca metafísica, eis que, de conformidade com os preceitos cabasticos,
Na busca da sabedoria, o primeiro estágio é calar, o segundo ouvir, o terceiro memorizar, o
quarto praticar, o quinto ensinar.
486
Mas ainda tem valia o investimento em outras das demais facetas sígnicas do
nove e em algumas de suas correspondências com a simlica do três, pois é certo que
Cada mundo é simbolizado por um triângulo, um mero ternário: o u, a
terra, os infernos. Nove é a totalidade dos três mundos.
Nove é um dos meros das esferas celestes. É ainda, simetricamente, o dos
círculos infernais.
487
484
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 511. Os autores se utilizam de um estudo de Alfred Metraux, La reli-
gion des Tupinamba. Sobre a associação do signo do jaguar com a águia e a arara, v., respectivamente, id., op.
cit., pág. 22 e segs., bem como págs. 72-73.
485
Id., op. cit., pág. 642.
486
Rabi Salomon Ibn Gabirol (séc. XI), cit. como epígrafe in: SENDER, 260, 8. Grifei.
487
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 642.
261
A estruturação dA divina comédia de Dante Alighieri denota consistentes ecos
dessa idéia universal: à parte o Prólogo, a epopéia é composta por três ambientões – o Céu,
o Purgatório e o Inferno –, cada qual contendo 33 cantos, totalizando então 99, invariavel-
mente dispostos em terza rima (i. e., a cada grupo de três versos, o segundo verso rima com o
primeiro e o terceiro do grupo consecutivo). Ademais, o vate, na companhia de Virgílio, prin-
cipia sua jornada iniciática pelos nove círculos do Inferno; o numeral é também o do Céu e,
por extensão, o de Beatriz e do Amor
488
.
Na China, onde nove é o número do yang, colhem-se entendimentos parelhos:
Aos nove Céus oem-se as nove Fontes, que são as moradas dos mortos. (...) O -
mero 9 está na base da maior parte das cerimônias taoístas dos templos dos Han.
Nove é o número da plenitude (...). E não é por acaso que o Tao-te king conta com 81
capítulos (9x9).
489
Enfim, nesse concerto, cujo acorde inicial nos foi soprado pela composição de
Magma, harmonizam diversas
sapiências:
Segundo o esoterismo islâmico, descer nove degraus sem cair significa ter dominado
os nove sentidos. É também o número que, correspondendo às nove aberturas do ho-
mem, simboliza para ele as vias de comunicação com o mundo.
(...)
Segundo René Allendy (...), o número nove aparece como o número completo
da análise total. É o símbolo da multiplicidade retornando à unidade e, por extensão,
o da solidariedade cósmica e da redenção. (...) Para os platônicos de Alexandria, a
trindade divina primordial se subdividia igualmente por três, formando os nove princí-
pios. Foi voluntariamente, acrescenta Allendy, que a arquitetura cristã procurou ex-
pressar o número nove: exemplo disto é o santuário de Paray-le-Monial, iluminado por
nove janelas.
(...) A iniciação órfica teria igualmente admitido três ternos de princípios: o
primeiro compreendia a Noite, o Céu, o Tempo; o segundo, o Éter, a Luz, os Astros; o
terceiro, o Sol, a Lua e a Natureza; esses princípios constituíam os nove aspectos sim-
licos do Universo. O mero nove, diz Parmênides, concerne às coisas absolutas. As
nove musas representam, através das ciências e das artes, o total dos conhecimentos
humanos. Liturgicamente, a novena representa a consumação, o tempo completo. (...)
Sendo o último da série dos algarismos, o nove anuncia ao mesmo tempo um
fim e um recomo, isto é, uma transposição para um plano novo. Encontrar-se-ia
aqui a idéia de novo nascimento e de germinação, ao mesmo tempo que a da morte;
idéias cuja existência assinalamos em diversas culturas a propósito dos valores sim-
licos deste mero. Último dos números do universo manifestado, ele abre a fase
das transmutações. Exprime o fim de um ciclo, o término de uma corrida, o fecho do
círculo.
É nesse sentido que se pode interpretar o título e as divisões da obra de Ploti-
no, assim como foram transmitidas por seus discípulos, e especialmente por Porfírio,
sob uma influência pitagórica: Enéadas (conjunto de nove). É uma reunião de 54 pe-
quenos tratados, divididos bastante arbitrariamente, mas correspondendo ao produto
488
V. id., ibid.
489
Id., ibid. Grifo dos autores, em negrito.
262
de 6x9; dois meros que são, cada um, múltiplos de três e reforçam os símbolos do
três.
490
Possível, assim, inferir que o “colarde “nove presas de onça pretanão só
testemunha a condição prestante do mestre Araticum-uaçu como augura, para o aprendiz,
concomitantemente “um fim e um recomo, isto é, uma transposição para um plano novo
propício às transmutaçõesou, por outras palavras, “a idéia de novo nascimento e de germi-
naçãosubterrânea que advém da mortecerimonial.
De tudo o que foi até agora comentado, observa-se que a parte introdutória do
poema “No Araguaia I, arranjada em quatro estrofes, além de reaver a imagem do rio e de
colocar outros elementos que repisam a atmosfera da atual situação do neófito no mundo do
sepulcro, ainda serve, precipuamente, para configurar o
status
mistagógico e a capacidade
doutrinária de Araticum-uu, ambos definitivamente confirmados pelo dístico:
(ele é capaz de flutuar, até dormindo,
correnteza abaixo, como um pau de pita).
Tais versos explicitam que o carajá é um sapiente que domina o ritmo do fluxo
vital, e tanto que se permite abandonar sem cuidado – “até
dormindo
à sua “correnteza,
pois que “o rioda existência não lhe conta mais novidades. Pondere-se, todavia, que no
presente se trata de algo absolutamente distinto daquele “
Sono
das águasdo primeiro terço
de
Magma
, em que “a cachoeira
ra
“a queda e o choronuma “hora morta
de
torpor
líquido e inocente.
O torpordas águas, como a tempo se preveniu, fora causado pelo canso do
movimento de busca anagógica, que desta forma se interrompe momentaneamente para al-
guns seres
491
, ao passo que, para o índio, a dormida não barra a continuidade motriz: ele per-
manece
flutuando
sem ir a pique, “como um pau de pita” e “correnteza
abaixo
, o que vale
dizer, rumo ao desaguamento na imensidão marítima. O deslocamento de Araticum-uaçu –
como o de todos os que se mantêm em vigília só irá cessar com a chegada à “foz, no Grande
Rio, sucesso que o carajá experimentará na peça “No Araguaia IV. Portanto, a alusão ao
repouso do indígena evoca mais a imperturbabilidade, por ele já alcançada, que caracteriza a
postura do iluminado diante do mundo material, seja este iluminado o asceta cristão, o sufi, o
mestre zen ou o contemplativo neoplatônico: são sempre aqueles que, sem terem saído corpo-
490
Id
.,
ibid
. e págs. segs. Grifos dos autores, sendo que o trecho solidariedade cósmica e da redençãovem em
negrito.
491
V. págs. 165-167 (Capítulo II, tópico 4).
263
reamente do emaranhado comsito da agitação mundana, já se sentem espiritualmente fora
dela, desenredados. Essa imperturbabilidade, por seu turno, corresponde a um vislumbre da
tranqüilidade do sono divino mencionado em Águas da serra”, desejável euipnia sempiterna
que é idealmente antecipada pelo stico que já alcançou a Sabedoria.
Desta maneira firmada a autoridade de Araticum-uu como hierarca, o poeta
lhe dirige “Hoje” as seguintes três perguntas, que
a rigor consistem na medula da composição:
Como foi feito o mundo,
oh meu patrício Araticum-uaçu?...
(...)
Bem, mas o que é mesmo a vida, meu irmão moreno?...
(...)
Muito bem, amigo, quero saber, agora,
o que pensas do amor...
492
O noviço está, claramente, dispondo-se a aprender com o mentor, cujas res-
postas são inequívocas, posto que mudas: à primeira questão,
Ele riu, deu um mergulho no rio,
e emergiu, com a cabeleira em gotas,
sem querer falar...
493
Apesar de o guia não querer falar, sua preleção não poderia ser mais cristali-
na: o mundocomo de antemão já o sabíamos emerge
das Águas
que provêm da ser-
ra”.
À segunda pergunta,
Araticum-uaçu riu com mais gosto ainda,
e saiu a remar, com esforço simulado,
tangendo a piroga corredeira acima...
494
A resposta silenciosa do carajá pode seguramente ser interpretada como sendo:
“a vida”
é viagem
, uma viagem ascendente, que tende ao retorno à fonte (“corredeira
acima
)
e que exige o “esforçode remar(por isso que o índio o
simula
) contra as orientões ilusó-
rias da vida. Anote-se neste ponto que ambos os sentidos mencionados pela peça “corredeira
acima
” e “correnteza
abaixo
(quando se fala que “ele é capaz de flutuar, até dormindo)
492
Em ROSA, 2, 103:
ó
meu patrício.
493
Em
id
.,
ibid
.: sem
precisar de
falar..., solução que parece até mais positiva do que a versão original.
494
Em
id.
, 1, está escrito proga”, termo que não encontrei em quaisquer dicionários compulsados, podendo ser
um erro de datilografia ou talvez um regionalismo. No mesmo documento, em Ritmos selvagens” aparece pi-
rogas.
264
acabam se confundindo, eis que, conforme já explanado, sob o prisma metafísico a Fonte e a
Foz são uma e a mesma.
Quanto à indagação sobre o amor, à primeira vista a atitude responsiva de Ara-
ticum-uu parece mais enigmática, pois
Desta vez ele não riu – franziu o rosto,
e jogando fora o remo de taquara,
deitou-se na canoa, indiferente,
com olhos fechados, braços cruzados,
e deixando-se levar pela corrente, à-toa,
sumiu na curva, atrás do saranzal...
Diante do
franzir do
rostodo índio, podemos de início pensar essa resposta
em termos de
tristeza ou saudade
, concernindo então ao sentimento que aflora em face da
distância que se antee entre o amante e a amada. Contudo, a despeito de tal tristeza, se se
evocar o ensinamento anterior de Araticum-uu – o de que “a vida” consiste no “esforçode
remar” contra as vagas –, cumpre notar que, em contraposição, o amorse pauta justamente
pelo
abandono do esforço
, porque o indígena
joga
fora o remo de taquara,/ (...) deixando-se
levar pela corrente, à-toa”. Resulta, por conseguinte, que “o amorse consubstancia por igual
na
fé
calmamente depositada no fluir da existência, ou seja, a convicção de que, mesmo es-
tando a criatura com olhos fechados
sem ver
a quem se ama e com os bros cruzados
sem abraçá-lo, tocá-lo ou senti-lo
–, o imanente amor teosófico fatalmente transcenderá as
ingerências do mundo e, num dia certo para cada um, há de se realizar com naturalidade, con-
duzindo o ser ao Oceano para onde levam todas as correntezas fluneas. Recorde-se aliás
que, de acordo com Guimarães Rosa, O excesso de esforço próprio e a agitação demasiada,
em geral, são iteis e, quando não acompanhados de
Fé
, até chegam a tornar-se prejudici-
ais.
495
Aufere-se que o amor fiel como que serenamente
nega
“a agitação demasiadada vida
mas, ao fazê-lo,
justifica
o vero ato de viver. Em síntese, a resposta de Araticum-uaçu à tercei-
ra indagação representa ser a conceituação do amor como consistindo na
tristeza
pela saudade
e, simultaneamente, na
fé em que a tristeza e a saudade não duram para sempre
.
Resta ainda singularizar a circunstância essencial de que, nos rituais esotéricos
de aprendizagem espiritual, o adepto jamais recebe um ensinamento imposto
de fora
pelo
mestre, o qual heureticamente age no intento de tão-só sugerir, deixando ao alvedrio do
aprendiz reconhecer
em seu âmago
a sabedoria, quando ele mesmo se julgar preparado para
tal descoberta: sempre e sempre,
Nosce te ipsum
, a perscrutação do seu magma íntimo, do
495
Apud
ROSA, 79, 155. Grifo de Guimarães Rosa. V., neste trabalho, a nota 104 (pág. 60, Capítulo I, tópico 4).
265
seu mundo interior
496
. Essa sabedoria, por seu turno, decerto que só pode ser compreendida
por meio da experiência iniciática pessoal. Assim é que as três questões e máxime as respecti-
vas respostas de Araticum-uu compendiam e induzem à meditação sobre as fases mistagó-
gicas que o próprio neófito até agora percorreu e vivenciou através dos terços de Magma: o
Nascimento ex ventre aquae (Como foi feito o mundo), o turbulento transcorrer da viagem
existencial em liberdade (o que é mesmo a vida”) e a busca pelo Outro (o que pensas do
amor). Coerentemente, o riso do carajá à primeira resposta e depois a risada “com mais gosto
ainda” à segunda coadunam-se com a atmosfera de alegria dos mistérios do terço de abertura,
vinculados à parte inicial da vida. Por outro lado, ao se falar no amor o franzimento do rosto
do indígena manifesta o sofrimento dos mistérios do segundo terço, ainda mais porque o amor
é também relacionado à Morte, vez que se dantes Araticum-uaçu simulara o esforço vital
tangendo” avante “a piroga”, agora, pensando no sentimento amoroso, ele simula uma inerte
postura mortuária quando deitou-se na canoa, indiferente,/ com olhos fechados, braços cru-
zados. Chega-se à conclusão de que o amor significa igualmente a confiança em enfrentar o
decesso, tal como aconteceu ao peregrino quando da “A terrível parábola” e nessa situação a
fé se traduz na esperança de que, uma vez tendo saído o ser da penumbra da vida, possa ele
ver se abrir, no seio mesmo da escuridão do sepulcro, uma via definitiva para a luz. Tudo
acertado na perfeita engrenagem estrutural de Magma, falta apenas integralizar a desfiadura
recentemente encetada dos mistérios do terço final, a cujo término operar-se-á a gloriosa Res-
surreição.
Importa enfim, antes de prosseguir na abordagem do próximo texto, dedicar al-
gum espaço ao exame de certos aspectos vinculados ao nome do guia carajá: o vocábulo tupi
araticumfruta mole– quer designar vários tipos de árvores fruferas da numerosa família
das Annonaceae. Essa família engloba aquela que é considerada a mais complexa rede conhe-
cida do mundo botânico, no que toca à diversidade de espécies, as quais apresentam entre si
sutis variões morfológicas, tais como de peso e de tamanho entre os frutos (praticamente
todos comesveis), em razão do que estes recebem uma pletora de denominões populares
ao longo de sua extensa área de ocorrência, situada no intertrópicos americano. De uma ma-
neira geral, são exemplos das anonáceas a fruta-do-conde (Annona squamosa), a graviola (A.
muricata), e uma imensa quantidade de araticuns, como o araticum-do-cerrado ou marolo (A.
crassiflora), o araticum-do-rio, da beira-do-rio, do-alagadiço ou do-brejo (A. spinescens) e o
araticum-do-campo (A. coriacea ou A. dioica), além de um longo etc... Outros sinônimos ver-
496
V. ROSA, 17, ou id., 2, 9.
266
náculos para araticum, citados a título de demonstrar o intrincado do assunto, são: atemóia,
ata, pinha, anona, embira, ariticum, jaca-do-pará, condessa e coração de rainha (devido à con-
formação cordiforme). De se precaver que essas denominões freqüentemente se confundem.
O araticum-uaçu ou araticum grande, especificamente, pode ser tanto a graviola – que é
também referida por “araticum-do-grande”, coração de índio ou cabeça de negro –, como al-
guma das espécies chamadas de “araticum-grande” (A. silvatica ou então a A. dioica). Seja
como for, a particularidade que mais nos interessa de quaisquer dos araticuns é a de que a cas-
ca esverdeada da fruta madura é sempre seca e aparentemente dura e resistente, e contudo se
rompe com extrema facilidade, enquanto que a polpa aromática é doce, aquosa e bastante
mole, sendo composta por gomos claros e leitosos a envolver de dez a vinte sementes rijas,
negras e lustrosas. O araticum, por conseguinte, ajusta-se perfeitamente e talvez de modo
bem melhor do que qualquer outro fruto – a ilustrar o sentido de que, na trajetória anagógica
da criatura, o invólucro material, que inclui o tegumento de aparência rude, mas na verdade
quebradiço, e a parte carnosa desmanchadiça (o corpo continente), deve se consumir ou dissi-
par, isto é, está destinado a perecer como condição para que se liberem as essências íntimas
das sementes (a alma como negros grãos de divindade), as quais, assim caindo ao solo, têm a
possibilidade de apodrecer e depois frutificar numa nova planta florescente que transcende o
fruto original. De mais a mais, o sumoso araticum, pelo formato, pode ser igualmente inter-
pretado como uma representação do coração humano, o qual contém em seu interior a capaci-
dade anímica de germinar, transcendendo sua individualidade, desde que se preste à necessá-
ria consumpção transformadora.
Possível então entender que, em Magma, o quid do surgimento em cena de
Araticum-uaçu seja exatamente o seu posterior desaparecimento – o que irá ocorrer no derra-
deiro poema do ciclo No Araguaia”. O fito principal desse desaparecimento será o de indicar
ao noviço, pelo exemplo contundente e definitivo do mestre, a inexorabilidade da morte e em
conseência a precisão de se vencer o medo que ela suscita, a fim de dar ensejo ao floresci-
mento que dela advém entendimento que se desenvolve em rigorosa corroboração a tudo
quanto foi até agora explanado (e que, adrede, corresponder-se-á com a oportuna retomada do
estudo das estampas búdicas de condução da boiada). E com efeito, as o passamento de
Araticum-uaçu, em vários carmes de Magma se verifica efusiva a presença de símbolos con-
cernentes à demorada germinação vegetal, entremeados pela presença fecundante da água e a
serem culminados pela floração plena que se confunde com o término da provação iniciática
do poeta que reza o rosário. Vejamos isso em lances rápidos: a composição congua a No
Araguaia IV” é a “Toada da chuva”, de força irrigatória por enquanto tímida, eis que se refe-
267
re ao pranto triste da “manhã de Finados; passando-se duas peças, aparece “O gado, em
que se lamenta a escassez de água e se aguarda “outro Dilúvio; transpondo-se mais um texto,
chega-se ao Jardim Filosófico, ainda “sem flores” e onde há “vasos vazios; segue-se uma
perturbadora série de poemas melancólicos e noturnos, mas logo os quatro peltimos textos
de Magma se apropriam sem reservas da simlica fitóide, evocando a saída do noviço da se-
pultura, como os renovos que eclodem da terra: vem o Amanhecer, em que já
Floresce, na orilha da campina,
enorme ipê
de copa metálica e esterlina.
497
Sucede-se a categórica “Primavera na serra” e de imediato a “Chuva” torrenci-
al que vem da banda da serra”: o aguão” e a água nova” fazem dançar “as sementinhas do
meloso seco. Em decorrência dessa precipitação vivificante, dá-se o início da “Integração
final do poeta com a totalidade do Universo, e para tanto o ser humano se consubstancia sim-
bolicamente com as plantas em brotação:
Deitado no chão, fofo de tantas chuvas,
onde o meu corpo calca os seus contornos,
acompanho as pontas dos cipós que oscilam,
o respirar das folhas,
o saltitas de cócegas nas patas dos gafanhotos,
e o crescer rampante das trepadeiras bravas,
avançando em meus braços.
(...)
e os meus olhos sobem, tateando os verdes...
498
Mas nada disso acontecerá sem que previamente se participe do Batuque” ro-
siano, texto para o qual nos voltamos, consecutivo que é a “No Araguaia I. Cuida-se agora
de uma composição desenhada ao redor de “tipos populares, cantigas de sabor folclórico e
episódios de narrativas orais ouvidos por Guimarães Rosa na Cordisburgo de sua meninice, de
conformidade com o depoimento de seu tio e companheiro de brincadeiras, Vicente Guima-
rães
499
.
O assunto de Batuque, conforme já se entrevê pelo título, é o transcorrer de
um quibungo em que “A negrada dança, de pés no chão, cantando ao som da “sanfona” e
da “violada, num frenesi regado a “Comida” e bebidas finas. Vem a propósito observar
497
Em ROSA, 2, 140: esguio ipê”.
498
Em id., pág. 145, foi suprimido o verso onde o meu corpo....
499
V. GUIMARÃES, 49, 79-85 (onde se discorre sobre a personagem Felão) e 87-88 (onde se registra uma vari-
ante da primeira quadra cantada em Batuque”; v. à frente, neste estudo, a nota 506, pág. 271).
268
que, conquanto se trate de uma peça que estruturalmente se ampara na liberdade de metrifica-
ção – o que é a regra em Magma –, o ritmo do Batuquenão deixa de ser marcado, no início,
pela cadência dominante da redondilha menor em alternância, principalmente, com versos he-
xassílabos:
A negrada dança,
e nunca descansa,
no chão do terreiro,
de pés no chão...
A premera imbigada
é papudo qui dá.
Eu também sou papudo,
eu também quero dá...
E o batuque ferve,
e a sanfona geme,
e a violada chora,
arrastando a função...
Para delinear convenientemente o clima melódico do bailado concorre ainda o
emprego das rimas em tom de repique, então sempre graves ou agudas (dança/descansa,
fubá/aletc...), bem como o aproveitamento do vocabulário e da pronúncia populares
(Corre, gente, qui envém sordado!...) e a estribilhação dos versos:
Felão veio?...
Nun vei não...
Pruquê qui nun veio?...
Nun sei não...
500
Enfim, o autor reforça o acento sincopado da percussão do Batuque” ao recor-
rer à aliteração, à assonância e à rima interna:
Sapateio, patadas, de pés, em pancadas,
pisando, pelados, aos pulos pesados,
a poeira do chão...
501
Assim construído em torno desses elementos sonoros e levando-se em conta
conforme veremos – o comportamento das personagens atuantes, o poema serve com perfei-
ção para evocar os impressionantes cantos e danças dos dramas sacros que tinham lugar na
parte final dos Mistérios Maiores da Antigüidade, precisamente no intervalo críptico entre a
500
Em ROSA, 2, 106, o primeiro verso do fragmento não apresenta reticências. Outrossim, GUIMARÃES (49,
83-84) informa, em tom bastante pitoresco, sobre a origem popular e improvisada dessa quadra, que teria ocorri-
do no arraial de Cordisburgo num dia de festa comemorativa do Sagrado Coração de Jesus; a versão apresentada
por Guimarães Rosa apresenta algumas pequenas alterões
501
Em ROSA, 2,106: cem pés, em pancadas.
269
Morte ritual e a saída para a luz. De se frisar que as representões teatrais nesse momento da
Iniciação constituem em verdade uma constante universal e impreterível, cujo desígnio capital
é outra vez fazer ver ao noviço o aspecto de transitoriedade e mutabilidade do mundo materi-
al, o qual entretanto vem a ser, ele mesmo, apenas uma representação ilusória da única reali-
dade absoluta, que é a divina. Destarte, a interpretação dos atores mormente ao incluir o
canto e a dança, como o faz a “gente preta” da peça rosiana consiste sempre num símbolo
do movimento da vida manifestada, a qual por sua vez se revela não mais do que um símbolo
da divindade manifestante.
É certo outrossim que o canto e a dança são, em quaisquer modalidades de
culto, mecanismos cerimoniais de relevância indiscuvel, em geral utilizados com o escopo
de despertar o crente, provocando-lhe o enthousiasmos (em grego, sopro divino), ou seja, o
arrebatamento do ser pelo influxo epifânico purificatório – e no caso específico das solenida-
des iniciáticas, tais procedimentos têm ainda o objetivo de exortar o adepto a fim de que ele,
tomado pelo espírito da deidade, arranque-se do entorpecimento tumular, permitindo-se então
renascer. O efeito pretendido com as coréias dos lances mistagógicos é, deste modo, seme-
lhante à catarse aristotélica da tragédia e da comédia clássicas: a purgação moral da psique do
indivíduo que, em face da intensidade da experiência cantante e dançante, deixa com avio
aflorar as emoções recalcadas do medo ou da alegria e não é, pois, à toa que o teatro grego,
de profundo caráter religioso, tenha origem nas encenões da vida do deus Dioniso, repre-
sentadas ancestralmente durante as festas dionisíacas da primavera.
Ora, a dança presente nos mais diversos cerimoniais xamânicos, quer sejam
eles africanos, ameríndios, australianos ou siberianos adquire invariavelmente o sentido de
manifestação, muitas vezes explosiva, do Instinto de Vida, que só aspira rejeitar toda
a dualidade do temporal para reencontrar, de um salto, a unidade primeira, em que
corpos e almas, criador e criação, visível e invisível se encontram e se soldam, fora
do tempo, num só êxtase. A dança clama pela identificação com o imperecível; cele-
bra-o.
(...) Porque se a dança é provação fervente, e prece, ela é também teatro.
502
Isso é verdade tanto no que tange às danças da chuva sagradas das comunida-
des mais primitivas ou às danças circulares de colheita da Europa medieval, como no que diz
respeito às modernas danças que, à primeira vista, aparentam ser apenas de índole secular: o
festivo rocknroll, em essência, obedece ao mesmo impulso de libertação extática que movia
as ébrias dionisíacas e que ainda hoje em dia promove a contemplação stica experimentada
502
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 319-320 (sic). Grifos dos autores.
270
através da dança circum-ambulatória (a sama) pelos graves dervixes rodopiantes (da ordem
estabelecida pelo poeta Rumi no séc. XIII). Afastando-se as particularidades, resta sempre,
em qualquer hitese e tal como foi escrito sobre o balé arstico em Sérgio Lifar(um dos
Poemasdo segundo terço de Magma) –, “alguémque “canta com o corpo
503
em busca de
certa espécie de transcendência em relação ao mundo banal do dia-a-dia. Tão-somente a pro-
fundidade do nível de transcendência almejado é o que pode trar alguma diferencião entre
a dança religiosa e a profana, embora os cambiantes limites entre uma e outra sejam definidos
também pela capacidade que cada bailarino tenha de se entregar ao derio, já que este pode
ser pessoalmente interpretado apenas como uma trivial via de escape para fora do mundo ou,
sob uma perspectiva de bem mais longo alcance, como uma via de entrada para dentro do que
está além do mundo: uma “prece” que é, ao mesmo tempo, teatroe provação fervente
tal como o Magma de Guimarães Rosa.
Acerca do canto, este sempre exprime, nas variadas liturgias e a exemplo das
cantigas dos bichos e dos índios em Ritmos selvagens, o sopro da criatura a responder ao
sopro criador
504
, isto é, a expressão de regozijo demonstrada pelo ser quando este se persente
em comunhão com a benevolente divindade que lhe concedeu o dom da Vida. Aplicando-se a
idéia ao rito iniciático, novamente se tem a convocação do neófito para que este se aperceba
da sua aptidão inata para a Ressurreição. Nesse entendimento, pouco importa que o tema da
música vocal seja, em aparência, profano, pois o timbre que prevalece é simplesmente o do
júbilo que a criatura sente por ter recebido o fôlego vital e poder experimentá-lo segundo o li-
vre-arbítrio, o que a revela digna de toda a atenção e do amor divinos, uma vez que o fôlego
que lhe corre por dentro adveio figurativamente de dentro de Deus. Assim é que, em Batu-
que”, os cantantes festejam inocentemente, até a sexta estância, o mais singelo prazer de vi-
ver, e chegam a fazer da mera ausência momentânea da opressão (esta encarnada na figura do
Tenente Felão) um motivo de contentamento suficiente para dar causa a uma canção impro-
visada que comemora a liberdade. Com respeito a isso, cresça-se que é de alastrada usança a
concomitante realização de um banquete como forma de congraçamento dos adeptos “através
da partilha da mesma graça e da mesma vida”
505
recebidas da deidade; em Magma,
Comidas finas, querendo comer,
bebidas finas, querendo beber:
pau-a-pique, cobu, bolo de fubá,
cachaça queimada, garapa e aluá...
503
V., neste estudo, as págs. 198-199 (Capítulo III, tópico 2).
504
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 176.
505
Id., op. cit., 120.
271
Convém agora dar atenção à quadra cantada pelos negros na estrofe inicial:
A premera imbigada
é papudo qui dá.
Eu também sou papudo,
eu também quero dá...
506
A ingenuidade aparente e o coloquiassimo do tom dos humildes cantores po-
deriam levar à cômoda atitude de não se dar maior importância ao fragmento, tomando-o
como a transposição despretensiosa de uma cantiga reles. Não obstante, a experiência na leitu-
ra da obra de Guimarães Rosa ime a noção de que é justamente nas imagens, personagens,
situões e falas cujos aspectos sejam os mais corriqueiros (
Aí, Zé, opa!
507
)
que muitas ve-
zes se escondem os significados poéticos de maior abrangência característica da estética ro-
siana que é, aliás, um de seus pontos de força. No trecho em questão do poema de
Magma
, a
palavra “imbigada” se constitui no cerne em função do qual se desenvolve a quadra, valendo,
por conseguinte, procurar desvelar em que isto consiste.
A imbigada” corruptela de
umbigada
é a batida ou toque que os parceiros
de dança se dão com a barriga, movimento pico dos velhos bailados africanos que foi trazido
para o Brasil pelos escravos bantos e veio a se tornar parte importante de numerosas danças
folclóricas, tais como alguns cocos de roda e frevos nordestinos e o batuque caipira paulista;
de modo especial, a umbigada é o mais notável passo precursor que viria a dar origem, medi-
ante modificações operadas desde o séc. XIX, ao gingado do samba atual. São notórios o
apelo lúdico e, por outra, a conotação sexual como um convite à celebração orgástica da vida,
mas esses são apenas vieses do pensamento essencial que remete – uma vez mais à idéia de
exultante contato do ser com a divindade, orientação da inteira estrutura de
Magma
. Para uma
correta visualização desse pensamento, tem pertinência recorrer ao simbolismo da região um-
bilical em outras culturas. E temos que, da China à Grécia e de passagem pela Índia, mais do
que ser visto como o ponto centralda anatomia humana, O umbigo é igualmente o
centro
do microcosmo humano
508
. Lembrança cicatricial da origem física do ser no ventre materno,
506
GUIMARÃES (48, 87-89), ao recordar sobre Mãitina, uma ex-escrava africana que era agregada da família
nos tempos da infância de Guimarães Rosa, conta: Agradava a sua dedicação às crianças. Com estas brincava,
recordando e ensinando tradições de sua terra. Uma dentre outras era a dança da umbigada. Punha os meninos
em semicírculo e, diante deles, acompanhando com palmas, cantava://
A primeira umbigada/ O mulambo é quem
,/ Eu também sou mulambo,/ Eu também quero dá.
// E umbigava cada menino por sua vez. Risos e palmas.
Alegria de festa. Garotada contente!A pessoa de Mãitina serviu também para a criação de uma personagem de
Campo Geral
(novela integrante de
Corpo de baile
); v.
id
.,
op
.
cit
., pág. 116-117.
507
ROSA, 7, 125 (Cara-de-Bronze”).
508
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 659. Grifo dos autores.
272
por extensão o umbigo denota metafisicamente “o ponto de retorno à origem, o vestígio do
eixo do mundo” e, em razão disso,
Um mero muito grande de tradições supõe que a origem do mundo tenha partido de
um umbigo, de onde a manifestação se irradia nas quatro dirões. Por exemplo, a
tradição da Índia, onde o Rig-Veda fala do umbigo do Não-Criado, sobre o qual re-
pousava o germe dos mundos. É do umbigo de Vixenu, estendido sobre o oceano pri-
mordial, que germina o lótus do universo manifestado.
509
Se, por um lado, a marca do umbigo manifesta que foi efetuado o corte inape-
lável do cordão que havia entre o indivíduo e o organismo que o gerou e primeiro alimentou,
por outro lado, do ponto de vista metafísico, o umbigo assinala justamente o contrário: que o
nexo anímico entre o espírito da criatura e a Alma Mater é indissolúvel, e tanto que a vinda à
luz estigmatiza indelevelmente o corpo – abrigo da alma de cada ser humano. Vem daí a
importância da região umbilical, como ponto de equilíbrio fisiológico, nos exercícios práticos
da filosofia iogue, através dos quais se busca atingir a mocsa (moksha), que é o estado de per-
feita quietude do iluminado que obteve o conhecimento verdadeiro e libertou-se da roda do
samsara, apercebendo-se da identidade de essência entre o Atman (alma individual) e o
Brahman (Alma Universal). Mas não só no hinduísmo incide essa idéia: na Europa dos séc.
XI e XII, registra-se a existência de uma seita quietista cujos sectários – os onfalópsicos
acreditavam que, fixando o próprio umbigo como uma prática de meditação, a pessoa poderia
chegar à anulação da vontade, ao abandono das coisas mundanas e, então, à Luz do Tabor ou a
união contemplativa com Deus (uma doutrina que talvez soe um pouco hilária aos ouvidos de
mil anos depois, mas cujo teor revela um parentesco bem próximo de certos usos de mortifi-
cação do corpo ensinados por São Francisco de Assis nos seus Fioretti e ainda próximo de al-
guns dos Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola).
Porém, é na Grécia Antiga que se encontra a face mais fértil da simlica em
pauta, traduzida por meio do Ônfalo (do grego omphalos, umbigo), o qual era a
pedra sagrada do oráculo de Delfos sobre a qual se sentava a Pitonisa para formular
suas predições. Considerada o centro (umbigo) do mundo, também era vista como o
símbolo da fecundidade da terra.
510
Seria porventura de se esperar que fosse o Olimpo, morada dos deuses, o ex-
celso Axis Mundi, dignidade que sem embargo foi assumida pela stica pedra délfica porque
ela
509
Id., ibid. Grifos dos autores (Rig-Veda” e Vixenuem negrito).
510
Enciclopédia Larousse, 172, verbete ÔNFALO.
273
era, segundo Píndaro, mais que o centro da terra, mais que o centro do universo cria-
do; simbolizava a via de comunicação entre os três níveis da existência, ou os três
mundos: o homem vivo aqui na terra, a morada subterrânea dos mortos, a divindade.
Dizia-se que o ônfalo de Delfos era situado sobre o lugar em que Apolo matara a ser-
pente Pitão (...). Simbolizava o poder vital que domina as forças cegas e monstruosas
do caos; hoje em dia seria considerado a ordenação racional da vida. Mas uma orde-
nação obtida por um domínio interior, por uma vitória sobre si mesmo, e não por au-
xiliares externos.
511
Vale sublinhar, para que se demonstre que não nos afastamos da inteligência do
texto de
Magma
, que o Ônfalo de Delfos detinha toda essa importância sígnica para o culto
aponeo e para a religião helena porque ilustrava, num plano maior da coletividade, o mesmo
papel que o umbigo representava para cada indivíduo: o de “via de comunicaçãodo centro
de um microcosmo particular para com o centro do macrocosmo universal (comunicação de
essências que, aliás, era o que possibilitava à pitonisa prenunciar, por sua boca, o futuro que
em princípio somente aos deuses era dado conhecer). Logo, assentar-se por sobre o misterioso
umbigodo mundo (centro do universo criado) ou movimentar através da dança convulsa
o próprio umbigo (centro anatômico de cada ser) são modos similares de se ativar essa stica
“comunicação entre os três níveis da existência”.
Isso esclarecido, fazendo agora uma suma dos diversos ângulos do simbolismo
examinado e aplicando-a à canção da primeira estância de “Batuque”, afigura-se cito inter-
pretar a “imbigada” da “gente preta” como a expressão do anseio de se fazer manifestar, atra-
vés do transe entusiástico do canto e da dança, aquela “via de comunicação entre os três ní-
veissendo esse o exato sentido que sustentava o gesto quando de seu surgimento na velha
África. Trata-se portanto de uma ilustração do desejo anagógico que anima e move, ainda que
inconscientemente, cada criatura em desterro aqui na terra, a mesma terra cuja “fecundida-
de” o Ônfalo grego também simboliza; a evasão do exílio terrestre necessariamente há que
passar pela mais profunda escuridão da “morada subterrânea dos mortos– paragem onde se
encontra o neófito de
Magma
–, e nesse passadouro é mister cumprir, de uma vez por todas, o
Gthi seautón
inscrito em pedra no pórtico do oráculo de Delfos, ou seja, é mister realizar o
donio interior, a “vitória sobre si mesmo” e sobre a Morte, extremo requisito para que o
ser abandone o passado, compreenda o presente e possa afinal despertar para o vindouro Re-
nascimento que reunirá o seu ser à “divindade”.
511
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 650-660. Remeto outrossim, atinente ao Píton ou Pitão, aos comen-
tários finais traçados neste estudo a respeito do poema Gruta do Maquiné” (págs. 132-134, Capítulo II, tópico
2).
274
Nessa conjuntura é que no desenrolar do Batuque” os negros celebram, por
meio da segunda quadra que cantam, a liberdade de movimentação, o que vale dizer, a liber-
dade conferida pelo nascimento a toda criatura – de prosseguir até a plena consecução do
desejo ascensional. Mas o palco do mundo, já o sabemos, é demasiado turbulento – bem o
pressentiam “a sanfona, que “geme, e a violada”, que “chorae quando a festa vai alta apa-
rece a tevel personagem Felão,
(...) cabra malvado,
que foi capitão do mato, noutra encarnação...
512
O arrogante Tenente Felão, com sua truculência, bem como a soldadesca que
parece acompanhá-lo, representam no teatro mistagógico toda a maldade do mundo material e
ilusório, a qual parece querer obstar a autonomia de movimento anagógico do ser, interpondo-
se entre este e Deus. A mera afirmação de ter sido o Tenente “capitão do mato, noutra encar-
nação, já lhe define o contorno de vulto tirânico, cruel e cerceador. Em reforço a essa visão,
deve-se anotar que tal figura foi composta com base numa pessoa real, um certo Alferes Fe-
lão, pico valentão do cenário sertanejo nos arredores de Cordisburgo, sobre quem Vicente
Guimarães afirma:
E tamanhas diversas malvadezas dele Joãozito ouviu, que o escritor Jo
Guimarães Rosa adjetivou o aquele nome para descrever a ferocidade de uma perso-
nagem do Grande Sertão: Veredas, sendo na 1ª edição, pág. 187: Aquele Hermóge-
nes era matador – o de judiar de criaturas filhos-de-deus felão de mau.
Mais adiante, na pág. 428, repete o adjetivamento, na descrição de uma bra-
vata de Riobaldo, em que este, prosapeando valentemente se chamou de felão, assim:
Eu felão. Para designar sua macheza.
513
Guimarães Rosa ainda utilizou o nome do jagunço para intensificar a descrição
do caráter perverso de Hélio Dias Nemes, personagem que na novela “O recado do morro, de
Corpo de baile, é também qualificada como felão de mau
514
.
Outra circunstância estimável é a oposição que se delineia entre os nomes de
Felão e o de Araticum-uaçu: se o do carajá evoca uma grande fruta de sabor adocicado, no do
Tenente é possível ler, em derivação aumentativa, todo o amargor do fel. Todavia, incumbe
notar que essa substância, sendo secretada pelo fígado, está entranhada em todo ser humano e
é imprescindível para o correto processo de digestão – do que se aufere que o azedume bilioso
512
Em ROSA, 2, 106: capitão-do-mato. O dístico que apresenta, entre parênteses, o Tenente Felão, constitui
nesse documento a parte final da terceira estância, enquanto que em id., 1, corresponde a uma estrofe separada, a
quarta do poema.
513
GUIMARÃES, 49, 85. Grifos do autor. V. tb. id., op. cit., pág. 114.
514
V. ROSA, 5, 277.
275
faz parte da vida de cada um, sendo requerido para a completa absorção até mesmo do que
sabe agradável ao paladar. Destarte, a presença nefasta de Felão neste entretempo como que
e em realce a de Araticum-uaçu nos instantes do ciclo No Araguaia” circunvizinhos, numa
ilustração de que o júbilo, para ser vivido em plenitude, necessita por um instante do contra-
ponto da tristeza, os mistérios da alegria só passam aos mistérios gloriosos mediante o áspero
intervalo dos mistérios dolorosos e, enfim, a Ressurreição do espírito só tem lugar as a
Morte e o recolhimento do corpo à sepultura. Esse raciocínio será recuperado mais à frente,
quando nos detivermos sobre o texto Regresso, cujos versos finais escritos por Guimarães
Rosa são:
Oh!... que bom, uma palavra basta
para refazer o meu idioma:
Sofrimento... Sofrimento...
e não a esquecerei!...
515
Por enquanto, retornemos ao fato de que a chegada de Felão interrompe
abruptamente o doce divertimento do baile que corria solto, transformando a festividade num
espetáculo acre de violência e medo; o cabra malvadosarcasticamente ordena:
Pula, negrada, no meio do terrero,
que eu vou ensiná vos dançá!...
Dança de refe, sanfona e rebenque,
olá, violero, começa a tocá!...
Quem fugi, fogo nele, no meio da testa,
e não tem i nem a, se a justiça mandá!...
E têm de dançar a noite inteira,
a noite toda, sem parar...
Canta, cambada, o que tavam cantando
antes de Felão che!...
Felão veio?...
Nun vei não...
Pruquê qui nun veio?...
Nun sei não...
516
Os negros são, dessa forma, obrigados a representar para Felão um contenta-
mento que já não sentem. Igualmente, de acordo com o que em unânime rezam as doutrinas
sticas, perante o teatro do mundo e seus reveses a criatura afastada de Deus é muitas vezes
515
V. neste Capítulo o tópico 3 (págs. 372-375)
516
Em ROSA, 1, este trecho tem a leitura dificultada pelo desenho de sete negros cantando e dançando; no texto,
i” e avêm sublinhados. Em id., 2, 106, no segundo verso do fragmento lê-se: ensiná vos a dançá”.
276
impelida a interpretar um papel de falsa felicidade, o que a leva a se embrenhar cada vez mais
na ilusão da matéria, com a qual passa a compactuar. O carme rosiano termina então com
(...) a negrada dançando, e os refes batendo
nessa gente preta,
que em trezentos anos
aprendeu a apanhar...
517
É importante distinguir que o transcorrer das cenas de “Batuque” acaba por
sintetizar os sentimentos gerais que dominaram os mistérios
da alegria
e depois os
dolorosos
dos dois primeiros terços, eis que, bem de acordo com o que foi até agora exposto a respeito
do itinerário mistagógico em
Magma
, a vida consiste, de início, numa prazerosa liberdade de
movimento que pouco a pouco vai se tornando em pesar e canso, tal como a festa que per-
deu o brilho pelo esbatimento da verdadeira causa de satisfação. Por conseguinte, no que toca
à referência aos
trezentos
anos” em que “a gente preta (...) aprendeu a apanhar, mais do que
uma simples alusão sentimental aos tempos históricos da escravidão, os versos aparentam di-
zer respeito ao longo período de provação iniciática que o neófito, seguindo a configuração
terria
do rosário, tem enfrentado para alforriar sua alma do cativeiro do mundo, situação
metafísica que encontra um paralelo na aflição a que os negros são submetidos: tomar consci-
ência dessa angústia alheia e solidarizar-se com ela é um passo adiante para que o poeta possa
aceitar e aprender a lidar com a sua própria angústia.
Prestes a concluir as apreciações sobre “Batuque, falta-nos somente dar aten-
ção ao simbolismo da cor preta que perpassa todo o texto, tanto através da caracterização en-
fática dos participantes do bailado (a palavra “
negrada
, por exemplo, é repetida na primeira,
na sétima e na nona e última estrofe) como, complementarmente, pela menção à circunstância
de que Felão constrange o pessoal a “dançar a
noite
inteira”. No Ocidente, a cor negra e a es-
curidão noturna notoriamente expressam, antes de mais nada, a morte e os sentimentos de
melancolia e luto, o que entra em perfeita consonância com a idéia de estadia do neófito no
mundo sepulcral intermédio. Mais relevante do que isso, porém, é o fato de que,
Enquanto imagem da morte, da terra, da sepultura, da
travessia noturna
dos místicos,
o Preto está também ligado à promessa de uma
vida renovada
, assim como a noite
contém a promessa da aurora, e o inverno a da primavera. Sabemos, além disso, que,
na maioria dos Mistérios antigos, o participante devia passar por certas provas à
noite ou submeter-se aos ritos num subterrâneo escuro.
518
517
Em
id
.,
ibid
. , 107:
nossa
gente preta” e
sofreu
a apanhar.
518
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 743. Grifos dos autores, sendo vida renovada” em negrito.
277
Para a devida compreensão da simlica, tem validade destacar e analisar com
mais cuidado os dois principais pontos de interesse desse excerto, a saber: as associões do
negrume com certas provasda “travessia noturnamistagógica e com a “promessa de uma
vida renovada. Com relação ao primeiro aspecto, é oportuno invocar o jogo sígnico das cores
na heráldica, arte em que o sable manifesta, nas palavras de Frédéric Portal, prudência, sa-
bedoria e constância na tristeza e nas adversidades
519
, virtudes eminentes que o noviço deve
possuir e desenvolver caso tencione realmente tornar-se um iniciado – e neste instante crípti-
co, a terceira dessas qualidades, em particular, é indispensável. Pondere-se que o fundo da
Iniciação é sempre proporcionar o luminoso renascimento do participante”, mas sem jamais
ocultar que esse é um prêmio a ser conquistado mediante a perseverança, apenas ao cabo de
uma provação dolente e demorada que inclui a “travessiapelas sombras de um subterrâneo
escuro, o que equivale à inumação do adepto na noite stica do túmulo.
Discutindo agora o segundo aspecto, vejamos que as trevas da noite e da morte
sugerem a promessa da aurora” e a de “uma vida renovadae já vimos à saciedade que o
enterramento do grão no solo exprime a expectativa do florescimento de uma nova planta.
Convém então dizer que
o preto é originalmente o símbolo da fecundidade tanto no Egito Antigo como na
África do Norte: a cor da terra fértil e das nuvens inchadas de chuva (...). Se é preto
como as águas profundas, é também porque contém o capital de vida latente, porque é
o grande reservatório de todas as coisas: Homero vê o oceano como preto. As Gran-
des Deusas da Fertilidade, essas velhas deusas-mães, são com freência pretas em
virtude de sua origem ctônica: as Virgens negras acompanham assim as Ísis, as Áton,
as Deméter e as Cibele, as Afrodites negras. Orfeu diz, segundo Portal (...): Cantarei a
noite, mãe dos deuses e dos homens, a noite, origem de todas as coisas criadas, e nós a
chamaremos de Vênus. Este preto reveste o ventre do mundo, onde, na grande escuri-
dão geradora, opera o vermelho do fogo e do sangue, símbolo da força vital.
520
O vínculo da negridão com o ambiente ctônico, portanto, corresponde ao seu
vínculo com a capacidade geratriz do escuro útero materno e com todas as demais imagens
que refletem os ideais de “Fecundidade, renovação, nascimento e ressurreição, tal como
acontece no tei-gi do Tao, onde o negro é a cor do Yin, que é o princípio terrestre, feminino e
maternal. Desta maneira, várias tradições apresentam como pretas determinadas figuras femi-
ninas que primam pela excelência na expressão da maternidade, tal como as deusas-mães
acima mencionadas (Ísis, Deméter, Cibele) e, no Brasil, a Nossa Senhora Aparecida; outros-
sim, a tradição judaico-cristã aponta como negra a rainha de Sabá, que, embora não precisa-
519
Apud id., op. cit., pág. 741. A obra de referência de Portal é Des couleurs symboliques dans lAntiquité, le
Moyen Age et les temps modernes
520
Id., ibid. Grifos dos autores, que citam, respectivamente, Jean Servier e Frédéric Portal.
278
mente maternal, na Bíblia aparece como a anunciadora da sabedoria
521
. Aprofundando essa
intelecção, temos ainda diversas outras Virgens negras em toda a Europa
522
, em especial na
Idade Média, sendo igualmente escura a casta Diana de Éfeso – que, como protetora das mu-
lheres grávidas e das fêmeas prenhes, presidia aos partos e ainda a amada do Cântico dos
Cânticos, que diz: Eu sou preta, mas, contudo, bela, filhas de Jerusalém, que, segundo os
exegetas do Antigo Testamento, é o símbolo de uma grande prova.
523
Reunindo, pois, uma vez mais os dois aspectos anteriormente destacados do
simbolismo do negro, resulta indissociável do mesmo o sentido de promessa de um galardão
após o vencimento de uma grandee indispensável prova: ou a luz no fim do túnel, con-
forme a expressão vulgar. Tais significados parecem se conjugar na face tisnada da terrível
deusa-mãe Kali do panteão hindu, cujo nome em sânscrito significa exatamente “negra”, e
que é a um só tempo maternal e destruidora, tal como a Morte que nela se personifica. E, de
forma semelhante, a vereda iniciática se desenha “preta”, isto é, perigosa, e, “contudo, bela” e
aprazível aos olhos de quem a abraça.
Entretanto, no Bhagavad Gita é Krishna, oitavo avatar de Vishnu, quem apare-
ce como o sombrio, sendo certo que também o seu nome quer dizer negro” em sânscrito.
Na iconologia brâmane, Krshina, que foi ademais o responsável por ensinar o canto e a dança
sagrados às filhas dos pastores, é geralmente representado como um jovem belo e de pele es-
cura, e o fascínio que exerce sobre as mulheres simboliza a atração que irresistivelmente im-
pulsiona a alma humana em direção ao Ser Supremo. Em contraposição a seu interlocutor
Arjuna, o brancoque representa o ego perecível, Krshina é o negro
524
que designa o Eu
divino sempiterno, e com isso chegamos ao imo do símbolo de que nos ocupamos, o que vem
explicar todos os seus desdobramentos: fundamentalmente, o preto denota a extrema pureza
da prima materia, da indiferenciação primordial, do caos original
525
. Assim sucede, por
exemplo, na teogonia do Gênesis, onde Deus, das trevas sobre a face do abismo(Gn 1.1.),
proclamou o fiat lux. Item, no islamismo a Pedra Negra de Meca, encerrada na Kaaba, repre-
senta para os fiéis a Anima Mundi e a Mão Direita, que cria e abençoa, de Alá, além de ser
preta brilhante a luz divinal que se derrama por sobre os sticos quando Deus Se lhes revela.
521
1Rs 10.1 e 2Cr 9.1.; v. tb. Lc 11.31.
522
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 744.
523
Cf. id, op. cit., pág. 741 (sic). Grifos dos autores. O versículo em questão dos Cantares ou Cântico dos Cânti-
cos é o 1.5, que, em algumas traduções, traz o adjetivo morena” em substituição a preta” ou negra”, referin-
do-se, em qualquer caso, à pele bronzeada pelo sol(para outros dados, remeto à Bíblia de estudo Almeida, 130,
nota d a esse v.).
524
A mesma oposição cromática, que agora parece se resolver na interdependência dialética, envolve o Vishnu
negro e o Shiva branco na Trimurti (a Trindade indiana da qual ainda participa Brahma).
525
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 742. Grifo, em negrito, dos autores.
279
Por outras palavras, a cor preta é, universalmente, a tradução sensível do Manifestante, a ab-
soluta ausência de luz e de cores donde transbordaram a luz e todas as cores do manifestado, e
no contato com o qual as aparências luminosas e cromáticas deste deverão um dia se refundir.
Vem desse pensamento a relevância ímpar da etapa da Obra em negro nos la-
bores alquímicos. O próprio termo “alquimia”, segundo uma antiga interpretação, adviria do
vobulo árabe al-Kimiya, por sua vez provindo de Kemi, nome que se traduz por terra ne-
gra” e que, segundo Plutarco, era dado pelos antigos egípcios a seu país, numa alusão ao pro-
pício solo fértil às margens do rio Nilo: o Egito teria sido a pátria do deus Thot, a quem os
gregos chamavam de Hermes Trismegisto, miticamente considerado pela tradição hermética o
autor da Tábua esmeraldina e o primeiro praticante da ciência espagírica. Seja como for, a ni-
gredo alquímica, evocando a “prima materia, alça-se à categoria de símbolo máximo de uma
dialética, no que toca à elevação espiritual do adepto: o engendramento do novo só se opera
mediante a morte e transmutação regenerativa do velho, e por isso é que a albedo surge so-
mente as a nigredo. Nos tratados de espagíria, a propósito, a fase da nigredo é freente-
mente simbolizada, dentre outras figuras, pelo desenho de uma ou mais pessoas negras traja-
das com roupas brancas: e note-se que, em Batuque”, Guimarães Rosa não se descuida de
aludir às “chitas luzentesque vestem os integrantes do baile.
Podemos extrair a ilação de que, se no primeiro terço de Magma, referente aos
Pequenos Mistérios e relacionados à Obra Menor alquímica, a primeira nigredo foi obtida por
meio da escuridão e da putrefação verificadas respectivamente em Gruta do Maquiné” e
Maleita”, nos presentes Mistérios Maiores, ligados à Grande Obra dos alquimistas, a nova e
definitiva nigredo é representada pela “gente preta” que, em frenético movimento de bailado,
expressa o início da aguardada fermentação da energia anímica dentro da sepultura e é em
razão disso que “o batuque ferve. Observe-se que, se por um lado o predonio da cor negra
se estende a todo o poema, remetendo à idéia da morte, por outro lado a movimentação dos
dançarinos e o canto da batucada espelham uma vitalidade a toda prova e bem assim a efer-
vescente nigredo espagírica significa a morte, mas sempre uma morte repleta de vida latente,
uma morte cujo único fim é o de conduzir à verdadeira Vida em plenitude. Em tal contexto, a
oscilação experimentada pelos negros de “Batuque” entre o prazer e o sofrimento adquire um
valor altamente positivo pois, do ponto de vista transcendental, consiste num irreprochável
indício de que a jornada mistagógica prossegue a bom termo. Consideremos, a esse respeito, o
ensinamento do mítico alquimista Morien (ou Morienus) de Alexandria:
280
Não esquas nada do que acabo de te dizer. Já te disse antes que não há demasiada
diferença entre a forma de fazer este Magistério e aquela por que se produziu o ho-
mem. Agora digo que neste Magistério
nada há animado nem que nasça nem que cres-
ça, se não com a putrefacção, depois de ter suportado a alteração e a mudança
. Isto fez
com que um sábio dissesse que toda a força do Magistério se encontra depois da pu-
trefacção. Se não se putrefaz, não se pode liquefazer nem dissolver, e se não se dissol-
ve, voltará ao nada.
526
Verifiquemos por fim que, desde a nocgera composição em foco, a nigredo se
desenovela em
Magma
pela maioria dos textos subseentes, nos quais se pode divisar um
grande mero de alusões a signos relacionados ao negrume, à noite, à morte e, ocasional-
mente, à podridão. Tais signos, que o mais das vezes aparecem estreitamente interligados, são
sempre responsáveis por definir o clima sombrio da peça em que se inserem, ou pelo menos
contribuem para o alcance desse efeito. Por esta forma, logo em No Araguaia II, poema
conguo a “Batuque”, é anunciado que Araticum-uaçu (o “amigo,
escuro
,do poeta, nas pa-
lavras de “No Araguaia I) envereda por uma senda na “mata, por onde havia passado uma
gente forçuda, cheiro de
carniça
,
sangue miúdo respingado,
fiapos
pretos
nos carrapichos.
São três guerreiros tapirapés,
carregando
morto
um
jaguaretê-pixuna
.
527
Temos aí, portanto, o jaguaretê-pixuna” a onça de pelagem preta morto
e com os tridos despojos, já tresandando a “carniça, deixando fiapos pretos nos carrapi-
chosda floresta, como pistas a indicar o
negro
caminho iniciático que ao carajá incumbe se-
guir.
Depois, em Reza brava”, tudo se passa quando
A
meia-noite
já vem chegando,
havendo outrossim uma rezadeira que declara a intenção de “queimar
lvora
. Passando a
No Araguaia III, fica assinalada a presença dos
bacuraus
espécie de ave sertaneja
cujos hábitos nocvagos levaram ao aproveitamento de seu nome para a criação de um termo
popular, aplicado pejorativamente às pessoas que só costumam sair
à noite
–, comparecendo
também, nos versos finais, uma fúnebre
meia dúzia de exploradores de vanguarda
da gente dos
urubus
...
526
V. os
Diálogos entre o rei Calid e o filósofo Morien sobre o Magistério de Hermes: recolhido por Ghalid, es-
cravo deste rei
. In: ZALBIDEA, 289, 61-64. Grifei.
527
Em ROSA, 2, 110,
Foram
três guerreiros tapirapés.
281
Alguns poemas além, adentra-se a lúgubre “noitede “Assombramento, em
que há
na velha igreja tábuas rangendo,
caixões pretos ao pé das cruzes...
528
E quando ocorre, em seguida, uma “Tentativa” de “esperança, ainda assim
(...) o calor cresce,
nas alavancas de pirômetros negros,
dilatando as sombras.
É então sem surpresa que em Necrópolecai a “grande noite, igual a muitas
outras noites, e poucas páginas além, no texto Regresso, uma vez mais
É bem noite.
A escuridão atingirá o ápice nos soturnos poemas Pavore Angústia, os
quais, não obstante, como que servem de combusvel para o inndio de “Bibliocausto, onde
se desata “o riso rubro das chamas, alumiandoafinal a longa melancolia do pretoque do-
minou os poemas anteriores. Conseqüentemente, os cinco carmes que vêm em seguida – os
que finalizam Magma – pautar-se-ão pelo intenso da claridade e pelas cores vívidas, deixan-
do-se definir como os marcos em que a nigredo, as tanto tempo, concederá lugar às subli-
mões da albedo e da rubedo, o que viremos a examinar oportunamente.
Por ora, convém concluir o Batuque” e cuidar, doravante, da peça “No Aragu-
aia II. Nessa composição, o poeta está novamente em companhia de Araticum-uaçu, e des-
de os primeiros versos fica repisado o contraste entre a bisonhice do discípulo – o qual, recor-
de-se, por enquanto não vê nem sente e a desenvolta sabedoria do psicopompo carajá:
O mato está cheio de caminhos frescos,
que eu não posso enxergar.
Mas Araticum-uaçu vem comigo,
cheirando o ar e escutando o vento.
(...)
Vamos mais devagar, Araticum-uaçu
que eu não tenho pernas de suaçu-pucu...
Araticum-uaçu ficou parado,
está ouvindo,
está namorando o capinzal rasteiro,
está virando bicho do mato.
528
Em id., op. cit., pág. 124: junto das cruzes.
282
E mostra com os dedos:
Aqui tem três rastros!...
Para mim isto aqui é cerrado sujo,
onde ele está vendo uma encruzilhada.
529
O mestre, portanto, logra discernir as direções no ambiente que para o neófito
se apresenta impérvio – sendo exatamente essa a função do psicopompo. E a cada um dos
três rastrosdistinguidos por Araticum-uaçu corresponde um destino e uma advertência que
lhe é transmitida pelas aves, as quais parecem dar continuidade à relação dialógica, dantes
demonstrada em Ritmos selvagens, entre os animais da selva e os indígenas. Desse modo, o
primeiro dos rastros, de conformidade com o que o guia deduz, foi deixado pelos homens
brancos, pois se vê o
Sinal de pés calçados, na terra fofa,
capim amarrotado.
Cortaram a facão a cordoalha de cipós,
e botaram, lá adiante, um saco no chão.
Deve ter muito fumo, muita carne seca,
na bagagem dos Padres da Missão.
530
Porém,
Um bem-te-vi, como um distintivo auriverde,
avisa, do pique da lança de um coqueiro:
Auiri coti!... Auiri coti!...
Auiri!... Auiri!...
531
O bem-te-viauriverde” como o eram o jacaré de “Ritmos selvagens, o
besouro de “Riqueza” (um dos Poemas) e o Meu papagaiopalrador (além de demonstrar
afinidade com o colibri de “Ausência)
avisa
os que têm ouvidos para o ouvir, e Guima-
rães Rosa foi bastante preciso no emprego do verbo. Trata-se com efeito de um alerta, reco-
mendando que não se percorra a picada que leva ao contato com os Padres. Esse conselho
de esquivança é comprovado pelo entendimento dos vobulos que comem o
aviso
do pás-
saro, os quais consistem em termos da ngua tupi: vemos então que a palavra “
Auiri
pode ser
529
No último verso do trecho, a forma
mas
ele está vendosofreu litura, sobrepondo-se a mão o substitutivo
onde
. Em
id
., 2, 108, foi mantido o
mas
original; outras variantes nesse documento: o verso
está ouvindo
foi reduzido para
ouvindo
; e a forma
está virando
bicho do mato foi alterada para
virou
bicho do mato.
530
A forma inicial, para o primeiro verso, era: de
um pé calçado
, na terra fofa”, tendo o artigo indefinido sido
riscado e manuscritos os
ss
indicativos do plural; no verso final do fragmento, Padresfoi de início datilografa-
do com inicial minúscula, sotopondo-se, também a máquina, a maiúscula. Tais alterões prevaleceram em
id
.,
ibid
. e pág. seg., que consigna ainda: Cortaram
com
facão” e
carne-seca
(com hífen).
531
Antes foi escrito: lança
do
coqueiro, o que foi mudado mediante uma adição manuscrita; do mesmo modo
em
id
.,
op
.
cit
., pág.
109, onde ainda se lê, no segundo verso do excerto: como um
floco ouro-verde
. Esses
quatro versos, em
id
.,
ibid
., perfazem uma estrofe distinta, enquanto que em
id
., 1, estão agregados à estrofe an-
terior.
283
decomposta em , adjetivo que significa “Falso, ilusório, vão, e iri, Galho; coti, por seu
turno, pode ser compreendido tanto como o substantivo coty (ou koty), Cilada, armadilha
532
,
quanto como a homofonógrafa preposição que vale por para, rumo a”. Em qualquer caso,
resta suficientemente clara a admoestação do bem-te-vi para que Araticum-uaçu evite o en-
contro com os brancos, e isso porque tal encontro, neste momento, nada traria de valioso para
o aprendizado do poeta em trânsito pelo mundo tumular: o fumoe a “carne seca” dos mis-
sionários não denotam mais do que o apego às sensões e à manutenção do corpo físico,
justamente o tipo de preocupação de que o neófito precisa se liberar, eis que o centro exclusi-
vo dos seus interesses, por agora, deve ser a superação da morte ritual para que se possa pro-
mover a ascensão da alma. Vem adrede o sermão de Jesus no Evangelho de Mateus (6.31-33;
também em Lucas 12.29.31):
Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou:
com que nos vestiremos?
Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste
sabe que necessitais de todas elas;
buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coi-
sas vos serão acrescentadas.
Pelo explanado, pode-se inferir que essa primeira via com que o aprendiz e o
psicopompo se deparam admite uma correlação com o sentido básico que orientou o terço ini-
cial de Magma: o do afastamento do ser da sua origem divina e, em contrapartida, a progres-
siva imisção nas coisas do mundo material e ilusório. E no que diz respeito aos Padres da
Missão, surgem eles como os sacerdotes que se ocupam do atendimento aos seres que por
ora se encontram somente no estágio mais primário da demanda espiritual, o que já não se
aplica ao poeta que reza o rosário.
Quanto ao segundo rastro,
Aqui afloraram, de leve, o co,
os pés de veada de uma carajá.
Deve ser a bonita Auá-naru,
que deixou cair um cacho de bogaris,
e vai pela praia, procurando amor...
As rolinhas sussurram, nos ramos de assa-peixe:
Inantu diadomã!... Inantu diadomã!...
Dia-domã!... Dia-domã!...
533
532
Até este ponto me vali dos respectivos verbetes contidos em BUENO, 146. Em seguida, aio-me em DIAS,
162, e em NAVARRO, 219.
533
Em ROSA, 2, 109: cacho de bogari.
284
Não é necessário recorrer à tradução do que “As rolinhas sussurrampara per-
ceber que, embora ornada com aliciantes promessas, a tentadora vereda aberta pela “bonita
Auá-naru” é, presentemente, tão vã quanto a outra, uma vez que o poeta já teve a oportunida-
de de experimentar por si mesmo o “amor, não carecendo de mais redundantes instruções
mestrais a respeito. Note-se ainda que o recendente “cacho de bogarisque a índia “deixou
cair” e vai perfumando convidativamente o caminho relembra as embriagantes flores que já
apareceram no jardim de Magma durante o percurso do segundo terço. Todavia, no atual pas-
so da jornada a insistência no entorpecimento seria absolutamente nociva para o noviço, pois
que concorreria para mantê-lo enredado na lassidão da morte, impedindo-lhe o progresso as-
censional.
Logo, o primeiro e o segundo rastros, à evidência, conduzem ao retrocesso, ao
retorno sobre os próprios passos em direção a etapas já ultrapassadas, pelo que decerto se tor-
na contraproducente segui-los. E não é que devam os cuidados com o corpo ser negligencia-
dos ou a vivência do amor menosprezada, mas, no período crítico em que o neófito se encon-
tra, qualquer perda de tempo poderá, mais do que atrasar, realmente comprometer o sucesso
da chegada ao término da trilha iniciática. Além do que, a presença do poeta no mundo sub-
terrâneo, como já se antecipou, tem por único escopo a compreensão da morte, como pressu-
posto para que se possa ven-la. É, pois, com atinência a este objetivo que se patenteia a ter-
ceira alternativa para Araticum-uu e o aprendiz:
O que leva à mata é um rastro largo,
gente forçuda, cheiro de carniça,
sangue miúdo respingado,
fiapos pretos nos carrapichos.
São três guerreiros tapirapés,
carregando morto um jaguaretê-pixuna.
Deram com as lanças na gameleira,
m armados, querendo brigar...
534
E se, versos atrás, o prudente bem-te-vi avisa” e as rolinhas sussurram” em
tom de segredo, agora, com relação a este rastro,
Um caracará traçou três zeros no alto,
e comandou, fanhoso:
Uer-rrê!... Uer-rrê!...
Corrotê!... Corrotê!...
535
534
Em id., ibid. e pág. seg.: é rastro largo(sem a intervenção do artigo); Foram três guerreiros tapirapés; e
Riscos de lança na gameleira”.
535
Em id., op. cit., pág. 110: traça três zeros” e comanda, fanhoso, harmonizando com o tempo verbal utili-
zado para o bem-te-vi e as rolinhas.
285
Repare-se que o predador caracará” – que deve estar seguindo a catinga do
cadáver da onça preta age de forma bem mais agressiva do que as outras aves, vindo a co-
mandar como um general, positivamente açulando Araticum-uaçu ao combate e à busca das
presas: Corrotê!... Corrotê!... Essa palavra pode ser interpretada como uma corruptela, pra-
ticada pelo falconídeo fanhoso, do advérbio tupi koritei, que quer dizer logo, depressa, ra-
pidamente
536
. De fato, as considerar as opções e os pareceres aliás convergentes – dos
animais, sem tardança o aguerrido carajá decide o caminho a seguir:
Araticum-uaçu levanta o peito,
berra como um cabrito,
e bate nas minhas costas.
Já escolheu, e some,
entre os tucuns espinhentos,
atrás do rastro que vai dar na mata...
537
O rastro que vai dar na mata” é, indubitavelmente, o dos guerreiros tapira-
pés. Também não há dúvidas quanto às intenções de Araticum-uu: se aqueles vêm arma-
dos, querendo brigar, e demonstram o seu valor belipotente ao ostentar o jaguaretê-pixuna”
que caçaram, o carajá, pensando na luta mortal a se travar, já estava “alisando o porrete” e de-
pois levanta o peito” e lança a pocema – o pico brado de guerra dos indígenas. Destaque-se
a aspereza do caminho eleito, pontuado por tucuns espinhentos, em detrimento das suaves
sendas que levavam aos pacíficos Padres e à amorável Auá-naru: não é, porventura, a mera
natureza beligerante de Araticum-uu que explica a sua preferência pela difícil via do embate
potencialmente letal, e sim a conveniência dessa escolha para a aprendizagem do neófito. En-
tão atente-se que o carajá “bate nas (...) costasdo pupilo, não só como um gesto de despedida
momentânea, mas mormente para instigá-lo a prestar atenção na lição iniciática que se minis-
tra pelo exemplo, a qual não poderia ser mais simples: é necessário enfrentar o medo da mor-
te.
A propósito, o resultado da peleja não chega a ser descrito pelo texto. Dado que
Araticum-uaçu reaparece em No Araguaia III, é de se presumir que ele tenha saído vitori-
oso. Todavia, o autor não considerou importante descrever esse triunfo, e isso porque a vitória
sobre os outros não faz parte das cogitões do aprendiz, que está onde está apenas para
aprender a vencer a si mesmo. Esta é a medula de “No Araguaia II.
536
V. NAVARRO, 219.
537
Em ROSA, 2, 110: berra como cabrito, sem artigo interveniente.
286
Contudo, no que tange a essa composição mais um pormenor merece ser exa-
minado. Na primeira estrofe o poeta anuncia que Araticum-uaçu
(...) matou uma tracajá
e mandou as tocandiras
fazerem uma saboneteira para mim.
E os dois últimos versos do poema são:
As tocandiras já descarnaram a tracajá.
