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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara
Programa de Pós Graduação em Letras,
Área de concentração em Estudos Literários
IRENE CRISTINA BOSCHIERO
PARA UMA LEITURA EM OUTRAS DIREÇÕES
Arranjos teóricos sobre a Ars amatoria de Ovídio
ARARAQUARA
2006
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1
IRENE CRISTINA BOSCHIERO
PARA UMA LEITURA EM OUTRAS DIREÇÕES
Arranjos teóricos sobre a Ars amatoria de Ovídio
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da
Universidade Estadual Paulista, como requisito
parcial para obtenção do Grau de Mestre em
Letras, na área de concentração em Estudos
Literários.
Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado.
ARARAQUARA
2006
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RESUMO:
Assumindo o papel de praeceptor amoris (preceptor do amor), Ovídio compõe
a Ars amatoria, proclamando que tal obra é capaz de tornar instruídos (docti)
os que não sabem amar. O título dado à preceptística é esclarecedor, pois
evidencia a concepção de amor como ars, ou seja, o relaciona à perícia,
técnica, habilidade, bem como a método, teoria, sistema de procedimentos.
Além da matéria que se propõe a ensinar, o manual ovidiano possui outra
característica intrigante: é um poema híbrido, ou seja, um poema didático
composto em metro elegíaco e não em hexâmetro, permeado de topoi próprios
das elegias. Esse hibridismo ou o entrelaçar dos corpos elegíaco e didático é
que denuncia o caráter inter e metatextual da Ars amatoria. Nas elegias, o leitor
é levado a crer que aqueles topoi são de fato sentimentos naturais e
espontâneos. Quando esse leitor se defronta com a Ars, nota que, na verdade,
eles são imitações de sentimentos. Em outras palavras, é declarado a ele que
a maneira de agir de um apaixonado não passa de uma série de convenções.
Assim, Ovídio remete seu leitor para outras obras elegíacas, inclusive as suas
próprias (Amores, Heróides, Os remédios para o amor). Esse procedimento
capacita o leitor a estabelecer relações entre textos diferentes, ou seja, mostra
a ele como ler, como se engajar no discurso erótico, tornando a Ars amatoria,
mais que um manual de amor, um manual de poesia.
Palavras-chave: Ars amatoria, Ovídio, Ars poética.
ABSTRACT
Assuming the role of praeceptor amoris (preceptor of love), Ovid composes the
Ars amatoria, proclaiming that such work is able to make experts (docti) out of
those who don’t know how to love. The title given to the poem is significant in
itself, since it makes evident the concept of love as ars, that is, related to
technique, acquired skill, as well as to method, theory, and system of
procedures. Aside from the subject it teaches, the ovidian manual has another
intriguing feature: it is a hybrid poem, that is, a didactic poem composed in
elegiac meter, not in hexameters, permeated of elegiac topoi. Intemingling the
elegiac with didactic bodies reveals the Ars amatoria’s inter and metatextual
feature. In elegies, the reader begins to believe that those topoi are
spontaneous feelings. However, when he faces the Ars, the reader notices that
those feelings are, in fact, imitations of feelings. In other words, it is declared
that being as a passionate person is nothing but following a series of
conventions. In order to produce such an effect, Ovid sends the readers to other
elegiac works, including his ones (Amores, Heroids, Remedia amoris). By doing
that, Ovid enables the reader to establish conexions between different texts,
that is, he demonstrates to the reader how he can engage himself in the erotic
discourse. Such a procedure makes the Ars, more than a manual of love, a
manual of poetry.
3
TRADUÇÕES UTILIZADAS
Ars amatoria: OVÍDIO. Arte de amar. Trad. Natália Correia e David
Mourão-Ferreira. São Paulo: Ars Poética, 1992.
Amores: OVÍDIO, Públio N. Obras: os Fastos, os amores, a arte de
amar. Trad. Antônio Feliciano de Castilho. São Paulo: Edições cultura, 1943.
Quando utilizada outra tradução, o fato será observado em nota.
LISTA DE ABREVIAÇÕES
A.A. : Arte de amar
A. P. : Antologia Palatina
Am. : Amores
4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 7
CAPÍTULO I : A PREPARAÇÃO DO BASTIDOR................................................................... 12
1.1 - A palavra ars e sua linhagem............................................................................. 16
1.2.- A manipulação da linguagem para obtenção do efeito desejado....................... 18
1.3 - A história do poeta artesão................................................................................ 22
Do alvitre ........................................................................................................................... 24
CAPÍTULO II : OVÍDIO E O GÊNERO DIDÁTICO................................................................. 26
2.1 - A sinceridade dos poemas................................................................................ 27
2.2.- A poesia lírica.................................................................................................... 31
2.3 - Com um pé na cova........................................................................................... 32
2.4 - Ovídio e seu lugar no gênero............................................................................ 39
2.5.- A erotodidaxis.................................................................................................... 42
2.6 - O cômico em Ovídio.......................................................................................... 44
2.6.1 - Referências textuais à alegria e ao riso............................................... 46
2.6.2 - Os elementos cômicos da tradição elegíaca ....................................... 48
2.6.2.1 - Os poetas alexandrinos e a formulação das elegias........... 48
2.6.2.2 - A influência da retórica ......................................................... 51
2.6.2.3 - A influência da comédia nova nas elegias............................. 52
2.6.3 - Outros recursos cômicos ..................................................................... 54
2.6.3.1 - Sátira em Ovídio? ................................................................. 60
Do alvitre ................................................................................................................... 64
CAPÍTULO III: AS IMPLICAÇÕES DO USO DOS RELATOS MITOLÓGICOS NAS ELEGIAS
ERÓTICAS DE OVÍDIO ......................................................................................................... 65
3.1 - A linguagem mítica e a linguagem poética ....................................................... 68
3.2 - O mito de Galatéia e as elegias ovidianas ....................................................... 71
Do alvitre .................................................................................................................. 75
CAPÍTULO IV: CRÍTICA COM BASE NOS GÊNEROS......................................................... 78
4.1 - O gênero didático.............................................................................................. 78
Do parvo alvitre ......................................................................................................... 84
CAPÍTULO V: O EFEITO DA MISTURA DE GÊNEROS........................................................ 85
CAPÍTULO VI : A LUZ DA LUA............................................................................................... 90
Do médio alvitre......................................................................................................... 90
5
6.1 - Confrontando poéticas....................................................................................... 90
6.1.1 - Ars e Ingenium...................................................................................... 91
6.1.2 - O processo de criação como algo laborioso e feio demais para ser
manifesto ......................................................................................................... 93
6.1.3 - A unidade da matéria............................................................................. 95
6.1.4 - Adequação do discurso, gênero e metro............................................... 95
6.1.5 - Sobre o tom dos poemas...................................................................... 97
6.1.6 - A crítica como algo inerente à criação, proporcionando experiência a
experiência e o trabalho de lima....................................................................... 97
6.1.7 - A audiência............................................................................................ 99
6.2 - Exemplos de arte em Ovídio.............................................................................. 101
6.3 - A união de ars e ingenium................................................................................. 105
Do magno alvitre ........................................................................................................ 108
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 114
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 117
POEMA ................................................................................................................................... 123
6
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7
PARA UMA LEITURA EM OUTRAS DIREÇÕES
Arranjos teóricos sobre a Ars amatoria de Ovídio
INTRODUÇÃO
(Onde a autora se nomeia, declara suas intenções, define seu estilo, confessa
suas angústias e descreve a estrutura da obra, não raro sem esconder os
andaimes que permitiram a sua construção.)
No final de um artigo seu, intitulado A arte de produzir fome (que guarda
bastante proximidade temática com a Arte de amar, que ambos tratam de
como fazer aflorar o desejo), Rubem Alves expressa a seguinte opinião: Toda
tese acadêmica deveria ser isto: uma maquineta de roubar o objeto que se
deseja...
1
. Mas todos sabemos o quanto nossos desejos podem assumir
proporções que exorbitam de nossa potencialidade para concretizá-los e
acabam nos atirando num limbo.
No caso de teses e dissertações, isso é mais do que comum, é quase a
regra. Não é por menos que Dewey
2
dedicou um estudo sobre esse fenômeno,
no qual determina como condição de realização do desejo a sua transformação
em propósito. O desejo é um combustível, capaz de nos levar a qualquer lugar,
mas que precisa ser convertido em um conjunto de metas humanamente
exeqüíveis, caso contrário, logo se mostra irrealizável. Por outro lado, o desejo
não pode ser fraco a ponto de deixar de instilar a volição, sob pena de que o
sujeito questione seu plano quando se depara com as inevitáveis tarefas
maçantes que fazem parte de qualquer atividade e ponha-se a alterar suas
metas aleatoriamente, quando não acaba por questionar o próprio desejo. Em
qualquer dos casos, o resultado é o mesmo: uma irremediável sensação de
impotência.
Pois não foi outra coisa senão o desejo que levou a dissertadora para a
obra de Ovídio, e não foram raros os momentos em que ela se viu na
contingência de quem, voltada para o seu desejo, e tentando ser do tamanho
1
Rubem Alves, Folha de S. Paulo.
2
Dewey, J. Sociedade e educação.
Ianitor -
indignum!
- dura
religate
8
dele, não conseguia falar do objeto desse desejo. Fernando Pessoa alertava
para esse perigo
3
.
Contudo, não é um desejo por demais intenso que pode nos armar
icarianas ciladas, mas a própria ação acadêmica de debruçar-se sobre um
objeto tão antigo quanto comentado. (Quid plura dicam?). Também nessa
situação viu-se a dissertadora um sem número de vezes, na situação que
Apparicio Torelly captou bem ao relatar a sua aflição diante da imagem de um
castelo abandonado e silencioso sobre o qual se dispunha a escrever. Como
falar de um castelo abandonado e silencioso sem tirá-lo, com essa atitude, da
sua condição de abandonado e silencioso? Isso demonstra como algumas
decisões sobre uma obra podem alterar-lhe a condição original e
imediatamente passar a negar a proposição com que a caracterizamos. O
Barão (codinome de Apparicio Barão de Itararé) encerra o V Capítulo de sua
“historieta chistosa” sobre um castelo abandonado com a seguinte conclusão:
... é certo também que, com um pouco de boa vontade e uma grande dose de
arrojo, poderia congelar os alicerces desse castelo e, pelo processo das
estacas Franki, removê-lo, como se fosse um templo, para um local habitado e
barulhento. Nada disso, entretanto, seria correto. O castelo não é meu.
Encontrei-o abandonado e silencioso. O meu dever é deixá-lo como o achei
4
.
Mas ponderando que a função da linguagem é reconduzir num espaço
simbólico aquilo que não é mais, substituindo-o pedagogicamente por algo em
que o leitor deve crer, a dissertadora imbuiu-se de ânimo para levar a termo a
empreitada.
E diz Certeau:
Mais exatamente, ela [a escrita] recebe os mortos, feitos por uma
mudança social, a fim de que seja marcado o espaço aberto por este
passado e para que, no entanto, permaneça possível articular o que
surge com o que desaparece. Nomear os ausentes da casa e
introduzi-los na linguagem escriturária é liberar o apartamento para
os vivos, através de um ato de comunicação, que combina a
ausência dos vivos na linguagem com a ausência dos mortos na
casa.
5
3
“Se eu pensasse nessas cousas,/Deixaria de ver as árvores e as plantas/E deixava de ver a Terra,/Para ver só os meus
pensamentos.../Entristecia e ficava às escuras/E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu”. (Pessoa, 1980, p. 158).
4
Barão de Itararé, 1985. p. 190.
5
Certeau, 1982, p. 108.
catena,
difficilem
moto
9
O castelo com que se deparou a dissertadora, contudo, não estava
abandonado e silencioso, pelo contrário, está povoado de presenças cujas
vozes lançam luzes a iluminar de tal sorte o ambiente, que tudo nele parece
explicitado. Esse quase aconchego estimulou a dissertadora a atravessar-lhe
os portões e percorrer seus corredores. Uma vez dentro, tendo desfeito a
condição natural, cumpre-lhe apenas realizar, no intervalo desta dissertação, o
mesmo objetivo que se propôs o Barão de pouco ao comentar o texto O
Castelo Abandonado: Mais do que isso, é (...) cheio de nobreza, onde se lê,
com emoção, a árdua luta de um grande espírito em prol da verdade,
procurando, a todo o transe, manter os compromissos assumidos com o
leitor
6
. E eis que a dissertadora, a gritar “mehr Licht!” (não se sabe se pedindo
ou constatando), como Goethe em seu leito de morte, deparou-se com a
dificuldade de reconhecer algum ponto de sombra que pudesse tornar mais
nítido por obra de seu artifício. Diante de uma tal tarefa, ela investiu-se das
artes de Blimunda
7
. O marido de Blimunda, de nome Sete-Sóis, tinha por ofício
forjar peças de metal, nas quais, depois de prontas, ela reconhecia partes que
precisavam de reparos. Deles disse então o Padre Bartolomeu:
Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês
às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí se chamava, como sua
mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem baptizada estava, que
o baptismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram
nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas
giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.
Diante do exposto, a dissertadora postularia ser doravante designada e
reconhecida por Sete Luas, mas, no estrito cumprimento dos trâmites
acadêmicos, vai mesmo valer-se do discurso impessoal.
Assim se justifica a exposição dos estados emocionais (“Se não é seca,
é enchente”, diria Catulo
8
) com que a dissertadora Sete-Luas alternou a mirada
sobre os textos ovidianos e os demais de que se valeu para mais uma vez falar
da obra ovidiana. A demarcação dessas condições é importante para que os
leitores possam melhor seguir o raciocínio desenvolvido e dar sentidos às
6
Idem, p. 187.
7
José Saramago, 1983, p. 90.
8
Catulo da Paixão Cearense, poeta cearense.
cardine
pande
forem!
10
observações e conclusões subsumidas; enfim, ao que vai dizer para além de
tudo o que já se disse sobre esse autor.
O périplo acadêmico que aqui vem relatado em muitos aspectos
semelhante às provações impostas pelos deuses à curiosa Psiquê –, vai
estruturado da forma a seguir descrita.
O primeiro capítulo (“A preparação do bastidor”) desenvolve os conceitos
de ars e de poeta artesão que vão servir de substrato para as discussões
encaminhadas ao longo de todo o trabalho.
No relato das provações de Psiquê, uma das tarefas que lhe foram
determinadas consistia em recolher, em pequena urna, um pouco das águas
geladas da fonte sombria que alimentava o rio Estige. Assim dá conta o relato:
Mal chegou às proximidades do cimo, viu a vastidão da empresa e
suas dificuldades mortais. O rochedo era desmesuradamente alto,
íngreme, liso, inacessível. As próprias entranhas da pedra vomitavam
águas repugnantes que, escapadas das aberturas inclinadas,
resvalavam ao longo da encosta, traçando um caminho por um
estreito canal, onde se perdiam e caíam, despercebidas, no vale
próximo. (...) as águas, dotadas de voz, se defendiam a si mesmas.
Afasta-te! e Que fazes? Abre os olhos!;”Que pensas?”.
9
Pois assim também se deu o desenvolvimento do capítulo II (“Ovídio e o
gênero elegíaco”), em que é feito um bosquejo histórico acerca das fontes da
elegia erótica romana, tentando-se, no restrito âmbito de um capítulo, dar um
formato plácido a conceitos tão movediços.
Voltando a Psiquê, incumbiu-se-lhe também de obter, a qualquer custo,
flocos da preciosa de terríveis ovelhas que com seus acerados cornos, sua
testa de pedra, e às vezes com suas mordidas envenenadas, atacam os seres
humanos, para matá-los.
10
.
Ao buscar a aproximação entre mito e poesia, o capítulo III (“As
implicações do uso dos relatos mitológicos nas elegias eróticas de Ovídio”)
empreende jornada semelhante à provação de Psiquê. Assim como esta não
logrou obter lãs diretamente das ovelhas, mas flocos desprendidos que ficam
presos nas pontas dos ramos
9
, também esse capítulo valeu-se, não de mitos,
que beiram o inefável, mas da transposição deles para relatos poéticos, que
amiúde torna poetas e poemas tão imortais quanto os próprios mitos.
9
Apuleio, O asno de ouro, s.d., p. 97.
10
Idem, p. 96.
quod
precor,
exiguum
est -
11
Em outra incumbência, tendo sido misturados e confundidos num monte
grãos de trigo, de cevada, de milho, de papoula, de ervilha, de lentilha e de
fava, disse Vênus: Pois bem, eu também quero experimentar se és mesmo
diligente. Separa o monte confuso das sementes que aqui estão. Faze a
triagem dos grãos e arranja-os em ordem
11
.
Tal foi a tarefa do IV (“Crítica com base nos gêneros”) e V (“O efeito da
mistura de gêneros”) capítulos, em que se procurou reconhecer peculiaridades
de cada gênero e determinar o modo como Ovídio deles se apropriou e os
subverteu no poema híbrido que compôs.
A tarefa final de Psiquê consistiu em descer ao próprio inferno, para de
trazer um pouco da beleza de Proserpina em uma caixinha. Entre os
inúmeros obstáculos com que se deparou pelo caminho, havia o risco do
encontro dispersivo com velhas tecelãs: Quando tiveres atravessado o rio e
caminhado um pouco, velhas tecelãs, tecendo um pano, te pedirão para lhe
dares um auxílio. Não toques no seu trabalho, não tens direito
12
.
A tarefa que se propôs a dissertadora no capítulo VI (“A luz da lua”) foi
justamente juntar em boa tecitura as considerações que foi amealhando nos
capítulos precedentes, sem esgarçar tecido alheio. Ao voltar do inferno, uma
curiosidade temerária apoderou-se do espírito de Psiquê e ela, olhando para a
caixinha, em que projetava a beleza aprisionada (uma “arte de amar”),
negligenciou a recomendação máxima de não perscrutar o interior da caixa.
Psiquê a destampa e depara-se com o imprevisto embrumativo de uma “arte
poética”.
Simultaneamente ao percurso discursivo, assentada na premissa para
ela irrecorrível de transformar a dissertação na própria mensagem de que ela
é portadora, a dissertadora lançou mão de recursos de natureza diversa, com
os alvitres (de ordem retórica) e plásticos, para presentificar (mais que apenas
referir) uma elegia, com a materialização dos seus tópoi principais: a porta
fechada, a guirlanda pendurada e um lamento que passa pela fechadura,
atravessa todo o texto e se estende para além dele (premissa da leitura),
proferido pelo eu-lírico transubstanciado no leitor diante da porta cerrada,
prestes a se abrir.
11
Idem, p. 95.
12
Idem, p. 98.
aditu fac
ianua
parvo
12
CAPÍTULO I
A PREPARAÇÃO DO BASTIDOR
Non ego, Phoebe, datas a te mihi mentiar artes,
Nec nos aeriae voce monemur avis,
Nec mihi sunt visae Clio Cliusque sorores
Servanti pecudes vallibus, Ascra, tuis:
Usus opus movet hoc: vati parete perito;
Vera canam: coeptis, mater Amoris, ades!
(Ars amatoria,I. 25-30 )
13
O enigma da produção de um texto sempre foi um problema a ser
solucionado por escritores e críticos. De um lado, os poetas que se dizem
inspirados e levados a escrever por um impulso divino. De outro, muitos
escritores contestando tal inspiração, afirmando que um texto é resultado de
muito trabalho e racionalidade. Essa idéia, aliás, está implícita na palavra texto
quando se observa sua origem:
Texo. –is, -ere, texui, textum, v. tr. 1) Tecer, entrelaçar, entrançar, tramar
2)Arranjar, dispor, compor 3) Construir. (Faria, 1967)
Esse dado etimológico sinaliza como o sentido original da palavra vai ao
encontro do conceito moderno de textualidade: um tecido que pode ser, e é a
melhor que seja, feito por várias mãos. Toda obra é, então, resposta a uma
outra ou a outras que a antecederam. Nesse sentido, ao ser tecida, a nova
obra relê, recupera e por vezes subverte determinados temas tratados por
obras antecessoras. O poema Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo
Neto, exemplificando metalingüisticamente a “arte de tecer”, é um bom
exemplo para ilustrar esse conceito:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
13
Não mentirei, ó Febo, assegurando/Que por ti esta Arte me foi ditada;/nem que p’la voz dos pássaros em bando/
ela, sem eu saber, me foi ditada/nem que de Clio eu tenha recebido/(ou de suas irmãs) esta mensagem,/enquanto
nalgum vale mais sombrio./O meu próprio rebanho pastoreava .../Nada disso direi, porque somente /Aquilo quanto
sei o devo à prática./Graças a ela é que fiquei exp’riente:/Eis o preço maior destas palavras!/De verdades, não mais,
aqui se trata./Ó mãe do Amor, secunda o meu intento! (Trad. Natália Correia e David Mourão-Ferreira).
obliquum
capiat
semiada
perta
13
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
14
À primeira vista, esse poema inverte causa e efeito: não são os galos
que cantam por causa do raiar do dia, a manhã é que é feita a partir dos galos,
o que quer dizer que, se os galos se calassem, não haveria mais aurora.
Assim, aurora, algo que parece natural, é, na verdade, fabricada pelos galos
para que assim pareça, fenômeno semelhante ao que ocorre em algumas
manifestações artísticas. Nesse sentido, uma análise mais detalhada do campo
semântico do poema aponta para a leitura deste como ilustração do ato de
criação literária concebida com ars, ou seja, exigente de técnica, trabalho e
construção. O ponto de partida de tal interpretação é o uso do verbo tecer logo
no título. A origem desse verbo em português é o verbo latino texo (“tecer”),
cujo supino é textum, que, em português, originou a palavra tecido, mas
também a palavra texto. O título traz o verbo tecer no gerúndio, ou seja,
evidencia o processo e não sua conclusão o processo de tecer ou o
exercício da profissão de tecelão que é mostrado no produto). Além disso,
transmite também a idéia de continuidade, de algo que está sempre em
movimento, que não é estanque.
galo nos remete a canto. Ora, a poesia era, em princípio, para ser
cantada. A oralidade foi o primeiro estágio da poesia. Soma-se a isso o fato de
o próprio João Cabral ter se referido em outros momentos ao ato de compor
como cantar (Cabral de Melo Neto, 1994, p. 731). Na verdade, o que se cruzam
são os fios de sol dos gritos de galo (grito concebido como “voz para ser
ouvida”). A palavra fio refere-se a “gume de instrumentos cortantes”, que
lembra a expressão de João Cabral para quem a “palavra é faca afiada”. sol
designa o astro, que, na mitologia greco-romana é Apolo. Assim, a expressão
fios de sol associa-se à lira de Apolo, deus da música e da poesia. Importante
14
Cabral de Melo Neto, 1979, p. 19.
latus.
longus
amor
tales
14
notar, nesse sentido, que era Apolo quem presidia os jogos das Musas
(inspiradoras dos poetas), e que seus oráculos, capazes de inspirar tanto
adivinhos como poetas, eram ditos em forma de verso. Além disso, ainda no
âmbito do canto, sol é a quinta nota musical.
O galo, para tecer, precisa apanhar um grito. O vocábulo apanhar em
português significa “levantar do chão”, mas também “assenhorear-se”, no caso,
de outros cantos. Além disso, pode significar “perceber algo com dificuldade e
empenho”, o que remete novamente à idéia de processo e trabalho. Tal
assenhorear-se pode também sugerir os processos intertextuais na tessitura de
um texto, ou seja, muitos galos são necessários para tecer o toldo que, depois
de tecido, se eleva por si. Interessante notar ainda a maneira como os
discursos, aqui cantos dos galos, são postos na poesia. Eles não se intercalam;
ao contrário, se sobrepõem. Essa imagem é estabelecida pelo recurso utilizado
pelo poeta em não terminar, do ponto de vista gramatical, os versos 3, 4 e 5.
Assim estruturados, os versos deixam a impressão de que a voz do próximo
galo impede que o galo precedente termine seu “discurso”, ou ainda que não é
necessário que o próximo galo repita exatamente o canto ouvido anteriormente,
mas que somente uma parte de um canto é capaz de fazer outros galos
cantarem os seus próprios.
Ao verbo apanhar está ligado o verbo lançar. Ambos remetem a céu e
figuram no vocabulário típico de jogo, nuance reforçada no poema pelo
neologismo entretender: iludir, enganar, ter consciência e desejo do engodo.
Ora, a poesia é vista por muitos críticos como um jogo com as palavras
(Huizinga, 2001, p. 149). No final da tessitura, tem-se uma tela. Tal termo em
latim é também o plural de telum dardo”, o que reforça a idéia de jogo e
também a de fio como gume, no caso, de uma arma. Além disso, pensando no
plural de dardos, tem-se sugerido um movimento incessante de lançamento, o
que remete ao gerúndio do título do poema. Tela está também associada a
cinema ou quadro, ou seja, algo para ser visto, contemplado. A tela se ergue
tenda: erguer liga-se com grito (erguer a voz) no campo sonoro e com tela (no
campo visual). Tal termo designa também “edificar”. Ora, o poema seguinte a
esse na coletânea é intitulado “fábula de um arquiteto”, e evidencia o processo
da criação literária. Soma-se à idéia de arquiteto, a idéia trazida pela palavra
tenda, ou seja, “barraca”, mas também “pequena oficina”.
corpus
tenuavit
in usus
15
No poema, nota-se também um forte apelo por palavras que remetem ao
aéreo: sol, lança, aéreo, plana, balão etc. Depois de tecida, a manhã plana por
si, ou seja, não precisa mais de seu “motor” (ou autor). Tal imagem remete aos
processos de materialização e presentificação da poesia, descritos por
Lefebve. (Lefebve, 1980, p. 41 ss.). Balão está ligado com ar e fogo. De acordo
com Chevalier, o ar é o meio próprio da luz, que também é mencionada no
poema. Ora, luz está associada a fogo e também a algo que esclarece e
ilumina, bem como à percepção e inteligência. Ainda seguindo Chevalier, ar
está simbolicamente associado ao vento, ao sopro, representando o mundo da
expansão. Na mitologia hindu, Vayu é o sopro cósmico, vital e está identificado
com o Verbo, que é também sopro. No esoterismo israelita, o ar é o princípio
da composição e da frutificação. Portanto, os gritos de galo se espalham e
estão por toda parte. o fogo, é, sobretudo, o motor da regeneração
periódica. A essa idéia de regeneração liga-se uma outra acepção de sol, que
na físico-química é “colóide” (corpo que o se cristaliza, ou se cristaliza muito
dificilmente), e o sentido figurado de manhã, ou seja, “começo, princípio”. Tais
idéias mostram que, apesar de muitos galos se unirem para formar um tecido,
esse é só o começo de outros tecidos, ou textos.
Se a interpretação do poema de João Cabral nos conta da gênese
poética, ela ilustra a composição literária sob a perspectiva do poeta artesão,
capaz de manipular conscientemente, racionalmente e, sobretudo,
laboriosamente a linguagem para a obtenção, na terminologia de Poe (1944, p.
78), do efeito desejado.
De acordo com João Cabral, a composição literária oscila
permanentemente entre dois pontos extremos a que é possível levar as idéias
de inspiração e trabalho de arte. Assim, cada solução que ocorre a um poeta é
lograda com a preponderância de um ou outro desses elementos(Cabral de
Melo Neto, 1994, p. 725). Nos poetas guiados pela inspiração, aqueles que,
para Poe, comporiam por meio de uma espécie de frenesi, de uma intuição
estática (Poe, 1944, p. 78) – cuja existência, ressalte-se, o próprio Poe negava
–, o poema é a cristalização de um momento, de um estado de espírito”,
que nesses poetas a poesia brota, cai ao invés de se compor” (Cabral de Melo
Neto, 1994, p. 723-728). O poeta então se apaga, se torna passivo para ouvir a
aptaque
subducto
pondere
16
voz descida (Cabral de Melo Neto, 1994, p. 723-728). Desse modo, como
atesta João Cabral, ele pouco tem a dizer sobre a composição.
Em contrapartida, os poetas “artesãos” seriam capazes até de formular,
por causa de sua experiência como poetas, preceitos para que uma obra de
arte seja realmente uma obra de arte. Arte que se pode ensinar e aprender.
Dessa forma, desde a Antiguidade, poetas e críticos se debruçaram a estudar e
formular artifícios para que o artifex compusesse um artificium de qualidade,
beleza, ou, nas palavras de Longino
15
, sublime. Isso porque, de acordo com
Horácio, aos poetas, nem os homens, nem os deuses, nem as colunas das
livrarias perdoam a mediocridade” (Horácio, Arte Poética, 372-373
16
).
1.1 A palavra ars e sua linhagem
Mas afinal, qual é o sentido de arte para esses poetas artesãos? O
termo arte tem sua raiz no latim ars, que o Novíssimo Dicionário Latim-
Português (Saraiva, 1993) define como
Ārs, ārtĭs, s. apar. f. (de αρετή, boa disposição do corpo ou alma, de άρω,
adoptar, acomodar; ou de άρος, utilidade, vantagem (?)) Arte, artifício,
tudo o que é de indústria humana; Qualquer arte, ofício, sciencia;
Destresa, perícia, habilidade, prenda, nio, talento; producto da arte;
Plur. As Musas
17
; Regras, preceitos d’uma arte, a parte theorica d’uma
arte, tractado de rhetorica; grammatica. O proceder, o ser bom ou mau;
8º Artifício, ardil, astúcia, alicantina, dolo, engano, fraude, manha, treta.
e o Oxford Latin Dictionary (Glare, 1996) como
1 Professional, artistic, or technical skill as something acquired and
exercised in practice, skilled work, craftsmanship, art. 2 (spec. Where a
contrast w. natura, ingenium, etc., is stated or implied ) Artificial methods,
human ingenuity, artificiality, art. 7. A profession, art, craft. 8. Artistic
achievement or performance, a person´s art or artistry, an artistic design or
representation. b (concr. A work of art, an invention, device, or contrivance.
15
Muito se discute a respeito da autoria da obra Do Sublime. Jaime Bruna, tradutor da obra para o português, afirma a
falta de certeza em relação ao autor e data da obra, que seria provavelmente o séc. I d.C. De acordo com ele, o
autor pode ter se chamado Longino, ou Dionísio, ou Dionísio Longino, mas muitos preferem chamá-lo Anônimo.
Adotou-se para este trabalho o nome Longino, pela tradição e falta de certezas.
16
In: BRUNA, J. A Poética Clássica. Aristóteles, Horácio, Longino. Introdução por Roberto de Oliveira Brandão;
tradução direto do grego e do latim por Jaime Bruna. 2
ª
ed. São Paulo, Cultrix, 1985. (p. 66).
17
Essa acepção (cujo exemplo provém de Fedro Chorus Artium) não deixa de ser intrigante, que remete às Musas,
que são as responsáveis pela inspiração. Mas tal problemática será retomada no momento oportuno.
membra
dedit.
ille per
17
9. (sg. or pl. The rules or principles of an art, theoretical considerations,
theory. b the rules or principles of an art in written form (...). 10. A method,
system, procedure; a principle of classification.
À ars ligam-se também:
Artifex, -ficis m. Also artufex 2. An expert practitioner of any art, a
specialist, Professional, master. 3. A skilled workman, craftsman, artisan. 4.
A craftsman in one of the fine arts, a sculptor, painter or the like, an artist, 6.
A maker, creator, producer; the author (of a book). b a contriver (of
something artificial). c. the person responsible (for an act, etc.), perpetrator.
(Oxford Dictionary).
Artificium, -(i)i n. 3 The rules or theory of an art, a prescribed method or
system. 5. A work of art. (Oxford Dictionary).
O Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine (Ernout e Meillet, 1951)
diz que ars designe souvent une habilite acquire par l’étude ou par la pratique,
une connaissance technique; d’où talent, art”, opposé à natura, à ingenium
(...).
De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Houaiss,
2001), a cognação latina inclui artifex,-ĭcis artífice, operário, indivíduo que
exerce uma arte (médico, orador, escritor etc.), artista; autor, criador; artificĭum,
-ĭi ocupação (de um artista), mister, emprego; perícia, competência, habilidade;
teoria, sistema; artifício, ardil, manha, astúcia, e seus derivados
artificiōsus,a,um feito com arte, artístico; hábil, engenhoso e artificiālis, e
artificial, cheio de artifício. De acordo com o mesmo dicionário, a cognação
vern. está doc. desde a origem do idioma: arte, artefa(c)tado, artefa(c)tar,
artefa(c)to, arte-final, arte-finalista, arteirice, arteiro, arteiroso, artejano,
artemages, arte-maior, arte-menor, artesã, artesanal, artesanato, artesania,
artesano/artesão, ‘artífice, artice, articida, articídio, artífice, artificiado, artificial,
artificialidade, artificialismo, artificialista, artificialístico, artificialização,
artificializado, artificializante, artificializar, artificializável, artificiar, artifício,
artificioso, artimanha, artimanhoso, artinha, artista, artisticidade, artístico,
desartificado, desartifício, desartificioso; inartificial, inartificioso, inartístico,
inércia, inerciação. Inercial, inerciar, inertância, inerte; solércia, solerte.
Por todas as definições, podemos ver que “arte” está diretamente
relacionada à perícia, técnica, habilidade, bem como a método, teoria, sistema
excubias
custodum
leniter ire
18
de procedimentos. Dessa forma, artificium (ars, facere = fazer arte) é o
proceder com arte e está, em português, diretamente relacionado a astúcia e
ardil. Como mostra o Dicionário Houaiss, ars está também na raiz de palavras
como artificial, algo manipulado pela habilidade humana. Porém, mais
relacionado com a discussão acerca dos poetas “inspirados” e “artesãos” está
a oposição que todas as definições trazem entre ars e ingenium ou natura.
Estes dois últimos conceitos estariam, portanto, diretamente ligados à
inspiração. A palavra ingenium, por exemplo, como atesta Dante Tringali, está
relacionada com a palavra genius (aquele que tem engenho). O nio seria
uma divindade que nasce com e acompanha o homem pela sua vida,
determinando as inclinações do indivíduo (Tringali, 1993, p. 59-60).
1.2 A manipulação da linguagem para obtenção do efeito desejado
Na poesia, a manipulação da linguagem que a torna artificial tem sempre
um objetivo: provocar o que Dufrenne chamou de “estado poético”, um estado
de encantamento, provocado pelos poderes do verbo, no qual uma consciência
dócil e feliz realiza o poema(Dufrenne, 1969, p. 109). Tal “artificialidade” pode
também ser comparada a um jogo, como quer Huizinga, para quem o que a
linguagem poética faz é essencialmente jogar com as palavras. Ordena-as de
maneira harmoniosa, e injeta mistério em cada uma delas, de modo tal que
cada imagem passa a encerrar a solução de um enigma(Huizinga, 2001, p.
149). Idéia semelhante é enfatizada por Poe na Filosofia da Composição. De
acordo com ele, a composição de O Corvo começou com a consideração de
um efeito e não teve nenhuma “ajuda” do acaso ou da intuição, já que o
trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a
seqüência rígida de um problema matemático” (Poe, 1944, p. 79).
No entanto, atesta Horácio que não basta que os poemas sejam belos,
é preciso que sejam doces e transportem o espírito do ouvinte para onde
quiserem (Tringali, 1993, p. 29)
18
. Ora, é exatamente este o objetivo da
Eloqüência, ou seja, mouere. Quintiliano remonta a Isócrates a definição de
18
Non satis est pulchra esse poemata; dulcia sunto/et, quocumque uolent, animum auditoris agunto (Horácio, Arte
Poética 99-100).
monstrat:
inoffensos
19
Eloqüência como uma força de persuadir. No entanto, chama a atenção para o
fato de que outras coisas, o dinheiro, por exemplo, persuadem, tornando,
então, incompleta a definição. Frente a isso, em consonância com Górgias e
Teodetes, Quintiliano define Eloqüência como sendo uma faculdade de
persuadir por meio do discurso, sendo o seu fim o de mover os homens por
meio desse discurso àquilo a que o orador quiser
19
. Levando em consideração
essa semelhança, uma ligação entre poeta e orador pode ser estabelecida
since in antiquity there was no fixed boundary between poetry and rhetoric at
any period (Cairns, 1972, p. 36).
A retórica era, para Cícero, eloqüência artificiosa, que, como mostra
Quintiliano, se existe uma arte de tecer, de edificar, também o falar bem não
teria chegado ao alto grau que alcançou sem uma arte. No entanto, Quintiliano
não nega o fator natural que tem a eloqüência: apenas afirma que o exercício é
capaz de aprimorar essa capacidade. Isso porque a eloqüência existiu antes da
arte, não dependendo, portanto, dela. Lembra ainda Quintiliano que toda arte
tem seus princípios na natureza. Assim, não foi a eloqüência que nasceu com a
arte, mas sim os oradores. Nesse sentido, um orador será tanto melhor quanto
mais empregar em seus discursos a arte, que demanda trabalho, estudo,
exercício, longa experiência, e uma prudência”. Essa idéia é muito próxima à
de Horácio, para quem a disciplina e o trabalho formam o poeta.
Da mesma forma que os preceitos horacianos na Ars Poética (quando é
discutida, por exemplo, a questão do melhor metro para determinado tema),
baseiam-se nas leis da conveniência, para Quintiliano o mais importante para o
orador é a observação do que é decente e conveniente.
Mas, com tanto raciocínio e rigor matemático, com tantas artes, como é
possível que poesia seja definida “pelo poder de exercer uma ação de um certo
modo físico, como fazem uma droga, uma música enfeitiçante e frenética ou
um espetáculo fascinante”? (Dufrenne, 1969, p. 102). Também é de se
perguntar como é possível que o orador lograsse mover os afetos inconstantes
de seus ouvintes com uma arte prescrita em manuais?
A eloqüência demonstra a sua maior força quando tira o ouvinte da
reflexão e do raciocínio e o inquieta com as paixões, pois só assim ela move os
19
O verbo que designa o mover em Quintiliano é mouere e em Horácio agere. No entanto, fica claro que o objetivo,
tanto do poeta como o do orador, é o mesmo.
derigit
ille
pedes.
20
afetos. De acordo com Lausberg, O genus sublime (grande, robusto,
vehemens, amplo, grandiloquum, válido; αδρον γένος) tem o ornatus patético,
porque quer comover (mouēre) (Lausberg, 1967, 272). O ornatus
corresponderia (aptum) à necessidade, que todo o homem (tanto sujeito
falante, como ouvinte) sente, de que haja beleza nas expressões humanas da
vida e na apresentação do próprio homem em geral (Lausberg, 1967, p. 138).
No entanto, a beleza do ornatus está relacionada tanto aos pensamentos (res)
quanto à formulação lingüística (uerba), existindo, então, um ornatus de
pensamento e um ornatus de palavra (Lausberg, 1967, p. 138).