Minha saboneteira está quase pronta...
538
A uma leitura mais precipitada, tais alusões pareceriam supérfluas, mesmo im-
pertinentes ao assunto da peça. Sem embargo, elas como que
circundam
todo o quadro poe-
mático, estando, em conseência, necessariamente vinculadas ao tema principal, que se refe-
re ao tirocínio mistagógico. Vejamos, pois, que as tocandirassão uma espécie de formiga
ainda hoje em dia utilizadas em importantes cerimônias iniciáticas por
vários grupos indígenas da floresta tropical da Amazônia, mesmo culturalmente dife-
rentes entre si, como os Karib Taurepang (...) e Rukuien (Wayana), e os Tupi Tene-
têhara, Tembé e Waiãpi (...),
539
sendo que tais solenidades assumem significância capital sobretudo na cultura dos remanes-
centes atuais dos índios Mawé”. Remontando aos tempos mais antigos, é certo que “A primei-
ra descrição conhecida sobre a prática desse ritual, hoje único entre os grupos indígenas da
área Madeira-Tapajós, remete aos Tupinambaranas e Andirazes” e nos foi proporcionada em
1669 ou 1696 pelo cronista português Miguel Antunes (
Relaçam sumaria das cousas do Ma-
ranham estes annos passados
), havendo motivos razoáveis para se supor que provavelmente
se cuide de uma instituição nativa pré-colonial.
Esclareça-se que
Tocandira é, na verdade, o nome comum dado a uma formiga de grandes dimensões
cientificamente conhecida como Cryptocerum atratun(...). Assemelha-se muito à
classe geral das vespas e em especial aos marimbondos, pois é um inseto que, além
das garras dianteiras muito afiadas possui, como as vespas, ferrão na extremidade do
abdome e cuja ferroada, fora o fato de ser muito dolorosa, é venenosa.
538
Em
id
.,
ibid
., o ponto final as a tracajá” é trocado por dois pontos, iniciando-se o próximo verso com letra
minúscula; nessa versão, esses dois versos fazem parte da estância anterior, ao passo que em
id
., 1, constituem
um dístico à parte.
539
Cf. a preciosa pesquisa de Marcel Mano, As formigas em rituais: a Festa da Tocandira entre os Mawé da
Amazônia” (in: ZANNONI, 290, 65-73), de onde extraí também as três citões segs. (
sic
).
287
De acordo com a posição de Silveira Bueno
540
, a designação do inseto provém
do tupi tuca-ndy, o que fere profundamente”, ou, por outro lado, talvez ela se prenda à se-
melhança morfológica das grandes garras dianteirasda tocandira com o bico do tucano (tu-
cã), conforme parece preferir Marcel Mano, com suporte em outros estudiosos.
De todo modo, os rituais registrados pelos etlogos abrangem a entomofagia e
precipuamente a submissão dos candidatos, como prova de coragem, às terríveis ferroadas do
animal nos bros e nas mãos. Apesar de nenhuma dessas práticas solenes ter sido contempla-
da em Magma, a dupla menção às tocandiras e a forte associação destas com os mecanismos
dos ritos mistagógicos autóctones é bastante instigante. Aparenta que o aspecto que Guima-
rães Rosa quis r em ressalto foi a voracidade das ferozes formigas, usadas no poema para
descarnar “a tracajá” que fora morta por Araticum-uaçu. Esse descarnamento significa a lim-
peza do casco do quelônio que, uma vez livre da imundície dos resquícios materiais, será
transformado numa “saboneteira, utensílio próprio para a lavagem e a purificação.
Ora, o que se espera do neófito neste momento é exatamente o abandono da
matéria rebarbativa a fim de que a essência que permanece seja transmutada em algo novo e
imaculado. Segue-se que a saboneteira que Araticum-uaçu mandou as tocandiras/ fazerem
representa muito mais do que apenas um acessório banal de toalete: tal objeto, segundo o seu
método de confecção pelas formigas e a sua utilidade, consiste num poderoso símbolo da es-
corificação do próprio poeta, funcionando como estímulo para que este se permita lavar de
toda a corrupção que lhe atravanca o retorno a Deus. De se reaver, sob essa óptica, o ensina-
mento de Plotino (Enéadas, I, 6, 5):
É como se um homem mergulhado na lama de um lodaçal não pudesse mais
mostrar a beleza que possuísse, e como se nós não víssemos nele senão a lama que o
cobre; a fealdade apareceu nele pela junção de um elemento estranho, e se ele tiver
de voltar a ser belo deverá dar-se ao trabalho de se lavar e limpar para ser o que era
anteriormente.
Não é senão como instrumento para esse “trabalho de se lavar e limpar, a fim
de desvelar a “beleza” que a origem em Deus concede a todo ser, que se presta a saboneteira
indígena. Nesse raciocínio, transformação é a palavra-chave, e em face disso nos é proveitoso
abordar o simbolismo da tartaruga, em tudo concernente à tracajá que é a matéria-prima do
objeto. Comecemos por trazer à memória a mitologia grega, consoante a qual o mensageiro
Hermes, uma das mais clássicas divindades psicopompas, inventou a cítara (ou lira) – que de-
540
BUENO, 146.
288
pois cederia a Apolo, o deus poeta lançando mão de tripas de bois sacrificados, encordoadas
sobre a carapaça descarnada de uma tartaruga.
Essa
transformação da tartaruga em cítara
resumiria toda a arte da alquimia; eis por
que Dom Pernety considera a tartaruga o
símbolo da matéria da Arte
. As
a sua pre-
paração
, torna-se ela, com efeito, aos olhos dos alquimistas,
o melhor dos remédios
.
Seria da casta de Saturno, como o chumbo,
matéria-prima da obra
. O que vai de en-
contro ao pensamento dos alquimistas chineses, que consideram a tartaruga como o
ponto de partida da evolução...
541
Cristalina a adequação do mito heleno ao episódio de
Magma
,
em que o psico-
pompo carajá presenteia o poeta rezador com um artefato composto a partir do estojo do ani-
mal. Em torno disso, traga-se à colação a seguinte
passagem do hino homérico a Hermes, onde o deus dirige-se à tartaruga:
Saúdo-te, natureza amável, és para mim de um mui feliz presságio. Como,
sendo da espécie das conchas, podes habitar as montanhas? Levar-te-ei à minha casa,
ser-me-ias bastante necessária. É melhor que eu faça de ti algo de bom, em lugar de
permaneceres livre para alimentar alguém, pois és em ti mesma, enquanto vives, um
veneno muito perigoso e tornar-te-ás algo de bom as tua morte...
Os filósofos herméticos vêem, nessa mensagem à tartaruga, um resumo da
obra alquímica: a tartaruga
é um dos grandes venenos antes da sua preparão, e o
mais excelente remédio, após ter sido preparada, diz Morien. Com ela, Mercúrio ob-
tém riquezas infinitas, como as que dá a pedra filosofal...
542
Em decorrência, levando outrossim em conta que o testudíneo é famoso pela
lentidão deambulatória, a idéia da tartaruga
tornada
em “algo de bom” as a “morte” inde-
pendentemente de ser uma caixa musical ou uma saboneteira acomoda-se com precisão à
imagem do peregrino que pacientemente palmilha a estrada anagógica e passa pelo pouso da
morte em direção ao Renascimento. E já que em
Magma
se alude a um quelônio da região
amazonense, vale acrescentar, uma vez mais invocando o signo da fecundidade materna, que
Os índios da Amazônia, por sua vez, consideram a tartaruga como a representação de
uma vagina, que às vezes é a da esposa do Sol, nos mitos da região de Vaupés: é inte-
ressante notar que, na mesma região cultural, o casco de tartaruga, fechado com cera
em uma das extremidades, constitui um instrumento musical, que tem o seu papel nas
cerimônias iniciáticas, o que não deixa de evocar o casco de tartaruga transformado
em cítara por Hermes.
543
Além do que, esses animais exprimem de maneira perfeita o princípio de orde-
nação cósmica:
541
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 870. Grifos dos autores, sendo o primeiro em negrito.
542
Id
.,
ibid
. Os grifos são dos autores, correspondendo o segundo a uma citação de Dom Pernety (
Dictionnaire
mytho-hermétique)
.
543
Id
.,
ibid
.
289
Pela sua carapaça, redonda como o céu na parte superior o que a torna semelhante
a uma cúpula – e plana como a terra, na parte inferior, a tartaruga é uma representa-
ção do universo: constitui-se por si mesma numa
cosmografia
; como tal, aparece no
Extremo Oriente, entre os chineses e japoneses, no centro da África negra, (...) para
citar somente os mais estudados.
544
Operando a extração do sumo de tudo quanto foi dito, aufere-se que quando o
poeta afirma já haverem As tocandiras
descarnado
“a tracajá”, estando a sua “saboneteira
(...) quase pronta”, quer ele demonstrar, por meio de um ousado símile poético, que a própria
provação mistagógica (figurada na ação das formigas) se encontra avançada,
quase pronta
no que toca à renúncia das superfluidades materiais (o descarnamento), o que de seu lado im-
plicará numa nova maneira de o indivíduo se colocar dentro do plano da “representação do
universo(o casco da tracajá de que se faz a saboneteira). Essa visão inédita que o ser, desde
que redivivo, adquirirá de seu relacionamento com o cosmos
i
.
e
., a obtenção da “Consciên-
cia cósmicaserá caracterizada, dentre outras particularidades, por uma crescente e persis-
tente sensação de
limpeza
que reflete o alcance gradual do ideal de purificação, e daí a esco-
lha, por Guimarães Rosa, do signo da saboneteira, o qual ajustadamente se encaixa na imagem
da ablução mundificante que já vem sendo perseguida em
Magma
desde o primeiro terço,
como um desdobramento cíclico do refrigério que fora propiciado pelas primordiais Águas
da serra”.
Com o interesse de flagrar a tessitura sígnica do livro de 1936, mas sem a pre-
cisão de se entrar em detalhes e citando apenas as ocorrências mais importantes, temos que
logo quando, há tempos, o então catecúmeno sonhou beijar A Iara, já tinha ele pressentido
que tal desejo só haveria de se realizar em certa “noite, quando a sereia estivesse
tomando o
banho
longo
de perfume e luar...
Depois, em Anil, numa alegoria de contornos cósmicos extremamente pró-
xima da saboneteira de “No Araguaia II, acompanhamos que despontou fugaz
o sol a se desmanchar, como um
sabão
redondo,
e o u todo água, num côncavo de bacia
onde
lavam o dia
...
Numa continuidade da exegese, a saboneteira feita a partir da tracajá descarna-
da seria em tudo adequada a receber esse fulgurante “
sabão
redondodo sol, este devendo
544
Id
.,
op
.
cit
., pág. 868. Grifo dos autores.
290
ser pensado como o luminoso fio anímico que passa por dentro de cada criatura. O neófito em
Magma, por ora nas ribeirinhas do Araguaia, está já em vias de reconhecer em seu âmago a
presença dessa luminosidade abstergente, a qual, para cumprir o mister de lavar o dia”, há
que se beneficiar da “água” que se precipita do céue esta é a “Chuva” do antepeltimo
carme da obra.
Item, no segundo terço, a meio caminho entre a saída e o retorno da origem di-
vina, asseverou-se na pa O Caboclo dágua”, quiçá numa recordação do batistério primici-
al, que
No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas se ensaboam
antes de saltar...
para o correr fluneo da vida. E na composição derradeira desse terço, A terrível parábola”,
vimos que a cachorrinha tentou enganar o Kibungo-Gerê, afirmando que
“Zabelinha já lavou,
já deitou,
já dormiu!...
Indo em frente no percurso de Magma, com a abertura dos trabalhos da segun-
da parte do terceiro terço teremos o ensejo de ouvir, no poema “Toada da chuva, o poeta as-
severar que
os túmulos já estão lavados,
e em seguida indagar à
(...) Chuva santa,
chuva clara,
como a toalha de um altar...
Porque tanta cousa impura,
tanto pecado e amargura,
daqui não podes lavar?!...
A resposta da chuva e suas significações serão examinadas no momento apro-
priado. Por ora basta adiantar, rapidamente, que nos textos finais de Magma o futuro Ama-
nhecerserá comparado à prata lavadade uma “jarra clara” e, ems a vinda de outra
Chuva” esta definitiva –, já quando da peça “Integraçãodescortinar-se-á
O u,
limpo, azul...
291
E por fim, dotado de “Consciência cósmica” o adepto alcançará
(...) os cimos,
onde o ar
limpo
e fino pesa para fora...
Portanto, a saboneteira recebida de Araticum-uu terá para o poeta, simboli-
camente, imensa cota de serventia no processo de purificação espiritual.
Por esse modo ultimada a análise de “No Araguaia II, é hora de nos haver-
mos com a composição consecutiva, e assim se toma conhecimento de que uma “Reza brava”
também faz parte do rosário rosiano. Nesse novo carme assiste-se ao pedido feito por uma es-
posa abandonada a um rezador ou rezadeira para que, por meio de sortilégios, seja o marido
desgarrado compelido a voltar a casa. E, lançado o ensalmo, ele de fato retorna, porém morto,
(...) ensangüentado,
com um oco de faca no peito esquerdo,
bem no lugar do coração...
O final surpreendente, aliado a certos elementos formais, conduz a que o texto
possa ser lido apenas pelo seu aspecto de narrativa de acontecimento, o que por si só já se
mostra interessante. Mas o que mais nos importa em
Magma
é realmente a movimentação po-
ética por trás das palavras o
quem
das coisas, como diria o vaqueiro Tadeu
545
e o nexo
intertextual que se estabelece entre as contas do rosário.
Eis então que “Reza bravarevela um notável liame com Roxo, um dos
poemas irisados do primeiro terço, pois que em ambos comparecem praticamente as mesmas
personagens. Por primeiro, há o defunto – referido como o “esposo morto” em Roxo” e rece-
bendo o nome de “Chico” em Reza bravae a viúva; naquele poema antecedente ainda
aparece uma “mulher cristã”, sendo que neste o sexo da pessoa que faz as rezas não é minuci-
ado pelo texto, e mesmo assim fica presente, de um ou de outro jeito, o vulto de alguém que
lida com os mistérios e as orações; por fim, nas duas peças se dá a atuação de alguns figuran-
tes: em Reza bravatrata-se de “muita gente, amigos do falecido que o trazem “carregado
para recomendá-lo à sua companheira, ao passo que na outra composição todo o discurso po-
emático é constituído pela fala de alguém que se dirige mansamente à viúva. Tal como suce-
deu com relação a “Elegia” e Ausência”, no presente caso é até admissível entender Reza
brava” como o primeiro ato trágico que daria motivo ao velório em Roxo, e a inversão da
ordem causal que seria lógica para a colocação dos carmes ao longo do livro, no que provoca
545
Q. v. ROSA, 7, 125 (Cara-de-Bronze”).
292
no leitor uma sensação de heurística, acaba outra vez por puxar mais apertadamente os los
que ligam todas as peças integrantes de Magma. Nessa intelecção, observa-se aqui a mesma
técnica de montagem alinear do tempo pica do cinema de vanguarda, em que a causa é apre-
sentada posteriormente ao efeito, exigindo do espectador a abertura para um esforço mais
aprofundado no que respeita à recepção da mensagem, o que por sua vez implica na amplia-
ção do próprio espo de ação estética da obra.
Entretanto, concentremo-nos sobretudo nas personagens de “Reza brava”. É
válido chamar a atenção para os procedimentos da pessoa a quem se encomenda o bruxedo.
As a solicitação de “silêncio, em honra dos Santos, dá-se a invocação do nome do sujeito:
Chico!, volte para sua Dona,
que nenhum sossego você terá...
546
A seência do encantamento é elaborada ao redor da realização de três rituais,
cada qual composto pela tríplice reiteração de um gesto e de uma enunciação:
Três pratos ponho na mesa,
para mim, para minha Santa Helena,
e para vo, quando chegar...
Três vezes chamarei, três pancadas lhe darei!...
A primeira, na testa, para que você lembre,
a segunda, no peito, para que vosofra,
a terceira, nos pés, para você caminhar...
547
É correto que
numerosos ritos de purificação estão formados de uma tripla repetição de três recei-
tas (...). Essa tripla repetição de três está presente em numerosos ritos de magia e fei-
tiçaria.
548
Tal costume aparece desde pelo menos o Antigo Egito, devendo sua origem ser
encontrada possivelmente na época pré-histórica. Uma das principais razões que justifica a
reiteração tríplice é a de firmar de maneira inequívoca, perante as forças misteriosas do Uni-
verso às quais se apela, a intenção do praticante de alterar uma determinada realidade através
da palavra e da solenidade mágicas. Dentre outros fatores, é com esse mesmo objetivo, posto
546
A maneira original era volta pra sua Dona”, manuscrevendo-se as alterões, as quais foram mantidas em
ROSA, 2, 111.
547
Todas as preposições paradesse trecho foram escritas a mão sobre as formas iniciais pra; o quarto verso
se lia Três vezes te chamarei, três pancadas te darei, tendo o primeiro pronome sido rasurado e o segundo
substituído pelo lhemanuscrito. As soluções operadas por Guimarães Rosa foram todas preservadas em id.,
ibid.
548
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 643. Os autores partem de uma breve apreciação a respeito do Zend
(séc. III ou IV) feito sobre o Avesta atribuído a Zoroastro (628 a. C.-551 a. C.).
293
que sob uma perspectiva bem mais sublime, que nos Evangelhos siticos Jesus por três vezes
predisse aos discípulos reunidos a Sua Morte e Ressurreição; e estamos, a propósito, em face
de um dos mais estimados exemplos daquilo que é chamado de “tradição tríplice”, termo teo-
lógico que designa as passagens da vida, do ministério ou da preleção de Cristo que são des-
critas por três dos Evangelhos
549
.
De qualquer modo, formando-se em Reza bravauma novena pela multiplica-
ção dos atos, atualizam-se as considerões anteriormente expostas a respeito do “colar” com
nove presas de onça pretapertencente a Araticum-uaçu (No Araguaia I) e sobre o pro-
blema de trigonometriada “aranha fiandeira, no texto que inaugurou a série octogonal que
estamos estudando
550
.
Mais do que tudo, Essa tripla repetiçãofeita pela personagem que entoa a
Reza brava, a par de surgir como um desdobramento dos trezentos anos” aludidos em
Batuque”, ainda ecoa a atividade do poeta que reza” os terços do rosário. Destarte, cum-
pre reparar que os efeitos pretendidos com as três pancadasmencionadas no poema em
pauta condizem com o clima de cada um dos três segmentos do círculo da prece. A primeira
dessas pancadas, na testa, para que volembre,tem o fito de predispor o esposo à lem-
brança do outro cônjuge que foi deixado e que aguarda o regresso de quem Saiu de casa”:
cuida-se, por conseguinte, do despertar da percepção racional (e por isso a influência sobre a
testa, isto é, a parte frontal da caba) para que o extraviado veja a ocorrência do rompimento
entre os consortes; e acompanhamos que o apartamento entre a criatura – o eu consciente de
sua identidade e Deus – o Outro constituiu com exatidão a parte central da matéria discu-
tida no primeiro terço do livro de 1936. Já “a segundapancada, no peito(ou seja, no cora-
ção), serve “para que você sofra”, correspondendo esse sofrimento à percepção mais emocio-
nal, logo intuitiva, das conseqüências dolorosas da separação, a fim de que o evadido bem as
sinta em seu âmago, consoante sucedeu em Magma no segundo terço, que se ocupou da sau-
dade. Quanto à “terceira” pancada, dada “nos pés, para vocaminhar, com ela se quer inci-
tar ao decisivo movimento de retorno ao lar donde se evadira, o que equivale à confirmação
do vínculo matrimonial que por algum tempo fora rompido – e a volta do ser a Deus, quando
chegar” aquele ao término da jornada, é o que coroará o terço final que por enquanto está sen-
549
A primeira predição se deu, ao que parece, em Cesaréia de Filipe ou na estrada para essa cidade: v. a respeito
Mt 16.21-23, Mc 8.31-33 e Lc 9.22; a segunda ocorreu na Galiléia, cf. Mt 17.22-23, Mc 9.30-32 e Lc 9.43b-45; e
a terceira, no caminho para Jerusalém, pouco antes da entrada triunfal nessa cidade por ocasião do Domingo de
Ramos: Mt 20.17-19, Mc 10.32-34 e Lc 18.31-34. Anote-se que em outros trechos dos Evangelhos Jesus faz alu-
sões mais rápidas e veladas ao assunto, que não se confundem com as falas expcitas das oportunidades especi-
ficadas.
550
V., respectivamente, as págs. 259-262 e 245-246.
294
do desfiado. Conseentemente, as pancadas representam a gradativa agressividade com que
o mundo recebe em seu seio a criatura provinda de Deus, e o escopo dessa agressividade é
impulsionar o indivíduo ao percurso dos três estágios sticos ver, sentir, não desmentir
que o transportarão ao excelso desfecho devolutório.
Nem se argumente que o falecimento do cônjuge que partiu balda quaisquer
expectativas isso é verdade apenas sob um ponto de vista mundano, que não nos interessa.
O que realmente vale é que, sub specie Aeternitatis, a morte do marido fugitivo é a condição
para o seu retorno à esposa, com o que o acontecido se transforma num símbolo da restituição
do ser à sua procedência divinal. De modo semelhante, no mito de Osíris dos mistérios da
Antigüidade, Ísis veste o fato de imagem arquepica da viúva, mas a viúva de quem está des-
tinado a retornar, renascido, para o convívio amoroso com a consorte. Deduz-se que a figura
feminina, no caso da pa de Magma, simboliza uma vez mais a Alma Mater para a Qual se
deve volver: e bem assim, no poema a mulher é por três vezes respeitosamente invocada, pe-
los que com ela dialogam, com o axiônimo Dona” (do latim domina, senhora”), grafado
sempre com a inicial maiúscula, sendo que na terceira oportunidade o tratamento empregado é
até um mais enfático Siá Dona, tudo aproximando-a do Dominus aplicado ao Senhor Deus
nas fórmulas litúrgicas cristãs mais ancestrais. Eis então o fulcro da composição, num con-
nuo aprofundamento do que vem sendo exortado por meio dos carmes imediatamente anterio-
res: quem saiu de Deus para o mundo, somente morrendo para este pode regressar Àquele. É
o que compete ao neófito aprender por ocasião da sua própria estadia no sepulcro, justifican-
do-se deste modo a presença doutrinária da “Reza brava”, como nova “terrível parábola”, nes-
se passo do trajeto mistagógico. Ponha-se em evidência que tal ensinamento é demonstrado de
forma cabal e insistente pelas Escrituras, o que se verifica, por exemplo, em Mateus 16.25:
Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida
por minha causa achá-la-á.
E numa das cartas de São Paulo, num lapidar versículo que antes já foi menci-
onado (Romanos 6.11):
Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para
Deus, em Cristo Jesus.
Porque morrer para o pecado” é prestar-se ao renascimento para Deus, em
Cristo Jesus.
Pelo exposto, a morte de “Chicotraduz enfim o desligamento da preocupão
com as coisas do mundo material – o que coincidentemente fora abordado em Magma pela
295
primeira vez quando do estudo de “Roxoe, em contrapartida, o despertar do espírito para a
verdadeira Vida em união com a divindade, maneira pela qual se explicam as categóricas ad-
moestões do ensalmador:
Se estiver comendo, pare,
se estiver conversando, cale,
se estiver dormindo, tem de acordar...
551
À evidência, o
comer
e o
conversar
, assim como o
beber
“cachaça” que é men-
cionado na última estrofe da composição, manifestam os cuidados da existência física, a qual,
por embarar o espírito, adormecendo-o nos caprichos da fatuidade, cumpre ser preterida em
prol do “acordarpara o real da essência metafísica.
De sorte que, examinado o que é mais importante no poema em questão, con-
vém agora a rápida considerão de certos detalhes complementares: e a Reza brava” conti-
nua, sendo dito que
A meia-noite já vem chegando,
e é a hora boa para rezar.
Essa “meia-noiteque “vem chegandovai além do texto em ato, concernindo
ao momento mais escuro e angustiante da provação iniciática, o qual, aproximando-se para o
adepto, deverá ser enfrentado as o encerramento da presente série octonal. Anote-se ade-
mais que a “meia-noite” também é associada, versos à frente, a uma “hora
morta
, no que se a
constata como ainda respeitante à estação no sombrio mundo subtérreo. Sem embargo, o tran-
se por vir é uma etapa prevista e necessária para o devido aperfeiçoamento espiritual, consis-
tindo, de acordo com as palavras citadas, na “hora boaentão a melhor para rezar” e bus-
car a comunhão com Deus.
Diga-se outrossim que, em prosseguimento do seu trabalho, o sortílego aduz:
Vou queimar pólvora, vou traçar o sino,
vou rezar as sete ave-marias retornadas,
e depois a reza brava de São Marcos e São Manso,
com um prato fundo cheio de cachaça
e uma faca espetada na mesa de jantar.
O sino” a ser
traçado
para a fatura do feitiço não é mais do que uma acomo-
dação fônica, usualmente praticada pelos curandeiros de todo o interior do Brasil (ao lado de
sino-salomão
e
sinsalamão
), da palavra “signo, sem dúvida querendo se referir ao
pentáculo,
551
As flexões originais
ra
” e
cala
foram corrigidas a mão.
296
signo, sinete ou selo de Salomão, conhecidíssima insígnia das ciências ocultas. Utilizado ple-
toricamente até nos rituais mais ingênuos de magismo, esse sinal quase que se torna esvaziado
por conta da banalização a que é submetido, visão que entretanto não deve preponderar. Bus-
cando o imo do selo, que subsiste nas suas acepções mais vetustas e elevadas, chegamos a du-
as formas sob as quais o mesmo pode ser entendido. Uma delas é a chamada “estrela flame-
jante” de cinco pontas da Monaria, cuja origem assenta no antigo pentagrama de Pitágoras:
é o símbolo da manifestação central da Luz, do centro místico, do foco ativo de um
universo em expansão. Traçada entre o esquadro e o compasso – ou seja, entre a Ter-
ra e o Céu –, ela representa o homem regenerado, radioso como a luz, em meio às
trevas do mundo profano. (...) O princípio divino no coração do iniciado (...).
Além disso, a estrela de cinco pontas é um símbolo do microcosmo huma-
no...
552
Consoante já foi prevenido
553
, no mundo octogonal da sepultura o poeta de
Magma, cujo microcosmo está em lento processo de “expansão, encontra-se em exato na
interseção geométrica das demarcões dos instrumentos com os quais figurativamente todo o
universofoi criado: o esquadro(com que se medem os ângulos e as linhas perpendicula-
res que formam o quadrado) e o compasso(com que se marcam os pontos da circunferên-
cia) – ou seja, entre a Terra e o Céu. Não obstante, ressalve-se que esse neófito ainda não é
um homem regeneradonem um iniciadodeveras: havendo um trecho de seu itinerário por
cumprir, incumbe-lhe justamente deixar para trás as trevas do mundo profano, abrindo es-
po em seu anímico centro sticopara a “manifestação central da Luz.
A outra forma do sinode Salomão, que com essa designação é empregada
bem mais freentemente do que a outra, é o hexagrama que serve de emblema para a religião
judaica, também denominado como “escudoou “estrela de Daviou duplo triângulo de
Salomão. Composto pelo entrecruzamento de dois triângulos eiláteros invertidos, antes de
mais tal signo ilustra “o amplexo do espírito e da matéria, dos princípios ativo e passivo, o
ritmo de seu dinamismo, a lei da evolução e da involução.
554
O alcance do símbolo se infunde até ao campo da alquimia, no qual, por meio
de uma intrincada hermenêutica, que não cabe aqui destrinchar, Essa figura totaliza, verda-
deiramente, o pensamento hermético, nela se inscrevendo e se resumindo a relação cosmo-
gônica entre o u (Pai, Logos e Espírito Santo) e a terra (enxofre, água e sangue), além dos
sete planetas da tradição (Sol, Lua, Marte, Vênus, Júpiter, Mercúrio e Saturno), dos sete me-
552
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 404. Grifo dos autores.
553
V. neste trabalho as págs. 241-242 e 253-254 (nota 472).
554
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 404.
297
tais (ouro, prata, ferro, cobre, estanho, mercúrio e chumbo), dos quatro elementos (terra, água,
fogo e ar) e das quatro propriedades fundamentais da matéria” bruta (quente, frio, úmido e
seco), com os quais o cultor da ciência espagírica deve laborar a modo de operar a extração da
alma sutil e, por fim, a “uniãodesta “com o seu princípio divino. Concisamente,
O todo, reunido no hexagrama, constitui o conjunto dos elementos do univer-
so.
(...)
O selo de Salomão aparece, então, como a síntese dos opostos e a expressão
da unidade cósmica, assim como a sua complexidade.
(...)
A redução do múltiplo ao uno, do imperfeito ao perfeito, sonho dos sábios e
dos filósofos, está expressa no selo de Salomão.
(...) Outros vêem a união dos princípios masculino e feminino nos dois triân-
gulos superpostos.
555
Parece bastante franca a correlação desses sentidos com o episódio do regresso
do marido à esposa em Reza brava”, com o que se obtém tanto “a união dos princípios mas-
culino e femininoquanto A redução do múltiplo(evidenciado pelos pândegos “alegres,
bebendo cachaça) ao uno(a “Dona” de “Chico). Esse o fundamento da manobra encan-
tatória.
O derradeiro aspecto a se prestar atenção nesse poema, antes de partirmos para
o subseente, é a interjeição proferida pela mulher ao receber o esposo morto: Jesus!Con-
siderando-se o mágico eflúvio que impregna todo o texto de
Magma
, bem como o teor forte-
mente anagógico do pensamento de Guimarães Rosa, em tudo posto sob a égide da pregação
de Cristo, tal exclamação jamais poderia ser ouvida como um simples lamento inconseente,
eis que o nome invocado ativa com veemência todas as mais celsas expectativas dos procedi-
mentos sticos em geral:
morre-se para poder reviver
, assim como o Cordeiro o fez
556
.
Enfim, as Reza brava” estampa-se “No Araguaia III, composição das
mais nebulosas, pontuada por enigmas e cujo enfrentamento, por conseguinte, demanda a ou-
sadia de se procurar o desenredo das entrelinhas. Como preliminar ao assunto que constitui o
cerne do texto, cumpre anotar que Guimarães Rosa não deixa de recalcar a natureza iniciática
555
Id
.,
op
.
cit
., 812-813.
556
Entre parênteses, acrescento que Reza brava”, conforme já se pesquisou alhures, mantém diversos tipos de
correspondência com a novela São Marcos, de
Sagarana
. Sobre esse tema, remeto a LEONEL, 54, 189-199, e
especialmente NASCENTES, 91,
passim
, o qual soube detectar as numerosas oportunidades em que certos pro-
cedimentos poéticos empregados (...) pelo autor” em
Magma
aparecem de igual modo em
Sagarana
, apontan-
do então as semelhanças estéticas entre São Marcos” e vários outros poemas do livro de 1936. Observo que
ainda é possível perceber alguma analogia entre Reza brava” e A volta do marido pródigo, também de
Saga-
rana
, não havendo por ora nocia de algum estudo que se ocupe de tal assunto, sobre o qual igualmente não me
demoro, porque então nos desviaríamos dos objetivos propostos para o presente trabalho.
298
dos trabalhos atuais, ao fazer questão de citar os artigos com que, a certa altura, o mestre ca-
rajá presenteia o seu aprendiz:
Araticum-uaçu veio me trazer
uma pele de lontra e um camaleão moqueado.
557
A propósito, diga-se que
a pele de lontra é utilizada nas sociedades de iniciados, tanto entre os índios da Amé-
rica como na África Negra (...).
Entre os ojibwas, na América do Norte, o xamã conserva suas conchas mági-
cas num alforje de pele de lontra. Diz-se que o mensageiro do Grande Espírito, Inter-
cessor entre este e os humanos, vendo a miséria da humanidade doente e enfraqueci-
da, revela os segredos mais sublimes à lontra e introduz no seu corpo
Migis
(símbolos
dos Mides ou membros da sociedade Midewiwin), para que ela se torne imortal e pos-
sa iniciar e, simultaneamente, consagrar os homens (...) Todos os membros da socie-
dade Mida têm um saco de medicamentos feito de pele de lontra (...). são esses sacos,
apontados como fuzis, que
matam
o suplicante, na cerimônia de iniciação. São em se-
guida colocados sobre seu corpo, até que ele volte à vida. Depois de cantos e ban-
quetes, o novo iniciado recebe seu próprio saco de lontra das mãos dos sacerdotes. A
lontra é, pois, o espírito iniciador, que mata e ressuscita.
Na Europa, o papel do psicopompo atribuído à lontra é atestado num canto
fúnebre romeno:
Porque a lontra sabe
A ordem dos rios
E o sentido dos vaus,
Ela te fará passar
Sem que tu te afogues
E te levará
Até às fontes frias
Para te refrescar
Dos arrepios da morte.
(
Trésor de la poésie universelle
, Caillois & Lambert, Paris, 1958).
O simbolismo da lontra (irl.
doborchu
; galês
dyfrgi
; bret.
dourgy
, literalmente
cachorro da água
) é complementar ao do cachorro. Cuchulainn começa a série de su-
as façanhas matando um cão e termina-as, alguns instantes antes de morrer, matando
uma lontra com uma pedra atirada de uma funda...
558
Embora extensa, como se pode perceber resulta bastante pertinente a elucida-
ção sobre a pele de lontra, animal que, de acordo com as várias sapiências, é um psico-
pompo” capaz de “consagrar os homens” e que “sabe/ A ordem dos rios/ E o sentido dos
vaus; e é por isso que, também em português, um sinônimo popular para lontra é “cachorro-
dágua”, pois que a mesma sabe divisar seus caminhos nos cursos fluviais assim como o o
557
Em ROSA, 2, 113: Araticum-uaçu
me veio trazer
.
558
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 557. Grifos dos autores, sendo que os do parágrafo final vêm em ne-
grito.
299
de caça os acha na floresta. Aliás, avocando-se o mito de “Cuchulainn, temos que, de certo
modo, a concessão de tal presente por Araticum-uu ao poeta também aperfeiçoa alguns dos
atos expostos em A terrível parábola”: vimos que nesse carme a morte ritual do neófito, figu-
rada através da devoração de Zabelinha pelo Kibungo-Gerê, foi precedida pela morte da ca-
chorrinha, assim como o herói da mitologia celta dá início a “suas façanhas matando um o.
Em Magma, na jornada de agora pelo reino ctoniano, a alusão à lontra “que mata e ressuscita
complementa o sentido augural da anterior morte da cadela. A diferença está em que Cuchu-
lainn está em vias de morrerquando mata ele próprio sua lontra, ao passo que o noviço em
No Araguaia III, pouco tempo Depois dos cantos e banquetesque tiveram lugar em
Batuque”, encontra-se já às vésperas de ressurgir quando recebe do mestre, como amuleto, a
pele do animal, o que é o procedimento nos ritos ameríndios; todavia, em qualquer das hite-
ses a lontra quer sempre significar o espírito iniciadorque acompanha “o suplicante” morto
pela estação sepulcral até que ele volte à vida.
São mais breves os comentários sobre o “camalo, eis que, tal como a lontra,
análogo
papel de intermediário entre o homem e as forças uranianas parece ter sido reconhe-
cido ao camaleão na Antigüidade européia: sua cabeça e sua goela, queimadas com
madeira de carvalho, permitiam comandar a chuva e o trovão. É o camaleão que per-
mite ao Sol entrar em comunicação com os homens.
Para os dogons, o camaleão, por ter recebido todas as cores, está ligado ao
arco-íris, caminho do céu e da terra.
559
Ora, conforme já foi antecipado, em Magma a vinda da “chuvaserá associada
ao renascimento do adepto, e daí a conveniência de ter ele recebido de seu guia indígena um
“camalo moqueado, isto é, queimado nas varas do moquém a fim de servir como talismã.
Isto referido, passemos sem demora à temática central de “No Araguaia III.
A peça narra a ameaça de um conflito:
Os carajás de baixo estão brigados
com os carajás de cima.
Porque roubaram um gramofone velho
do Capitão Bacuriquirepa
e tem também a história de um menino índio
morto no mandiocal.
Vai ter barulho feio!...
560
559
Id., op. cit., pág. 170. Grifos dos autores.
560
Divergências verificadas em ROSA, 2, 113: Porque roubou-se” e Capitão Bacuriquiropa.
300
Chama atenção a discrepância valorativa que se abre entre os dois aconteci-
mentos alegados como estopins da rixa: de um lado, o roubo de “um gramofone velho, e do
outro, “a história de um menino índio/ morto no mandiocal. O carme não informa quem rou-
bou nem fornece detalhes sobre a morte do curumim, mas o que fica aí claramente assentado é
o contraste entre o físico perecível – o gramofone velhoe o perene metafísico – o destino
da alma do menino (...) morto, a qual, conquanto não explicitamente mencionada, constitui-
se num atributo congênito de qualquer criatura (além do que, a alma, impalpável, no nível da
matéria sempre resta impcita). Mais importante, entretanto, é que também causa espécie a
diferença nas maneiras pelas quais o poeta se porta ao apresentar cada fato. Com relação à
primeira causa, o discurso é certo e incisivo, como quando se discute algo cuja existência não
é posta em questão: a princípio, a sólida construção Porque roubaramnão admite réplica. Já
no que toca à segunda razão, o discurso é vago, num tom de descaso, quase como o de quem
passa adiante um boato sem intenção de se responsabilizar quanto à veracidade do mesmo: e
tem também a história” é uma colocação tênue, que se apresenta facilmente passível de con-
tradita. A impressão que sobra é a de que, independente da opinião de qualquer dos grupos ca-
rajás a respeito, o poeta que reza o rosário (isto é, a voz poética, e não o autor Guimarães
Rosa) aparenta não dar maior importância à nocia do óbito do garoto. E eis que essa atitude
se constitui num grave indício que trai a incúria do iniciando em apreender a lição mistagógi-
ca que lhe está sendo ministrada e que invariavelmente versa sobre o significado da morte
como vesbulo para a outra Vida. Pois que, ao conferir em sua fala maior relevo ao litígio em
torno da posse ou propriedade de um gasto objeto material, e não ao falecimento de uma cri-
ança, sujeito portador de alma, o neófito parece demonstrar que, a despeito do ensinamento
veiculado nas composições anteriores, em especial a mais recente, ele ainda não logrou cortar
os los com os reclames do mundo tangível nem se apercebeu de que a luta entre as duas
facções carajás é não mais do que uma encenação que se reporta à condição mortuária dele
próprio.
Nada obstante, afigura-se que é exatamente em função desse curumim, de sua
identidade simlica e de sua morte que se delineia toda a estruturação poética do texto. Para
entendermos isso, faz-se adequado cruzar o poema rosiano com alguns elementos do folclore
nacional. Conceda-se então a palavra a Câmara Cascudo, que conta sobre um determinado ri-
tual mistagógico nativo:
Entre os indígenas do Brejo dos Padres, Iaracatu, Pernambuco, e seus descendentes,
realiza-se a cerimônia do Menino do Rancho, que é a captura de um menino pelos
mestres, pajés, ali denominados praiás, e levado para um rancho, começando en-
301
tão a aprendizagem das tradições tribais, preparativos para a iniciação futura. O me-
nino é defendido por um grupo de homens da tribo, os padrinhos, ornamentados e
armados de cacetes contra os praiás, munidos de ganchos, havendo muita batalha,
saltos e fintas, e bailados finais de parte a parte. Desde o momento em que os praiás
se apossam do menino, este passa a lhes pertencer, freqüentando o poró, para ser-
vi-los por ocasião das festas, e passando, por fim, quando já homem, a fazer parte do
grêmio. De modo que aquela festa, como já disse, é, nem mais nem menos, a inicia-
ção do neófito na sociedade dos praiásou dos encantados, como são, também,
conhecidos aqueles(Carlos Estêvão,
Ossrio da Gruta do Padre em Itaparica e
Algumas Notícias sobre os Remanescentes Indígenas do Nordeste,
Boletim do Mu-
seu Nacional
, XIV-XVIII, Rio de Janeiro, 1942, 163-165). Compare-se, como uma su-
gestão de passagem, esse Menino do Rancho com a dança simbólica do furto do espí-
rito dos mortos, a que Koch-Grunberg assistiu no Rio Airari, fronteira da Colômbia
(
Zwei Jahren Unter den Indianern
, Reisen in Nordwestbrasilien, 1903-1905, I, 133-
135, ed. Ernst Wasmuth, Berlin, 1909), onde cena idêntica, luta entre mascarados,
cacetes e ganchos semelhantes.
561
São flagrantes as semelhanças entre a atmosfera dessa festa solene do Menino
do Ranchoou mesmo entre a rapidamente mencionada “dança simlica” dos aborígines do
Rio Airari” e certos sucessos descritos em No Araguaia III. Vejamos que no cerimonial
pormenorizadamente noticiado por Câmara Cascudo realiza-se uma representação, na qual a
comunidade indígena se divide em três entidades atuantes: o próprio menino que é o protago-
nista, os pajés ou praiásque o querem tomar com o objetivo de lhe transmitir as sticas
tradições tribais” e um grupo de homens da triboque o
defendem
, pretendendo retê-lo na
existência mundana. Destarte, fica transparente a justificação sígnica do teatro iniciático: os
padrinhos” armados evocam as seduções da vida guerreira e profana, para a qual o menino
morre
quando se dá o seu arrebatamento pelos “encantados, sendo esse o lance que assinala
o ingresso liminar do noviço no círculo restrito dos que cultivam a vida sagrada. O lapso em
que dura a batalha alegórica denota o conturbado período de transição entre aquela vida e
esta. Nem é por outro motivo que se equipara essa tradição à “dança simlica do furto do
es-
pírito dos mortos
que ocorre em outras plagas. E no texto de
Magma
incidem os mesmos
componentes básicos: o menino índio” e os dois partidos que entram em disputa, ou seja,
Os carajás
de baixo
(
i. e.
, aqueles que, situados na beira inferior do Araguaia, espelham a
imagem da existência terrena) e “os carajás
de cima
(os que, posicionados na margem supe-
rior do rio, remetem a uma idéia ascensional de vida
post-mortem
); essa disposição, a propó-
sito, reedita de maneira respectiva o caso anteriormente traçado entre Zabelinha, a cachorra e
o
Kibungo-Gerê
. Cumpre minuciar que Araticum-uaçu, por seu turno, não é integrado, ao
longo de “No Araguaia III, em qualquer dessas fileiras que se confrontam, o que é bem
adequado ao seu mister de psicopompo pelos ambientes do mundo
intermediário
.
561
CASCUDO, 155, 490 (
sic
).
302
O aspecto cósmico da desavença na composição em pauta, bem como o caráter
sobranceiro do papel dos carajás de cima”, podem ser melhor visualizados por meio do am-
plo quadro em que tudo se insere:
A fogueira está acesa,
e, lá em cima, ainda há muitas fogueiras.
A maior delas é a estrela
fogo-grande-da-lua,
iaci-tatá-uu...
Note-se que nessa estrofe a expressão lá
em cima
se revela dúbia: o comple-
mento quer dizer respeito às fogueiras
acesas
pelos “carajás
de cima
ou já se alude desde
logo ao abençoante brilho das estrelas por sobre tudo? Seja como for, o que interessa é que
desta forma a colocação das fogueirasdesses carajás acaba sutilmente se confundindo com
o fogo celeste dos astros noturnos presididos pelo auspicioso fogo-grande-da-lua. Outros-
sim, concorre para o estabelecimento do efeito arcano da representação até mesmo a natureza
da assistência, que se manifesta de forma notável:
Alguém vai cantando, lá longe, lá longe,
uma voz dentro dágua, sem boca, sem garganta.
Tem uma luzinha passeando e pulando,
na praia comprida,
um fogo que o vento não espalha nem apaga,
um fogo do fundo, que deve ser frio.
E estão rasgando, na macega clara,
uma gargalhada fina.
São as três mães do índio órfão:
a Mãe do Ouro, a Mãe dÁgua, a Mãe da Lua...
562
Apesar de que a ordem na apresentação dos nomes difira da que foi usada para
a descrição dos comportamentos, Alguémque “vai cantando” como uma fantástica “voz
dentro dágua” certamente que é “a Mãe dÁgua”, introduzida em
Magma
pelo texto A Ia-
ra”, lá longe, lá longe,” ainda no primeiro terço, e a quem já foram dedicadas várias páginas
deste estudo. Porém, é útil buscarmos mais informações sobre os outros dois vultos sobrenatu-
rais que a ela se juntam. Acerca da “Mãe do Ouro, é novamente Câmara Cascudo quem en-
sina:
É um mito, inicialmente meteorológico, ligado aos protomitos ígneos, posteriormente
ao ciclo do ouro;
ubi est ignis, est aurum
. Os registros subseqüentes indicam uma
transformação. Vale Cabral: Mulher sem caba, que habita debaixo da serra do
562
Em ROSA, 2, 114, o quinto e o sexto versos desse trecho não são iniciados por artigo indefinido:
fogo
que o
vento” e
fogo
do fundo. Ainda, nessa versão os mesmos dez versos estão agregados à estância anterior, en-
quanto que em
id
., 1, perfazem uma estrofe autônoma.
303
Itupava, entre Morretes e Antonina, província do Paraná. Tem a seu cargo guardar as
minas de ouro. Onde ela está, é prova evidente que há ouro, e por isso tomou o nome.
Há poucas pessoas da localidade que afirmam tê-la visto(
Antologia do Folclore
Brasileiro
, 274). A informação é de 1884. Na região do S. Francisco é a zelação, es-
trela cadente, serpente-mãe-do-ouro, encantada (Manuel Ambrósio,
Brasil Interior
,
61). Em S. Paulo não há forma, mora nas grotas, persegue homens, e estes preferidos
deixam a família, seduzidos como por uma sereia; citam-na como uma bola de fogo
de ouro (Cornélio Pires,
Conversas ao Pé do Fogo
, 156, S. Paulo, 1927). No Rio
Grande do Sul é informe, agindo com trovões, fogo, vento, dando o rumo da mudança.
Noutra versão (Veiga Miranda,
Mau-Olhado
, 31-33, S. Paulo, 1925) a mãe-do-ouro
passeia luminosa, pelos ares, mas vive debaixo dágua, num palácio (
Geografia dos
Mitos Brasileiros
).
563
Ente ignífero que como a Iara exerce fascínio, a Mãe do Ouro, às vezes vista
“como uma bola de fogo de ouro, é então aquela certa “luzinha passeando e pulando,/ (...)
um fogo que o vento não espalha nem apaga,/ um fogo do fundo. Interessante peculiaridade é
a de que a Mãe do Ouro, ao menos em sua versão no imaginário gaúcho,
age
dando o rumo
da
mudança
: portanto, a sua presença nesta etapa da iniciação, alumiando por instantes o
ambiente ctoniano, deve funcionar como um propício presságio, pois que consoladoramente
acena com a invenção do ouro alquímico ao cabo dos trabalhos. E nessa ocasião, de fato se
confirmará que “
ubi est ignis, est aurum
, isto é, onde estiver o ardente
Magma
da alma, aí
mesmo estará, como um Sol, o ouro da divindade.
Por fim, temos a “Mãe da Lua”:
Ave noturna, seu canto melancólico e estranho, lembrando uma gargalhada de dor,
cercou-a de misterioso prestígio assombrador. Está rodeada de lendas e de supersti-
ções, espavorindo a gente do campo, personalizando fantasmas e visagens pavorosas.
Só quem haja ouvido o grito da mãe-da-lua pode medir a impressão sinistra e deses-
perada que ele provoca durante a noite.
564
A essa avantesma, como se vê, pertence aquela “gargalhada finaouvida no
poema rosiano, e que, conforme Câmara Cascudo, é uma gargalhada de dor, sinistra e de-
sesperada”.
São” essas então as três mães do menino órfão, as quais ilustram, de novo, o
conteúdo basilar de cada um dos terços mistagógicos de
Magma
: a Mãe dÁgua, que “vai
cantando
, relembra a longínqua alegria do nascimento do ser, como as
Águas que correm,
(...)
cantando
nas pedras a canção do mais adiante,
563
CASCUDO, 155, 455-456.
564
Id
.,
op
.
cit
., pág. 454.
304
de acordo com o que foi declarado em Águas da serra”. Depois da Nascente, segue-se para a
criatura uma extensa fase de penosa provação ao longo das orlas fluneas da existência, e
máxime agora, à beira do Araguaia, toda a dor sendo evocada pela condoída “gargalhadada
Mãe da Lua. Finalmente, a Mãe do Ouro, como uma alvissareira “luzinha passeando e pulan-
do, demonstra que, ao término dessa “praia compridapor onde o noviço caminha, a Foz
abrir-se-á para o Oceano. De sorte que uma das mães a “dÁgua” – preludia a saída, a outra
da Lua– plange a solidão e a terceira do Ouroprenuncia o retorno a Deus. No que
concerne à ordenação alterada desses procedimentos no texto, provavelmente se deva ela à
confusão que se apodera do aprendiz nesse lance.
Em face de tudo, ime-se a conclusão de que o índio órfãofaz referência,
concomitantemente, àquele “menino índio/ morto no mandiocal” e ao próprio poeta que há
tempos vem rezando o rosário e se submetendo às provas da iniciação. O qualificativo ór-
fão, nesse contexto, pode ser entendido sob duas intelecções que se conjugam: primeira-
mente, como indicativo da sensação experimentada pelo ser que se apartou da Alma Parens e,
em conseência, sente-se privado de seu divino Pai. Em segundo lugar, recordando-se que o
neófito revelou pouco interesse pela “históriada morte daquele curumim, a relação de orfan-
dade se estabelece entre o garoto índio e o poeta de Magma, pois aquele ressentir-se-ia do de-
samparo ideal a que foi relegado por este, de quem se torna, simbolicamente, órfão
565
; nessa
hitese, as expressões das três mães por meio do som e da luz (que denotam o fiat lux) cor-
respondem igualmente a uma tentativa de se chamar a atenção do adepto, acordando-o para o
significado cerimonial do arrebatamento da criança.
Ao ensejo, quadra voltar à estrofe inicial do carme, onde reencontramos a ne-
gligência com que o poeta encarou o assunto da morte do curumim. Se nos detivermos sobre a
particularidade de que o menino índiofoi deixado morto no mandiocale ele poderia ter
sido situado em qualquer outro lugar, mas o foi precisamente aí –, obteremos que a associação
de uma criança indígena à roça de mandioca naturalmente traz à memória aquela que talvez
seja a mais famosa de todas as lendas brasílicas, a de “Mani,
Menina de cujo corpo nasceu a mandioca, Manihot utilissima (...). A lenda de
Mani, que Couto de Magales registrou em 1876, é a seguinte: Em tempos idos,
apareceu grávida a filha dum chefe selvagem, que residia nas imediações do lugar em
565
Faz-se conveniente trazer à luz as raízes do vobulo órfão, conforme descritas por HOUAISS e VILLAR,
191, verbete orfan-: do lat. tar.
, que perdeu os filhos; órfão, da linguagem da Igreja, tomado
do gr. orphanós, vazio, privado de; órfão, em face do lat. orbus, a, um, privado de, esp. privado dos pais, ór-
fão, órfã, algumas vezes com o sentido de viúva; os der. e compl. têm igualmente o duplo sentido: orbitas,
, privação de pais, orfandade; viuvez; privação (em geral)...Diga-se que o simbolismo do órfão freqüen-
temente se aproxima do da viúva.
305
que está hoje a cidade de Santarém. O chefe quis punir no autor da desonra de sua
filha a ofensa que sofrera seu orgulho e, para saber quem ele era, empregou debalde
rogos, ameaças e por fim castigos severos. Tanto diante dos rogos como diante dos
castigos a moça permaneceu inflexível, dizendo que nunca tinha tido relação com
homem algum. O chefe tinha deliberado matá-la, quando lhe apareceu em sonho um
homem branco, que lhe disse que não matasse a moça, porque ela efetivamente era
inocente, e não tinha tido relação com homem. Passados os nove meses, ela deu à luz
uma menina lindíssima e branca, causando este último fato a surpresa não só da tribo
como das nações vizinhas, que vieram visitar a criança, para ver aquela nova e des-
conhecida raça. A criança, que teve o nome de Mani e falava precocemente, morreu
ao cabo de um ano, sem ter adoecido e sem dar mostras de dor. Foi ela enterrada
dentro da própria casa, descobrindo-se e regando-se diariamente a sepultura, segun-
do o costume do povo. Ao cabo de algum tempo, brotou da cova uma planta que, por
ser inteiramente desconhecida, deixaram de arrancar. Os ssaros que comeram os
frutos se embriagaram, e este femeno, desconhecido dos índios, aumentou-lhes a
superstição pela planta. A terra afinal fendeu-se, cavaram-na e julgaram reconhecer
no fruto que encontraram o corpo de Mani. Comeram-no e assim aprenderam a usar
da mandioca (134-135,
O Selvagem
). O nome mandioca proviria de
Mani-óca
, casa
de Mani. É lenda da raça tupi
.
566
É permitido dizer que a lenda de Mani aparenta-se, no essencial, com a subs-
tância soteriológica da missão de Cristo: o corpo albino da menina, branco como a stia,
nasce de uma concepção virginal e misteriosa com o único objetivo de morrer sem pecado
para renascer sob outra forma, tudo cristalinamente refletindo o sacrifício da inocência e da
pureza com o escopo de proporcionar um alimento simlico aos que sabem
reconhecê-las
. E
é assim que os índioslograram
reconhecer
no fruto que encontraramuma nova manifes-
tação do corpo de Mani, como se num oferecimento: Tomai, comei; isto é o meu corpo
(
Mateus
, 26.26,
in fine
). Esse mesmo simbolismo assiste ao menino índio/ morto no mandio-
cal, apenas pela sua condição de infante e por sua localização no roçado (com o que Guima-
rães Rosa granjeia para os versos um máximo de significado poético mediante uma grande
economia de significantes): o curumim morre para que o poeta se aperceba de que não há
morte, mas tão-só a
passagem
do profano para o sagrado. Logo, a essa “históriao neófito de
Magma
deveria intuitivamente ter concedido uma melhor atenção. E não o tendo feito, ele
frustra todo o sentido do ritual mistagógico que se lhe descortina: cuidemos que, quanto aos
dois lados da contenda, eles inicialmente desempenham suas partes guerreiras, mas pouco de-
pois entram em armiscio, quando o Capitão Uachiatê,” enviado dos de cima”,
traz
,
de
paz, alguns garrafõesde aguardente aos
três
índios velhosque coordenam as ações dos de
baixo (Cobra-grande, Arco-Verde e Ariranha”); deste modo entorpecidas as índoles acirra-
das,
Não vai ter mais briga...
566
CASCUDO, 155, 465.
306
e, com o término do entrevero, a cerimônia decerto que resta prejudicada, pois então o noviço
não tem mais a oportunidade de testemunhar o predonio dos de cima” sobre os de baixo,
i. e., do sagrado sobre o profano, através do arrebatamento do menino. Frise-se que a explica-
ção para o desinteresse dos dois grupos no combate é exatamente a momentânea incapacidade
do iniciando em reconhecer a importância da “históriada morte do curumim e, por conse-
guinte, em reconhecer os atos solenes que a partir daí se desenvolvem. Essa atitude do apren-
diz, motivando a trégua acomodacia, acaba por exigir do mestre um audacioso gesto repara-
tório: como um esforço extremo a fim de proporcionar ao poeta a oportunidade de aprender
definitivamente sobre a morte, o próprio Araticum-uaçu, que lhe é bastante próximo, dever-
se-á entregar à imolação. Para que tal acontecimento transcorra, o psicopompo indígena age
com o fito de provocar uma reação:
De manhã cedo,
os chefões estão dormindo, emborcados,
e deve estar bem longe Araticum-uaçu.
Mas, no trilho da Missão, tem um homem morto,
grande e feioso como uma capivara.
É o Capitão Uachiatê,
com a caba quebrada a porrete,
e a cara medonha sujando de sangue
os espinhos da moita de joá bravo.
567
O enunciado poemático não explicita a autoria de Araticum-uaçu no episódio.
Contudo, a suposição de que tenha sido ele quem matou o Capitão Uachiatê fica corroborada
ante a interferência dos diversos elementos circunstanciais. O primeiro fator a apontar para
essa possibilidade é a bem conhecida natureza gil do guia carajá, característica já explorada
nos poemas antecessores do ciclo No Araguaia”. Outrossim, nenhuma outra das personagens
da peça sob discussão representa possuir condições para cometer o ato: os chefões estão
dormindo, emborcadose bêbados; o Capitão Bacuriquirepa” e o Capitão Codunê” são pre-
senças por demais vagas; o poeta e o menino certamente que não o fariam; e, se qualquer das
espectrais três mães do menino órfãoo fizesse, provavelmente utilizaria um meio mais pro-
digioso do que um porrete. Acrescente-se que é justamente esse tipo de arma que Araticum-
uu alisava, em No Araguaia II, quando acalentava a idéia de travar combate com os três
guerreiros tapirapés. O detalhe de que o nome de Araticum-uu tenha sido posto em conti-
güidade com a nocia do homicídio do Capitão Uachiatê é outro fator relevante, do ponto de
vista da construção do discurso. Concluindo, é somente Araticum-uaçu quem tem um motivo
567
Em ROSA, 2, 115, o adjetivo final, bravo, foi eliminado.
307
para prática da ação: como previamente já se aludiu, o amigo do poeta não mata a vítima por
desforra própria ou maldade, e sim com a única razão de dar causa a uma vingança mortal que
os carajás de cima façam recair sobre o agressor de um dos seus Araticum-uaçu mata para
se oferecer ele próprio à morte. Por outro lado, nunca é demais trazer à mente que transitamos
num território simlico e, destarte, o assassinato de Uachiatê por Araticum-uu não pode de
jeito algum ser equiparado a uma violência gratuita, devendo sim ser necessariamente tomado
como um signo poético, cujos contornos não são desenhados pelo pincel vulgar da lógica, mas
pela pena transcendente da mágica. Além do que, Uachiatê mesmo é um dos de cima” e,
neste caso, disposto ao que for preciso para auxiliar a ascese do noviço custodiado por Arati-
cum-uu: na mansão dos mortos, onde o poeta está, tudo se concatena em função do trans-
porte dos transeuntes às esferas mais altas.
Esgotadas as considerões sobre essa peça, importa nos adiantarmos até o
carme seguinte, Madrigal, que parece vir à baila como o mais simples dos textos que com-
em a estrutura do Desenho octogonal. Curto e centrado no símbolo da árvore, vale trans-
crevê-lo por inteiro:
1
No tronco do jequitibá,
que estavas abraçando,
colando-lhe o corpo, do rostinho aos pés,
vejo os arranhões fundos,
5
onde o canguçu, quase de pé,
afia as garras,
e, mais embaixo, a casca estraçalhada,
onde os caititus m acerar os dentes.
O tronco do jequitibá” é nitidamente o eixo em torno do qual todo o poema se
desenrola. De se observar o destaque que o poeta empresta aos ferimentos infligidos ao jequi-
tibá pelos animais: os arranhões fundosdas garrasdo “canguçue as mordeduras com
que os “caitituslhe estraçalham “a casca”. Por contágio, mesmo o abraço com que alguém
enlaça a árvore, “colando-lhe o corpo, do rostinho aos pés, e que em princípio deveria ser
afetuoso, ao final da composição representa ser quase tão lancinante quanto as presas dos bi-
chos – ou se não chega a tanto, pelo menos se afigura inócuo, sem o condão de conseguir
apagar as cicatrizes da ferocidade, já que até o delicado rostinhoe os péspoderiam ser
marcados a fundo, mais facilmente do que o tronco o é, pelas garras e “dentes” afiados.
O jequitibá, como qualquer árvore, surge como um dos mais eminentes signos
ascensionais:
308
Símbolo da vida, em perpétua evolução e em ascensão para o u, ela evoca
todo o simbolismo da verticalidade (...). Por outro lado, serve também para simboli-
zar o aspecto cíclico da evolução cósmica: morte e regeneração. Sobretudo as fron-
dosas evocam um ciclo, pois se despojam e tornam a recobrir-se de folhas todos os
anos.
A árvore e igualmente em comunicação os três níveis do cosmo: o subter-
râneo, atras de suas raízes sempre a explorar as profundezas onde se enterram; a
superfície da terra, através de seu tronco e de seus galhos inferiores; as alturas, por
meio de seus galhos superiores e de seu cimo, atraídos pela luz do u. (...) Reúne to-
dos os elementos: a água circula com sua seiva, a terra integra-se a seu corpo atras
das raízes, o ar lhe nutre as folhas, e dela brota o fogo quando se esfregam seus ga-
lhos um contra outro.
568
Desta forma, a árvore, que se alça do solo e lança a copa rumo ao firmamento,
vigora como uma ilustrão da atividade anagógica de toda criatura que intenta a união aní-
mica com Deus. Bem por isso ela reflete “também a coluna vertebral a sustentar o corpo hu-
mano, templo da alma”, e remete, em variadas culturas, à idéia de escada para a progressão
stica, como acontece, por exemplo, entre os índios puebloda América do Norte. Num
entendimento semelhante, Para os muçulmanos xiitas de rito ismaelita” ela
simboliza a
hakikat
, i. e., o estado de beatitude onde o místico, ao ultrapassar a duali-
dade das aparências, encontra a Realidade suprema, a Unidade original onde o ser
coincide com Deus.
569
É sobretudo interessante fazer notar que, nos rituais xamânicos da Sibéria, “as
etapas da ascensãoiniciática são indicadas por Incisões feitas no tronco
570
de uma bétula.
À luz desse costume ancestral, podemos compreender as arranhaduras e as mordidas gravadas
no jequitibá do Madrigalrosiano como sinais que relembram os sofrimentos pelos quais o
peregrino já passou em sua trajetória gstica: o canguçu e os caititus denotam, portanto, as
investidas com que o mundo busca se opor à ascensão do ser. Nesse quadro, o rostinho e os
pésmencionados manifestam, ao que parece, o amoroso amplexo consolador com que a di-
vindade acolhe a criatura. E o jequitibá, por via de conseência, significa o próprio neófito
que, malgrado os ataques, permanece incólume em sua subida.
Todavia, convém insistir em que o tom da presente composição não soa de
modo algum confiante ou confortado: o que se demonstra é que neste momento o noviço
presta mais atenção às feridas que lhe gravam a superfície (isto é, “a casca”), e menos à capa-
cidade do seu próprio cerne de superar as dificuldades e prosseguir se elevando. Eis a razão
pela qual a referência ao afeto se dá no pretérito, como se se tratasse de algo que já não suce-
568
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 84.
569
Id
.,
op
.
cit
., pág. seg. Grifo dos autores, em negrito.
570
Id
.,
ibid
.
309
de e mal deixa lembranças: a afirmação de que “estavas abraçandoé o reverso eufestico
de não abraças mais, o que e a nu todo o desamparo no qual o ser se reputa estar durante a
estação no reino dos mortos. Em contrapartida, ambas as agressões são referidas no presente
(afia as garras” e vêm acerar os dentes), dando a entender que elas, além de deixar lesões
duradouras, continuam ou podem continuar a ocorrer. Deve-se então perceber que o carme
adota uma ordem descendente na exposição dos machucados impostos pelos animais: alude-se
primeiro aos arranhados produzidos pela grande onça-pintada, quase de pé”, e depois às
dentadas feitas mais embaixopelos caititus de menor porte. É como se os gravames dos bi-
chos freassem o crescimento do jequitibá, e mais até, como se o empurrassem em direção à
terra, impedindo-o de se erguer e por isso é que na peça não há qualquer menção aos ramos
que se aproximam do u, sendo a árvore só troncoarranhado e “casca estraçalhada; de
igual maneira, porventura a breve extensão do poema se deva a essa impressão sentida pelo
poeta. Ainda dentro desse raciocínio, pondere-se que se Araticum-uaçu foi dantes apresentado
como nove vezes vitorioso sobre a onça preta, do que traz troféus (vide “No Araguaia I),
agora o aprendiz, consubstanciado no jequitibá, apenas tem para mostrar os arranhões com
que o felino pintado o ofende.
O sofrimento, porém, não constitui empecilho invencível para a ascese, sendo,
ao contrário, um seu pressuposto. Tem então pertinência adicionar que a árvore mantém es-
treitíssimas ligões com o símbolo da cruz, especialmente a Cruz de Cristo, a qual, sendo um
instrumento de suplício e de redenção, (...) reúne em uma única imagem os dois signi-
ficados extremos desse significado maior que é a Árvore: pela morte para a vida – per
crucem ad lucem, pela cruz para a luz.
571
Simbolismo em tudo ajustado ao jequitibá que em Madrigalostenta seus es-
tigmas. De qualquer forma, ainda que o poeta por ora aparentemente não se convença disto,
essa composição já augura o crescimento vegetal a se dar nos textos da última parte do terço
final de Magma.
O poema subseente é “No Araguaia IV, traçado que encerra o Desenho
octogonal. Seu fulcro é a morte de Araticum-uaçu, certamente em vingança dos carajás de
cima pelo assassinato do Capitão Uachiatê:
Quando Coroizurecê se escondeu atrás da perobeira,
e Araticum-uaçu caiu morto do batelão,
empalitado de flechas como um ouriço afogado,
o rio o levou para um remanso bonito,
571
Id., op. cit., pág. 90. V. tb., na mesma obra, o verbete CRUZ.
310
forrado com todos os lírios dágua:
nelumbos azuis, nenúfares rubros e ninféias alvas.
572
Comecemos por esquadrinhar determinadas nuances do simbolismo atinente ao
instrumento que ocasionou a morte do índio: a
flecha
, que na maioria das vezes representa a
arma talhada na madeira”
573
arrea e sempre avoca os signos, que lhe são correlatos, do raio
solar e do relâmpago. Com tais caracteres, a seta serve otimamente para manifestar o estabe-
lecimento da comunicação stica entre os planos celeste e terrestre, o que vale dizer, entre o
ser humano e a deidade, de tal maneira que Orígenes, um dos mais insignes teólogos cristãos
do séc. III, numa homilia chegou a qualificar Deus como “arqueiro. Em consonância, temos
que a flecha,
No seu sentido descendente, é um atributo do poder divino, tal como o raio punitivo, o
raio de luz ou a chuva fertilizante; os homens que Deus pode utilizar para executar
suas obras são chamados, no Antigo Testamento, de
filhos da aljava
. Em seu sentido
ascendente, a flecha está ligada aos símbolos da verticalidade; significa
a retidão
totalmente aérea de sua trajetória, que, desafiando a gravidade, realiza simbolicamente
uma libertação das condições terrestres
(...).
De modo geral, a flecha é o
símbolo universal da ultrapassagem de condições
normais; é uma liberação imaginária da distância e da gravidade; uma antecipação
mental da conquista de um bem fora de alcance
(...).
574
Adrede, traga-se à tona o famoso caso da epifania experimentada no séc. XVII
pela carmelita espanhola Santa Teresa de Ávila, a qual celebrou a própria iluminação em ver-
sos que páginas atrás já foram colados, e que tem cabimento reaver:
Atirou-me com uma seta
envenenada de amor
e minha alma ficou feita
una com seu Criador.
575
Diga-se de passagem que o relato dessa bem-aventurança foi a inspiração para
uma escultura das mais expoentes da iconografia barroca,
O êxtase de Santa Teresa
, de Gian
Lorenzo Bernini, em que a flecha, empunhada pelo anjo do Senhor, é um componente de for-
ma singela mas de valor capital como propiciatória para “uma libertação das condições ter-
restres” e conseqüente advento na glória da presença deífica, glória tão intensa que acaba por
transpassar dolorosamente o corpo frágil da criatura.
572
Em ROSA, 2, 117: Quando
Coroisurocê escondeu
, sem o pronome pessoal reflexivo.
573
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 436.
574
Id
.,
op
.
cit
., pág. 435. Grifos dos autores, que sublinho.
575
V. a nota 324, pág. 175 (Introdução ao Capítulo III).
311
Diante de tudo, é altamente expressivo que no carme de Magma Araticum-uaçu
tenha morrido
empalitado de flechas como um ouriço afogado,
em razão do que talvez se possa, com alguma licença, invocar sob uma óptica transcendente o
aforismo de Novalis: O porco-espinho – um ideal
576
. Utilizada, aliás, como epígrafe à edi-
ção brasileira de Pólen, esta máxima foi originariamente aposta pelo romântico alemão como
nota à margem do seguinte excerto de Friedrich Schlegel:
Um fragmento tem de ser, igual a uma pequena obra de arte, totalmente sepa-
rado do mundo circundante e perfeito em si mesmo como um porco-espinho.