Longino também ao “jogo” com a linguagem uma importância crucial
para a obtenção do sublime. De acordo com ele, as fontes do sublime são
cinco, sendo as duas primeiras tanto o alçar-se a pensamentos sublimados
como o alçar-se à emoção veemente, essencialmente inatas. As restantes,
contudo, se adquirem também pela prática (Longino, Do Sublime, VIII
20
).
Portanto, apesar de considerar a natureza ou a capacidade inata do indivíduo
uma parte importante da composição literária, Longino na manipulação da
linguagem o fator desencadeante do sublime, tanto que formulará preceitos
para tal manipulação. Para ele, um autor atrai o ouvinte não apenas pela
escolha das idéias como também pela composição das idéias escolhidas.
Assim, o que consuma o primor do poema Semelhante aos deuses, de Safo, é
o fato de ter ela conseguido colher e combinar adequadamente os sintomas
mais agudos de que os apaixonados são acometidos (Longino, Do Sublime,
X
21
). Nesse sentido, é relevante lembrar a máxima de Ênio: “bene facta male
locuta male facta arbitror” (julgo mal feito aquilo que, embora bem feito, foi mal
narrado).
Assim, como mostra Lausberg:
No domínio interno à obra, a dispositio impregna a totalidade da
obra artística e cada uma de suas partes, chegando até cada frase
isolada, até ao mais pequeno grupo de palavras e a cada som
isolado. A liberdade do artista não é a mesma em todos os
domínios. 1) na língua, p.ex., na seqüência dos sons de uma
palavra, leis fixas da dispositio, às quais o artista pode esquivar-
20
BRUNA, J. A Poética Clássica. Aristóteles, Horácio, Longino. Introdução por Roberto de Oliveira Brandão;
tradução direto do grego e do latim por Jaime Bruna. 2
ª
ed. São Paulo, Cultrix, 1985, p. 77.
21
BRUNA, J. A Poética Clássica. Aristóteles, Horácio, Longino. Introdução por Roberto de Oliveira Brandão;
tradução direto do grego e do latim por Jaime Bruna. 2
ª
ed. São Paulo, Cultrix, 1985, p. 81-82.
At
quondam
noctem
21
se por medidas bastante violentas (associais); 2) No domínio da
estruturação dos pensamentos, está o artista mais livre, embora
também aqui existam leis consuetudinárias, condicionadas pelo
meio ambiente. 3) Por conseguinte, o artista não ordena sua obra
com plena liberdade, mas sim em contínuo conflito entre a sua
liberdade e a coerção mais ou menos forte das normas sociais.
Assim também o aptum interno tem condições externas à obra.
(Lausberg, 1967, p. 97)
De acordo com o exposto, deve o orador, como os poetas, ser capaz de
usar convenientemente o ornatus, adequando os pensamentos à forma
lingüística, que está sujeita a determinadas leis. No entanto, o orador pode
buscar o consentimento afetivo do árbitro da situação com o fim de originar
uma alteração desta situação em seu benefício, ou seja, provocada pelo árbitro
da situação, mas em congruência com o desejo do orador, partindo-se,
igualmente, do princípio de que o consentimento afectivo pode preencher
possíveis lacunas da convicção intelectual (Lausberg, 1967, p. 105). Ainda
segundo Lausberg (1967, p. 105), distinguem-se dois graus de afectos: ethos
e pathos. O ethos (affectus, mites atque compositi;
θος) é o grau mais suave
de afetos, que aparece como um estado de alma permanente e que também
pode ser valorizado como caráter
θος, mores). O fim pretendido é delectare
(consiliare, τέρπειν, ψυχαγωγει), delectatio (uoluptas;
δονή, ψυχαγωγία),
placēre (isto especialmente quanto ao ator dramático, que agrada ao público e
é aplaudido). De acordo com Lausberg, esse grau afetivo é especialmente
indicado para o exórdio, a fim de que se obtenha a benevolência
(beneuolentia), e aparece, além disso, no discurso geralmente como ornatus”.
Por sua vez, o pathos (affectus concitati; πάθος) é o grau mais violento de
afetos e sua finalidade é a de mouēre (commouēre,
χπλήσσειν
,
ξιστάναι),
sendo, por esse motivo, indicado para a “peroratio, como impulso imediato, que
leva à acção, e que consiste em que seja pronunciada uma sentença favorável
ao partido” (Lausberg, 1967, p. 105).
Reforçando a idéia de Poe, a da obtenção de um efeito, a composição
do poema, embora racional e “ardilosamente” elaborada, visa não à persuasão
do leitor, mas ao arrebatamento, que o admirável, com seu impacto, supera
sempre o que visa a persuadir e agradar; o persuasivo ordinariamente,
simulacra
que vana
timebam;
22
depende de nós, ao passo que aqueles lances [geniais] carreiam um poder,
uma força irresistível e subjugam inteiramente o ouvinte(Longino, Do Sublime,
II
22
). Dessa forma, defende o autor do Sublime (em citação que, embora
extensa, se faz pertinente nesse ponto):
O arranjo, que é certa harmonia da linguagem (...) move espécies
variadas de palavras, pensamentos, ações, belezas, musicalidades
coisas essas que conosco nascem e crescem; do mesmo passo,
pela combinação e ltiplas formas de seus próprios sons, transmite
à alma dos circunstantes a emoção existente no orador, fazendo os
ouvintes comparti-las e, pela gradação dos termos, edifica o sublime;
não é certo que por esses mesmos meios, ao mesmo tempo nos
fascina e infalivelmente nos dispõe para o majestoso, o valioso, o
sublime e tudo que encerra em si, dominando totalmente a nossa
inteligência? (Longino, Do sublime, XXXIX
23
).
Seria o que Dufrenne chamou de fazer jus igualmente a dois
inconciliáveis: o intelecto e o sentimento, de conquistar o sentimento sobre o
intelecto” (Dufrenne, 1969, p. 127).
1.3 A história do poeta artesão
Também Dufrenne distingue dois tipos de imagens de poetas, o artesão
e o inspirado (Dufrenne, 1969, p. 122). De acordo com ele, a primeira tende a
negar o estado poético em proveito do ato poético”, ressaltando o caráter
voluntário, laborioso, em suma artesanal, desse ato”. Em consonância com a
acepção 7 do Oxford Latin Dictionary, Dufrenne atesta que o poeta é o homem
de uma profissão”, conhecedor de todas as receitas de sua arte por ter feito
longamente seu aprendizado ao inscrever-se na escola dos mestres. No
exercício dessa profissão, portanto, o poeta é responsável, de algum modo,
pelo destino da linguagem, e, através da linguagem, pelas relações entre o
homem e o mundo: sua operação o transcende e o associa ao sagrado”. Por
causa de tão importante papel, o poeta não pode deixar-se arrastar livremente
pela improvisação, já que é o depositário de uma verdade que, para ser
22
BRUNA, J. Id,. p. 72.
23
BRUNA, J. Ibid., p. 108.
mirabar,
tenebris
quisquis
23
preservada, deve ser repetida sem alterações. Tal imagem de poeta está
presente em várias civilizações arcaicas. Sendo o poeta aquele que encarna a
linguagem (citando Jousse Étude, Dufrenne afirma que essa foi impressa em
sua carne, segundo os métodos severos e por vezes cruéis de uma
memotecnia orgânica”), ele torna-se um declamador infalível, vivendo com seu
corpo uma linguagem extremamente ritmada. Seria esse o modo de compor
dos profetas hebreus e dos aedos gregos. Sendo assim, o bardo que parece
improvisar foi submetido a uma “história” de disciplina que parece espontânea
à força de trabalhoso exercício (Dufrenne, 1969, p. 123-124). E, mesmo
quando a poesia não se associa diretamente à religião, a figura do poeta
artesão não desaparece. É o caso dos poetas romanos, por exemplo. De
acordo com Dufrenne, citando Maritain, a poesia clássica tinha necessidade da
música das palavras e de todas as exigências prosódicas de uma forma
rigorosa. Para ele, essas leis todas são instrumentos da libertação do sentido
poético (Dufrenne, 1969, p. 126-127). Tais leis exigiam então dos poetas um
difícil trabalho de lima. De acordo com Horácio (Horácio, Arte Poética, 290-
291
24
), o Lácio não seria mais poderoso (...) pela bravura e gloriosos feitos de
guerra do que pela língua, se não entediasse cada um dos poetas o demorado
trabalho da lima”. É por isso que ele aconselha que os destinatários de sua
carta
25
retenham o poema que não tenha sido apurado em longos dias por
muita rasura, polido dez vezes a que uma unha bem aparada não sinta
asperezas” (Horácio, Arte Poética, 292-294
26
).
Também Ovídio escrevia sob essa concepção. No entanto, a obra em
que a palavra ars aparece logo no título não é, a princípio, um tratado de arte
poética: trata-se de seu livro Ars Amatoria ou Ars Amandi. Usou-se a
expressão “a princípio” porque os preceitos formulados e ensinados em
diferentes tratados sobre a arte poética apresentam semelhanças muito
importantes com os preceitos ditados por Ovídio para a conquista e
manutenção do amor. A principal semelhança entre o tratado prático de amor e
as poéticas dos poetas artesãos está na crença de que, para dominar ambos
24
BRUNA, J. A Poética Clássica. Aristóteles, Horácio, Longino. Introdução por Roberto de Oliveira Brandão;
tradução direto do grego e do latim por Jaime Bruna. 2
ª
ed. São Paulo, Cultrix, 1985, p. 63.
25
A chamada Arte Poética de Horácio é uma carta endereçada aos Pisões (Epistula ad Pisones).
26
BRUNA, J. A Poética Clássica. Aristóteles, Horácio, Longino. Introdução por Roberto de Oliveira Brandão;
tradução direto do grego e do latim por Jaime Bruna. 2
ª
ed. São Paulo, Cultrix, 1985, p. 63-64.
iturus
erat.risit,
ut
audirem,
24
os assuntos, podem-se formular e aprender preceitos práticos. As artes
poéticas que regem o trabalho do artesanato irão conceber a produção poética
como ars, ou seja, prática e teoria como aspectos importantes na arte de
escrever. Ora, para Ovídio, o amor e sua conquista também podem ser
adquiridos por meio de prática, de conhecimento técnico. Assim, temos o
mesmo princípio em todas as obras: ars como meio de se atingir o objetivo,
seja esse escrever ou amar. Soma-se a essa semelhança o fato de as obras
ovidianas possuírem um forte apelo metatextual, estando o poeta
freqüentemente refletindo sobre o seu próprio exercício. O que parece haver é
uma transposição de discursos, os dos preceitos artísticos para os dos
preceitos amorosos.
Do alvitre
Um ponto–uma laçada, reza a cartilha da tecelã. E tendo tecido uma
parte da peça, convém arrematá-la para que as pontas que a ligarão às demais
partes não restem nem incomunicáveis de si para diante, nem frouxas de si
para trás.
São três as pontas que hão de aguardar aqui a concorrência das que
serão traçadas nos capítulos subseqüentes: a idéia de que várias mãos
concorrem na feitura do texto, sejam citações e convenções, sejam musas ou
deuses personificados. A segunda ponta, oferecida por João Cabral, vem da
inversão que o poema Tecendo a manhã comete: o texto cria o fato. Valemo-
nos aqui da idéia de sistematização: a linguagem põe ordem na profusão da
experiência bruta, daí a idéia que resta de que ela é que estaria instaurando a
realidade. Por fim, a idéia de recrutamento do processo no ato mesmo de
referenciação, ou, dito de outra perspectiva, a plasmação da referência no
modo de referir.
E é nessa perspectiva de que o arranjo impõe-se ao tema, que esta
parte searrematada com o trecho de uma crônica de Machado de Assis, na
qual a composição, sob a orientação de uma deusa grega, em se tecendo a si
própria (o autor vai falando da necessidade prosaica de compor um texto), tece
o pano de fundo dos acontecimentos que preenchiam a vida cotidiana naquela
tenera
cum
matre
Cupido
25
semana. Vai um trecho do tecido, para mal cobrir uma pequena parcela da
curiosidade:
(...) Digo-lhe mais: êste mundo em que a senhora supõe viver, não
passa talvez de um simples boato. Os anjos, para matar o imortal tempo,
fizeram correr pelo infinito o boato da criação, e nós, que imaginamos
existir, não passamos das próprias palavras do boato, que rolam por todos
os séculos dos séculos.
– Palavras apenas?
Palavras, frases. A senhora é uma linda frase de artista. Tem nas
formas um magnífico substantivo: os adjetivos são da casa de Madame
Guimarães. A bôca é um verbo. Et verbo caro facta est.
vem o senhor com as suas graças sem graça. Não me de fazer
crer que a explosão da ilha Mocanguê foi uma vírgula...
Não foi outra cousa. O bombardeio é uma reticência, a moléstia um
solecismo, a morte um hiato, o casamento um ditongo, as lutas
parlamentares, eleitorais e outras uma cacofonia.
(...)
Não, não me mande embora, deixe-me ficar ainda um instante. É tão
bom vê-la, mirá-la... E depois, advirto que estou apenas na tira oitava, e
tenho de dar, têrmo médio, doze.
– Vamos; fale por tiras.
Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. Não esgotaria o
assunto; tudo seria pouco para dizer os seus feitiços e o gôsto que sinto em
estar a seu lado.
27
27
Crônica de 29 out. 1893. In: Machado de Assis, 1962.
et leviter
'fies tu
quoque
26
Capítulo II
OVÍDIO E O GÊNERO ELEGÍACO
Sob outro ponto de vista, a representação cabralina do fazer poético,
analisada no capítulo anterior, dialoga, de certo modo, com recentes
encaminhamentos de crítica literária no âmbito dos Estudos Clássicos. Poder-
se-ia pensar em cantos de galo como metáforas dos temas ou topoi utilizados
por um autor, enquadrando sua obra em uma tradição. Segundo Francis
Cairns, os autores escreviam de acordo com o que ele chamou de “composição
genérica”, que pode ser entendida como uma forma de arte alusiva em que um
autor lança mão de uma série de lugares-comuns de um gênero ao escrever
sua obra. Assim, the poems and speechs of classical antiquity are not
internally complete, individual works but are members of classes of literature
known in antiquity as γένη είδη, which will be described (...) as genres”.
(Cairns, 1972, p. 5-6).
Assim, dependendo da maneira de o leitor encarar a poesia, o exposto
não parece estar muito distante do que acontece mesmo hoje na gênese de
uma obra. No entanto, alguns conceitos, como imitação, por exemplo, muito
condenados após o Romantismo, em se tratando de literatura clássica, tinham
um valor muito diferente daquele estabelecido por autores e leitores que
clamam por originalidade
28
. Além disso, o tema “poesia”, sobretudo lírica, atrai
leitores desesperados em escrutinar as obras num a de encontrar traços
biográficos que justifiquem determinado comportamento do eu literário, como
se cada pedra erguida sob o som da flauta de Anfion tivesse que ser um
pedaço de seu corpo e não a pedra adequada para a construção das muralhas
28
Caberia aqui uma discussão sobre imitação e emulação. Porém ficará evidente, ao longo do trabalho,
que o poeta vai além da condenada “imitação”. Nesse sentido, ficam para reflexão e esclarecimento
desses pontos as palavras de Oliva Neto: É apenas com a (...) instância da imitação que se definem
uma linhagem e até uma tradição, ou seja, é no momento da primeira repetição, amiúde tão
depreciada, que se percebe que os procedimentos poéticos de um inventor são apreciados e
valorizados, passando à nobre condição de tópoi koinói, loci communes, lugares-comuns, tão
importantes para a configuração das várias dimensões de nero na poesia da Antigüidade. Se imitar
permitia reconhecer, como homenagem, a procedência de tudo aquilo que então é admitido como
paradigma, a emulação, porém, não deixa de demonstrar, nos imitadores, a tentativa igualmente nobre
de superar seu modelo. A emulação é precisamente o que faz com que a imitação não seja servil
(Oliva, 1997, p. 96-7).
fortis' ait.
nec mora,
venit
amor—
27
de Tebas. Se uma poesia concebida como efusão de sentimentos pessoais ou
depositório de experiências reais existe na Antiguidade não é a discussão
posta em pauta no momento, apesar de acreditar-se que tal crença é ingênua.
O fato é que não era essa a concepção de poesia dos autores do chamado
período clássico da literatura latina, assim como não é mesmo para alguns
autores modernos. E, mais uma vez, é a João Cabral que vamos recorrer:
Nós nunca nos livramos do Romantismo. A maior desgraça que
aconteceu para a humanidade talvez tenha sido o Romantismo. No
Brasil, então, ninguém até hoje se livrou do romantismo. Por isso eu
fico chateado quando me chamam poeta... Você imagina logo aquele
cara com cabeleira grande, uma gravata cavalière, um sujeito
irresponsável, talvez até homossexual... (...) Então eu procuro
justificar esse meu, vamos dizer, cerebralismo, intelectualismo, o
máximo que um artista deve aspirar... Porque todo mundo é contra o
cerebral. Eu acho que não: eu gostaria de fazer uma poesia mais
cerebral do que faço. (Cabral de Melo Neto, 1989, p.14)
29
A aproximação da concepção de “cerebral” em João Cabral com as
poéticas da Antigüidade é estabelecida somente porque, nos dois casos, a
poesia é vista como profissão e técnica. Esse “cerebralismo” nos poetas
clássicos estaria ligado, entre outros elementos, à noção de composição
genérica e sua busca por dar à tradição a qual deseja se incorporar uma
contribuição própria, ou seja, uma originalidade que não consistia em negar,
mas em manipular, de forma inédita, “cartas” conhecidas. De acordo com
Achcar, para as poéticas clássicas, a dificuldade de encontrar as portas que
dêem acesso à expressão nova não se resolve pelo arrombamento das portas
conhecidas”. Procura-se chegar através delas a passagens que não foram
freqüentadas, ou abrir nessas passagens outras portas que levem a caminhos
ainda inexistentes” (Achcar, 1994, p.18-19).
2.1 A sinceridade dos poemas
Para alguns críticos, entre eles Leoni, o fato de Ovídio ter usado forma e
temas da tradição elegíaca para mostrar sua genialidade enquanto poeta e não
29
Interessante notar a semelhança entre o perfil traçado para o poeta em João Cabral e em Horácio, quando este se
refere aos poetas que não se dedicam ao estudo e comportam-se como loucos. (Ars Poética, 295-304)
non
umbras
nocte
volantis,
28
seus sentimentos pessoais o fazem um poeta menor. De acordo com ele, o
esplendor da poesia de Ovídio é ilusório: apenas a forma, enquanto que a
substância está vazia(Leoni, 1966, p. 83). Essa substância vazia ovidiana
se deve ao fato de ele não cantar seus próprios sentimentos e por descrever
uma mulher que não tem vida, diferentemente de Délia e Cíntia (que, para o
crítico em questão, têm existência empírica comprovada), o que torna sua
poesia sem comoções ou vibrações humanas (Leoni, 1966, p. 84). Ora, se
fôssemos pensar a poesia a partir dessa perspectiva, teríamos que excluir dos
grandes nomes da literatura Fernando Pessoa, por exemplo, por ter assumido
que o poeta é um fingidor. É por isso que, do ponto de vista de Sharrock, the
elegiac woman is as much muse and poetry as she is flesh and blood
(Sharrock, 2003, p. 101). O que Ovídio faz em seus trabalhos que versam
sobre o amor é colocar private life on display, a fiction played out for real, a
reality fantasized” (Sharrock, 2003, p. 150). Nesse sentido, Amores constitui um
conjunto de poemas permeados dos topoi da elegia amorosa: a milícia
amorosa, o amante implorando junto à porta, a existência de um rival, a
infidelidade da amada, as eventuais vezes em que a amada lhe abre a porta
etc. É pertinente ainda notar que Ovídio, como atesta Sharrock, por vezes
introduz esses elementos da elegia em ordem inversa: “Where Propertius has
Cynthia prima bringing love bringing elegy bringing elegiac couplets, in Ovid´s
schema the enforced elegiac couplet brings elegy bringing love bringing a
beloved” (Sharrock, 2003, p. 156). Ou então os vestem com outras roupagens:
em Amores II 15, por exemplo, Ovídio desenvolve o topos, muito comum nos
epigramas helenísticos, de se transformar num objeto ou num animal para se
aproximar da amada. No entanto, Ovídio um tratamento diferenciado a esse
topos, que, como notou McKeown
30
, o eu-lírico não tem emoções
humanas, como também retém suas próprias emoções e características físicas.