As circunstâncias simlicas do acontecimento em No Araguaia IV,
aliadas à atmosfera de teor anagógico das peças predecessoras, induzem a crer que, pela morte
em função da descarga de flechas (as quais são metaforizadas nas cerdas do ouriçoou
porco-espinho), o índio não apenas fica “totalmente separado do mundo circundantemas,
de fato, é erguido a se tornar perfeito” através da comunhão anímica com a divindade. E
ainda outros dados poemáticos, conforme logo veremos, comprovam esse asserto. Em
sintonia, é de se trazer à lembrança que, no carme “Caranguejo(do primeiro terço de
Magma), o ouriçofoi reputado por Guimarães Rosa como um dos seres evoluídos, os
quais, assim como o filósofo” e o asceta, têm a habilidade de se retrair, buscando a
sabedoria verdadeira na heautognose.
Prosseguindo, é por demais relevante a imagem do cadáver de Araticum-uaçu
flutuando, num remanso bonito, por entre “os rios dágua”, tal como a Ofélia
rimbaldiana
577
. Por esta maneira, o corpo do indígena é levado a participar idealmente da
mesma natureza sígnica desses rios, natureza que ainda abrange, de modo genérico, outros
gólfãos como os nelumbos, os nefares” e as ninféias. Os aspectos precípuos do
simbolismo do lírio, quer se fale nas variedades aquáticas ou nas de terra, podem ser colhidos
na tradição hebraica do Cântico dos Cânticos, livro onde, em diversas passagens, o rio de
pétalas brancas (tal qual as ninféias alvas) comparece tanto como o signo magnificente “que
576
NOVALIS, 226, 10. Grifei.
577
RIMBAUD, 252, 73-74: Na onda calma e negra, entre os astros e os us,/ A branca Ofélia, como um gran-
de rio, passa;/ Flutua lentamente e dorme em longos véus...(grifei).
312
restitui a vida pura, promessa de imortalidade e salvação
578
, quanto como o símbolo da
eleição, da escolha do ser amado
579
. Já no Novo Testamento,
O rio simboliza também o abandono à vontade de Deus, isto é, à Providência, que
cuida das necessidades de seus eleitos:
Observai os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam
(Mateus,6, 28). Assim abandonado entre as mãos de Deus, o rio está, entretanto,
melhor vestido que Salomão em toda a sua glória. Ele simboliza o abandono místico à
graça de Deus.
580
Outrossim, na mitologia grega essa flor, em sua tonalidade rubra como a dos
nefares, traduz
o final da metamorfose de um favorito de Apolo, Jacinto, e (...) trata-se aqui do lírio
martagão (o lírio-vermelho).
581
A par de outros significados por ora inoportunos, o rio congrega, enfim, um
proeminente “Valor ao mesmo tempo fúnebre e sublime
582
. De todo o exposto se extrai que,
embora o passamento de Araticum-uaçu se configure, sob um viés mundano, como uma triste
efeméride, sob uma perspectiva de interesse metafísico fica bastante ressaltado o supremo
sentido de “final da metamorfosede um eleito, transportando-se o indígena, por meio do
“abandono stico à gra de Deus, para uma nova “vida pura”. Araticum-uaçu, destarte,
remata com êxito o seu próprio itinerário ascético, com o que se passa a incluir no número
daquelas ditosas almas, afogadas,mergulhadas no mar dos nefares grandes” com o qual
o neófito sonhou em Lunático
583
. Por causa disso, a homenagem funeral que as aves da
selva e outros animais rendem ao carajá tem um majestoso acento de absoluta serenidade:
Um lençol de garças se abriu por sobre o poço,
um martim-pescador verificou a morte, com bicadas,
e os marrecos, de barrete cor de folha,
colete pardo e colarinho branco,
grasnaram longos réquiens pelo ar.
Lontras choramingaram.
Os jaburus conservaram, impassíveis,
as pernas cruzadas em 4 de algarismo.
E, até a hora de chegarem as piranhas,
578
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 553, verbete LÍRIO (DO VALE). Grifo dos autores.
579
Id., op. cit., pág. seg., verbete LÍRIO (LIS). Grifei.
580
Id., ibid. Primeiros grifos meus, os demais, dos autores. V. a nota 381 e, de modo geral, os comentários acerca
de Madrigal gravado em laca”, um dos Poemas(pág. 199, Capítulo III, tópico 2).
581
CHEVALIER E GHEERBRANT, 160, 553-554. Grifei.
582
Id., op., cit., pág. 554. Grifei.
583
V. as págs. 161-162 (Capítulo II, tópico 4).
313
houve um extenso luto de asas nas árvores da margem.
584
Em especial a vinda das piranhas, que para algumas populações amazônicas
representam o
espírito do rio
, faz notar o total aniquilamento da carne (ou da
sarx
, como era
chamada pelos antigos gsticos) e portanto o irrefragável desatamento dos los que
prendiam o
pneuma
(a alma humana que é atraída para Deus) ao
soma
(o corpo, ou, melhor
dizendo, a percepção viciada do universo, de acordo com o que é proporcionado pelos toscos
canais da
sarx
).
Contudo, mais significativo ainda é que mesmo
O rio parou todo marulho no remanso,
mas não deixou, um só minuto de correr.
Porque tem pressa
em descer para a foz, no Grande Rio,
onde borbulha,
nos dias equatoriais, nas noites amazônicas,
abraçado ao Tocantins, rolando juntos
para o suicídio no mar...
585
Nesse ponto, o rio, que “
parou todo marulho
(...), mas
não deixou
(...) de
correr
, corresponde ao espírito de Araticum-uu. No instante em que o corpo do índio tom-
bou morto do batelãopara as águas e foi arrastado para o remanso, constata-se a cessação
de todo o ruído e toda a turbulência (o marulho) picos da existência material – ou seja, a
agitação física se aquieta. Entretanto, se a matéria se dissipou, devorada que foi pelas pira-
nhas, nem por isso a alma da correnteza fluvial deixou de correr, pois que agora, mais do
que nunca, esse ímpeto tem a sua fluidez desimpedida, movendo-se então com pressade se
unir ao Grande Rioou mar. Reflita-se que a chegada à foz” exprime a definitiva soltura
da corredeira flunea em relação aos limites terrosos do leito que a constrangiam, visto que
as águas do rio deixam de pertencer ao rio quando se derramam no marsem bordas e sem
fundo. Poeticamente, isso equivale a dizer que o espírito do carajá, “abraçado ao Tocantins
em cuja corrente se consubstancia, atinge afinal a tão desejada
Alma Mater
, que é identificada
com o oceano; e tal encontro simboliza que o
pneuma
, uma vez liberado do aperto do aspecto
físico e logo imerso na imensidade marítima, borbulhadesenvolto através do tempo, por
584
Nesse fragmento, o sétimo verso foi inicialmente redigido: Os jaburus
ficaram
impassíveis, tendo sido o
verbo riscado e sobreposta a substituição manuscrita; o verso seguinte era introduzido por uma palavra pequena
(aparentemente de três letras), rasurada com rabiscos que impedem a leitura (talvez possa ser com). Esses
mesmos dois versos foram eliminados em ROSA, 2, 117, que registra ainda outra rápida dissensão:
o
martim-
pescador.
585
Sic
.
O texto em
id
.,
ibid
. diverge ao excluir o complemento
, um só minuto
; essa alteração provoca a junção
do segundo e do terceiro versos do trecho num só, o qual, seguido pelo próximo verso, fica assim: mas não dei-
xou de correr, porque tem pressa/
de
descer para a foz, no Grande Rio,.
314
entre a tórrida alternância da luz dos dias equatoriais” com a escuridão das noites amazôni-
cas. O suicídio no mardemonstra por fim que a morte de Araticum-uaçu foi por ele con-
sentida e buscada como via de acesso ao Grande Rio. De resto, venha à recordação que o
desaparecimento desse guerreiro já fora veladamente previsto em Ritmos selvagens
586
.
Ademais, aproveita consignar que a composição sob exame, posto que arranja-
da numa única estrofe, deixa bem assinaladas as três diferentes etapas: os versos 1 (Quando
Coroizurecê...) a 6 (nelumbos azuis...) focalizam o momento exato em que se dá a morte
de Araticum-uu, sua “terrível parábola” pessoal; os versos 7 (Um lençol de garças...) a 16
(houve um extenso luto...) detêm-se sobre os préstimos de condolência dos bichos ribeiri-
nhos pela partida do índio, como se a descrever ligeiramente a passagem pelo mundo inter-
médio que é o caminho percorrido pela alma desde o remanso” até a foz(deixando-se le-
var pela corrente”, como proposto em No Araguaia I); e, a partir do verso 17 (O rio pa-
rou...) até o final, acompanha-se a culminante chegada da alma ao mar. Ao poeta que reza os
terços, tendo já passado pela morte cerimoniática e por ora estando no ambiente ctônico, cabe
não apenas observar, mas principalmente interiorizar o máximo exemplo de abnegação apre-
sentado pelo mestre indígena e continuar avante, até que consiga ele próprio alcançar o
Grande Rio. E finda-se assim o sapiente magistério de Araticum-uaçu, cujo mais puro âma-
go é crístico: viver para Deus é morrer para o mundo.
Como fecho à ocupação com os poemas que delineiam o Desenho octogonal,
faz-se oportuno aperfeiçoar a exegese do nome de Araticum-uaçu, sobre o que se principiou a
discorrer quando ainda era visto No Araguaia I
587
. Consideremos que, se o decompuser-
mos, é possível ler nesse nome os vobulos tupis ara, tykú e uaçu. Uaçu é sufixo que indica
o grau aumentativo. Ara é uma dicção para a qual existem diversas traduções, das quais as
que mais nos importam são as que vertem os substantivos Dia, tempo, claridade; época, esta-
ção do ano, ou ainda “Alto, parte superior de, conforme explica Silveira Bueno
588
; outros-
sim, é assaz significativo que, em português, ara sinonimize com altar. Quanto a tykú, segun-
do Gonçalves Dias, em tupi quer dizer Líquido, coisa quida
589
, o que não deixa de se mos-
trar vinculado à ambiência justafluvial distintiva dos quatro carmes transcorridos No Aragu-
aia”; todavia, o mais interessante é que, foneticamente, revela-se até mais natural ler aí a pa-
lavra hebraica tikún, restituição, que na doutrina cabastica luriânica exprime a tarefa ca-
586
V. neste estudo as págs. 105-110 (Capítulo II, tópico 2), principalmente a nota 196, onde se dá a passagem
para o texto Luar.
587
Remeto às págs. 265-267 deste mesmo tópico.
588
BUENO, 146.
589
DIAS, 162.
315
bente ao ser humano de se restaurar na unidade de essência com Deus, por meio das práticas
religiosas contemplativas e poéticas
590
. De modo que ara-tikún-uaçu pode tranqüilamente ser
compreendido como o grande tempo ou a grande época (ou ainda o grande altar) de reinte-
gração do ser na divindade, o que não só se aplica ao término da viagem do carajá como
também pressagia, para o noviço de Magma, a vindoura conclusão iluminativa do longo des-
fiamento do rosário. Essa leitura, que toma assim Araticum-uaçu” como um neologismo de
significado e que se aia na construção de um termo híbrido, com dois componentes tupis e
um hebraico (ou um português, um hebraico e um tupi), não parece ser destoante do que co-
mumente se verifica na literatura rosiana, bastante rica em hibridismos: verbi gratia, o título
Sagarana, formado por um elemento tupi (-rana, semelhante”) conectado a um outro escan-
dinavo (Saga-, tradição, i. e., narrativa tradicional) e que deve ter sido criado por Guimarães
Rosa poucos anos as a escritura de Magma. Não invalida esse raciocínio o fato de que a di-
ção araticum-uujá constava previamente do léxico da ngua portuguesa como designati-
va de certa espécie de fruto: tem-se aqui que a neologização, em lugar de congregar numa só
lexia inédita fatores dispersos por outras lexias preestabelecidas, opera por sobre o vocábulo
dado revitalizando idealmente os mesmos fatores que nele já se encontravam. Poder-se-ia di-
zer: trata-se de uma palavra port-manteau que é nova não de fora para dentro (na aparência),
mas de dentro para fora (no imo), quem sabe se uma verdadeira heautognose léxica que, por
isso, é hábil a manifestar de maneira exuberante o renascimento anímico tão aguardado pelo
crente. Então, como quer Guimarães Rosa, o que há é simples oração ou poesia; e pura
591
.
2. MANHÃ DE FINADOS
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
FERNANDO PESSOA,
Iniciação
Em seguida, instala-se no livro de 1936 um outro grupo poemático, integrado
pelas peças Toada da chuva”, Assombramento, Tentativa”, O gado, Necrópole,
Paraíso filosófico” e Saudade”. Nesse acervo, ainda ambientado no mundo subterrâneo, o
fio condutor consiste no lento e gradativo despertar do neófito para a sua presente condição
590
V. atrás a nota 137 (pág. 84, Capítulo II, tópico 1).
591
ROSA, 9, 153 (Buriti).
316
mortuária. E a tomada dessa apercepção, de conformidade com o que há tempos vimos discu-
tindo, revela-se como um quesito prévio logicamente indispensável para que mais tarde se
possa proceder à competente renúncia dos despojos materiais e, portanto, para que afinal se
ultime a futura renascença.
Ora, o acontecimento ensejante de tal despertar não é senão a morte de Arati-
cum-uu, que teve lugar em No Araguaia IV” e faz emergir no aprendiz, de modo catárti-
co, um sentimento que estava sendo cuidadosamente recalcado quando ainda havia a compa-
nhia forte do guia carajá: a consternação, solidária com o “extenso luto de asas nas árvores da
margemdaquele poema. De se anotar, então, que, dentro do plano geral do panorama post-
mortem mistagógico, No Araguaia IVse constitui num tipo de quina geométrica, na qual
se tocam um antes e um depois: o segmento anterior, que corresponde ao Desenho octogo-
nal, refere-se ao período em que o noviço, combalido pelo baque de seu decesso rituastico,
tem dificuldades em admitir o estado recentemente adquirido, e em vista disso é submetido às
encenões sacras que desde a Antigüidade têm por fito preparar o adepto para tal aceitação;
quanto ao segmento posterior, que se aia nos carmes que passamos a analisar agora, res-
peita com precisão ao estágio no qual se observa o início do surtimento do efeito pretendido
pelas representações sagradas, das quais a morte do índio é o decisivo e derradeiro ato.
Desta forma, a composição contígua a esse transe é exatamente “Toada da chu-
va”, inauguratória do novo ciclo e na qual se plange um luto difuso que, disseminado em meio
a uma garoenta “manhã de Finados, a princípio se explica em razão do passamento do indí-
gena. No entanto, espraiando-se o pesar ao longo dos poemas seguintes, aos poucos o poeta
parece ir percebendo que, em verdade, ele está se lamentando também por si mesmo, reco-
nhecimento esse que culmina no dolorido lirismo de “Saudade”, texto final da série. Em
suma, o luto por Araticum-uaçu é o pretexto que dá oportunidade para que o neófito admita a
ocorrência da sua própria morte.
O desconsolo diante do eu morto, pois, é a nuança que acinzenta a maior parte
dessa estação iniciática recém-aberta. Nesse concerto, decerto que não se afigura confortável,
para uma personalidade por ora ainda presa aos apelos da matéria, o fato de se achar perfilada
entre os Finados, de sorte que, a par do desenvolvimento da conscientização pessoal da
morte, a tristeza que se apodera do peregrino também vai paulatinamente se agravando. De-
corre daí que em quase cada uma das peças que se sucedem nesse grupo vão surgindo outros
psicopompos, cuja missão condolente é auxiliar o poeta a prosseguir na viagem espiritual: em
Toada da chuva, é o próprio aprendiz quem voluntariamente parece recorrer à
317
Chuva boa,
chuva meiga,
com a qual entabula uma prosopopéica conversa, à procura de respostas para as dúvidas que o
estão afligindo. Depois, no clima tenebroso do Assombramentoque assalta “no cemitério,
até mesmo “a noite, por atemorizante que seja, chega a enviar os seus cachorros (...) para
(...) socorrerquem necessita de ajuda. As essa paisagem noturna, no carme consecutivo
raia a manhã, a qual se
esforça
para mostrar, tão alto,
um corisco de esperança...
592
Mas é apenas uma “Tentativa”, conforme se intitula essa composição. Em con-
tinuidade, vem O gado, que, a despeito de ser caracterizado como um
filósofo pessimista,
é ainda mais um guia que aparece para olhar por um instante pelo iniciando e insuflar-lhe
ânimo. Seguem-se a esse quelônio o “elefante Iriarte” e até o deus Vishnu, os quais, embora
compareçam como rápidos figurantes, possuem igualmente suas lições a ministrar, tendo
como fundo o horizonte desolador da “Necrópole. Por fim, no mais ameno Paraíso filosófi-
coos psicopompos são venerandos “anciãos,
homens de túnica longa,
como os magos da Rosa-Cruz.
Já em Saudade”, o neófito se encontra só, porque esse poema é o passadouro
entre a Manhã de Finados” e o conjunto de textos subseente, A noite escura, em que a
solidão impera. Contudo, Saudadedeve-se contar entre os componentes do ciclo em pauta
porque nessa pa ainda se detecta, como indica o título, aquela nostalgia magoada pica da
emoção lutuosa, sem que se caia de todo no desespero empolgante que se alastra pelo outro
agrupamento.
Assim concluídas as preliminares, fiquemos por enquanto com a melancólica
Toada da chuva. Composta por oito estrofes, é útil reproduzi-la na íntegra:
1
Chove e faz frio.
Posso vir ao passado,
porque a chuva cai, como um estribilho
de dedos brancos num teclado manso,
592
Em ROSA, 2, 125: para
riscar
, tão alto.
318
5
disciplinada, como uma velha trova,
e o meu passado é frio.
(Chuva fina,
chuva fria,
10
desfiando sem cessar...
Ontem foi dia de festa,
e a chuvinha veio, lesta,
todas as flores regar.
Hoje é manhã de Finados,
15
os túmulos já estão lavados,
e a chuva não quer parar...)
Vara o ar um feixe
de flechas oblíquas,
ferindo nas poças mil mariposas,
20
que ruflam, doidinhas, as asinhas de água.
Nas lagoas do asfalto, há círculos convergentes,
entretangentes, a abrir e a fechar.
E da beira de um telhado,
cai, comprido e constante, um jorro claro,
25
que espirra na calçada,
onde uma aranha de vidro esperneia,
pendurada de um fio de sol molhado.
(Chuva bela,
chuva leve,
30
que te debulhas no ar...
Se és tão triste nas goteiras,
por que tuas mãos, zombeteiras,
m nas vidraças tocar?!...
Mas, junto a cada goteira,
35
se sempre um poeta a escutar?!...)
As mãos da água,
frias mãos de fada,
escorrem dedos longos,
alisando as árvores e as casas.
40
Cada folha verga, sob as grandes gotas,
cada casa esfria, sob as telhas úmidas.
(Chuva santa,
chuva clara,
como a toalha de um altar...
45
Por que tanta cousa impura,
tanto pecado e amargura,
daqui não podes lavar?!...
Quanto mais desço, a enxurrada
mais suja não vês rolar?!...)
50
Nas portas, nas janelas,
sob os toldos,
há gente parada, como insetos presos.
E quando passar a chuva,
toda a cidade destapada e clara,
319
55
irão pensar que não mais os isolam
outras úmidas campânulas de cristal...
(Chuva boa,
chuva meiga,
que assim me vens consolar...
60
Se no céu estão chorando,
por que preciso chorar?!...)
593
Visualmente, chama a atenção a diferença no arranjo das estâncias na página.
As de mero ímpar permanecem à direita, enquanto que as pares são colocadas mais à es-
querda e sempre entre parênteses. Essa disposição imprime ao texto um movimento pendular,
o que talvez poderia ser interpretado, de uma maneira acessória e bastante livre que se procura
coadunar com os ares de uma “manhã de Finados, até como uma sugestão do balanço de um
sino fúnebre, malgrado este não seja expressamente mencionado pelo discurso (exceto se de
través forem consideradas como sinos aquelas úmidas
campânulas
de cristal). Porém, a in-
tenção primária do autor para tal procedimento, único em
Magma
, por certo deve ter sido a de
conferir realce à distinção entre os assuntos sobre que versam as duas colunas de estrofes: as
ímpares são descritivas do que ocorre no solo e na sensibilidade do observador por causa da
precipitação, ao passo que as pares, invariavelmente encabeçadas por vocativos, concentram-
se em denotar o diálogo travado pelo poeta com a “Chuva”.
Partindo da sextilha de abertura, as idéias que aí predominam são as do frio” e
do passado: é a garoa que, sendo fria”, faz o eu rico recordar os tempos idos, os quais se
lhe afiguram semelhantemente frios, ou, por outra, o desalento do presente se torna tão obse-
dante que representa ter maculado até as lembranças do pretérito. Já sabemos que a chuva,
aparentada que é ao simbolismo da água, manifesta o exercício das influências fecundantes do
u por sobre a terra; contudo, a circunstância de que a principal qualidade do chuvisco nessa
Toadaseja a temperatura incômoda, que aliás contamina todo o ambiente poemático, faz
cogitar não em comunhão, mas em dissociação entre as expectativas do ser humano terrestre,
que recebe a frialdade das gotas, e as concessões do celeste divino, que as esparge pelo dia de
Finados. Pensemos em cada casa” que “esfria” por sob as telhas úmidas: as casas são feitas
593
No verso 38 está escrito, num óbvio engano,
dendos
longos, o que corrigi. Acertei também o erro do v. 32,
que registrou
porque
tuas mãosem frase interrogativa; idem para os vs. 45 e 61. Quanto a emenda feita pelo
autor, no início do v. 53 por primeiro se lia
Quando
passar, tendo sido aposta a mão a forma substitutiva. Já
em ROSA, 2, 118-121, o número de estrofes é reduzido a seis, pela aglomeração das três últimas numa só, e to-
das elas são estampadas com a mesma marginação à direita. Outras mudanças introduzidas por esse documento
são: no v. 3, cai,
em
estribilho; no 38,
correm
por
escorrem
; no 39, as árvores,
tateando
as casas; no 52
foi suprimido o verbo
haver
original; o 53 recupera a variante
Quando
passarque havia sido substituída; no
55,
Pensarão, talvez,
que não mais, e, no v. seg.,
Muitas outras
campânulas, sendo que esses dois versos, de
meio de frase, foram iniciados com letra maiúscula, destoando da opção adotada para o restante da peça.
320
para proporcionar o quente aconchego e, no entanto, elas agora se demonstram incapazes de
se opor à imposição climática que vem do firmamento gotejante. Destarte, o simbolismo ini-
cialmente positivo da chuva acaba se invertendo nas lentes da percepção do poeta que está to-
cado pelo sentimento de luto. E mais: por conta dessa atmosfera friorenta, que evidentemente
evoca a frieza da morte, parece restar mitigada mesmo a quentura do Magma íntimo, e o ser
entristecido se julga mais do que nunca distante de Deus, o Qual paira além, impérvio em ab-
soluto por detrás do véu das nuvens. É válido apreciar em detalhes que diversos outros com-
ponentes textuais apontam para tal hermenêutica, como se pode ler na terceira estrofe, onde se
alude a uma fragilíssima “aranha de vidro, esperneando
pendurada
de um fio de sol molhado.
Esse tênue “fio de soltransmite de forma notável o caráter de momentâneo ar-
refecimento que os pesos frios da garoa e da morte provocam por sobre o ardor anagógico.
Podemos entender o fio tanto como uma linha da teia de aranha brilhando à luz solar toldada
pela chuva ou, mais acertadamente, como o jorro clarode uma calha, o qual se derrama “da
beira de um telhado, (...) comprido e constante,” esborrifando-se na calçada” de modo a que
os arcos das trajetórias dos respingos tomem, sob o sol encoberto, o aspecto imaginário de
aracnídeas pernas de água. Seja como for, o calor solar – que como canal simlico deveria
concorrer para unir toda criatura de baixo ao Altíssimo –, desde que “molhado, parece ter sua
natureza ígnea comprometida. Assim, ao invés de os signos da água e do fogo se comple-
mentarem para predispor o sujeito à ascese (como no preceito espagírico chinês que reza: “a
união da água e do fogo gera o vapor dágua
594
), resta neste ínterim que um se interpõe ao ou-
tro, turbando-se os efeitos e anulando-se reciprocamente. E, em decorrência, a aranha – que
peças atrás era vista às voltas com o seu problema de trigonometriastico e à espera da
mosca que não vemnesta hora “esperneia” e pende da corda inconsistente, a ponto de
cair, ou melhor, já caindo e espatifando no solo o seu ser de “vidro.
Além do mais, versos à frente se vê que também “as árvoresdão indícios de
ter sido por algum tempo tolhidas em sua tendência ascendente, pois Cada folha verga” para
o chão, sob” a força gravitacional das grandes gotas...Do mesmo jeito se explica que num
dado instante flagre-se a gente parada, como insetos presospor obra do chuvisco, sem po-
der prosseguir em sua movimentação natural. Por fim, idêntico sentido se pode extrair deste
fragmento:
594
Remeto, nesta pesquisa, às págs. 50-51 (Capítulo I, subtópico 3.1).
321
Vara o ar um feixe
de flechas oblíquas,
ferindo nas poças mil mariposas,
que ruflam, doidinhas, as asinhas de água.
Pelo que se pode perceber, a saraiva dos pingos, projetando-se sobre as mil
mariposas, age por lhes cortar o vôo, retendo-as nas poças. Não se esqueça de que esses
lepidópteros noturnos ou crepusculares possuem, tal como as borboletas diurnas, o condão de
simbolizar o espírito que busca se identificar com a
Alma Parens
através das várias metamor-
foses
595
. Outrossim, as gotas da chuva são significativamente equiparadas pelo autor a “um
feixe/ de
flechas
obquasque está “ferindo” as débeis “asinhasdos insetos. Tais flechas, à
evidência, correspondem-se com as setas que tiraram a vida de Araticum-uaçu no poema an-
tecessor imediato. Portanto, em face da combinação de elementos que se desenrola na manhã
garoenta aos olhos do neófito enlutado, o quadro a princípio esboçado é o de que a morte do
índio e as de todos os demais Finadosteriam sido em vão, eis que, aparentemente, a chuva
fria tudo faz para atrapalhar os ímpetos ascensionais das criaturas. Estas são mesmo reduzidas
ao extremo da fraqueza e da impotência, como bem o comprovam as imagens da quebradiça
aranha
de vidro, das mil
mariposas
feridas
se agitando frustradas nas poças” e da “gente
parada, como
insetos
presos.
Por via de conseqüência, a mesma impressão de vanidade se comunica, em re-
trospecto, ao inteiro desdobramento dos mistérios iniciáticos. Ou seja: a reza do rosário, de-
moradamente
desfiado
“conta a conta” desde o poema vestibular de
Magma
, neste comenos
representa-se para o noviço abatido como se fosse uma mera prática quimérica, sem fim e sem
recompensa. Por isso a reflexão, a certa altura, de que a chuva está
desfiando
sem cessar...
Desse modo, cada uma das resfriantes camarinhas do chuvisco é associada a
uma conta do rosário, com o que o rezador iguala o desempenho das suas tarefas anagógicas
àquela triste friagem que gota a gota é despedida pelo u. Por outras palavras,
rezar
(o hu-
mano procurar o divino) e
rorejar
(o divino atender ao humano) assemelhar-se-iam como
simples atitudes paliativas, sem que daí decorresse uma comunhão real. Rememore-se, a pro-
sito, que o carme em tela começou lastimando que o
passado
é frio, o que com certeza se
refere ao itinerário de busca já percorrido pelo peregrino. E se antes se ponderou que a chuva
595
Sobre essa característica do símbolo da borboleta, ao qual se aparenta o da mariposa, v. nesta pesquisa as
págs. 150-151 (Capítulo II, tópico 3).
322
da atualidade eiva de frieza as recordões do pretérito, sob o ponto de vista do aprendiz que
sofre o luto a recíproca também é correta: note-se que o passado não foi, mas é frio, o que
quer dizer que perduram até o presente quaisquer dos efeitos da atividade mistagógica anterior
e já que agora chove, a precipitação fria e tristonha é encarada pelo noviço como um dos
decepcionantes resultados (porventura o único) que teriam advindo das crenças professadas.
Em resumo, nessa ocasião assiste-se por um átimo a um tremular da fé por
parte do poeta, como quem se descobre há longo tempo laborando em erro.
Sem embargo, nem tudo é pessimismo por sob a capa hachurada da chuva. Há
outrossim vários elementos compositivos que exprimem a tentativa de reação do iniciando
contra a melancolia que o acomete nessa crise de aflição. Vejamos que, a despeito de ser o
passado (...) frio, o eu rico não se exime de reconhecer que a precipitação celeste já com-
pareceu em épocas mais felizes:
Ontem foi dia de festa,
e a chuvinha veio, lesta,
todas as flores regar.
Nesse ponto, ao que parece, alude-se à alegria da liberdade que foi experimen-
tada pelas almas pouco as o nascimento nas Águas da serra. O diminutivo empregado –
chuvinhatrai um certo ar de terna simpatia do poeta para com a chuva. E a afirmação de
que ela “veio, lesta,para molhar todas as flores, sugere o sentido de bençãos provindo do
u por sobre cada uma das peças integrantes do rosário poético – este compreendido na sua
acepção de jardim. Logo, verifica-se uma inequívoca inclinação afetiva entre o ser terrestre e
as anteriores manifestações do alto, a qual atravessa todo o poema, competindo com as ten-
dências mais soturnas carreadas pela constatação de que
Hoje é manhã de Finados,
os túmulos já estão lavados,
e a chuva não quer parar...
Em verdade, ocorre como se o neófito sopesasse tudo o que de bom e de mau a
garoa lhe proporciona, com o fito de decidir se a Toada da chuva” se faz ouvir, afinal de
contas, para prostrá-lo ou confortá-lo. Destarte, a par das boas memórias do dia de festa” que
já ficou para trás, são também vislumbrados alguns raios de esperança no porvir. É o que o
poeta demonstra ao comentar que,
(...) quando passar a chuva,
toda a cidade destapada e clara,
323
irão pensar que não mais os isolam
outras úmidas campânulas de cristal.
O que transparece aqui é a expectativa de que, quando passar a chuva”, isto é,
quando for embora toda a consternação da “Manhã de Finados, eventualmente os seres que
por ora se escondem
Nas portas, nas janelas,
sob os toldos,
poderão uma vez mais sair ao sol que iluminará “a cidade destapada e clara”, com o que lo-
grarão dar continuidade ao inato movimento anagógico. E ao fazê-lo, abandonarão as úmidas
campânulas de cristal, metáfora utilizada por Guimarães Rosa para ilustrar a ilusão de
isola-
mento
que faz com que as criaturas do mundo se sintam separadas umas das outras, como in-
setos presosnas crisálidas ou como almas encarceradas nas redomas de água que o chuvisco
faz descer agora por sobre a terra. O reverso dessa ilusão, relembre-se, é o conhecimento ilu-
minativo de que todo e cada espírito faz parte de uma só unidade anímica essencial: Deus.
Tem ainda validade prestar reparo, mesmo que de passagem para outros as-
suntos, nas recorrentes metagoges em que o autor se volta para os dedose as mãosda
precipitação. Primeiro, quando diz que
(...) a chuva cai, como um estribilho
de
dedos
brancos num teclado manso,
disciplinada como uma velha trova...
São, em pianíssimo, os acordes iniciais da “Toada da chuva”. Depois, a garoa é
descrita como tendo
frias
mãos
de fada,
as quais despejam, sobre “as árvores e as casas, carícias sem calor que resfriam tudo quanto
tocam. Essas mãostambém são chamadas de “zombeteiras, quando tamborilam nas vi-
draças. Não obstante, nas estrofes ímpares o que prevalece de maneira nítida são as instantes
chamadas para determinadas qualidades decididamente positivas da chuva. Assim, ela é con-
siderada como bela, leve”, santa”,
chuva clara,
como a toalha de um altar...
e ainda “boa” e “meiga. Especialmente a
santidade
e a pura
clareza
comparável à “toalha de
um
altar
são características de ingente signifincia, que de forma categórica conferem ao
324
símbolo da precipitação celeste os mais subidos valores transcendentais. Possuindo tais atri-
butos, o chuvisco, em que pese a frieza que espalha, acaba sendo aceito pelo poeta como uma
espécie de confidente. E tanto é que, nos derradeiros versos da “Toada..., o aprendiz assume
por fim que a chuva vem para o consolar. Diante disso, ele vê motivos para dirigir ao fir-
mamento chuvoso três questões, tal qual as fizera outras a Araticum-uaçu em No Araguaia
I. São as seguintes:
Se és tão triste nas goteiras,
por que tuas mãos, zombeteiras,
m nas vidraças tocar?!...
(...)
Por que tanta cousa impura,
tanto pecado e amargura
daqui não podes lavar?!...
(...)
Se no céu estão chorando,
por que preciso chorar?!...
Eis a réplica que a garoa personificada concede à primeira pergunta:
Mas, junto a cada goteira,
se sempre um poeta a escutar?!...
Quer parecer que o argumento aduzido, algo obscuro, consiste talvez em que os
poetas teriam a virtude de “escutar, por detrás das entonões enganosamente tristes e
zombeteirasque a precipitação às vezes adota, a verdadeira linha melódica que sempre a
sustenta, qual seja, a de propiciar o benfazejo contato fecundador entre o u e a terra (tema
que exploraremos com mais cuidado quando estiver em análise a peça “Chuva, que é a ante-
peltima de Magma).
À segunda indagação, o chuvisco retorque:
Quanto mais desço, a enxurrada,
mais suja não s rolar?!...
A garoa repele, assim, com provas em contrário, a acusação, que o poeta lhe
quis imputar, de impassibilidade em face do sofrimento, pois, quando vem do alto, ela com
efeito lava os túmulos” e a “tanta cousa impura,/ tanto pecado e amarguraque grassam em-
baixo. E se “a enxurrada” rola cada vez mais suja” no “asfalto, no ar a chuva permanece
imaculadamente limpa, santa” e “clara” repita-se “como a toalha de um altar...
325
No que concerne à terceira questão (Se no céu estão chorando,/ por que preci-
so chorar?!...), o texto não traz resposta. Procedendo do mesmo modo que Araticum-uaçu
antes, a chuva prefere calar e permitir que o iniciando encontre ele mesmo a sua conclusão.
Poderíamos, quem sabe, especulá-la desta maneira: ainda que haja espaço para os ensina-
mentos, para certos tipos de auxílio e para a solidariedade entre as criaturas, decerto que nin-
guém pode chorar as lágrimas de outrem, pois a cada um compete carregar a própria cruz e
passar pelos trâmites da sua experiência anagógica pessoal. E dessa experiência como tem
sido à larga frisado neste estudo, na esteira do teor dos signos atuantes em Magmatambém
faz parte a morte, que para todos vem inevitavelmente, incumbindo portanto ao ser não temê-
la nem passar a vida a pranteá-la, mas enfrentá-la no devido momento e vencê-la. O neófito
está no rumo de interiorizar essa verdade, havendo, no entanto, ainda um bom pedaço da via
crucis a palmilhar, conforme observaremos na peça consecutiva.
Então, se a “Toada da chuvase deixa tingir do cinzento cambiante entre a
“chuva clara” e a “enxurrada (...) suja, o carme que a sucede e ao qual passamos a nos dedi-
car vem carregado de tintas mais fortes. Com a estiagem, descortina-se o cenário de “Assom-
bramento, cujo pano de fundo é a
Meia-noite amarela de sexta-feira,
com lua cheia, na meia quaresma,
no pequeno arraial.
Não é à toa a referência à “quaresma”: este é o período que, posteriormente ao
fim das festividades carnavalescas, estende-se desde a quarta-feira de Cinzas para ser dedica-
do pelos católicos romanos e ortodoxos à penitência, o que inclui o jejum da carne, em prol de
um devotamento maior às coisas do espírito. Por igual, em Magma o noviço – que havia vivi-
do a “Turbulênciada liberdade e passado pela licenciosa “Suburra do charco” em Hiero-
grama” agora se encontra numa fase de recolhimento, em que se deve abster de todas as
preocupações materiais para se dedicar somente à prosperidade da alma. Porém, o que mais
importa é que o lapso quaresmal se finda com a chegada do domingo de Páscoa, que celebra a
Ressurreição de Cristo. Estar na “meia quaresma, por conseguinte, e ademais em plena
Meia-noite, figurativamente tem o mesmo valor de estar a meio caminho da renascença
crística auroral: e não por acaso, se tivermos a pachorra de contar, verificaremos que no con-
tinuum do volume de 1936, depois de ter sido enfrentada a morte iniciática em A terrível pa-
rábola”, Assombramento” é o décimo poema, e as se passar por mais dez outros textos
326
além deste, será alcançado o Amanhecer, primeira das composições a tratar do renasci-
mento do neófito.
Em confirmação a esse raciocínio, pondere-se que o pequeno arraial, dentre
outras acepções, também pode ser entendido como um acampamento, um lugarejo formado
pela aglomeração provisória de instalações de romeiros, o que vale dizer, gente que se con-
grega na estrada, para descanso ou por outro motivo, num pouso da viagem para algum sítio
religioso.
Ora, em Magma a estação sob foco é situada na paisagem sepulcral, de sorte
que é bastante lôbrego o cortejo a que se assiste debaixo da “lua cheiade “Assombramento:
Tinidos secos de matracas,
gente cantando orações tétricas
em frente às cruzes das encruzilhadas,
pedindo ao povo que está dormindo
rezas para as almas do purgatório
que eles estão encomendando.
O purgatório– quase se escusa explicitar é aquele lugar em que, na teolo-
gia católica, são recebidas temporariamente “as almasdos justos que faleceram em estado de
graça, mas que ainda precisam purificar-se mais, expiando pequenas faltas, para que possam
alcançar a perfeição beafica e afinal progredir até a bem-aventurança paradisíaca. É evidente
a exata consonância com a atual paragem do peregrino em Magma.
E a procissão prossegue sob o luar:
E logo atrás m vultos brancos,
almas penadas sussurrando,
com ossos de defuntos nas frias mãos brancas.
596
Aqui se consigna o contraste entre o físico e o metafísico: os espíritos que er-
ram pelo fantasmagórico reino ctoniano penam porque ainda se aferram aos resquícios mais
deprimentes da matéria, que são simbolizados pelos ossos de defuntos. Para que cesse o pa-
decimento, e as “almasdeixem de ser penadas, é imprescindível abandonar esses lamentá-
veis despojos físicos que os vultostêm nas (...) mãos(as quais são, mencione-se en pas-
sant, frias” e brancas, como as da chuva na peça anterior).
Mais outras fantásticas visagens contribuem para a definição do quadro cemite-
rial:
596
Em ROSA, 2, 122: ossos de defuntos alumiando nas frias mãos brancas. Quanto ao excerto seguinte, v. no
tópico anterior deste mesmo Capítulo a nota 528 (pág. 281).
327
Mulas-sem-cabeça galopam doidas
pelas estradas,
queimando o capim com as chispas dos cascos.
Há lobisomens uivando,
na velha igreja tábuas rangendo,
caixões pretos ao pé das cruzes,
mortalhas largadas diante das portas,
uma mulher longa sentando nos telhados,
e o Pitorro, assentado no morro,
de chapéu na cabeça, cachimbando.
A cena final dessa noite sinistra é circunstanciada deste modo:
Entre as sepulturas,
o fogo-fátuo de fósforo escorre:
é um grande raio da lua amarela,
que desceu, por engano, ao cemitério,
e lá vai fugindo,
assombrado, amedrontado,
sem tempo de subir.
597
Tem interesse examinar agora os pormenores do tropo pelo qual Guimarães
Rosa une as figuras iluminantes do fogo-fátuo de fósforoe do grande raio da lua amarela”,
colocando que um
é
o outro. Relate-se que o femeno do fogo-fátuo, comumente observa-
do em pântanos e cemitérios, consiste na combustão espontânea de certos gases exalados por
materiais orgânicos em decomposição. Resulta bastante revelador que essa fugaz inflamação
procedente dos miasmas
de baixo
,
i. e.
,
da terra imunda dos sepulcros ou da estagnação dos
pauis, seja posta em equivalência com o limpo fulgor lunar que provém
do alto
. Outrossim,
deve-se ter sempre presente que a luz da lua é apenas um reflexo da luz do sol, o qual, por seu
turno, é um símbolo dos mais excelentes para representar o facho manifestante da
Alma Mater
razão pela qual o raio lunar freqüentemente é empregado para significar a alma humana ma-
nifestada
598
. Desta maneira, obtém-se que o raio de lua “que desceudo céu e o fogo-fátuo
que “escorrepelo chão, estando associados num único lance de imagem, acabam por expres-
sar nesse ato os dois aspectos divergentes do espírito do neófito que transita pela mansão tu-
mular: por um lado, respectivamente, o pendor cefluo para se atirar fora os ossos de defun-
tos” e se abandonar ao sabor da atração anagógica, e por outro, a tentação ctônica de se aten-
der aos apelos insidiosos da matéria, rendendo-se à ilusão da morte.
597
Em ROSA, 2, 124:
Por
entre as sepulturas; nesse documento, estes versos estão jungidos à estância anteri-
or, ao passo que na primeira versão de
Magma
constituem estrofe autônoma (juntamente com os quatro versos
segs.).
598
Este tema já foi abordado neste trabalho, cf. págs. 101-102 (Capítulo I, tópico 1) e 110 (
loc
.
cit
., tópico seg.).
328
Porém, é sobretudo relevante que esse “raio da lua” e esse “fogo fátuotenham
surgido como clarões justamente em meio às tantas fantasmagorias que povoam a noite. A
disposição dos elementos textuais permite inferir que, diante da compacta ambientação es-
pectral, a evocar de forma tão inequívoca as idéias mais triviais e reconhecíveis sobre o mun-
do dalém-morte, o noviço não tem como continuar negando o estado em que se encontra:
conseentemente, advém-lhe a cintilação “amarelaque alumia as sepulturas” e através da
qual ele se conscientiza da sua própria condição de morto. É essa tomada de consciência
quanto à sua situação que o deixa “amedrontado” e lhe provoca o Assombramentode que
fala o título do poema. Com o insight, o crente também nota que ele está ali, no cemitério,
por engano, eis que, sendo seu destino o renascimento, não lhe compete se radicar por
muito mais tempo entre as “almas penadasque por enquanto se recusam a abrir mão dos seus
ossos de defuntos” e preferem permanecer a esmo, na ignorância (como as Mulas-sem-
cabeça” que galopam doidas) e na bestialidade (como os lobisomens uivando). Daí o des-
pertar, no espírito de “fogo” e de “lua” do peregrino, da intenção de fugir o quanto antes do
sepulcrário, numa premência que desse “Assombramentoirá se propagar avante para diver-
sas outras composições, até que afinal atinja o seu bom termo.
Ressalve-se, contudo, que por ora tal percepção é lucilante como o acender de
um fósforo, tão breve que deixa o aprendiz sem tempo de subir. Nem poderia ser dife-
rente, já que o raio da lua, se comparado ao esplendor do sol, é apenas uma luz refletida, aliás
(citando Fernando Pessoa), precisamente um
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
599
O caráter de fria e tênue luminosidade apresentado por ambos os signos que se
conjugam para traduzir a alma do poeta denota o esmaecimento do magma íntimo, em face
do longo tempo de sujeição ao claustro sem ar do enterramento mistagógico. Logo, desde
Assombramento, o que passa a conduzir o itinerário do neófito serão as constantes tentati-
vas de se insuflar esse brasume esmorecido, e não é sem razão que a peça vizinha recebe o -
tulo exato de “Tentativa”; tais ensaios, todavia, só terão sucesso bem mais à frente, quando se
deflagrar o inndio voraz de “Bibliocausto.
Destarte, voltando ao palco do pequeno arraial, o iniciando com efeito mar-
cou um inestimável tento, e no entanto ainda necessita de amparo para não sucumbir às adver-
sidades que insistem em se lhe opor. Sendo assim, testemunha-se que a própria “noite” age
599
PESSOA, 235, 64, Quinto/ Nevoeiro. Grifei.
329
(...) soltando os seus cachorros
Corta-Vento, Rompe-Ferro, Acode-a-Tempo,
para o socorrer
...
Esses três cachorrosnoturnos, que devem ser compreendidos como sucesso-
res da cachorrinha de “A terrível parábola”, fazem jus ao papel de psicopompo que os cães
desempenham nas mais variadas mitologias
600
. No caso de “Assombramento, eles parecem
ter sido expedidos com a missão de farejar, em socorrodo espírito do aprendiz que “lá vai
fugindo, o como da trilha que dirige para fora do donio das sombras e assombrões. Os
verbos componentes dos nomes dos animais
Corta
...,
Rompe
...,
Acode
...são efici-
entes indicativos da natureza dessa sua tarefa de guias de almas que ajudam para que se vença
certo trecho da travessia. Com relação ao primeiro desses nomes, vale anotar que “corta-
vento” é uma das denominões sertanejas da narceja, ave também conhecida como rasga-
mortalha”, que nidifica nos brejais e alagadiços e tem o dorso e a cabeça negros, porém mos-
queados com manchas, estrias e sobrancelhas amarelas, como que numa corporificação da
Meia-noite amarela” que vigora no presente texto. É possível até que os outros dois nomes
possuam ambivalências semelhantes (isto é, porventura relacionados a alguma ave sertaneja).
Diga-se ainda que, pela particularidade de virem em trio, tais enviados notur-
nos podem igualmente servir para avocar a mais famosa das entidades caninas do mundo dos
mortos, que é o Cérbero trifronte da Antigüidade grega. O mero das cabeças da fera mítica
tem sido explanado como representativo da sua capacidade de manter relações (...) com os
três mundos
601
: o subterrâneo, o terreno e o celeste. É notório que a esse guardião incumbia
impedir que as almas dos vivos entrassem e as dos mortos saíssem do Hades. Apesar disso,
dois foram os heróis que conseguiram derrotar o monstro e ultrapassar, nos sentidos tanto de
ida como de volta, os portões vigiados: Héracles e Orfeu. E
É preciso notar (...) que foi sem a ajuda de qualquer outra arma, a não ser suas pró-
prias forças, que Héracles conseguiu vencê-lo num dado momento; e que foi por meio
de uma ação espiritual o som de sua lira – que Orfeu conseguiu amansá-lo durante
alguns instantes. Dois indícios que fazem prevalecer a interpretação neoplatônica,
segundo a qual Cérbero era o próprio espírito do demônio interior, o
espírito do mal
.
era possível domi-lo na terra, ou seja, atras de uma violenta mudança de meio
ambiente (ascensão), ou da utilização das forças pessoais de natureza espiritual. Para
derrotá-lo, não se pode contar senão consigo mesmo.
602
600
V. atrás as págs. 231-232 (Capítulo III, tópico 4).
601
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 152. Grifei.
602
Id
.,
op
.
cit
., pág. 222. Grifo dos autores.
330
Se destacarmos o importante aspecto de que Cérbero simboliza o inferno inte-
rior de cada ser humano
603
, abre-se a hitese de que, em Assombramento, os três cachor-
ros mandados pela noite não sejam mais do que uma expressão do Magma do próprio noviço,
e isso porque, Para” derrotar o inferno interior, em última análise “não se pode contar se-
não consigo mesmo, com as forças pessoais de natureza espiritual. Deste modo, o ato de
soltura dos cães em Assombramentomanifesta, a um só tempo, três significados da maior
relevância: por primeiro, o amansamento de pelo menos alguns dos demônios interiores que
assombram a alma do indivíduo (daí o nome de “Corta-Ventodado a um dos cachorros); em
segundo lugar, a liberação das feras domadas da primitiva função de atalaias que proíbem a
fuga do reino dos mortos, com o que se franqueia a saída dessa prisão (e, por isso, Rompe-
Ferro); e por fim, a canalização das apties dos cães para outro trabalho de natureza mais
elevada, qual seja, o de auxiliar o aprendiz a divisar o seu verdadeiro caminho para fora do
cemitério (então, Acode-a-Tempo).
Outrossim, como arremate é interessante sublinhar que um dos vencedores da
sentinela do Hades tenha sido Orfeu, poeta arquepico que é miticamente apontado como o
fundador dos Mistérios de Elêusis e por vezes comparado, pelos primeiros autores cristãos, a
Jesus, como figura triunfante sobre as forças do mal. E se para levar a cabo o seu encargo en-
tre os homens o Verbo encarnado se valeu das parábolas e da pregação da Palavra, para alcan-
çar a vitória Orfeu usou como armas a música da lira e a inspiração poética, enquanto que o
rezador de Magma progride em sua rota ascensional de poema em poema.
Por outro lado, convém saber que, de forma análoga a Cérbero, em diversas
oportunidades a deusa helena Hécate aparece nas lendas como um prodigioso monstro tri-
falo com fisionomias caninas ou alternativamente como uma mulher dotada de três corpos e,
de qualquer jeito, sempre na companhia de um séquito de cães, lobas e licantropos. Divindade
dos mortos, ela apresenta duas facetas distintas: uma é benfazeja, pela qual Hécate
preside às germinações e aos partos, protege as navegações marítimas, concede a
prosperidade, a eloqüência, a vitória, as ricas searas, as pescas abundantes, guia
para a via órfica das purificações. Em contrapartida, um outro aspecto é temível e
infernal: Hécate é a deusa dos espectros e dos terrores noturnos... dos fantasmas e
monstros que infundem terror, é a nigromante por excelência, a senhora da feitiçaria.
(...)
Sua lenda e suas representações com três corpos e três cabas se prestam a
interpretações simbólicas de diferentes níveis. Deusa lunar, poderia representar as
três fases da evolução lunar (crescente, minguante, lua nova) e as três fases corres-
pondentes da evolução vital. Deusa ctoniana, restabelece a ligação dos três patama-
res do mundo: os infernos, a terra e o u. Seria, sob esse aspecto, honrada como a
603
Id., ibid. Grifo dos autores.
331
deusa das encruzilhadas. Porque toda decisão a tomar num cruzamento implica não
só uma direção horizontal, na superfície da terra mas, mais profundamente, uma di-
rão vertical para qualquer um dos níveis escolhidos de vida. Enfim, a nigromante
das aparições noturnas simbolizaria o inconsciente, onde se agitam feras e monstros:
o inferno vivo do psiquismo, mas também reserva de energias a organizar, como o
caos se organizou em cosmo sob a influência do espírito.
604
Acrescente-se que “Seus poderes são teveis, principalmente à noite, à dúbia
luz da Lua, com a qual, aliás, ela se identifica.
605
Pelo exposto, é perfeitamente viável a suposição (complementar, e não contra-
ditória à idéia sobre Cérbero) de que toda a noite assombrada e enluarada da peça de
Magma
constitua uma ampla transposição poética, realizada por Guimarães Rosa, da efígie aterrori-
zante de Hécate, ao passo que os três cachorros seriam um alongamento dos atributos mais
positivos da deusa. E porventura seja ela mesma a misteriosa “mulher longa sentando nos te-
lhadosdo arraial, rodeada pelos fantasmas e pelo concerto de uivos dos lobisomens. O ra-
ciocínio se sustenta ainda pela alusão aliterante, na segunda estrofe do carme, às “cruzes das
encruzilhadas– o peregrino, nessa hora, é efetivamente posto defronte a uma difícil decisão
a tomar num cruzamento, a qual lhe definirá “uma direção vertical para qualquer um dos ní-
veis escolhidos de vida”: permanecer no presente estrato subtérreo como uma das “almas pe-
nadasdo fossário, desertar de volta para o passado frio na superfície das coisas ou seguir
adiante, rumo à ascese. Hécate favorece qualquer opção, cabendo somente ao aprendiz dese-
nhar o próprio destino. E ele opta pela continuidade do discurso de
Magma
.
Terminando assim com Assombramento, vemos que, ems o socorro con-
cedido pela noite ao neófito, a composição Tentativa” espelha o socorro a ele prestado pela
Manhã”, a qual, nos versos iniciais desse carme, demonstra-se
(...) sica, alcalina,
neutralizando a gota ácida do sol.
A peça toda se aia em léxico retirado do campo semântico da química (e, por
extensão, da alquimia, pelo menos no que respeita ao instrumental de laboratório). Portanto,
faz-se útil comentar que na ciência as substâncias básicas ou alcalinas são caracterizadas por
determinadas propriedades específicas, as quais comem o que se chama de
função base
.
Algumas dessas propriedades são, de acordo com os químicos, o sabor de lixívia (ou de bar-
rela: água em que se fervem cinzas e que é utilizada para o branqueamento de roupas) e as ca-
604
Id
.,
op
.
cit
., págs. 484-485. Grifos dos autores.
605
P. Devambez,
Dictionnaire de la civilisation grecque
,
apud id.
,
ibid
.
332
pacidades de alterar a cor de certos reagentes e de agir sobre um ácido para a formação de um
sal, com as conseqüências da eliminação de água e do desprendimento de calor.
No que tange ao sabor, observe-se no texto que a insipidez da manhã “alcalina”
desde logo já está “neutralizando, ou seja, atenuando a acidez mais pungente “do sol(qui-
micamente, uma da características da função ácido é o gosto amargo que em geral é apresen-
tado pelos compostos dessa natureza).
Quanto às propriedades coloríficas,
O tornassol do céu, no fundo
do grande tubo de ensaio,
vai se espessando, cada vez mais azul.
O tornassol” é um indicador que, em meio ácido, mostra-se vermelho, adqui-
rindo a cor “azul” em presença de um álcali. Deduz-se que o sol da manhã de “Tentativa” agia
avermelhando o céuda madrugada, o qual entretanto vai se azulando à medida que a manhã
básica” avança rumo ao meio-dia.
Também são detectáveis no poema os dois efeitos colaterais do processo de
produção de um sal por meio da interação entre o ácido e a base: o surgimento da água, sob a
forma de gases e vaporesque “sobemda “marna alagada(isto é, um terreno de calcário
argiloso), e o crescimento do calor, reagindo contra a frieza que fora trazida antes pela “To-
ada da chuva” e pelas mãos brancasdas “almas penadas” em Assombramento. Em Ten-
tativa” lemos que
Dos poços da marna alagada,
cheios, como frascos chatos sem gargalos,
sobem gases e vapores alvacentos.
A pressão calca com cinco atmosferas,
e o calor cresce...
606
Tudo isso aponta para um único sentido: o da transmutação, que consiste na
Tentativa” de se avivar o lume adormecido do magma íntimodo poeta, depois do frio sob
a garoa de Finados e do brilho sem calor do fogo-fátuo fantasmagórico, conforme foi discuti-
do nas duas peças anteriores. Em decorrência, o que à primeira vista poderia aparentar ser
uma disputa ou falta de harmonia entre a alcalinidade da manhã e a acidez do sol, em verdade
se revela mais como a ação conjugada de duas realidades que se combinam com o fito de ge-
606
No quarto verso do excerto, o artigo A, maiúsculo, foi redigido a mão, provavelmente sobre a opção inicial
em letra minúscula, incabível por causa do ponto final no verso antecedente. No geral, em ROSA, 2, 125, elimi-
nou-se o substantivo gases” e a conjunção aditiva: sobem vapores alvacentos.
333
ração dialética de uma terceira realidade nova. Inequivocamente, trata-se de um ensaio da
pretendida transfiguração mais ampla no espírito do aprendiz.
Essa “Tentativa, todavia, não prima pela placidez absoluta. Bem ao contrário,
verifica-se que mesmo nos recessos do ser se pode encontrar resistência à transformação aní-
mica, pois, conquanto não haja dúvidas de que o “azulmatinal vai se espessando, é igual-
mente certo que “o calorque “cresce” pressiona as
(...) alavancas de pirômetros
negros
,
dilatando as
sombras
.
O que era de se prever, pois é sabido que, à proporção que o stico se avizi-
nha do conhecimento de Deus, mais e mais escuras se lhe afiguram as trevas da própria alma,
antes da definitiva iluminação redentora
607
.
Não obstante, o resultado final da “Tentativapor ora parece ter sido válido: se
em Assombramento” a coloração predominante foi o amarelo tétrico e algo macilento da lua
e do fogo-fátuo, agora o quadro a que se assiste é bem mais vivaz:
Rápida,
uma revoada triangular de periquitos
estraleja e crepita,
flambada ao sol, numa alça enorme de platina,
como o fio da língua, fugidia e verde,
de um sal de boro...
608
Percebe-se destarte que, através da comparação, poeticamente se acende uma
labareda no espírito do aprendiz, a qual “estraleja e crepita,/ flambada ao sol. Outrossim, o
animado fulgor dessa chama corresponde à efetiva obtenção de “um
sal
de boro” a partir da
reação conjunta da “Manhã
sica
” e da “gota
ácida
do sol. O despontar desse sal (e no pla-
no mais abrangente do signo é indiferente qual seja a sua composição química), máxime
quando vinculado à flambagem, representa a subida de mais um degrau na purificação da
alma do neófito, uma vez que
O sal é, ao mesmo, tempo, conservador de alimentos e destruidor pela corrosão. Por
isso, o seu símbolo se aplica
à lei das transmutões físicas e à lei das transmutões
morais e espirituais
...
609
607
V. comentários às págs. 111-112 (Capítulo II, tópico 2).
608
O adjetivo Rápida” foi manuscrito sobre palavra que então se tornou ilegível. Em ROSA, 2, 125: flambada
em
alça enorme de platina” e como o fio
de chama, fugidio
e verde”.
609
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 797. Grifos dos autores.
334
Sendo um agente “destruidor, o sal propicia, pela “corrosão, a consumpção
da matéria morta e simultaneamente proporciona a conservação do alimento vivo, o qual, nas
diversas doutrinas sticas, não é senão a sabedoria de que se nutre o espírito. Assim é que
nos Evangelhos Jesus se diz o pão da vida” (João 6.35) e se refere aos discípulos, a quem
cumpre preservar a Palavra crística, como o sal da terra(Mateus 5.13, Marcos 9.49-50 e
Lucas 14.34-35). Item, considere-se que, na tradição judaica, todo e qualquer sacrifício (in-
cluindo o do Cordeiro) deve necessariamente ser purificado com sal, em consonância com o
preceito que vem disposto de modo enfático em Levítico 2.13:
Toda oferta dos teus manjares temperarás com sal; à tua oferta de manjares
não deixarás faltar o sal da aliança do teu Deus; em todas as tuas ofertas aplicarás
sal.
Então, o aparecimento do fio da ngua” do sal em Tentativa” é simbolica-
mente apto a ressoar a intenção iniciática da destruição do corpo para a preservação espiritual,
além de concorrer para aperfeiçoar a idéia de que a morte do adepto constitui um sacrifício da
carne, que como signo é oferecida em proveito da identificação anímica entre o ser humano e
Deus.
Ademais, como composto que resguarda da corrupção, desde os tempos bíbli-
cos mais recuados o sal comum, sendo compartilhado numa refeição pelos contraentes de um
pacto, serve para selar a solenidade de uma aliança que se pretenda perene, como o é a união
essencial entre a alma humana e a divina Magna Alma. Exemplifique-se com Números 18.19,
quando Jeová, depois de instituir o serviço do santuário a cargo da tribo de Levi (Levítico 8),
dirige-se ao sumo sacerdote Arão nestes termos:
Todas as ofertas sagradas, que os filhos de Israel oferecerem ao SENHOR,
dei-as a ti, e a teus filhos, e a tuas filhas contigo, por direito perpétuo; aliança per-
pétua de sal perante o SENHOR é esta, para ti e para tua descendência contigo.
Deve-se complementar que o sal freqüentemente é posto em eipolência sim-
lica junto aos elementos ígneo e hídrico, chegando até a ser considerado como um fogo li-
berto das águas
610
. Parte da inteligência desse simbolismo pode ser comprovada por meio de
Marcos 9.49, que traz uma fala de Jesus:
Porque cada um será salgado com fogo.
610
L. C. de Saint Martin, cit. por id., ibid.
335
Temos aí uma interessante sinestesia em que são emparelhados como signos
mundificantes o sal e o fogo, tal como pode ser explicada a imagem da chama do sal de boro
que Guimarães Rosa aplicou em Magma.
A propósito, merece ser citada ainda certa noção colhida na tradição tântrica,
na qual O grão de sal misturado e derretido na água é (...) um símbolo da reabsorção do eu
no Sol universal.
611
Sob a óptica mistagógica que prevalece no livro de 1936, tudo deve ser inter-
pretado como o início do procedimento de purgação do noviço, através do sal, para a futura
saída do mundo subterrâneo, pois a todo aquele que é enterrado incumbe depois limpar-se de
qualquer resquício da terra imunda do sepulcro. Entendimento análogo ocorre numa lenda
constante do Kojiki, none sagrado do xintoísmo, segundo a qual o Kami (divindade) Izana-
gi-no-Mikoto desceu aos Infernos para rever a sua mulher Izanami (junto com quem havia
criado o Japão e as forças elementares), sendo que,
à sua volta do reino dos mortos, Izanagi purificou-se na água salgada do mar. A vir-
tude purificadora e protetora do sal é utilizada na vida corrente japonesa assim como
nas cerimônias xintoístas; a sua coleta é objeto de um ritual importante. Colocado em
pequenos montes à entrada das casas, à beira dos poços, nos cantos dos ringues de
luta, ou no chão, as as cerimônias funerárias, o sal tem o poder de purificar os lu-
gares e objetos que, por inadvertência, estiverem maculados.
612
Vale mencionar que os nomes do mítico casal nipônico significam os que se
seduzem mutuamente”. E ao ensejo, recorde-se que
O sal, combinação e neutralização de duas substâncias complementares, além
de seu produto final, é formado de cristais cúbicos: é a origem do simbolismo hermé-
tico. O sal é a resultante e o equilíbrio das propriedades de seus componentes. À idéia
de mediação acrescentam-se as de cristalização, solidificação e também de estabilida-
de, que estabelece a forma dos cristais...
613
Por fim, é de se ressaltar o outro aspecto que integra o complexo tropológico
com o qual nos havemos: a par de ser o flamante “fio da ngua (...) de um sal de boro, o ver-
dor que matiza a composição rosiana é também animadamente descrito como uma revoada
triangular de periquitos, estampa que se configura como um indisfarçável sinal de ascese,
tanto pela cor como pela conformação, e mormente pela circunstância de projeção aérea.
Contudo, tal revoada não deixa de ser bastante “Rápida” e fugidia”, a demonstrar que a pe-
quena alegria da “Tentativa” ainda não se concretizou como uma realidade duradoura. Previ-
611
Id., ibid.
612
Id., ibid. Grifos dos autores.
613
Id., ibid. Grifos dos autores
336
na-se outrossim que esses pássaros, que agora adejam de maneira tão lere, reaparecerão em
Magma mais à frente, no texto Primavera da serra”, como um mais vistoso espetáculo de
Doze esquadrilhas de periquitos verdes
que, recebendo ordem de partida”, alçarão vôo e cederão espaço
a uma formação de araras cor de fogo...
614
Ficando por enquanto com Tentativa, a composição se finda com a seguinte
estrofe:
Quanto esforço da manhã,
para mostrar, tão alto,
um corisco de esperança...
615
Nesse contexto, a palavra-chave do fragmento, ecoante do sentido global do
título da peça, parece ser esforço, o que evoca o trabalho químico por intermédio do qual a
manhã”, inflamando o sal e soltando os periquitos, conseguiu cintilar um verde “corisco de
esperançano ânimo turvado do poeta. E posto que ainda se cuide apenas de uma breve cen-
telha de avio em meio à aflição, com certeza esse relampejar das aves é bem mais intenso,
marcante e confortador do que o fora o fugente fogo-fátuo em Assombramento
616
.
Fortalecido desta forma o viandante, a próxima e por enquanto ainda serena
estação na rota de Magma é “O gado. Nesses versos, o réptil que nomeia o carme surge
como o psicopompo que acompanha o peregrino durante novo trecho do percurso. Tal qual
todos os quelônios ao redor do globo, o gado é tido em diversos mitos como um ser cosmó-
614
Em ROSA, 2, 141, esses versos de Primavera da serra” sofrem variões, a serem detalhadas oportunamente,
cf. anotação 753 à pág. 413 (tópico 4 deste Capítulo).
615
Em id., op. cit., pág. 125: para riscar, tão alto.
616
Apenas como um acréscimo, anoto haver uma curiosa convergência, que talvez mereça ser melhor explorada
noutra oportunidade, entre a Tentativa” rosiana e certas idéias colocadas pelo modernista bissexto Luíz Aranha
em seu Poema Pitágoras, publicado na revista Klaxon em 1922: a certa altura desse texto, o poeta declara que
O u é uma vasta sala de química com retortas cadinhos tubos, provetes e todos os vasos necessários/ Quem
me quitaria de acreditar que os astros são balões de vidros/ Cheios de gases leves que fugiram pelas janelas dos
laboratórios(apud ANDRADE, 103, 66; grifei); pouco além, ao se contemplar a lua” através de telescópios,
são mencionados os Vulcões extintosno relevo do satélite sendo que no presente momento de Magma, como
foi visto, a luta do neófito é justamente por avivar o magmático fogo interno da alma; e depois, mais alguns ver-
sos e aquele poeta ginasial por excelência” (como o denominou Mário de Andrade em elogiosa página crítica)
expressa: Uma grande pálpebra azul treme no u e pisca/ Corisco arisco risca no u/ O barômetro anuncia
chuva/ Todos os observatórios se comunicam pela telegrafia sem fio/ Não penso mais porque a escuridão da
noite tempestuosa penetra em mim/ Não posso matematizar o universo como os pitagóricos/ Estou só/ Tenho
frio, o que outra vez consoa com a passagem em pauta do livro iniciático de Guimarães Rosa, em que se está
prestes a adentrar a solidão da noite mística, a qual preludia a Chuva” primaveril das composições terminantes.
337
foro e comunga dos aspectos sígnicos anteriormente enunciados a respeito da tracajá
617
.
Quanto à peça atual, ele é expressamente reconhecido como um
filósofo
pessimista,
o que parece atestar a sabedoria que o habilita para a doutrinação do neófito. Para apurar o
real teor do ensino a ser transmitido nessa hora, vale ressaltar o parentesco simlico desse
animal com o Caranguejodo poema analisado no primeiro terço de
Magma
, sobre o qual
Guimarães Rosa escreve:
És forte, e ao menor risco te escondes
na carapaça bronca,
como fazem os seres
evoluídos
,
misantropos, retraídos:
o
filósofo
, o asceta,
o
gado
, o ouriço, o caracol...
Logo, resulta que, para o bardo mineiro, os seres evoluídosrepresentam ser
aqueles capazes como o são o filósofo” e o gadode se voltar para o próprio íntimo,
refugiando-se no interior da “carapaça” à procura do verdadeiro conhecimento, o qual assenta
na heautognose. Esse, portanto, é o cerne da lição que neste comenos se apresta, num repisa-
mento do que tem sido sempre a quente medula do
Magma
. E por isso O gado, que já se
encontra agora bem longe da “Turbulênciaque vingou no terço inicial, demonstra-se “pru-
dente” e cioso ao extremo no solipsismo, chegando a tocar as raias da “mania da perseguição
quando se aparta de tudo quanto possa denotar o nimo estorvo ao estóico ideal de ataraxia:
(...) se alguém pisa perto,
ele escorrega e pula, na água mansa
que explode e respinga.
E leva bom tempo
para assomar o focinho
de periscópio.
618
Ao ensejo, esclareça-se que o fleumático quelônio mora”
Numa dobra da serra,
onde
617
Remeto às págs. 287-289 (tópico 1 deste Capítulo).
618
Foi rabiscada, de modo a torná-la ilegível, uma palavra de três letras (talvez por) entre
pisa
” e
perto
, no
primeiro verso da colação. Em ROSA, 2, 126:
Leva
bom tempo, suprimindo-se a conjunção introdutória da
frase.
338
há um minadouro,
uma bica
e um poço azul.
A água “mansa” do poço azul, em que o réptil imerge à procura de segurança
no perigo, traduz a idéia de confortador contato com a pureza do princípio de todas as coisas.
Constate-se que o minadouroborbota adrede de uma “dobra
da serra
, avocando as ante-
cessoras Águas
da serra
” a partir de onde comou a viagem vital do noviço. Ora, sendo o
cágado, como se sabe, um animal aícola, alcança-se a ilação simlica de que ele vive
imerso no ambiente primordial que manifesta a origem divina do ser, de acordo com o que já
foi estudado no início deste trabalho
619
. Pondere-se, ademais, que o quelônio é reputado na
composição em tela como um “escafandrista”, o que põe em evidência o seu vínculo com o
elemento hídrico, além de aproximá-lo do ser humano, eis que o termo designa o mergulhador
que faz uso do escafandro, traje especial projetado para longas permanências debaixo dágua;
o vobulo, aliás, provém das palavras gregas
skaphe
, barco, e
andros
, homem, ou, lite-
ralmente, homem-barco. E, com efeito, o quelônio de “dorso (...) convexo e abaulado” e
focinho/ de periscópio” é comparado por Guimarães Rosa a um submarino U-18/ da base
de Kiel(numa referência a certa cidade alemã famosa por seus estaleiros navais), tudo ser-
vindo para salientar a desenvoltura do animal no meio aquático.
Mas é mister insistir na natureza transcendente do
habitat
do cágado. Diga-se
então que todas as conotões mais sublimes carreadas pelo signo da água se robustecem em
função da cor apresentada por ela no poço: “azul. O autor ainda a descreve como redon-
da,
pequenina
e fria” e, por conseguinte, não será por acúmulo de substância que o quido se
colore de ciano, mas sim porque espelha, embaixo, o tom do u por cima. Destarte, venha à
memória que a tonalidade azunea, na poética, reveste-se de um cariz simlico que exprime
a demanda metafísica e anagógica da criatura, assunto ao qual também já nos reportamos an-
tes
620
. Sem a necessidade de se demorar em detalhes previamente abordados, convém apenas
recordar, nesse contexto, que a
blaue Blume
(flor azul) de Novalis se constitui no mais su-
blime “símbolo de inalcançáveis sonhos e realizões do Homem, bem como no símbolo da
ansiada
união entre o Homem e a Natureza
621
. Outrossim, para outro precioso poeta alemão e
coetâneo de Novalis, Friedrich Hölderlin, essa “união entre o Homem e a Natureza” consiste
619
V. as págs. 76 e segs. (Capítulo II, tópico 1).
620
Cf. págs. 151-153 (
loc
.
cit
., tópico 3).
621
Cito Cláudia Cavalcanti, no ótimo posfácio exposto em TRAKL, 275, 96-97. Grifei.
339
no reencontro do ser humano com os deuses Celestes
622
, os quais são figurados pela infini-
tude azulina do firmamento. E por fim, convém exemplificar com mais um importante autor
de fala germânica, o austríaco Georg Trakl, em cuja obra o azul também reflete a procura pelo
mistério divinal
623
.
Há ainda nos versos de “O cágadooutro inestimável aspecto que diz respeito
à água: a circunstância de fluir ela de “um minadouro. Em razão do artigo indefinido mascu-
lino que a precede, é indubitável que a palavra “minadourose refira a uma nascente donde
mina um fio dágua – ou pelo menos essa é a conclusão no plano lógico-gramatical. Porém,
no plano sonoro fica sugerido o mesmo valor fonético de mina douro, mina de ouro: com
isso, a água acaba sendo identificada ao ouro. Certamente que em Guimarães Rosa, interessa-
do em alquimia e leitor de Hermes Trismegisto
624
, essa identificação contribui para elevar a
água do poço azul” a algo além da mera substância física. Na tradição espagírica, o ouro ex-
prime exatamente a transcendência, a passagem do estado de ordinariedade plúmbea à exce-
lência áurea, a re-união do alquimista com Deus, que é o fundamento do Universo. Outros-
sim, a alusão velada ao ouro é reforçada na peça guimarrosiana pela menção, em verso pró-
ximo, ao sol, outro signo alquímico que, pela cor simlica dourada, remete novamente ao
ouro e à idéia de consubstanciação com o divino:
Quando o sol bate de cheio,
ou seja, quando ele está em plenitude, o contemplativo cágado traz para fora a cuia emborca-
da/ e se aquece (...) em cima da laje, realmente pondo o seu ser em comunhão com a luz e
com o calor que procedem do Alto. E note-se que “o sol bate de cheiona água onde o
quelônio reside. Pela associação, na origem, com o ouro, e depois com a plenitude do sol, a
água tem revigorada a sua natureza de símbolo de sapiência, de imaculação e de busca anagó-
gica das origens.
Finalmente, a mais sobrelevar o ideal de busca da transcendência no carme de
Magma, existe o fato de ser a “água redonda. O círculo é, universalmente, mais um notório
622
V. a valiosa introd. de José Paulo Paes a LDERLIN, 189.
623
Cláudia Cavalcanti explica: É também em Nascimento que o azul ganha a tonalidade mais freqüente na obra
trakliana. (...) com o passar dos anos o poeta imprime-lhe mais e mais gotas de cor preta.(in: TRAKL, 275, 95-
99). Coincidentemente, o azul da água do poema rosiano sob foco está igualmente fadado a enegrecer, por um
tempo, junto com a noite mistagógica que já se anuncia na peça imediata, Necrópole”.
624
Cf. o levantamento realizado por SPERBER (87, 199), figurava na biblioteca do escritor o Corpus Hermeti-
cum, atribuído a Trismegisto, em edição francesa de 1945. No seu discurso de colação de grau em Medicina
(1930), Guimarães Rosa também cita esse fundador mítico da hiera techné: Assim, ao conselho quadrifonte de
Trismegisto, o três vezes magno, Saber, querer, ousar, calar-se ajuntemos o amar, enfeixando toda a nossa
deontologia.(v. ROSA, 19).
340
signo de ascensão, de retorno ao princípio, de perfeita reunião entre o começo e o fim, já des-
de o Tao e o ideário neoplatonista e por igual na simlica zen e na do cristianismo, todos
sistemas componentes do imaginário rosiano. E por vezes, equiparado ao círculo, aparece o
símbolo do olho, que revela a visão e a sabedoria divinas e mesmo o próprio Deus, conforme
a conhecida imagem cristã do olho dentro de um triângulo eilátero, manifestando a onipre-
sença da Sanssima Trindade. Em face de tal, tem relevância que no poema em tela o réptil
tenha morada no centro do olho dágua”, cuja conformação é “redonda. Somando-se esses
fatores ao “corisco de esperança” aceso em Tentativa”, é possível interpretar o poço azul
do quelônio, na jornada stica do aprendiz, como outro ensolarado marco de crença na re-
denção, como o parecem comprovar os versos que concluem O cágado:
E o caipira guarda a vida do monstrengo
(Ai! meus pecados de antes do Dilúvio!...),
se o matarem, o olho dágua se evapora
(Ai! minha felicidade pequenina!...)
E o cágado, lento e pré-diluviano,
na cacimba da grota,
espera outro Dilúvio
...
625
O “caipira”, lamentando os pecados” cometidos ao longo do caminho e a
pe-
quenez
de sua “felicidade”, não é outro senão o iniciando que vem aprender com o réptil as li-
ções da água. Ele guarda a vida do monstrengo, pois teme supersticiosamente que se esse
velho mestre vier a morrer, como antes Araticum-uaçu, porventura ficaria comprometida a
sobrevivência do poço, cuja “água (...)
pequenina
ilustra a felicidade
pequenina
” e a própria
fé do homem. Pode-se averiguar que há aí um persistente laivo de ingenuidade, pois o noviço
demonstra ainda ter medo da morte; entretanto, é bastante positiva a intuição de que a perda
de contato com a quida essência das origens seja prejudicial ao desenvolvimento anímico do
ser e ao definitivo alcance da bem-aventurança. De qualquer modo, descortina-se aí uma nova
e importanssima perspectiva: se a água do poço é apta a ilustrar a alma do neófito, o cágado
seria então o persentimento ou o gênio inspirador da sabedoria antiga que assenta nos recessos
secretos da criatura e é mudo conhecedor do liame que ata o humano à divindade. Poço, ani-
mal e homem desempenham, pois, diferentes facetas poéticas da mesma personalidade que
tem procurado pelo acesso a Deus.
Por isso então que, em contrapartida ao temor do caipira, o vetusto “cágado,
lento e pré-diluviano, tranqüilamente “espera” a vinda de “outro Dilúvio. É sabido que, na
Bíblia
, o primeiro Dilúvio significou o castigo divino que se abateu com vistas à eliminação
625
Em
id
., 2, 127: (Ai! meus pecados
todos
!...).
341
física da raça humana degenerescente, só se tendo salvo os justos, que eram Noé e sua família,
ao lado dos animais. Um segundo Dilúvio, contudo, jamais poderia ter o mesmo caráter puni-
tivo, por causa do pacto assumido por Jeová diante da descendência do patriarca (Gênesis
9.11):
Estabeleço a minha aliança convosco: não será mais destruída toda carne por
águas de dilúvio, nem mais haverá dilúvio para destruir a terra.
Destarte, o Dilúvio – grafado pelo autor com inicial maiúscula – que o sapiente
réptil “espera” consiste no advento de uma grande e purificante precipitação celeste, mais tor-
rencial e festiva do que a garoa “fina” de “Toada da chuva” e, por conseguinte, bem mais pu-
rificadora, imensidade que venha purgar os pecadose afinal alargar os limites da “cacimba
da grota”, ampliando assim a “água” e a “felicidade pequenina” do poeta que reza o rosário.
Uma tal inundação, operando simbolicamente a retomada da plena comunhão com o princípio
aquático, será por certo propiciatória de um novo nascimento do ser. E derramando-se ela do
u, manifesta enfim as graças da Parusia, pela qual o criador divino se abre para a consubs-
tanciação com a criatura. Esse Dilúvio será então a “Chuva” benfazeja que se prodigaliza na
antepeltima peça de Magma
626
.
Todavia, antes que se verifique esse venturoso acontecimento, a fé do neófito
ainda será submetida a provas, vindo a sofrer fortes crises de oscilação. É o que ocorre por
ocasião do grave poema “Necrópole, o qual doravante ocupa os cuidados de análise. Nesse
carme, a noite, que durante o Assombramentohavia enviado seus cães para socorrer o novi-
ço, agora se lhe semelha de novo como uma hora malévola:
E a noite, igual a muitas outras noites,
com alguém pregando panos pesados
para esconder estrelas,
com asas de paina de corujas
transportando agouros,
com dedos em lábios invisíveis
impondo silêncio...
Sob o negror pesado dessa noite silenciosa e sepulcral, faz-se observar que “O
monte dorme.E
626
Apenas como fecho, tem pertinência transcrever a visão de Hygia T. C. Ferreira sobre “O gado: Como
outras espécies pré-diluvianas, o gado filósofo sobrevive ao cataclisma das tendências contrárias ao seu pen-
samento, na Arca dos pessimistas, daqueles para quem a existência é ilusória, e o mal, a essência do mundo.
Schopenhauer é um exemplo de filósofo pessimista. Segundo ele, chega-se à paz, negando-se a vontade de viver.
Em Guimarães Rosa, esse réptil se esconde, quando se depara com doutrinas filosóficas de natureza diversa. E o
poeta conclui: a felicidade é pequenina, mas existe, para quem acredita nela.(FERREIRA, 47, 244).
342
O monte, agachado e cinzento,
é um elefante de pedra.
(...)
Os homens que lhe escavam, aos poucos, o granito,
fizeram dele quase uma esfinge,
e muitos morros iguais, onde dormem esfinges,
à espera dos cansaços do futuro...
627
Ao que tudo indica, são essas
escavações
dos homensna “pedraque vão
erigindo a “Necrópole” do título: a palavra, oriunda do grego
nekropolis
, significa literal-
mente “cidade dos mortos, dizendo respeito a qualquer tipo de recinto cemiterial. No texto
de Guimarães Rosa, porém, parece haver uma referência mais específica às covas que nos
tempos ancestrais eram usualmente abertas, às vezes em grandes grupos, nas montanhas ou
paredes rochosas de certas paisagens do Oriente, inclusive as bíblicas. O sepultamento de
Jesus, por exemplo, teve lugar num túmulo solitário assim cortado (
Mateus
27.60,
Marcos
15.46,
Lucas
23.53).
Ponto importante é que o rochedo desse modo escavado assuma, na composi-
ção rosiana, o semblante de “quase uma
esfinge
. Monstro mítico da Antigüidade, com corpo
de lo e cabeça e busto humanos, a esfinge teve um papel eminente nos ritos funerários do
Egito dos faraós. Das várias estátuas e estatuetas hoje conhecidas, colocadas invariavelmente
à entrada da maior parte das tumbas e templos, a mais célebre é a gigantesca construção de
73m de comprimento por 20m de altura, datada de cerca de 2.500 a. C. e que, fazendo parte
do complexo de pirâmides e mastabas de Gizé, assenta a leste da pirâmide de Quéfren, mo-
narca, aliás, que empresta sua fisionomia à fabulosa figura. No imaginário egípcio as esfinges,
entes protetores cujos rostos se voltavam sempre para o nascente, eram consideradas as guar-
diãs serenas e solares das necrópoles, zelando, nas vizinhanças dos defuntos mumificados,
pela tranqüilidade necessária para que as almas alcançassem devidamente o glorioso destino
post-mortem
:
Nenhuma inquietação, nenhum temor nos traços, como vemos nas máscaras
gregas. Não estão
[as esfinges egípcias]
fitando um enigma cuja grandeza as pertur-
ba, mas chegando interiormente a uma verdade absoluta, cuja grandeza as preenche,
ao contemplarem o nascer do Sol.
628
Enfim, para os egípcios a esfinge manifestava o caráter benévolo da morte
como passagem para uma outra espécie de vida.
627
Em ROSA, 2, 128: Os homens
que escavam
, aos poucos, o granito, com a eliminação do pronome obquo.
628
Georges Buraud (
Les masques
),
apud
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 389.
343
Entretanto, há também que se levar em conta que, migrando do Egito para ou-
tras culturas, a nobre esfinge transformou-se nas mais tardias mitologias da Mesopotâmia,
da Hélade e de Roma – num ser aterrorizante que encarnava a devassidão, o poder tirânico e a
mais perversa crueldade. Encarada por esses povos posteriores como uma entidade dos mais
profundos subterrâneos, entre os mesopotâmicos a esfinge recebeu asas de águia que, sem
embargo, o mais das vezes não lhe permitiam voar, desta maneira ficando demonstrado o ape-
go bestial da fera ao chão e à matéria, com a conseente ausência de ímpetos de elevação es-
piritual. Na famosa lenda helena de Édipo, um monstro de face feminina foi mandado pelos
deuses para assolar as cercanias de Tebas, propondo charadas que os viajantes deveriam obri-
gatoriamente decifrar, sob pena de serem devorados: tem-se aí o símbolo tanto da morte vista
como um espectro brutal e sem sentido quanto o do saber desprovido de sabedoria, soberbo e
gratuito, que se compraz na destruição.
Qualquer que tenha sido a faceta sígnica privilegiada por Guimarães Rosa em
Necrópole”, resta que a colina esculpida é descrita como sendo quase uma esfinge. O ad-
vérbio restritivo ime que, na hitese de se tratar de uma esfinge egípcia, ainda não se en-
contra no máximo vigor a sua promissora natureza de vigia que zela para que os mortos res-
suscitem sob os auspícios do Sol. Por outro lado, cuidando-se de uma esfinge ameaçadora, ao
talhe da do mito de Édipo, a sua fúria de ser inacabado não será então suficientemente letal
para que se possa opor de forma irresisvel ao desejo humano de trilhar a senda ascética, fi-
cando o monstro ctoniano sem força alguma para poder manter os viajores no abismo da
morte, sem remédio e sem volta. Outrossim, o fato de que a esfinge rosiana está sendo feita
pelos homensrevela a responsabilidade humana na tomada de uma ou outra das orienta-
ções: a cada escavador incumbe decidir se está esculpindo para o seu próprio monstro um per-
fil favoravelmente egípcio ou temivelmente grego. E ainda é dito que “há muitos morros
iguais, onde dormem esfingesde semblante obscuro, prontas a despertar pela mão dos es-
cultores. De todo modo, a presença da esfinge no itinerário de Magma parece querer repre-
sentar uma idéia de momentânea incompletude ou indefinição: a morte como quase-vida ou a
vida ainda como quase-morte, em suma, algum ponto no meio do caminho mistagógico que
conduz ao renascimento. Não por outro motivo é que se desenha a visão do esfíngico monte,
agachado” entre o solo e o salto, e ensombradamente “cinzentoentre as trevas da nigredo e
as luzes da albedo.
De se cogitar mais que, tal como a esfinge enfrentada por Édipo (o qual sobre
ela triunfou), a vida e mesmo a morte continuamente propõem, a todo indivíduo que opta pelo
esforço iniciático, o stico enigma mudo e a indefecvel alternativa: Decifra-me ou te de-
344
voro. Tendo que se decidir, o fatigado peregrino que reza o rosário – há longo tempo na es-
trada, sob a noite “igual a muitas outras noites” e contemplando a silhueta da “Necrópole”
outra vez parece por um instante descrer de tudo, o que vale dizer, duvida de sua procedência
divina que testemunha o luminoso liame com a Alma Parens (“a luz) e conseentemente
duvida da recompensa por vir ao cabo da aventura vital (o descanso):
Sem a luz ter sido feita no primeiro dia,
sem que possa haver descanso no último dia,
forças vagas vão criando a vida,
longe do rude rumor do muito real...
De sorte que Deus, por enquanto demasiado longínquo, muito atrás nas Águas
da serra” do primeiro dia” e muito à frente na “Consciência cósmica” do último, no exten-
so entretempo se afigura para o noviço apenas como umas indistintas forças vagas, situadas
longe (...) do muito real. Esse “muito realdenota toda a concretude presente do universo
físico, cuja existência pode ser vista, sentida e comprovada pelos órgãos do corpo profano.
Em constraste a tal concretude que enganosamente representa ser muito real, as divinas, in-
tangíveis e invisíveis forças vagasque “vão criando a vidasão assimiladas a “uma lâmina
cega, a qual
trabalha o bloco denso do Infinito,
talhando abstrações...
– parecendo portanto atuar de maneira indiferente (ou seja, abstraída) à labuta das criaturas
sujeitas ao rude rumordo mundo.
Destarte, aquele granito” em que “os homens (...) escavamas sepulturas da
Necrópole”, delineadoras do recorte da misteriosa “esfinge”, é equiparado ao bloco denso
do Infinito, onde as forças vagasvão às cegas talhando abstrações. Obtém-se, em sínte-
se, que tanto o trabalho humano como o divino são neste comenos interpretados como empre-
endimentos vãos e erradios, sem uma meta discernível a atingir. O estar no mundo, para o
perdido aprendiz, assemelha-se agora então a um tipo de rosário constantemente ao contrário,
cujo desfiar não consiste num retorno ao princípio, mas resulta para usar os termos que
Guimarães Rosa exe adiante em outra peça em interminavelmente repetitivas voltas pa-
vorosas/ do (...) Eterno Retorno
629
. Por isso, aos olhos do iniciando parece que, de conta para
conta, de sepulcro para sepulcro, de “Necrópole” para “Necrópole, enfim,
629
O conceito nietzschiano de Eterno Retornoserá melhor discutido mais tarde, ao ensejo do texto Biblio-
causto, fonte dos versos citados (v. a pág. 387 e segs., no próximo tópico deste mesmo Capítulo).
345
(...) de monte para monte, se transmitem
transcendências absurdas
:
o problema
dado ao elefante Iriarte pelo deus Vishnu...
Nesses versos finais, que recuperam a imagem inicial do poema (a da “Necró-
pole” como um
elefante
de pedra”), Guimarães Rosa aparentemente cruza dois complexos
simlicos bem distintos acerca do animal a que o montefora associado. O primeiro indu-
bitavelmente diz respeito à fabula em versos
El elefante y otros animales (Ningún particular
debe ofenderse de lo que se dice em común)
, do espanhol Tomás de Iriarte (1750-1791),
texto pouco conhecido no Brasil e que por conseguinte vale a pena transcrever integralmente:
1
Allá, en tiempo de entonces,
y en tierras muy remotas,
cuando hablaban los brutos
su cierta jerigonza,
5
notó el sabio Elefante
que entre ellos era moda
incurrir en abusos
dignos de gran reforma.
Afeárselos quiere,
10
y a este fin los convoca.
Hace una reverencia
a todos com la trompa,
y empieza a persuadirlos
en una arenga docta,
15
que para aquel intento
estudió de memoria.
Abominando estuvo
por más de un cuarto de hora
mil ridículas faltas,
20
mil costumbres viciosas:
la nociva pereza,
la afectada bambolla,
la arrogante ignorancia,
la envidia maliciosa.
25
Gustosos en extremo,
y abriendo tanta boca,
sus consejos oían
muchos de aquella tropa:
el Cordero inocente,
30
la siempre fiel Paloma,
el leal Perdiguero,
la Abeja artificiosa,
el Caballo obediente,
la Hormiga afanadora,
35
el bil Jilguerillo,
la simples Mariposa.
Pero del auditorio,
otra porción no corta,
ofendida, no pudo
346
40
sufrir tanta parola.
El Tigre, el rapaz Lobo
contra el censor se enojan.
¡Qué de injurias vomita
la Sierpe venenosa!
45
Murmuran por lo bajo,
zunbando en voces roncas,
el Zángano, la Avispa,
el Tábano y la Mosca.
lense del concurso,
50
per no escuchar sus glorias,
el Cigarron dañino,
la Oruga y la Langosta.
La Garduña se encoge,
disimula la Zorra,
55
y el insolente Mono
hace de todo mofa.
Estaba el Elefante
viéndolo con pachorra,
y su razionamento
60
concluyó en esta forma:
A todos y a ninguno
mis advertencias tocan;
quien las sente, se culpa;
el que no, que las oiga.
65
Quien mis fábulas lea,
sepa también que todas
hablan a mil naciones,
no sólo a la espola.
Ni de estos tiempos hablan,
70
porque defectos notan
que hubo en el mundo siempre,
como los hay ahora.
Y pues no vituperan
señaladas personas,
75
quien haga aplicaciones
con su pan se lo coma.
630
Como se pode ver, na composição se encarece a sabedoria do paquiderme que,
dentre outros conselhos, exorta cada componente de seu
auditorio
” a
abominar
la arro-
gante ignorancia
” e a ter a humildade e a responsabilidade de examinar seu interior, a fim de
averiguar aí se merece ou não qualquer das advertências levantadas. E já que prega tais virtu-
des, o elefante, cuja autoridade em momento algum é questionada pelo escritor hispânico,
demonstra já haver apreendido o ensinamento que preleciona. Outrossim, note-se que Guima-
rães Rosa une, por metonímia, o autor (Iriarte”) à personagem (“elefante), de modo similar
ao procedimento do próprio fabulista, que equipara suas
fábulas
à
arenga docta
do ani-
mal. Fica, pois, bastante enfatizada a circunstância de que quem recebe “do deus Vishnuna
630
IRIARTE, 192, 5-7.
347
Necrópole” rosiana isto é, na mansão dos mortos o problema” para resolver, é um sábio
que já deve ter o donio de perscrutar a sua alma.
Quanto à alusão feita por Guimarães Rosa ao deus da Índia, é mais nebulosa. É
certo que o elefante comparece em diversas passagens da mitologia védica e hindu, onde de
modo clássico simboliza os aspectos mais elevados, tais como a soberania divina (de forma
que Shiva é freentemente cognominado de Elefante), o conhecimento stico (o que fica
bastante claro na figura de Ganesha, deus das Artes e das Letras, cujo corpo microcósmico,
que espelha a manifestação, é humano, sendo elefantina a cabeça macrocósmica que exprime
o manifestante) e a estabilidade (eis que o corpo do paquiderme, abaulado e erguido sobre
quatro robustas patas, evoca a estrutura do universo imaginado como uma esfera posta sobre
pilares).
Mas a presença do animal especificamente junto a Vishnu é significativa em
pelo menos três cenas míticas em particular. Na primeira delas, o elefante acompanha “Vasu-
deva Vixenu como senhor dos três mundos, o que “parece indicar justamente sua sobera-
nia sobre o mundo terrestre”
631
; neste caso, o problema” em Magma consistiria na passagem
entre os estratos térreo, subterrâneo e celeste da existência, ponto harmônico com o estágio
atual da iniciação guimarrosiana: infere-se que o mestre “elefante Iriarteseria comissionado
a incitar o neófito para que este realize tal transição através do próprio íntimo, do vero Mag-
ma.
Outra formulação mitológica pertinente assenta na idéia, corrente no hinduís-
mo, de que Vishnu seria ele mesmo o angélico elefante branco de seis presas que num sonho
penetrou no flanco da rainha Maya, engravidando-a misticamente de Siddharta Gautama, o
Buda (Iluminado). Segue-se que “o problema” em Necrópoleresidiria uma mais vez em
predispor o noviço para o raiar interno da iluminação astica, a qual advém de uma benção
divina. Contudo, nessa hitese, posto que válida, Vishnu e o paquiderme são encarnados na
mesma figura, o que, salvo melhor juízo, não parece acontecer no texto rosiano.
Finalmente, deve-se fazer referência ao episódio do salvamento de Gajendra,
rei dos elefantes, por Vishnu, em narrativa constante do Bhagavata Purana (composto em
sânscrito entre os sécs. VI a. C. e IV d. C. e depois vertido para o telugu no séc. XV, pelo ce-
lebrado vate Pothana). Nessa interessante estória, Vishnu está jogando xadrez com a esposa
Lakshimi (a qual, a propósito, em dadas oportunidades é figurada ladeada por dois elefantes
com as trombas levantadas, sendo então chamada de Gayalakshimi, a Lakshimi dos elefantes).
631
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 360. Grifos dos autores, os dois primeiros em negrito.
348
A certa altura, a deusa consegue bloquear a peça do elefante – que no xadrez indiano faz as
vezes do cavalo – de Vishnu. Este, de inopino, põe-se de pé e brada comovido: Oh, elefante,
não te desesperes, eu te irei salvar!Lakshimi, surpresa com a atitude do consorte, retruca que
seria impossível o desbloqueio da peça do jogo. Porém, Vishnu respondia dessa maneira a
Gajendra que, em perigo num local distante, clamara ao deus em oração. Gajendra, egoísta no
sentido primário de apegado ao próprio ego, e orgulhosamente confiante em sua força física,
havia caído nas presas de um gigantesco crocodilo, mas resultavam debalde seus esforços
para se livrar sozinho. Prestes a sucumbir, ele gritou: Oh, Senhor! Eu não tenho outro refúgio
senão em ti, a quem me abandono completamente! Peço-te perdão pela minha arrogância, e se
te apraz vem me socorrer!Somente quando o elefante confessou sua impotência e apelou
com humildade para Vishnu, é que este o pôde ouvir e salvar. Igualmente, o poeta de Magma
deverá confessar suas fraquezas e se entregar a Deus, para que a aventura iniciática chegue a
bom termo. Extrai-se que “o problemadado por Vishnu ao “elefante Iriarte” não seria mais
do que ensinar ao iniciando, por meio do exemplo, o valor da primeira das virtudes teologais:
a fé irrestrita em Deus.
Não obstante, nessa hora a questão de fé ainda surge para o exausto peregrino
como meras transcendências absurdas... o que não é mau. O elemento do absurdo acaba se
revelando essencial nos mecanismos anagógicos, consoante deem o poético koan zen
632
e as
celebérrimas máximas Credo quia absurdum(atribuído a Santo Agostinho) e “Credibile
quia ineptum est(nas palavras de Tertuliano), as quais são traduzidas, respectivamente, como
Creio porque é absurdo” e Crível porque é ilógico. Com efeito, não se pode escorar a fé
em motivos racionais, porque ela é da mesma substância etérea da Poesia e, conforme Ma-
noel de Barros,
Poesia não é para compreender, mas para
incorporar
Compreender é parede; procure ser uma árvore.
633
632
Cf. MOREL y MORAL (218, 203) o koan é: Acertijo, problema abstruso planteado por el maestro Zen al
discípulo con el fin de generar en él la eclosión intuitiva, base de la Iluminación. (...) Problema que (...) no puede
resolverse com la lógica ni con el intelecto sino con una sacudida mental de nível espiritual más elevado. Es
un ejercicio dado al aspirante para transcender sus limitaciones y desarollar su intuición. (...) Los Koans no pue-
den resolverse por medio de razonamientos lógicos, sino unicamente mediante el despertar de un nível más pro-
fundo de la mente, que está más allá del intelecto discursivo. Los Koans se forman con las preguntas de los anti-
guos discípulos, acompañadas de las contestaciones de sus maestros (...) La palabra o la frase en que se condensa
el Koan cuando se lo toma como ejercicio espiritual se llama wato (del chino hua-tou).WOLPIN (287, 197)
complementa: los koans son preguntas que no se pueden resolver mediante el pensamiento, provocando un gran
estado de tensión intelectual que puede desencadear una experiencia interior.
633
BARROS, 117, 212, Sabiá com trevas, XV(Arranjos para assobio).
349
Ademais, segundo Chevalier e Gheerbrant, todo verdadeiro iniciado indica o
caminho da verdade sob aparências por vezes absurdas.
634
Enfim, a mensagem do Tao (composição 41) é a de que
Se Tao não lhe parecesse absurdo,
Não seria Tao.
Conseentemente, o verdadeiro fiel crê não por causa de um favor divino,
mas sim a despeito de uma aparente e transitória adversidade. Com isso, as transcendências
absurdasque os montes da “Necrópole” transmitem entre si devem ser vistas pelo asceta
como instrumentos que o ajudam a mais temperar a sua fé e a se aproximar de Deus. Há ape-
nas que, assim como Gajendra de dentro das mandíbulas do crocodilo ou Jó do fundo de sua
tribulação, acreditar, por mais que a graça celeste pareça improvável.
Um derradeiro detalhe merece espo no que toca a Necrópole”. Nesse carme
tudo se passa numa paisagem montanhosa, mais próxima do firmamento, sendo o morroum
local de hierofaniade vulto na “cosmologia rosiana”, de acordo com o que bem atesta
Hygia T. C. Ferreira, a qual também chama a atenção para o fato de que é justamente nesse
trecho de Magma que ocorre “a primeira referência” a tal ambiente na obra de Guimarães
Rosa
635
. Outrossim, é de se lembrar que os prosopopéicos versos E, de monte para monte, se
transmitem/ transcendências absurdasparecem guardar uma estreita relação com as mensa-
gens passadas adiante pelos bichos em Ritmos selvagens(poema do primeiro terço), bem
como com o significado contido em O recado do morro(de No Urubuquaquá, no Pinhém),
novela em que o Morro da Garçase comunica com os homens cujo espírito seja aberto o su-
ficiente para sintonizar com as manifestações mais sagradas que provêm dos altos cimos.
Em prosseguimento no itinerário magmático, alcança-se agora o Paraíso filo-
sófico, que se constitui num novo pouso de avio para o peregrino. Aí convergem todas as
implicações simlicas discutidas anteriormente com pertinência ao jardim e ao ambiente pa-
radisíaco
636
. O Paraíso filosóficode Magma é situado por Guimarães Rosa no fecundo Jar-
634
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 940. Anoto que a Modernidade estética redescobriu de forma triun-
fante o conceito do absurdo por meio de Charles Baudelaire, via François Rabelais. Desde Baudelaire, o absurdo
foi entusiasticamente explorado pelos mais relevantes nomes da literatura ocidental, destacando-se o trabalho
isolado e inovador do nosso genial Qorpo-Santo, a obra de Alfred Jarry e o inestimável papel das vanguardas
Dadaísta (Hugo Ball, Hans Arp, Tristan Tzara, Kurt Schwitters) e Surrealista (André Breton, Louis Aragon, Paul
Éluard), além do próprio Teatro do Absurdo (Eugène Ionesco, Samuel Beckett). Os quatro prefácios de Tuta-
méia, dentre vários outros textos, sublinham o alto grau de importância conferido por Guimarães Rosa ao as-
sunto.
635
V. FERREIRA, 46, 226 e segs., donde retirei os fragmentos entre aspas. A pesquisa da autora examina com
propriedade o signo do morro e elenca vasta coleção de textos guimarrosianos em que o mesmo é abordado.
636
Remeto, no presente estudo, à pág. 37 e segs. (Capítulo I, subtópico 2.1).
350
dim das Hespéridas, onde, de conformidade com a mitologia grega, deram-se os esponsais de
Zeus e Hera, e ainda onde cresciam as maçãs de ouro representativas da espiritualização atra-
vés da qual os seres humanos podem se alçar à imortalidade. Conquanto se faça menção, na
peça guimarrosiana, à circunstância de que o vergel esteja
(...) sem flores
na discrição dos tufos de folhagem,
637
os frutos áureos são identificados pelo poeta às estrelas, como os pomos das luzes do Capri-
córnio aceso. Então, tem valia considerar que esse signo zodiacal é o
Símbolo do fim de um ciclo e, sobretudo, do
início de um ciclo
novo (...). Exprime a
paciência, a perseverança, a prudência, a industriosidade, a realização, o sentido do
dever. (...) O elemento Terra fomenta seu desenvolvimento: é a terra invernal em cu-
jas profundezas se elabora a lenta e penosa tarefa da vegetação. (...) O signo é repre-
sentado por um animal fabuloso, metade bode, metade delfim, ou por uma cabra,
quadrúpede trepador, atraído pelos cumes.(...) Edifica-se sobre um movimento inicial
de retraimento em si mesmo e de concentração; (...) refugia-se nas profundezas de seu
ser. E a
lenta elevação dessas forças profundas
, cuja existência é com freqüência igno-
rada pela própria pessoa, é o que lhe permite afirmar seu valor, assegurando-lhe o
pleno domínio de si mesma. Esse autodomínio costuma ser o resultado de um paciente
treinamento da vontade, exercida para afirmar seu comando sobre o instinto e a sen-
sibilidade. (...)
A figura simbólica desse signo corpo de bode, rabo de peixe revela a na-
tureza ambivalente do capricorniano, entregue às duas tendências da vida: em dire-
ção ao abismo ou às alturas, em direção à água ou à montanha.
638
As características que conformam o símbolo do Capricórnio acesorestam
sincronizadas à perfeição com o instante flagrado em
Magma
.
Se nos detivermos primeiro so-
bre a figuração que mais usualmente evoca o signo do Zodíaco – um “animal fabuloso, meta-
de bode, metade delfim, cujo contorno é traçado no u pela constelação –, perceberemos a
ambivalência
que se instaura na alma do iniciando, “entregue às duas tendências da vida: em
direção ao abismo ou às alturas, em direção à água ou à montanha”. Na iniciação rosiana, essa
tensão entre o baixo e o alto se apresenta como um sistema de marcante complexidade: a al-
titude dos morros, sempre ligada à idéia de ascese stica, foi mais proximamente carreada
pelo horizonte da “Necrópole(cujos cumes, pode-se dizer,
atraíram
ou
acenderam
as lu-
zes do Capricórnio), logo se relacionando, em princípio, à morte; entretanto, também foi do
escuro dos morrosque as iniciantes Águas da serra” ao longe fluíram, havendo então um
evidente sinal de contato com a vida e o renascimento. Quanto ao “abismo” aquático – que no
637
A forma original
folhagens
foi modificada por Guimarães Rosa com um
m
manuscrito sobre as duas letras
finais.
638
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 184-185. Grifos dos autores, em negrito.
351
Paraíso filosófico” é dado como lagos vidrados–, está sujeito, como é sabido, à mesma
ambigüidade: profundidade íntima e retorno às subidas origens. Por conseguinte, a “água” e a
montanha” a que Capricórnio se liga são um e o mesmo ponto de partida e de chegada: são
Deus. Além do mais, os detalhes de caracterização do signo capricorniano prendem-se de
forma notável à noção de “retraimento em si mesmo, aspecto sobejamente enfatizado como o
cerne das preocupações anagógicas do livro de 1936. Tudo se ajusta ao sentido iniciático de
lenta elevação dessas forças profundasque descansam no ser humano – e é nessas profun-
dezasque “se elabora a lenta e penosa tarefa da vegetação. O enlaçamento imagético da
“elevação” e da “vegetação” é, em Magma, absolutamente apropriado: já se disse que não há
flores no Paraíso filosófico, e por outro lado há, dispostos e prontos para serem ocupados,
(...) vasos,
muitos vasos,
vasos vazios...
Ora, a razão da aparente ausência floral é a de que as sementes, por enquanto
simbolicamente recolhidas e ocultas no “elemento Terraque “fomenta o (...) desenvolvi-
mentodas plantas, ainda estão apenas na expectativa da floração plena
639
. As qualidades re-
queridas para a espera dessa germinação são igualmente componentes dos caracteres que
identificam o Capricórnio: a paciência, a perseverança, a prudência” etc... Assim, os aludidos
vasos vazios(i. e., vaziosde uma florada) podem ser interpretados como os corpos das
criaturas, em cujos solos propícios se escondem, insuspeitos, os gérmens anímicos destinados
à brotação. Ou novamente o fioda divinal essência que
(...) corre por dentro,
sem que o poeta o veja,
sem que o sinta,
sem que o desminta...
Em função disso, ressalte-se que os espíritos dos neófitos são como sementes
ou sementinhas do meloso seco, conforme será articulado no vindouro poema “Chuva”
que foram idealmente enterradas em fúnebres vasos vaziospor ocasião da morte ritual, a
fim de que pudessem desabrochar como novas árvores áureas. E tal cerimônia simlica é a
repetição do mesmo acontecimento de descida das almas à matéria, o que se dera quando do
639
E relembre-se, ademais, da instrução contida no 11º poema do Tao: O oleiro faz um vaso, manipulando a ar-
gila,/ Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.O vaso, portanto, só tem serventia se a sua vacuidade for preen-
chida num procedimento dialético, e daí a ênfase aliterativa contida no verso vasos vazios.
352
nascimento das criaturas
640
. Quando findar o imprescindível processo de interiorização no
solo, nos carmes de Magma sobrevirá (é conveniente frisar outra vez) que
Floresce, na orilha da campina,
enorme ipê
(Amanhecer)
e depois um piquizeiro mortoterá a ramagem, primitivamente “esgalhada e seca,rever-
decida e avermelhada por uma formação de araras cor de fogo,/ (...) entre os mococheiros,/
braúnas, jatobás e imbaúbas(Primavera na serra”), até que na peltima peça, Integra-
ção, far-se-ão presentes uma “alta (...) gameleira, “cis que oscilam” e trepadeiras bra-
vas, e os olhosdo poeta “sobem, tateando os verdes. Tal exuberância arbórea (ipê, pi-
quizeiro, mococheiros, braúnas, jatobás e imbaúbas, gameleira”) estabelecer-se-á como
o resultado natural do crescimento das sementinhaspor ora encobertas nos vasos vazios.
Ainda de se registrar que, se na soturna “Necrópole” aludiu-se a
(...) alguém pregando panos pesados
para esconder estrelas,
no Paraíso filosóficorefulgem agora, como foi visto, os pomos das luzes do Capricórnio
aceso: na abóbada, os astros revelados prenunciam que, da mesma maneira pela qual seus fa-
róis lograram vencer as trevas, o espírito do fiel a bom tempo transpassará a escuridão da
morte e atingirá a Renascença. Destarte, as estrelas, inclusive as da constelação do Capricór-
nio, servem sempre como anúncios das promessas divinas, em correspondência ao que ocorre
tanto no Velho Testamento (Daniel 12.3, Números 24.17) quanto no Novo, em especial na
hora do nascimento do Messias, assinalado aos reis magos (presumivelmente astrólogos vin-
dos do Oriente) pela estrela de Belém (Mateus 2.2). Eis porque, aliás, as estrelas são simboli-
camente aparentadas aos anjos. Enfim,
A estrela é também teofania, uma manifestação de Deus na noite da fé, para preservar
de todas as ciladas do caminho que conduz a criatura em direção ao seu Criador. Ela
fulge, não apenas no u sico, mas no coração do homem...
641
Desse modo, com a claridade da manifestação do nume confortando o noviço,
explica-se que o pouso atual na jornada gstica seja equivalente a um Paraíso...ou lugar
de decias.
640
V., à pág. 82 e segs. (Capítulo II, tópico 1), as explanões tangentes à Cabala luriânica, mormente no que
importa à sheviráh há-kelim.
641
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 407.
353
Cabe ainda r em tela, ao ensejo do quanto foi dito, que o Paraíso filosófico
ou Jardim das Hespéridasrosiano acaba sendo, concomitantemente, um Éden e um Gólgo-
ta: a abertura para a vida (que florirá em Amanhecer” e Primavera na serra) no seio mesmo
da morte (os vasos vazios), tudo em consonância exata com o aspecto há pouco referido do
Capricórnio – o de ser o Símbolo do fim de um ciclo e, sobretudo, do início de um ciclo
novo.
E nesse sítio de maravilhas, a presença de uns vetustos “anciãos
homens de túnica longa,
como os magos da Rosa-Cruz...
traz à mente os sábios iniciados que porventura já teriam se alçado à Ressurreição ou que,
num melhor entendimento, encontrar-se-iam pelo menos numa etapa mistagógica mais avan-
çada. Seriam quiçá uma metáfora das leituras filosóficas (Platão, Plotino, Pe. A. D. Sertillan-
ges, Hermann von Keyserling, William James, Chandogya Upanishad...), poéticas (Johann
Göethe, Rainer Maria Rilke, Amado Nervo, Dmitri Merejkovski, Bashô...) e, claro, alquími-
cas (Hermes Trismegisto...) do jovem Guimarães Rosa
642
, o que justificaria o título de “Paraí-
so filosóficodado ao texto. Seja como for, tais personagens
passeiam passos lentos
pelas alamedas de um sereníssimo cenário que favorece mesmo a suspensão do próprio tem-
po:
o relógio do tempo
muito que parou, os dedos superpostos,
como o dia e a noite,
porque não há mais noite e nem dia...
643
Nos poemas imediatamente antecessores, foi cristalina a sucessão entre dias e
noites: a “manhã de Finados” em Toada da chuva”, a “Meia-noite amarela de sexta-feira” em
Assombramento, a “Manhã básica, alcalina,” em Tentativa, à qual se seguiu, em O -
gado, um luminoso meio-dia (porque “o sol bate de cheiono poço azul), e afinal “a noite,
igual a muitas outras noites,” em Necrópole”. Mas no Paraíso filosóficodá-se a interrup-
ção da série e o relógiora com os dedos superpostos, i. e., com os ponteiros colocados
um por sobre o outro. Condizentemente, o Capricórnio zodiacal projeta “a hora zero para a
642
Sobre esse elenco, consulte-se SPERBER, 87, passim.
643
No segundo verso do excerto foi antes grafado parou com os dedos superpostos, tendo sido a mão suprimi-
da a preposição e acrescentada a vírgula.
354
semente enterrada no solo, em relação à longínqua colheita”, e ainda aventa tanto a meia-noite
como o meio-dia
644
. Essa calmaria temporal parece ademais querer acenar com o avizinha-
mento, para o peregrino, do estágio stico do zerinho zero, o satori zen, o epifânico repou-
so em Deus. É por isso que na ambiência espiritual do Jardim das Hespéridas” está, como o
relógio, o
Ar parado,
lagos vidrados...
Essas águas dos lagosnão ficam inertes pelo canso (como se dera em
Sono das águas), mas sim restam sossegadas pela súbita cessação do vento (o Ar parado).
Segue-se que o Paraíso filosófico” aparece inequivocamente como um local de retiro, onde o
iniciando se priva em definitivo de qualquer resquício do alarido da “Turbulência” vital. E em
razão desse convite ao recolhimento é que ali, à quieta beira dágua,
(...) os anciãos perpassam
intermináveis terraços,
com olhos tranqüilos, olhos gelados,
de tanto olharem o sol.
E as mãos tateiam calmas,
como se os dedos mergulhassem
na translucidez de uma água,
esculpindo
invisíveis e impossíveis formas novas...
645
Dessa forma, totalmente absorvidos pela contemplação teosófica das coisas
sublimes (o sol), esses homens de “olhos tranqüilos, olhos gelados,estão como que cegos
para as iteis visões do mundo profano (o que aliás, constitui o cerne transformativo em to-
dos os transportes sticos). Como o vate Homero, eles já podem ver sem ver e, com “as
mãosque “tateiam calmas, sentir sem sentir. Não obstante, permanecem ainda contribuindo
para o aprimoramento daqueles que visitam o horto à procura da completude das anímicas
formas novas, que por fim possam vir a superar as formas inacabadas(as quais remoi-
nhavam no mar dos nefares grandesde “Lunático, no primeiro terço de Magma) e o
pavoroso das formas não de todo feitas(do começo do terço medial: Iniciação). E se os
644
V. CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 185.
645
No quarto verso da transcrição, o verbo olhar, como a princípio se datilografou, foi flexionado para o infi-
nitivo plural com a adição manuscrita das letras em, sendo ainda aposta à margem direita do texto, igualmente à
mão, a confirmação entre parênteses: (olharem). Variantes em ROSA, 2, 131: retirou-se a parcula Eque
em id., 1, introduzia o primeiro verso (por mim também suprimida, mas tão-só para efeito de integração fluente
do fragmento ao texto explicativo); e, no sétimo verso, escreveu-se a translucidez de uma água”.
355
trabalhadores da Necrópole” escavavam a dura pedra, os operários de agora poeticamente
esculpem a delicadeza da “água” que simboliza o espírito.
Contudo, o Paraíso filosófico” é, para o viajante das sendas esotéricas, tão-
somente uma outra estação de descanso e refrigério, mas não ainda a conclusiva chegada.
Dando continuidade ao trajeto de busca, as o luzir estelar do Capricórnio e o vislumbre do
labor dos “anciãos (...) esculpindo (...) formas novas, como que se reacende no ânimo do ne-
ófito uma fagulha de esperança e, sobretudo, insufla-se-lhe a “Saudade. É justamente esse o
título da composição prosseguinte:
1
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
5
Saudade de gente que não conho,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minhas partes dispersas,
que talvez até hoje ainda esperem por mim...
10
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...
Pressa!...
15
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiada da fusão de tudo,
sede da volta final, vertiginosa,
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
20
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano,
25
afogado no fundo de si mesmo...
646
A transparência do poema torna praticamente expletivos quaisquer outros co-
mentários. Diga-se porém que a “Saudade de tudo!tem como alvo, obviamente, a Fonte “es-
sencial de tudo. Observe-se outrossim que o poeta, de modo incomum, volta sua nostalgia
para as três escalas do tempo: por primeiro curte-se uma “Saudade triste do passado, ou seja,
646
Em ROSA 2, 132-133, são registradas para este carme as seguintes alterões: no verso 8, de minha gente
dispersa; no v. 16, fome angustiosa; e no v. 17 foram retirados o adjetivo vertiginosa” e as vírgulas ladean-
tes.
356
de quando o ser, ainda antes do Nascimento, gozava da presença em Deus, essencialmente in-
distinto dEle; em simultâneo, é a “saudade de todos os presentes/ vividos fora de mim, o
que pode se referir tanto à mais suave vida exotérica que precedeu a difícil inumação mista-
gógica no eu como também à empatia espiritual do noviço para com as vidas das outras cria-
turas irmãs(o que reflete a estreita comunhão entre todos os seres que provêm da Alma Pa-
rens); entretanto, mais do que tudo trata-se de uma “saudade gloriosa do futuro, antecipando
o instante em que a alma do iniciando regressará ao âmago da divindade pelo Renascimento.
Vale perceber que o desejo nostálgico, em sua feição de logicidade, é sempre correlato a uma
lembrança de situões pretéritas efetivamente experimentadas pelo indivíduo, as quais se
pretende reproduzir ou cujas sensões se busca reviver logo, aplicar esse desejo ao porvir
implica numa espécie de previsão do que ainda não aconteceu, compreendendo-se que o futu-
ro, contendo a promessa do retorno a Deus, é similar ao passado que foi pleno dEle. Ora,
tudo isso manifesta outra vez o sentido de circularidade anagógica do rosário.
A definição do sentimento saudoso em Magma, portanto, traduz-se em Pres-
sa” e Ânsia voraz (...) da fusão de tudo: a “grande experiência”, a “volta final” em que to-
dos os seres ver-se-ão consubstanciados com o Criador e não mais haverá eu ou Outro, mas
apenas o Uno plotiniano.
Para bem ilustrar essa ansiada União, nos versos que encerram a quarta estrofe
Guimarães Rosa afunila o próprio texto, explorando as virtualidades visuais do branco da pá-
gina. Parte o autor de uma equação dualista que admite, em sete palavras, tanto o espírito
(“essencial) quanto a matéria (orgânica”), metaforizando o inteiro Universo na imagem de
uma só alma em um só corpo. Tal fórmula é logo reduzida a três vocábulos em que o alto e
o baixo se conjugam e identificam na mesma verdade: uma só alma-corpo. Ato connuo,
tudo se contrai como que num mínimo espelho, no qual os dois lados se confundem: um só,
sistema binário em que “um” é Deus ainda como o Outro, e “sóé o ser ainda como eu, em-
bora bastante próximos. Mas a concentração ainda mais depurada não tarda: o um” conden-
sado ecoa o om ou aum, sílaba sagrada que no vedismo representa a Alma Mater sem mácula,
mistura, dispersão ou alteridade. É essa a excelsa meta poética de quem reza o rosário, estre-
me gota” filosofal que se extrai da retorta alquímica, contendo em sua exigüidade a amplitu-
de do Oceano” e advindo como o único elixir capaz de saciar a “sededa “Saudade. Nem
por outro motivo o neófito de Magma se tem prestado à heautognose iniciática: para descobrir
357
no escuro, afogado no fundo de si mesmo, a pérola da “gotade luz anímica em que se fe-
chou o Oceanodivino. É o tzimtzum cabastico reinventado pelo ser humano
647
.
Item, mister ressaltar que uma tal gota metafísica de “Saudade”, por nima
que seja, de Magma acabou se alastrando e vindo a encharcar o conjunto de toda a posterior
escritura de Guimarães Rosa, que é, fundamentalmente, uma anagógica poética da saudade.
A propósito, vale aduzir que o terceto final da composição em pauta representa
ser uma admirável releitura da primeira quadra dos Aurios da Inoncia”, do pré-
romântico William Blake:
Ver todo um Mundo num grão
E um Céu em ramo que enflora
É ter o Infinito na palma da mão
E a Eternidade numa hora.
648
Notável ainda é a proximidade que se estabelece entre a peça rosiana e o carme
Viaja dentro de ti, do poeta sufi Rumi:
A gota que deixou seu lar, o oceano,
e a ele depois retornou,
encontrou a ostra à sua espera
e nela se fez pérola.
649
Afinal de contas, assim como a “hora”, a “palma da mão, o ramo que enflo-
ra”, o grão” e a gota” são aptos a metonimizar o amplo todo de que são parte, igualmente o
ser humano suporta em si o imo de Deus. À criatura compete apenas romper o continente das
aparências para que se liberte o conteúdo das essências. E a “Saudade”, como vontade de re-
encontro com a Origem, estabelece-se como a ponte sentimental que mantém o viajante em
seu itinerarium de regresso mentis ad Deum, o que evoca uma atualização mais direta da “fe-
bre do Desejo(odís), de acordo com o pensamento de Plotino
650
. Porque, reprisando o texto
de Guimarães Rosa em Ave, Palavra:
A SAUDADE é necessária. A SAUDADE, o delicado sofrimento. A angústia/
que varre/ das folhas secas/ a árvore. A SAUDADE que sorri? A SAUDADE que
avança. SAUDADE é quando os semicegos tentam fazer-se olhos?
(...)
647
Fo novamente remissão às anteriores considerões sobre a Cabala luriânica: pág. 82 e segs. (Capítulo II,
tópico 1).
648
V. extratos desse longo poema em BLAKE, 134, 77. A Saudade” de Magma trava ainda diálogo com diver-
sas passagens dO Matrimônio do Céu e do Inferno, especialmente com o carme A voz do Demônio: v. id.,
133, 19-20.
649
Fragmento. In: CARVALHO, 154, 91.
650
Remeto, neste estudo, à pág. 186 (Introdução ao Capítulo III).
358
É preciso ter saudade de ti,
mesmo perto de ti
. PARA MAIS PERTO!
Só a saudade é
sempre
necessária.
É preciso recriá-la sempre, tê-la conosco (
e às árvores deste jardim, prime-
vo, o único
)...
651
3. A NOITE ESCURA
Podemos, no entanto, tomar como certo que os candidatos
eram obrigados a errar por sinuosas passagens subterrâneas, o
que constituía uma espécie de peregrinação pelas trevas, uma
jornada até um fim invisível, que servia para pôr à prova toda a
presença de espírito dos candidatos. Seguidamente, no mo-
mento da decisão, os iniciados eram submetidos a terrores:
tremendo e transpirando de medo, chegavam a ficar paralisa-
dos de pavor até que a luz voltava a ser gradualmente admiti-
da.
KURT SELIGMANN,
sobre os Mistérios de Elêusis
Noite, é quando morro
Santo e abrasado.
NOVALIS,
Os hinos à Noite
Também a alma freme, padece e sente dores, ao lhe cres-
cerem as asas.
PLATÃO,
Sócrates a
Fedro
, 251
Ao longo do percurso mistagógico trilhado em
Magma
,
a partir da ocorrência
da Morte ritual em A terrível parábola” verificou-se a significativa presença de diversos
mistagogos, os quais acompanharam o neófito em quase todas as composições que até agora
inteiraram o intervalo de passagem pelo estrato subterrâneo. Dentre eles, foi sobremodo im-
portante a figura de Araticum-uu, sucedendo-se-lhe vários outros, até os mais recentes “an-
ciãosdo Paraíso filosófico. Entretanto, em que pese a inestimável assistência prestada pe-
los guias de almas, é ponto pacífico que a solenidade iniciática consiste, antes de tudo, numa
experiência de cunho eminentemente pessoal. De sorte que, no trecho da rota stica que do-
ravante se estira, é imperativo que o postulante seja deixado só por seus companheiros, a fim
de que ninguém o possa turbar ou distrair de seu alvo sagrado, que agora se avizinha de ma-
neira bem mais rápida. Ademais, a solidão é ainda ineludivelmente necessária porque a lumi-
nosa gota” deiforme, a que se fez referência em Saudade, deve ser descoberta em plenitude
pelo indivíduo no seu próprio magma íntimo, e jamais nos esmaecidos ensinamentos ou
651
ROSA, 14, 52 (Evanira!).
359
procedimentos de qualquer outra criatura – hitese que conduziria aos enganos do furto (pois
quem vive do alheio é o ladrão) ou da idolatria, baldando-se assim todos os objetivos recog-
nitivos e transmutativos da verdadeira volição religiosa, cuja sabedoria assenta no prolóquio
Gthi seautón: Conhece-te a ti mesmo... e seria cito acrescentar: porque é unicamente em
ti que poderás reconhecer a deidade. Em resumo, para que o fulgor de Deus possa ser con-
templado nas trevas do eu, operando-se desse modo a teose do humano, a rigor não são per-
mitidos quaisquer intermediários. Fernando Pessoa também flagra esse instante de solitude
em sua Iniciação:
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
652
Em contrapartida, no segmento terminante de Magma aos poucos também vai
se solidificando cada vez mais a noção de que nada que venha de fora pode causar mal ao
adepto intimamente empenhado no bom combate: as batalhas se travam por dentro, com o eu
se defrontando sempre consigo mesmo (corpo versus alma), numa disposição especular de
alas que igualmente se tem desenhado com mais nitidez desde “A terrível parábola, con-
quanto obedeça ao plano traçado, à evidência, já com o poema vestibular.
Destarte, abre-se no continuum do livro de 1936 um outro complexo poemáti-
co, ainda preso à ambientação ctoniana e integrado pelos carmes Revolta”, Regresso, Pa-
vor, Angústia”
653
e “Bibliocausto, nos quais o neófito se vê, de súbito, absolutamente soli-
tário, como um eremita dentro de si próprio. O título e os versos de “Revolta” não deixam -
vidas quanto ao sentimento que de início aflora diante do novo estado:
Todos foram saindo, de mansinho,
tão calados,
que eu nem sei
se estou mesmo só.
(...)
E agora, que tenho medo,
e estou cansado,
mandam-me embora.
654
652
PESSOA, 234, 53, Iniciação.
653
Faz-se oportuno relembrar ser esta a ordenação imposta por ROSA, 1, documento que é o corpus do presente
trabalho. Em id., 2, a ordem apresentada é: Pavor, Angústia”, Revolta” e Regresso. Q. v. a Lista dos poe-
mas de Magma..., à pág. 468.
654
Em id., op. cit., pág. 136, no quarto verso, vem registrado: se fiquei mesmo só.
360
Conseentemente, os tons de temor, sofrimento e desamparo perpassam todos
os textos dessa série, conforme já se pode notar até pelas denominações das peças centrais:
Pavor” e Angústia”. Todavia, tais sensões depressivas são de todo inerentes às etapas
mais adiantadas da demanda hierática baseada na heautognose. Pois que em quase todo pro-
cesso de auto-conhecimento, segundo preleciona Marie-Louise von Franz,
Com muita freqüência, não temos uma reação das mais felizes, mas o contrário, por-
que a verdade fornecida pelo inconsciente muitas vezes é amarga. É uma pílula
amarga que temos de engolir porque contém críticas muito óbvias às nossas atitudes
e essa é uma experiência amarga. Isso explica a resistência contra a psicologia,
pois muitas pessoas não querem engolir a pílula amarga. Elas têm uma vaga sensa-
ção de que estão seriamente fora do eixo, e de que só poderiam recuperar a saúde se
engolissem certas críticas; estão determinadas a lutar se as críticas m de fora, mas
é muitíssimo embaraçoso se as críticas provêm do seu próprio íntimo.
655
Os lances da depressão, por conseguinte, surgem, em termos freudianos, como
sintomas normais da “resistência” que continua sendo entrincheiradamente oposta pelo supe-
rego à dissolução do ego pelo id. E nesse concerto, tem pertinência recordar outro comentário,
agora de propensão mais claramente junguiana, de Franz:
Provavelmente, alguns leitores conhecem A Nuvem do Desconhecimento,
um texto místico medieval que descreve o fato de que,
quanto mais perto a alma do
místico estiver da divindade, mais sombria e confusa ela fica
. Esse texto diz, com
efeito, que Deus vive na nuvem do desconhecimento e que a pessoa tem que se despo-
jar de toda idéia, de toda concepção intelectual, antes de poder acercar-se da luz que
está rodeada pelas trevas da mais profunda confusão. Aqui, a nuvem tem o mesmo
duplo significado; descreve um estado de profunda confusão, de completa infelicida-
de, que é, ao mesmo tempo,
o início do trabalho alquímico
.
656
É possível inferir então que a dor e a “completa infelicidade” a serem temati-
zadas nos próximos cinco carmes de
Magma
adrede os mais atribulados do volume cons-
tituem-se num veemente indicativo de que o noviço, estando agora circundado pelas trevas
da mais profunda confusão, picas do labiríntico reino dos mortos, em compensação está
progressivamente mais e mais se abeirando da ressuscitante refulgência da iluminação divina.
Rememore-se, ao ensejo, a circularidade do rosário: o rezador, pelo lado da escura partida,
nunca ficou tão longe da primeira conta, e por outro lado, o do fulgente retorno, até agora ja-
mais esteve tão perto dela.
Pondere-se outrossim que, para o indivíduo que intenta perscrutar o seu interior
em busca da deidade, a cognição do próprio espírito não se sustenta jamais no campo da lógi-
655
FRANZ, 177, 85.
656
Id
.,
op
.
cit
., pág. 183. Grifei.
361
ca, mas sim no da contemplação intuitiva, pois é exigido, em todo e qualquer sistema de
aprendizagem mística, que “a pessoa tem que se despojar de toda idéia, de toda concepção
intelectual, antes de poder acercar-se da luz. Paradoxalmente, o conhecimento essencial e sa-
grado de si mesmo e de Deus atravessa pelas brumas do desconhecimento, isto é, o ser se
alumia apenas quando a alma se despe até a mais pura e cintilante nudez, desprezando tudo o
mais que represente as superfluidades opacas dos ornamentos mundanos, atitude em que se
inclui a peremptória ablegação dos aparatos seculares da personalidade e dos andrajos da ra-
zão
657
. Esse aspecto denegatório do intelecto racional vinculado à matéria, o qual se costuma
interpor entre o homem profano e a divindade, será tratado por Guimarães Rosa em Biblio-
causto, poema que fecha o ciclo atual e, assim, descerra o ingresso na luminosidade do
Amanhecer, esta a pa que, congruentemente, introduzirá em Magma o tempo da Renas-
cença.
Contudo, além da solitude e do sofrimento, outro aspecto há que parece interli-
gar as cinco composições de que agora nos ocupamos com especificidade. Se esses carmes
preludiam em Magma o resplandecente “Amanhecerda gnose, por via de conseqüência é
forçoso imaginar que neles predomine a escuridade que diz respeito à noite prévia. E de fato
temos que, à exceção de “Revolta”, que é um texto de transição entre o grupo antecessor e
este, nos outros quatro poemas se constata a menção a ambientões intensamente sombrias
e de uma forma bem mais concentrada e carregada do que nas peças anteriores que ajudaram
a compor o cenário da estação ctônica. Averigüemos, assim, que “Regressoreedita, ipsis
verbis, a declaração feita pelo poeta em Necrópole”:
É bem noite.
O universo semântico de “Pavortambém é por demais eloqüente: “corvo,
“cego, treva”, a inequívoca lamentação de que
Para mim já se apagou a última cor.
E a minha alma se enfurna
em poços velhos de hulheiras,
de onde foi tirado o carvão todo.
658
Em Angústia”, o poeta confessa estar “com medo das roupas da noitee das
sombras das cousas, e lembra os cantos do quarto escuro da minha infância” e as cavernas
657
De maneira bastante similar ao que acontece com a escrava do Araratna Parábola” marioandradina: v.
ANDRADE, 105, 201-202.
658
Em ROSA, 2, 134: de onde foi tirado e queimado o carvão todo.
362
de dragões negros de livros que li, o que se aparenta com a “câmara escura” a ser aludida
em Bibliocausto.
A noite, enfim, é a grande metáfora, ou melhor dizendo, o grande símbolo da
Nuvem do desconhecimento, que traz Pavor” e “Anstia” em sua esteira e, nada obstante,
oculta atrás de seu véu a aurora por vir. É válido ressaltar uma vez mais que, sendo conexa ao
signo do útero,
A noite simboliza o tempo das gestações, das germinações, das conspirações,
que vão desabrochar em pleno dia como manifestação de vida. Ela é rica em todas as
virtualidades da existência. Mas entrar na noite é voltar ao indeterminado, onde se
misturam pesadelos e monstros, as idéias negras. Ela é a imagem do inconsciente e,
no sono da noite, o inconsciente se libera. Como todo símbolo, a noite apresenta um
duplo aspecto, o das trevas onde fermenta o vir a ser, e o da preparação do dia, de
onde brotará a luz da vida.
Na teologia mística, a noite simboliza o desaparecimento de todo conheci-
mento distinto, analítico, exprimível; mais ainda, a privação de toda evidência e de
todo suporte psicológico. Em outras palavras, como obscuridade, a noite convém à
purificação do intelecto, enquanto que vazio e despojamento dizem respeito à purifi-
cação da memória, e aridez e secura, à purificação dos desejos e afetos sensíveis, até
mesmo das aspirações mais elevadas.
659
Por tudo isso, ime-se a conclusão de que não apenas é adequada, mas sim
absolutamente coerente a insistência com que Guimarães Rosa frisa a caracterização de um
cenário noturno neste passo em particular de Magma. Este, a propósito, o motivo que justifica
o entrançamento ideal, através do nome conferido ao presente tópico, dos cinco carmes em
questão com outra célebre peça da literatura stica universal, a saber, o poema “Noite escu-
ra”, do religioso espanhol São João da Cruz. Subtitulado Canções da alma que goza por ha-
ver chegado ao alto grau de perfeição, que é a união com Deus, pelo caminho da negação es-
piritual, eis as cinco primeiras estâncias desse clássico hino:
Em uma noite escura,
com ânsias, em amores inflamada,
oh! ditosa ventura!
saí sem ser notada,
estando minha casa sossegada.
Às escuras, e segura,
pela secreta escada, disfarçada,
oh! ditosa ventura!
às escuras, na calada,
estando minha casa sossegada.
Nessa noite ditosa,
secretamente, que ninguém me via,
659
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 640. Grifos dos autores, o primeiro em itálico, os restantes em negrito.
363
nem olhava nada,
sem outra luz nem guia
senão a que no coração ardia.
E esta me guiava
mais segura que a luz do meio-dia,
aonde me esperava
quem eu já sabia,
onde nunca ninguém aparecia.
Oh noite, que guiaste!
Oh noite, mais amável que a alvorada!
Oh noite que juntaste
amado com amada,
amada em seu amado transformada!
660
Em face da cristalinidade dos versos, e outrossim porque aninhados em meio a
tudo quanto vimos tecendo, representa não haver qualquer necessidade de nos demorarmos
numa eventual análise dos mesmos. Assinale-se portanto, tão-só
en passant
, que no livro de
estréia de Guimarães Rosa a “alma”, em amores inflamada, também sai pela sua “Noite es-
cura” à procura de Deus, sem outra luz nem guia/ senão a que
no coração ardia
: nada mais,
nada menos do que o exato
Magma
sobre que se discorre. E quando a peregrinação rosiana ti-
ver alcançado seu desenlace, o poeta que reza o rosário poderá enfim, seguindo o exemplo de
São João da Cruz, cantar a “ditosa ventura” da alma “amada em seu amadoDeus transfor-
mada”.
Agora, ainda antes que se passe ao exame mais pormenorizado dos compo-
nentes da série noturna guimarrosiana, cumpre completar as considerações preliminares, e
para tanto vale dedicar atenção a uma interessante circunstância, que tange ao amoldamento
do clima geral de cada um desses poemas às propriedades das águas dos rios que vincavam o
mundo
post-mortem
da antiga mitologia da Hélade.
Com efeito, cinco eram os cursos fluviais no reino grego das sombras, os quais
detinham as seguintes peculiaridades: primeiro, o Lethes (ou Lete), o rio do esquecimento,
cujas águas, uma vez bebidas pelos mortos, faziam-nos perder as lembranças do passado ter-
restre; depois, Cocito, o das lamentões, que era um afluente do rio Estige e formado pelas
lágrimas derramadas pelos pecadores arrependidos; o próprio Estige (ou Styx), tido como o
rio dos horrores, delimitava todo o perímetro avernal e, apesar de incitar ao medo, tinha o
condão de garantir a inviolabilidade dos juramentos e de tornar invulnerável aos perigos físi-
cos os vivos que tivessem a coragem de nele mergulhar (foi o que sucedeu ao herói Aquiles, o
660
In: CARVALHO, 154, 146-147. As três estrofes finais que complementam a Noite escura” lacruciana serão
trazidas à colação oportunamente, quando do início do próximo tópico (v. adiante a pág. 411).
364
qual, reza a lenda, em criança foi submerso nessas águas por sua mãe Tétis, que o segurou
pelo famoso calcanhar, então a única parte do corpo que não foi tocada pelo quido nem be-
neficiada pela invulnerabilidade); o rio das dores era outro afluente do Estige, o Aqueronte,
lodoso, amargo e borbulhante, que devia ser atravessado na barca de Caron pelas almas dos
defuntos inumados que ingressavam nos donios de Hades; e ainda havia o Flegetonte, das
águas que provocavam graves queimaduras ao mais leve contato.
Embora não contenham nenhuma menção a cursos fluneos, as cinco compo-
sições de Magma em tela aparentemente demonstram uma certa correspondência com as dife-
rentes espécies de tormentos infligidos pelas águas desses rios infernais do imaginário heleno.
Falando por ora de maneira bastante breve, em apontamentos que devem ser melhor compre-
endidos quando da abordagem individualizada de cada texto, pode-se dizer que o conteúdo da
peça “Revolta” revela consonância com o problema das reminisncias, fulcro da singularida-
de do Lethes. O tom plangente de “Regresso, por seu turno, parece interligá-lo à tortura da
dor moral caracterizante das águas do Cocito. Pavor, evidentemente, é o resultado causado
pela mera visão das correntes do Estige, ao passo que “Angústia” é o sentimento que provém
da ingestão das águas amaras do Aqueronte. Quanto ao flagício do fogo, que é associado ao
Flegetonte, de uma determinada maneira se constitui no assunto central de “Bibliocausto.
Mister ressaltar que perto das etapas concludentes dos Mistérios de Elêusis,
transcorrentes já no Eleusinion (edifício cultual), os candidatos também se sujeitavam a “uma
viagem através de uma sala dividida em compartimentos escuros, cada qual representando
uma região dos infernos
661
.
Um dado, porém, é fundamental para que se possa entender devidamente o
nexo pretendido: os cursos dágua do Hades eram dados a conhecer para quem estava aden-
trando a mansão mortuária, enquanto que em Magma o peregrino agora se encontra prestes a
sair do mundo sepulcral. Essa contraversão no rumo acaba por inverter também o sentido das
provões relacionadas com cada um dos referidos flagelos: se no Inferno grego tratava-se de
sevícias cominadas aos condenados como punição pelas faltas perpetradas em vida, na estação
subterrânea do livro de 1936 essas aflições consistem somente nos derradeiros obstáculos ini-
ciáticos que o próprio neófito levanta e que deve ultrapassar antes de atingir sua recompensa
final.
Com tais esclarecimentos, prossigamos agora no estudo dos carmes.
Os versos iniciais de “Revoltahá pouco foram citados:
661
VAN GENNEP, 280, 88. Grifei.
365
Todos foram saindo, de mansinho,
tão calados,
que eu nem sei
se estou mesmo só.
Eu não trouxe mensagem
e não me deram senha...