E é baseado em constatações dessa amplitude que, para Veyne, a
elegia é uma poesia pseudo-autobiográfica onde o poeta é conveniente com
seus leitores às custas de seu próprio Ego. Ele vai até mesmo tecer
comentários afirmando que a elegia era na verdade poesia divertida, (...) no
fato de que não era para ser levada a sério (Veyne, 1985, p. 79).
30
Apud Hardie, 2002, p. 55.
non timeo
strictas in
mea fata
manus.
29
Dessa forma, quem quer que tome por “sinceridade” de um poeta o fato
de ele ser capaz de transpor para o papel a experiência, tal qual ela se deu na
vida real do autor, irá se decepcionar com as elegias latinas, sobretudo se
comparar peças de diferentes autores. Afinal, não parece paradoxal que, ao
falar de suas experiências pessoais frente ao amor, como fazem Propércio e
Ovídio, os poetas usem elementos gerais e convencionados em uma tradição?
Tal procedimento não fará a obra parecer carente de sinceridade?
Em artigo intitulado “Sincerity” and the Roman elegists, Allen, de certa
forma, responde essas questões ao discutir a noção de “sinceridade” nas
elegias, afirmando que, diferentemente do leitor moderno, the ancient reader
expected this conformity of individual with general experience. When the elegist
took for his material traditional commonplaces of erotic literature, he did so
because those commonplaces were the repository of a practiced attitude toward
love and because through them the poet established a community of
experience with his readers. Dessa forma, continua Allen, if sincerity is
considered a function of style, both Propertius and Ovid, writing in their
characteristic manners, are sincere because each employs a style which
accords with the character his elegies portray” (Allen, 1950, p. 157).
Para demonstrar que sinceridade na poesia latina tem um conceito muito
diferente do moderno, Allen destaca que, em se tratando de retórica, o orador
precisa fazer com que as pessoas acreditem em seu discurso. Para tanto, ele
precisa que sua argumentação não simplesmente convença a audiência, mas
que esta fique convencida de sua sinceridade. Dessa forma, para Allen, o
termo fides é o que estaria mais próximo da idéia de “sinceridade”, tanto na
poesia quanto na oratória. Porém é digno de destaque que fides contains
simultaneously the ideas of ‘sincerity’ and ‘persuasiveness’ (Allen, 1950, p.
146). Nas palavras do crítico: The fides of an orator depends on the conviction
which he arouses that he possesses the qualities which he claims. Fides
involves a relationship between the speaker and his audience; it means both
good faith on the part of a speaker and the acceptance by an audience of his
pretension to speak in good faith (Allen, 1950, p. 147). Nesse ponto, vale
lembrar Quintiliano: aut habeat, aut habere credatur (ou a tenha ou faça crer
possuí-la). Dessa forma, sinceridade ou verdade são antes efeitos produzidos
te
nimium
lentum
timeo,
30
pelo eu que finge (de fingo, “fingir”, mas também “modelar”, “dar forma”) o
poema com um eficiente arranjo discursivo.
Para Allen, o orador que obtém sucesso é o que conhece a arte de
encantar seus ouvintes, sem pecar por excesso ou afetação e que, portanto,
pode convencê-lo do soundness of his character and the justice of his case”.
Assim, fides, a impressão de sinceridade resultante da persuasão, é produto do
estilo. “Sincerity, then, as we find it in ancient criticism, involves a relation
between the artist and the public; it is established by the style of the work of art.
The personality of the artist, except as it appears to the public in the work of art,
is irrelevant to the question of sincerity(Allen, 1950, p. 147). Nesse sentido,
vale citar Achcar: Dizer que certo poema nos parece carente de sinceridade é
antes um julgamento estético que psicológico. Esse me parece ser o sentido
profundo da afirmação de Ezra Pound segundo a qual a técnica do escritor é a
prova de sua sinceridade (Achcar, 1994, p. 51).
No entanto, muitos críticos tentaram traçar a biografia dos autores
latinos baseados em suas obras, apesar de os próprios autores declararem que
tal empresa é inútil, como atestam:
Catulo
nam castum esse decet pium poetam
ipsum, uersiculos nihil necesse est;
A um poeta pio convém ser casto
ele mesmo, aos seus versos não há lei
(Catulo XVI, 5-8)
31
Ovídio
Crede mihi, distant mores a carmine nostro
(uita uerecunda est, Musa iocosa mea)
magnaque pars mendax operum est et ficta meorum:
plus sibi permisit compositore suo.
Nec liber indicium est animi, sed honesta uoluntas:
plurima mulcendis auribus apta feres.
Acredita em mim, nossos costumes diferem de nossos versos:
Minha vida é respeitável, minha musa é que é brincalhona;
Grande parte da minha obra, mentira e ficção,
Permitiu mais a si mesma que a seu escritor;
31
Tradução de João Ângelo Oliva Neto.
tibi
blandior
uni;
31
Meu livro não revela meu estado de espírito; ele é, sim, um prazer
inocente,
Trazendo algo capaz de acariciar os ouvidos.
(Ovídio, Tristes II, 353-358)
32
Marcial
lasciua est nobis pagina, uita proba.
Licenciosa é nossa página; nossa vida, decente.
(Marcial, I 4, 8)
33
Se esta pesquisadora logrou êxito na tentativa de expor a problemática
da sinceridade dos autores latinos e suas obras, escritas sob a ótica da
elucidada composição genérica, o que a filia a uma tradição, faz-se necessário
tecer alguns comentários acerca da tradição na qual Ovídio se insere.
2.2 A poesia lírica
De acordo com Bowra, a palavra λυρικός
34
aparece pela primeira vez
em Alexandria (Bowra, 1961, p. 2), onde os poetas alexandrinos, no intuito de
classificar os poetas que os precederam, elaboraram uma lista dos εννέα
λυρικοί
35
. A lista é mencionada em dois epigramas gregos anônimos (A. P. 9
184 e 571) de datação incerta, mas que trazem, embora em ordem diferente,
os seguintes nomes: Píndaro, Baquílides, Safo, Anacreonte, Estesícoro,
Simônides, Íbico, Alceu e Alcman. Cada um desses poetas, para os
alexandrinos, era chamado de λυρικός por comporem canções para a λύρα
36
.
É o que também afirma Lesky: “Se, no Helenismo, a expressão ‘lírico’
(λυρικός) se torna comum, ela tem um sentido bem concreto: uma poesia que
se cantava ao som da lira (Lesky, 1995, p. 134). A associação entre poesia e
32
Trad. Paulo Sérgio Vasconcellos.
33
Trad. Paulo Sérgio Vasconcellos.
34
O autor, em nota, observa que a palavra usada anteriormente era µελοποιός (Aristoph. Ran. 1250; Plat. Íon 533e,
534ª; Prot. 326a).
35
Bowra menciona o desejo de Horácio em ser incluído como um poeta lírico (C. I 1, 35-36) e uma passagem em
Petrônio como atestados de existência da lista e conhecimento de uma tradição anterior a eles, que conheciam a
escola alexandrina.
36
Bowra mostra que existe um problema nessa classificação, já que também a epopéia era acompanhada, nos
primórdios, por uma espécie de lira (φόρµιγξ). Além disso, mesmo os poetas líricos não se restringem ao uso da
lira, como, por exemplo, Píndaro e Baquílides, que mencionam flautas (instrumentos usados para acompanhar
elegias) como parte do acompanhamento musical. Nesse sentido, Bowra registra que the Alexandrians were
justified in drawing up a list of the nine λυρικοί, for each of them composed songs for the lyre, and this serve to
tu, me
quo
possis
perdere,
32
música é recorrente, já que a poesia, ao que tudo indica, originou-se da
Mousiké “a arte das musas”, compartilhando com ela o ritmo e a melodia.
A lírica tinha duas formas principais de manifestação, a jâmbica (nome
derivado de iambo, metro em que era composta e que, segundo Aristóteles,
expressava o sarcasmo) e a elegíaca. Esta, de acordo com Fränkel, estava
mais próxima da epopéia pelo metro, mas se diferenciava dela pela brevidade,
construção (seqüência de dois versos ao invés de hexâmetros repetidos) e por
seu conteúdo: En ocasiones, narran, pero sus objetivos específicos son la
admonición, la enseñanza y la reflexión” (Fränkell, 1993, p. 154).
2.3 Com um pé na cova
37
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define elegia como
1 LIT poema composto de versos hexâmetros e pentâmetros
alternados 2 LIT poema lírico de tom ger. terno e triste 3 MÚS
canção de lamento; nênia. ETIM lat. elegía ou elegéa,ae 'elegia,
espécie de poesia; musa da elegia', do gr. elegeía,as 'elegia, canto
elegíaco'; ver elegi(o)- SIN/VAR trenó. HOM elegia(fl.eleger)
atestando que, em português, assim como em toda a literatura, o nome elegia
parece vir sempre associado à idéia de lamento, tornando possível aceitar a
origem que lhe é atribuída. De acordo com Lesky, elegeion aparece pela
primeira vez no séc. V em Crítias (frg. 4B, DK,3), como designação do
chamado pentâmetro, que é composto pela repetição da metade do hexâmetro
que precede a cesura masculina e que, juntamente com o hexâmetro, contitui a
breve estrofe do dístico elegíaco. Lesky também chama a atenção para o fato
de elegos ser usado no sentido de lamentação. Assim, continua o crítico, não
podemos deixar de lado as informações dos antigos que, como Dídimo em
particular, consideram que o canto fúnebre foi o domínio originário da elegia
(Lesky, 1995, p. 144). E é com o valor de lamentação que o termo ελεγος é
usado por Eurípides (Iph. Taur. 1091/ Tro.119) no lamento de Alcíone por seu
marido Ceíce, e em Aristófanes (Av. 218) para o lamento do vendaval noturno
sobre Ítis. E é também o termo ελεγϊον usado por Tucídides (I, 132) para a
differentiate them from other poets who composed for other, or for no, instruments, or, if they used the lyre, used it
in a different way (Bowra, 1962, p. 3).
37
Esse título remete à origem do termo elegia, bem como à perda de um dos pés do hexâmetro, que “teria sido
enterrado” para que nascesse o dístico elegíaco – daí dizer-se que a elegia tem um “pé na cova”.
fulmen
habes.
Adspice -
33
inscrição do tripé votivo erguido pelos gregos em Delfos a partir dos espólios
da guerra contra os persas. Parece claro, então, que o metro usado no primeiro
estágio de desenvolvimento da elegia era tido como adequado para a
lamentação e o epigrama. Essa é, por exemplo, a opinião de López, quando
afirma que [A elegia] habiendo comenzado a ser expresión de dolor por la
muerte de alguien (Versibus impariter iunctis querimonia primum, que decía
Horacio em Ars Poet. 75, opinión que transmite también Dídimo en sus escolios
a Aristófanes, Aves 217), varió e multiplicó sus posibilidades temáticas en la
literatura griega
38
.
As primeiras ocorrências do metro em grego, as evocações heróicas de
Calino (primeira metade do séc. VII) para seus compatriotas e de Tirteu (séc.
VII) para os espartanos, possuem um teor bem diferente dos “imbelles elegi”
dos poetas romanos, e dos poetas gregos que estes seguiram. Assim, as obras
de Sólon (640 a.C.) e as máximas gnômicas de Teógnis (segunda metade do
séc. VI), assim como a obra de Focílides, embora compostas em dísticos
elegíacos, prestaram-se para a expressão de contestações políticas, estando,
portanto, bem distantes do “pessoal” e a princípio “não reflexivos” ditos
sentimentais da elegia latina. Com isso, conclui-se que o metro elegíaco, o
qual, de acordo com Sellar
39
, desenvolveu-se do hexâmentro épico por um
processo de enfraquecimento, foi usado na grande era da literatura grega para
a expressão de assuntos menos carregados de paixão e reflexões pessoais
que aquele da poesia lírica.
Dentre os primeiros poetas elegíacos, somente o nome de Mimnermo
(segunda metade do século VII a.C início do séc. VI) é associado ao amor. A
obra desse poeta, apesar de alguns fragmentos conterem traços de
patriotismo, distancia-se das de Calino e Tirteu, que canta a brevidade da
vida, o amor carnal, a juventude e seus prazeres. Propércio e Horácio aludem a
ele como protótipo dos que fizeram do amor o tema principal de seus versos e
o principal propósito de suas vidas.
No fim do século VII e início do Século VI, o amor como paixão
encontrou sua maior expressão na poesia lírica de Safo, cujos cantos,
predominantemente consagrados a mulheres, exaltam a beleza destas e a
38
López In OVIDIO NASÓN, 1995, p. 26.
uti videas,
inmitia
claustra
relaxa -
34
paixão. No mesmo período, está Alceu, que cantou as alegrias da vida, mas
diferentemente de Safo, não centrou essas alegrias no amor, além de ter
lançado mão de narrativas mitológicas para compor hinos aos deuses e de ter
escrito poemas políticos. Mesmo não sendo elegíacos, esses poetas estão
presentes na elegia romana, fato que é comprovado (para ficar com o exemplo
mais óbvio) por Catulo e sua amada Lésbia. Mais ou menos contemporâneos a
Safo e Alceu estão Anacreonte, que compôs poemas de inspiração palaciana,
e Xenófanes, conhecido por sua obra filosófica.
Se como paixão o amor encontrou a maior expressão com Safo, como
passatempo foi tratado num tom gracioso e vivo por Anacreonte. Na parte em
que figura como tragédia na vida humana, ele encontrou em Eurípides seu
poeta representativo e, na parte em que está ligado a situações cômicas, em
Menandro (Sellar, 1924, p. 206).
Assim, a partir do helenismo, que pôde beber nas fontes da lírica, da
tragédia e da comédia nova, a expressão de sentimentos pessoais e da
experiência erótica pôde ser posta em literatura. Foi então na Jônia, depois que
o ânimo guerreiro das cidades começou a desaparecer, que a essência da
elegia erótica foi primeiramente mostrada. So it was after the decay of Greek
enterprise and creative genius, in an age of luxury and learned leisure, that the
love of the poet for his mistress became the principal motive of the poetry which
drew its material from actual life (Sellar, 1924, p. 206). As estórias de amor do
passado (cujo renascimento foi proporcionado por boa parte da atividade
literária dos alexandrinos) foram de certa forma moldadas pelo desejo de
idealizar o prazer que os seus autores viviam em seus próprios dias. Para a
expressão desse sentimento, a cadência do metro elegíaco foi vista como o
veículo mais adequado, sendo a forma e a composição dos poemas, no qual o
metro era empregado, delimitadas por uma arte cuidadosamente elaborada.
Assim, com os alexandrinos, o metro elegíaco se tornou identificável com a
poesia do prazer (Sellar, 1924, p. 206).
39
A maior parte dos apontamentos relativos ao bosquejo histórico da elegia latina foi traçada a partir do capítulo
“The elegiac poets” in SELLAR, W. Y. Horace and the elegiac poets. Oxford, Clarendon, 1924.
uda sit ut
lacrimis
ianua
35
No entanto, antes do que é estritamente tida como idade alexandrina,
Antímaco de Colófão havia composto alguns livros de elegias com o título de
Lide, sua amada
40
.
Mas são Filetas, Teócrito e Calímaco os principais poetas de Alexandria,
capital da cultura entre os séculos IV e II a.C. Filetas de Cós (340 a.C.) parece
ter sido o primeiro a limitar o escopo da elegia para cantar o amor do poeta por
sua amante. É digno de nota que Filetas tem sua arte e gênio freqüentemente
exaltados pelas alusões que fazem a ele, especialmente Propércio e Ovídio e
mesmo Teócrito, que o teve como mestre. Teócrito não compôs em dísticos
elegíacos, mas seus idílios, freqüentados por Virgílio nas Bucólicas, e a poesia
pastoril serviram a propósitos dos elegíacos. Cairns, tomando o idílio 12,
chama-o de typical piece of Alexadrian poetry”, que combina sofisticação
emocional, sofisticação genérica e conhecimento etiológico e explicativo
(Cairns, 1972, p. 31), elementos que também caracterizam as elegias latinas.
Outros poetas alexandrinos também escreveram seus amores em
elegias, como Hermesianax, que cantou sua paixão por Nanno, e Euforião.
Este último foi um autor popular dentre os poetas mais jovens dos últimos dias
da república romana (os neotéricos), a quem Cícero chamava pejorativamente
de seguidores de Euforião. No entanto, é Calímaco, o poeta dos Aitia e dos
Hinos, o representante da chamada tradição Alexandrina: Of the Alexandrian
spirit and culture Callimachus was the recognised representative. The line by
which characterizes him Quamuis ingenio non valet, arte valet (embora não
seja vigoroso pelo talento natural, o é pela arte) is probably as true as that
where the father of Roman poetry is characterized in exactly opposite terms,
Ennius, ingenio maximus, arte rudis (Sellar, 1924, p. 207). Uma idéia de sua
cultura e talento nas elegias, que estão perdidas, pode ser traçada a partir da
tradução feita por Catulo de sua Coma Berenices, poema considerado carente
de espontaneidade, mas de elaborada composição. Até que ponto Catulo se
guia pelo original, não se sabe. A hipótese aceita é a de que o poema de
Catulo imita a maneira de composição de Calímaco, porém, como atesta Oliva
Neto em nota ao poema, se, para o caso de Calímaco, há, no matrimônio
factual que louva, traços de poesia palaciana, a tradução do poema feita por
40
Ovídio a menciona em Tristes I 6, 1.
Facta
meis!
certe ego,
36
Catulo, por afastamento de espaço e tempo, neutraliza esses traços e apropria-
se apenas do matrimônio temático, que é o quanto lhe interessa, por fazer
relacionar a tradução, que agora é seu poema, e o 65, que o anuncia, a todos
os poemas longos precedentes (Catulo, 1996, p. 228).
À parte desse tributo por Catulo, a aclamação feita por Propércio,
quando diz ser o Calímaco romano, e a imitação, por parte de Ovídio, em sua
Íbis e sua aparente adoção da idéia de Αίτια para a composição dos Fastos e
de As Metamorfoses, bem como sua menção depois de Homero e Hesíodo e
juntamente com Sófocles e Menandro, dentre os poetas cujos trabalhos
viveriam para sempre (Battides semper toto cantabitur orbe), mostram que os
poetas elegíacos romanos o têm especialmente como modelo e mestre.