662
Essa “Revolta” ou indignação do iniciando, segundo quer parecer, dirige-se
contra os mistagogos (os últimos dos quais foram os homens de túnica longado Paraíso
filosófico), que agora o deixam para que ele percorra sozinho os passos terminantes da senda
stica. A solidão, conforme já se antecipou, é uma exigência que tem por mira o fortaleci-
mento da fé do adepto. Sem embargo, aqueles que se retiram vão “calados, sem dar quais-
quer explicações, instruções ou mesmo senha” para que o aturdido noviço possa ir avante.
Ele, portanto, é desenganado, a fim de que consiga aprender a achar a Verdade intuitivamente
em si mesmo e em sua experimentação pessoal, e jamais nos ensinamentos racionais dos ou-
tros, os quais, mais cedo ou mais tarde, fatalmente acabam sendo incompreendidos:
Disseram-me que o iria perder nada,
porque não há mais u.
E agora, que tenho medo,
e estou cansado,
mandam-me embora...
663
De forma que, sentindo-se perdido, ludibriado e acometido por novas dúvidas,
o inseguro viajante, naturalmente, a princípio se
revolta
por ter um dia acreditado que chega-
ria ao u– o que vale dizer, à elevação espiritual e também por ter despendido tantas
energias (e por isso
está
cansado) nesse incerto e acidentado caminho. Entretanto, a des-
peito desse lapso de abatimento e “medode que não
haja
mais céupara justificar o sacrifí-
cio, o poeta prefere insistir em sua crença, porque
não quer
se afastar ainda mais de Deus:
Mas não quero ir para mais longe,
desterrado,
porque a minha tria é a memória.
Não, não quero ser desterrado,
que a minha pátria é a memória...
664
662
Em ROSA, 2, 136, no como da segunda estrofe foi suprimido o pronome:
Não
trouxe mensagem. V. nota
654 (pág. 359).
663
Em
id
.,
ibid
., no primeiro verso, imprimiu-se, em óbvio equívoco: Disseram-
se
que não iria perder nada,.
664
A redação original do antepenúltimo verso era: Não, não
posso ficar
desterrado,, tendo sido os verbos ris-
cados e a forma substitutiva manuscrita logo acima.
366
Assim, mesmo no calor do terrível instante da “Revolta”, o noviço demonstra-
se capaz de persentir em si i. e., no magma íntimosuficientes centelhas de recordações
da “pátriade origem de todos os seres, que é o “céuou o Tao (Tao Te Ching, carme 62) ou a
Alma Parens, para confirmar que ela de fato existe, ao contrário do que lhe “Disseram. E
com isso o sentimento intrínseco da essência (o ideal) suplanta a aparência superficial da in-
formação extrínseca (o sensível). Nesse contexto, importanssimo perceber que “a memória”
aparelho recognitivo – acaba se confundindo com a “pátria” – objeto da recognição. Tal
confusão ou consubstanciação se explica porque a faculdade recordatória se situa na mesma
sede donde provém as lembranças: a psique, a alma, o Magma.
Tudo desvela a nítida apropriação, por Guimarães Rosa, da suma do pensa-
mento platônico acerca da reminisncia, exposto, dentre vários outros escritos, no ensaio
Mênon (ou Da Virtude) e nos diálogos Fédon (ou Da Alma) e Fedro (ou Do Belo). Neste se-
gundo diálogo em particular, Platão doutrina, pela boca de Sócrates, sobre a teoria da me-
tempsicose (cuja primeira elaboração é atribuída a Pitágoras), a qual vem a ser o ciclo dos su-
cessivos nascimentos terrenos que perfazem a transmigração anímica de um para outro corpo,
com vistas à purificação. Nos intervalos das descidas ao mundo da matéria, as almas humanas
privam por certo tempo com os assim chamados deuses. Junto a estes, contemplam algumas
das Verdades Eternasou Idéias Puras, as quais dizem respeito ao supremo Ser dos Se-
res. Vindo à terra, o grau de evolução espiritual do ser humano será determinado pela sua ca-
pacidade de reter
a reminisncia das Verdades Eternas que (....) contemplou quando acompanhou a
alma divina nas suas evoluções. Por isso, convém que somente a alma do filósofo te-
nha asas: nele a memória, pela sua aptidão, permanece sempre fixada nessas Verda-
des, o que o torna semelhante a um deus. É apenas pelo bom uso dessas recordações
que o homem se torna verdadeiramente perfeito, podendo receber em alto grau as
consagrações dos mistérios. Um homem desses se desliga dos interesses humanos e
dirige seu espírito para os objetos divinos; a multidão o considera louco, sem saber
que nele habita a divindade.(...)
Como já disse, a alma humana, dada a sua própria natureza, contemplou o
Ser verdadeiro. De outro modo nunca poderia animar um corpo humano. Mas as
lembranças desta contemplação não despertam em todas as almas com a mesma faci-
lidade. Uma apenas entreviu o Ser verdadeiro; outra, após a sua queda, movida pela
iniqüidade, esqueceu os mistérios sagrados que um dia contemplou.
Portanto, são poucas as almas cuja recordação é bastante clara.
Quando elas percebem um objeto que é semelhante a um outro de lá, assus-
tam-se e têm a mesma incerteza daqueles que não conhecem bem um objeto porque
não o percebem com nitidez. Pois bem: os arremedos humanos da justiça e da sabe-
doria, e todas as outras qualidades da alma, não têm fulgor nas suas imagens terres-
tres e, observando-as com sentidos fracos, somente poucos, e com dificuldade, reco-
nhecem, nessas imagens, o modelo daquilo que representam. Mas a beleza era visível
em todo o seu esplendor quando, na corte dos bem-aventurados, deparávamos com o
367
espetáculo ridente em que uns seguiam a Zeus e alguns entre s a outros deuses. Ini-
ciados nos mistérios divinos, nós os celebrávamos puros e livres, isentos das imperfei-
ções em que mergulhamos no curso ulterior do nosso caminho. A integridade, a sim-
plicidade, a imobilidade, a felicidade eram as visões que a iniciação revelava ao nos-
so olhar, imersas numa pura e clara luz. Não tínhamos mácula nem tampouco contato
com esse sepulcro que é o nosso corpo ao qual estamos ligados como ostra à sua con-
cha.
Perdoa-me ter sido tão longo...
665
Em síntese, aprender a Verdade última das coisas nada mais é do que rememo-
rar a ciência que a alma, por aptidãoe dada a sua própria natureza”, já recebeu ainda antes
do nascimento. Por seu lado, rememorar é
ver
,
sentir
e confirmar ou
não desmentir
... o quê?
Com toda a certeza, que a Verdade ou o fio corre por dentrode cada ser que “contemplou o
Ser verdadeiro.
Plato dixit
.
Segue-se que o poeta que reza o rosário de
Magma
, nos ensaios da saída da
ambientação ctoniana, figurativamente recusa-se a provar da desmemoriante água do Lethes
pois, se o fizesse,
iria
para mais longedo seu destino. Esquecer do passado, seja no que se
refere às anteriores estações iniciáticas, seja principalmente no que importa à divina progênie
da criatura nascida nas Águas da serra”, seria compactuar com o Inferno e agrilhoar-se à
Morte. Mas a reminisncia é o palco platônico de exercício da transcendência orientada para
a Vida excelsa
666
.
É, pois, reconhecendo na “memória” as lembranças do Absoluto que o peregri-
no se propõe dar termo ao Exílio (na terminologia cabastica de Isaac Luria
667
) ou ao
Dester-
ro
, para trazer à baila o poema do primeiro terço de
Magma
668
, exatamente como o filho pró-
digo, que da pocilga dos porcos decide volver à faustosa casa do pai.
Ad rem
, é mister refletir
que, a par dos mais usuais sentidos de “sublevação, indignação, aversão, repulsa”, a palavra
revolta
, que compõe o título do texto atual, relaciona-se outrossim com o verbo
revoltar
, o
qual significa, dentre outros aspectos dicionarizados,
Voltar de novo; regressar; retornar:
O
navio revoltou ao porto
669
. A Revolta” rosiana, destarte, consiste mais do que tudo numa
profissão do ideal de
retorno
à “pátria” celestial e deífica. Com base em tal hermenêutica, a
presente “Revolta” se configura, medularmente, como um diametral anti-Desterro, ou a ne-
gação do rumo de afastamento da criatura em relação ao Criador e, por via de conseqüência, a
afirmação da tomada de um novo rumo apropinquante entre ambos. Porém, visto que tudo se
665
PLATÃO, 236, 86-87.
666
Válido anotar que, na obra de Guimarães Rosa, dentre outros textos destaca-se sobre esse assunto o conto
Reminisção, de
Tutaméia
.
667
V. nota 138 (pág. 84, Capítulo II, tópico 1).
668
Remeto às págs. 158-160 deste trabalho (Capítulo II, tópico 4).
669
Cf. FERREIRA, 173.
368
conforma à circularidade do rosário, a rigor a partida e a volta são sempre o mesmo e único
movimento a que toda existência obedece a questão é apenas a de se saber ou não o que se
está fazendo. E o neófito parece avançar nessa sabedoria, tanto que o carme consecutivo ma-
nifesta categoricamente, e numa propícia sinonímia com a “Revolta”, o desejo de “Regresso.
Contudo, essa nova peça principia por uma aparente reclamação – então ainda
uma expressão de revolta – de canso e de isolamento:
Não agüento depor
nem um tijolo a mais
na minha torre,
e já esqueci as línguas
dos outros homens.
670
No que diz respeito à torre, cuida-se de uma imagem extremamente complexa,
imbuída de sutilezas que convém decifrar. De início, é oportuno dizer que ela se apresenta
universalmente como um dos símbolos mais adequados para denotar a ascensão anímica, uma
vez que, como prodígio do trabalho humano, tende a se alçar desde as fundações plantadas no
solo da matéria até a abada celeste. Além disso, trata-se de uma construção em riste que de-
certo contém escadas e diversos níveis em seus interiores, pelo que dá ênfase à sugestão de
escalonamento das fases que perfazem os procedimentos anagógicos da heautognose. Em al-
guns espos do misticismo cristão da Idade Média época, aliás, cuja noção mais romântica
é pontuada por castelos torreados a torre representa a sagrada fortaleza de altas paredes que
preserva a alma de todos os perigos da agitação mundana, favorecendo o resguardo do silên-
cio exigido para a pia meditação; nesse contexto, interessante lembrar que, no discurso pro-
nunciado em agradecimento ao prêmio conferido a Magma pela Academia Brasileira de Le-
tras, Guimarães Rosa se refere à turris eburneado poeta, Com um fosso fundo ao re-
dor
671
. Já nas obras de estudos espagíricos, o Athanor (forno filosófico) assume freente-
mente o formato de torre, o que indica o fito das transmutões alquímicas de conduzir à ele-
vação espiritual do praticante. Entende-se então que em Regressoo autor queira frisar, num
primeiro momento, a exaustão do adepto, que há longo tempo vem erigindo, tijolo” a tijolo, a
sua torre” stica que, apartando-o das preocupões seculares, deve transportá-lo para o
plano celestial. E essa fadiga se revela ainda mais avassaladora porque o neófito presente-
mente se vê sozinho, tão distante “dos outros homenssejam estes os mistagogos ou os pro-
670
No segundo verso, as quatro últimas letras do terceiro vobulo foram grafadas a mão (talvez para corrigir
erro datilográfico ou até compensar uma eventual deficiência da tinta da máquina) e, à margem direita do poema,
manuscreveu-se a confirmação: tijolo.
671
V. ROSA, 17. Texto tb. transcrito, em parte, in: id., 2, 8-9.
369
fanos – que chegou mesmo a esquecer “as nguasdeles. Sem embargo, logo adiante vere-
mos que esse esquecimento não contradiz a idéia de preservação da “memóriadantes exposta
em Revolta”.
Outrossim, cumpre agora dar atenção ao aspecto mais negativo do signo da tor-
re. Nos antigos contos de fadas, por exemplo, a maior torre do castelo era normalmente o lu-
gar escolhido para servir de prisão às jovens princesas, e a soltura destas pelos príncipes en-
cantados manifesta o quadro de resgate da alma às garras das contingências materiais, a fim
de que se realize a conjunctio e o verdadeiro amor. Parece ser precisamente esse o sentido que
sustenta a “Canção da mais alta torrede Arthur Rimbaud:
Ociosa juventude
A tudo oprimida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.
Ah! Que venha o dia
Em que os corações se amem.
Eu me disse: cessa,
E ninguém te via:
E sem a promessa
De mais alta alegria.
Que nada te detenha,
Grandiosa retirada.
672
Em sintonia com essa exegese, é de se fazer notar que no poema de Magma
ocorre o entrecruzamento dos signos da “torre” e do tijolo” com “as nguas/ dos outros ho-
mens, o que evoca nitidamente o episódio bíblico da Torre de Babel, narrado em Gênesis
11.1-9:
Ora, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar.
Sucedeu que, partindo eles do Oriente, deram com uma planície na terra de
Sinar, e habitaram ali.
E disseram uns aos outros: Vinde, façamos tijolos e queimemo-los bem. Os
tijolos serviram-lhes de pedra, e o betume, de argamassa.
Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope
chegue até aos us e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalha-
dos por toda a terra.
Então, desceu o SENHOR para ver a cidade e a torre, que os filhos dos ho-
mens edificavam;
e o SENHOR disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma linguagem. Isto
é apenas o como; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer.
Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não enten-
da a linguagem de outro.
672
RIMBAUD, 252, 90-91.
370
Destarte, o SENHOR os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de
edificar a cidade.
Chamou-se-lhe, por isso, o nome de Babel, porque ali confundiu o SENHOR a
linguagem de toda a terra e dali o SENHOR os dispersou por toda a supercie dela.
Nessa narrativa, faz-se uma alusão aos zigurates, picos templos torreantes das
civilizões mesopotâmicas, caracterizados pela forma de pirâmide disposta em grandes de-
graus e cujos cumes eram considerados por seus sacerdotes como os pontos de união entre a
terra e o firmamento. Quanto à designação
Babel
, vem ela do verbo hebraico
balal
, traduzido
por
confundir
, verificando-se, por conseguinte, uma ironia semântica dirigida pelos hebreus
contra a orgulhosa tradição autóctone que atribuía ao nome da cidade da Babilônia (erguida
em Sinar, que é o termo bíblico para a região da Mesopotâmia) o significado de
Porta de
Deus
ou
Porta dos deuses
. Sob a óptica hebraica, portanto, a torre babilônica ou babélica vem
a exprimir toda a soberba do intelecto humano, o qual amiúde procura alcançar Deus através
dos artifícios da sua própria engenhosidade, assim desconsiderando que, em proveito da dedi-
cação exclusiva ao espírito, a ascese se deve pautar justamente pela negação das capacidades
ligadas à força e habilidade corporais e à organização da matéria. Em síntese, a ingênua idéia
que os construtores de Babel traem é a de que o ser poder-se-ia elevar até o Altíssimo não
mediante o espírito, mas sim através do corpo que se figura pelos tijolosde barro queimado,
e em decorrência imaginavam eles não serem espalhados por toda a terra,
i. e.
, pretendiam
se furtar ao mandamento jeovista de que “tu és e ao pó tornarás(
Gênesis
3.19,
in fine
).
Dessa maneira, desenha-se um paralelo entre a religião dos hebreus, povo eleito que como
made vivia humildemente em tendas e pretendia chegar até a presença de Jeová por meio
da fé, e a antiga religião da Babilônia, rica civilização que se arrogava tão poderosa a ponto
de, apenas em função de seus feitos e edifícios gloriosos, pretender se igualar na terra à divin-
dade no céu.
Previna-se, porém, que a confusão da multiplicidade de idiomas, no que desfaz
o último resquício da unidade edênica e impede que os sinarenses continuem com o ergui-
mento da torre por mutirão, não pode de modo algum ser encarada como uma simples punição
imposta por Deus aos homens, consistindo antes numa advertência de que a demanda pelo sa-
grado – conquanto possua ocasiões para a camaradagem, a troca de experiências e o auxílio
de guias até certa altura da jornada jamais se pode confundir com uma empresa coletiva e
levantada sobre qualquer aparato físico externo, configurando-se sim como uma aventura
fundamentalmente solitária, que se aia na singela vontade de cada indivíduo em iluminar o
seu íntimo. É que, a rigor, para falar com Deus é necessário a cada pessoa desenvolver a sua
linguagem poética particular, à qual, não aproveitando sequer resvalar pela indigência do ca-
371
ráter de comunicação determinante das nguas temporais (em que se pressupõe a distinção
entre um emissor e um receptor), compete peremptoriamente definir-se rumo ao sentido de
comunhão religiosa (o que implica numa fusão essencial entre os interlocutores divino e hu-
mano). Eis então que, em Regresso, o iniciando declara:
Ah, quem me dera
não perder a minha própria língua!...
673
O que se coaduna com certos trechos colhidos no Diálogoque Guimarães
Rosa manteve com Günter Lorenz:
Mas ainda mais importante para mim é o outro aspecto, o aspecto metafísico da n-
gua, que faz com que minha linguagem antes de tudo seja minha. Também aqui pode-
se determinar meu ponto de partida, que é muito simples. Meu lema é: a linguagem e
a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não
vive; e como a vida é uma corrente connua, a linguagem também deve evoluir cons-
tantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra
e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é
a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas.
Daí resulta que tenha que limpá-lo, e como é a expressão da vida, sou eu o responsá-
vel por ele, pelo que devo constantemente umsorgen. (...)// A ngua é o espelho da
existência, mas também da alma. (...) Nesta Babel espiritual de valores em que hoje
vivemos, cada autor deve criar seu próprio léxico, e não lhe sobra nenhuma alternati-
va; do contrário, simplesmente não pode cumprir sua missão.
674
Com a deixa, voltando à escritura bíblica, vale ainda ressaltar que a Torre de
Babel, de conformidade com o Gênesis, foi construída com tijolos” cozidos e “betume(isto
é, asfalto), materiais largamente empregados na instalação das cidades-estado mesopotâmicas
e que, naqueles tempos, constituíam uma inovação e um notável avanço civilizatório. O tijolo,
sobretudo, mencionado na peça rosiana sob exame, ocupava posição de destaque na mitologia
dessas culturas gentias, segundo as quais era associado a um deus específico, Kulla, e teria
sido inventado pelo Deus Criador Marduk, logo as o surgimento da terra e das águas e o
nascimento das primeiras árvores. Todavia, se até historicamente o tijolo marca “a passagem
da humanidade à vida sedentária e a origem da urbanização
675
, ele também representa o es-
tabelecimento da sociedade destica e dos limites fechados por paredes e muros que perver-
tem a relação do homem com a Natureza, bem como simboliza um estorvo à liberdade de mo-
vimento anagógico que incumbe a todo ser. Assim, não é por outro motivo que no Regresso
de Magma estampa-se a seguinte reflexão:
673
Em ROSA, 2, 137, no primeiro verso do trecho, eliminou-se a interjeição: Quem me dera”.
674
V. LORENZ, 58, págs. 83 e 88. Grifei. O verbo umsorgen, em alemão no original, significa, no caso, cuidar
dele”.
675
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 885. Grifo dos autores, em negrito.
372
É bem noite.
Posso sair da minha casa
e sentar-me naquela pedra,
que à noite não tem dono,
debaixo das grandes árvores,
que à noite não tem sombra.
Destarte, à “
torre
” edificada – na qual o neófito já “Não
agüenta
depor/ nem
um tijolo a mais” e que ilustra uma tentativa de elevação calcada em artifícios logísticos fi-
cam contrastadas as grandes
árvores
, símbolos ascensionais assimilados aos pomares e jar-
dins paradisíacos, enquanto que ao
tijolo
manufaturado, que deve ser empilhado em grandes
quantidades para que se possa erguer qualquer “casa” ou torre, contrae-se a naturalidade de
uma única “
pedra
. Por via de conseência, parece cito admitir que a
saída
da minha
casa” corresponde a uma atitude com a qual o poeta que reza o rosário se afasta dos engenhos
da razão (a qual erroneamente procura
entender
o divino ininteligível) e progride, ao invés,
em direção à espontaneidade intuitiva, ou seja, à fé, sentimento simples que deve ser a base
exclusiva sobre a qual se erija a prece.
À luz disso, entre parênteses tem pertinência citar outra vez Manoel de Barros:
Poesia não é para compreender, mas para
incorporar
Entender é parede; procure ser uma árvore.
676
Retornando à composição de Guimarães Rosa, é válido repetir que, na primeira
estância, depois que se fez referência ao
esquecimento
das
nguas
/ dos outros homens, foi
demonstrado por parte do adepto um claro tom de temor:
Ah, quem me dera
não perder a minha própria língua!...
Entretanto, as
se sentar
, à “noite” da segunda estrofe, naquela pedra,/ (...)
debaixo das grandes árvores, já na terceira estância o poeta se encontra fortalecido o sufici-
ente para proferir a afirmação de confiança com que se encerra o texto:
Oh!... que bom, uma palavra basta
para refazer o meu idioma:
Sofrimento... Sofrimento...
e não a esquecerei!...
676
BARROS, 117, 212, Sabiá com trevas, XV(
Arranjos para assobio
).
373
A disposição estrófica do carme, pois, como que deixa entrever uma orientação
ternária semelhante àquela em que Magma se enquadra: inicialmente, relata-se que “esqueci
as nguas/ dos outros homens” e receio perder a minha própria”; em seguida saí, à “noite,/
(...) da minha casa”; e agora me preparo para “refazer o meu idioma. De modo que o noviço
já percebe que é nesse seu idioma”, na sua “própria ngua” e “mensagem, e não nas dos
outros homens, que se traça a rota de “Regressoà pátria” da “memória, em harmonia com
o que foi dito anteriormente em Revolta”. É demasiado importante observar que se o poeta
manifestou, no princípio de “Regresso, o esquecimento das nguas/ dos outros, fica nos
versos finais anunciada a sua firme intenção de não esquecer a “palavra” que basta/ para re-
fazer oseu idioma” particular. A estância terminante da peça atual, portanto, sem dúvida
que retoma e complementa o mesmo tema trazido à tona pela derradeira estrofe de “Revolta,
no que toca à reminisncia platônica. Então, é permitido inferir que o esquecimento das lin-
guagens alheias reverte benéfico porque abre espo para a lembrança do que realmente tem
valor para o ser: a fixação ou refazimento do nexo lingüístico pessoal com Deus mediante o
progressivo Regresso” a uma fluidez simlica análoga à da protongua, a qual no começo
era compartilhada por Ele com os homens, tendo vigorado até antes da dispersão babélica que
representou mais uma etapa da queda do ser humano no mundo multitudinário.
Ora, em consonância com a teologia cristã, a reunificação religiosa da humani-
dade, que fora desbaratada aos pés de Babel no Velho Testamento, encetou-se no Novo Tes-
tamento com o derramar do Espírito Santo por sobre os discípulos reunidos no dia de Pente-
costes, numa cena descrita em Atos 2.1-13 que espelha com clareza o ideal apostólico de uni-
versalização da Palavra. Colando apenas os versículos 3 e 4:
E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pousou uma
sobre cada um deles.
Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas,
segundo o Espírito lhes concedia que falassem.
É preciso conferir que
A imagem das línguas também sugere, pela palavra usada, as línguas (idio-
mas) às quais se alude no v. 4. Cf. também Sl 29.7-9; Mt 3.11-12: Lc 3.16. O sentido
simbólico do fogo se pode ver na expressão pousou uma sobre cada um deles. De
acordo com Filo de Alexandria, escritor judeu contemporâneo dos astolos, Deus ti-
nha dado a Lei a Israel em meio a um estrondo que logo se converteu em fogo, expe-
rimentado como línguas.
677
677
Bíblia de estudo Almeida, 130, nota c ao versículo At 2.3. V. tb. a nota f a Gn 11.9, in fine.
374
Por outro lado, a consubstanciação simlica entre o fogoe as nguas (idi-
omas)faz, por viés, pensar no quente diálogo (tentativa de) com o que Guimarães Rosa
procurou sustentar ao longo de toda a sua vida e literatura. Em face disso, aufere-se que a in-
gente tarefa a que o stico mineiro se consagrou representou não menos do que a constante
descoberta e redescoberta, mediante a manipulação intuitiva do signo poético, da linguagem
divina primeva. Outrossim, a clave que descerra essa palestra com Deus e donde quiçá tenha
brotado toda a ulterior peculiaridade verbal da escritura rosiana, o refazimento alquímico do
meu idioma” é, segundo o próprio autor revela na composição de Magma, o Sofrimento...
Sofrimento...As circunstâncias de ser esse substantivo dobrado e grafado com inicial maiús-
cula, além de introduzido pela locução que bom, evoca amplamente o seu perfil metafísico,
relacionado com o Cálice crístico de fel:
A realidade do sofrimento sempre tem sido um problema para os crentes (Sl 73; Hb
2.2-4), mesmo quando sabem que Cristo os libertará de toda dor, da corrupção e da
morte (Rm 8.21; 1Co 15.26). Não obstante, os efeitos do sofrimento podem ser bons:
se produz a purificação do corão (Rm 5.3; 1Pe 1.7), faz com que o relacionamento
com Deus seja mais estreito (Rm 8.35-37) e leva o crente a compreender o significado
da sua participação no sofrimento de Cristo (Mc 10.39; Rm 8.17; 2Co 1.5; Fp
1.29).
678
Acrescente-se que, Num plano cristão, os sofrimentos estão ligados à passa-
gem de um estado a outro, do homem velho para o homem novo, com suas diversas pro-
vas.
679
Com ancoragem nesse pensamento, pode-se entender que Guimarães Rosa tenha certa
vez, em carta datada de 1938, confessado a “convicção profunda de que nenhum (...) sofri-
mento é itil
680
. Ademais, Imortal é o que é do sofrido e espírito; tudo, abaixo daí, é s-
tumo
681
como constou no discurso do autor em sua posse na Academia Brasileira de Letras,
às vésperas de seu falecimento (1967). Tendo-o assim acompanhado por toda a vida, é de se
supor que essa noção acerca do sofrimento lhe fosse muito arraigada.
De resto, anote-se ligeiramente, sem qualquer pretensão de aprofundamento no
assunto, que também a filosofia subjetivista de Soren Kierkegaard caminha pela mesma con-
cepção de redenção cristã baseada nos suportes da fé e do sofrimento (Temor e tremor, O con-
ceito de angústia etc...). Para o pensador dinamarquês, com efeito, o anseio religioso só é ver-
dadeiramente realizado através da vívida comunhão do crente com a dor experimentada por
678
Dicionário, verbete SOFRIMENTO, in: op. cit. (v. o Índice Geral, pág. ix, Auxílios para o leitor). Grifei.
679
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 506, verbete INICIAÇÃO.
680
Apud ROSA, 79, 250.
681
ROSA, 19, 444.
375
Cristo na Cruz: amar a Deus é sofrer com Ele, sofrer é compreender pela fé (e não pela razão)
o sentido do pecado original e compreendê-lo é abraçar o Infinito.
Por conseguinte, na esteira do que vem sendo longamente tratado neste traba-
lho, conforme as várias sapiências iniciáticas o único e inevitável caminho para que se possa
retornar à alegria da Lux parece ser a Nox, a dolorosa noite íntima. E nessa conjuntura “Re-
gressorepisa: É bem noite.Daí a razão pela qual essa peça se demonstra relacionar com o
amargor das águas do Cocito, rio avernal das lamentações da antiga mitologia helena, ressal-
vando-se, porém, que em Magma o rumo do peregrino seja, tal como na Divina comédia de
Dante, o da saída do Inferno rumo ao Paraíso. Enfim,
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
682
A hermenêutica que ao cabo se instaura implica em que o desejo de “Regresso
por ora contemplado uma vez mais diz respeito ao sentimento do ser em relação ao seio de
Deus, da criatura ao Criador, do filho pródigo ao Pai, desejo esse que se deve realizar, como
descobre o noviço, através da sofrida reminisncia do idioma poético original. E, diga-se de
passagem, havendo a junção do lance platônico (a memória) com o patrístico (o Sofrimen-
to... Sofrimento...), ambos elementos integrantes da teologia de Santo Agostinho de Hipona,
pode-se presumir que o poema de Magma ainda projeta uma certa feição agostiniana – no
que, todavia, não temos a necessidade de nos aprofundar agora.
Indo avante, se na parelha “Revolta”-Regressopôde ser detectado um enca-
deamento temático ao redor do eixo memória-sofrimento-idioma, o qual aponta para o Alto,
também os próximos carmes, Pavor” e Angústia”, evidenciam a composição de uma díade,
cujo ponto nodal é o medo das trevas e da morte, o que se inclina, entretanto, a manter o neó-
fito prosternado na inferioridade do mundo sepulcral
683
. Com efeito, esses dois textos novos
abrangem, em conjunto, o momento mais sombrio e aterrador de toda a provão mistagógica
que se tem alinhado ao longo do rosário de Magma: constituem eles o Sofrimento... Sofri-
mento...trazido à baila pelo verso concludente da peça antecessora. E é sobremodo signifi-
cativo que os títulos desses poemas rosianos se pautem pelas exatas sensões descritas pelos
Evangelhos na ocasião do ato noturno no horto do Getsêmani, o qual abre o período difícil da
Paixão de Cristo:
682
PESSOA, 235, 48 (X. Mar português).
683
Anote-se que mesmo em ROSA, 2 – em que a ordem de apresentação dos quatro carmes difere de id., 1 –, é
mantido o emparelhamento, vindo primeiro Pavor” e Angústia” e depois Revolta” e Regresso.
376
E, levando consigo a Pedro, Tiago e João, começou a sentir-se tomado de
pa-
vor
e de
angústia
.
684
Detendo-nos, doravante, de forma mais específica sobre o carme “Pavor, é
possível verificar que essa emoção aflora quando o adepto se defronta consigo mesmo na es-
curidão:
Em torno a mim
círculos conntricos se fecham,
como as órbitas lentas de um corvo...
Tudo é torvo e pesado,
falta de ar e de amor...
Para mim já se apagou a última cor.
E a minha alma se enfurna
em poços velhos de hulheiras,
de onde foi tirado o carvão todo.
685
Sob uma visada rica, de fato Tudoo que “é torvo e pesado
orbita
e se de-
senrola “Em torno
a mim
, pois os restringentes “círculos concêntricosque “se fechamvão
levando o iniciante para os recônditos mais acentuadamente atramentários dos poços velhos
de hulheiras, terríveis recintos onde “já se apagou a última cor. Ora, é certo que o mais exí-
guo espo em que a “
alma
se enfurnasó pode ser o
corpo
. Atente-se outrossim que a toma-
da poemática
desce
desde umas reas órbitas lentas de um corvo” até os subterrâneos jazi-
gos hulhíferos. Daí decorre que o que se observa através dos signos poéticos é o ser sendo
empurrado para dentro e dentro de si, para os mais ínferos fojos que constituem o palco negro
da experimentação iniciática. De maneira que, sentindo-se mais do que nunca privado do fô-
lego celeste cada vez mais
eu
, cada vez menos
Deus
–, o adepto deplora a “falta de ar(a li-
berdade eólica do primeiro terço) e de amor(o tema do segundo) a que se acha condenado.
Não obstante, a estrutura física do poema representa deslocar o seu cerne jus-
tamente para a imagem desse “corvo, cujas órbitas lentasvão estreitando “círculos con-
ntricos” à volta do noviço. Tais órbitaspodem tanger tanto às trajetórias fechadas do vôo
da ave quanto às suas redondas cavidades oculares. Mas quer sob as asas, quer sob os olhos, o
684
Mc
14.33, de acordo com a
Bíblia de estudo Almeida
, 130 (grifei). Na mesma fonte, em
Mt
26.37: e, levando
consigo a Pedro e aos dois filhos de Zebedeu, comou a
entristecer-se
e a
angustiar-se
.Conforme as traduções
e as edições da
Bíblia
em português, pode haver esta ou aquela leve diferença na construção da frase, sem que,
no entanto, jamais se lhe altere o sentido básico e a clara intenção do evangelista em demarcar sempre essas duas
emoções ou pelo menos outras bastante aproximadas. N
A Bíblia Sagrada
, 131,
verbi gratia
, esses versículos são
lidos respectivamente assim: E tomou consigo a Pedro, e a Tiago, e a João, e comou a ter
pavor
, e a
angusti-
ar-se.
; E, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, comou a
entristecer-se
e a
angustiar-se
mui-
to.Já na
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral
, 132: Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João, e comou a ficar
com
medo
e
angústia
.; Jesus levou consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, e comou a ficar
triste
e
an-
gustiado
.Em diversas outras versões que consultei, o diapasão é invariável para esses dois fragmentos.
685
Em ROSA, 2, 134, verso final do fragmento: de onde foi tirado
e queimado
o carvão todo.
377
poeta se julga acuado por uma espécie de mórbido fascínio exercido pelo corvo. E realmente
o pássaro de penugem preta concentra todo o negror explorado pelo texto em tela, pelo que
interessa a consideração dos itens mais relevantes de sua simbologia. Contudo, desde logo se
precate que
a conclusão a tirar de um estudo comparativo dos costumes e crenças de numerosos
povos é que o simbolismo do corvo só tomou seu aspecto negativo há pouco tempo e
quase que exclusivamente na Europa. Consideram-no, com efeito, nos sonhos, como
uma figura de mau agouro, ligada ao temor da desgraça. É a ave negra dos românti-
cos, planando por sobre os campos de batalha a fim de se cevar na carne dos cadáve-
res. Essa acepção, conm repetir, é moderna e estritamente localizada. É encontra-
da, por exemplo, na Índia, onde o
Mahabarata
compara a corvos os mensageiros da
morte.
686
Talvez não haja um testemunho dessa visão nefasta mais conhecido do que o
fadico crocitar da avantesma de Edgar Allan Poe:
Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente ufrago escapado
Venhas do temporal que te lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?
E o corvo disse: Nunca mais.
687
Com características desse quilate, o corvo parece surgir como o responsável
pelo Pavor” espectral desse trecho de
Magma
. Leve-se em conta que é do rastro do seu voe-
jar que representa partir, em torvelinhos fonéticos, todo o pretume do carme, cujos versos,
apoiados que são nas unidades sonoras integrantes da palavra “corvo, despertam a atenção
para a sombria predominância da vogal |
o
| e para a connua aliteração em |
c
|, |
v
| e sobretudo
|
r
|. O paragramatismo em |
r
|, em particular, pode ser lido do seguinte modo: é o “co
r
voquem
traça, em ó
r
bitas lentas, os “cí
r
culos” cerceantes Em to
r
nodo adepto; as a sua aparição
é que “Tudose torna “to
rvo
, a ecoar a tintura do “co
r
vo; a ave negra representa mesmo ir
engolindo o a
r
” e até o amo
r
” e, as, como que se parte em metades silábicas que se esfu-
maçam: engolfada pelo escuro, a última
cor
(ou a sílaba
cor-
)
se apaga
, no preciso mo-
mento em que o impcito
vôo
(ou a ampliação vocal da sílaba -
vo
, ensejada pelas vogais cir-
cundantes) se recolhe ou enfu
r
na, assim como a “alma” mas logo em seguida o
corvo
686
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 293-294 (
sic
).
687
A excepcional tradução é machadiana e faz parte das
Ocidentais
. In: ASSIS, 114, 129-134 (O corvo).
378
retorna e cresce, anagramática e foneticamente, no carvão, cuja ausência dos poços ve-
lhosnão lhes diminui a negrura. Enfim, nesse instante, tudo é “Pavorpara o neófito que,
antes de abrir os olhos para a Luz, novamente teme estar iludido em sua busca,
Como um cego
que dormiu na treva, amedrontado,
para sonhar que mais uma vez cegou...
688
Sem embargo, é indispensável saber que
Quase por toda parte (...), no Oriente como no Ocidente, o simbolismo do corvo é
construído sobre as suas virtudes positivas.
(...)
Símbolo de perspicácia, no Gênesis (8, 7), ele que vai verificar se a terra co-
ma a reaparecer à superfície das águas, depois do dilúvio universal: No fim de
quarenta dias, Noé abriu a janela que fizera na arca e soltou o corvo, que foi e voltou,
esperando que as águas secassem sobre a terra.
Sempre solar, o corvo era, na Grécia, consagrado a Apolo. Foram os corvos
que determinaram o lugar do ônfalo de Delfos, segundo Estrabão. Segundo Plínio, fo-
ram águias. E, segundo Plutarco, cisnes. Esses três pássaros têm isso pelo menos em
comum: desempenham o mesmo papel de mensageiros dos deuses e preenchem fun-
ções proféticas. Os corvos eram, igualmente, os atributos de Mitra. Passavam por ter
o poder de conjurar a má sorte.
(...) Na Gália, era animal sagrado. E a mitologia germânica os tinha na conta
de ssaros diletos e companheiros de Wotan.
Na mitologia escandinava, dois corvos estão permanentemente pousados so-
bre o espaldar do trono de Odin. Um é Hughin, o espírito; o outro, Monnin, a memó-
ria.(...)
Ele seria também um símbolo da solidão, ou melhor, do isolamento voluntário
daquele que resolveu viver num plano superior. Seria, igualmente, um atributo da es-
perança, pois o corvo repete sempre, segundo Suetônio, cras, cras, i. e. amanhã,
amanhã(...).
Assim, na maior parte das crenças a seu respeito, o corvo aparece como um
herói solitário, muita vez demiurgo ou mensageiro divino, guia, em todo caso, e, até,
guia das almas na sua última viagem, pois que, psicopompo que é, ele penetra, sem se
perder, o segredo das trevas. Parece que seu aspecto positivo está ligado às crenças
dos povos mades, caçadores e pescadores; torna-se negativo com a sedentarização
e com o desenvolvimento da agricultura.
Os alquimistas sempre associaram a fase da putrefação e a matéria em negro
ao corvo. Eles chamam a esta última cabeça de corvo.
689
Desse extenso inventário de qualidades benfazejas (que nem mesmo é exausti-
vo), o que mais importa realçar, para aplicação à peça rosiana, são, por primeiro, o simbolis-
mo de “isolamento voluntário daquele que resolveu viver num plano superior” e a habilidade
de penetrar, sem se perder, o segredo das trevas, idéias que concertam com a atual etapa
688
Em ROSA, 2, 134, peltimo verso: que dormisse na treva, amedrontado,.
689
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 294-295. Grifos dos autores, dentre os quais, perspicácia”, funções
proféticas, isolamento voluntário” e cabeça de corvo” em negrito.
379
mistagógica. De sorte que, ao arrepio do Pavor” curtido pelo noviço ainda confuso e titube-
ante, a presença “de um corvorevela-se antes como um sinal de “esperança”, um aceno de
que, “amanhã” – ou à manhã, para lembrar o vindouro Amanhecerde Magma – haverá a
oportunidade de fugir voando do antro noturno em que por ora a “alma se enfurna”. Além do
que, segundo foi aludido, nos trabalhos espagíricos o símbolo da “cabeça de corvo que deve
ser cortada denota, desde Hermes Trismegisto, que o procedimento da nigredo vem transcor-
rendo satisfatoriamente, com alvíssaras de que se operará em breve a sublimação do chumbo
apodrecido em ouro etéreo.
Tem interesse, então, discernir que o signo do corvo exprime paridade com
determinados matizes da simlica referente ao Estige, horroroso curso aquático do Hades
grego: um e outro inspiram Pavor, mas igualmente contêm, para quem possui a sabedoria
de ver, a promessa de alguma espécie de proteção, sendo apenas física no caso das águas do
rio (tal como na lenda de Ulisses), mas espiritual no que toca ao surgimento da “cabeça de
corvona obra alquímica.
E assim como no lendário heleno o Estige tinha como afluente o Aqueronte das
águas amargas e negras como sombras, seguidamente ao Pavorvem Angústia”, poema que
compensa ser trasladado in totum:
1
Estou com medo das roupas da noite.
dos vultos quietos, das sombras da cousas,
que pulam, longas, com pés tão longos,
e de uma cousa fria, qualquer cousa grande,
5
que lá do longe, do não sei onde,
vem vindo para mim.
Talvez do fundo das grandes matas por onde andei
talvez da terra das cousas vivas que eu enterrei,
talvez dos cantos do quarto escuro da minha infância,
10
talvez das cavernas de draes negros de livros que li...
Vem vindo, e o vento está uivando
vem vindo, e os cachorros estão soluçando,
vem vindo da treva, para me agarrar...
Talvez ela venha roubar meu amor,
15
talvez lembrar-me cousas passadas,
talvez buscar-me para a escuridão...
Já está perto, já vem pesando,
vem me apalpando,
vem me apertando,
20
vem de uma cova,
e eu vou morrer...
690
690
No verso 7, a forma original por onde errei, foi mudada para por onde andei. Em ROSA, 2, 135, o v. fi-
nal sofre uma radical alteração, resultando em: para me enterrar...
380
Essa composição, como se pode perceber, em termos de atmosfera conecta-se
indubitavelmente com a anterior. Mas não somente com essa. Encontram-se em Angústia”
alusões a diversos outros textos de Magma. Para começar, acompanhe-se que o fundo das
grandes matas por onde andeiparece recuperar o eco longínquo dos Ritmos selvagens
que, num certo
(...) dia inteiro, as águas ouviram
e as matas entenderam...
Vêm à mente, por igual, os passos dados junto a Araticum-uaçu ao longo da
tetralogia “No Araguaia”, cujo ambiente é todo selvático, bem como as duas partes de “Luar
na mata(I Cinema” e II Rapto).
Ademais, a “terra das cousas vivas que eu enterreidá mostras de recordar o
momento em que
A menina, de raiva, enterrou a cachorrinha,
segundo foi narrado em A terrível parábola”.
Quanto aos cantos do quarto escuro da minha infância”, seguramente relem-
bram “a alcova (...) morna” de “Derio– peça em que se pede:
Apaguemos a luz...
e talvez ainda, de forma mais diluída, o quartoinvadido por um beija-flor” em Ausên-
cia”, ao lusco-fusco de quando
Entardece...
Por seu turno, as cavernas de dragões negros de livros que li” com toda a
propriedade evocam a “Gruta do Maquiné”, onde a “noitepreta em vão intentara
(...) deslizar para fora da furna,
e subir desenrolando as voltas
de píton ciclópico,
lembrando que o píton, na mitologia da Hélade, fora uma serpente com aspecto de dragão.
Aliás, frise-se, que na “Gruta do Maquiné” também foi feita menção à “treva, então vista
como um “enorme corvo, tal como no mais recente “Pavor, pelo que aquele carme do pri-
meiro terço de Magma aparentemente manifesta uma estreita correspondência com o par Pa-
vor-Angústia”: é que a incursão pela “Gruta do Maquiné” foi, conforme antecipado, uma
381
espécie de preparação
691
para o que se aperfeiçoa na atualidade, a saber, a internação do
adepto no seu próprio ego, com vistas à ascensão do espírito. Utilizando-se as palavras de
Pavor, nas três peças a “alma” primeiro se enfurna” para depois tentar se elevar. Ou, como
preconizavam os antigos, Ad augusta per angusta
692
. Entretanto, se a ascese restou frustrada
naquela distante tentativa do primeiro terço, certamente não o será agora.
Por fim, complemente-se que “os cachorrosque “estão soluçando” em meio
aos uivos do ventode “Angústiabem podem ser tomados pelos mesmos
(...) cachorros
Corta-Vento, Rompe-Ferro, Acode-a-Tempo,
que “a noitesoltou, em Assombramento, para ajudar a assustada réstia de luz da lua.
De tudo isso se extrai que “a memória”, estimulada que fora em Revolta” e
Regresso, presentemente se acha em quase pleno exercício, com o neófito revivendo deter-
minadas “cousas passadasque dizem respeito à sua experiência mistagógica. Contudo, a or-
dem alinear ou embaralhada pela qual tais lembranças se apresentam, envoltas em negro nas
roupas da noite, ainda expressa toda a angustiosa confusão em que o iniciando está imerso.
Além do que, mesmo essas recordões daqui a pouco deverão ser preteridas, pois a mais pro-
funda e verdadeira reminisncia ainda por alcançar e a única que interessará ao ser des-
perto – refere-se à unidade de essência entre a alma humana e Deus.
Vale patentear que tal confusão mnemônica advém do fato de que o poeta de-
monstra “medo das roupas da noite”, as quais como que lhe turvam a nudez da memória, e
ainda medo
dos vultos quietos, das sombras das cousas,
(...)
e de uma cousa fria, qualquer cousa grande,
que lá do longe, do não sei onde,
vem vindo para mim.
Em prosseguimento, no paroxístico final de “Angústia” tudo se cristaliza num
entranhado medo de “morrer. Ocorre que esse temor é justamente o que ao noviço compete
perder há tempos, eis que as atitudes de “Pavor” e “Anstia” perante a Morte se traduzem
em não menos do que uma desatinada apreensão em face do próprio Renascimento. Assim
sendo, dado que absolutamente incompaveis com o sucesso do anseio anagógico, tais postu-
ras merecem ser incontinenti expurgadas. Nesse quadro, faz-se oportuna uma explicação:
691
V. as págs. 132-134 (Capítulo II, tópico 2).
692
Tb. cit. em ROSA, 11, 42-43 (Pirlimpsiquice”).
382
A morte iniciática prefigura a morte física, que deve ser considerada como a
iniciação essencial para aceder a uma vida nova. E, no entanto, antes da morte real,
graças à morte iniciática incessantemente repetida, no sentido que São Paulo indica
aos cristãos (
1
Coríntios
,
15
, 31), o homem constrói seu corpo glorioso. Vivendo, em-
bora, neste mundo profano, ao qual não deixa de pertencer, ele penetra, com efeito,
pela graça, na eternidade.
693
Por ora, estando o neófito de
Magma
já nos donios da “morte iniciática, é
de se refletir que o temor da “morte real” enfocado nos derradeiros versos de “Angústia
como se o de um
morto que teme morrer de novo
reedita e até intensifica aquele recente-
mente visto Pavordo
(...) cego
que dormiu na treva, amedrontado,
para sonhar que mais uma vez cegou...
Advirta-se, outrossim, que o surgimento do Pavore da “Anstia” constitui-
se numa constante em praticamente todas as solenidades mistagógicas, não se tratando, pois,
de maneira alguma de emoções interditadas aos postulantes. Pelo contrário, são elas não só
desejadas como
provocadas
por meios variados de acordo com o ritual, num mecanismo que
tem por objetivo fazer com que cada adepto, diagnosticando em si a existência indisfarçável
de tais fraquezas inerentes à humanidade, prevala sobre elas e livre-se com decisão de tudo
quanto o tolda de ver a Luz deífica. É exatamente o que o noviço de
Magma
leva a efeito em
Bibliocausto.
Sobre esse novo texto, inicie-se dizendo que seu título compreende um neolo-
gismo, dos primeiros da literatura de Guimarães Rosa, a qual depois seria tão pródiga em in-
venções lexicais. Ao que parece, cuida-se de uma junção das palavras gregas
bíblion
, livro,
e “
kauston
, que tem o sentido de “queimar, corroer, resultando assim no conceito de “quei-
madura de livro ou de livros. Mas, numa alternativa, talvez seja possível ler aí a contração de
bíblion
e de
holokauston
(em português,
holocausto
), termo este, também proveniente do gre-
go, que se refere à prática sacrificial hebraica na qual a vítima é inteiramente consumida pelo
fogo (conforme prescrito em
Levítico
, 1); nessa hitese, o segmento
holós
, que significa
todo, inteiro, acabaria desaparecendo como componente do vobulo no entremeio da aglu-
tinação, embora sua idéia persista nas estantesque sobrariam vaziasao fim da peça rosia-
na, as o inndio de
toda
uma biblioteca. Independente de qual tenha sido a escolha do au-
693
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 506-507. O versículo epistolar noticiado é: Dia as dia morro! Eu o
protesto, irmãos, pela glória que tenho em vós outros, em Cristo Jesus, nosso Senhor.
383
tor, não há dúvida de que o tema de “Bibliocaustose reporta a uma expiação a ser realizada
por meio das chamas:
Que a minha mão não trema
ao deitar no fogo forte e primitivo
todos os traidores
que me deram veneno.
Tem cabimento deduzir que esse “fogo forte e primitivorepresenta ter sido in-
flamado com o combusvel do carvão todoque foi tiradodos poços velhos de hulhei-
rasde “Pavor” e insuflado com o oxigênio do vento (...) uivando” consignado em Angús-
tia”. Por via de conseência, pode-se dizer que é com os instrumentos do Pavor” e da “An-
gústia” que são avivadas as labaredas purificadoras de “Bibliocausto. Ora, esse fogaréu, ago-
ra tão forte”, aparenta ser precisamente o primitivo
Magma
que dá nome ao volume de
1936. Não se esqueça de que a luz e o calor do magma íntimopermaneceram arrefecidos
durante boa parte do desfiar do livro, sobretudo no período de estadia do neófito na subtérrea
mansão tumular, cujo clima, em contraste diametral com a presente ardentia, caracterizou-se
por ser gélido e úmido (Toada da chuva”...), escuro (Assombramento, Necrópole”, An-
gústia”...) e asfixiante (Pavor...). Aliás, é flagrante a diferenciação entre a tibieza aflogística
do passado fogo-fátuode “Assombramento, seguida pela tenuidade do fio da ngua, fu-
gidio e verde,/ de um sal de boro” em Tentativa, e o atual vigor da fogueira na composição
em tela. A natureza ignescente do presente poema, por outro lado, permite-nos fazer associa-
ções com o Athanor, que é a fornalha microcósmica dos alquimistas, e com o Flegetonte, rio
infernal das queimaduras na antiga mitologia grega. Destarte, a perspectiva que se abre é a de
que o adepto, para ultimar a carreira mistagógica, necessita ultrapassar agora o curso das
águas ígneas que se confundem com a férvida substância do
Magma
anímico.
Conclui-se que em Bibliocaustose assiste a uma cena de capital importância,
a qual marca simultaneamente a
despedida do plano ctônico intermédio
e o
princípio da ilu-
minação do poeta que reza o rosário
: é a vera passagem das sombras à Luz, mediante uma
fervorosa profissão de fé. Examinemos, por conseguinte, esses dois ângulos.
Em corroboração à hermenêutica de saída do noviço do reino subterrâneo, faz-
se, na segunda estrofe do carme, a afirmativa de que
Queimarei o frio
geometrizador da vida
lapidada atras de lentes bem polidas
(ah, o horror da pedra voando,
tangida pela mão de o sei que demônio
384
e a pensar pelo espaço que ainda tem arbítrio!...)...
694
A imagem do frio/ geometrizador da vida” põe em evidência, obviamente, a
contraposição entre “frio” e “fogo, sendo que a este cabe preponderar,
queimando
aquele:
trata-se não menos do que o ideal de aquecimento do ser humano pela descoberta de sua pró-
pria
alma
, fioque o une à
Alma Mater
. Além do que, certamente se estabelece um nexo
com o problema de
trigonometria
que “A aranha” tentava “resolverna peça que assinalou
a entrada do noviço no mundo sepulcral; dado que a
geometria
e a trigonometria são ramos
afins da matemática, relembre-se que uma parte relevante da inteligência daquele poema ante-
rior se demorava nas correlões entre as formas
geométricas
: o desenho octogonal, com-
posto por triângulos que traçam uma figura intermediária entre o quadrado e o círculo, bem
como o trapézio
695
. Logo, a combustão simlica do frio/ geometrizador da vida” exprime
que em Bibliocausto” acontece o vencimento da etapa em que vigeram as preocupões tri-
gonométricas da “aranha fiandeira, a qual vacilava entre se “amortalharno plano da matéria
ou pescar pequenos arco-írispropiciatórios da ascensão.
Em continuidade, percebe-se que a terceira e quarta estâncias repetem a estru-
tura da segunda, sendo todas encabeçadas por votos assemelhados e arrematadas por comentá-
rios entre parênteses:
Queimarei o detrator
maníaco e vaidoso,
que quis prender a vida numa câmara lenta,
para a tingir depois numa câmara escura
(ah, o inferno galopando às doidas,
nos cavalos sem freios
da vontade cega e sem destino!...)...
Queimarei o louco,
ébrio de orgulho,
raivoso de fraqueza,
que destilava haxixe em frascos verdes
na paisagem alpina
(ah, o prazer com que ainda o queimaria
em cada uma das voltas pavorosas
do seu Eterno Retorno!...)...
A tríplice proposição (
Queimarei
...) admite avaliar que “o frio/ geometriza-
dor da vida”, o detrator,/ maníaco e vaidoso,” e o louco,/ ébrio de orgulho,/ raivoso de fra-
queza,identificam-se entre si. De fato, são sempre os mesmos traidores/ que me deram ve-
694
Em ROSA, 2, 138-139, o segmento pelo espovem entre vírgulas: e a pensar
, pelo espaço
, que ainda tem
arbítrio.
695
V. atrás as págs. 245-246 e 248 (tópico 1 do presente Capítulo).
385
nenodenunciados nos primeiros versos. Em suma, tais traidorespodem ser interpretados
como todos” aqueles que, de uma maneira geral, contribuem para afastar o ser humano de
Deus, quando levantam suas Torres de Babel à base do conhecimento meramente livresco (daí
Bibliocausto), da erudição amorfa e da lógica equacionária que desdenham o valor da fé. E,
levando-se em conta as observações parentéticas, carreiam-se elementos (o “arbítrio, a
vontade cega e sem destino, o Eterno Retorno) que induzem a cogitar que, para o jovem
Guimarães Rosa, esses traidoresse conjugariam numa só personagem que os representa a
todos: o filósofo alemão Friedrich Nietzsche.
Hygia T. C. Ferreira tem a esse respeito opinião semelhante:
Bibliocausto(...) sintetiza a aversão do poeta contra os que ele chama de traido-
res: os cientistas exagerados, estudiosos que deixam de lado a vida humana, que só
se interessam pela ciência pura, fazendo da vida um quadro de classificações. São os
empalhadores, os dissecadores que geometrizam a vida (...). O poeta é também contra
o realismo exagerado (negativo) e, sobretudo, o naturalismo. (...) Finalmente, o poeta
se diz contra: todos os que criam um homem que está acima do homem; o ufanismo
individualista da superioridade humana; todos os programadores do super-ego, Ni-
etzsche em especial, com seu super-homem, imortal, ateu, tirano, egoísta, sem nunca
levantar os olhos para o u. Nietzsche é, assim, o louco, que também deve ser quei-
mado...
696
Para entender esse ponto, é conveniente dar aparte ao próprio Guimarães Rosa,
em fragmento epistolar que já foi colado anteriormente:
Ora, Vojá notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essência, são
antiintelectuaisdefendem o alssimo primado da intuição, da revelação, da inspi-
ração, sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, a megera cartesiana.
Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Pau-
lo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff com Cristo, principal-
mente.
697
Nesse padrão, Nietzsche surge deveras como o anpoda por excelência das raí-
zes rosianas cravadas nos textos sticos e pensadores elencados. Merece lugar, portanto,
uma visão rápida, porém o mais criteriosa possível, sobre o pensamento nietzschiano, a fim de
que se possa auferir o como e o porquê de se configurar esse antagonismo.
Aduza-se então que a inteira filosofia de Nietzsche, a qual o mais das vezes se
revela aforística, desdobra-se como uma crítica acirrada a todos os sistemas de idealismo me-
tafísico (ou de “ontoteologia) e a quaisquer valores religiosos e morais instituídos a partir
deles. Vejamos que, realizando A genealogia da moral (1877), o pensador alemão considerou
696
FERREIRA, 47, 25.
697
Rosa, em carta a BIZZARRI, 29, 58. Grifei.
386
que existiriam duas grandes balizas éticas para o comportamento humano em face da vida.
Uma delas corresponderia a uma “Herren-moralou moralidade de senhores, cuja melhor
forma teria sido praticada na Grécia pré-socrática e na Roma clássica e que se sustenta sobre a
valorização de aspectos egoísticos, como a honra individual, o orgulho aristocrático e o amor
pelo poder e pelo perigo, tudo por sua vez se consubstanciando na virtus ou força da masculi-
nidade que abraça o deleite da existência. Esses dons viris, no entanto, segundo Nietzsche te-
riam mais tarde sido corrompidos com a introdução de uma “Heerden-moralou moralidade
de rebanhoque preza qualidades plebéias, tais como a humildade, o sentimento de igualdade
e o amor ao próximo e à paz, os quais traduzir-se-iam como indícios de uma pusilânime fra-
gilidade feminina. Herren-moral” e Heerden-moralopor-se-iam sobretudo porque, bem ao
contrário da primeira, a segunda sempre apresenta um ideal de renúncia à vida do corpo sen-
sível – que para Nietzsche seria a única vida verdadeira em prol de uma falsa felicidade da
alma num além feérico; sendo assim típica de uma mentalidade de “escravosque têm medo
de viver, tal atitude “de rebanhoagiria por negar a vida real, coibindo a liberdade do espírito
humano de procurar o seu próprio bem imediato e impondo-lhe uma servidão a conceitos de
quimera como o bem comum” e a “vontade divina”, os quais enredariam o ser em noções er-
rôneas sobre o bem e o mal. No entendimento de Nietzsche, o bem supremo seria, a todo tem-
po, a livre expansão da vontade do indivíduo mais forte, e o mal, qualquer oposição a ela.
De sorte que, para o filósofo germânico, os grandes responsáveis pela instaura-
ção da “Heerden-moralno Ocidente, dando motivo ao decnio da civilização, teriam sido:
Sócrates, visto como um decadenteque “inventou” a metafísica ao fazer a distinção entre o
mundo das “aparências” e o das “essências; Platão, sistematizador deplorado como um
“cristão pré-cristão, e junto a ele os seus discípulos neoplatônicos; o judaísmo, entendido
como uma frouxa religião de ghettocriada por um povo subjugado (o que não deve ser con-
fundido com o anti-semitismo, postura que Nietzsche alegava desprezar); e, sobre todos esses,
a fé cristã, ridicularizada como um platonismo para o povo, e São Paulo, verdadeiro disan-
gelista” disseminador do ódio instintivo contra a realidade”. No que concerne às outras cren-
ças, o budismo freqüentemente foi alvo de motejos lançados pelo pensador, assim como de
vez em quando o eram o hinduísmo e Maomé. Outras farpas escarnecedoras foram desfrecha-
das contra “espíritos doentesos mais variados, tais como Martinho Lutero, Jean-Jacques
Rousseau, Herbert Spencer e Epicuro, ou contra tipos da “nossa décadence literária e arsti-
ca”, como Liév Tolstói, Richard Wagner e Arthur Schopenhauer. Acrescente-se que na época
de Nietzsche o socialismo (especialmente o de Karl Marx e Friedrich Engels) e as bandeiras
387
democráticas ter-se-iam encarregado de advogar diversas das causas altruístas e degeneradas
inerentes à “Heerden-moral
698
.
Como se vê, salvo o lado sócio-político, o alemão investia com severidade
contra tudo o que era mais caro a Guimarães Rosa no que toca à ascendência ideológica
contra “Cristo, principalmente”, e toda a pregação cristã estruturada em torno dos manda-
mentos de amor ao próximo e, sobre todas as coisas, amor a Deus
699
, preceitos que Nietzsche
acusava de falácia. Quanto à questão da fé, fulcro de toda a literatura rosiana, é absolutamente
menosprezada pelo niilismo nietzschiano. O pensador também se insurgiu contra a justifica-
ção do sofrimento feita pelo cristianismo em termos de resgate do pecado como condição pré-
via para o ingresso da alma num imaginário mundo post-morteme perceba-se que se Gui-
marães Rosa demonstrou, em Regresso, preocupação crucial com esse tema de fundo ana-
gógico, para Nietzsche tal idéia transcendental teria sido formulada apenas porque os mais
fracos quiseram criar compensões fantasiosas que os consolassem diante da interdição, na
vida real, aos privilégios naturalmente gozados pelos mais fortes: sem possuir a força e a au-
dácia varonis necessárias para conquistarem por suas mãos as riquezas materiais, a terra e as
alegrias do corpo, os débeis integrantes do rebanhoteriam forjado os mitos da pobreza vir-
tuosa, do u e da salvação da alma; na mesma linha de raciocínio teria sido urdida a ficção
do pecado, a qual procurava, numa atitude de completa “hostilidade à vida” e a “tudo que é
humano, coarctar os dignos de serem senhoresde dar plena satisfação aos seus mais puros
instintos vitais. Portanto, Zaratustra elogia:
Amo Aqueles que não procuram atrás das estrelas uma razão para sucumbir e
serem sacrificados: mas que se sacrificam à terra, para que a terra um dia se torne do
além-do-homem.
700
Foi assim que Friedrich Nietzsche declarou simbolicamente a morte do Deus
cristão, a qual, para ele, teria ocorrido nos fins do cientificista século XIX, como corolário da
falência do platonismo e de todos os demais sistemas metafísicos. Em substituição, o filósofo
propôs o estabelecimento de uma nova ordem axiológica, estruturada sobre uma senhoril
vontade de potência”: esta se tornaria o luzeiro individual a guiar cada “espírito livre” até o
porvir, quando deveria surgir um super homemsituado jenseits von Gut und Bösel(Além
698
Essas alusões, assim como as seguintes, foram colhidas em obras várias: A gaia ciência (1881-1882), Assim
falou Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém (1883-1885), Cresculo dos ídolos Ou como filosofar
com o martelo (1888) e O Anticristo – Ensaio de uma crítica do cristianismo (1888). Remeto à consulta das
obras de NIETZSCHE constantes na bibliografia desta pesquisa: 220, 221 e 222, passim.
699
V. Mt 22.34-40, , Lc 10.25-28, Mc 12, 28-34, Jo 13.34, 1Co 13, 1Jo 4, 7.21, e tb. Dt 6.4-5 e Lv 19.18.
700
NIETZSCHE, 221, 211 (Assim falou Zaratustra).
388
do bem e do mal, 1886) e capaz de criar por si mesmo a sua vida, atendendo a seus desejos
sem se submeter a códigos enganosos e a promessas irrealizáveis. Pois bem, se o cosmos é
desdivinizado e “Nada é verdadeiro, tudo é permitido
701
. Seria essa aquela apologia “da
vontade cega e sem destinoque em Bibliocaustodesperta, no jovem Guimarães Rosa, tão
ardoroso (e nota bene) repúdio.
É, pois, nessa conjuntura que adquire relevância a tese, referida no poema de
Magma, do Eterno Retorno, que Nietzsche imodestamente reputava como o mais poderoso
dos pensamentos
702
e através do qual intentou superar a metafísica cristã. Trata-se de uma
doutrina existencial que, partindo do postulado de um universo sem Deus, firma as seguintes
premissas: primeira, a de que o tempo é infinito; segunda, a de que as forças engendradoras da
realidade são finitas. Em decorrência, as combinões possíveis dessas forças, por mais am-
plas que se configurem, acabam se revelando inexoravelmente limitadas e, dentro do ciclo
cósmico temporal, repetem-se ad infinitum nos mais ínfimos detalhes. Nietzsche explana:
Seja qual for o estado que esse mundo possa alcançar, ele tem de tê-lo alcançado, e
não uma vez, mas imeras vezes. Assim este instante: ele já esteve aí uma vez e mui-
tas vezes e igualmente retornará, todas as forças repartidas exatamente como agora:
e do mesmo modo se passa com o instante que gerou este, e com o que é filho do de
agora. Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra
vez e sempre se escoará outra vez –, um grande minuto de tempo no intervalo, até que
todas as condições, a partir das quais vieste a ser, se reúnam outra vez no curso cir-
cular do mundo. E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo e inimigo
e cada esperança e cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a
inteira conexão de todas as coisas.
703
O filósofo ainda cuida de admoestar: Guardemo-nos de atribuir a esse curso
circular qualquer tendência, qualquer alvo...
704
e isso porque, não havendo Deus nem qual-
quer espécie de transcendência hábil a opor freio ou atrito, o peculiar anel rmico nietzschia-
no aparece com efeito como um implacável moto-perpétuo, sem outra lei que não a da reitera-
ção sem fim de todas as coisas. A conclusão prática, posto que preconize a prerrogativa de se
imprimir a cada momento o selo da eternidade, tinge-se por igual de uma pátina maquiavélica:
Meu ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a ta-
refa –, pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço o mais alto senti-
mento, que se esforce; quem encontra no repouso o mais alto sentimento, que repou-
se; quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que
701
Id., op. cit., pág. 442 (O eterno retorno, 1881, escrito formado por fragmentos que Gérard Lebrun coligiu
em textos stumos, tais como Vontade de potência, obra que Nietzsche deixou inacabada). V. id., 220.
702
Id., 221, 442.
703
Id., ibid. Grifo do autor.
704
Id., op. cit., pág. 441. Grifo do autor.
389
obedeça.
Mas que tome consciência do que
é que lhe dá o mais alto sentimento, e não
receie
nenhum meio
! Isso vale
a eternidade
!
705
Sem dúvida, cuida-se de um extremamente poderoso estímulo silogístico à
mais completa e plena fruição dionisíaca da vida, o que tem seu mérito. Mas não deixa de ser
também um modo formidavelmente erudito de se enovelar o banalizado dito coloquial: “agora
é cada um por si.
Todavia, o que chega a ser pungente é a percepção de que, apesar de sua cons-
tante parenética profana acerca da “morte de Deus, a filosofia de Nietzsche progride até o
ponto em que ela mesma se acua em cheque, pontuada que é por certos elementos suspicazes,
os quais dão margem a que o complexo em que se inserem seja interpretado não como um
modelo de pensamento ateísta, mas sim deísta,
i. e.
, erguido sobre o convencimento tácito de
que Deus distraidamente se alheia do Universo, e portanto, em troca, o ofendido Universo
deve se alhear de Deus. Ora, é o próprio Zaratustra quem profere:
Amo Aquele que açoita seu deus,
porque ama seu deus
: pois tem de ir ao fun-
do pela ira de seu deus.
706
Teria Friedrich Nietzsche, filho e neto de ministros protestantes por ambos os
lados da família (de cujos lpitos parece ter herdado a eloqüente índole profética) e devota-
díssimo leitor da
Bíblia
na infância e na adolescência,
amado
tanto seu Deus a ponto de
açoi-
tá-Lo
? Ou melhor dizendo, teria Nietzsche
açoitado-O
– porque positivamente
O açoitou
merde um despeitado
amor
? A biografia do filósofo mostra um sem mero de contravol-
tas do coração: exemplificando, sua admiração por Schopenhauer, a amizade com Wagner e
notadamente a paixão pela jovem Lou Andreas Salomé, cortejada em vão, redundaram sem-
pre em magoados desafetos, materiais que a verve transformava em argumentões de filoso-
fia. Recusado em suas idéias ou sentimentos, o melindrado Nietzsche sempre retrucou na
pena, e não teria porventura agido assim também com Deus?
Compete encarecer que as presentes ponderões não constituem de modo al-
gum uma digressão ociosa, mas, bem ao contrário, perfazem uma parêmbole necessária. Pois
é sob esse prisma que se torna possível compreender a filosofia nietzschiana como uma bri-
lhante
filosofia do ressentimento
, elaborada por alguém que não logrou suplantar a sua ro-
705
Id
.,
op
.
cit
., pág. 442. Grifos do autor.
706
Id
.,
op
.
cit
., pág. 212. Grifei. Cruze-se com Guimarães Rosa:
Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e
o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário,
corrigi-los também
, se quisermos ajudar o homem. (...) Disse-
ram-me que isto era blasfemo, mas eu sustento o contrário. Sim! a ngua dá ao escritor a possibilidade de
servir
a Deus corrigindo-o
, de servir ao homem e de vencer o diabo, inimigo de Deus e do homem.(In: LORENZ, 58,
83-84. Grifei.).
390
mântica decepção em face do mundo burguês finissecular, do qual parecia que Deus Se havia
evadido. Destarte, visualiza-se com melhor clareza o contraste em relação àquilo que poderí-
amos chamar de estética do persentimento rosiano, calcada que é em insistentes preocupões
de ordem autocognitiva e de esteio anagógico, bem como arrimada na prevalência da fé – o
que em Magma foi alicerçado logo com o poema vestibular e do amor teosófico – cuja im-
portância foi enfatizada desde “A Iara”, desdobrando-se depois nos textos do segundo terço.
Diante de tudo, complemente-se que quiçá a ética nietzschiana possa ser ela
própria lida como uma pica “Heerden-philosophie, uma Torre de Babel intelectual levanta-
da porque o egotista pensador alemão não teria acreditado na sua capacidade particular de se
elevar até um Deus prodigiosamente heril e tão divino, demasiado divino, em Sua inacessível
indiferença. Por conseência, o super-homemsonhado pelo filósofo pode não ser nada
além do que um trânsfuga simulacro do iluminado, e daí então Guimarães Rosa ter escrito
certa vez que Nietzsche “ouviu o galo cantar’ só por metade
707
, tal qual o neófito que sustém
a marcha no meio da caminhada. De sorte que se Zaratustra chegou a indagar, com desdém:
Se houvesse Deuses, como poderia eu suportar não ser um Deus?a isto o stico de Cor-
disburgo provavelmente poderia ter replicado: Sendo Deus!É a via proposta por Magma.