Quintiliano o coloca em primeiro lugar entre os poetas elegíacos gregos,
conferindo o segundo a Filetas (Sellar, 1924, p. 207)
41
.
Antes de ser usado como instrumento para expressão de sentimentos
carregados de paixão pelos poetas da época de Augusto, o metro elegíaco
teve uma história em Roma. A introdução do dístico em Roma é atribuída a
Ênio (239–169(?) a.C.), que o utilizou para a composição de epigramas à moda
alexandrina. Lucílio (aproximadamente 180 a.C.–102 a.C.) empregou o mesmo
metro em um de seus livros de sátiras, do qual pouca coisa restou, sendo
impossível definir com que nuança o utilizou.
No primeiro século antes de Cristo, o metro elegíaco foi empregado por
Catulo e Valério Aedituus na composição de pequenas peças eróticas. Os
poemas de Meleagro, que era quase contemporâneo deles, eram certamente
familiares aos poetas elegíacos posteriores. Mas foi Catulo o primeiro romano a
fazer um uso diversificado do metro. Ele antecipou os usos que dele fariam os
elegíacos posteriores, com um tom ora carinhoso, ora amargo, ora lamentoso.
Antecipou também Marcial no que diz respeito ao uso do metro para dar a
“ferroada” do epigrama. É digno de nota que, no poema 65, em que Catulo
marca o início da parte elegíaca de sua obra, está ilustrada a passagem da
41
Para resumir: A lírica grega desenvolveu-se com base na adoção de dois tipos de métrica: o iambo e o dístico
elegíaco. Essas formas métricas serviam para definir a classe ou categoria de composição em que o poeta decide
expressar-se. Tal convenção define a composição elegíaca antes como forma do que como conteúdo, uma vez que
se percebe do exame realizado que, no que diz respeito aos temas preferidos pelos autores, a elegia grega
celebrou assuntos variados (amor objetivo, relatos mitológicos, poemas didáticos etc.), os quais receberam um
tratamento por vezes distinto (inspiradas na exaltação da vocação heróica e guerreira, na política, na filosofia
etc.), variando conforme a época e as contingências em que os poetas estavam imersos (por exemplo: momentos de
paz ou de conturbação social; haja vista o caso de Sólon)” (Prado, 1990, p. 62).
cum
posita
stares ad
verbera
37
lamentação função primeira da elegia para a temática erótica principal
tema da elegia romana. Nesse poema, temos a menção de duas vertentes da
elegia: “doctae uirgines” (v. 2), que se refere à erudição, característica
proeminente da poesia praticada pelos elegíacos, e Calímaco (Battiadae, v.
16), que é modelo de poeta para esses autores. Oliva Neto, em nota ao poema,
salienta que a maçã, no idílio 3 10/15 de Teócrito, representa o amor
42
.
Também Licínio Calvo, amigo de Catulo, provavelmente compôs em
dísticos o poema em que lamenta a morte de Quintília. E foi provavelmente no
mesmo metro que Varrão de Átax celebrou as alegrias de Leucadia. À parte
dos elegíacos “puros”, outras amostras do emprego do metro são encontradas
no período de Augusto: um ou dois pequenos poemas, nos formatos do
epigrama, atribuídos a Virgílio.
Com base no exposto, conclui-se que o dístico elegíaco foi originalmente
empregado pelos poetas latinos mais para os epigramas e outros propósitos
que para a poesia de amor. A distinção com relação ao uso do metro por seus
antecessores e pelos elegíacos da época apóia-se em firmar para a elegia o
espaço ideal para a expressão do sentimento e da paixão do amor. Em outras
palavras, eles fizeram com a elegia alexandrina obra análoga à que Virgílio
havia feito com o canto pastoral de Teócrito. Portanto, ya em Tibulo, Propercio
y Ovidio nos hallamos, efectivamente, con poemas em dísticos elegíacos, de
más de 25 versos por lo general, de temática amorosa subjetiva, que son las
muestras de lo que conocemos como elegía romana. Y es, por tanto, en esta
intensificación de lo autobiográfico, en este romper los moldes del epigrama
alejandrino, henchidos por la expresión del proprio sentimento, donde reside la
novedad del género em las letras latinas
43
.
42
Não é necessário aqui dissertar sobre o teor erótico que tem a maçã, no entanto, convém citar os comentários
acerca do assunto feitos por David Arrigucci em apreciação ao poema “maçã” de Manuel Bandeira: Pomo da
discórdia; fruto proibido da árvore da ciência; pomo de ouro do jardim das Hespérides, com o poder da
imortalidade... Na direção que aqui nos interessa, isto é, ligada ao amor (...), ela aparece ao longo de toda a
história da literatura, rodeada de ressonâncias bíblicas e clássicas. Não é apenas um dos atributos de Vênus ou
um objeto ritualístico das cerimônias de casamento, cujas raízes remontam provavelmente aos cultos de
fertilidade e aos festivais de aldeia (...). No Cântico dos Cânticos, idílio cheio de imagens da poesia pastoral, é
várias vezes termo de comparação para a amada, com evidente conotação erótica, e, segundo Orígenes, uma
encarnação da fecundidade do Verbo divino. Ela aparece ao lado do cacho de uva e da romã (...), em relação com
partes do corpo feminino e, pelo menos uma vez nitidamente como oferenda de amor. Na poesia pastoral clássica,
como em Teócrito, ela surge exatamente com esse duplo sentido, ligada aos seios da mulher e como dádiva de
amor. (Arrigucci, 1990, p. 36).
43
López in OVIDIO NASÓN, 1995, p. 30.
veste, ad
dominam
pro te
verba
38
A paixão amorosa como o sentimento mais arrebatador de todas as
emoções pessoais e a mais passível de tratamento idealizado tornou-se o tema
superior na poesia tanto na Grécia como em Roma, na decadência do
sentimento nacional e público (Sellar, 1924, p. 210). O tema havia entrado
anteriormente na literatura romana: as intrigas provocadas pelos
relacionamentos amorosos dos efebos, por exemplo, representadas nas
comédias de Plauto, Terêncio e outros poetas cômicos; e o IV livro de De
rerum natura, que Lucrécio dedica ao amor e seus tormentos. Ovídio, como
lembra Sellar, em sua apologia endereçada a Augusto a partir de seu exílio,
menciona nomes de oradores e políticos, bem como de poetas e homens de
letras, que tinham sido culpados de ofensa similar a que ele cometera, ou seja,
haviam escrito sobre o amor. Dentre eles, além dos grandes nomes de Catulo
e Calvo, estão Hortensius e Memmius, Cinna e Anser, Cornificius e o gramático
Catão, pertencentes à última parte da república, e Galo, Varrão e Tibulo, à
época de Augusto. Há menção também ao que deve ter sido um livro de
elegias sobre o título de Perilla, em que Metella era a heroína e Ticida, o autor.
Propércio (II 34), para exaltar sua arte, adiciona ao nome de Calvo e Catulo,
Virgílio, Varrão e Galo, os quais tinham merecido fama por seus versos de
amor bem como por escritos mais sérios (Sellar, 1924, p. 210-211). Embora a
lista de poetas que cantaram o amor seja extensa, somente quatro Galo,
Tibulo, Propércio e Ovídio são mencionados por Quintiliano como elegíacos.
A justificativa para esse rol pode residir no não confinamento desses outros
poetas ao uso do dístico elegíaco, caso de Catulo e de Lévio, autor de
Erotopaegnia, que empregaram uma variedade de metros líricos.
Os poetas elegíacos, como nos mimos, mas com um refinamento que
estes últimos não tinham, fizeram das intrigas da vida privada o principal tema
de sua arte. Não era objetivo deles combinar utilecom dulce”, exceto na sua
tendência didática natural para essa temática, como na Arte de Amar. A arte
para eles se tornou preferencialmente um exercício apologético sobre o prazer.
O período segue o movimento corrente na literatura de levar as tendências
alexandrinas para a perfeição, o que havia sido feito com certa profundidade
por Catulo e seus contemporâneos (Sellar, 1924, p. 212-213).
Após explicitar o que se entende por composição genérica, traçar o
histórico da elegia e de delimitar os temas e interesses composicionais que
tremente
tuli. ergo
quae
39
permeavam as obras de Galo, Tibulo, Propércio e Ovídio, será adotada para o
trabalho a definição de elegia elaborada por Prado: “Toda peça poética que
contenha, simultaneamente, pelo menos estas três características: seja
escrita em dístico elegíaco; contenha um número igual ou superior a vinte
versos; desenvolva temas como o nacionalismo, morte, amizade, mitologia,
religião e, sobretudo, o amor; temas esses que devem ser tratados com
subjetivismo, ou seja, o poeta os descreverá com boa dose de impressões
pessoais e, preferivelmente, narrará em primeira pessoa (Prado, 1990, p.
48)
44
.
2.4 Ovídio e seu lugar no gênero
É de Quintiliano (Inst. X 1, 93) a lista canônica, bem como as
características dos elegíacos romanos. Mas Ovídio era consciente de sua
importante contribuição para o gênero, como atestam as passagens Trist. IV
10, 47-56 ou Rem. 395-396 :
Tantum se nobis elegi debere fatentur,
Quantum Vergilio nobile debet epos.
45
As elegias confessam que devem a mim tanto quanto a nobre épica
deve a Virgílio.
E, assim como Propércio, Ovídio parecia conceber a função da elegia
romana como a de dar uma forma subjetiva a uma experiência geral.
46
Para López, a elegia romana chega a seu ponto máximo com Ovídio,
que a cultivou com maior extensão e variedade que seus predecessores
(López, 1995, p. 25). Ovídio conhecia-os a fundo, caracterizando Catulo como
doctus (Am.III.9.62), Tibulo como cultus (Am.I.15.28 e III.9.66) e comis (Tr.
V.1.18), Propércio como tener (A.A. III.333) e blandus (Tr. II.465 e V. 1.17).
44
O autor chegou a tal definição após farta pesquisa, entre cujas fontes destacamos: Dicionário de literatura
Steinberg (1953, p. 178-9), Dicionário de Errandonea (1954, p. 578), Dicionário de literatura organizado por
Shipley (1966, p. 110), Dicionário de Cuddon (1979, 213-6), Dicionário de Harvey (1987, p. 185).
45
Nesses versos, o status de Virgílio ajuda o poeta a sustentar a posição de grande elegíaco, pois se não admitirmos a
contribuição de Ovídio para a elegia, temos também que rever a incontestável posição de Virgílio perante a épica
romana.
46
me legat in sponsi facie non frigida virgo, /et rudis ignoto tactus amore puer;/atque aliquis iuvenum quo nunc ego
saucius arcu/agnoscat flammae conscia signa suae,/miratusque diu 'quo' dicat 'ab indice doctus/conposuit casus iste
poeta meos?’(Amores II 1, 5-10).
me legat assidue post haec neglectus amator,/ et prosint illi cognita nostra mala.(Propércio I 7, 13-14)
tum me non humilem mirabere saepe poetam,/ tunc ego Romanis praeferar ingeniis./ [nec poterunt iuvenes nostro
reticere sepulcro/ 'ardoris nostri magne poeta iaces.' (Propércio I 7, 21-24)
valuit
pro te
quoque
gratia
40
Dentre eles, o que parece ter sido mais imitado por Ovídio foi Propércio, a
quem, segundo Trist. IV 10,45 e ss., o poeta ia assistir. Nesse sentido, López
aponta como parentescos temáticos as obras: Prop. II 15, e Ov., Am. I 5, Prop.
II 22 e Am. II 4 e 9; Prop. I 8 e Am. II 11.
López sugere que o próprio nome Corina foi de inspiração catuliana (já
que Corina era uma poetisa grega), assim como, em Catulo, Lésbia é uma
referência a Safo. (Ovidio Nasón, 1995, p. 81). Nesse sentido, valem também
os paralelos entre Catulo 85 e Am. II 1,5 / Am. II 4, II 5 e II 6.
Em Amores III 9, Ovídio descreve a morte de Tibulo. Segundo López, é
este o poema em que Ovídio mais imita Tibulo. A presença de Tibulo está no
tema e em referências textuais, que Tibulo tinha também cantado sobre a
própria morte.
Outros poetas têm presença no corpus ovidiano. Galo, por exemplo, é
mencionado com freqüência: Am. I 15, 29-30; III 9, 64; Ars II 334 e 537; Rem.
765; Trist. IV 10,53. Além disso, como lembra López (Ovidio Nasón, 1995, p.
83), Ovídio nomeia sua obra Amores, mesmo título da obra dedicada a Licóride
por Galo.
Percebe-se, então, como Ovídio conserva traços genéricos de uma
tradição que começou a se desenvolver muito antes dele. Muitos dos
elementos dessa tradição chegaram até Ovídio por intermédio de certos
precedentes dentro da cultura romana, como procuram evidenciar as
referências pouco citadas. Encontram-se também paralelos temáticos entre
a obra ovidiana e os poetas helenísticos
47
(Ovidio Nasón, 1995, p. 88):
Falta de exclusividade no amor (Am. II 10, 1-4 e Calímaco A P XII
102);
O poeta investiu de fama a sua amada e é então responsável pelo
fato de ela o trair (Am. III 12 e Discórides A.P. V 56; e Calímaco A.P.
XII 51);
Pedido para que a Aurora demore mais a vir (Am. I 13 e Meleagro
A.P. V 172 e em V 173; XII 114; XII 136 e XII 137);
O desejo do poeta em transformar-se no anel da amada (Am. II 15, 7
e ss. e A.P. V 84; V 85, XII 190, etc.);
A luz do candeeiro (Propércio II 15 que evoca Asclepíades e
Meleagro e Am. I 5);
47
López in OVIDIO NASÓN, 1995, p. 88.
Quondam -
heu
facinus! -
41
O deus que diz ao poeta a que tipo de poesia deve se dedicar
(Virgílio, Ecl. VI, Horácio, Carm. IV 15, Propércio III 3 e o prólogo dos
Aitia de Calímaco).
O lamento frente à porta (Am. I 6 e Meleagro A.P. V 191; XII 23; XII
72);
Epitáfio a um animal (Am. II 6 e Meleagro A.P. VII 207);
Impotência momentânea (Am. III 7 e Filodemo A.P. XI 30).
Também a imitação de si próprio é uma das características de muitos
poetas da Antigüidade. Para os helenistas e os poetas da época de Augusto,
revisitar um poema já feito, imitá-lo com variações era uma prática tão
importante quanto imitar outros autores e fontes literárias. Essa prática,
segundo Cairns, foi incentivada por antologias de epigramas, como a de
Meleagro de Gádara, que justapunha poemas que versavam sobre um mesmo
tema. Outros exemplos de self-imitation traçados por Cairns: Catulo e os três
basia poemas, os komoi de Tibulo (I.2; I.5 e II.2) bem como suas três versões
de erotodidaxis (I.4, I.6 e I.8), Propércio I.3 em II. 29 e I.8 em II.26 (Cairns,
1979, p. 124)
48
. E é também o que faz Ovídio em Amores III.11, ao tomar como
fonte um outro poema seu, Amores II.9, ambos contendo formulas próprias do
gênero renuntiatio amoris. Qual a intenção, ou melhor, qual a conseqüência de
tal procedimento?
diferentes maneiras de interpretar a imitação de si próprio. O poeta,
inserido numa tradição e, portanto, adotando uma estrutura que atende aos
topoi dessa tradição e de um determinado gênero, pode reutilizar o material
estabelecido ao invés de inventar um outro. Assim, ele estaria melhorando a
sua performance precedente. Esse procedimento estaria, a princípio, ligado
mais a uma reflexão da produção poética do poeta em questão do que com
uma resposta do leitor. Por outro lado, tal procedimento pode estar dando um
sinal ao leitor: o poeta estaria fazendo uma leitura de sua obra, indicando
alguma mudança em sua postura ou em sua identidade poética. Cairns (1979,
p. 136-137) lembra que casos significativos de self-imitation são pares de
poemas como Tibulo I.8 e I.9 ou II.3 e II.4 que ficam lado a lado num livro e
versam sobre o mesmo tema. Ou então estão separados por um único poema,
como são os casos de Catulo V e VII e Propércio I.7 e I.9. Nesses exemplos, é
48
Segundo Cairns, when a predecessor is himself imitating an earlier work, imitation of the predecessor may
involve a simultaneous reference to the earlier work. Finally the poet may in addition to his principal source be
adding material from one or more secondary sources. This is the so called contamination which seems to be a
hallmark of much Hellenistic and post-Hellenistic literature” (Cairns, 1979, p. 121).
pro me
nunc
valet illa
parum?
42
fácil comparar os poemas e ler um à luz do outro. No entanto, Cairns chama
atenção para o fato de que a self-imitation de Ovídio se em livros diferentes,
apesar de figurarem na mesma coletânea. Dessa forma, a identidade do
gênero e o grande número de referências são guias essenciais para o leitor. Ao
traçar paralelos com outros autores que versaram sobre a mesma renuntiatio,
Cairns sustenta a leitura de que Ovídio está mostrando o seu status como
elegíaco: em Amores II.9, Ovídio compõe uma elegia sem usar largamente
outros exemplos elegíacos do gênero. em III.11, ele combina imitação dele
mesmo (II 9) com o uso mais livre das renuntiationes de seus predecessores.
Agindo dessa forma, Ovídio está assegurando que sua posição é par à de
Catulo, Propércio e Tibulo, ou seja, é ele um autor estabelecido dentro de um
gênero, digno então de ser imitado, mesmo que por ele mesmo.
2.5 A erotodidaxis
Ficou demonstrado que o gênero elegíaco contava com uma tradição
didática, o que será mais detida e convenientemente explorado na seqüência.
No entanto, é necessário, por hora, focar um gênero didático especializado que
teve uma posição proeminente na elegia romana, a erotodidaxis. Cairns cita
como exemplo desse gênero o Iambo 5 de Calímaco, cujo mote é também
encontrado em Propércio I.9, 5-6. Calímaco, no referido iambo, é irônico e
deixa transparecer nos meandros do poema o conhecimento de uma tradição
que versava sobre “ensinamentos amorosos”. Essa tradição pode também ser
atestada quando levados em consideração Suetônio (Tib. XLIII 2) e Marcial
(XII.43), que citam uma poetisa grega, de nome Elefântide, como autora de
obras erótico-didácticas. De acordo com Day, it may be true that erotodidaxis,
arising from Comedy and developed in elegy, reached its culmination in the Ars
Amatoria of Ovid; but it is possible that such satiric-technical works existed
earlier than Menander, and that Ovid’s Art is quite independent of the more
casual precepts in Latin elegy. O crítico ressalta ainda a existência de uma Ars
Poetica anônima, composta em hexâmetros, mencionada por Herodicus
(Athenaeus, V, 29), em que Sócrates é mostrado citando uma instrução erótica
de Aspásia (Day, 1938, p. 92).
redde
vicem
meritis!
43
Partindo do princípio de que tal gênero possuía uma tradição anterior
aos elegíacos romanos, é pertinente pensar, em termos de composição
genérica, com que cores os elegíacos e, sobretudo Ovídio, inscreveram seus
nomes nessa tradição. A. L. Wheeler
49
, que pesquisou largamente o gênero em
questão, nota que diferentes tipos de preceptores amorosos, o que pode
fazer com que os conselhos dados também variem. No entanto, os seguintes
tipos de ensinamentos e professores podem ser destacados:
1) Instrução, que tem por objetivo promover um amor recíproco e não
fundado numa atitude mercenária. Tal instrução é dada pelo deus
Amor, por uma cortesã, por um amante experiente ou pelo poeta no
papel de “professor do amor”.