Saliente-se então, uma vez mais, que o que mais nos importa por ora, em fun-
ção do que “Bibliocausto” aventa, é que entre a disteleologia ímpia de Friedrich Nietzsche,
levantada sobre a asserção de um ser humano auto-suficiente, e a anagógica escritura de Gui-
marães Rosa, que pressupõe Deus como origem e fim de todas as coisas e de todos os esfor-
ços humanos, intere-se um abismo que, conforme se de averiguar, é bem mais largo do
que o oceano que separa a Europa e a América. O que explica a fina ironia do
(...) prazer com que ainda o queimaria
em cada uma das voltas pavorosas
do seu Eterno Retorno!...
Outrossim, mister discernir com exatidão que o Eterno Retornonietzschiano
não se confunde de maneira alguma com a “Revoltae o Regressorosianos. Aquele, sem
resvalar em qualquer aspecto anímico ou hierático, consiste num incessante “Retornode
cada momento ao mesmo momento e de cada matéria à mesma matéria, ao longo de uma infi-
707
Em carta a Vicente Ferreira da Silva, publicada in: Cavalo azul. Rio de Janeiro, maio de 1958, págs. 31-32,
apud FERREIRA, 47, 60. Cumpre ressalvar que, nada obstante, a metade do canto do galo que Nietzsche ouviu
permitiu que Guimarães Rosa, em vários momentos de sua literatura posterior, estabelecesse ricos diálogos com
outros preciosos aspectos da filosofia nietzschiana, o que já tem sido competentemente demonstrado por mais de
um pesquisador (v. g. PIMENTA NETO, 72) e havendo ainda nesse campo uma boa e extensa messe de estudo.
391
nitamente aberta curva temporal; e se nessa curva o vivo viverá de novo, sempre e sempre,
igualmente o morto morrerá vezes sem conta e sem descanso, e
(...) um cego
que dormiu na treva, amedrontado,
descobrirá eternamente “que mais uma vez cegou...Já no que tange à Revolta” e ao Re-
gressode Magma, o momento e a matéria representam caracteres efêmeros, tal como as
contas de um rosário que, uma vez desfiado, integraliza e fecha seu círculo: conquanto apa-
rentemente haja um término, na verdade este se consubstancia com o princípio, denotando que
a alma se reencontra consigo mesma em Deus e no Infinito – e então, nalgum quando, não
mais haverá cegueira.
E finalmente não se descure de anotar que o Eterno Retornode Nietzsche é
apenas uma forma peculiar do mais genérico conceito filosófico de palingenesia (do grego
palin, de novo, genesis, geração), o qual comporta outras versões como, verbi gratia, a do
italiano Giambattista Vico, que aplicou tal idéia de corsi e ricorsi à civilização, propondo ser
a história da humanidade projetada por ciclos (o divino, o heróico e o humano) que se suce-
dem. Sem embargo, pelos dados colhidos em Bibliocausto” é indubitável que a menção feita
por Guimarães Rosa queira evocar e confrontar especificamente a concepção nietzschiana do
tema.
Por outro lado, oportuno frisar que o ardor de “Bibliocaustonão se exaure na
profligação a Nietzsche, eis que este é tão-somente um de
todos os traidores
que me deram veneno.
Ad argumentandum, não haveria talvez, naquele “frio/ geometrizador da vida”,
uma censura até a uma parte do pensamento do próprio Platão? Afinal, a portela de sua Aca-
demia em Atenas ostentava a proibição de “Que aqui não entre quem não for geômetra,
como se o saber fosse privilégio de eruditos eleitos que conheçam e dominem técnicas de ló-
gica, ao passo que o único verdadeiro conhecimento exigido pela stica dos mistérios é o
singelo donio intuitivo de si mesmo, capacidade aberta a qualquer um. A rigor, pode-se
admitir que, no presente instante do trajeto mistagógico, já nenhum aparelhamento filosófico
se exime de figurar entre as labaredas de “Bibliocausto, vez que as filosofias são invariavel-
mente roupagens do intelecto humano, e a demanda agora é mais além, pelo desnudamento da
alma divina. Diz, a propósito, Fernando Pessoa:
392
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas s que são teus iguais.
708
O “corpo cessa. Eis aí a deixa para salientar que a real medula de “Biblio-
causto– para o que tudo quanto foi costurado até agora foram só preparatórios – vem a ser
que, se o venenofoi instilado, então a prioridade já não é verberar contra os
envenenadores
,
sejam eles quem forem, mas sim purificar o
envenenado
do mal que o acomete. Bibliocaus-
to, portanto, consiste antes de tudo num expurgo do veneno” e numa depuração, até as cin-
zas, do corpo que se havia corrompido: é a consumpção do
eu
.
De forma que as páginas anteriores serviram, mormente, para o isolamento dos
princípios tóxicos: são eles os venefícios da falta de fé e do apego à fatuidade da matéria, que
se demonstraram sintetizados na doutrina nietzschiana e com os quais o poeta que reza o rosá-
rio padecia há tempos. Isolados tais ingredientes ominosos, o andoto a ser ministrado é um
só: deixar incender livremente a áscua do
Magma
anímico, até que, na pira funerária de “Bi-
bliocausto, sejam incinerados em sacrifício todos os restos cadavéricos do ego profano, o
qual se permitira contaminar com a “Angústia” e o Pavorde se elevar até a deidade. E des-
de que ultimada a imolão desses despojos,
(...) só ficará comigo
o riso rubro das chamas, alumiando o preto
das estantes vazias.
O que equivale a dizer que “só ficará comigo” a pureza incandescente do
Magma
, “alumiando” as “estantes vaziasda psique, as quais restarão enfim desatravancadas
de quaisquer dos preconceitos da razão ctoniana que, à guisa de intermediar, acabava atrapa-
lhando o encontro entre o ser humano e Deus. É essa a mesma preocupação que embasa a se-
guinte admoestação do
Tao
(poema 20):
Renunciai à vossa pretensa cultura,
E todos os problemas se resolvem.
Vale ainda explicitar que, em tal perspectiva, subjaz o entendimento de que o
próprio neófito chegou a assumir o papel de “geometrizador da vida, de “louco,/ ébrio de or-
gulho,/ raivoso de fraqueza” e de
(...) detrator,
708
PESSOA, 234, 53, Iniciação.
393
maníaco e vaidoso,
que quis
prender a vida numa câmara lenta
,
para a
tingir depois numa câmara escura
...
Interessa então deslindar o tropo trazido por esses versos. Temos, primeiro, que
a “câmara lenta”, bem como a “câmara escura, remetem respectivamente às idéias de máqui-
na e de revelação fotográficas: com aquela,
prende-se
“a vidanuma pecula e depois, por
meio desta,
tinge-se-a
com cores que pretendem reproduzir a realidade. Outrossim, as mesmas
câmaras
surgem como representações de um recinto claustrofobicamente fechado, parecendo,
pois, aludirem ao longo e tenebroso período iniciático passado no reino subterrâneo dos mor-
tos,
câmara-ardente
onde o adepto sofreu a tentação de se render à imobilidade mórbida. Não
é expletivo patentear que se verifica, num como noutro caso, o sentido de imobilização, ou
seja, o que antes era movimento vital tende a ser submetido a uma fixação, cujo resultado apa-
rece como mera cópia da realidade: no instantâneo fotográfico não se vê a verdadeira vida,
mas apenas uma mímese destinada a fatal desbotadura e do mesmo modo o iniciando, se ti-
vesse optado por cessar o seu deslocamento e permanecer no túmulo simlico, estaria fadado
a se contentar com a pálida aparência das sombras, em detrimento da rutilante essência do
objeto real. Tudo, aliás, em franca correlação com o lebre mito da caverna platônico
709
.
No rastro dessa imagem, válido colocar que, se o neófito foi de fato o geome-
trizador, o louco” e o detrator, agora, como condição para o prosseguimento do itinerário
anagógico, incumbe-lhe necessariamente
queimar
em egie
a si mesmo, isto é,
queimar
aquela deletéria parte de si que, ostentando tais aspectos, secretara contra a alma o traiçoeiro
venenoda dúvida.
No entanto, o desvanecimento ao fogo dessa efígie imóvel assinala apenas um
dos lados da moeda, sua
cara
: a saída da mansão sepulcral, concomitante à extinção do
eu
profano. Já a reluzente
coroa
diz respeito à abertura para o Renascimento sob os auspícios
deíficos, e neste ponto atingimos as considerações sobre a
iluminação
que “Bibliocausto” en-
seja. Sim, pois que o fogo forte e primitivonão significa tão-só a combustão, mas também
uma reação contra as trevas tristes da morte, que são assim
alumiadas
pelo riso rubro da
chamas.
Como é consabido, torna-se bastante recorrente, nos textos de índole metafísi-
ca, a utilização do signo do fogo para indicar o alcance da epifania, eis que ele exprime, com
excelência ímpar, “a purificação pela compreensão, até a mais espiritual de suas formas, pela
709
V. neste estudo a pág. 127 (Capítulo II, tópico 2).
394
luz e pela verdade
710
.
Um exemplo notável, que nunca é demais relembrar, pode ser colhido
em
Atos
2.3, onde se narra a vinda do Espírito Santo por sobre os discípulos durante as festi-
vidades do Pentecostes:
E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pousou uma
sobre cada um deles.
Faz-se também oportuno citar um poema de São João da Cruz que dá mostras
de conotação com a linha stica seguida por Bibliocausto:
Oh! chama de amor viva
Que ternamente feres
De minha alma no mais profundo centro!
(...)
Oh! lâmpadas de fogo
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido
Que estava escuro e cego –
Com estranhos primores
Calor e luz dão ao seu querido!
711
Todavia, não há porque se demorar em tal assunto, suficientemente explorado
alhures neste trabalho
712
. O que importa é deixar bem frisado que “Bibliocaustose configura
como o instante do circuito iniciático em que o
Magma
ebole mais intensamente
fervet
opus
713
–, concluindo o trabalho de escorificação do interior do poeta, de modo a abrir no
continente humano o espaço
vazio
(exprimido pelas “estantessem livros) que se destina à
plena eclosão do conteúdo divino. Convém, entretanto, pormenorizar: por ora não se cuida
ainda da unificação final com a
Alma Mater
(tema a ser desenvolvido nos cinco próximos
textos), mas sim da descoberta, pelo peregrino, de que tal unificação é possível, traduzindo-se
unicamente numa questão de
fé
em que assim o seja. E por isso a particularidade de ser o dis-
curso de Bibliocaustovertido quase todo através de verbos no futuro do presente: com a
inteira atenção confiantemente voltada para o que ainda vem, augura-se para muito em breve
a definitiva revelação do liame anímico entre o homem e Deus. Ora, quando esse estágio for
atingido, o contemplante já não terá necessidade de coisa alguma
714
; por enquanto, porém,
710
Afirmação de Paul Diel (
Le symbolisme dans la mythologie grecque
),
apud
CHEVALIER e GHEERBRANT,
160, 443.
711
In: CARVALHO, 154, 157 (Chama viva de amor).
712
V. especialmente as págs. 48-53 (Capítulo I, subtópico 3.1).
713
Sobre esse pertinente fragmento de Virgílio, v. TOSI, 274, 432.
714
V. à frente a pág. 441 e segs. (último tópico deste Capítulo).
395
mesmo que nimas e absolutamente simples, algumas carências ainda se fazem sentir nos
versos finais da peça (e note-se a conjugação verbal no presente do indicativo):
Porque eu só
preciso
de pés livres,
de mãos dadas,
e de olhos bem abertos...
A alusão aos pés livresrepresenta querer expressar a exoneração do noviço,
agora totalmente absorvido pelas ocupões sagradas, de quaisquer dos misteres relativos à
existência mundana, eis que a máxima
liberdade
para os pés é, sem dúvida nenhuma, não es-
tarem servilmente presos a solo algum, podendo ir e vir a bel-prazer. Em prossecução do raci-
ocínio, plausível afiançar que “eu só preciso de pés livres
da terra
para que, sem outros vín-
culos, pesos ou obrigões, possa então me alçar até
o u
.
Quanto às mãos dadas, à primeira vista parecem reportar ao gesto mais ca-
racterístico da prece, em que o fiel junta as próprias mãos, predispondo-as para o alto, com o
intuito de demonstrar que se encontra totalmente compromissado com as tarefas sagradas, in-
terpretação essa em tudo adequada aos propósitos do poeta que reza o rosário. Mas, se se ad-
mitir um desdobramento da idéia,
É preciso lembrar ainda que a palavra
manifestão
tem a mesma raiz que
mão
;
ma-
nifesta-se
aquilo que pode ser seguro ou alcançado pela mão.
(...)
A mão de Deus é muitas vezes representada saindo das nuvens, o corpo per-
manecendo oculto no céu. Com o fim de
manifestar
sua divindade, ela surge cercada
de uma auréola cruciforme.
715
De sorte que as mãos dadas” em Bibliocaustotalvez possam ser tomadas
também como um símbolo de que a
alma
humana, pelo esforço pessoal, conseguiu
alcançar
a
divina
Alma
,
a qual lhe está agora “saindo das nuvensdo desconhecimento: assim, o ser
ma-
nifestado
, embaixo,
e Deus
Manifestante
, no alto, figurativamente
o-se as mãos
, num claro
sinal de concerto e intimidade. Nada obstante, em que pese o tom de aproximação, fica desta
maneira impcito que a aparência de dualidade ainda prevalece (já que são
duas
as mãos en-
volvidas), restando para mais tarde a conversão da criatura e do Criador (o Qual
permanece
oculto no u) numa única essência anímica.
Por outro lado, revela-se útil insistir na percepção da antinomia: as extremida-
des dos membros inferiores pésencontram-se, nos versos de “Bibliocausto, livresno
plano terrestre, ao passo que as terminões dos membros superiores mãosestão da-
715
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 589-591. Grifos dos autores (manifestaçãoem negrito).
396
das, i. e., de um jeito ou de outro se acham presas aos cuidados que se votam ao plano ce-
leste.
E inda mais elevados se situam os olhos bem abertos, órgãos que universal-
mente simbolizam a mais estreme capacidade de percepção dos aspectos sobrenaturais, bem
como a comunhão entre a alma humana e a refulgência divinal. Essas qualidades do signo são
atestadas por numerosos fatores: primeiramente, pela circunstância de a maioria dos relatos
teofânicos, no Oriente como no Ocidente, serem sustentados pela ocorrência do contato visual
do stico com algum representante que reflita a presença do nume inefável (são, por exem-
plo, na Bíblia, a Sarça Ardente de Êxodo 3 e as vindas dos anjos do Senhor anunciadores,
como Gabriel, que apareceu a Maria em Lucas 1.26-38); além disso, por todo lugar verifica-se
o alastrado emprego hierático de vocábulos e expressões oriundas da mesma constelação se-
mântica, tais como visão, contemplação, iluminação, miração (este um termo específico dos
ritos brasileiros do Santo Daime) e olho da alma, do coração ou do espírito. No que tange a
essa série de locuções, os pesquisadores Chevalier e Gheerbrant, depois de mencionarem
Platão e São Clemente de Alexandria”, elencam diversos outros autores em cujos escritos
são cultivados enunciados assemelhados:
Plotino, Santo Agostinho, São Paulo, São João Clímaco, em Filoteu, o Sinaíta, Elias,
o Édico, São Grerio de Nazianzo; é ainda uma constante da espiritualidade mu-
çulmana (ayn-el-Qalb), onde é encontrada na maioria dos sufistas, especialmente em
Al-Hallaj. M. Schuon observou-a de modo semelhante entre os sioux. O olho do cora-
ção é o homem vendo Deus, mas também Deus vendo o homem. É o instrumento da
unificação de Deus e da alma, do Princípio e da manifestação.
716
Ilustre-se o raciocínio com um fragmento do referido poeta Hussein Mansur
Al-Hallaj (857-922):
Avistei o meu senhor
com os olhos do coração e lhe disse: Quem és tu?
Ele me disse: Tu!
717
De fato, é sobretudo no misticismo islâmico que a palavra ayn (olho) se faz
mais largamente invocada, como o é pelo filósofo Avicena, para transmitir o sentido de “con-
templação da natureza íntima de Deusou – pode-se dizer sem erro – contemplação da natu-
reza de Deus no íntimo de cada indivíduo. Mas esse pensamento, sendo bem mais antigo do
que o próprio Islã, encontra eco nas mais variadas culturas, pois ao redor do globo persiste a
716
Id., op. cit., pág. 654. Grifos dos autores (vendoem itálico, os demais em negrito).
717
CARVALHO, 154, 63.
397
idéia de que “A abertura dos olhos é um rito de abertura ao conhecimento, um rito de inicia-
ção.
718
Eis porque
São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu cor-
po será luminoso;
se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas. Por-
tanto, caso a luz que em ti há sejam trevas, que grandes trevas serão!
719
Por conseguinte, têm razão de ser os olhos bem abertosna composição de
Guimarães Rosa.
Enfim, em função de todos esses elementos, considere-se que os três versos
concludentes de Bibliocausto” espelham percepvel consonância com os três derradeiros de
O poeta reza o rosário, carme inaugural de Magma:
sem que o poeta o veja,
sem que o sinta,
sem que o desminta...
Observe-se que os olhos bem abertosde “Bibliocaustoparecem confirmar
que “o poeta, neste comenos, tem plenamente descortinado em si o desejo de ver o invisível;
as mãos dadas, por seu turno, denotam que se busca sentir o toque do intangível; e logo os
pés livrespatenteiam a sólida intenção de não se desmentir o correr por dentrodo fio
do rosário, no movimento circular que conduz à divindade. Esses anelos metafísicos, que
desde o começo da aventura mistagógica causavam grande inquietão e hesitões no espí-
rito do adepto, sofreram vários reveses ao longo do confinamento no umbroso ambiente mor-
tuário, e no entanto agora vêm à tona com toda a força incandescente da lava em erupção: em
Bibliocausto, o Magma acende para poder ascender.
Eis então que, prestes a findarmos com os comentários acerca dessa peça, tão-
somente um único tema ainda falta ser abordado. Trata-se da recuperação do ciclo pictórico
zen-budista “As dez estampas de condução do Boi, de elevado teor anagógico e cujo exame
foi encetado ao ensejo do texto Boiada
720
. Naquela ocasião, foram discutidos os seis primei-
ros quadros da série, mediante o paralelismo com os sucessos do poema rosiano, tendo poste-
riormente se prevenido que as quatro gravuras restantes seriam analisadas a partir de “Biblio-
causto.
718
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 654. Grifo dos autores.
719
Mt 6.22-23. V. tb. Lc 11.34-36.
720
V. atrás as págs. 114-119 (Capítulo II, tópico 2).
398
Constate-se, previamente, que não é por acaso que no livro de 1936 a focaliza-
ção da série iniciática zen comou na longínqua “Boiadapara, as um extenso interregno,
ser retomada apenas agora, em Bibliocausto. Por primeiro se diga que essas composições
são eidistantes em relação ao continuum do volume: Boiadafoi precedida por cinco car-
mes (computando-se a peça vestibular), exatamente o mesmo número que virá em seguida a
Bibliocausto. Porém, a razão principal a explicar o nexo entre os dois poemas é que eles
constituem os momentos de maior temperatura de Magma: naquele, os boiadeiros por várias
vezes se queixaram do calor do sol de fornalha”, e neste o fogo forte e primitivodominou
a cena.
Outrossim, tem utilidade um rápido resumo do que no primeiro terço já foi es-
tudado a respeito. Antes de mais, recorde-se que o Boi (ou o Touro ou a Vaca ou a boiada,
conforme a tradução) evoca, no Leste asiático permeado pelos ensinamentos de Siddharta
Gautama, a natureza búdica inata do ser humano, ou seja, faz as vezes de símbolo do cinti-
lante “fiodeífico que ata cada pessoa à essência de Deus. De forma que, na primeira lâmina
do aludido conjunto, esse Boi é procurado pelo homem em meio à turbamulta iludente do
mundo material; na segunda figura, avistam-se suas pegadas; na terceira, há um Primeiro
vislumbre do Boi” e, na quarta, é ele agarrado; no quadro consecutivo o animal é domado e,
no sexto, o domador o monta, levando-o de volta para casa.
Chegamos assim à sétima das gravuras, nomeada “O Boi foi esquecido, o ho-
mem está só, que é atinente a Bibliocausto. O texto que a acompanha, em prosa e verso, é
este:
No Dharma não há dualidade. O Boi é o símbolo da natureza-Primária: ele o reco-
nheceu agora. Uma armadilha não é mais necessária quando se apanhou um coelho,
uma rede torna-se itil quando se pegou um peixe. Como o ouro separado da escó-
ria, como a luz da lua que atravessa as nuvens, um único raio de luz irradiante brilha
eternamente.
Somente no Boi ele poderia chegar à casa,
mas, eis que agora o Boi desapareceu e o homem se senta, sozinho e
[tranqüilo.
O rubro sol anda alto no u
enquanto ele sonha placidamente.
Ao longe, sob o telhado de palha
jazem seu chicote inútil e seu inútil laço.
721
721
Apud KAPLEAU, 197, 320. Cf. a admoestação constante na nota 208 (pág. 115), fo algumas emendas, au-
torizadas e até exigidas pela comparação com as versões em espanhol trazidas por SUZUKI, 266, 410-411, e id.,
270, 134-135.
399
Perceba-se que agora “o Boi desapareceu” e não mais retornará em nenhuma
das ilustrões que concluirão a série budística. O enfoque de Magma, destarte, mostra-se ab-
solutamente congruente: se em Boiadafora, é claro, bastante enfática a presença do animal,
o mesmo decerto não acontece em Bibliocausto, onde o Boi sequer é mencionado, e tam-
pouco nos outros poemas que adiante finalizarão o cotejo da obra de Guimarães Rosa com o
ciclo iniciático zen
722
. Essa ausência se verifica porque, quando o neófito budista “reconhe-
ceuque todas as coisas, inclusive Boi e ser humano, comungam de uma só essência – pelo
que “não há dualidadeno Universo –, todos os métodos envidados para se alcançar a Verda-
de iluminativa passam a ser desprezíveis em face da própria Verdade, e portanto o animal que
fora caçado não é mais importante: a caça ou a vontade de caçá-lo é que o fora, mas esta já
esgotou o seu curso (são como as contas do rosário já desfiadas, às quais não se torna). Da
mesma maneira, Uma armadilha não é mais necessária, uma rede torna-se itil” e os li-
vros e toda a sabedoria que contêm são, como “escória, lançados ao fogo em Bibliocausto.
No carme rosiano, adrede, enquanto O rubro solíntimo “anda alto no u” e consome no
riso rubro das chamasos anteparos filosóficos que doravante serão encarados como meras
superfluidades, o peregrino se apercebe de que não precisa senão de “pés livres, mãos da-
das” e “olhos bem abertospara obter o êxito anagógico. De sorte que o sentido precípuo da
sétima lâmina zen – a inutilidade do “chicote” e do laçoperante a tranqüilidade do sonho
ao rubro solé mais que perfeitamente perseguida por Bibliocausto.
Quanto ao aludido Dharma, termo de proveniência do sânscrito (especifica-
mente de dhri, suporte, como suporte do Universo), trata-se de uma noção por demasiado
complexa, que do hinduísmo espraiou-se ao budismo e ao jainismo, comportando numerosas
significações. Em palavras simples, pode-se dizer que consiste precipuamente na “Lei Univer-
sal da natureza, que se expressa em cada ser individual e no cosmo, pelo seu movimento cícli-
co e regular.
723
Estabelecido pela Vontade Divina, o Dharma define os atributos de todas as
coisas vivas e inanimadas, segundo as diferentes combinões das forças cósmicas. Assim, o
Dharma acaba se confundindo, substancial e imanentemente, com o próprio Deus. O reconhe-
cimento (anubodhi) do Dharma eterno somente é alcançado pelo Buda, ou seja, por quem
atinge o supremo despertar (bodhi); portanto, o Dharma também é, de certa forma, a doutrina
722
Ressalvo que se faz alusão ao zebu” e aos bois” apenas em Chuva”, texto que, entretanto, não participa se-
não de través dessa correlação entre Magma e as figuras budistas. Além do que, a ligeira evocação do gado, em
Chuva”, obedece a outras razões: q. v., no próximo tópico deste Capítulo, as pág. 424-425.
723
Enciclopédia Larousse, 172.
400
transmitida pelo Buda
724
. Seria, em suma, a “Consciência cósmica, conforme será proposto
por Guimarães Rosa no texto conclusivo de Magma.
Na esteira, já se pode incluir a ilustração de mero oito das dez, a qual é com-
posta por uma apresentação bastante singela do círculo do Tao, sendo intitulada “Esquecido
do Boi e de si mesmo:
Todos os sentimentos ilusórios pereceram e as idéias de santidade também se extin-
guiram. Ele não permanece no estado de Eu sou um Buda, e supera rapidamente o
estágio de Agora me purifiquei do orgulhoso sentimento de que não sou Buda.
Mesmo os mil olhos dos quinhentos Budas e Patriarcas o podem discernir nele uma
qualidade específica. Santidade ante a qual centenas de pássaros oferecem flores não
é mais do que uma farsa.
O chicote, o laço, o Boi e o homem pertencem igualmente ao Vazio.
Tão vasto e infinito é o u azul,
que não pode atingi-lo
conceito de nenhuma espécie.
Sobre um fogo ardente, um floco de neve não pode subsistir.
Quando a mente atinge esse estado
chega finalmente a compreensão
do espírito dos antigos Patriarcas.
725
Nessa estampa se repisa a idéia do absoluto Vazioque se deve instaurar no
interior anímico do adepto quando ele vencer as ilusões do ego: são, outra vez, as “estantes
vaziasde Bibliocausto. Os conceitos racionais com que dantes o iniciante buscava se ele-
var até “o u azul, Tão vasto e infinito(i. e., a divindade), correspondem então a não mais
do que “um floco de neve(o frio/ geometrizador da vida”) a se dissolver perante o fogo
ardente” e iluminativo do Magma – de acordo com o que se vem pormenorizadamente discu-
tindo.
Entrementes, é oportuno acrescentar que Alberto Marsicano, dissertando sobre
a progressão poética de Bashô, à luz das mesmas figuras sete e oito do ciclo zen, assevera:
724
Para maiores detalhes, remeto aos competentes verbetes contidos em MOREL y MORAL, 218, e WOLPIN,
287.
725
Apud KAPLEAU, 197, 321, com a mesma advertência da nota 721 (pág. 398 do presente estudo). Vale citar
certas explicações desse comentarista pertinentes à parte em prosa. Com respeito à penúltima sentença do trecho
(págs. 321-322): O que está subentendido nesta passagem é que os Budas e Patriarcas possuem uma sabedoria
semelhante a um espectro que pode distinguir com facilidade o caráter dos homens comuns, manchado como
está por várias corrupções. Mas alguém que se tivesse lavado de todas as impurezas, incluindo as mais sutis for-
mas de orgulho, seria tão puro e natural que até um Buda seria incapaz de vê-lo e dizer que ele era isto ou aqui-
lo.No que toca à frase seguinte (pág. 323): É uma alusão à parábola acerca de Hoyu-zenji, um mestre Zen da
dinastia de Tang, que viveu no monte Gozu e era geralmente louvado pelo ardor com que praticava o zazen no
seu retiro da montanha. Dizia-se que até os pássaros cantavam louvores a ele, oferecendo-lhe flores quando esta-
va sentado em sua cabana. Depois de ter ficado totalmente iluminado sob o quarto Patriarca, continua a estória,
os pássaros cessaram suas ofertas florais porque, tendo ele alcançado a perfeita iluminação, não mais emitia aura
alguma, mesmo de devoção e virtude.Grifo do autor.
401
Tendo passado este portal o iniciante encontra seu lugar (na arte seu estilo): aparece
a representação de uma choupana sob a lua cheia, símbolo budista do despertar. A
casa então desaparece (inndio da cabana de Basho) e vemos agora apenas o cír-
culo do tao, da vacuidade.
726
Não há, em Bibliocausto, nenhuma referência à “lua cheia” ou à “choupana”.
Sem embargo, tais elementos constituem apenas um
símbolo
budista do despertar, o que, na
composição rosiana, vem a ser substituído pelo signo similar do
fogo
forte e primitivo. E
nesse ponto de ignição – o
fogo
ardente”, o sol rubro, o inndioque abre espaço à “va-
cuidade” é que essas ilustrões em tela (e também Bas) idealmente se unem às intenções
anagógicas do jovem Guimarães Rosa em sua expressão de 1936. Ademais, o
círculo do tao
contemplado pela oitava gravura certamente remete ao
círculo
do rosário de
Magma
, o qual
está em vias de se fechar; porém, o vice-versa também é verdadeiro: desde o início a expres-
siva
circulatio
do rosário já queria apontar para a perfeição do Vazio.
Permitida destarte a concatenação de que, em Bibliocausto, a “casa”, tal
como o Boi, o “chicote”, o lo” e os livros – os quais refletem todos a
idéia do despertar
–,
são consumidos pelo riso rubro das chamas, de modo a que até a
idéia
desapareça e fique,
em seu lugar, somente o puro
despertar em si
. Sob essa intelecção, quadra transcrever, do len-
dário alquimista Morien, um extrato cujo teor alegórico aparenta ser bastante compavel com
o da peça rosiana sob análise:
Esta disposição ou operação faz-se como disse o sábio, ou seja: que o Azot e
o fogo lavem e purifiquem o latão tirando-lhe toda a obscuridade. Diz o sábio que se
se souber regular e proporcionar bem o fogo, com a ajuda de Deus, o Azot e o fogo
serão suficientes nesta operação. Daqui vem que Elbo, chamado o assassino, tenha
dito: Branqueai o latão e rasgai os vossos livros, ante o temor de que se quebrem os
vossos corações.
727
Finalmente, convém salientar que em Bibliocausto, cujo tempo é vazado
quase todo no futuro do indicativo, o que se tem por enquanto é tão-só o
pressentimento
ou
vislumbre
, um
chiaroscuro
, lusco-fusco da madrugada: a definitiva e tão ansiada
iluminação
do poeta que reza o rosário sobrevirá nos cinco poemas que se seguem.
A eles.
726
MARSICANO, 214, 14.
727
Diálogos entre o rei Calid e o filósofo Morien sobre o Magistério de Hermes: recolhido por Ghalid, escravo
deste rei
(in: ZALBIDEA, 289, 64). Quanto ao Azot (também chamado de
Telesma
ou
Thelema
), compete expli-
car ser esse um termo tradicional que contém a primeira e a última letras dos alfabetos grego, latino, árabe e he-
breu, sendo empregado à larga pelos adeptos da Arte arcana para representar a obtenção da Pedra Filosofal ou do
Elixir da Longa Vida mediante o cultivo do ideal de enlace mágico entre o como e o fim, o baixo e o alto, o
humano e o divino.
402
4. RENASCIMENTO
Abria-se-lhes na frente um magnificente recinto onde eram
recebidos com coros que entoavam cânticos sagrados e dança-
vam. O iniciado era nesse momento coroado de grinaldas e, la-
deado por homens puros e santos, assistia ao festival do renas-
cimento.
KURT SELIGMANN,
sobre os Mistérios de Elêusis
Ao anoitecer, pode vir o choro,
mas a alegria vem pela manhã.
SALMOS
30.5,
in fine
Toda distância entre nós tornada em nada.
SIÉRGUEI IESSIÊNIN,
in extremis
As cinco contas finais a compor o rosário de
Magma
são os carmes Amanhe-
cer, Primavera na serra”, Chuva, Integração” e “Consciência cósmica”. A começar dos
títulos essas peças parecem querer representar a instalação de uma outra atmosfera, cristali-
namente diferente daquela ambientação sombrosa que, desde “A terrível parábola, vinha
predominando nos textos do volume. Infere-se que, as um largo lapso de hesitação ctonia-
na, doravante passa a imperar no espírito do adepto o sentimento de um estreme êxito celesti-
al. Aliás, em significativo contraste com as promessas para o futuro vistas em Bibliocausto,
o tempo verbal mais utilizado a partir de agora é o presente, como a evidenciar a fruição efe-
tiva de uma mudança na percepção da realidade por parte do peregrino. Compreende-se que
tal transformação corresponde ao maturescente fruto ensejado pelas preces que há longo tem-
po vêm sendo desfiadas. Logo, o que se modifica não é a superfície do mundo observado, mas
sim o âmago do observador, cujos olhos, na atualidade, já estão bem abertos(de acordo
com o verso final da composição precedente) para a verdadeira essência de todas as coisas.
Porém, tratando-se de um quadro que ainda se vai desenvolvendo progressivamente, de poe-
ma a poema, o ápice dessa alteração perceptiva virá com a “Consciência cósmica”, a ser expe-
rimentada como coroação do empreendimento mistagógico, mediante a plena sagração do po-
eta como iniciado.
Outrossim, oportuno trazer uma vez mais à lembrança o prolóquio rosa-
cruciano:
Ex Deo nascimur, in Jesu morimur,
per Spiritum Sanctum reviviscimus
.
728
728
V. nota 115 (pág. 63).
403
O terceiro segmento da sentença é o que se aplica, com toda propriedade, ao
momento atual de Magma. E nesse panorama, o que de fato importa é que tudo muda porque
quem interage com o Universo não é mais o velho eu profano, que está morto e desvanecido,
mas sim um novo Eu ressurrecto, que agora, persentindo participar da exata substância do
Outro divinal, na verdade desatrela-se em definitivo de qualquer ilusão de alteridade: o Uno é
tudo e tudo é o Uno.
Assim, conforme será visto em detalhes mais adiante, todas as cinco peças re-
feridas acusam a presença de símbolos aptos a denotar, de forma bastante categórica, o Re-
nascimento do neófito ao cabo de um dilatado período gestacional. Em linhas gerais, diga-se
que à noite varada de “Angústiasucede o Amanhecer, ao Sonho de uma tarde de inverno
sucede a Claridade quentede “Primavera na serra”, à longínqua seca curtida na companhia
da “Boiada” sucede a festa da “Chuva” e ao anterior desconhecimento do sagrado sucede ago-
ra a perficiente Integraçãostica na “Consciência cósmica.
Além do que, desdobrando-se as cinco composições restantes imediatamente
consecutivas ao inndio sacramental de “Bibliocausto, afigura-se admissível pensar na ima-
gem clássica da fênix, a qual,
segundo o que relataram Heródoto e Plutarco, é um ssaro mítico, de origem etíope,
de um esplendor sem igual, dotado de uma extraordiria longevidade e que tem o
poder, depois de se consumir em uma fogueira, de renascer de suas cinzas. Quando se
aproxima a hora de sua morte, ela constrói um ninho de vernteas perfumadas onde,
no seu próprio calor, se queima. Os aspectos do simbolismo aparecem, então, com
clareza: ressurreição e imortalidade, reaparecimento cíclico. É por isso que toda a
Idade Média fez da fênix o símbolo da Ressurreição de Cristo e, às vezes, da Natureza
divina...
729
Embora a fênix não compareça no livro de Guimarães Rosa, os contornos de
seu simbolismo servem, por assemelhação, perfeitamente para ilustrar o passo em foco do iti-
nerário iniciático: tal como a ave lendária, o poeta orante, depois de se consumir em uma fo-
gueira” (Bibliocausto), tem agora a oportunidade “de renascer de suas cinzas. Não se des-
cuide de perceber que tanto a fênix como o noviço ateiam o fogo no seu próprio calor, isto
é, na energia transformativa que caracteriza o magma íntimo, ao qual competiu comburir
por inteiro as acendalhas dos despojos materiais. E tudo isso, evidentemente, sempre na de-
manda da “Ressurreição, cujo único fito é o despertar da Natureza divina” que silenciosa-
mente preenche cada ser.
729
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 421-422. Grifei.
404
Outrossim, no mesmo jogo de idéias cabe, incidentemente, evocar a lenda se-
gundo a qual o poeta e filósofo Empédocles teria lançado seu corpo ao mar de fogo do vulo
Etna para que a alma se lhe fundisse aos deuses.
Sem outras demoras, podemos então prosseguir, com a abordagem mais parti-
cularizada de “Amanhecer. A própria designação do carme já é extremamente relevante, vez
que a alvorada,
Na Bíblia, (...) indica o tempo dos favores divinos e da justiça humana (
Sal-
mos
,
101
, 8).
Ela simboliza o tempo em que a luz ainda está pura, os inícios, onde nada
ainda está corrompido, pervertido ou comprometido. A mané ao mesmo tempo
símbolo de pureza e de promessa: é a hora da vida paradisíaca. É ainda a hora da
confiança em si, nos outros e na existência.
730
De uma maneira clássica e a contar de épocas bastante remotas, o signo se
apresenta indissociavelmente ligado à idéia de regozijo pelo Renascimento espiritual:
é o símbolo alegre do despertar na luz reencontrada.
A aurora tiritante, vestida de
rosa e verde
, diz Baudelaire (
Crepúscule du matin
). As a longa noite, sua irmã,
portadora de angústia e de receio, a aurora,
guia esplendorosa das liberalidades, surgiu;
radiosa, abriu-nos as portas.
Impulso primeiro dos seres vivos, revelou-nos nossas riquezas,
a aurora desperta todas as coisas...
Repelindo os ódios, guardiã da Ordem
e nascida na Ordem, rica de benesses, estimuladora de benefícios,
feliz no presságio e portadora do convite divino,
levanta-te, Aurora: tu és a mais bela de todas as belezas.
(
Rig-Veda
, I, 113...)
731
Vale ressaltar que a base do simbolismo assenta no fato de que a manhã
surge
As a longa noite
, sua irmã, portadora de
angústia
e de
receio
. Portanto, o sentido de “
luz
reencontrada
” é capital: no alvorecer assiste-se sempre à venturosa
re-união
da criatura com
os iníciosluminosos da Vida, depois de uma aflitiva passagem pela Morte noturna, e daí a
costumeira associação dos primeiros raios do arrebol matutino com a felicidade proporciona-
da pelo término do exílio umbroso e pelo retorno ao Paraíso. Ora, essa celebração, conforme
já se sublinhou, é exatamente o que está sendo contemplado pelo
continuum
de
Magma
: em
seguida ao Assombramento, à “Angústia” e ao Pavor, o Amanhecerse desata repleto
730
Cf.
id
.,
op
.
cit
., pág. 587-588. O versículo de
Salmos
mencionado pelos comentaristas (101.8) é o seguinte:
Manhã as manhã, destruirei/ todos os ímpios da terra, / para limpar a cidade do SENHOR/ dos que praticam a
iniqüidade.
731
Id
.,
op. cit
., pág. 101.
405
de pureza e de promessa” e “revela-nos nossas riquezas, i. e., as riquezas espirituais que
estão no imo de todos os seres – porque é agora, desperto e com os olhos bem abertos, que
o stico a desfiar o rosário finalmente consegue vê-las em si mesmo, graças também à clari-
dade da celagem matinal. Explicite-se que, sob a óptica metafísica dos Mistérios, a luz da ma-
nhã jamais procede de qualquer fonte que seja externa à alma, sendo sim, na realidade, mais
uma conquista interna do olhar que aprende a se abrir: pois o alvor não se estabelece se não
houver sincronia e mesmo comunhão – entre o sol do lado de fora e a pupila do lado de
dentro das pálpebras.
Outrossim, o alcance dessa simlica é tão vasto que se irradia nitidamente
pelos outros dois textos que vêm no encalço de “Amanhecer. Em Primavera na serra”, o
primeiro verso é:
Claridade quente da manhã vaidosa.
732
E em Chuva”, a certa altura lê-se que
Eu hoje amanheci alegre,
querendo cantar...
Com efeito, mais do que o próprio dia, é mesmo o poeta quem amanhece,
como se a tirar magicamente o Amanhecerde dentro de si, procedendo, deste modo, à “ex-
teriorização do seu magma íntimo, do seu mundo interior
733
, que passa então a iluminar a su-
perfície do mundo exterior, tal qual um novo fiat lux ecoante do original e proferido pelo ser
humano para ressoar desde o seu espírito.
Indo agora além do título, convém estampar in totum o Amanhecerrosiano:
1
Floresce, na orilha da campina,
enorme ipê
de copa metálica e esterlina.
Das mil corolas
5
saem vespas, abelhas e besouros,
polvilhados de ouro,
a enxamear no leste, onde vão pousando
nas piritas que piscam nas ladeiras,
e no riso das acácias amarelas.
10
Dos charcos frios
sobem a caçá-los redes longas,
lentas e rasgadas de neblina.
732
V. adiante a nota 751 (pág. 412)
733
ROSA, 17, e tb. in: id., 2, 8-9 (trecho).
406
Nuvens deslizam, despetaladas,
e altas, altas,
15
garças brancas planam.
Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
20
na jarra clara da manhã...
734
Como salta aos olhos, o tom de gáudio e a luminosidade permeiam todo o car-
me, aliás preenchido por uma exuberância de signos de caráter ascensional: são o portentoso
ipê”, o vôo das vespas, abelhas e besouros” e toda a eloquência com que, “altas, altas, as
garças brancas planamjunto ao céu e “Dançam” as fadas alvas” e ainda “cantam” as “al-
mas aladas.
É primaz o lance da coloração jalne na paisagem apreciada com as duas pri-
meiras estrofes: o “enorme ipê” (cujas duas variedades dão floração violácea ou
amarela
)
certamente que fulgura em tons áureos com a sua “copa metálica e
esterlina
(o que diz res-
peito à liga de
ouro
ou de prata com que são feitas as moedas inglesas); ato connuo, Das
mil corolasde suas flores levanta-se, como pepitas aladas, a miríade de insetos polvilhados
de
ouro
,/ a enxamear no leste”, onde o sol dourado está a nascer; e em seguida os bichinhos
vão pousando/ nas
piritas
(espécie de minério sulfurino de cor flava e brilhante, lembrando
o ouro), que piscam nas ladeiras,/ e no riso das acácias
amarelas
.Esse jogo de imagens de
conotação alquímica flagra a passagem do fixo floral (as “corolasdo ipê) ao volátil entômico
(vespas, abelhas e besouros), como se os insetos polvilhados de ourofossem flores que se
animassem, criassem asas a partir das pétalas e se alçassem rumo ao horizonte que enlourece;
logo as, há a restituição do volátil ao mesmo fixo floral, quando os animais, de retorno,
vão pousando/ (...) nas ladeiras,/ e no riso das
acácias
. De sorte que tudo expressa, em ágil
miniatura, o ciclo vital das almas, as quais nascem da sublime fixidez da
Alma Mater
, percor-
rem a existência num movimento que procura instintivamente “no lesteo esplendor abenço-
ante do disco solar – o qual tinge a ouro tudo quanto toca e afinal
pousam
novamente na-
quela mesma imobilidade donde saíram. Nesse ínterim, a continuidade da coloração dourada
manifesta que uma só essência excelsa se faz onipresente ao longo do inteiro procedimento,
impregnando magicamente tudo o que faz parte do quadro do Amanhecer.
734
O verso onze foi na verdade datilografado sobem a caçá-los
longas redes
,” e, no entanto, a intenção de in-
verter a ordem do substantivo e do adjetivo foi demonstrada por Guimarães Rosa através de uma linha sinuosa
feita a mão, enlaçando as referidas palavras e levando assim à mesma solução que prevalece em
id
.,
op
.
cit
., pág.
140.
407
Ademais, o ouro que Guimarães Rosa menciona é sabidamente o signo de “ca-
ráter ígneo, solar e real, até mesmo divino– nisso tudo se aparentando ao Magma –, que re-
flete a “imortalidade” e a perfeição absoluta
735
alcançadas pelo ser mediante a iluminação
transcendental. Tido como o segredo mais íntimo da terra
736
, a invenção simlica do ouro
exprime de forma excelente o acordar da divindade imaculada ainda no seio da mais degene-
rada humanidade. A qualidade de nobreza que envolve essa simbologia é comum aos ances-
trais sistemas de sapiência da China, do Egito, da Índia (onde se diz ser o ouro “a luz mine-
ral), da Grécia, da Europa druídica, de várias regiões da África negra, das mitologias dos
Impérios Asteca e Inca etc... Contudo, é com certeza na ciência espagírica, seja na sua ver-
tente oriental ou ocidental, que se encontra a faceta mais conhecida e bem acabada do símbo-
lo; e
Não é preciso dizer que a obtenção do metal precioso não é o objetivo buscado pelos
verdadeiros alquimistas, porque, se a argila pode ser, segundo Nagarjuna, transmu-
tada em ouro, Shri Ramakrshina sabe perfeitamente que o ouro e a argila são uma coi-
sa só. (...) A transmutação é uma redenção: a do chumbo em ouro, diria Silesius, é a
transformação do homem, por meio de Deus, em Deus. Esse é o alvo místico da al-
quimia espiritual.
737
Observo que se, do ponto de vista de quem busca a pura gnose transmutativa,
o ouro e a argila são uma coisa só, igualmente o são o ouro genuíno e as piritas– vulgo
ouro-de-tolo –, o que justifica de modo irrepreensível a presente utilização desse termo por
Guimarães Rosa.
Por outro lado, válido assinalar que na antiga alquimia chinesa, ao contrário do
que sói no Ocidente, A cor simlica (...) do ouro é o branco, e não o amarelo
738
. Talvez
então por esse motivo que, na terceira e quarta estâncias de “Amanhecer, os matizes gualdos
do nascente são complementados por um panorama onde, através da “neblina, das Nuvens,
das asas das garças, das fadas alvas” e da “prata lavada”, predomina a alvura. E essa, por
seu turno, é a cor notória da santidade, da virgindade, da pureza e da sabedoria, detendo ou-
trossim importante significado nos trâmites mistagógicos:
O branco – candidus é a cor do candidato, i. e., daquele que vai mudar de condição
(...). É uma cor de passagem, no sentido a que nos referimos ao falar dos ritos de pas-
sagem: e é justamente a cor privilegiada desses ritos, através dos quais se operam as
mutações do ser, segundo o esquema clássico de toda iniciação: morte e renascimen-
to. O branco do Oeste é o branco fosco da morte, que absorve o ser e o introduz ao
735
Citões, entre aspas, de CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 669. Grifos dos autores.
736
Id., op. cit., pág. seg. Grifo dos autores.
737
Id., op. cit., pág. 669. Grifos dos autores, transmutaçãoem negrito.
738
Id., ibid.
408
mundo lunar, frio, fêmea. Conduz à ausência, ao vazio noturno, ao desaparecimento
da consciência e das cores diurnas.
O branco do Este é o do retorno: é o branco da alvorada, quando a abóbada
celeste reaparece, ainda vazia de cores, embora rica de potencial de manifestação,
cujos microcosmo e macrocosmo nele se
recarregaram
, à maneira de uma pilha elétri-
ca, durante sua permanência (passagem) no ventre noturno, fonte de toda energia.
(...) Um pintor como W. Kandinsky, para quem o problema das cores ultrapassava em
muito o problema da estética, exprimiu-se sobre esse tema melhor do que ninguém:
O
branco, que muitas vezes se considera como uma
não-cor
... é como o símbolo de um
mundo onde todas as cores, em sua qualidade de propriedades de substâncias materi-
ais, se tenham desvanecido... o branco produz sobre nossa alma
o mesmo efeito do si-
lêncio
absoluto... esse silêncio não está morto, pois transborda de possibilidades vi-
vas... É um nada, pleno de alegria juvenil, ou melhor, um nada
anterior a todo nasci-
mento, anterior a todo como
. A terra, branca e fria, talvez tenha ressoado assim, nos
tempos da era glaciária.
Seria impossível descrever melhor, sem dizer-lhe o nome,
a
alvorada.
739
Tudo o que vem veiculado por esse trecho, conforme se vê, está na mais abso-
luta harmonia com o instante de
Magma
, pelo que outros comentários parecem ser pratica-
mente redundantes. Anote-se apenas que uma correlação similar entre as cores jalde e branca
se apresentou também no passado Assombramento: nesse poema, à “lua
amarela
(última
estrofe) de uma “Meia-noite
amarela
(primeira), vultos
brancos
, em procissão, traziam
ossos de defuntos nas frias mãos
brancas
(terceira) e tivemos dessa maneira a representa-
ção do lado Oeste” da Iniciação, que foi o da Morte lunar. Porém, ultrapassado por rotação
tal estágio ctoniano, agora o Amanhecerde nuances douradas e alvas introduz a renovação
da Vida, a reboque do sol que eclode do lado Este”. E sob essa nova luz,
A valorização positiva do branco, que se dá a seguir, também está ligada ao
femeno iniciático. Não é o atributo do postulante ou do candidato que caminha
para a morte, mas daquele que se reergue e que renasce, ao sair vitorioso da prova.
(...) Nos primeiros tempos do cristianismo, o batismo – que é um rito iniciático –
chamava-se a Iluminação. E era após ter pronunciado seus votos que o novo cristão,
nascido para a verdadeira vida, envergava, nas palavras de Dionísio o Areopagita,
vestes de uma
resplandecente
alvura,
pois, acrescenta,
ao escapar aos ataques das pai-
es, através de uma firme e divina constância, e ao aspirar ardentemente à unidade, o
que nele havia de desregrado entra na ordem, o que havia de defeituoso se embeleza, e
ele resplandece na plena luz de uma vida pura e santa
(...).
O branco, cor iniciadora, passa a ser, em sua acepção diurna, a cor da reve-
lação, da graça, da transfiguração que deslumbra e desperta o entendimento, ao
mesmo tempo em que o ultrapassa: é a cor da teofania (manifestação de Deus), cujo
vestígio permanecerá ao redor da cabeça de todos aqueles que tenham conhecido
Deus, sob a forma de uma auréola de luz que é exatamente a soma das cores.
740
739
Id.
,
op
.
cit
., págs. 141-142. Grifos dos autores, que alternam o itálico com numerosas ênfases em negrito:
passagem, não-cor, o mesmo efeito do silêncio, anterior a todo nascimento, anterior a todo como” e a
alvorada”.
740
Id
.,
op
.
cit
., págs. 143-144. Grifos dos autores, resplandecente” em negrito.
409
Essa alva auréola de luz, que aparece à farta na iconografia cristã como sinal
da experiência teofânica, deve por sua vez ser corretamente interpretada como o reflexo da
branca “luz interior, luz do sirr, o segredo, o mistério fundamental no pensamento sufista
741
.
Em outras palavras, é sempre presente a noção teosófica de que o conhecimento à vera que o
ser humano pode ter de Deus jamais se desenrola, em seu mais alto grau, entre o eu, de den-
tro, e o Outro, por fora, como instâncias diferenciadas, mas, ao invés, há de ser afinal uma
consubstanciação em que o eu se re-conha intrinsecamente idêntico ao Outro. Trata-se as-
sim de uma “transfiguração
742
e, ao mesmo tempo, de uma profundíssima reminisncia,
conforme a doutrina platônica
743
.
Por fim, num fechamento de círculo, mister frisar novamente que o branco
Relaciona-se (...) com o ouro: e isso explica a associação dessas duas cores na bandeira do
Vaticano, através da qual se afirma na terra o reino do Deus cristão.
744
Ora, a intenção stica de se afirmar na terra– ou seja, no âmbito mais ínti-
mo da criatura o reinode Deus é exatamente o fio condutor ao longo do qual têm corrido
todas as contas do rosário de Magma, desde a peça vestibular. Então, a sabedoria que o poeta
doravante exerce é a de não mais desmentir a crença no Reino do Céudentro de s, o
que Guimarães Rosa considerava como O ensino central de Cristo
745
. Perceba-se que em
Amanhecer” a disposição do neófito em receber em si esse “Reinoceleste aparece inequí-
voca mormente na derradeira estrofe, onde
Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
na jarra clara da manhã...
Primeiramente, destaque-se que a claridade e a amplidão da manhã” ficam
expressas de maneira caterica no nível fônico, eis que a reiteração da vogal |a| nesses versos
não deixa espo para a ocorrência de nenhuma outra vogal mais escura a empanar a atmosfe-
ra esfuziante. Item, a dança das fadas alvas” e o canto das “almas aladas, manifestações
festivas que se entranham no ritmo saltitante das sílabas poéticas, denotam cristalinamente o
clima de contentamento que domina o Amanhecer. Outrossim, quanto à menção às almas
741
Id., op. cit., pág. 144.
742
V. Mt 17.1-8, Mc 9.2-8 e Lc 9.28-36.
743
V. o conto Reminisção, de Tutaméia (ROSA, 12).
744
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 144.
745
Cf. carta por ele endereçada a Vicente Ferreira da Silva, apud FERREIRA, 46, 126. V. atrás a nota 101 (pág.
59).
410
aladas, representa explicitar, por si só, a conquista do ideal de ascese à qual há tanto tempo o
noviço tem se dedicado com afinco. E, finalmente, os vasilhames da “taça ampla”, da “prata
lavada” e da “jarra clara” parecem querer significar todo o desejo do adepto, já purificado ao
fogo de Bibliocausto, em se abrir agora, como continente, para o derramamento do divino
conteúdo das abençoantes águas primevas, a se precipitarem em Magma na vindoura compo-
sição Chuva” (que será estampada em seguida a Primavera na serra”).
Entretanto, antes que tal se promova, cumpre ainda retomar o fio da meada
pertinente às Dez gravuras do apascentar do boido zen-budismo. Com esse objetivo, preli-
minarmente se lembre de que algumas páginas atrás foi citado Alberto Marsicano, o qual se
reportou ao inndio da cabana de Basho
746
, acontecimento real na biografia do poeta japo-
nês e que foi por este fixado no seguinte haicai:
1
minha casa incendiou
a cerejeira do jardim floresce
como nada houvesse ocorrido
747
A “cerejeira do jardim, bem típica da paisagem nipônica, simboliza, aí, tanto o
desprendimento dos bens materiais (cujo signo é a “casa” incendiada) quanto a pureza univer-
sal que permanece ilesa e indiferente as o sinistro. O sentido desse tranqüilo florescer é o
de que a agitação efêmera dos acidentes da existência (a roda do samsara) resta irrelevante
em face da inalterável essência que preside a todas as coisas. Dessa maneira se verifica, como
Marsicano já bem anotou, uma sintonia com o teor do nono quadro da série budista, intitulado
Voltando à Fonte, regressando à Origem, no qual aparece “Um ramo florido que designa o
encontro do dharma
748
. Oportuno então proceder ao detalhamento do caso, transcrevendo a
escritura que vem junto a tal ilustração:
Desde o puro princípio não houve tanto quanto um grão de poeira para macular a
intrínseca Pureza do homem. Ele observa o crescer e o decrescer da vida no mundo,
enquanto permanece imparcial num estado de imperturbável serenidade. Esse crescer
e decrescer não é fantasmas ou ilusão, porém, uma manifestação da Fonte. Por que
então há necessidade de lutar por alguma coisa ou preocupar-se com os artifícios da
auto-disciplina? As águas são azuis, as montanhas, verdes. Só consigo mesmo, ele ob-
serva a mudança incessante das coisas.
Ele voltou à Origem, retornou à Fonte,
mas foi em vão que tomou suas providências.
Muito melhor é ficar em casa,
como se estivesse agora cego e surdo e sem alvoroço.
746
V. nota 726 (pág. 400, tópico anterior deste Capítulo). MARSICANO, 214, 14.
747
In: id., ibid.
748
Id., ibid. Sobre o conceito de Dharma, v. a pág. 399 (tópico 3 do presente Capítulo).
411
Sentado em sua cabana, não almeja as coisas que estão fora.
Os riachos serpenteiam por si mesmos,
as flores vermelhas desabrocham naturalmente vermelhas.
749
O fulcro dessa lâmina consiste, em suma, no pleno reconhecimento, por parte
do Buda, de que a Perfeição divina é a única e verdadeira substância inerente a todos os as-
pectos do Universo. O homem iluminado se descobre, por conseguinte, intimamente ligado a
essa natureza primordial que descansa por detrás da aparência dos objetos: Ele voltou à Ori-
gem, retornou à Fonte” e agora, a partir das cabeceiras, flui animicamente, confundindo-se
com Deus, em direção a tudo o mais. Destarte, a inteira contemplação búdica acaba sendo
sintetizada no
desabrochar
das flores vermelhas, as quais foram vistas por Bascomo a
floração
da “cerejeira” depois do
inndio
da “casa,
i. e.
, a suprema libertação espiritual de-
corrente da prévia dissolução da clausura material. Do mesmo modo, em
Magma
, as lavrar
o fogo de Bibliocausto” e “como nada houvesse ocorrido,
Floresce
, na orilha da campina,
enorme ipê
de copa metálica e esterlina.
É, precisamente, o Amanhecernas plagas brasileiras. E quer na gravura zen e
em Bashô, quer no poeta mineiro, tudo evoca que o despertar da transcendência se dá como
uma experiência mansa, silenciosa e até absurdamente simples, sem deixar de ser, ao mesmo
tempo, complexíssima, como o é o milagre de qualquer flor ou
Rosa
brotando.
Acrescente-se que não se faz raro, nos textos plasmados pelo simbolismo eso-
térico, o enlaçamento entre os signos do
fogo
e da
flor
para indicar a ocorrência da teopsia, de
uma revelação sagrada ou da iluminação. Por exemplo, em
Êxodo
3.2, quando Moisés pasto-
reava um fato,
Apareceu-lhe o Anjo do SENHOR numa chama de fogo, no meio de uma sar-
ça; Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo e a sarça não se consumia.
Já na “Noite escura” de São João da Cruz, a alma que se alegra pela sua “união
com Deus, por Quem se sente “em amores
inflamada
, canta:
Em meu peito
florido
que inteiro só para ele se guardava,
ali ficou dormido
e eu o afagava
e com leque de cedros o abanava.
749
Apud
KAPLEAU, 197, 322. V. a ressalva da nota 721 (pág. 398).
412
Da ameia a brisa amena
enquanto eu seus cabelos espargia,
com sua mão serena
o meu colo feria,
e todos meus sentidos suspendia.
Quedei-me e olvidei-me,
o rosto reclinei sobe o amado;
cessou tudo, e deixei-me
deixando meu cuidado
por entre as ucenas olvidado
.
750
Voltando agora a
Magma
, pode-se cogitar que o alcance da nona figura da série
pictórica zen-budista se infunde também aos três carmes seguintes a “AmanhecerPrima-
vera na serra”, Chuva” e Integração–, pois em todos o femeno da germinação vegetal
demonstra ser empregado como símile do despertar metafísico.
Essa, pois, a ponte para nos adiantarmos à “Primavera na serra.
Incontinenti vale dizer que a
primavera
se constitui no símbolo por excelência
do Renascimento, visada em que manifesta estreita analogia com todas as mais importantes
facetas sígnicas da
manhã
. Figurativamente, esses dois vocábulos e seus quejandos funcionam
com freqüência até mesmo como sinônimos, para denotar o frescor virente dos primeiros
tempos de uma dada realidade:
a primavera da vida
,
a manhã
ou
a aurora da existência
. É
que, assim como a alvorada sucede à noite, a estação primaveril sucede ao inverno, estando
portanto em ambas as simlicas sempre presente a idéia de
renovação
as um período de
latência.
Por outro lado, a palavra
primavera
é passível de decomposição, podendo ser
lida como a junção dos termos latinos
prima
, com o sentido de “primordial(aliás, etimologi-
camente,
primo vere
, “começo do verão), e
vera
, verídica, de sorte que ressoa a noção de
prima et vera essentia
, isto é, a divina essência que é matriz de toda a realidade e escopo da
Poesia metafísica de Guimarães Rosa, em que
Magma
se inclui.
Além do que, note-se que o ambiente em que a Primavera...rosiana viceja é
precisamente a “...
serra
, o mesmo local descortinado como sendo o do Nascimento do ser
em Águas da
serra
. Por conseguinte, desenha-se perfeitamente nítida e coerente, no volume
de 1936, a imagem sígnica de concretização do ideal anagógico de
retorno ao princípio
que
vinha sendo elaborado pelo neófito com o correr das contas do rosário – este é um ponto fun-
damental para a correta visualização do
continuum
do livro e que, por isso, será devidamente
750
In: CARVALHO, 154, 147. Grifei. V. as págs. 362-363 (tópico anterior deste Capítulo) para as primeiras es-
trofes do texto.
413
reforçado na próxima peça, Chuva. Nesse concerto, a semelhança fonética entre “Primave-
ra” e “serra, operando quase que numa rima interna ou eco, quiçá também denote o seu qui-
nhão de significado.
Com tal explicação, avancemos até os versos iniciais de “Primavera na serra”:
Claridade quente da manhã vaidosa.
O sol deve ter posto lente nova,
e areou todas as manchas,
para esperdiçar luz.
751
É desde logo evidente a afinidade temática com o Amanhecer, de maneira
que se torna plausível a visualização de uma linha de continuidade entre os dois carmes, como
se no precedente as primeiras luzes do arrebol estivessem se levantando, ainda em meio a uns
derradeiros fiapos de “neblina” e por sobre os charcos frios, para que agora, um pouco mais
tarde, a “Claridade quente da manhã” se firme em definitivo.
Atente-se agora ao tropo que estabelece a colocação de uma “lente nova” no
sol: assim dá-se mostras de que se instaura, na percepção de quem se beneficia dessa inten-
sa “Claridadesolar, uma visão totalmente inaudita das coisas do real
752
. E tal sensação se ca-
racteriza por ser limpa de “todas as manchas(ou seja, puríssima) e sobeja de luz, logo em
tudo condizente com as capacidades usufruídas por quem está experimentando a iluminação
stica da Ressurreição.
Claro que, em decorrência dessa “lente nova” que corrige a antiga miopia pro-
fana, o adepto que está renascendo consegue no presente enxergar de modo límpido e superno
o que antes se lhe apresentava toldado. Com esse pensamento, passemos à segunda estrofe da
composição sob exame:
Doze esquadrilhas de periquitos verdes
receberam, a um tempo, a ordem de partida,
cedendo, a uma formação de araras cor de fogo,
o piquizeiro morto.
E a árvore, esgalhada e seca, se faz verde,
vermelha e castanha, entre os mochoqueiros,
braúnas, jatobás e imbaúbas do morro,
na paisagem que um pintor daltônico
751
Como exceção, colo esse fragmento de ROSA, 2, 141. Em id., 1, o primeiro verso é: Claridade quente da
manhã maldosa.Salvo melhor juízo, o enigmático adjetivo final me parece de todo desencaixado do espírito do
poema, de tal jeito que a melhor justificativa para o seu uso representa ter sido uma mera distração do datilógrafo
na provável transposição de um texto anteriormente manuscrito. No mais, são coincidentes as duas versões desse
trecho do poema.
752
V. adrede a conclusão da novela Campo geral, em id., 5 ou 6, bem como a do conto Reminisção, em id.,
12.
414
pincelou no dorso de um camaleão.
753
No que tange ao pintor daltônico, de início pode parecer que nos deparamos
com uma incongruência em relação à idéia de visão superior carreada pela “lente nova”, eis
que o daltonismo ou acromatopsia consiste justamente num
distúrbio visual
que impede o
portador de discernir certas cores, em especial o vermelho, o qual é confundido com o verde.
Todavia, a precisa intenção do autor parece ter sido a de sublinhar que o divino Criador da
paisagemnão faz, malgrado a variação de tintas da paleta, quaisquer distinções de aparência
entre os componentes da realidade, porque os conhece na mais profunda e verdadeira essência
que é comum a todos os pigmentos: esta é o Uno, a Mão que pinta, o exato Significado onde
todos os significantes se encontram. Por isso então é que o pintor
pincela
o horizonte “no
dorso de um camalo, réptil que detém a faculdade de cambiar as cores da própria pele,
mimetizando-se com o meio, sem que com isso deixe de ser quem é
por dentro
, da mesma
forma que o ser humano passa por várias mutões em sua existência terrena (conforme as
contas do rosário), o que não violenta o seu cerne celeste (o fiocintilante que lhe “corre por
dentro). Ora, desde que consubstanciada com o Criador, e de “lente nova, a criatura por
igual se reconhece capaz de discernir o âmago imutável que é compartilhado por todas as coi-
sas, sem mais se ater às eventuais alterações de superfície. Portanto, o
daltonismo
não se cho-
ca com a “lente novamas, ao invés, desvela-se como uma conseência natural da mesma.
O mais importante, porém, é que essa estância de “Primavera na serra” parece
surgir como uma espécie de recuperação, enriquecida, da imagem dantes trazida à tona pelo
poema “Tentativa”, em que a
Manhã básica, alcalina,
despertara uma
Rápida
(...) revoada triangular de periquitos
que, por sua vez, fora comparada ao
(...) fio da ngua, fugidia e verde,
de um sal de boro...
753
Originalmente, Guimarães Rosa cindiu o terceiro verso do fragmento em dois:
cedendo,/ a uma formação de
araras cor de fogo,
porém, o intento de junção dos mesmos parece ficar indicado por meio de uma linha ma-
nuscrita a envolvê-los. Quanto a mudanças registradas em
id
., 2, 141, ocorrem nos três primeiros versos do tre-
cho:
Dez
esquadrilhas de periquitos,
receberam
ordem de partida
(eliminando-se a locução entre vírgulas:
a um tempo
)
e
deixando para as
araras cor de fogo.
415
Repetem-se, pois, nas duas peças em questão, os elementos Manhã”, peri-
quitosvoando e a coloração verde. Sem embargo, o poeta qualificara a revoada” anterior
como sendo Rápida” e “fugidia” – o que se compreende pelo motivo de que se cuidava, à
época, de ilustrar tão-somente uma singela “Tentativade elevação espiritual por parte do no-
viço, de acordo com o que foi oportunamente analisado
754
. Já na composição atual, que flagra
o instante em que a ascese é efetivamente obtida, aquela apressada “revoada triangularse
transforma num conjunto bem mais aparatoso de “Doze esquadrilhas de periquitos, as quais,
ao levantar vôo sob “a ordem de partida”, cedem lugar a uma ainda mais consistente “forma-
ção de araras cor de fogo. Destarte, as pequeninas aves de plumagem esverdeada cor tradi-
cionalmente identificada como sendo a da esperançasão logo substituídas pelas “araras,
naturalmente bem maiores e mais vistosas i. e., com melhores apties para impressionar o
sentido da visão que ora se exercita com lente nova”. Outrossim, além do verde”, as araras
possuem tonalidade “castanha” e, máxime, vermelhaesta a cor da realização, associada à
Rubedo ou Obra em vermelho dos alquimistas, a qual representa a última etapa do Magistério
e o sublime alcance do Conhecimento arcano. E acrescente-se, por fim, que o tom rubro, des-
crito pelo próprio Guimarães Rosa como sendo “cor de fogo, pode com tranqüilidade ser as-
similado ao fulgor das labaredas de “Bibliocausto” e, conseentemente, a todo o magma
íntimo” em ebulição franca.
Doutro lado, fica patente ser a presença das araras o que propicia a renascença
simlica do piquizeiro(forma mais coloquial de pequizeiro ou pequi), que estava “morto.
É por obra da plenitude de vida emprestada pelo fogo” alado das aves que a “árvore, esga-
lhada e seca”, então se faz verde, vermelha e castanha”. E a exuberância desse renascimento
é tanta que chega mesmo a ficar subentendido o realce do piquizeiroredivivo, como que
solenemente coroado por um canitar multicor, por “entre os mochoqueiros,/ braúnas, jatobás e
imbaúbas do morro. Eis aí, portanto, nesse “piquizeiroincendido por asas de araras, a divi-
na Sarça Ardente rosiana.
Ora, a essa altura não há dificuldade alguma em se chegar à conclusão de que a
“árvore, esgalhada e seca”, que subitamente enflora num ígneo penacho, é nada menos do que
uma representação do ser humano que se sujeitou à Iniciação, tendo sido mortopara afinal
ressurgir na “Primavera...do Magma.
Aliás, a própria profusão arrea ainda outra vez enseja o sentido de elevação
do espírito humano, o qual arboresce desde o chão até o u. Pertinente lembrar ainda que em
754
V. atrás as págs. 331-336 (tópico 2 do Capítulo em tela).
416
Magma já houve em mais de uma oportunidade a conjugação de um elemento vegetal com
outro animal para manifestar a noção de conjunctio entre o fixo e o volátil: há pouco foram os
insetos às voltas com o ipê e as acácias amarelas(Amanhecer) e, mais cedo, em Azul
delineou-se o delicado cromo onde “Uma vanessa tropicalpousou
(...) na campânula
de uma ipoméia...
Em regresso à Primavera na serra”, é também a propósito da imagem do pi-
quizeiroque começa a se insinuar o nexo entre Magma e a décima figura zen da série do
Pastoreio espiritual do Boi, cujo texto explicativo termina com a seguinte quadra, que des-
creve o ser desperto adentrando a cidade:
Com o peito descoberto e descalço, ele entra na praça do mercado.
Enlameado e empoeirado, como sorri mostrando os dentes!
Sem precisar recorrer aos místicos poderes dos deuses,
faz com um toque árvores secas florescerem de repente.
755
O verso final, à evidência, revela uma inequívoca correlação com o tema da
segunda estância de “Primavera na serra. Entretanto, o verdadeiro sentido desse liame só po-
derá ser totalmente compreendido com a consideração de outros fatores, os quais restarão
melhormente explicados tão-só quando da análise de “Integraçãoe de “Consciência cósmi-
ca”. Por isso, fica aqui lançado apenas o apontamento, a ser adequadamente desenvolvido na
passagem de discussão acerca das duas últimas composições do livro em estudo
756
.
Por ora, tem melhor cabimento transcrever a estrofe concludente de “Primavera
na serra”:
E o lombo da serra é tão bonito e claro,
que uma coruja cinza,
tonta e míope na luz,
com grandes óculos redondos,
fica trepada num cupim, o dia inteiro,
imóvel e encolhida, admirando as cores,
cansada, talvez, de tanta erudição...
757
755
KAPLEAU, 197, 323 (grifei).V. no presente trabalho a nota 721 (pág. 398).
756
V. adiante as págs. 434-435.
757
No segundo verso do excerto, entre que” e uma, interpunha-se uma palavra de três letras que foi rasurada a
mão, tornando-se ilegível; provavelmente se tratava da mesma preposição que foi depois reaproveitada na vari-
ante estampada em ROSA, 2, 141: que até uma coruja”, solução em que, por outro lado, restou suprimido o
adjetivo cinza”; nessa versão, outra pequena mudança é acusada no como do antepeltimo verso: fica tre-
pada no cupim.
417
Ave de hábitos nocvolos, a “coruja”, seduzida pela grande beleza do raiar da
manhã no lombo da serra, deixa-se ficar, o dia inteiro,/ (...) admirando as cores. Também
ela então, como o astro solar, põe “lente nova” e, “com grandes óculos redondos, vê a reali-
dade do Universo como nunca a havia visto antes. Pouco importa que o dorso da ave seja
“cinza”, como a recordar a escuridão da noite donde ela proveio: imersa agora no brilho do
nascer do sol, a penagris se dilui como mais uma parte do todo, i. e., da “paisagem que um
pintor daltônico/ pincelou no dorso de um camalo. Seja como for, o dado preponderante
gira em torno do abandono do ambiente noturno em prol da claridade diurna: a mudança é
drástica e a coruja ainda se sente “tonta e ope”, desacostumada que está ao esplendor da
luz. Não obstante, a ave está “cansada, talvez, de tanta erudição” e demonstra a disposição
para se quedar imóvel e encolhida”, apartando-se de qualquer agitação de movimento. Com
esses elementos, é possível associar a figura da coruja ao estado de espírito do adepto, o qual
padeceu um longo período nas trevas, para abrir depois mão, em Bibliocausto, do conheci-
mento de índole lógica (tanta erudição), abrindo assim seus olhos para o despertar contem-
plativo do Amanhecere da “Primavera na serra” em que agora se encontra.
Finalmente, num adendo, é útil mencionar que parece ser recorrente, na escritu-
ra rosiana, a associação simlica entre o alvorejar e o álacre vôo de aves, com o fito de evo-
car a ocorrência de um evento de proporções epifânicas. É o que se verifica, por exemplo, na
narrativa mistagógica sobre Augusto Matraga, em Sagarana; à vera, rememore-se que quando
essa personagem pressente, as um longo período de sofrimentos, finalmente se avizinhar a
sua “hora e vez, a cena é descrita da seguinte maneira:
Mas, afinal, (...) deu uma manhã em que NAugusto saiu para o terreiro e
desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, mari-
nhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro
lado, e um desperdício de verdes cá embaixo – a manhã mais bonita que ele já pudera
ver.
Estava capinando, na beira do rego.
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava,
tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. E mais outro. E ainda
outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes de
acertarem as vozes na disciplina de um coro.
Depois, um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras mais
juntas.
Uai! Até as maracanãs!
E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam
mais. Quase sem folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente, e outra
brotando ao norte, como pontozinho preto, e outra – grão de verdura – se sumindo no
sul.
Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!
418
E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esqua-
drilha sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um ca-
sal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interrompe-
ram, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabeci-
nhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fize-
ram recreio, aos pares, sem sustar o alarido –
rrrl-rrril! rrrl-rrril!...
758
Bastante patente a proximidade entre esse fragmento e a ambientação de “Pri-
mavera na serra”: a acentuada luminosidade da “manhã, os periquitos” em “esquadrilha”,
os alegres tuins (...) que choveram nos pés de mamão, tal qual as araras no piquizeiro...
Porém, necessário frisar que tais semelhanças de jeito algum se exaurem na simples coinci-
dência ou imisção temática: o
quid
, bem mais profundo do que a epiderme estética, descansa
na circunstância de que
as manhãs e as aves, tanto em
Sagarana
quanto em
Magma
, constitu-
em-se em sinais a evocar o valor de comunhão mágica e stica entre o ser humano e o todo
universal. Perder de vista essa faceta transcendente é como que olhar para o dia com as pálpe-
bras fechadas. Cumpre abri-las, como o fez Augusto Matraga.
Isso esclarecido, é tempo de se voltar para “Chuva”, antepeltima composição
de
Magma
, a qual, através do símbolo da precipitação num ambiente sertanejo, dá mostras de
celebrar a venturosa
renovação do contato
entre a pessoa iluminada e as primevas Águas da
serraque ilustram a manifestação divina. É assim que por sob o u chuvoso a paisagem ser-
rana, a exemplo do que aconteceu há pouco em Primavera na serra”, vem novamente trazida
à baila:
Já deve estar chovendo nas cabeceiras da
serra
,
porque o ribeirão engrossa, cor de terra.
E mais à frente:
(...) eu vou sair pelo cerrado afora,
a galopar com a chuva me correndo atrás.
Ela já vem, branquinha, cheirando a água nova,
e
a serra está clarinha, neblinando
...
759
Não é demais salientar certos dados de interesse colhidos nesses excertos: em
primeiro lugar, a circunstância de que “deve estar chovendo nas
cabeceiras
da serra”, o que
categoricamente remete àquela nascente das Águas da serra; e ainda a caracterização da
Chuva” presente como sendo branquinha” e “cheirando a
água nova
, deste modo pondo
em foco as sensões de pureza e rejuvenescimento por ela provocadas.
758
Id
., 4, 373-374.
759
Em
id
., 2, 143 é aposta vírgula entre galopar” e com: a
galopar, com
a chuva me correndo atrás...
419
É ponto pacífico que, como signo, a precipitação celeste comunga de várias das
qualidades benéficas, recentemente discutidas, que inerem também à manhã e à primavera, na
messe comum de simbolização do sentimento epifânico apto a renovar e transfigurar o estar
no mundo, sobrevindo à agrestia de uma estação adversa. Saliente-se que três nesses símbolos
subjaz constante o mesmo esteio denotativo da passagem do escuro ao claro, do árido ao fér-
til, do seco ao úmido, enfim, do negativo ao positivo. Destarte, a conjugação de motivos si-
milares e intercomplementários que até o momento tem sido apresentada pela ordem Ama-
nhecer-Primavera na serra-Chuvarepresenta funcionar eficazmente para a fixação, em
Magma, de uma atmosfera harmônica, à evidência pautada pelo júbilo. Em corroboração a
esse raciocínio, vale ressaltar que
A chuva é universalmente considerada o símbolo das influências celestes re-
cebidas pela terra. É um fato evidente o de que ela é o agente fecundador do solo, o
qual obtém a sua fertilidade dela. Daí os inúmeros ritos agrários com vistas a chamar
a chuva (...). Que as nuvens negras façam chover (a justiça, ou a vitória). Que a terra
se entreabra para que a saúde amadureça! lê-se em Isaías, 45, 8. O caracter ling que,
no Tao-te-ching (cap. 39), designa as influências celestes, se come do caracter wu,
designando as encantações mágicas, e de três bocas abertas, recebendo a chuva do
u: é bem a expressão dos ritos evocados mais acima, mas cujo efeito é o do domínio
do intelecto. Deus envia seu anjo com cada gota de chuva, dizem os esotéricos do Islã.
Além do sentido particular que eles atribuem a essa fórmula, não se pode deixar de
prestar atenção no seu simbolismo literal e de aproximá-la do fato de que, segundo a
doutrina hindu, os seres sutis descem da lua à terra dissolvidos dentro das gotas de
chuva. Essa chuva lunar comporta também o simbolismo habitual da fertilidade, da
revivificação. A chuva é a graça, e também a sabedoria: A Sabedoria suprema, ensina
o mestre Huei-neng, imanente à própria natureza de cada um, é comparável à chu-
va...
760
A perspectiva de que “A chuva é a graça, e também a sabedoria, a serem der-
ramadas desde a abóbada celeste para abençoar o mundo inferior, é o que explica o sentido da
sentença Iupiter pluvius (Júpiter chuvoso), mais ou menos corrente entre os alemães por
obra de Göethe, que a empregou em seus escritos, tendo ido colhê-la no poeta latino Tibulo
(séc. I a. C.), o qual, por sua vez, a emprestou dos mais antigos gregos (Aristóteles, Alceu e
até mesmo Homero, na Iada e na Odisséia), que naturalmente a aplicavam a Zeus. E em
Guimarães Rosa (Cara-de-Bronze”): Olhe irmão: Deus é menino em mil sertões, e chove
em todas as cabeceiras.
761
Com o que em definitivo se extrai que em Magma, como no demais da stica
escritura rosiana, o ato de chover nas cabeceiras não será uma mera descrição paisagística
760
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 235-236. Grifos dos autores, sendo que justiça”, vitória”, ling,
wu” e “Huei-nengvêm em negrito.
761
ROSA, 19, 674.
420
dos femenos da natureza, mas consiste sim numa eminente prerrogativa de “Deus.
Sob essa luz, tem pertinência invocar o conceito teológico protestante de siner-
gismo, consistente na idéia de que a salvação da alma do fiel é sempre fruto do trabalho de
colaboração entre a vontade humana e a graça divina
762
, ou, se dito em termos mais figurados:
para que se possa alcançar o Renascimento do ser, faz-se necessária antes de tudo a prepara-
ção do solo (que é o próprio homem) por meio do carpimento (nas duas acepções da palavra,
tanto como limpeza quanto como dor, lembrando o Sofrimento... Sofrimento...do poema
Regresso), a fim de que, derramando-se as chuvas vivificantes do alto (isto é, descendo so-
bre a arrotéia o influxo abençoante de Deus), a semente oculta possa então germinar
763
. Ora, é
precisamente isso o que ocorre com a peça atual de Magma, na qual se explicita que
A chuva vai vir da banda da serra,
ficando dessa maneira inequívoco que a presente precipitação – a qual vem rolando, vem
chiandodos cimos tem origem no mesmo subido nascedouro donde antes rolaram livres
as Águas da serra: Deus. Destarte, resulta que o núcleo do símbolo agora avocado, sendo
também propiciatório do umectante Renascimento do que andava seco, demonstra ser em tudo
conforme ao inteiro encadeamento sígnico do livro, desenhado desde os primeiros textos. E,
por extensão, neste momento a “Chuva” consiste igualmente num sinal de que o esforço ana-
gógico, gurnido durante toda a Iniciação pelo peregrino na terra, foi reconhecido pelo firma-
mento e está sendo recompensado com a exata benesse a que faz jus: a divindade como que
Se lhe entrega em cada gota de chuva”, deixando-Se afinal encontrar por quem tanto a pro-
curou – e este se há de encharcar.
762
V. neste trabalho, à pág. 31 (Capítulo I, tópico 1), o comentário acerca do conto guimarrosiano Arroio-das-
Antas, de Tutaméia.
763
Tb. o Pe. Vieira discorre sobre tal tema, no Sermão da Sexagésima (III): Para uma alma se converter por
meio de um sermão, há de haver três concursos: há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de
concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um
homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode
ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz,
há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si
e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador
concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os
olhos, que é o conhecimento.E mais adiante: Porque o sol e a chuva são as influências da parte do Céu, e dei-
xar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. (...) Sempre
Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a
chuva para amolecer, se os nossos corões quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malus, et pluit
super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer
bons, como a negará?(VIEIRA, 284, 8-9). A citação em latim é de Mt 5.45.
421
Vem ao encontro dessa idéia a articulação que Guimarães Rosa promove, em
mais de uma passagem do carme, entre a chuva” e o vento. Vejamos, pois, que o verso ini-
cial da composição sob análise é:
Vai chover chuva de vento.
afirmativa que se repete ipsis litteris na terceira estrofe. O autor ainda menciona, como indí-
cio da iminência da precipitação, que
O vento já chegou nas casuarinas,
e, depois, os derradeiros versos do poema são:
A chuva vem rolando, vem chiando,
e o vento assoviando,
galopa, Cabiúna, que a água vem vindo,
e as sementinhas do meloso seco estão dançando...
764
Temos que já ao longo de milênios e em diversos complexos culturais
o vento é sinônimo do sopro e, por conseguinte, do Espírito, do influxo espiritual de
origem celeste. Esta é a razão por que os Salmos, assim como o Corão, fazem dos
ventos mensageiros divinos, equivalentes aos Anjos. O vento até dá o seu nome ao Es-
pírito Santo. O Espírito de Deus que se move sobre as Águas primordiais é chamado
de vento (Ruá); é um vento que traz aos Astolos as línguas de fogo do Espírito
Santo. No simbolismo hindu, o vento, Vayu, é o sopro cósmico e o Verbo; é o sobera-
no do domínio sutil, intermediário entre o Céu e a Terra, espaço preenchido...
765
Percebe-se que embora possua identidade simlica própria, a qual comporta
ainda outros múltiplos aspectos, o vento efetivamente aparenta-se à chuva na particularidade
de significar com excelência o Manifestante divino que de alguma forma se concede ao mani-
festado. A propósito, em diversos sistemas simbológicos o vento congruentemente surge as-
sociado à água: é assim, por exemplo, na ancestral religião avéstica da Pérsia, nas práticas de
geomancia chinesa e em determinados mitos cosmogônicos do hinduísmo. Ademais,
Segundo as tradições islâmicas, o vento fica encarregado de conter as águas;
a sua criação, ar e nuvem, com imeras asas, também viria conferir-lhe uma função
de suporte. Depois, Deus criou o vento e lhe deu imeras asas. Ordenou-lhe que car-
regasse a Água; o que ele fez. Avas, o Trono, estava sobre a Água e a Água sobre o
Vento.
IbnAbas também responde à pergunta: Sobre o que repousava a Água?
Sobre as costas do Vento; e quando Deus quis produzir as criaturas, deu ao Vento po-
764
Em ROSA, 2, 144, o antepeltimo verso em pauta é rematado com ponto final, o que leva a que o seguinte
comece com travessão e maiúscula.
765
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 935. Grifos dos autores, Ruá” e Vayuem negrito.
422
der sobre a água; a Água encheu-se de ondas, brotou em espuma, criou vapores: esses
vapores ficaram elevados em cima da Água e Deus os chamou de
Sama
(de
sama
, es-
tar elevado
), ou seja, de Céu...
766
Nesse ponto o misticismo muçulmano é de certo modo tributário do mais anti-
go entendimento dos hebreus, no qual, de acordo com o que foi ainda há pouco aventado,
desde o
Gênesis
(1.2) é sabido que na antemanhã primordial o Espírito de Deus pairava por
sobre as águas, devendo-se considerar que
A palavra hebraica traduzida por
Espírito
pode significar também
vento
,
sopro
ou
fôlego
. (...) Por isso, alguns intérpretes consideram que a parte final deste v. significa
um forte vento ia e vinha por sobre as águas.
767
Complemente-se que,
Nas tradições bíblicas, os ventos são o sopro de Deus. O sopro de Deus ordenou o
caos primitivo; animou o primeiro homem. A brisa nos olmos anuncia a chegada de
Deus. Os ventos também (...) São manifestação de um divino que deseja comunicar as
suas
emoções
, desde a mais terna doçura até a mais tempestuosa cólera.
768
Note-se, a propósito, que na “Chuva” de
Magma
O vento (...) nas casuarinas
(denominação comum às várias espécies de uma dada família de árvores ornamentais) parece
reeditar aquela “brisa nos olmosbíblicos, funcionando também como um suave
anúncio
da
“chegada de Deus. E, no caso, tal teofania, indo mais além da “terna doçura, certamente que
vem carregada de pleno contentamento, dado o sentido de regozijo que transpassa toda a
composição rosiana, através da qual se testemunha que
Eu hoje amanheci alegre,
querendo cantar...
Ainda no que diz respeito ao semblante simlico do vento e suas correlações
com a chuva ou a água, calha invocar um interessante excerto do Evangelho de
João
(3.3-8),
de ingente teor iniciático:
A isto respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não
nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.
Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode,
porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?
Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água
e do Espírito não pode entrar no reino de Deus.
766
Id
.,
op
.
cit
., pág. seg. Grifos dos autores (Sama” e sama” em negrito), os quais extraíram o fragmento final
de
SOURCES ORIENTALES
,
La naissance du monde
. Q. v. tb., no elucidário, o verbete
GEOMANCIA
.
767
Cf.
Bíblia de estudo Almeida
, 130, nota
e
ao versículo aludido.
768
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, pág. 936. Grifo dos autores.
423
O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito.
Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo.
O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem
para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.
Se se recordar que, semelhante ao que acontece na ngua hebraica, Em grego
(o idioma no qual o Novo Testamento foi originalmente redigido) “a mesma palavra
pneuma
significa
vento
e
espírito
769
, talvez seja possível penetrar, pelo menos um tanto, o profundís-
simo lance esotérico do ensinamento ministrado: dessa forma, o nascer da água e do Espíri-
topode ser decifrado como uma alusão ao venturoso encontro epifânico entre o ânimo ana-
gógico que está dentro de cada ser (
i. e.
, a alma, prefigurada pelo movimento da “água” pri-
micial) e a graça divina que é passível de ser concedida a todo ser (o ventoou Espírito),
bastando para essa realização que haja a sede de ir buscá-la. É sob essa hermenêutica que se
entende, em Chuva”, a afirmação rosiana de que “Vai chover
chuva
de
vento
: o iluminado
que ainda reza o rosário está deveras
nascendo de novo
, desta vez não a partir da carne, que é
chão, mas da “chuva” e do vento, que são céu.
Convém agora explorar outro assunto: é de se dizer que a Chuvaguimarrosi-
ana aparece inçada de sutis referências que remetem a diversos outros carmes que a precede-
ram, referências essas o mais das vezes ligadas aos comportamentos de alguns animais figu-
rantes. De sorte que os versos
Minhocas
brotam
à flor da terra
.
Eh aguão!...
770
representam denotar alguma correspondência, sob a capa de contraste, com certa passagem
colhida em Maleita:
Cavaca fundo, Compadre,
que as
minhocas
vão fugindo
terra a dentro
.
769
Bíblia de estudo Almeida
, 130, nota
f
ao referido versículo 8 (O vento sopra...). Acrescento outrossim que,
ainda na
Bíblia de estudo Almeida
, cf. a nota
a
ao v. 3 do mesmo fragmento (A isto respondeu Jesus...), A
palavra grega” que vale
De novo
(...) significa também
do alto
.Cruze-se esse trecho da boa-nova joanina com
Tt
3.5: não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o la-
var regenerador e renovador do Espírito Santo...; e tb. com
1Co
2.9-10: mas, como está escrito: Nem olhos vi-
ram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles
que o amam.// Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as
profundezas de Deus.
770
Anteriormente foi redigido:
As minhocas
brotam à flor da terra”, tendo o artigo sido suprimido com rabiscos
e a inicial maiúscula no substantivo aposta a mão. Quanto a ROSA, 2, 142, verifica-se que o segundo verso do
extrato foi introduzido por um travessão, o que ocorre também quando o mesmo verso é repetido na quarta estro-
fe.
424
Antes de mais, relembre-se, de conformidade com o que foi visto oportuna-
mente, que a composição do primeiro terço de Magma manifestou o sentido global de afasta-
mento entre o Criador e a criatura, o que naquele comenos foi expresso pela impressão de re-
tração das águas primiciais do rio velho
771
. Adrede, o verso inicial de “Maleitafoi justa-
mente:
Não vem mais chuva...
– o que se opõe de modo frontal à categórica constatação com que agora se abre a “Chuva”:
Vai chover chuva de vento.
Ficou ainda assinalada, em Maleita, a idéia de que os homens é que agiam
então por repelir a água viva, quando declaravam:
Xô, rio velho!...
e
Xô, riachão!...
Por outro lado, mesmo a mais desinteressada leitura de “Chuvanão deixa
margem a quaisquer dúvidas: neste instante, as águas celestes são muito bem-vindas e até
mesmo saudadas com um entusiasmado Eh aguão!...que se faz ouvir na primeira estância e
se repete na última.
Quanto às Minhocaspropriamente ditas, observe-se que na peça atual elas
brotam à flor da terra, o que parece traduzir a facilidade de obtenção das mesmas, as quais
refletem a riqueza de vida que, jazendo oculta por sob o solo, vem festivamente fervilhar à
tona com o tempo úmido, brotando como flores. Em contrapartida, no clima enfermiço de
Maleita” foi colocado que o mesmo sinal vital ilustrado por esses animais só poderia ser en-
contrado quando se “Cavaca fundo, pois eles vão fugindo terra a dentro. Portanto, razoá-
vel concluir que enquanto Maleita” tratou dos princípios da árdua operação gstica de en-
trada do ser humano em si mesmo (ou seja, terra a dentro), no que aparentemente se instau-
rava a apartação de Deus, no presente a “Chuva” revela, por assim dizer, a noção de entelé-
quia aristotélica ou o aperfeiçoamento total dos trabalhos, com a saída, qual um desabrochar,
para uma nova vida em franca e feliz comunhão com a divindade. Com esse pensamento, tudo
771
V. as págs. 134-135 (Capítulo II, tópico 2).
425
se combina na mais absoluta, milimétrica e espontânea adequação ao projeto anagógico ar-
ranjado por meio dos terços do rosário de Magma, segundo vem sendo defendido.
Outrossim, Chuva” revela indícios de retomar, ainda em tons contrastantes,
determinados aspectos de “Boiada”, peça em que ficou bem marcado um ar de estiagem:
Que sol!... Que poeira!...
Sem embargo, no frescor do novo poema o gado vacum demonstra saber pres-
sentir a proximidade da precipitação que vem para r fim à seca:
Eu não ouvi o primeiro trovão,
mas o zebu está escutando,
com a caba encostada no chão.
(...)
Os bois m correndo, pasto abaixo,
procurando as árvores do capão.
Logo, o nexo que se estabelece entre “Chuva” e Boiada” é análogo àquele ve-
rificado com relação a “Maleita”: a mesma transição da secura ou da retraçãoisto é, o
apartamento das águas iniciais à umidade, a qual exprime a nova integração com essas
águas.
Em continuidade, pode também ser alinhavada alguma ligação entre o carme
de agora e No Araguaia III, este um poema cujo final foi tétrico:
Ronda ali perto, nos galhos do pau dóleo,
meia dúzia de exploradores de vanguarda
da gente dos urubus...
As aves necrófagas, nesse ínterim, tinham sido atraídas por um cadáver, o do
Capitão Uachiatê, ao mesmo tempo em que agouravam a então vindoura morte de Araticum-
uu. Porém, em Chuva” os bichos sinistros, com suas feias cataduras, parecem ter sido de-
vidamente enxotados para longe:
Três urubus passaram no alto,
em vôo lento,
em reta longa.
Vão para as lapas dos lajedos.
Vai fazer tua casa, Urubu!...
Tempo de chuva aí vem, Urubu!...
772
772
Em ROSA, 2, 142, o tempo verbal registrado para o primeiro verso desse trecho é diferente: Três urubus
passam no alto,.
426
Nada obstante, o texto com o qual Chuvademonstra travar as mais fortes
correlões é, naturalmente, Toada da chuva. Venha então à memória que, nesse poema an-
tecedente, a atmosfera pluviosa se viu eivada de uma cinzenta melancolia, aliás condizente
com aquele momento, que foi assim apresentado:
Hoje é manhã de Finados...
Mas no que importa ao presente, conforme já se comentou, a felicidade é a re-
gra desde o Amanhecerdesse dia de “Chuva”, porque
Eu hoje amanheci alegre...
De maneira que a Chuva” vem com a missão de sobrepujar o sentimento dei-
xado pela “Toada da chuva, assim como o júbilo causado pela Ressurreição ultrapassa e apa-
ga o pesar em face da Morte.
Outra notável distinção se aia nas ambientões de cada carme: se “Chuva”
revela ter como espo a paisagem campestre (é o “cerrado” cortado pelo ribeirão” e povoa-
do por formigas lavadeiras, Minhocas, o sapo, o joão-de-barro, Os boisque estão
procurando as árvores do capão
etc
...), a “Toada da chuva” claramente se fez ouvir num ce-
nário urbano (tendo sido feita expcita menção à “cidade destapada e clara”). E é no desdo-
bramento dessa circunstância demasiado relevante que se marca a verdadeira diferença de di-
apasão entre as duas composições, a qual diz respeito à capacidade receptiva do solo em rela-
ção às águas provenientes do céu.
Vejamos, pois, sob essa intelecção, que na peça pretérita o duro chão de “as-
faltoimpedia que as gotas dágua, mensageiras do favor celeste, penetrassem a terra que in-
dica o plano material. Bem ao invés, um jorro claroque
caía
da beira de um telhado” che-
gava mesmo a se espatifar na calçada” como as muitas pernas de “uma aranha de vidro.
Naquela hora, isso refletia a pouca permeabilidade do neófito renitente às influências divinas,
o que também restou assinalado pela imagem da “gente parada, como insetos presos, abriga-
dos
Nas portas, nas janelas,
sob os toldos,
logo sem qualquer intento de se deixar molhar pelo benfazejo aguaceiro. E daí a tristeza que
impregnou a “Toada...
427
Quanto à atual Chuva” campesina, já se insinua, através de diversos fatores, o
sentido de plena abertura do solo aos influxos celestes. Precisamente assim é que se explica
porque as Minhocas, picos animalejos habitantes do subterrâneo, agora “brotam à flor da
terra
e o sapo saiu de debaixo da laje
para um buraco no meio do pátio
onde vai se encher uma lagoa...
A propósito, tem interesse recordar que esse anfíbio é usualmente tido, desde
as Américas à Indochina, como um chamador ou anunciador da chuva fertilizante, e além dis-
so, na África,
como todos os símbolos associados ao complexo terra-água-Lua, ele exprime esoteri-
camente o conceito de morte e de renovão, donde sua utilização para designar uma
classe de sociedade iniciática.
773
É também sumamente relevante considerar a asserção, no poema rosiano, de
que
Já deve estar chovendo nas cabeceiras da serra,
porque
o ribeirão engrossa, cor de terra...
Ora, o
engrossamento
do ribeirão, crescendo “cor de terra”, por primeiro
transmite a concepção de que a água pluvial que cai do alto da serraou do firmamento está
se encontrando com a água fluvial que já rasgava o chão: logo, parece tratar-se de mais uma
alegoria que espelha a comunhão entre a
Alma Parens
ceflua e a sua vertente aninhada no
corpo humano. Ademais, com esse encontro de águas surge como que uma mescla entre o -
quido e a “terra, ou melhor, esses aspectos se conjugam no leito do ribeirãopara formar
uma só substância que é, em simultaneidade, terrosa e hídrica, o que serve bem para ilustrar a
condição do ser desperto que, conquanto permaneça fisicamente em meio à matéria, persente
ter atingido à vera a consubstanciação
espiritual
com Deus. Tal idéia, outrossim, persistirá até
os versos iniciais da próxima peça, Integração:
Deitado no chão, fofo de tantas chuvas,
onde o meu corpo calca os seus contornos...
Isso, entretanto, é tema a ser melhor discutido mais adiante. Voltando por en-
quanto a “Chuva”, conclua-se que neste texto o homem demonstra uma clara disposição de
773
Dominique Zahan,
Societés dinitiation Bambara
,
apud
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 803.
428
viver, com toda a intensidade e sem medo de se molhar, a sensação de lúdica alegria que a
mera expectativa da vinda da precipitação já lhe proporciona:
Olá, José, arreia meu Cabiúna,
liso do casco à testa,
preto do rabo à crina,
que eu vou sair pelo cerrado afora,
a galopar com a chuva me correndo atrás...
774
Enfim, é preciso deixar bem patente que o nítido sabor de contento que a
Chuva” propaga induz irresistivelmente à inferência de que ela constitui o exato outro Dilú-
vioque “O cágadosábio e o “caipira” há tanto tempo esperavam que lhes viesse ampliar a
felicidade pequenina”. Então, aquele “poçode “água (...) pequenina e fria” do quelônio que
se aquece (...) em cima da lajehá de se transformar, por força do “aguão, na maior lagoa”
cheia
do anfíbio que “saiu de debaixo da laje”.
Agora, antes de nos adiantarmos à peça consecutiva, falta abordar, em rápidos
apontamentos, apenas mais dois tópicos acerca de “Chuva. Primeiramente, e como um dado
acessório às discussões centrais sobre o carme, é válido pôr em foco por um instante a peque-
na figura do joão-de-barro, o qual, preparando-se para a invernada que
(...) vai vir da banda da serra,
(...) abriu sua porta
virada para o sul.
775
No caso, o joão-de-barropode ser tomado por uma representação particular
do ser humano, pois este, simbolicamente, é feito
de barro
, ou seja, da mistura das substâncias
do pó (corpo) e da água (espírito). Além do mais, tal passarinho, bastante comum em todo o
interior da América Latina, revela uma insuspeita porém consistente associação com certos
elementos tradicionais dos trabalhos alquímicos. Ocorre que o peculiar ninho dessa ave, como
se sabe, é feito pelo
casal
, à base de
barro
e em forma de
forno
(donde o nome cienfico de
sua família,
Furnariidae
). De sua parte, o alquimista tem como aparelho mais importante
justamente o forno Athanor e com freqüência aparece em gravuras antigas laborando acom-
panhado pela
soror mystica
, a auxiliar que simboliza o lado feminino do praticante; por fim,
ele utiliza em seus experimentos sempre aqueles materiais que o vulgo considera os mais vis,
774
Em ROSA, 2, 143-144, o primeiro verso do trecho vem precedido de travessão, e no último se lê, com a inter-
calação de vírgula, a
galopar, com
a chuva me correndo atrás...
775
No segundo verso do excerto o artigo
a
foi rasurado a mão antes de sua porta”, tendo, no entanto, retornado
em
id
.,
op
.
cit
., pág. 142.
429
assim como o barro. Esse aspecto final é unanimemente atestado pelos mais lebres tratados
espagíricos:
O Sol é seu pai, a Lua a mãe. O Vento trouxe-a no ventre.
A Terra é sua ali-
mentadora amada e o seu receptáculo. O Pai de tudo, o TELESMA do mundo univer-
sal, está aqui.
A sua força ou potência fica inteira, se for convertida em terra.
Separarás a terra do fogo, o subtil do espesso, brandamente, com grande in-
stria. Ele sobe da terra ao céu e de novo baixará à terra, e recebe a força das coi-
sas superiores e das coisas inferiores.
Terás por esse meio a glória do mundo; e, por isto também, toda a obscurida-
de se afastará de ti.
HERMES TRISMEGISTO
Toda a nossa operação consiste em nada mais do que tirar a água da terra e
voltar a -la outra vez na terra até que esta apodreça.
Pois esta terra apodrece com a
água e limpa-se com ela; depois de se ter limpo, estará terminado o regime de Todo o
Magistério, com a ajuda de Deus. Esta é a operação dos sábios; é a terceira parte de
todo o Magistério.
MORIEN
Vinde, meus filhos, e escutai, pois eu vos ensinarei a Sabedoria de Deus, que é sábio e
entende aquilo a cujo respeito Alfídio diz que
adultos e crianças pisam na rua, que é
calcada todos os dias pelas patas dos animais
na estrumeira e de que Sênior diz nada
haver de mais desprezado exteriormente e nada de mais precioso na natureza, e Deus
não o deu para ser comprado com dinheiro.
SANTO TOMÁS DE AQUINO (?)
Abri qualquer livro de Alquimia: dir-vos-á que a obra coma com uma maté-
ria-prima, cuja natureza nenhum adepto pode revelar (...). Será tão importante, miste-
rioso e perigoso revelá-lo ao profano?
Contudo, dizem também estes autores, que a
matéria se encontra por todos os lados na Natureza. O ignorante pisa-a, só precisa de
se baixar para a poder colher.
(...)
Mas, o que é esta matéria primeira, dissimulada sob a relva a alguns cenme-
tros do solo, senão terra vulgar para o profano?
Para um iniciado, é uma coisa muito
diferente: é terra viva, arrancada do solo segundo um processo muito particular que
pertence ao domínio da alta magia e permite ao adepto, designado para esta tarefa,
tomar posse de todo um conjunto de princípios físicos e metafísicos.
ARMANDO BARBAULT
776
Alguns exegetas têm concedido semelhante significado esotérico a certo episó-
dio do
Gênesis
(27.28), no qual se toma conhecimento da benção que o velho e cego Isaque
776
Os textos elencados e as respectivas fontes são:
A tábua esmeraldina
(in: ZALBIDEA, 289, 23);
Diálogos
entre o rei Calid e o filósofo Morien sobre o Magistério de Hermes: recolhido por Ghalid, escravo deste rei
(in:
id
.,
op
.
cit
., pág. 64);
Aurora consurgens
(
apud
FRANZ, 177, 164-165), sendo que sobre a questão da autoria
desse documento, que é atribuído a Santo Tomás de Aquino, v., no presente estudo, a nota 333 (pág. 177); e
O
ouro do milésimo dia – O Elixir da Longa Vida dos alquimistas
(in: ZALBIDEA, 289, 276-279). Grifos meus.
No que toca ao TELESMA(ou
Thelema
, ou ainda
Azot
) mencionado por Trismegisto, cumpre recordar que se
cuida do
mercúrio dos filósofos
,
i. e.
, da Pedra Filosofal ou do Elixir da Vida, de qualquer forma o sinal da su-
prema Perfeição que é a meta dos labores místicos (fo remissão à nota 727, pág. 401).
430
prestou ao filho mais novo, Jacó, quando este se disfarçou para se fazer passar pelo primogê-
nito Esaú:
Deus te dê do
orvalho do céu
,
e da
exuberância da terra
,
e fartura de trigo e de mosto.
Finalmente, o último assunto a ser examinado concernente a Chuva” se rela-
ciona com as sementinhas do meloso secoque, na estância inicial,
devem estar dançando na poeira...
e são depois revistas nos versos de encerramento do texto:
A chuva vem rolando, vem chiando,
e o vento assoviando,
galopa, Cabiúna, que a água vem vindo,
e as sementinhas do meloso seco estão dançando...
As sementinhas, ao que parece, constituem mais um outro signo a que cabe
exprimir, por meio da
dança
ao
assovio
do vento, todo o entusiasmo pela aproximação do
aguaceiro que “vem vindopara fecundá-las. E isso porque o contato regenerador com a
águapermitirá, consabidamente, que as íntimas latências que jazem
secas
se abram para
fora, na vegetação luxuriante que caracteriza o poema seguinte – o que então assinala, de ma-
neira simlica, o pleno despertar do ser humano renascido para o diferente quilate da sua
nova Vida que desabrocha.
Vem então à mente certo fragmento de “Evanira!(
Ave, Palavra
):
E, pois, librando-se arcangelicamente, a
alma almíssima
, quando
A ÁGUA
DE MIL CÔNCAVOS, MIL SEIOS,
TE ENVOLVE,
FELIZ, E CONTUDO TODA PENETRANTE
não mais ausente.
777
Ao ensejo, calha doravante dedicarmos atenção à peltima peça que come o
livro de 1936. Cuida-se de “Integração, cuja estrofe de abertura é:
Deitado no chão, fofo de tantas chuvas,
onde o meu corpo calca os seus contornos,
acompanho as pontas dos cipós que oscilam,
o respirar das folhas,
777
ROSA, 14, 45. Grifos do autor.
431
o saltitar de cócegas nas patas dos gafanhotos,
e o crescer rampante das trepadeiras bravas,
avançando em meus braços.
778
Com efeito, a sensação demonstrada de completa harmonia com a Natureza
constitui-se num reflexo cristalino da “Integraçãodo poeta – que atingiu a gnose ao Todo
universal. Perceba-se que “as pontas dos cis que oscilamnão são apenas
observadas
, mas
efetivamente
acompanhadas
, bem como são
acompanhados
o respirar das folhas” e o salti-
tar (...) dos gafanhotos, isto é, o adepto como que se
transmuta
nesses “cis, folhas” e
gafanhotospor meio da consubstanciação ou do conhecimento de que a sua própria subs-
tância animal e humana não difere essencialmente da substância dos vegetais e dos insetos. O
homem desperto tem de fato a revelação de que
oscila
,
respira
e
saltita
– vive, enfim junto
com todas as coisas. Tal noção de entrelaçamento real de essências percorre todo o texto:
dentre outras imagens, é “o crescer rampante das trepadeiras bravas/ avançando em meus bra-
ços
e o pio dos gaturamos maduros,
fino e gostoso como um caldo de fruta!...
De sorte que os passarinhos se encontram, nos galhos, maduroscomo os
frutos e, sinestesicamente, seu canto soa ou sabe a “um caldodoce – pelo menos para quem
se tornou apto a desvendar que o som e o sabor, o sumo e o tom, são meras facetas de uma só
unicidade excelsa.
Concorre de maneira notável para alicerçar esse pensamento a utilização da fi-
gura dos “cis, vez que, em mais de um sistema simbológico, eles representam
a ligação primitiva entre o Céu e a Terra, ligação cuja ruptura é de tradição univer-
sal. (...)
A dualidade do cie da árvore ao redor da qual ele se enrosca é um símbolo
de amor. Mais precisamente, na Índia o cié
Parvati
enquanto a árvore é
Xiva
sob a
forma de
linga
(
falo
)...
779
Assim, exatamente como um símbolo de amore decerto de amor teosófico
–, é que se deve interpretar o entrançamento das trepadeiras bravas/(...) em meus bros.
Concorde com isso, o movimento végeto do crescer rampante (...),/ avançandorumo ao
mais Alto, constitui-se no signo que traduz o restabelecimento da “ligação primitiva entre o
Céu e a Terra, este o sublime galardão alcançado pela alma de quem foi afinal tocado pela
778
Em
id
., 2, 145, o segundo verso (onde o meu corpo calca os seus contornos) foi inteiramente suprimido e,
mais à frente, lê-se: e o crescer rampante
da trepadeira brava,
(no singular).
779
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 249-250. Grifos dos autores, sendo os três primeiros em negrito.
432
iluminação. Digna de nota é também a circunstância de que o adjetivo rampante, aplicado
ao “crescerdas plantas trepadeiras, ordinariamente é reservado tão-só para designar na he-
ráldica, de maneira bastante específica, algum animale sobretudo o lo – na nobre postura
de se firmar sobre as patas traseiras e com as dianteiras levantadas; de forma que se tem um
vislumbre da Integração” entre o modos de ser da planta e do animal, e tudo em torno de
uma atitude de sobreerguimento e sobreeminência.
Porém, é absolutamente imprescindível precisar que todo esse sentimento de
comunhão com os variegados aspectos do manifestado adveio primeiro do êxtase comungató-
rio entre o stico (que, como ser humano, é “terra”) e a divina Fonte Manifestante (que é
água ou chuvas). Por conseguinte, a alusão inicial ao chão, fofo de tantas chuvas,não é
prosódia vã, mas sim indica de modo irrefutável o pleno ajuste sígnico ou alegórico da peça
Integração” com a “Chuva” que a antecedeu. O que, aliás, resta outrossim bem comprovado
pelos versos:
Desce-me ao fundo do peito a terra inteira,
no cheiro molhado da poeira,
ou seja, é “no cheiro molhadoresultante da união entre a poeira(esforço anagógico) e a
água das tantas chuvas(benção celeste) que se pode obter a graça de aconchegar no fundo
do peito a terra inteira”, realizando o homem o Uno em si
780
.
Integraçãotampouco foge aos estatutos de júbilo outorgados pelas três com-
posições anteriores, conforme aparenta depor a quadra central do texto:
Oh! a canção viva
do liso verde-azul dos sanhaços nos galhos
e o pio dos gaturamos maduros,
fino e gostoso como um caldo de fruta!...
Presente outra vez o poético embaralhamento perceptivo (pois que não é pro-
priamente através da garganta que os sanhos” entoam o canto, e sim por meio da sua colo-
ração, verde-azul” e lisa), essa “canção viva” representa ser um novo arranjo da “canção do
mais adiante” longinquamente soprada pelas Águas da serra.
Outro ponto que merece ser comentado é que, se ao longo do segundo terço o
poeta continuamente se queixou da distância que padecia da amada, agora parece, porventura,
que se deu o encontro com ela, vez que
780
Cf. Manoel de Barros (Encontro de Pedro com o nojo): Pedro sabia: todo aquele que não bebe água no
solo, secará como cana cortada no pé. Ficou deitado.(BARROS, 117, 119)
433
O u,
limpo, azul e côncavo, na altura,
é um
recanto de corpo feminino
,
pronto a se contrair, ao primeiro contato,
num único espasmo de voluptuosidade sóbria...
781
Ora, a
femina
, desta maneira, acaba por se confundir com o próprio “céu, ca-
bendo enfatizar que aqui não se apresenta apenas uma comparação, mas se faz de fato uma
afirmação inequívoca: O céupositivamente “
é
um recanto de corpo feminino. E, na altu-
ra,tal firmamento limpo, azul e côncavodemonstra estar acessível, pronto (...) ao primei-
ro contatologo, se o “contatose vislumbra assim possível, então é porque entre o alto e o
baixo certamente não há mais oposição ou distinção de espécie alguma. Ao contrário, fica nas
entrelinhas que o homem renascido pode mesmo operar o milagre de fazer, a um simples to-
que das mãos, O u (...)
se contrair
. Em face disso tudo, ocorre a constatação de que é
Itil erguer-me: mais alta é a gameleira...
Verdadeiramente, Itilporque desnecessário – e há que se pormenorizar: à
primeira vista e por um ângulo profano, com toda a lógica é cito o argumento de que até a
mais alta (...) gameleira” ainda não conseguiria roçar com a matéria de seus ramos o firma-
mento, em razão do que qualquer empenho humano no mesmo sentido celeste pareceria de-
balde; entretanto, por outro ângulo metafísico hábil a suplantar a lógica rasteira, extrai-se a
inexorável convicção de que se o homem já está poeticamente
integrado
com a Natureza,
desde que o chãojá foi molhadopelas “chuvasdo “céu, conseentemente não existe
nenhuma precisão real de “
erguer-me
, eis que estar embaixo (“chão) não se distingue de
estar em cima (céu), conforme aliás o célebre preceito hermético. Em função disso, é certo
que agora o iluminado domina a sabedoria de que ainda o próprio
conceito de elevação ou o
de iluminação
782
não são mais do que meros artifícios, dado que, onde quer que esteja, o ser
desperto sabe que está como estão todos os outros seres, conquanto estes ainda não o perce-
bam sempre imerso em Deus. E por esse motivo, sem mais medo o poeta de
Magma
permite
que seu “corpopermaneça “no chão, (...)/ onde (...) calca os seus contornos,” e seus
(...) dedos afundam no solo amolecido,
como garras de raízes nuas...
781
No que diz respeito ao texto de ROSA, 2, 145, ficam consignadas no fragmento as seguintes alterões: é um
recanto de corpo,(sem a explicitação de ser feminino) e, mais adiante, num único espasmo de
volúpia
só-
bria...
782
KAPLEAU (197, 324) confirma: Com a perfeita iluminação, todos os pensamentos ilusórios, incluindo os de
iluminaçãoou ilusão, desaparecem(nota 9), junto com todos os conceitos, opiniões, suposições, precon-
ceitos(nota 15).
434
Destarte, resta claro que a transitoriedade e as imperfeições acidentais inerentes
ao mundo material doravante não mais têm o dom de afetar, poluir ou prostrar aquele que ob-
teve o pleno conhecimento da mais perfeita quintessência, cuja eternidade subjaz a todas as
coisas. Tal obtenção consiste na visão pura que marca o êxtase – ou ínstase – neoplatônico
(substitutiva da antiga visão caolha do píton ciclópico, de acordo com o que fora disposto
na peça rosiana “Gruta do Maquiné”), ou seja, enfim a realização cabal do ideal contemplati-
vo que é eloqüentemente revelada no verso com que se fecha “Integrão
e os meus olhos sobem, tateando os verdes...
–, o qual une numa
afirmação
sinestésica o
ver
(meus olhose os verdes) e o
sentir
(tate-
ando) que foram perseguidos, desde o poema vestibular, dentro do coeso sistema anagógico
(sobem) de
Magma
. E nesse ápice da percepção, flagra-se o alcance do Uno e a restituição
da criatura ao Criador num ambiente úmido (fofo de tantas chuvas) semelhante ao das ori-
gens em Águas da serra”, pelo que se extrai que o neófito completa o seu aprendizado e se
sagra, por inteiro,
iniciado
nos Mistérios. Chegando assim ao elevado grau dos predecessores
magos da Rosa-Cruzde “Paraíso filosófico, o poeta agora, como eles, está apto a
tatear
e a
esculpir
as invisíveis e impossíveis formas novasdos ascendentes verdesque são vistos
apenas a olhos nascidos duas vezes, olhos tranqüilos” e “gelados,/ de tanto olharem o sol
ardente da divindade. Sendo este, como sabemos, um sol que nasce, tal qual o jorro poético do
Magma
, de dentro do indivíduo para fora dele.
No passo, interessa-nos sobremaneira enfatizar: o conseguimento desse mais
subido patamar implica, segundo a maioria das tradições iniciáticas, na aceitação, por parte do
novo iniciado, da missão de difundir a mensagem mistagógica, dispondo-se a ajudar outros
futuros aspirantes sticos a encontrarem os seus trajetos pessoais. Embora perpasse talvez
apenas tangencialmente (no sentido de não ser o assunto mais importante) as escrituras de
Integração” e de “Consciência cósmica, essa recém-adquirida tarefa de apostolado parece
ser o melhor ponto para que se opere a transição de um carme a outro, uma vez que daí se
pode vislumbrar com vantagens, em alguns dos seus caracteres mais relevantes, o exato cariz
da conexão ideológica que se estira entre o livro de estréia de Guimarães Rosa e toda a sua
obra madura posterior.
De forma que, agindo nessa conjuntura, primeiro faz-se conveniente reaver a
abordagem da décima e derradeira etapa das Estampas de condução da boiada” zen-budistas,
sobre a qual já foram alinhavados breves comentários quando estava em foco a composição
435
Primavera na serra”. O quadro budístico em questão se intitula “Entrando na praça do mer-
cado com mãos serviçaisou, noutra tradução, Entrando na cidade com mãos que concedem
bem-aventurança”. Eis o texto que o descreve:
O portão de sua humilde casinha de palha está fechado e mesmo os mais sábios não
podem encontrá-lo. Seu panorama mental desapareceu por fim, e não se vislumbra
nada de sua vida anterior. Segue seu próprio caminho, não tentando seguir os passos
dos antigos sábios. Carregando uma cabaça, passeia pelo mercado; chega ao lugar
apoiado em seu bordão. Ele guia os bebedores de vinho, os estalajadeiros e os peixei-
ros no Caminho de Buda; todos eles se convertem em Budas.
Com o peito descoberto e descalço, ele entra na praça do mercado.
Enlameado e empoeirado, como sorri mostrando os dentes!
Sem precisar recorrer aos místicos poderes dos deuses,
faz com um toque árvores secas florescerem de repente.
783
De conformidade com o que foi oportunamente prevenido
784
, o
quid
a interligar
o escrito búdico e “Primavera na serrarepousou precisamente nesse verso final faz com
um toque árvores secas florescerem de repente”. Ora, o estudioso Philip Kapleau interpreta
que este
É outro modo de dizer que o homem totalmente iluminado, porque toda a sua
personalidade está banhada de uma irradiação interior, traz luz e esperança aos que
estão na escurio e no desespero.
785
De fato, o verso em pauta parece resumir todo o sentido global que norteia o
procedimento iniciático temporal, quando se volta a perspectiva para as suas relações com a
sociedade secular circunferente: o homem totalmente iluminadotem o condão de ajudar a
florescer
, com o seu ensinamento, a essência divinal em todos quantos o cercam e aceitam o
auxílio para fugir à “escuridão” e ao desespero. Mas (vale recordar) o Buda só tem essa
virtude porque ele próprio foi capaz de vir a florescer, como “as flores vermelhasda nona
gravura do ciclo zen. Sempre repisando, segue-se que a floração ornitófila do piquizeiro” em
Primavera na serra” já pretendia significar que o poeta, as uma longa desfiadura do rosá-
rio, começava a atingir o
status
de iniciado – o que afinal fica totalmente sacramentado por
meio do verso terminante de “Integração, a partir do qual o adepto em definitivo se pode
aprestar ao serviço de mistagogo (com todas as prerrogativas e limites picos dessa função)
para novas gerações de candidatos à procura da transcendência. Compreenda-se que, como
uma das conseqüências da ascese, o iniciado ingressa, por seus méritos (e isso vale tanto para
783
Apud id
.,
op
.
cit
., pág. 323. V. atrás, neste trabalho, a advertência contida na nota 721 (pág. 398).
784
Remeto à pág. 416, neste mesmo tópico do presente Capítulo.
785
KAPLEAU, 197, 324, nota 17.
436
a Iniciação budista como para os Mistérios gregos ou quaisquer outras espécies de solenidades
mistagógicas, asticas ou não), num sapiente círculo fraternal cujos membros professam uma
antiga tradição exotérica e tomam a si a responsabilidade de propagá-la e perpetuá-la, fazendo
com que outras das criaturas que habitam o sombrio mundo profano tornem-se, em seu devido
tempo e condicionadas aos misteres cerimoniais, cada vez mais e mais cientes da centelha di-
vina que se oculta em cada uma delas. É que, iluminando-se, o sábio quer também iluminar
todo o Universo, num combate ferrenho contra qualquer modalidade de ignorância.
Em face disso, constata-se que o êxtase iluminativo, conquanto seja o resultado
de uma experiência que se desenrola de forma eminentemente particular (e é essa a sua me-
dula), ao término não se traduz num arrebatamento que aliena o sujeito, retirando-o do plano
físico para o metafísico. Longe disso, a ascensão espiritual concede forças ao devoto multisci-
ente para que ele, mesmo que esteja com a alma fora do mundo das aparências, nele permane-
ça in corpore, o que lhe permite ir ao encontro dos ímpios, já que com eles se sente irmanado,
e lhes transmitir as boas novas de que tem conhecimento. É bem assim que se explica a pre-
gação dos grandes patriarcas em todas as religiões, de Moisés a Siddharta Gautama, de Jesus
Cristo a Maomé, de Zoroastro a Maniqueu. Por igual, Platão, no mito da caverna, preconiza
que o filósofo que sai da ilusão do mundo sensível e imperfeito e chega à verdade do mundo
ideal e perfeito (é a chamada “dialética ascendente”) tem a missão de retornar à furna (dialé-
tica descendente) e, ainda que seja obrigado a beber da cicuta da incompreensão alheia, pre-
gar o verdadeiro Bem aos outros homens que permanecem acorrentados na ignorância: só as-
sim o ser humano pode seguir o exemplo do Demiurgo e contribuir para moldar um novo uni-
verso mais justo e mais próximo da pureza das idéias.
Eis então que na décima lâmina zen-budista esse ânimo evangelizador é evi-
denciado pela descida à praça do mercadoou à “cidade”, locais onde o Buda se e na
companhia dos bebedores de vinho, dos estalajadeiros” e dos peixeiros, “árvores secas
a quem incute a doutrina, fazendo-as florescerem de repente”: e assim todos eles se con-
vertem em Budas. Infere-se que o burburinho e a agitação citadina e mercantil impcitos re-
presentam a rústica multidão que no samsara se ocupa exclusivamente das efemérides e dos
negócios do corpo (i. e., o beber, o dormir e o comer), curtindo uma existência pecaminosa, já
que ainda se a aceita conspurcada pela ilusões e pela sensação da ausência aparente de Deus.
O iluminado, por seu turno, carrega uma cabaça”, a qual simboliza, num primeiro momento,
que ele conquistou a plenitude do Vazio. Todavia, a esse respeito, cumpre refletir também,
com Philip Kapleau, que
437
Na antiga China usavam-se cabaças como garrafas de vinho. O que, portanto,
se subentende aqui é que o homem de mais elevada espiritualidade não é avesso a be-
ber com os que apreciam o álcool, a fim de ajudá-los a dominar suas ilusões. Vemos
aqui uma diferença fundamental entre a ênfase dada pela tradição Hinayana e pela
tradição Mahayana ao papel do homem espiritualmente realizado. Na Hinayana o
mais elevado tipo espiritual, o monge celibatário, está separado do laicato. Ideal-
mente, deve ser como um santo, um modelo de virtude, se vai preencher o papel con-
cebido para ele pela comunidade. Se se soubesse, por exemplo, que ele saboreou uma
bebida alclica, isso seria considerado como o sinal mais certo de uma vida de im-
pureza, prova de que sua espiritualidade ainda não era totalmente perfeita. No bu-
dismo Mahayana, pelo contrário, o homem de profunda iluminação (que pode ser e
freqüentemente é um leigo) não emana perfumede iluminação, nem aura de san-
tidade. Se o fizesse, sua realização espiritual seria considerada ainda deficiente.
Nem tampouco ele se mantém afastado dos pecados do mundo. Mergulha neles en-
quanto necessário para liberar os homens de suas loucuras, mas sem que ele próprio
fique manchado por eles. Assemelha-se nisso ao lótus, símbolo budista de pureza e
perfeição que cresce na lama mas não é maculado por ela.
786
Não é por outra razão que, na estampa zen de mero dez, posto que “Enlame-
ado e empoeirado, o mestre “sorri mostrando os dentes” como brancas pétalas de “lótus.
Bem assim, é de se mencionar ser recorrente, no taoísmo, a figura dos santos beberrõespe-
rambulando de aldeia em aldeia e assentando-se à mesa dos ébrios, aos quais instilam a sabe-
doria em meio à aguardente. Por igual, no cristianismo Jesus se configurou como um Messias
cuja jornada era feita entre os pescadores pobres, as prostitutas, os cobradores de impostos e
párias de uma maneira geral, tendo Ele sido bastante expcito ao declarar certa vez a real ori-
entação de Seu ministério:
Então, lhe ofereceu Levi um grande banquete em sua casa; e numerosos pu-
blicanos e outros estavam com eles à mesa.
Os fariseus e seus escribas murmuravam contra os discípulos de Jesus, per-
guntando: Por que comeis e bebeis com os publicanos e pecadores?
Respondeu-lhes Jesus: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes.
Não vim chamar justos, e sim pecadores, ao arrependimento.
787
Por causa dessa opção, o próprio Jesus chegou a suportar enxovalhos que lhe
foram impingidos pelos fariseus, o que é atestado pelos Evangelhos:
786
KAPLEAU, 197, 324, nota 16. Compete aqui um esclarecimento: Hinayana”, em sânscrito, quer dizer Pe-
queno Veículo(de Salvação), concepção estritamente individualista que, baseada em exclusivo no esforço pes-
soal do
arhat
(o santo que se eleva sozinho e só a si), nega que para a Liberação da alma e a obtenção do Nirvana
seja pertinente qualquer auxílio divino ou mesmo humano ao místico; essa doutrina, arrimo da Escola Theravada
ou dos Maiores, é a mais antiga das duas divisões do budismo. Já no que toca a Mahayana”, a outra grande
vertente, no idioma original significa Grande Veículo: partindo do ideal anagógico do
Hinayana
, a doutrina
posterior acresce-lhe o conceito mais amplo e altruísta de que cabe ao iluminado (neste caso chamado de
bodhi-
sattva
, o espírito generoso que habita este mundo para o bem dos seres humanos) renunciar, por compaixão, ao
Nirvana que conquistou e continuar trabalhando na terra pela Liberação de toda a humanidade das amarras do
sofrimento; é sob tal óptica que claramente se abriga o teor da décima gravura do conjunto pictórico do Apas-
centar da Vaca”.
787
Lc
5.29-32. V. tb.
Mt
9.10-13 e
Mc
2-15.17.
438
Pois veio João, que não comia nem bebia, e dizem: Tem demônio!
Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: Eis aí um glutão e bebe-
dor de vinho, amigo de publicanos e pecadores! Mas a sabedoria é justificada por su-
as obras.
788
Acrescente-se que o primeiro milagre público de Jesus teve lugar numa regada
festa de pcias em Caná, quando, a instâncias de Sua mãe, transformou Ele a água em vinho,
para satisfação dos comensais (
João
2.1-12). Ressalvada a mais insigne natureza transcen-
dente do símbolo, a ocasião e o ato em si também são relevantes, pois o Salvador teria assim
preferido Se revelar não numa cena fulgente e retumbante, mas no seio morno do próprio co-
tidiano dos homens.
Voltando ao quadro budista, tem validade ainda levar em consideração que, de
um ângulo psicanalítico, ele “representa a culminação do processo de individuação, confor-
me preleciona Marie-Louise von Franz. A autora complementa o seu comentário sobre a dé-
cima gravura zen citando o filósofo contemporâneo japonês Teitaro Suzuki, em trecho que
também nos é útil transcrever:
E agora, tendo atravessado o estágio do Vazio, e tendo também visto Deus no
mundo da natureza, o indivíduo pode contemplar Deus no mundo dos homens. Mistu-
rando-se o iluminado na praça do mercado com os bebedores de vinho e os maga-
refes(publicanos e pecadores), ele reconhece a luz interiorde Buda-natureza
em cada um. Ele não precisa manter-se distante, nem ser acabrunhado por um senti-
mento de dever ou de responsabilidade, nem seguir um conjunto de padrões de outros
homens virtuosos, nem imitar o passado. Ele está em tanta harmonia com a vida que
se contenta em passar despercebido, em ser um instrumento, não um líder. Ele faz
simplesmente o que lhe parece natural. Mas, embora na praça do mercado ele para
ser um homem comum, algo acontece às pessoas com as quais se mistura. Também
elas se tornam parte da harmonia do universo.
789
Sem embargo, o que de qualquer forma mais nos importa colher de tudo quanto
foi dito até agora a propósito da última das telas da série do Pastoreio espiritual do Boi” é
que, nos dois carmes concludentes de
Magma
, a situação do iniciado cuja experimentação vi-
mos acompanhando acaba por se demonstrar bastante semelhante à do
bodhisattva
que decide
adentrar a “praça do mercado, mantendo-se no ruidoso plano material mesmo que já tenha
atingido a paz da própria iluminação. Como há pouco frisado, a permanência do homem des-
perto no mundo das ilusões o põe “
Enlameado
e
empoeirado
, sem no entanto lograr deslus-
trá-lo, tal qual uma flor de lótus imaculadamente desabrochada num charco. Observe-se, pois,
que a
lama
(cuja carga simlica é de algum modo reforçada pela
poeira
), apesar de se poder
788
Mt
11.18-19. V. tb.
Lc
7.33-35.
789
Suzuki,
apud
FRANZ, 177, 140.
439
apresentar como a terra vivificada pela água, é outrossim comumente interpretada no rumo
oposto, como sendo “a água poluída pela terra”, e significando destarte a aparente degradação
da “pureza originaldo espírito em presença da matéria:
Daí prom o fato de que a lama ou o lodo, através de um simbolismo ético, passe a
ser identificada com a escória da sociedade (e com seu meio ambiente), com a ralé,
ou seja, com os níveis inferiores do ser: uma água contaminada, corrompida.
790
O signo já era assim considerado por Plotino (Enéadas, I, 6, 5, em fragmento
anteriormente citado):
É como se um homem mergulhado na lama de um lodaçal não pudesse mais
mostrar a beleza que possuísse, e como se nós não víssemos nele senão a lama que o
cobre; a fealdade apareceu nele pela junção de um elemento estranho, e se ele tiver
de voltar a ser belo deverá dar-se ao trabalho de se lavar e limpar para ser o que era
anteriormente.
Todavia, a todo tempo ressalte-se, por ser um elemento crucial, que o indivíduo
desperto, desde que adquiriu a visão pura da essência das coisas, passa a possuir para sempre
intocada em seu íntimo a mais irrefutável e infavel capacidade de voltar a viver na imunda
lama do lodaçal, se assim o desejar, sem que com isso a sua alma lapidada se deixe contagi-
ar outra vez pelos vis aspectos iludentes da existência bruta. Logo, ainda que o corpo reavi-
do
791
passeie em meio à rude balbúrdia da “praça do mercado, o espírito cultiva tão-somente
a limpidez do silêncio. Aliás, mesmo em Magma, no primeiro terço, essa noção parece ter
sido levantada por Guimarães Rosa, eis que houve a aparição do signo do Caranguejomis-
tagogo, o qual, conquanto portasse na ocasião o seu “escudo lamacento/ de velho hoplita” e
tivesse sido descrito como sujo” e até “desconforme”, nada obstante foi reputado como um
“crustáceo nobre”, alçado ao mais alto nível dos seres evoluídos, tais como o filósofo” e “o
asceta, e mesmo comparado de maneira imperativa a um atarracado Buda roxo/ ou um ídolo
790
CHEVALIER e GHEERBRANT, 160, 534. Grifei.
791
Sobre a noção de corpo reavido, minucio com FRANZ (177, 203; grifo da autora), que comenta: O alqui-
mista Gerhard Dorn diz que a anima está presa dentro do corpo do homem e que este, com esforço mental, tem
que pes-la e puxá-la para fora; mas, feito isso, o corpo morre. Essa é a maneira como Dorn descreve o proces-
so. Diz ele que isso é como se um monge se retirasse do mundo, se entregasse à meditação e extraísse a anima de
seu corpo através do ascetismo; mas depois, sublinha Dorn, se o monge prosseguir com isso, estará simples-
mente morto. Se rejeitarmos o corpo, não poderemos viver, de modo que então teremos de reaver o corpo.// (...)
Dorn diz que não quer parar por aí, pois o que acontecerá ao pobre corpo? Afirma ele que então surgirá um terrí-
vel perigo, pois o corpo também tem que ser redimido; mas, se a mente e a alma avançarem nem que seja um
pouco, na direção do corpo, ambas cairão nele verticalmente; é como um ímã de ferro e então todo o trabalho
estará perdido.// Portanto, ele deve ser abordado com sabedoria, e Dorn propõe que isso se faça mediante um ato
químico de imaginação: em vez de jogar bruscamente a alma de volta para dentro do corpo, também o corpo terá
que ser alçado a um nível mais elevado, e então os dois, corpo e alma, se unem mas não no antigo estado.É este
o mesmo Corpo Glorioso da tradição crística, conceito erigido em torno de certos lances das aparições de Jesus
as a Ressurreição; v. Mt 28.1-10, Mc16, Lc 28 e Jo 20-21.
440
asteca: ora, tem-se aí, irretocavelmente, uma imagem do iluminado em meio ao barro, pres-
tando auxílio e “bençãos, na função de “Câncer meu padrinho, ao afilhado que ainda estava
nel mezzo del camin.
E tendo ido avante em sua vereda, o poeta mineiro que reza o rosário chegou
ao passo atual de Magma. Então, já tendo sido devidamente purificado pelo recente derrama-
mento da “Chuva”, no momento mesmo em que contempla a abertura para a stica “Integra-
çãodo seu ser com a “terra inteira” e o Universo, ele inicia este poema com as seguintes pa-
lavras:
Deitado no chão, fofo de tantas chuvas,
onde o meu corpo calca os seus contornos...
E mais à frente declara:
Mas meus dedos afundam no solo amolecido,
como garras de raízes nuas...
Desce-me ao fundo do peito a terra inteira,
no cheiro molhado da poeira...
Parece restar bastante cristalina a escolha feita pelo iniciado, que agora conhe-
ce a epifania, em prol da sua manutenção no mundo terrestre, eis que o seu “corpo calca os
(...) contornosna lama do chão, fofo de tantas chuvas. A bem dizer, foi exatamente a
mesma “Chuva”, que lavou o iluminado das impurezas que lhe afligiam a alma, o que lhe en-
sejou, ao encharcar o solo, a retomada ou a continuidade do contato do “corpo” com a lodosa
corrupção da matéria. E, por outro lado, o fundamento para essa eleição de permanência é
igualmente fácil de vislumbrar: os dedosdo iniciado “afundam no solo amolecido,/ como
garras de raízes, colocação que evidencia o propósito de utilizar as mãos serviçais(con-
forme os termos do décimo quadro zen) com o intuito de contribuir para que futuros neófitos
possam por sua vez obter tanto o crescer rampante das trepadeiras bravas” como os verdes
que “sobem... e tudo com a esperança de que no porvir brotem flores e quiçá rosas – nou-
tros vasos vazios(de acordo com a terminologia de “Paraíso filosófico).
Entretanto, mister precatar novamente, agora com apoio no texto de “Integra-
ção, que, se o corpodo iluminado calca os seus contornosno sujo lamaçal do chão,
seus olhos” ainda e sempre “sobem, tateando os verdes, em dirão do
(...) u,
limpo, azul e côncavo, na altura...
441
Isto é: o ser que se assenhoreou da gnose adquire também a confiança e certeza
de que a alma imune não mais será de modo algum aviltada pelo convívio com a torpeza do
mundo material, uma vez que a alcançada comunhão com o mundo celeste é de todo irrefra-
gável, indelével e invulnerável. É bem por isso, exatamente, que o “corpopode repousar sem
cuidado ou temor, Deitado no chão. Tal sentido de conquista da tranqüilidade no trato com
a ambiência da matéria resulta bem explorado em várias passagens da peça “Consciência
cósmica”, em especial nesta, a qual sem dúvida dialoga com os primeiros versos de “Integra-
ção:
Já não tenho medo de escalar os cimos
(...)
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...
Com a deixa, finalmente é tempo de nos aplicarmos a essa composição que
serve de fecho a Magma. Convém transcrevê-la por completo:
1
Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
5
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...
Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem de deixar escorrer a força dos meus músculos,
10
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...
Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir, se me restasse o riso,
das tormentas que pouparam as furnas da minha alma,
15
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...
Antes de mais, tem pertinência salientar que se o poema precedente, Integra-
ção, parece ter privilegiado sobretudo o aspecto de consubstanciação do ser do iniciado com
a Natureza física (“a terra inteira”), através da contemplação stica, já o próprio título
Consciência cósmicademonstra se referir a uma outra espécie bem mais sutil de união espi-
ritual com o Cosmos (que é o que está para lá da Natureza), algo como o nous poiétikos aqui-
niano
792
. Mas nesse entendimento, sob a perspectiva novel da iluminação, physis e psykhe não
devem ser de maneira alguma encaradas como realidades antagônicas, e sim dialéticas, pois
792
Remeto aos comentários que foram traçados por ocasião das págs. 182-183 desta pesquisa (Introdução ao Ca-
pítulo III).
442
que o iluminado, ao participar da inteira essência anímica do Manifestante, forçosamente há
que participar, em simultaneidade, também do escoamento da mesma essência por entre os
canais materiais do manifestado. De forma que, sem contradita, a “Integraçãopressupõe a
Consciência cósmica” e vice-versa. É permitido, destarte, trazer à luz outra vez o teor dos
versos do carme vestibular de Magma: por meio da Integração, o poeta mais os verdes
e sente a sua comunhão com Deus, ao passo que por meio da “Consciência cósmica” ele mais
a conhece e não a desmente. As duas peças são faces indissociáveis de uma única moeda de
valor anagógico e portanto refletem o seguimento de uma mesma classe de liga entre a cara
do ser humano e a coroa do Uno divino: valendo-nos da competente nomenclatura plotiniana
(Enéadas VI, 9, 11), em ambas as composições trata-se de áphe (contato) concomitante a
epharmóge (fusão).
Outro tema a se destacar acerca de “Consciência cósmicadiz respeito às re-
missões a textos antecedentes, com o que inda uma derradeira vez se comprova a assertiva de
amarração teleológica de todo o discurso do livro de estréia de Guimarães Rosa. Anote-se, por
primeiro, que certos versos do poema em pauta aparentemente pretendem reevocar o começo
de tudo nas Águas da serra:
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...
Já não tenho medo de escalar os cimos
(...)
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...