2) O poeta como “professor do amor”, com o intuito de fazer com que
sua amada volte suas atenções e afetos unicamente à voz que
conselhos, ensina as artimanhas para que ela traia o marido ou
algum outro rival do poeta.
3) Conselho, dado normalmente por uma cortesã, para que a puella
tenha vários amantes simultaneamente e que consiga de todos
dinheiro e presentes.
Em Tibulo, exemplos de erotodidaxis são as elegias I 4, I 5 e I 6. Em I 6,
Tibulo segue, basicamente, os tipos estabelecidos por Wheeler como próprios
do gênero erotodidaxis. Porém, a utilização criativa deles por Tibulo à obra
nuanças especiais, fazendo com que Cairns a cite como exemplo de
composição genérica. O uso de mais de um tipo estabelecido por Wheeler num
mesmo poema, ou, mais especificamente, a justaposição do tipo 1 e 2, confere
à obra ironia. A ironia apontada reside no fato de Tibulo se lembrar de ter
ensinado Délia a trair o amante e ver que, agora, a puella está usando essa
mesma instrução para trair Tibulo. Seria interessante criar, ante oculos nostros,
uma conversa imaginária entre Tibulo e Ovídio, para deixar a ironia ainda mais
clara e a situação mais desconfortável para o eu tibuliano, dizendo: Iustus
uterque fuit; neque enim lex aequior ulla est/ Quam necis artifices arte perire
sua (Ars I. 653-655)
50
. No entanto, um colóquio entre Tibulo e Ovídio, embora
absurdo nesse caso imaginado, dá-se em outras instâncias, as literárias. Como
o intuito do trabalho o é comparar Tibulo e Ovídio, vale apenas ressaltar
49
Apud Cairns, 1972, p. 173-4.
grato licet
esse
quod
optas.
44
algumas proximidades textuais ou temáticas utilizadas por ambos: a
recomendação para insistir na conquista (I 4, 15-20 e Ars I 475); deixar-se
vencer no jogo (I 4, 51-52 e Ars II 193-228); o amor venal (Tibulo I 4, 57-60 e
Ars II 275-280); elogio do poeta e exortação do amor pela poesia (Tibulo I 4,
61-70 e Ars III 329-348); pedido para que os celebrem como mestres (Tibulo I 4
75-70 e Ars II 743-744 e III 811-812)
51
. É relevante ressaltar que também em
Propércio tem-se exemplos de erotodidaxis que são retomados por Ovídio. Em
Amores I 8, por exemplo, temos a presença de Propércio I 5.
É digno de nota o fato de o termo ironia ter perpassado todo esse
subcapítulo, bem como o fato de Day estabelecer a Comédia como origem da
erotodidaxis. Assim, faz-se necessário analisar os pontos de comicidade na
obra ovidiana, quer por eles serem inerentes à tradição, quer pelo fato de que,
se detectado o efeito cômico, as intenções aparentemente idôneas dos
“ensinamentos amorosos” deverão ser ponderadas sob uma outra perspectiva.
2.6 O cômico em Ovídio
Quis credat? discunt etiam ridere puellae,
Quaeritur atque illis hac quoque parte decor.
Sint modici rictus, parvaeque utrimque lacunae,
Et summos dentes ima labella tegant.
Nec sua perpetuo contendant ilia risu,
Sed leve nescio quid femineumque sonent.
Est, quae perverso distorqueat ora cachinno:
Risu concussa est altera, flere putes.
Illa sonat raucum quiddam atque inamabile ridet,
Ut rudit a scabra turpis asella mola.
(Ovídio, Ars amatoria, III 281-290)
De arte precisa a dama, ater quando se alegra;
crede, é só graça o rir na que se ri com regra.
Quer-se módico o rasgue, as covinhas pequenas,
e o lábio inferior dentes mostrando apenas,
sem lados a arquejar em doidas gargalhadas;
um rir suave, um rir de damas delicadas;
não como os de umas tais que hei visto em seus folgares
a arremedarem choro, horrendas co’os esgares,
ou desprendendo uns sons roucos, ingratos, feios,
de asninha em atafona estúpidos orneios.
52
(Ovídio, 1943, p. 478)
50
Não lei mais conforme à eqüidade/do que a lei que destrói com o próprio invento/aqueles que para o crime
executar/inventaram um pérfido instrumento. Trad. Natália Correia e David Mourão-Ferreira.
51
Ovidio Nasón, 1995, p. 108-109.
tempora
noctis
eunt;
45
de ser feita uma primeira ressalva com relação ao subtítulo
utilizado: “O cômico em Ovídio”. A opção pelo termo “cômico” foi feita para
designar as diversas ocorrências em que o texto ovidiano suscita, de alguma
forma, o riso. Ficará claro, no decorrer do estudo, que termos mais específicos,
tais como humor ou sátira e outros que designem desdobramentos da atitude
cômica dos versos ovidianos, também serão usados. Optou-se, portanto, pela
definição mais ampla de “cômico” pelo fato de a obra aqui estudada não se
tratar de uma comédia e da dificuldade de enquadrar Ovídio, um autor do
primeiro século de nossa era, e sua obra em uma única teoria. Nesse sentido,
lançou-se mão de autores que se debruçaram a estudar o humor latino, como
Minois e Graf, e de teorias sobre o riso, como a de Bergson, bem como
classicistas que pudessem esclarecer aspectos da obra ovidiana.
É Minois quem chama a atenção para o fato de que a literatura dos
romanos, cujo mundo era o mundo do sério (Minois, 2003, p. 77), está repleta
de humor, aem obras em que não o esperávamos. Tome-se o Tratado de
agricultura, de Varrão. [...] Tome-se ainda A arte de amar, de Ovídio: o amor se
apresenta aí com humor e é amplamente desmistificado. A arte de amar revela-
se, antes de tudo, uma arte de enganar galantemente, de dar o troco, de
produzir uma falsa imagem de si(Minois, 2003, p. 80). Procurou-se verificar de
que modo tal afirmação se concretiza, delimitando-se um caminho cujas
diretrizes são:
1) referências textuais à alegria e ao riso;
2) os elementos cômicos da tradição elegíaca: a influência da retórica
e da comédia nova;
3) outros recursos do cômico.
2.6.1 Referências textuais à alegria e ao riso
Decidiu-se, aqui, chamar referências textuais à alegria e ao riso algumas
passagens em que Ovídio chama a atenção para a importância desses dois
elementos no amor. A epígrafe desse capítulo é uma delas. Se a alegria é um
componente de suma importância para o amor, o manual não poderia deixar de
52
Nesse capítulo, utilizou-se a tradução de Antônio Feliciano de Castilho mesmo nos trechos da Ars amatoria, por
excute
poste
seram!
46
ensinar como rir convenientemente ou com graça. É interessante notar também
que Ovídio compara as mulheres que não riem com arte a asninhas,
procedimento descrito por Quintiliano para a caracterização do tipo vicioso, em
que se transfere ao humano características de animais, de bestialidade,
excluindo-o da racionalidade.
Outra passagem do mesmo calibre está também no livro III da A.A., em
que Ovídio alega que as mulheres “tristes” não são dignas de dizer palavras
ternas ao Amor:
Odimus et maestas: Tecmessam diligat Aiax;
Nos hilarem populum femina laeta capit.
Numquam ego te, Andromache, nec te, Tecmessa, rogarem,
Ut mea de vobis altera amica foret.
Credere vix videor, cum cogar credere partu,
Vos ego cum vestris concubuisse viris.
Scilicet Aiaci mulier maestissima dixit
'Lux mea' quaeque solent verba iuvare viros?
(Ovídio, Ars amatoria, III 517-524)
Aspecto dolorido é também mau. Tecmessas
serão gratas a Ájax; quem folga, não quer dessas.
Uma Tecmessa a mim, uma Andrômaca em pranto,
não me venham tentar, que lhes não acho encanto;
nem mesmo entenderia, a não lhes ver filhinhos,
que houvessem jamais tido os conjugais carinhos.
Tecmessa! Pois Tecmessa havia, angustiada,
dizer a Ájax: - “Meu sol”, e o mais que o amor agrada?
(Ovídio, 1943, p. 484)
Também ao se referir ao momento propício para se aproximar de uma
mulher, Ovídio esclarece que deve ser quando esta estiver alegre. Nesse
sentido, lança mão do mito da guerra de Tróia para ilustrar seu preceito,
chegando a comparar a queda de Tróia com a conquista da amante,
estabelecendo a comparação entre amantes e soldados, evidenciada em
Amores, I.9:
Mens erit apta capi tum, cum laetissima rerum
Ut seges in pingui luxuriabit humo.
Pectora dum gaudent nec sunt adstricta dolore,
Ipsa patent, blanda tum subit arte Venus.
Tum, cum tristis erat, defensa est Ilios armis:
Militibus gravidum laeta recepit equum.
(Ovídio, Ars amatoria, I 359-364)
uma questão de padronização, já que os trechos de Amores são do mesmo tradutor.
Excute!
sic,
inquam,
longa
47
A hora de ouro é quando inteiramente a vir
Qual messe em ledo campo, amena, alegre, a rir.
Um coração sem dor, um ânimo contente,
Às ternas tentações abrem mais facilmente.
Tróia, enquanto triste, heróica resistiu;
Festiva expõe-se ao logro, abrasa-se; caiu.
(A arte de amar, I, p. 434)
A alegria permeia todos os ensinamentos da Arte de amar, o que
significa dizer que esse deve ser o ânimo dos amantes. Quando o texto fala em
lágrimas, estas é que são fingidas
53
:
Et lacrimae prosunt: lacrimis adamanta movebis:
Fac madidas videat, si potes, illa genas.
Si lacrimae (neque enim veniunt in tempore semper)
Deficient, uda lumina tange manu.
(Ovídio, Ars amatoria, I 657-660)
Lágrimas vencem muito; abrandam te diamante;
se puderes chorar, que o veja a tua amante.
Se as lágrimas (nem sempre as há quando se quer)
não vem, dedos molhados aos olhos é mister.
(Arte de amar, III, p. 443)
Concebendo a Arte de amar como um poema metatextual em que
Ovídio descreve a teoria cuja aplicação prática são os Amores e as Heróides,
ou mais ainda, em que lança preceitos de seu próprio fazer poético, a
referência constante à alegria indica duas possibilidades de interpretação: 1)
que ele discorre de forma alegre, cômica sobre o tema amor; e isso está na
interpretação que Paul Veyne faz da elegia latina como poesia divertida, (...)
no fato de que não era para ser levada a sério (Veyne, 1985), o que ficará
confirmado no decorrer do presente trabalho; 2) que ele está tratando de
assunto mais ameno, ou mollis, como querem os latinos, menos sério que a
epopéia, por exemplo; o que o poema 1 de Amores, I deixa claro:
Sex mihi surgat opus numeris, in quinque residat:
ferrea cum vestris bella valete modis!
(...)
Musa, per undenos emodulanda pedes!
(Ovídio, Amores. I, 1 25-30).
53
Ver nesse sentido Amores, I, 8.
relevere
catena
nec tibi
48
Adeus glória, adeus combates!
Adeus vós e o metro vosso!
(...)
Vem pois, Musa, e em verso humilde
Cantemos a escravidão!
(Ovídio, 1943, p. 230)
2.6.2 Os elementos cômicos da tradição elegíaca
2.6.2.1 Os poetas alexandrinos e a formulação das elegias
De acordo com Veyne, se Lucrécio adaptou Epicuro, os elegíacos
romanos invocaram a influência de Calímaco; é a receita que desejam
continuar (Veyne, 1985, p. 32). Em Calímaco, o humor está presente. Ao lê-lo,
somos cem vezes tentados a pronunciar a palavra paródia para retirá-la logo
em seguida. Este humor não é defensivo, é condescendente e benevolente ao
mesmo tempo(Veyne, 1985, p. 33). Da tradição elegíaca, podemos dizer que
também Ovídio herdou esse humor. Os poemas dos Amores têm como fio
condutor o amor que o eu-lírico sente por Corina e estão, como manda a
tradição, permeados de relatos mitológicos. De acordo com Veyne, a elegia
erótica guardará esta tradição de rir das crenças populares, de pastichar o
texto das leis sagradas e dos ex-votos. (...) A falsa ingenuidade em matéria de
religião é tradicional na elegia; (...) O único Júpiter que conhece a elegia é o
deus donjuanesco de inúmeras amantes do qual falava a mitologia (Veyne,
1985, p. 47-48). A elegia está, assim, do lado oposto da ironia lírica de Heine
ou Laforgue, feita de impotência, fruto dos conflitos políticos e religiosos e do
mal estar do artista no mundo burguês. também impotência nas elegias,
mas esta é representada: o poeta se finge escravo de uma paixão, mas não
está verdadeiramente em conflito com as coisas, não milita junto a seus leitores
para modificar suas idéias sobre as superstições religiosas ou sobre as
mulheres que são consideradas fáceis demais (Veyne, 1985, p. 51). Para
Veyne, a atitude geradora das elegias é humorística em si mesma. O poeta
finge amar energicamente a amante, mas a noção de que isso é falso provém
do sentimento de conjunto:
perpetuo
serva
bibatur
aqua!
49
Quid? non et clipei dominus septemplicis Aiax
stravit deprensos lata per arva greges,
et, vindex in matre patris, malus ultor, Orestes
ausus in arcanas poscere tela deas?
ergo ego digestos potui laniare capillos?
nec dominam motae dedecuere comae.
sic formosa fuit. talem Schoeneida dicam
Maenalias arcu sollicitasse feras;
talis periuri promissaque velaque Thesei
flevit praecipites Cressa tulisse Notos;
sic, nisi vittatis quod erat Cassandra capillis,
procubuit templo, casta Minerva, tuo.
(Ovídio, Amores. I, 7. 7-18)
Assim também desgrenhada
Atalanta era formosa,
Quando, arco e frecha na mão
Seguia as menálias feras
Que lhe fugiam em vão.
Assim pelas ermas praias
A desprezada Cretense
Solta em lágrimas correu,
Levando-lhe o vento as velas
E as promessas de Teseu.
Assim também, só diversa
Em ter enastrada a coma,
Se viu Cassandra afrontar,
Minerva em teu próprio templo
À face do teu altar.
(Ovídio, 1943, p. 254)
O eu-lírico está completamente apaixonado por sua amante e se dirige a
ela no início da elegia, mas, logo em seguida, começa uma longa digressão
calcada em mitos. Em outras palavras, a amante não passa de um mero
pretexto para mostrar a erudição do poeta, o que não deixa de ter certa
comicidade.
Outro recurso que resulta cômico é a impressão de que as elegias são
como cartas interceptadas pelo leitor. Nesse sentido, temos um primeiro poema
em que o eu-lírico jura a Corina que não a traiu:
Ecce novum crimen! sollers ornare Cypassis
obicitur dominae contemerasse torum.
di melius, quam me, si sit peccasse libido,
sordida contemptae sortis amica iuvet!
(Ovídio, Amores II, 7 16-19).
ferreus
orantem
nequiquam,
50
Eis meu crime de hoje!
Profanei com Cipasse
(Aia fiel que ao toucador te assiste)
teu leito, minha fé, nossos amores!
Eu com Cipasse! Eu infiel! Ó Numes!
Se a tentação de o ser me entrasse um dia,
Nunca o céu permitisse aos meus afetos
Empregar-se tão baixo; estes meus olhos
Em que a própria Corina os teus fitava
Iriam delirar, arder cativos
Nos de uma abjeta escrava?
(Ovídio, 1943, p. 316)
O poema é de tal modo apelativo, que o leitor chega a sentir pena do eu-
lírico... até ler o poema seguinte:
Ponendis in mille modos perfecta capillis,
comere sed solas digna, Cypassi, deas,
et mihi iucundo non rustica cognita furto,
apta quidem dominae, sed magis apta mihi
quis fuit inter nos sociati corporis index?
(...)
Pro quibus officiis pretium mihi dulce repende
concubitus hodie, fusca Cypassi, tuos!
quid renuis fingisque novos, ingrata, timores?
unum est e dominis emeruisse satis.
(Ovídio, Amores, II. 8, 1-5; 21-24)
Minha Cipasse! graciosa mestra
Do toucador no caprichoso ofício,
Mas digna só de pentear deidades;
Naquele nosso furto
Conheci a esperteza e a inteligência;
Tu, útil a Corina,
Mas mais útil a mim; sabes dizer-me,
Podes adivinhar, gentil Cipasse,
Quem à tua senhora
Aquele nosso brinco segredasse?
(...)
E tu, minha adorável trigueirinha,
Tu, doce prenda minha,
Não me darás do meu serviço em prêmio,
Esta noite outra noite de ventura?
Que repugnas, cruel? Que estás fingindo
Novos temores vãos? Pensa o que fazes;
Já tens Corina infesta,
Se perdes meu abrigo, o que te resta?
(Ovídio, 1943, p. 319)
ianitor,
audis,
roboribus
51
Nesse, o leitor descobre que o eu-lírico de fato traiu Corina e, mais, que
pede uma recompensa à escrava por ter conseguido persuadir Corina no
poema anterior.
2.6.2.2 A influência da retórica
Na mesma linha dos ensinamentos relativos a como rir ou à importância
da alegria para conquistar o objeto do amor, está um trecho de Ars amatoria
em que Ovídio discorre sobre o “ar” que deve ter o rosto da mulher para que
ela seja atraente:
Pertinet ad faciem rabidos compescere mores:
Candida pax homines, trux decet ira feras.
Ora tument ira: nigrescunt sanguine venae:
Lumina Gorgoneo saevius igne micant.
'I procul hinc,' dixit 'non es mihi, tibia, tanti,'
Ut vidit vultus Pallas in amne suos.
Vos quoque si media speculum spectetis in ira,
Cognoscat faciem vix satis ulla suam.
Nec minus in vultu damnosa superbia vestro:
Comibus est oculis alliciendus amor.
Odimus inmodicos (experto credite) fastus:
Saepe tacens odii semina vultus habet.
Spectantem specta, ridenti mollia ride:
Innuet, acceptas tu quoque redde notas.
(Ovídio, Ars amatoria, III 501-514 )
Desdiz em lindo aspecto a índole violenta.
O que humano é benigno, a fera truculenta.
Incha co’a ira o rosto, as veias se arroxeiam,
nos olhos, a saltar, chamas furiais se ateiam.
Palas, vendo num lago a entumecida cara:
“Vai-te, flauta – bradou –“ já te não quero, és cara.”
Se vos vireis no espelho, estando enraivecidas,
por vós mesmas não sei se fôreis conhecidas.
Tampouco vos aprovo uma cara altiva:
Olhar suave e meigo é quem a Amor cativa.
Muito orgulho (fiai o que nos vos diz um prático)
faz-se odioso; dá tédio um senho majestático.
Olhai a quem vos olhe, e ride a quem vos ria,
Retribuí com sinais a quem vô-los envia.
(Ovídio, 1943, p. 484)
Na mesma direção temática desse trecho, pode-se considerar as
Epístolas XXIV e XXV de Filostratus e o tratado De ira, I.13; II.35 de Sêneca.
duris
ianua
fulta
riget.
52
Também dentro do que se intitulou “influência da retórica” poderá achar
lugar o trecho em que Ovídio faz a “defesa” ou absolvição de Helena. Nesse
sentido, convém lembrar o célebre Elogio à Helena de rgias e os exercícios
retóricos dos sofistas, que poderiam criar sua própria verdade através do poder
persuasivo das palavras:
Sed mora tuta brevis: lentescunt tempore curae,
Vanescitque absens et novus intrat amor.