A menção ao centro do remoinho da grande força, ao que parece, surge efi-
caz para aludir ao Vórtice supremo donde tudo nasceu e para onde tudo retornará, ou seja, a
Fonte divinal de todas as forçasque “livres rolarama partir das Águas da serra, o que
constituiu o assunto dominante com o qual foram abertos os trabalhos mistagógicos do terço
inicial. Retomar um tema de tão capital relevância precisamente agora, no extremo oposto da
conclusão dos ofícios, corresponde a um fechamento de círculo e à conseente admissão de
total cumprimento da empresa iniciática: é certo que, atingida a meta transcendental, no pre-
sente “o centro do remoinho da grande força (.. ) flui, feroz, dentro e fora de mim, circuns-
tância que revela de maneira cristalina a convicção do iluminado de que tudo aquilo que em
aparência se apresentava como estando por fora” do seu ser, na real essência lhe percorre,
como um fio, os mais íntimos foros espirituais e assim, o Magma que “corre por dentro
443
participa de tudo o que representava estar por fora, pois tudo é sempre o mesmo Uno, do
qual o Universo é o avesso.
Ademais, no concerto do volume de 1936 tal Fonte foi simbolicamente locali-
zada pelo poeta nalgum sítio dos altos ... da serra”, no “escuro dos morros” e foi daí, por
“entre os dedos da montanha, que as Águas...jorraram na fluência eterna do ímpeto da
vida”,
cantando nas pedras a canção do mais adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre descendo...
Em seguida, todo o resto do desenrolar de Magma converteu-se no stico de-
sejo, alimentado pelo poeta as a queda, de volta a essa elevada Matriz original que a cada
passo se adivinhava “mais adianteda curva do caminho, árdua tarefa que necessariamente
perseguiu, desde o lodoinferior, uma orientação ascendente e circular e que o tempo todo
se viu transpassada pelos espectros da dúvida, do Pavore da “Angústia”, os quais, como
pedras, juncavam a estrada. Sem embargo, logo que alcançado nas estâncias de “Consciên-
cia cósmicao êxito do término da jornada, resulta bastante congruente que não mais haja,
por parte do iniciado, sequer um mínimo resquício de “medo de escalar os cimosque condu-
ziram à Fonte nem de se “deitar novamente, por altruísmo apostólico, na lamaonde outro-
ra se vivera a verdade do sempre descendo.
Cuide-se outrossim que, conforme as afirmativas de “Consciência cósmica”, os
motores propiciadores da chegada do poeta ao centro do remoinho(os quais irresistivel-
mente o “arrastaram” até aí) não foram outros senão “as vagas do sofrimento. Pois essas for-
ças centrípetas agiram por incutir no ser humano a ânsia devota pela quietude que inere à di-
vindade, além de terem funcionado como os instrumentos hábeis para se efetivar a total puri-
ficação do espírito. Decerto que tais vagas querem simbolizar, no geral, todos os reveses que
fazem parte das vidas de quaisquer pessoas, mas também, de uma forma mais específica, refe-
rem-se elas aos acidentados lances que foram compondo o trajeto iniciático de Magma. Por
outro lado, vale rememorar que já na peça “Regresso” a exata palavra “sofrimentoserviu
para sintetizar, com o mesmo sentido de seu uso atual em Consciência cósmica”, o atribulado
desse trajeto, bem como a funcionalidade stica das provões como meios empregados para
se poder reatar (ou refazer) o contato entre a criatura e o Criador:
Oh!... que bom, uma palavra basta
para refazer o meu idioma:
444
Sofrimento
...
Sofrimento
...
793
Prosseguindo, é de se recordar ainda a conexão de “Consciência cósmica” com
o carme Iniciação, em cujas estrofes foi predito:
Sumirão as espadas suspensas de fios,
sumirá a mão que escreve nas paredes
do festim velho...
Quando do exame de Iniciação, argumentou-se que tais “espadas suspensas
de fiosreportar-se-iam ao episódio moral da espada de Dâmocles, enquanto que a mão que
escreve nas paredes” consistiria numa avocação da narrativa bíblica contida em
Daniel
, 5
794
.
A primeira dessas estórias é freqüentemente invocada para ilustrar a concepção agstica de
um Destino incerto e indiferente que pende sobre a cabeça dos indivíduos, ameaçando abatê-
los ao acaso e a qualquer momento, tal qual uma lâmina morfera segura apenas por uma frá-
gil linha. Já a segunda reflete a noção, comum entre os profanos (mesmo os que ingressam
nas fileiras de grêmios religiosos, mas que não cultivam o misticismo) de um Deus judicioso e
autoritário que prodigaliza castigos severos aos que de algum modo O desagradam ou não se-
guem as regras de conduta por Ele impostas. Em suma, uma e outra narração denotam o con-
ceito de uma humanidade solitária e indefesa, à merde poderes sobrenaturais inclementes,
tal como o vento frioda “Potência má” mencionada em Medo da felicidade” (o quinto dos
Poemasdo terço inicial de
Magma
). O prenúncio de desaparição das idéias representadas
por essas cenas quis significar que, no instante em que o stico alçasse a alma à plena gnose,
adquirindo a sabedoria de que a divindade habita em cada um dos elementos integrantes do
Universo, ele então abraria a certeza inabalável de que tudo está enredado nos cordéis do
Amor divino e que, em conseência, todos os padecimentos que atormentam o ser humano
não são gratuitos nem meras sanções cuja serventia é a de aplacar uma eventual cólera celeste:
antes, mesmo as desditas acabam se constituindo em degraus que a própria imperfeição da
vileza humana exige galgar a fim de que se possa transportar à perfeição do Altíssimo
795
.
Ora, tal instante de elevação, profetizado na justa oportunidade em que princi-
piava em
Magma
a aprendizagem esotérica do segundo terço, concretiza-se precisamente
793
V. atrás as págs. 374-375 (tópico 3 deste Capítulo).
794
Para mais detalhes acerca desses assuntos, remeto aos comentários que foram tecidos às págs. 190-191 (Ca-
pítulo II, tópico 1).
795
Porque, quem-sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os ho-
mens é mandando por intermédio do diá? Ou que Deus – quando o projeto que êle começa é para muito adiante,
a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro?(ROSA, 10, 103). E
O mal está apenas guardando lugar para o bem. O mundo supura é só a olhos impuros.(
id
., 12, 165).
445
quando da tomada da “Consciência cósmica, a qual encerra agora o desfiar do rosário poéti-
co. Portanto, nesta composição se confirma que
Os
dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E de fato largaram, tanto que agora, sem nenhum receio,
Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a
dança das espadas
de todos os momentos.
Os dedos longosque inspiraram medo, mas que doravante não mais em-
polgam os pensamentos do poeta, podem por certo ser associados aos atemorizantes dedos
que estavam escrevendona “parede do paláciono livro do Antigo Testamento (
Daniel
5.5-
6), conforme a leitura feita a partir de “Iniciação. Do mesmo jeito, a perigosa “dança das es-
padas, que hoje já não é causa de cuidado, parece corresponder até mesmo a uma intensifica-
ção do sentido de risco explorado pelo conto da espada de Dâmocles e, neste caso, tanto
mais intensa se faz também a serenidade com que o iniciado passa a enfrentar o movimento
balouçante das lâminas do inevitável.
Enfim, cabe mencionar que o verso inicial (Já não preciso de
rir
.) e o ante-
peltimo (E deveria
rir
, se me restasse o
riso
,) de “Consciência cósmicaparecem trazer à
memória determinadas passagens dos precedentes Bibliocausto” e Gargalhada”. No primei-
ro destes poemas, a dada altura ponderou-se:
E só ficará comigo
o
riso
rubro das chamas, alumiando o preto
das estantes vazias.
E no segundo:
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me
ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas...
Faz-se possível detectar, em ambas as composições, que o risoderivou de
uma causa perfeitamente compreensível e foi, portanto, justifivel diante das oportunas cir-
cunstâncias em jogo. Em Bibliocausto, o gesto correspondeu a uma manifestação de con-
tentamento do noviço, motivada pelo abandono das paragens ctônicas e pelo avizinhamento
do êxtase espiritual que teria lugar no carme subseente, Amanhecer; e note-se, adrede,
446
que a luz do riso rubro das chamas, sobrepondo-se ao preto/ das estantes vazias, apontou
como um tipo de derradeiro ensaio ou mesmo de amostra do que seria o gáudio solar do mais
amplo Amanhecer, a eclodir para afastar a tristeza prevalecente durante “A noite escura
mistagógica. Já no que toca a “Gargalhada, o que houve foi uma espécie de derrisão patética
e nervosa, qual um andoto, ou melhor dizendo, qual um paliativo contra o desespero causado
pela frustração sentimental do poeta, que naquela ocasião não se sentia amado por sua musa.
Porém, no presente, diante do esplendor da iluminação, a decepção do desamor e o medo de
amar sem retribuição já não assombram o renascido, o qual, por outro lado, também transcen-
deu até mesmo as raias da alegria, eis que o despertar do espírito eleva o ser ao inefável
epékeina (o para lá de” todas as coisas), segundo o termo de Plotino, ou – para citar livre-
mente num contexto stico o fraseado do próprio Nietzsche a epifania coloca o homem
jenseits von Gut und Bösel (além do Bem e do Mal). E daí, em consonância com os versos de
Consciência cósmica”, a atual desnecessidade e descabimento do pálido risohumano, lo-
gicamente intermitente e finito, em face do absoluto do Infinito.
Mister, no entanto, prevenir não ser o riso de forma alguma uma prática inter-
dita ao homem compromissado com a Eternidade, malgrado a circunstância de que a sisudez
mal-humorada tenha sido e venha sendo fanaticamente acalentada, como se fosse uma exi-
gência da santidade, por diversos círculos religiosos ao longo da História, sobretudo na Idade
Média do Ocidente monacal, quando em muitos lugares se chegou ao ponto de considerar a
risada um pecado. Longe disso, venha à lembrança o Buda folgazão da décima das Estampas
zen de condução da boiada, retratado no ato em que “sorri mostrando os dentes, na sua vi-
vência apostólica entre os simples. Com essa imagem, leve-se em conta que, na roda dos pro-
fanos a serem doutrinados, o renascido realmente ri, para assim poder prestar um convincente
testemunho da própria bem-aventurança, ao passo que quando está só e em meditação, imerso
na paz da “Consciência cósmica, não tem ele qualquer precisão de convencer a si mesmo da
preexcelência de seu íntimo regozijo. Por conseguinte, a idéia que neste momento se quer en-
carecer, na esteira da peça rosiana, é a de que a felicidade da iluminação epifânica é tanta e de
um tão sublime quilate que inda o conceito corriqueiro de júbilo humano, o qual é geralmente
atrelado ao entusiasmo do riso, revela-se demasiado pobre e insuficiente para expressá-la.
Quase ao término de tudo, é válido comentar que o pensamento extraído dos
versos de “Consciência cósmica” aparenta coadunar-se, em diversos aspectos, com o conceito
filosófico de ataraxia, conforme a sua versão constante da doutrina de Zenão de Cítio (o qual
foi mencionado brevissimamente a propósito de “Pudor estóico, terceiro dos Poemasdo
447
segundo terço de Magma
796
). Ora, a ataraxia, no estoicismo, consiste na mais perfeita quietude
da alma, suprema virtude a ser perseguida pelo sábio mediante a experiência e que é atingida
quando tanto o sentimento da dor como o do prazer são dominados e suprimidos pelo esforço
pessoal. Nesse concerto, verifique-se que o carme guimarrosiano efetivamente denota a elimi-
nação do riso(Já não preciso de rir.) tanto quanto a do medo(Já não tenho medo...),
num calmo equilíbrio que se obteve graças ao diligente empenho do poeta ao longo da expe-
rimentação iniciática. Nada obstante, um dado capital determina a distinção entre as idéias do
escritor mineiro e as do velho filósofo grego: para este, a ataraxia parece se exaurir numa
postura ética que diz mais respeito à vida psicofisiológica e natural do indivíduo no mundo,
enquanto que para Guimarães Rosa a perficiente serenidade do espírito só poderia correspon-
der ao produto eminentemente metafísico de um comportamento religioso tendente à anago-
gia; por outras palavras, para Zenão o que importa, como última meta, é o aproveitamento
ótimo e sem sobressaltos da existência temporal, enquanto que para Guimarães Rosa o sosse-
gado desprendimento perante as efemeridades da existência constitui somente um reflexo de
uma conquista bem maior, que é a da perpetuidade da essência atemporal.
Enfim, é hora de arrematar o assunto a respeito desse derradeiro poema de
Magma. Para tanto, faz-se pertinente frisar, num enlace de tudo quanto se discutiu, que o dom
superno da “Consciência cósmica”, alcançado pelo poeta que demoradamente rezou o rosário,
apresenta como um dos seus principais atributos a indiferença do iluminado diante
das tormentas que pouparam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...
Tais versos são exatamente o fecho do ciclo iniciático e do livro de 1936, im-
portando que contemplam ao mesmo tempo o lado físico e o metafísico da situação: minha
alma” atingiu a ascese, estando em conseência imune a quaisquer tormentas, e, desde que
ela se encontra a salvo, semelhantemente o meu corpo, que permanece “na lama” para o
apostolado, já não se preocupa com quaisquer possíveis desastres. Significa, então, que o
ser desperto não possui temor algum, quer defronte das vicissitudes da vida (“escalar os ci-
mos), quer das ameaças da morte (deixar escorrer a força dos meus músculos). E a causa
desse destemor reside justamente no sentimento e na certeza de harmonia ensejados pela
796
Cf. a pág. 197 (Capítulo III, tópico 2). Aproveito o espo para referir que a noção de ataraxia também faz
parte dos ensinamentos do epicurismo. Epicuro (341-270 a. C.) foi, aliás, contemporâneo de Zenão. Porém, no
idrio epicurista (referindo-me à verdadeira moral desse filósofo, e não àquela moral sensualista que lhe foi fal-
samente atribuída por detratores), a ataraxia é dotada de um sentido materialista bastante forte, com o que se abre
uma distância bem maior entre essa corrente filosófica em particular e as concepções de índole mística de Gui-
marães Rosa.
448
Consciência cósmica”, através da qual se conhece que a vida e a morte não são mais do que
tênues ilusões destinadas a se dissipar. A única Verdade do Universo é a consubstanciação es-
sencial entre o que está por dentro” e o que está por fora de mim, de modo que todas as
coisas são uma coisa só, fundidas no centro do remoinho da grande força.
Com tudo isso, pode-se afirmar, a respeito do iluminado que ainda caminha por
sobre a terra, que ele está no mundo sem de fato estar no mundo: mesmo que deitado na
lama” inferior e interagindo com os outros homens, o renascido sempre tem, nas palavras do
poeta, o pensamento opiadopela mais alta contemplação do Absoluto. Assim é que Guima-
rães Rosa asseverou, alhures:
Rezo, escrevo, amo, cumpro, suporto, vivo – mas só me interessando pela
eternidade. (...) Quando faço arte, é para que se transforme algo em mim, para que o
espírito cresça; e desejando ser um sonâmbulo de Deus.
797
E
As aventuras o têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são
aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevo, descubro sempre um novo
pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta.
798
Ora, o iluminado sabe deveras que as tormentase os desastresdo mo-
mentonão contam, eis que, ainda que algumas delas por vezes atinjam o seu “alvo, ao final
jamais detêm o poder de impedir qualquer viajante de chegar ao termo do itinerarium, que es-
pera por todos: e este é Deus, a mesma “eternidade” e o mesmo infinito” em Que a jornada
comou. E, dominando essa sabedoria, ao correr da conta conclusiva do rosário o renascido
não se sente recompensado, salvo ou de qualquer outra maneira justificado, mas apenas tran-
ilo, pois ele é simplesmente um homem que conseguiu vislumbrar a sua real natureza ima-
nente: é um homem que sabe que é Deus. E foi o mergulho e o derretimento do chumbo hu-
mano no fogo áurico do Magma que lhe ensinou isso.
797
Guimarães Rosa, em carta datada de 27 de agosto de 1963” e endereçada ao escritor moçambicano Joaquim
de Montezuma de Carvalho (apud ROSA, 79, 344). Os dois primeiros grifos são do autor, o terceiro é meu.
798
Guimarães Rosa no Diálogo” com LORENZ, 58, 72. Grifei.
449
CONCLUSÃO
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão assinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
FERNANDO PESSOA
Conta tu mesmo o resto da história:
do teu oceano derivam as pérolas de sentido
que eu enfiei, uma a uma, no colar da minha fala.
RUMI
A pedra que os construtores rejeitaram,
essa veio a ser a principal pedra, angular;
isto procede do SENHOR
e é maravilhoso aos nossos olhos.
SALMO
118.22-23
O objetivo proposto para o desempenho do presente trabalho foi o de levar a
efeito uma leitura criteriosa de
Magma
, volume de poemas escrito por João Guimarães Rosa
em 1936, através da qual fosse possível comprovar a ocorrência de elementos textuais que
permitissem legitimar a inserção ideológica dessa obra no quadro do projeto estético e stico
perseguido pelo autor mineiro no inteiro decurso da sua carreira literária. Para a consecução
de tal propósito, fez-se de todo necessária a adoção de um procedimento investigativo que se
subtraísse ao pensamento até agora imperante em meio a algumas críticas mais precipitadas,
as quais unanimemente – ou quase têm visto nesse livro a silhueta de uma simples “coletâ-
nea” desarticulada de composições coladas a esmo. Destarte, na contramão dessa idéia mais
comum, a diretriz que logo se estabeleceu para este estudo (aliás, surgida espontaneamente
desde um primeiro exame apriorístico) foi a de que em
Magma
parecia se configurar o dese-
nho inequívoco de uma estrutura complexa bastante coesa, formada por peças ajustadas em
harmônica interdependência e que representavam se mover com segurança em torno de um
mesmo eixo finastico, a saber: a preocupação anagógica, que sempre se revelou o verdadeiro
âmago da literatura rosiana. É conveniente sublinhar que, seguindo os moldes do universo
simbológico imposto pelo discurso poético do jovem Guimarães Rosa, também cedo e de
modo irresisvel acabou se definindo para esse desenho uma conformação pica da conjuntu-
ra de uma solenidade iniciática. E, de fato, durante a progressão das pesquisas naturalmente
veio à tona um sem-mero de fatores que, desde o cerne de cada carme analisado,
passo a
450
passo se apresentavam para corroborar todas as assertivas iniciais. Quanto a estas, ao término
de tudo e salvo melhor juízo, aparentam ter granjeado confirmação além da saciedade.
Vale salientar que, uma vez tendo sido feita no início dos trabalhos a opção
pelo investimento no estudo da simbologia em Magma, em conseqüência outras preocupa-
ções, de ordem estilística, somente vieram à tona quando e na medida que se revelaram mais
diretamente úteis à abordagem investigativa eleita. Isso de maneira alguma quis implicar em
qualquer desatenção ou menosprezo com relação às análises do tipo estilístico – hoje em dia
tão à la mode –, as quais por si mesmas justificariam com legitimidade a feitura de uma outra
pesquisa. Tratou-se, por conseguinte, apenas de uma questão de necessária delimitação de
campo e de livre escolha metodológica.
Por agora, acode como uma boa providência a realização de uma breve retros-
pectiva, abrangendo em poucas frases todo o desenrolar das tarefas mistagógicas componen-
tes desse itinerarium mentis ad Deum estendido ao longo das páginas de Magma.
Recorde-se, portanto, que a versão conhecida mais antiga do livro, a qual ser-
viu de corpus a este trabalho, é iniciada por um hexástico cujo verso de abrimento é “O poeta
reza o rosário. Apesar de sua concisão, esse texto forneceu, examinado a lupa, preciosos in-
dicativos acerca da arquitetura sobre a qual Magma se ergueria e da orientão religiosa a ser
seguida pelos demais poemas do volume. Em síntese, na atmosfera dos versos da composição
vestibular foram detectados dados simlicos aptos para levantar a expectativa de que a obra
poemática assim inaugurada haveria de se desdobrar por terços, tal qual um rosário” cristão
rezado pelo poeta”, sendo que cada um desses terços corresponderia a um grupo de poemas
por sua vez capazes de simbolizar os lances de uma determinada etapa iniciática. Anote-se en
passant que o carme inaugural pode, nesse concerto, ser interpretado até mesmo como o cru-
cifixo de tal rosário poético, ou seja, uma peça que não é propriamente rezada como o são as
contas, mas que integra a sarta como lembrança onipresente da crucificação de Cristo e, por
via de conseqüência, da intenção sacrificial que deve presidir à oração, esta vista como um
procedimento mágico capaz de operar a elevação do ânimo do crente até Deus. De qualquer
forma, a meta precípua de tudo seria o desvendamento da alma, a ser descoberta, ao final,
oculta “por dentrodo ser do rezador, qual fosse um fioque o interliga essencial e indisso-
luvelmente à divina Alma Mater que é a matriz de todos os seres. Por conseguinte, a sabedoria
a ser buscada mediante a prece seria a de que o espírito do ser humano, embora não possa ser
visto ou sentido pelos rudimentares órgãos perceptivos do corpo físico, também não pode
continuar a ser desmentido para sempre, urgindo encontrá-lo com o instrumento da fé.
451
Em seguida, teve lugar o exame dos poemas componentes do terço inicial do
rosário rosiano. Em função de suas características temáticas, bem como por causa da ordena-
ção dada aos mesmos pelo autor, puderam eles ser divididos em quatro séries. A primeira de-
las continha apenas duas peças Águas da serra” e A Iara–, as quais se ocuparam, por
intermédio do símbolo da água, do tema do Nascimento do ser para o mundo, acontecimento
que implicou necessariamente no afastamento e aparente dissociação da alma humana em re-
lação à Alma Parens donde proveio. Depois, o segundo grupo de carmes – dentre os quais me-
recem ser destacados Ritmos selvagens” e o haicai Turbulência” (este tendo introduzido o
signo do vento) enfocou sobretudo o aspecto do livre-arbítrio de que o neonato é dotado a
fim de realizar a contento a sua experiência vital: pois é entre os efêmeros prazeres e reveses,
os alentos e cansos inerentes à existência, que a criatura deve aprender a discernir no ambi-
ente profano a via de regresso à divina origem sempiterna. Tal regresso, contudo, naquele
instante ainda se afigurava demasiado longe para o poeta que mal começara a desfiar suas
contas, e assim é que o conjunto seguinte, aglomerado em torno do símbolo do arco-íris que
desce do céu ao chão, pôs em evidência o sentido de caimento do espírito humano na matéria
(tal como a “pombaque, imolada no poema “Vermelho, deixa esvair de si uma “grande
florde sangue). Por fim, o grupo de composições que concluiu o terço de abertura de Magma
prosseguiu com esse caráter de decnio, embora aprofundando-o sobremaneira, de modo que
a faixa versicolor dos sete textos imediatamente anteriores, situada mais próxima do plano
celeste, a partir da peça “Desterrotornou-se numa linha de trem bem arraigada no solo; a
propósito, o nome desse poema, que enceta o quarto ciclo, dá a medida real da desoladora
sensação que nessa oportunidade se apodera do ser humano celígena, o qual já se vislumbra,
em plena superfície da terra, desterrado de sua verdadeira Pátria nos cimos.
Logo, nesse terço principiante do livro de Guimarães Rosa tudo parece apontar
para o rumo descendente do deslocamento do poeta que, ao seguir a guia do rosário da vida, e
tomando assim contato com as coisas vãs da matéria, inicialmente tem a impressão ilusória,
comum a todos os seres inexperientes, de que a cada passo ele vai se apartando mais e mais
do como de tudo, que é Deus. Sem embargo, em que pesem alguns momentos de tristeza
desde cedo motivados por tal separação, o que ainda predominou nesse estágio do itinerário
foi o contentamento do ser humano que experimenta a excitação da tenra existência em liber-
dade. Depõe a favor de tal idéia o vaqueiro João Nanico, significativamente um dos primei-
ros sertanejos a ter voz na literatura rosiana e que na peça “Boiada” declarou possuir, malgra-
do os sofrimentos que o alcançaram, o intento de continuar em frente com a viagem, por entre
os perigos do gado (...) bravo” e os sabores da “pinga (...) boa:
452
O gado é bravo?... A pinga é boa?...
Ai, Patrãozinho, vamos embora,
vamos embora pro Paracatu!...
É permitida, destarte, a ilação de que, tudo pesado e considerado, o saldo obti-
do foi o de que as composições do terço introdutório de
Magma
corresponderam adequada-
mente ao clima dos
mistérios da alegria
característicos do rosário católico tradicional, os
quais contemplam o maior júbilo da redentora Natividade de Jesus, o Salvador, mesmo em
meio à matança dos inocentes
799
. Outrossim, tais textos revelaram, em diversos pontos que fo-
ram discutidos no tempo apropriado, uma clara associação com o contorno exotérico dos
Pe-
quenos Mistérios
iniciáticos da Antigüidade pagã, os quais eram abertos pela comunidade
stica a quaisquer pessoas que a eles se apresentassem.
Por outro lado, a exemplo de João Nanico, também o poeta rezador demonstrou
a opção de ir avante em sua jornada, inconformado que estava com a situação de “Desterro
no mundo inferior. De sorte que, no carme intitulado Na Mantiqueira”, que arrematou o terço
de abrimento, surgiu com grande molime ascensional o signo da lua, a qual se arrancou tanto
ao torpor quido e inocente”, pico do Sono das águas(este o poema contiguamente ante-
cessor), quanto à inclinão para baixo oposta pelo trem de “Desterro.
Então, num resumo extremo, pode-se afirmar que o terço inicial de
Magma
pautou-se pela seguinte linha sígnico-cinética:
brotamento da água
,
liberdade do vento
,
des-
cida do arco-íris
e
subida da lua
.
E foi justo na esteira do impulso ascendente do símbolo lunar que o poeta se
aprestou ao desfiar do segundo terço do rosário e à fase mais grave dos
Grandes Mistérios
esotéricos, cujo princípio foi balizado pela peça “Iniciação, de tom solene, inçada de alertas e
de promessas e que assinalou deveras para o noviço a sua transição do rol dos homens profa-
nos, os quais tem ainda a precisão de se manter por mais algum tempo no plano secular, à
condição de homem místico, que decide
olhar
bem para cima” e gurnir a sua alma nos misté-
rios, até atingir a ascese no seio da divindade. No prosseguimento, as Iniciaçãoo terço
medial mostrou-se inteiramente dominado pelo simbolismo do sentimento amoroso, que atuou
como representação alegórica do desejo que o espírito humano, adotando a
persona
de aman-
te, alimenta de se unir, em
conjunctio
, à divina
Sophia
ou Sabedoria; a complexidade do de-
sejo anagógico deu margem à partição do tema em duas fases distintas: numa delas, o poeta se
viu preso no conflito particular entre a expressão do amor dedicado e o medo de não ser ama-
799
V.
Mt
2.16-18.
453
do, tendo sido bastante expoentes desse dilaceramento passional os textos Impaciência” (I
e II), Mil e uma noites, Medo da felicidade” e máxime “Distância sentimental(estes
dois últimos tendo integrado o quadro dos Poemas); e em seguida, através de carmes como
Derio, Sonho de uma tarde de inverno” e Hierograma, o sentimento amoroso acabou
desaguando num estado de embriaguez onírica que, nos ritos mistagógicos, é sempre imposta
ao neófito como um expediente para anestesiá-lo, propiciando assim sua libertação das con-
tingências mundanas e a preparação do espírito para a vinda da Morte ritual. Esta teve seu
instante na composição A terrível parábola”, que encerrou a desfiadura do segundo terço.
Ora, a dúvida e a solidão, ao atravessarem todo esse terço intermédio, e ade-
mais quando coroadas pelo sofrimento da Morte, parecem tê-lo aproximado do sentido ideal
dos mistérios dolorosos do rosário cristão, os quais se desenovelam tendo em vista a Paixão e
a Crucifixão de Cristo. Enfim, todo esse período de Magma talvez possa ser sintetizado,
acompanhando o teor afetivo dos respectivos poemas integrantes, nestas quatro etapas bási-
cas: a esperança do noviço, a distância da amada, a embriaguez do amante, a morte do corpo.
Depois de “A terrível parábola, descortinou-se o terço final de Magma, o qual
também pôde ser quadripartido. As três primeiras partes se detiveram sobre a estadia do de-
voto nas paragens do mundo post mortem. Assim, no grupo poemático com que se principiou
o terço, foram ministrados ao poeta orante ensinamentos cujo objetivo era fazê-lo entender o
significado da vida e da morte, tendo se destacado a personagem do mistagogo Araticum-
uu, presente nos quatro carmes do complexo No Araguaia”, simbolicamente ambientados
às margens desse conhecido rio do Centro-Oeste brasileiro. No segundo conjunto de poemas,
o adepto, ainda assistido por outros mistagogos, carpiu a própria morte, em textos como To-
ada da chuva” e Assombramento. O terceiro ciclo de composições foi o mais severo de todo
o continuum iniciático: deixado só, o neófito enfrentou a duras penas o Pavor” e a “Angús-
tia”, mas afinal venceu-os e renunciou a tudo quanto parecia afastá-lo da presença de Deus,
numa flâmea cena descrita na peça “Bibliocausto. Desse modo, tendo conseguido despertar a
real iluminação desde o seu íntimo, o poeta, sob as bençãos do ilapso derramado nas peças
Amanhecer, Primavera na serra” e Chuva”, adquiriu finalmente o status de iniciado ou
renascido, o que ficou demonstrado na derradeira parte do terço, celebrante da “Integração
do espírito humano na divina “Consciência cósmica.
O terceiro terço, por conseguinte, ao que parece pode ser condensado nesta
suma simlica: o aprendizado pela água, o reconhecimento da morte, a renúncia pelo fogo,
o renascimento do espírito.
454
Acrescente-se que, uma vez alcançada a elevação da alma, resgatados restam
todos os anteriores padecimentos, de forma que o terço terminante de Magma representa ter se
distinguido também pela adequação final à conformação sígnica dos mistérios gloriosos do
rosário católico, os quais dizem respeito à Ressurreição crística.
Finda a recapitulação, ainda há outros assuntos que convém sejam ressaltados.
O primeiro deles consiste no grande amplexo do leque filosófico utilizado por Guimarães
Rosa na estruturação temática de Magma. Verificou-se, verbi gratia, a oportunidade de jungir,
quando da análise de um único verso do poema “Necrópole”, tópicos tão diversos quanto a
antiga mitologia hindu (sobre o deus Vishnu) e o fabulário do século XVIII espanhol (a
propósito de Tomás de Iriarte). Doutro lado, foi tematizada aqui a censura do autor mineiro
à filosofia de Friedrich Nietzsche (Bibliocausto), ali o ritmo do Batuque” afro-brasileiro,
mais acolá os contos ancestrais das Mil e uma noitesetc... Num sentido inda mais amplo, as
composições do volume, tomadas num enlace global, sustentaram com facilidade a aborda-
gem de complexos de pensamento extremamente densos: foi possível, então, e sempre em
torno da intencionalidade anagógica, discutir as relões de Magma com os três tropos da Ca-
bala luriânica, com as três fases iniciáticas segundo os estudos antropológicos de Arnold Van
Gennep e com as Dez gravuras zen de condução espiritual da boiada”. Quaisquer dessas vi-
sões e outras mais, inclusive se alongando sobre os aspectos estilísticos são passíveis de
serem estendidas e vistas com bem mais detalhes, a ponto de poder direcionar, cada uma de
per si, pesquisas de ocupação exclusiva.
Outrossim, num primeiro momento talvez houvesse a tentação de se dizer que
nesse ponto Magma, editado pela primeira vez em 1997, teria seguido o exemplo das demais
obras da literatura rosiana madura, as quais, publicadas e conhecidas com antecipação de dé-
cadas, notória e infalivelmente enveredaram por um ecletismo erudito de proporções enciclo-
pédicas e pelo constante entrecruzamento de múltiplas linhas temáticas dentro de uma mesma
peça literária. Nada obstante, vale não se olvidar que a escritura de Magma, vinda à luz no
longínquo 1936, é de elaboração bem anterior às formulões de Sagarana (1946), Corpo de
baile (1956) e assim por diante. Por conseguinte, faz-se necessário refazer a idéia, colocando
que o empenho eclético de Magma teria sim servido de exemplo a tudo que lhe sucedeu no
conjunto da produção estética de Guimarães Rosa.
Sob tal perspectiva, tem interesse abrir um espo para mencionar que o méto-
do eclético de pensamento tão característico do escritor de Cordisburgo aparenta afiliar-se de
maneira notável à postura doutrinária estabelecida com mais nitidez pelo teólogo alemão Ni-
colau de Cusa (1401-1464) e pouco mais tarde empregada também pelos humanistas italianos
455
Marsílio Ficino (1433-1499) e em especial Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), den-
tre outros.
Foi Nicolau de Cusa, cardeal da Santa Sé e vigário-geral de Roma, extrema-
mente preocupado com o problema da tolerância religiosa, quem especificou o conceito de
coincidentia oppositorum, referente a um procedimento analítico de raízes plotinianas que
procura conciliar concepções oriundas de sistemas teosóficos aparentemente opostos. A razão
precípua invocada para justificar tal procedimento especulativo é a idéia de que Deus constitui
a verdade absoluta para onde convergem e na qual coincidem quaisquer tentativas humanas de
busca sapiencial; por outras palavras, todos os aspectos da sabedoria do homem, que é relativa
e contingente, não importa de que escola, religião ou seita pareçam proceder, acabam de qual-
quer maneira sendo absorvidos pelo absoluto da infinitude divina, a única fonte real donde to-
das as sapiências provêm.
Ao ensejo, é pertinente esclarecer, noutro parêntese bastante útil, haver a inteira
filosofia de Nicolau de Cusa sido erigida sobre a noção de docta ignorantia (por seu turno
desenvolvida a partir de predecessores como Santo Agostinho – o autor dessa expressão –,
Pseudo-Dionísio Areopagita e Lactâncio), que vem a ser o seguinte:
o intelecto humano – finito – não pode definir Deus, que é absoluto, infinito, e certa-
mente não coartável em parâmetros categoriais, mas pode percebê-lo apenas de modo
negativo, com a humilde aproximação de quem sabe que o sabe. Em tal caso, trata-
se sempre da limitada mente humana, portanto de uma ignorantia, mas docta, porque
no nível mais alto a que o homem pode chegar. (...) Finalmente, deve ser assinalado
que na Docta ignorantia se identifica o momento culminante do Itinerarium mentis ad
Deum de Bonaventura da Bagnoregio, ou seja, o êxtase.
800
É patente a nuance socrática, numa espécie de desenvolvimento da célebre má-
xima “Só sei que nada sei.
No que toca ao filósofo e cabalista cristão Marsílio Ficino, a par de haver tra-
duzido do grego o Corpus Hermeticum, as Enéadas de Plotino e as obras do verdadeiro São
Dionísio, o Areopagita, dentre outros preciosos compêndios de perquirição anagógica, foi ele
também o tradutor e principal responsável pelo resgate da filosofia platônica no período áureo
da Renascença, o que, por conseência, resultou num serviço igualmente inestimável para a
Modernidade até os nossos dias. A súmula do pensamento de Ficino, via Nicolau de Cusa, as-
senta-se na convicção de que a doutrina pagã de Platão se harmoniza perfeitamente com a
mensagem evangélica de Cristo, porque uma e outra dimanam da mesma essência do logos
800
TOSI, 274, 163.
456
divino
801
. Na verdade, para Ficino, que também era padre, tanto os escritos de Platão quanto
os de Plotino e os de Hermes Trismegisto constituem uma prisca theologia que, nos seus fun-
damentos, não diverge da pregação cristã.
Por fim, Pico della Mirandola, por seus contemporâneos cognominado dux
concordiae, realizou uma valiosíssima aplicação prática do ideal da coincidentia opposito-
rum: místico, poliglota e senhor de uma rara cultura (bem ao jeito de Guimarães Rosa), em
1486 ele submeteu aos doutores da Igreja em Roma um ambicioso conjunto de novecentas te-
ses (Conclusiones nongentae in omni genere scientiarum), através das quais pretendeu com-
por um sistema unitário que compatibilizasse ecumenicamente todas as principais correntes
doutrinárias da filosofia, da teologia e das ciências sob o denominador comum do cristianis-
mo, como um ingente esforço para valorizar o que seria o cerne do pensamento picano, a sa-
ber, o respeito à liberdade de cada ser humano na sua busca pessoal e imanente por Deus.
Com esse espírito, o humanista chegou a afirmar, surpreendentemente, que “Não há ciências
que dêem mais certeza da divindade do Cristo do que a magia e a Cabala
802
– não foi, então,
por acaso que suas teses receberam o atônito anátema do papa Inocêncio VIII, revertendo de-
pois num decreto de prisão (rapidamente relaxado) por parte do Santo Ofício. De sorte que
nesse grandioso trabalho de fundo anagógico, além de se ter demorado sobre tópicos como o
misticismo judaico, a “magia natural(ou benigna) e o hermetismo egípcio, Mirandola rese-
nhou imeros outros pontos de vista, dentre os quais se contam os de autores cristãos como
Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino, os de muçulmanos como Avicena, Avempa-
ce, Averróis e Alfarabi, os de pagãos como Plotino e outros neoplatônicos e até mesmo o de
Zoroastro. Aliás, alguns desses pensadores, em suas respectivas épocas, também intentaram
unir, posto que num nível menos abrangente que o de Mirandola, filosofias que a priori se
mostravam antagônicas: é o caso de Avempace (fins do séc. XI-1138) e de Averróis (1126-
1198), que durante a ocupação islâmica na Península Ibérica fizeram por congrar o raciocí-
nio de Aristóteles com os ditames do Corão, no que, outrossim, seguiram o exemplo mais an-
tigo de Alfarabi (870-950).
Já em tempos mais recentes, há de ser novamente mencionado Novalis (1772-
1801), o qual, sob os influxos românticos mas beneficiado pelo conceito ficiniano de prisca
801
A mesma conexão entre o sistema platônico e o cristão foi detectada por Nietzsche, conquanto sob uma pers-
pectiva valorativa diametralmente diferente. V. acerca do tema, neste estudo, a pág. 386 (Capítulo IV, tópico 3).
802
Apud ABRÃO, 83, 142. A prosito, MIRANDOLA (217, 33) foi bastante incisivo ao afirmar que, De fato,
é próprio de mentalidade tacanha prender-se a uma escola só, seja ela a Academia, seja ela o Pórtico(referindo-
se às sociedades criadas respectivamente por Platão e Aristóteles). Compare-se com o Tao (38, v. 33 e 36-39), ao
dispor que O homem correto/ (...)/ Bebe as águas da Fonte,/ E não dos canais./ Transcende estes/ E vai sempre à
origem daquela.
457
theologia, considerou em sua filosofia fragmentária que todas as religiões antecedentes, desde
as mais primitivas, teriam que ser respeitadas como estágios de progressão que foram neces-
sários a fim de amanhar o espírito da humanidade para o advento do cristianismo, este tido
como o pináculo simlico da aventura humana rumo a Deus.
Sendo encerrada neste passo a digressão, percebe-se que o ecletismo de invari-
ável conotação anagógica defendido por Guimarães Rosa desde Magma e ao longo de toda
sua obra não é uma prática isolada, porém se insere numa extensa linhagem de tradição res-
peitável. Por isso, então, entende-se que o escritor tenha certa vez lançado esta afirmação la-
pidar (a qual, apesar de não ser uma citação inédita neste estudo, é sempre pertinente nova-
mente trazer à tona):
Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Pau-
lo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff com Cristo, principal-
mente.
803
A respeito desse trecho, a pesquisadora Hygia T. C. Ferreira comenta:
Essa é a linha cintilanterosiana, espécie de profissão de fé que leva ao
magma do pensamento filosófico e espiritual de João Guimarães Rosa: 1. a diversifi-
cação e a diferença são aspectos necessários, significa que não há um único depositá-
rio da verdade; 2. estão presentes as raízes orientais e ocidentais, fontes de sabedoria
de todos os tempos; 3. o que em comum entre eles é a busca da felicidade, da eter-
nidade, do Absoluto, de Deus; 4. são caminhos abertos, que se desdobram em outros
caminhos; 5. não constituem um saber livresco; 6. suscitam questionamentos e refle-
xões, mas a transformação espiritual, o caminho do despertar, é de cada um: Guima-
rães Rosa também tem o seu.
804
Ora, o caminho do despertarde Guimarães Rosa teve justamente Magma
como seu primeiro passo
805
, a definir para o inteiro restante da viagem literária o inflexível
norte da “transformação espiritual. E não é por outro motivo que se faz tão relevante a reabi-
litação e o desvendamento do autêntico significado dessa première. Sirva-nos de prova o de-
poimento de Zama Caixeta Nascentes:
Magma veio em nosso socorro no trabalho com Sagarana. A fina poesia de 1936 foi a
grande educadora da nossa sensibilidade, permitindo-nos notar sentidos e beleza
onde até então só caçávamos os grandes temas abordados pelo autor, nem sempre en-
contráveis nos painéis paisagísticos construídos nos contos de Sagarana. Socializar
803
Em carta a BIZZARRI, 29, 58. Noutra oportunidade, o autor resumiu: Principalmente, porém, estou nesta
cintilante linha: Platão Bergson Berdiaeff Cristo.(em carta a Vicente e Dora Ferreira da Silva, apud FER-
REIRA, 47, 47).
804
Id., op. cit., pág. 39, nota 13. Grifei.
805
E o Tao (composição 64) confirma: Uma viagem de mil léguas/ Comou com o primeiro passo.Grifei.
458
nossos ganhos a partir dessa ressensibilização foi nossa intenção com o presente es-
tudo.
806
Tratemos doravante de alguns tópicos sortidos a respeito das críticas mais co-
muns e precípites que se têm dirigido à obra de estréia do escritor. Nesse concerto, importa
recordar a epígrafe concedida por Guimarães Rosa a
Tutaméia
, a qual, tendo sido extraída de
Arthur Schopenhauer, é aplivel à perfeição a qualquer outra peça da literatura guimarrosia-
na, e de modo especial a
Magma
:
Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada em
certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob luz inteiramente
outra.
807
Sem embargo, a recepção crítica ao livro de 1936, salvo raras exceções já indi-
cadas, não se tem destacado pela virtude da paciência, e muito menos tem se dado ao trabalho
de realizar uma segunda leitura dessa produção literária, preferindo acomodar-se no fácil en-
tendimento da mesma como se se cuidasse de algo icuo, incapaz de atiçar nos leitores o ar-
dor do fogo poético. Em face da inegável monumentalidade da obra construída pelo autor mi-
neiro desde
Sagarana
, tem-se mesmo negado a
Magma
o
status
de verdadeira Poesia. Estra-
nhamente e numa manifesta atitude
pré-conceitual
que ameaça até a prerrogativa de isenção
e independência da crítica, invalidando-a de todo –, a justificativa para tal recusa escora-se
muitas vezes numa hipotética autorização que teria sido dada pelo próprio Guimarães Rosa, o
qual teria renegadoseu livro de estréia.
Entretanto, vejamos que é mesmo o poeta quem tira o vento a tais alegões,
eis que afirmou, já no discurso de agradecimento ao prêmio conferido ao volume de poemas
pela Academia Brasileira de Letras:
O
Magma
, aqui dentro, reagiu,
tomou vida própria
, individualizou-se,
liber-
tou-se do meu desamor
e se fez criatura autônoma, com quem
talvez
eu já não esteja
muito de acordo, mas a quem a vossa consagração me força a
respeitar.
808
Dotado de uma “vida própria, a qual ultrapassa o tempo de vida e mesmo
qualquer vontade do autor (
Ars longa, vita brevis
...), o
Magma
ainda ferve e, longe de se
amortecer na dureza marmórea das estátuas encomiásticas, tem causado o seu quinhão de dis-
cussão e polêmica, como causaram, oportunamente, outros livros, tais como
Sagarana
e
Tu-
taméia
. Assim, mesmo que por um instante se admita,
ad argumentandum
, que Guimarães
806
NASCENTES, 91, 18.
807
In: ROSA, 12, V.
808
Id
., 2, 9, tb. in:
id
., 17. Grifei.
459
Rosa tenha de fato enjeitado sua obra inaugural, é de se dizer que, uma vez feita “criatura au-
tônoma”, a escritura se desembaraça totalmente do jugo paterno, pois o bom valor da peça li-
terária, demonstrado por ela própria mediante a simples leitura aplicada, suplanta qualquer
eventual opinião em contrário, ainda que se trate da do respectivo produtor. Não fosse assim e
haveríamos de queimar, por exemplo, os preciosos escritos de Nikolai Gogol, de Liév Tolstói,
de Franz Kafka e de tantos outros que, em determinado momento de suas carreiras, renega-
ram no todo ou em parte as suas produções, o que às vezes ocorre porque o artista “Pinta a
sua tela, cega-se para ela e passa adiante
809
, como quer o poeta de Cordisburgo. Esclara-se,
enfim: severo ou benevolente, o veredicto de Guimarães Rosa, cego em relação a qualquer
obra de sua lavra, resta sempre parcial e, conseentemente, em tudo sujeito a contradita por
parte do leitor crítico. Porque
A crítica literária, que deveria ser uma parte da literatura, só tem razão de ser quan-
do aspira a complementar, a preencher, em suma a permitir o acesso à obra. (...)
Uma crítica tal como eu a desejo deixaria de ser crítica no sentido próprio, tanto faz
se julga o autor positiva ou negativamente. Deve ser um diálogo entre o intérprete e o
autor, uma conversa entre iguais que apenas se servem de meios diferentes.
810
Não obstante, nessa “conversa entre iguaisque também se valem da Poesia
como idioma, as palavras de Guimarães Rosa enquanto jovem poeta deveriam interessar a
seus palestrantes imensamente mais do que as dele enquanto crítico maduro da própria produ-
ção. A razão para isso é que, sendo a Poesia o símbolo mediante o qual se busca apreender o
inapreensível, em última análise “o autorhá que procurar manter sempre o diálogo” em pa-
drão elevado, servindo-se então, preferencialmente, do exercício da vera Poesia, que é o seu
instrumento natural, e deixando os meios tangenciais ao intérprete” que desempenha a “críti-
ca literária” não com o fito de emitir juízos de valor, mas sim com o de “complementarlacu-
nas exegéticas para “permitir o acesso à obra” a outros interlocutores que queiram participar
da “conversapoética. É correto que “O poeta não cita: canta.
811
Pois que se lhe dê a chance
para continuar a cantar.
809
Id., ibid. Grifei. Recorra-se mais uma vez ao Tao, 2, v. 18-19: O sábio tudo realiza e nada considera seu./
Tudo faz e não se apega à sua obra.
810
Cf. Guimarães Rosa acentua a LORENZ, 58, 75-76 (grifei). Cruze-se com NOVALIS (226, 103): O verda-
deiro leitor tem de ser o autor amplificado. É a instância superior, que recebe a causa já preliminarmente elabo-
rada da instância inferior.
811
ROSA, 2, 9, tb. in: id., 17. E ainda, no mesmo discurso: Com um fosso fundo ao redor de sua turris eburnea,
[o poeta] deixa a outros o trabalho de verificarem de quem recebeu informões ou influências e a quem poderá
ou não influenciar.
460
Ao fim, sobra que o objeto arstico importa não pelo que o autor pensa que
ele seja, mas pelo que ele efetivamente é e, mais ainda, pelo que suscita, pelo que pode vir a
ser no espírito do apreciador. Valha-nos Sócrates:
Os melhores discursos escritos são os que servem para reavivar as lembranças dos
conhecedores; só as palavras pronunciadas com o fim de instruir, e que de fato se
gravam na alma, sobre o que é justo, belo e bom, apenas nelas se encontra uma força
eficaz, perfeita e divina a ponto de nelas empregarmos os nossos esforços; somente
tais discursos merecem ser chamados filhos legítimos do orador, gerados por ele pró-
prio, quando esse orador possui um gênio inventivo, e quando nas almas de outras
pessoas eles engendram descendentes e irmãos que sejam dignos da família.
812
Por conseguinte, ao termo da presente pesquisa uma das conclusões a que se
chega é a de que Magma, apoiado na tranqüilidade de sua orquestração poemática e na com-
petente exploração, por parte do autor, das virtualidades do signo poético, desponta deveras
como um sólido exemplo de literatura singela, porém plenamente capaz de “reavivar as lem-
branças(ou leia-se: reminisncias) sobre o que é justo, belo e bom, (...) nas almas de ou-
tras pessoas. E por acaso haverá objetivo mais nobre e mais verdadeiro que seja desempe-
nhado pela Poesia? Ora, essa “força” de reavivamento daquilo que é sublime, eterno e divino
pode ser acionada inclusive pelo contraste com o que há de mais grotesco, corriqueiro e “hu-
mano, demasiado humanojá de longa data o sabiam François Rabelais, os poetas românti-
cos e os simbolistas. De seu lado, ao leitor cabe tão-somente abrir mão da estreita pretensão
racionalista de querer ler e julgar um poema; com nova disposição intuitiva
813
, o que se esta-
belece é a bem maior satisfação de se deixar ler e absolver pela Poesia, a qual age sempre à
procura do justo, belo e bom.
Revelam-se agora bastante pertinentes três venerandas citações do Tao Te
Ching. Temos, primeiro, que na composição de Lao-tsé de mero 41 é ensinado:
Quem é iluminado por dentro
Parece escuro aos olhos do mundo.
Logo em seguida, no carme 45 pode-se ler:
Quem demanda a perfeição
Parece ser imperfeito,
Embora a sua oculta plenitude
Plenifique todas as vacuidades.
(...)
Quem anda direito
812
PLATÃO, 236, 123-124.
813
V. atrás a nota 697 (pág. 385).
461
Parece torto.
Grande habilidade
Parece inabilidade.
Arte genuína
Parece mediocridade.
E no poema 70:
O que é verdade
É facilmente inteligível,
E, no entanto, ninguém entende,
E ninguém aceita.
Palavras e obras devem surgir
Do abismo do Infinito.
(...)
O sábio tem roupagem modesta,
Mas oculta no seu interior
A mais preciosa jóia.
E porventura não será exatamente essa a condição de
Magma
?
Prosseguindo, em decorrência de tudo que vem sendo explanado, é de se insis-
tir uma vez mais que, caso tenha acontecido de fato a pretendida recusa de Guimarães Rosa
com relação ao seu primeiro livro, a mesma foi, ao que parece, impropriamente arromançada
pela crítica e convertida em tabu, num evidente prejuízo à função da própria crítica, que é a de
jamais se contentar com aparências e convenções mas, ao contrário, sempre procurar penetrar
o mais profundamente possível e sem qualquer submissão a pré-julgamentos, autorais ou
não – a essência da obra de arte.
Contudo, vale também frisar de novo que nem mesmo se pode ter como abso-
lutamente certo que Guimarães Rosa tenha em realidade, isto é,
no coração
, rejeitado
Magma
.
Sabe-se que numa carta endereçada a Vicente Guimarães e datada de “28 de janeiro, 1938
(época bem posterior ao discurso de agradecimento proferido perante a Academia), o poeta
noticiou: Agora estou fazendo o último expurgo do Magma,
que conto entregar ao editor
no mês que entra
.
814
Até 1946 o escritor ainda hesitava quanto à publicação de seu livro de estréia:
na primeira edição de
Sagarana
foi estampado um ancio de que
Magma
estaria “A sair,
tendo-se o cuidado propagandístico de observar que a obra havia sido premiada pela Acade-
mia Brasileira de Letras.
E, por fim, resta a questão decisiva: se o autor tivesse renegado à vera esse li-
vro, por que não destruiu os originais? Todavia, não só não os destruiu, como ainda deixou
814
In: GUIMARÃES, 49, 126-127. Grifei.
462
não uma, mas duas versões datilografadas dos mesmos, o que, como seria de se esperar, mais
cedo ou mais tarde naturalmente resultaria em publicação póstuma. Parece bem pouco prová-
vel que o escritor, sempre tão lúcido e detalhista, não tivesse considerado essa circunstância
óbvia. Conseentemente, é razoabilíssimo supor que, malgrado os desvios e as negaças e
representa que as recusas do autor tenham sido mesmo não mais do que mineiras negaças
815
–,
Guimarães Rosa na verdade queria que Magma algum dia viesse à luz, tanto que tomou pro-
vidências para assegurar que assim fosse. E quiçá ele haja preferido não estar presente quando
tal ocorresse, apenas com o intuito de não se ver envolvido pessoalmente no confronto estilís-
tico que fatalmente se haveria de traçar entre a sua juvenília e as peças da maturidade, o que
para o poeta decerto afigurar-se-ia desgastante.
Logo, o que o autor parece ter feito com relação ao volume de poemas foi sim-
plesmente recorrer ao conselho quadrifonte de Trismegisto, o três vezes magno – Saber, que-
rer, ousar, calar-se...
816
Calando o Magma durante décadas, o poeta nada mais fez do que deixar ao
talante e à sensibilidade dos leitores a definição da melhor oportunidade, sob o favor da so-
roptimícia, para a apreciação do valor do livro – e aqui faz sempre jus a menção elogiosa o
louvabilíssimo empenho de Hygia T. C. Ferreira em prol da publicação da obra. Como já foi
aludido, é muito interessante que esse volume seja, a um tempo, a abertura e o fecho de toda a
produção do autor mineiro ou, noutros termos, a sua primeira e até agora última palavra. O
frio acaso talvez seja o responsável por isso, mas, em se tratando de leitores de Rosa, somente
os mais desatentos acreditam que o acaso realmente exista. E além do mais, a lógica pura se-
ria uma ferramenta indigente para quem intenta se abeirar dos escaninhos sticos da obra ro-
815
Em seu afã de negacear, o autor chegou mesmo ao temerário requinte de dizer (a LORENZ, 58, 70) que, após
ter comado a escrever Sagarana, desde então não me interesso pelas minhas poesias, e raramente pelas dos
outros, o que não é verdade. Se Guimarães Rosa quis, como parece, referir-se aos seus poemas, convém não es-
quecer que Ave, Palavra contém uma razoável quantidade de poemas versificados, publicados, segundo a orelha
de ROSA, 14, em revistas e jornais brasileiros, durante o período de 1947 a 1967; dentre outras, foram aí es-
tampadas as séries poemáticas Às coisas de Poesia”, Novas coisas de Poesia”, Ainda coisas de Poesia” e
Sempre coisas de Poesia”, cujos títulos não poderiam ser mais eloqüentes e significativos. Outrossim, da bibli-
oteca do escritor fizeram parte numerosos volumes de poemas em versos; dentre os editados as 1936, podem
ser citados os seguintes poetas que Guimarães Rosa demonstrou apreciar ao ponto de adquirir suas obras: Gui-
lherme de Almeida, Manoel de Barros, Manuel Bandeira (deste, além de dois livros com versos próprios, mais
cinco antologias de Poesia pátria, inclusive Obras-primas da rica brasileira), Raul Bopp, Gregório de Matos,
Vinícius de Morais, Carlos Drummond de Andrade (dois volumes), Lélia Coelho Frota (três), Ledo Ivo (cinco),
João Cabral de Melo Neto (três), Ribeiro Couto (cinco), Cassiano Ricardo (seis), Augusto Meyer (Le bateau ivre
Alise e interpretação do lebre texto de Arthur Rimbaud), Muricy Andrade (Panorama do movimento sim-
bolista brasileiro), Fernando Pessoa (Mensagem), Jacques Prévert, Paul Verlaine, Pedro Xisto (i-e-a-o-u) etc...
(cf. noticiado por SPERBER, 87). De fato, muita coisa para quem não se interessava ou se interessava apenas
raramente”.
816
ROSA, 18, 411 (grifos do autor). Cruze-se o conselho” com o início do poema 55 do Tao Te Ching: Quem
sabe cala.
463
siana. Preferível, pois, cogitar acerca da possibilidade de que a presença de Magma no come-
ço e no fim da produção do escritor tenha sido um fato por ele pensado, eis que assim se im-
prime ao conjunto da sua literatura o claro feitio simlico de circulatio. E daí, pode-se até
mesmo passar com facilidade para a idéia de circum-ambulação, ou seja, a visão global das
escrituras de Guimarães Rosa como um verdadeiro rito poético composto por um movimento
espiritual de trajetória circular, o qual, desenhando-se livro a livro ao longo da carreira, acaba
por voltar-se sobre si mesmo e a todo tempo se dirigindo, conntrica e progressivamente, em
demanda da iluminação: a absorção final da circunferência microcósmica pelo centro macro-
cósmico
817
, o que equivale ao reconhecimento do fim e de todos os segmentos intermediários
como sendo essencialmente idênticos ao princípio. Se assim não foi, assim deveria ser, eis que
a obra literária guimarrosiana é o autor quem o diz, e não há quem discorde efetivamente
gira e gira e gira ainda, num redemoinho ígneo, sempre ao redor do eixo do Infinito. Tal qual
a desfiadura de um rosário.
Ao ensejo, abordemos desde agora outras circunstâncias variegadas respeitan-
tes à natureza intrínseca da première rosiana. Resta inegável que, de uma maneira ou de outra,
provando fazer jus à “sobrevivência do mais apto
818
, aí está o Magma, nascido em 1936 mas
jovem em pleno século XXI, a merecer leitura, porém leitura atenta e livre de preconceitos. É
mister não se deixar mesmerizar pela já mencionada monumentalidade” da obra guimarrosi-
ana revolucionária e procurar detectar em Magma, o primeiro e espontâneo vôo, os méritos
que lhe convêm, nem mais nem menos: a César o que é de César, a Tutaméia o que é de Tu-
taméia, a Magma o que é de Magma. Em tal contexto, como alguns poucos estudiosos já têm
reconhecido, Magma tem de ser examinado sob o prisma da “substânciaque, sendo o livro
inaugural de uma literatura significativa, alcançou conceder como matéria-prima às outras
obras do universo rosiano. É preciso, conseguintemente, desarmar-separa ler esse volume
de poemas que transita em sutilezas e convida o leitor, aos sussurros no entreversos, a entrar
na roda de uma aventura heurística que se confunde com a aventura mistagógica do próprio
poeta que reza o rosário. Esta, por sua vez, é uma alegoria da aventura vital de todo ser hu-
mano.
E é pela senda do entrelaçamento entre a poética e a vida que vêm à mente
certas úteis reflexões do tradutor Daniel Fresnot a propósito do experimento estético rimbal-
diano. Reportando-se a Uma estadia no inferno – único livro de sua autoria que Arthur Rim-
817
Para mais informões a respeito do símbolo das cerimônias circum-ambulatórias remeto a CHEVALIER e
GHEERBRANT, 160, 255-256.
818
ROSA, 2, 8 e id., 17.
464
baud viu publicado (a expensas próprias) e que com perspicácia foi chamado por Paul Verlai-
ne de espécie de prodigiosa autobiografia psicológica–, Fresnot pondera:
Posso afirmar que Rimbaud viveu a sua estadia no inferno na primavera de
1872. De fins de fevereiro ou início de março até início de maio ele estava nas Arde-
nas, nordeste da França, longe de Verlaine. O que me parece seguro:
a) Rimbaud realmente viveu o inferno. Sei isto graças à experiência da loucu-
ra.
b) Ele sofreu da sede. O tema da sede aparece na Noite do Inferno e em quase
todos os poemas de maio e junho de 1872 (Lágrimas, Comédia da Sede, Bandeiras de
Maio, Canção da Mais Alta Torre etc.).
(...)
Acredito que Rimbaud (assim como Verlaine, Baudelaire e outros grandes
poetas) diz a verdade. Não são apenas imagens ou metáforas, é verdade.
819
Quer parecer que a esses outros grandes poetasque dizem “a verdade” poder-
se-ia tranqüilamente juntar o nome de João Guimarães Rosa. Ora, o próprio poeta mineiro
chegou a assertar que é impossível separar minha biografia de minha obra
820
. Decerto, en-
tão, que uma “obra” de semblante stico tão evidente há de se ancorar numa biografia”
voltada para a vivência das coisas dessa natureza. A admissão de tal raciocínio singelo impli-
ca no reconhecimento de que Guimarães Rosa deve ter meditado, na sua “obra” de 1936, a
respeito do que de fato viveu em sua psique e que transparece à flor dos poemas: a “Turbulên-
cia” do livre-arbítrio, a tristeza torpe” do Desterro, o ardor do desejo teosófico e ainda
Medo da felicidade, Impaciência”, Saudade, Pavor, Angústia, sentimentos de cariz
anagógico que seriam mais tarde tematizados também em outras produções da literatura gui-
marrosiana (como, por exemplo, em A hora e vez de Augusto Matraga” e Grande Sertão:
veredas, encarnados na personagem Riobaldo). Enfim, o poeta cordisburguense, desde que
discorre poeticamente acerca deste tema, deve ter experimentado deveras a sensação de “Inte-
graçãodo seu ser com a “Consciência cósmica– ou experimentado algo que lhe pareceu as-
sim fosse. É de se levar em conta que ele estava falando sempre sobre o seu eu, o seu magma
íntimo, seus sentimentos e crenças; nesse sentido, cito considerar que Magma aparece
como o livro mais eminentemente pessoal do autor. E fazendo uso das palavras de Fresnot,
Não são apenas imagens ou metáforas, é verdade.Guimarães Rosa é, com efeito, O poeta”
que “reza o rosário.
De modo que a organização dos textos de Magma, bem além de ser somente
um exntrico début literário, parece ter representado à vera, no espírito de Guimarães Rosa, o
819
FRESNOT, 178, 93.
820
Cf. o Diálogo” com LORENZ, 58, 66. E na pág. seg. Guimarães Rosa aduz: Como médico conheci o valor
místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte.
465
enfrentamento de sua provação iniciática e estética e, em decorrência, também o marco fun-
damental em que a Poesia e a religião deixaram de ser, para o indivíduo outrora inexperiente,
apenas alguns componentes exotéricos do momento, passando sim a constituir um caminho
real de imersão no infinito
821
– passagem essa que necessariamente exigiu uma verdadeira
transmutação ou renovação psicológica. Por outras palavras, o livro de 1936 faz as vezes da
indispensável estação de aprendizado da maturesncia, previamente à efetiva instalação da
maturidade. É, pois, tão-só a partir da experimentação desse genuíno despertar ou desabrochar
poético e stico que as grandes obras do escritor puderam começar a vir à luz tal como vie-
ram: precisamente, a primeira elaboração das lendasde Sagarana, ainda com o título de
Contos, foi terminada e apresentada pelo autor ao concurso Humberto de Campos, da Li-
vraria José Olympio, em fins de 1937
822
. Aliás,
Segundo o costume dos antigos gregos, também Orfeu revestiu os mistérios dogmáti-
cos com o invólucro das fábulas e ocultou-os no aparato poético de sorte a dar ao
leitor a impressão de que seus livros nada mais eram que meras fábulas e nugas en-
genhosas.
823
Logo, a indagação importante não é por que o escritor Guimarães Rosa não
quis publicar, em vida, o seu livro primeiro – esse tema consiste apenas em conjeturas que
sempre acabam traindo um interesse menor e tergiversante, eis que, assim como assim, a obra
aí está, para quem a queira ler. O que realmente deve interessar, para quem se dise ao en-
frentamento do texto, é: o que Magma, a escritura, desde que vinda à luz, tem a dizer?
De qualquer modo, levada a cabo a leitura de Magma, a forte impressão que
fica é a de que Guimarães Rosa com efeito já era, em 1936, aquele “poeta (...) de que o nosso
instante precisava”, de acordo com o que aventou à época o acadêmico Guilherme de Almei-
da, antes que qualquer outra pessoa o fizesse. E se poucos dos leitores do escritor de Cordis-
burgo teriam ânimo de discordar que hoje em dia ele ainda seja o poeta de que o nosso ins-
tante precisa, o fato inegável é que Guilherme de Almeida não precisou de qualquer auxílio
821
Recorde-se o que o escritor afirma: E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Es-
crevo, descubro sempre um novo pedo de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta.In: id., op. cit.,
pág. 72 (grifei).
822
V. GUIMARÃES, 49, págs. 59, 73 e 126-127. E os Contos já então causaram celeuma: Guimarães Rosa, com
o pseunimo de Viator, ficou em segundo lugar, atrás de Luís Jardim (com Maria Perigosa), tendo obtido votos
contrários de Peregrino Júnior, Dias da Costa e Graciliano Ramos e favoráveis de Marques Rebelo e Prudente de
Morais Neto, este ainda naquela época achando que ele [Viator] fez alguns dos melhores contos que existem
em língua portuguesa” (cf. RAMOS, 74, 109-111).
823
MIRANDOLA, 217, 73, numa hermenêutica que aproxima os mitos órficos da estrutura das parábolas de
Cristo. E o filósofo continua: Fo tal menção para que se conheça o trabalho dificultoso em extrair desses arti-
fícios enigmáticos, verdadeiros esconderijos, em formato de alogos, o sentido latente daquela filosofia hermé-
tica. Ainda mais quando nessa tarefa tão árdua, recôndita e inexplorada, não se dise da ajuda de bibliografia ou
de recurso por parte de outros intérpretes.
466
dos ovos de Colombo de Sagarana, Grande Sertão: veredas ou Tutaméia para chegar a essa
verdade: Magma foi-lhe suficiente. É que a autêntica Poesia não está somente nas palavras:
está principalmente através delas
824
. Guilherme de Almeida ele mesmo um poeta de inesti-
mável valor soube ser sábio e humilde para reconhecê-lo. Que a intuição desse primeiro
leitor e primeiro crítico de Rosa seja respeitada e seguida, mesmo porque, de acordo com o
ensinamento do Tao (poema 64),
O que a outros é insignificante
O sábio considera importante.
No encerramento de tudo, finalmente diga-se que, no quadro da literatura gui-
marrosiana, Magma representa o claro papel de “obra de exceção, o que é altamente signifi-
cativo, desde que o próprio autor era, como é consabido, fascinado pelos seres de exceção:
comprovam-no os humildes Miguilim, Dito, Nhinhinha, Brejeirinha, Maria Euzinha, Mechéu,
Chefe Zequiel, o burrinho do Comandante, o burrinho pedrês, João Porém e mais uma legião
de desvalidos que, não fosse a sensibilidade do poeta, ainda estariam relegados ao limbo do
puro desprezo. E sobretudo Gorgulho, Nominemine e outros que, na novela “O recado do
morro, integram uma espécie de rosário de tontos que passam adiante valiosa mensagem
vinda dos cimos. A propósito, o erudito seo Alquiste”, que depois também faria parte de tão
peculiar rosário humano, alertou, sobre o Gorgulho: Homêst diz xôizimmportant!
825
Ora, Magma igualmente o diz. Então, tal como aqueles seres, Magma merece ser resgatado
e ouvido, pois tem seu valor oculto, modestamente à espera de que o vejam, o sintam e não o
desmintam.
824
É o que nos ensina Goethe: Poesia é a linguagem do indizível. Outrossim, no ABC da Literatura POUND
(243) explicita que o veículo da poesia são PALAVRAS(pág. 48) e que a poesia consiste em essências e me-
dulas(pág. 86, nota). Logo, as essências e medulas, que constituem o indizível, são a única e verdadeira
Poesia, sendo a linguagemou as PALAVRASdo poema o veículoatras do qual se intenta chegar ao
âmago daquele Unaussprechlichen.
825
ROSA, 15, 630.
467
G M S O
A A A R
;
M I A S
M V E N
468
LISTA DOS POEMAS DE
MAGMA
conforme a ordem adotada pela primeira versão, de 1936
O poeta reza o rosário
Águas da serra
A Iara
Ritmos selvagens
Luar
Boiada
Hai-kais
Imensidão
Romance I
Egoísmo
Mundo pequeno
Romance II
Infinito
Evocação
Turismo sentimental
Turbulência
Gruta do Maquiné
Maleita
Caranguejo
Luar na mata
I Cinema
II Rapto
Elegia
Vermelho
Alaranjado
Amarelo
Verde
Azul
Anil
Roxo
Desterro
Paisagem
Lunático
Reportagem
Sono das águas
Na Mantiqueira
Iniciação
Poemas
Riqueza
Distância sentimental
Pudor estóico
Encorajamento
Medo da felicidade
Mal entendido
Definição
Epigrama
Madrigal gravado em laca
Para os almanaques
Falta de armas
Bergson
Sérgio Lifar
Música de Schubert
A casa da boneca
Taumaturgo
Oração
Justificação
Paisagem
Impaciência (Duas variações
sobre o mesmo tema)
I
II
Mil e uma noites
Ironia
Meu papagaio
Delírio
Ausência
Gargalhada
O Caboclo dágua
Sonho de uma tarde de inverno
Hierograma
A terrível parábola
A aranha
No Araguaia I
Batuque
No Araguaia II
Reza brava
No Araguaia III
Madrigal
No Araguaia IV
Toada da chuva
Assombramento
Tentativa
O gado
Necrópole
Paraíso filosófico
Saudade
Revolta
Regresso
Pavor
Angústia
Bibliocausto
Amanhecer
Primavera na serra
Chuva
Integração
Consciência cósmica
469
BIBLIOGRAFIA
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2. _____. Magma. 1ª ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997.
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16. _____. Fião completa – Vol. II. (contendo Grande Sertão: veredas, Primeiras estórias,
Tutaméia, Estas estórias e Ave, Palavra). Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995.
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decimento ao prêmio concedido ao livro Magma pela Academia Brasileira de Letras.
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Janeiro, Nova Fronteira, 1983, págs. 425-457.
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