Dum Menelaus abest, Helene, ne sola iaceret,
Hospitis est tepido nocte recepta sinu.
Quis stupor hic, Menelae, fuit? tu solus abibas,
Isdem sub tectis hospes et uxor erant.
Accipitri timidas credis, furiose, columbas?
Plenum montano credis ovile lupo?
Nil Helene peccat, nihil hic committit adulter:
Quod tu, quod faceret quilibet, ille facit.
Cogis adulterium dando tempusque locumque;
Quid nisi consilio est usa puella tuo?
(Ovídio, Ars amatoria, II 357-368)
Porém, se ausência ateia, ausência nímia apaga:
Sai um amor falido, entra segundo, e paga.
Tardava Menelau; era medrosa a dama,
Temia dormir só: do hóspede entrou na cama.
Partir! Deixá-los sós! Sós sob o mesmo teto!
E pasmares depois!... oh! Que amador discreto!
Confiar tanto monta as pombas ao milhafre,
E em guarda ao teu redil por o lobaz mais caere.
Que exprobas crime a Helena, e a Paris felonia?
Tu, qualquer outro, o mesmo em seu lugar faria.
Acusas o adultério! Imputa-to primeiro.
(Ovídio, 1943, p. 458)
O trecho não precisa de explicações para se fazer engraçado, mas é
interessante notar os motivos pelos quais Ovídio diz ter Helena se deitado com
Páris. Não atribui a culpa da grega à cegueira causada pela deusa Afrodite por
sua promessa a Páris, argumento digno de uma tragédia, e, sim, ao medo
infantil que a filha de Leda tinha de dormir sozinha.
2.6.2.3 A influência da comédia nova nas elegias
De acordo com Veyne, o procedimento de justapor cenas ou idéias
numa mesma elegia não deve certamente nada ao movimento de um coração
urbibus
obsessis
clausae
53
pleno. Estas cenas do gênero tendem freqüentemente ao típico, à comédia de
costumes (o ciumento, as artimanhas da mulher adúltera) e o ego é apenas um
procedimento. A elegia é uma fotomontagem de sentimentos e de situações
típicas da vida passional irregular, expostos na primeira pessoa(Veyne, 1985,
p. 60).
Também Archibald A. Day, no capítulo V do livro intitulado The origins of
latin love-elegy, mostra a relação entre a comédia nova e a elegia latina. De
acordo com ele, a influência da comédia nova nas elegias latinas pode ser
traçada e atestada por:
1) Referências diretas à comédia nova em Propércio e Ovídio
(Propércio II, 6; III, 21, 27-28; IV, 5,41 e Ovídio: Am. I,15, 17-18; A.A.
III, 331-2, A.A III, 604; Rem. Am. 382; Trist. II, 369).
2) Passagens paralelas das elegias e comédia nova, incluindo
referências gregas. O conflito entre raiva e paixão impotente (Catulo
VIII e Báquides, 500-5), por exemplo.
3) Passagens da elegia latina para a qual existem fragmentos em
ambos, na comédia nova e nos escritores gregos eróticos
posteriores, como Luciano, Filostratus, Alciphron, Aquiles Tatius,
Longo, Aristanetus. Nesse sentido, é preciso considerar também que
os paralelos entre a literatura erótica grega posterior e as elegias,
quando não tratam de lugares comuns traçados a partir da vida, são
atribuídas a fontes comuns. Uma dessas fontes é a comédia nova. É
também atestado por muitos críticos o fato de ter a erotodidaxis
emergido da comédia e ter sido desenvolvida na elegia, atingindo o
cume na Arte de amar de Ovídio. Porém outras fontes devem ser
consideradas nesse sentido, como Platão, O banquete 201d;
Xenofonte, Mem, III, II. Também o uso da magia, poções e drogas,
tema recorrente nas elegias, teriam sua origem na comédia.
4) Similaridades entre as elegias latinas e os escritores gregos de
literatura erótica para os quais uma fonte na comédia nova não pode
ser atestada.
5) Passagens da elegia latina e comédia nova em textos retóricos, o
que pode referir-se ao uso de Menandro nas escolas de retórica.
Optou-se por não comentar todos os itens estabelecidos por Archibald
pelo fato de eles se distanciarem muito do tema proposto para o presente
estudo. No entanto, é importante ressaltar novamente a presença dos “tipos”
da comédia nas elegias ovidianas. Assim, o eu-lírico apaixonado nos remete ao
jovem apaixonado de Plauto
54
. As damas de vida irregular das elegias, sempre
54
É digna de nota a obra Os caracteres, de Teofrasto. Contudo, não se faz uso aqui desse autor, por se entender que
os “tipos” ovidianos têm, de fato, características estabelecidas por Teofrasto, “filtrados” pela comédia.
munimina
portae
prosunt;
54
em busca de presentes, nos remetem às espertas cortesãs das comédias, bem
como às alcoviteiras ou ao escravo que guarda a porta da casa da amada.
Voltando ao primeiro item destacado por Archibald, como referências
diretas à comédia, transcreve-se a seguinte passagem de Ovídio:
Sit tibi Callimachi, sit Coi nota poetae,
Sit quoque vinosi Teia Musa senis;
Nota sit et Sappho (quid enim lascivius illa?),
Cuive pater vafri luditur arte Getae.
(Ovídio, Ars amatoria, III 329-332)
Conheci as poesias de Calímaco,
as do poeta de Cós e as do velho de Teos
que era amigo do vinho.
Li igualmente Safo (quem como ela
a voluptuosidade cultivou?)
Li também o poeta
Que nos representou
um pai que do astuto Geta
os artifícios expiou.
(Ovídio, 1992, p. 205)
A menção de Geta, um escravo malandro das obras de Menandro, é
muito significativa para a leitura da obra ovidiana como poema metatextual. É
mister notar que tal trecho está inserido no terceiro livro da Arte de amar e tem
a finalidade de enumerar às mulheres os autores que elas devem ler para
serem cultas e dignas de interesse. Na interpretação de que todo o poema
ovidiano é um metatexto, essa passagem estaria se referindo às fontes em que
a elegia, ou pelo menos a obra de Ovídio, teria bebido. Dito de outro modo, a
sugestão de leitura às mulheres para despertar o amor pode ser lida em
paralelo com a indicação de fontes para a composição elegíaca aos futuros
poetas que serão formados por Ovídio: Calímaco, Filetas e Safo.
2.6.3 Outros recursos cômicos
Ainda discorrendo sobre a comédia, cabe uma citação de Graf, para
quem a comédia romana criou um mundo desordenado de realidade invertida,
onde tudo o que é normalmente proibido torna-se permitido. A comédia plautina
era um evento carnavalesco; seu humor específico era o humor do carnaval,
in media
pace quid
arma
times?
55
em que eram abandonadas as regras da vida cotidiana. Mas o principal campo
do humor plautino é puramente teatral (Graf, 2000, p. 59). À luz dessas
palavras, encontra-se um paralelo entre o cômico plautino e ovidiano: o
aspecto teatral. Embora com relação à Arte de amar ou às outras elegias não
se trate de peças teatrais, cuja encenação seria o elemento a suscitar o riso,
como ocorre em Plauto, as regras ditadas por Ovídio não deixam de ser regras
de interpretação, de fingimento, ou, indo um pouco mais longe, de formação de
atores em algum nível. No caminho da mesma reflexão, é importante salientar
Bergson, para quem o riso decorre do automatismo dos personagens
envolvidos, quando estes são guiados pelo autor como se fossem fantoches
(Bergson, 2004 ,p. 26). Assim, na Arte de amar II, por exemplo, Ovídio pede
para que os homens insistam em “agarrar” as mulheres, mesmo que essas não
os pareçam querer. De acordo com ele, elas fazem tal gesto por “puro charme”.
No livro seguinte, quando se dirige às mulheres, Ovídio pede para que elas
finjam certa resistência, pois os homens gostam disso. Se pensarmos então no
encontro desse homem instruído pelo livro II e dessa mulher, instruída pelo
livro III, teremos uma cena de teatro ou até de dança com movimentos
perfeitamente sincronizados e ditados pelo praeceptor amoris.
Ainda de acordo com Bergson, “o efeito é mais mico quando podemos
explicar de modo mais natural a sua causa (Bergson, 2004, p. 19). Ele atesta,
por exemplo, que o distraído nos faz rir, mas a distração nos parecerá mais
ridícula se conhecermos sua origem e pudermos traçar sua história.
Transportando esse raciocínio para Ovídio, temos, na Arte de amar, os mesmo
temas dos Amores, ou, em outras palavras, a origem do amor de Amores está
toda descrita e desmistificada na Arte de amar. Na Arte de amar, por exemplo,
Ovídio pede para que os amantes combinem sinais para se comunicar quando
em meio a outras pessoas. Em Amores, I, 4 ele mostra como isso se na
prática. Ao ler, então, os Amores, o leitor é levado a rir, pois sabe o que move
esse amor e que ele é fingido, já que essa “pista” é dada na A arte de amar.
Embora os preceitos para os homens pareçam casar com os das
mulheres como numa dança, Ovídio surpreende seu leitor usando outro
recurso cômico: a contradição. O livro II discorre sobre como os homens devem
fingir para conquistar suas amantes, mas em certa altura do livro III, o
praeceptor amoris adverte as mulheres sobre a existência de homens
quid
facies
hosti,
56
mentirosos. Além disso, Ovídio alega que seu livro não é dirigido às mulheres
casadas, mas ensina como enganar os maridos. Argumenta também que não é
elegante tratar do ato amoroso e acaba por ditar regras para o “interior do
quarto”.
Ovídio usa também do exagero para fazer emergir o cômico, como em
Amores, III, 7:
exigere a nobis angusta nocte Corinnam
me memini numeros sustinuisse novem.
(Amores III 7, 25-26)
Numa só noite, e rápida
(Rápida mas divina)
Assaltos nove, intrépida,
Me deu gentil Corina.
E os nove assaltos fervidos
Fervido sustentei;
Nove lauréis explêndidos
Num só troféu juntei
(Ovídio, 1943, p. 388)
em que lamenta o fato de estar impotente e defende sua masculinidade
exagerando no número de vezes que satisfez Corina numa única e pida
noite.
55
No âmbito da paródia, podemos colocar o poema 6 de Amores II, escrito
em lamentação à morte do papagaio de Corina. Sabe-se que os epigramas
eram a princípio composições breves (de 1 a 8 versos) com a finalidade prática
de serem gravados em objetos votivos, estátuas honoríficas ou tumbas. Havia,
portanto, três tipos: sepulcrais, votivos e honoríficos. A partir do século IV a.C.,
os epigramas ficam cada vez mais extensos e perdem sua finalidade prática,
adquirindo fins literários. Aparece então um grande número de temas novos,
principalmente a partir da época helenística: amorosos, descritivos, epidíticos,
satíricos etc. A elegia, então, a partir do século V, quase desaparece e o
epigrama herda uma ampla gama de temas. Nessa época, o epigrama se
aproxima tanto da elegia que é difícil dizer se temos uma elegia curta ou um
epigrama extenso.
55
Essa passagem pode também ser interpretada como um eco textual do poema 32 de Catulo: nouem
continuas fututiones.
qui sic
excludis
amantem?
57
Na Antiguidade, o nome era de extrema importância. Não era só a
representação da coisa, mas a coisa em si. Era a maneira de continuar vivo
depois de morto. A sobrevivência do morto por meio de seu nome está ligada à
pronúncia deste. Cada vez que se pronunciava o nome do defunto em voz alta,
ele era arrancado e levado ao mundo dos vivos por um instante. O nome era,
pois, o vínculo entre os dois mundos. Era, principalmente, por isso que se
escrevia o nome dos mortos nas tumbas e se dedicavam poemas a eles. Deve-
se também aos gregos o costume de colocar os túmulos ao longo do caminho,
para que os que andassem por ali se detivessem a ler os nomes dos mortos. A
inscrição em verso ajudaria na memorização e posterior lembrança por parte
do leitor. então vários tipos de epigramas. Um deles é o voltado a animais.
Ao que tudo indica, foi a poetisa Ánite de Tegea (300 a.C.) a iniciadora desse
tipo de epigrama
56
.
septima lux venit non exhibitura sequentem,
et stabat vacuo iam tibi Parca colo.
nec tamen ignavo stupuerunt verba palato;
clamavit moriens lingua: 'Corinna, vale!'.
(Amores II 6, 45-48)
(...)
Dos dias da penosa enfermidade
Raiara enfim o sétimo, o medonho;
O que, a teus olhos desfazendo um sonho,
Tinha de anoitecer na eternidade.
A Parca, vendo a roca já despida,
Gemeu, dando no fuso o último giro;
Sentiste a hora da final partida;
Tua voz, já mortal e a custo ouvida,
Disse: - “ Corina, adeus –“ e num suspiro
Exalaste caindo o amor e a vida.
(Ovídio, 1943, p. 312)
Embora atestada a existência de epigramas para animais, são evidentes
o exagero presente nesse poema de Ovídio e seu caráter cômico. Enquanto
Catulo fala do pardal de Lésbia, Ovídio descreve a morte de um papagaio.
Também a elegia é extensa demais. Sem contar o pathos, que, de tão
exagerado, transcende os limites entre o trágico e o cômico.
Outra elegia que parodia a origem do gênero elegíaco é a 14 de Amores,
I, uma lamentatio aos cabelos perdidos.
56
VEJA, M. L. del B. Epigramas funerários gregos. Madrid: Gredos, 1992.
tempora
noctis
eunt;
58
Segundo Bergson, ao imaginar algumas personagens em determinada
situação: será obtida uma cena cômica se a situação se inverter e os papéis
forem trocados(Bergson, 2004, p. 69). Para ele, tudo o que lembre “mundo às
avessas” pode resultar cômico. E é exatamente isso o que faz Ovídio em
Amores II.19:
Si tibi non opus est servata, stulte, puella,
at mihi fac serves, quo magis ipse velim!
quod licet, ingratum est; quod non licet acrius urit.
ferreus est, siquis, quod sinit alter, amat
speremus pariter, pariter metuamus amantes,
et faciat voto rara repulsa locum.
(...)
ei mihi, ne monitis torquear ipse meis!
quidlibet eveniat, nocet indulgentia nobis —
quod sequitur, fugio; quod fugit, ipse sequor.
At tu, formosae nimium secure puellae,
incipe iam prima claudere nocte forem.
(...)
lentus es et pateris nulli patienda marito;
at mihi concessi finis amoris erit!
Scilicet infelix numquam prohibebor adire?
nox mihi sub nullo vindice semper erit?
nil metuam? per nulla traham suspiria somnos?
nil facies, cur te iure perisse velim?
quid mihi cum facili, quid cum lenone marito?
corrumpit vitio gaudia nostra suo.
quin alium, quem tanta iuvat patientia, quaeris?
me tibi rivalem si iuvat esse, veta!
(Ovídio, Amores, II. 19 1-6; 34-39; 51-60)
Marido néscio, apático, insensível,
Ouve-me! Eu vou ser franco. É necessário
Mudarmos de papel. Se não te importa,
Por teu próprio interesse,
Guardar melhor a esposa...ao menos guarda-a
Pelo interesse meu, que a amo, e a quero,
E preciso de a amar. O permitido
Nenhuma graça tem, mas ao defeso
Sôfrego o coração revoa aceso.
(...)
O arbítrio que vos dou, por minha história o sei;
Ai triste! O meu martírio, eu próprio o decretei!
O agro-doce do amor não temais que me enoje;
Eu fujo a que me segue, e sigo a que me foge.
Tu, de tão linda esposa esposo indigno e vil,
Que da fé conjugal à sombra em paz descansas,
Que nem julgas sequer possíveis as mudanças,
Que ignoras do ciúme o veneno sutil!
Alma incapaz de amar, mistura de aço e gelo,
excute
poste
seram!
59
Guarda como dragão tesouro tão gentil!
Desperta do letargo, abre teu peito ao zelo...
No mundo há tentações, e amor tem fraudes mil.
Costuma-te a fechar a porta inda com dia!
(...)
Com marido covarde, inculcador, infame,
Que pela sua inércia estraga o meu prazer
Que tenho eu que fazer?
Toma a tua mulher. Procure quem a ame!
Talvez encontrarás quem prese um sestro igual;
Quanto a mim, já mostrei meu gênio escrupuloso.
Sê meu perseguidor, sê bravo, sê zeloso,
Se algum prazer te dá que eu seja teu rival.
(Ovídio, 1943, p. 353-356)
A inversão está clara nessa elegia, quer pelo fato de o eu-lírico fugir a
que o segue, e seguir a que lhe foge, quer pelo fato de chamar a atenção do
marido que o vigia convenientemente a esposa, tirando da vida do amante a
emoção de se saber subversivo e desafiador. O esperado é que o amante peça
para que o marido seja menos severo, mas não é o que ocorre aqui.
Entretanto, essa elegia dialoga com a que é apresentada a seguir:
quo tibi formosam, si non nisi casta placebat?
non possunt ullis ista coire modis.
Si sapis, indulge dominae vultusque severos
exue, nec rigidi iura tuere viri,
et cole quos dederit — multos dabit — uxor amicos.
gratia sic minimo magna labore venit;
sic poteris iuvenum convivia semper inire
et, quae non dederis, multa videre domi.
(Ovídio, Amores, III. 4, 41-48)
Não buscasses linda esposa,
Se virtuosa a querias;
Casta e bela ao mesmo tempo...
Muito é para em nossos dias.
Se tens alguma prudência,
Esquece o teu ar severo;
Torna-te esposo benigno,
Em vez de censor austero!
Seus amigos te festejam...
Festeja-os como ela, é justo;
Assim terás larga roda
Com muito pequeno custo.
Receberás milconvites
Para festas, para ceias,
E de cousas não compradas
Non ego
militibus
60
Verás tuas casas cheias.
(Ovídio, 1943, p. 378)
Nesse caso, não temos inversão do papel do marido e do amante.
Porém o mundo às avessas continua presente se pensarmos que o marido
será querido nas festas e terá sua casa cheia de presentes não por ser
merecedor disso ele próprio, mas por ter desposado uma esposa linda, porém
não virtuosa, o que seria demais na época. Nesse sentido, vale lembrar os
romances picarescos, em especial Lazarilho de Tormes, cuja situação
financeira relativamente cômoda do anti-herói é atingida quando esse divide a
mulher com outro homem que sustenta o casal.
2.6.3.1 Sátira em Ovídio?
É difícil delimitar em Ovídio o elemento satírico. Se pensarmos que a
sátira é datada, ou seja, refere-se a um tempo e espaço específicos, então
Ovídio é mesmo um satirista, já que declarou em Arte de amar III:
Simplicitas rudis ante fuit: nunc aurea Roma est,
Et domiti magnas possidet orbis opes.
Aspice quae nunc sunt Capitolia, quaeque fuerunt:
Alterius dices illa fuisse Iovis.
Curia, concilio quae nunc dignissima tanto,
De stipula Tatio regna tenente fuit.
Quae nunc sub Phoebo ducibusque Palatia fulgent,
Quid nisi araturis pascua bubus erant?
Prisca iuvent alios: ego me nunc denique natum
Gratulor: haec aetas moribus apta meis.
Non quia nunc terrae lentum subducitur aurum,
Lectaque diverso litore concha venit:
Nec quia decrescunt effosso marmore montes,
Nec quia caeruleae mole fugantur aquae:
Sed quia cultus adest, nec nostros mansit in annos
Rusticitas, priscis illa superstes avis.
(Ovídio, Ars amatoria III, 113-128)
Foi pobre, rude foi! De palmas hoje à sombra,
Roma, em seu trono de ouro ao globo exhausto assombra!
Capitólio; o que foste! E o que és ante o universo?
Chamar-te-iam mansão de um Júpiter diverso.
Esta cúria, condigna a teu senado, ó Lácio,
Tinha teto de feno em dias de el-rei Tácio.
Criava o Palatino os bois dos lavradores:
Hoje fulge, sagrado a Febo e a imperadores.
venio
comitatus
et armis;
61
Gabem outros o antigo; eu prezo a nossa idade;
folgo de viver nessa, e sinto-me à vontade;
não já porque se arranca ouro abundante às minas,
manda púrpuras Tiro, o oriente per’las finas,
as montanhas se vão de mármore esfazendo,
e com moles a terra invade o mar horrendo;
mas sim porque, ao revez dessa avita rudeza,
hoje há gosto e primor, luxo e delicadeza.
(Ovídio, 1943, p. 473-474. Grifo nosso)
Nessa passagem é nítida a alusão àquele trecho da Eneida em que
Enéias encontra Evandro, e Virgílio lamenta a corrupção vigente em sua época,
contrastada ao ambiente rústico dos primórdios de Roma. Tal alusão pode ser
interpretada de duas maneiras:
1) Ovídio se refere ao fato de que escreve elegias e não epopéias que
relatam fatos gloriosos do passado;
2) Ovídio satiriza, não Virgílio, mas a vontade de pertencer a um
passado, tido como mais digno, mais glorioso e em congruência com
a pietas de Enéias.
Tal interpretação se sustenta, que Ovídio vivia num tempo em que
Augusto tentava a todo preço resgatar a velha moral romana, reformar os
costumes e ressuscitar as antigas tradições
57
. De acordo com Zélia Cardoso,
Ovídio pôde acompanhar, de perto, os passos que levaram à Pax Romana,
presenciou a implantação das políticas do princeps, observou a evolução social
e cultural que se processava na “Cidade Eterna” e viveu intensamente as
conseqüências determinadas pela consolidação de uma estrutura nova
58
. Sua
obra refletiria, então, esse momento particular, sendo Amores e Heróides,
embora discorrendo sobre personagens mitológicos, retratos da sociedade de
sua época. Nesse sentido, sua obra é uma sátira: é datada, urbana e reflete os
momentos de “decadência” que a propaganda vigente não queria admitir. A
obra faria de Ovídio um “inimigo de toda a hipocrisia”, como se disse certa vez
a respeito de Gregório de Matos
59
. No entanto, seu riso não é o riso cáustico de
Catão ou o urbano de Horácio, que serve de instrumento a serviço da causa
moral” (Minois, 2003, p. 83). Tomando-se os preceitos de Frye, há, sim, um tipo
57
CARDOSO, Z. In: OVÍDIO, 1992, p. 8.
58
CARDOSO, Z. In: OVÍDIO, 1992, p. 7.
59
HANSEN, J.A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das
letras, 1989. p. 24.
solus
eram, si
non
saevus
62
de atitude militante em Ovídio, mas às avessas. Diz-se às avessas, pois a
moralização é tida como inerente à sátira e é basicamente conservadora,
tendendo a corrigir, em qualquer lugar, a perversão por meio do escárnio
(ridentem dicere uerum, como diz Horácio) (Graf, 2000, p. 61). Ora, a obra
ovidiana não vai a serviço da moral vigente, ou da uirtus que quer a ciuitas.
Ovídio não se faz distante da sociedade à qual pertence, mas sim do novo
projeto de constituição de uma moral tradicional que não existe. Ao contrário
daqueles para quem a arte serve a ciuitas, sua arte serve para desmistificar.
Raciocínio que ganha força se aceitarmos o argumento de que Ovídio foi
exilado exatamente por causa de seus versos da Arte de amar, tema
demasiado polêmico para ser discutido no âmbito deste trabalho.
Conforme anteriormente explicitado, Minois atesta que o humor ovidiano
desmistifica o amor idealizado, algo que ele fará novamente no relato do mito
de Narciso em As Metamorfoses. Ao invés de glorificar o amor estóico ou a
atitude de quem abandona um amor para servir à pátria, como faz Enéias,
Ovídio faz de sua obra uma apologia do amor interesseiro, ou seja, da situação
tida como viciosa. A crítica vai em direção a quem está fora da “nova ordem
social”:
Este procul, lites et amarae proelia linguae:
Dulcibus est verbis mollis alendus amor.
Lite fugent nuptaeque viros nuptasque mariti,
Inque vicem credant res sibi semper agi;
Hoc decet uxores; dos est uxoria lites:
Audiat optatos semper amica sonos.
Non legis iussu lectum venistis in unum:
Fungitur in vobis munere legis amor.
(Ovídio, Ars amatoria, II, 151-158)
Fora as altercações, os vômitos de injúrias;
Com mel amor se nutre, e não com fel das fúrias.
Que esposos muito embora alterquem, se afugentem,
Muita intenção de agravo um contra o outro invertem;
À casada está bem, pois são seu dote as brigas;
Mas a amante só ouça as frases mais amigas.
Nenhuma lei vos força a ‘star no mesmo leito;
Amor, o terno amor, em vós só tem direito.
(Ovídio, 1943, p. 452)
Há, de certa forma, uma atitude punitiva no cômico ovidiano. O que é
satirizado, aqui, é o casamento como instituição. Via de regra, não se casava
adesset
Amor.
hunc
ego,
63
por amor e a punição ovidiana para isso seria amar; o que ele se propõe a
ensinar, ou seja, seu humor não pune diretamente, mas sua literatura ensina
como punir. Para Sharrock, a sexualidade em Ovídio oferece uma visão
alternativa do mundo, mais explicitamente em Ars amatoria where sex is set
up as an alternative to Augustan citizenship. Althoug the poem poses as
denying that it teaches anything against the Augustan adultery laws, at almost
every turn its presentation belies its protestation(Sharrock, 2003, p. 105). Isso
não quer dizer que Ovídio acredita que o adultério encerre um valor positivo,
mas o tem como uma forma de aliviar o controle social exercido por Augusto.
De acordo com Bergson, risível será, portanto, uma imagem que nos
sugira a idéia de uma sociedade fantasiada e, por assim dizer, de uma
mascarada social(Bergson, 2004, p. 33). Nesse sentido, vale destacar a obra
intitulada De Medicamine faciei feminae, traduzida tradicionalmente por
Cosméticos para o rosto feminino. Tal título pode servir de metáfora para a
maneira de se disfarçar (por isso cosméticos) em meio à hipocrisia da época. E
é exatamente isso que Ovídio ensina na Arte de amar: como fingir (maquiar)
um amor. E é nessa direção que vai todo o investimento semântico da obra.
Para Minois, Ovídio está em uma das etapas da extinção do riso
moralizador da sátira romana, riso esse que se “torna mais difícil sob o Império,
quando a paródia das classes dominantes pode ser punida com açoite ou
banimento”. Para o autor, a conseqüência disso é a degradação da verve
cômica em ditos espirituosos, preciosismos, jogos de palavras para público
esnobe”. Para um romano, é difícil resistir a um jogo de palavras, a um
trocadilho, que a língua latina tão bem pode proporcionar. Cícero sucumbe a
isso muitas vezes; com Catulo, [torna-se] um hábito; com Ovídio, uma
obsessão (Minois, 2003, p. 94). Mais uma vez, então, Ovídio se aproxima de
Plauto, pelo menos da interpretação de Graf de Plauto, como alguém que não
usa o humor para acusar ou criticar como o fizeram Cícero e os satiristas. De
acordo com ele, na “longa história de sua aceitação, Plauto é admirado não por
sua moralidade, mas por seu talento e espirituosidade” (Graf, 2000, p. 63).
E é exatamente a “espirituosidade” ovidiana que fez e faz crescer sua
legião de soldados amantes (Amores I.9), declarando Naso Magister erat (Arte
de amar, II, 744), dentre eles Chaucer, Petrarca e Shakespeare, que atendem
o pedido feito em Arte de amar II, 739-740:
si
cupiam,
nusquam
dimittere
64
Me uatem celebrate, uiri, mihi dicite laudes:
Cantetur toto nomen in Orbe meum.
60
Do alvitre
Com base na definição de elegia adotada, faz-se necessário um
comentário acerca do uso dos relatos mitológicos em Ovídio.
A posição desse capítulo sobre os mitos em Ovídio foi conscientemente
estabelecida, que figura entre o capítulo sobre o gênero elegíaco e didático,
representando, como ocorre em Ovídio, a “descida do céu para a terra”.
Fert animus propius consistere; supprime habenas,
Musa, nec admissis excutiare rotis.
(Ovídio, III, 467-468)
61
60
Homens, o vosso poeta celebrai!/Enchei-me de louvores. Seja o meu nome/no universo inteiro festejado. In:
OVÍDIO, 1992. p. 168-169.
61
Quero cingir a barreira mais de perto./ Musa, sustém as rédeas dos cavalos!/ Não vão eles lançar-te/ Fora do
carro a toda a velocidade. In: OVÍDIO, 1992. p. 217.
possum;
ante vel a
membris
65
Capítulo III
AS IMPLICAÇÕES DO USO DOS RELATOS
MITOLÓGICOS NAS ELEGIAS ERÓTICAS DE OVÍDIO
[Eros] dociamargo
[Eros] que atormenta
[Eros] tecelão de mitos
62
Na leitura das elegias eróticas romanas, e as de Ovídio não são
exceções, verifica-se uma forte presença de relatos mitológicos. Presença
essa, como querem os críticos, entre eles Paul Veyne, explicada pela herança
e influência da poesia helenística. Tal poesia, de fato marcada pela grande
erudição de seus poetas, recorria a mitos nem sempre conhecidos para falar,
entre outros temas, de amor. Como explicitação dessa herança, pode-se dizer,
portanto, que os relatos mitológicos são o pano de fundo por onde transita o
eu-lírico ovidiano, Corina e os demais personagens do “romance” em forma de
elegias, intitulado Amores. É claro que tais relatos estão presentes também em
A arte de amar e são o “motor” das Heróides. É mister observar que se utilizou
o termo “relato mitológico” para designar as ocorrências do mito na poesia
ovidiana pelo fato de este estar mais próximo da maneira como Ovídio, um
romano, concebia o mito, ou seja, como sinônimo de fábula. Com tal termo
pretende-se referir a que Ovídio não “acreditava” em tais relatos, mas utilizava-
os artisticamente. Muito diferente, então, do que ocorria nas culturas primitivas,
em que o universo era concebido através do mito, capaz de recriar o mundo
cada vez que era celebrado. Em tais culturas, pode-se dizer que arte e rito
religioso eram inseparáveis. De acordo com Ernesto Grassi, o mito e a arte
são o fundamento da vida dos povos primitivos, pois o fenômeno religioso está
difuso nas eras primitivas por quase toda a vida social (Grassi, 19-? ,p. 113). O
mito, nessas sociedades, não é simples ficção, mas realidade viva (Grassi, 19 -
?, p. 115). Com o passar do tempo, entretanto, o mito foi perdendo tal realidade
e deixou o campo da religião, sendo entendido cada vez mais como ficção, e
assim pôde ser tratado como literatura. A implicação disso na Roma de Ovídio
é que os leitores das elegias não acreditavam em sua mitologia mais do que
62
Safo, apud FONTES, p. 409.
dividar
ipse
meis.
66
nós mesmos acreditamos hoje em dia e faziam delas, de acordo com Veyne,
altas e doutas fantasias (Veyne, 1985, p. 179).
Parece unânime entre os estudiosos de Ovídio que a recorrência a tais
relatos se pela exigência do gênero elegíaco, cuja apreciação não deixa de
mencionar o adjetivo douto. As alusões à mitologia seriam assim o equivalente
às nossas citações latinas, pura demonstração de erudição. De acordo com
Fontes, o texto poético no período de Ovídio é tecido de referências eruditas,
paráfrases ou citações. É assim que ele entende o apelo à mitologia por parte
dos elegíacos, apoiando-se nas seguintes palavras de Paul Veyne: “Quando se
empregava a Fábula, entendia-se que se fazia literatura(Fontes, 2003, p. 69).
Assim, na concepção de Fontes, um poema de amor de Ovídio é uma
brincadeira galante, belas palavras no pano de fundo do mito e da retórica
(Fontes, 2003, p. 107). Também para Veyne, a mitologia nas elegias romanas
é uma “ciência divertida”, um jogo de pedantismo entre iniciados, jogo este que
resultava em diversão (Veyne, 1985, p. 180). De acordo com esse autor, ao
escrever Os Amores, Ovídio queria se divertir e foi por isso que usou muita
mitologia nessa obra, mitologia esta que aparece em vagas, em rajadas, como
os provérbios de Sancho Pança; Para Veyne, tratava-se, pois, do prazer da
citação. A Fábula serve à argumentação prazenteira (...), e a argumentação
passa a ser enumeração: mais vale citar quatro heróis do que três (Veyne,
1985, p. 185).
Mas é claro que tais personagens mitológicos, nesse contexto de amor e
brincadeira, aparecem diferentes de suas roupagens homéricas. Discorrendo
sobre Propércio, Veyne afirma que metade dos poemas desse autor são
pequenos quadros nos quais heróis e heroínas da mitologia estão no mesmo
plano dos humanos vulgares. (...) o poeta não parece sentir a diferença entre
os seres fantásticos e estes seres de carne (Veyne, 1985, p. 179). Tal
afirmação pode ser aplicada a Ovídio, que utiliza fatos tomados da mitologia
como se tivessem acabado de acontecer, bem como heróis mitológicos como
se fossem seus amigos. Tal constatação é mais palpitante ainda nas Heróides,
em que Ovídio transforma os personagens míticos em pessoas de sentimentos
tão mundanos como as que ele encontrava na urbs: os deuses e heróis da
epopéia ou da tragédia passam a desfilar no mundo de paixão, escravidão e
crise das elegias. É fato que essa “humanização” dos personagens míticos não
ergo
Amor et
modicum
67
é inaugurada por Ovídio, visto que era um exercício nas escolas de retórica
defender ou acusar determinado herói com o intuito de r em prática o poder
da argumentação. Porém Ovídio “executa tal exercício com nuanças
diferentes. De acordo com Vega, tradutora das Heróides para a edição da
Gredos de 1994, el verdadero mérito de su resultado literário es el de hacer
creado unos personajes verossímiles, aunque partiendo del material de
escuela (Ovídio, 1994b, p.16). O poeta parece encontrar nos mitos um
antecedente capaz de eximi-lo de culpa ou compartilhar de seus sofrimentos,
criando assim, principalmente nas Heróides, um universo ligeira e
deliberadamente anacrônico: numa paisagem onírica, movem-se personagens
solenes, irreais... mas, falando e, sobretudo, argumentando à maneira dos
homens do tempo de Augusto(Fontes, 2003, p. 66-67). Cabe ressaltar que os
mitos em Ovídio não são apenas relatos, servem de metáfora para a situação
em que se encontra o poeta.
Para Quintiliano, a recorrência a mitos serve como exemplos, ficando
na classe que ele chamou de provas extrínsecas às causas. Para ele, esses
exemplos que são tirados das fábulas poéticas devem ter tratamento
semelhante ao dos exemplos históricos (sem a mesma asseveração desses),
podendo, portanto, ser narrados por inteiro ou simplesmente apontados,
dependendo do conhecimento dos ouvintes e da relevância deles para a causa.
Seria aqui um pouco fora de propósito analisar um poema ou trecho da obra de
Ovídio em busca da consonância dos relatos mitológicos com os preceitos de
Quintiliano. Ficou claro, com os comentários sobre as Heróides, que Ovídio
estava ciente dos exercícios de retórica e sua utilização criativa em poesia. No
entanto, o que se propõe é que, usando esses relatos, Ovídio esteja recorrendo
a outro recurso trazido por Quintiliano: a autoridade humana. De acordo com o
autor, os poetas ilustres podem ser trazidos para a prova. Assim, aludir aos
tópoi de uma tradição, com a reelaboração dos relatos mitológicos presentes
em outros poetas, não deixa de ser uma tentativa de persuadir os leitores, por
meio de seu discurso (o poema), a ver a sua contribuição para o gênero que
está desenvolvendo, permitindo, consoante Certeau em trecho citado, que
permaneça possível articular o que surge com o que desaparece”.
Parece ter ficado evidente, pela opinião dos comentaristas citados, que a
tradição do gênero elegíaco pedia a ocorrência de relatos mitológicos. Porém
circa
mea
tempora
vinum
68
as implicações da utilização do mito em poesia superam essa simples
constatação. De acordo com Fontes, onde o romântico faria a natureza e o
universo inteiro gritar em seu nome; onde o contemporâneo multiplicaria a
vertigem das imagens, o latino recorre a uma seqüência de símiles, unidos pelo
ritmo binário do dístico e dignificados pela referência ao universo mitológico
(Fontes, 2003, p. 75). O que se encontra em tal afirmação é uma aproximação
de recursos poéticos em diferentes épocas. A questão que emerge dessa
aproximação é: por que, ao escrever poesia, o romântico [faz] a natureza e o
universo inteiro gritar em seu nome, o contemporâneo [multiplica] a vertigem
das imagens e um latino recorre a uma seqüência de símiles (...) dignificados
pela referência ao universo mitológico”? Em busca de uma resposta para tal
questão, é necessário e pertinente uma investigação acerca de características
que rodeiam a essência da poesia e do que os poetas, independentemente de
suas épocas, querem expressar e, assim, poder chegar mais perto do
entendimento do porquê da insistente recorrência aos relatos mitológicos nas
elegias.
3.1 A linguagem mítica e a linguagem poética
Para Aristóteles, uma obra seria “bela”, se o autor fosse capaz de
compor “mitos”. Tal concepção de beleza, atrelada a mito, nos remete
novamente à associação, anteriormente citada, entre arte, mais
especificamente poesia, e religião. Nas culturas primitivas, a poesia é culto,
adivinhação, profecia. Em outras palavras, a interpretação da realidade era de
ordem religiosa: era formulada pelo vates, o vidente, o profeta, cujas palavras
eram de providência sobrenatural: assim ele podia prenunciar o que ainda
não acontecera. Quando o mundo mítico ruiu, foi substituído pelos poetas e
pelos filósofos na sua função de intérprete dos sinais sagrados (Grassi, 19-?,
p. 131). É por isso que Grassi afirma que assim como a filosofia, também a
poesia nunca poderá negar a sua origem mítica(Grassi, 19-?, p. 131). Devido
a essa origem mítica, a poesia compartilha dos “poderes” do mito.
Nas culturas primitivas, em que o mundo era recriado a cada celebração
do mito, entende-se que este tinha a intenção de dominar o caos e de incluir o
mecum
est et
madidis
69
espectador como comparsa nesse seu mundo, transformando-o e enfeitiçando-
o (Grassi, 19-?, p. 130). O poder de “enfeitiçar” que possui o mito é também o
da poesia, conforme definida por Dufrenne
63
. Esse poder de “encantar”,
atribuído ao mito por Grassi, deve-se, entre outros fatores, à capacidade que
ele tem de suspender o tempo. De acordo com esse autor, a essência do mito
relacionada com o fenômeno do tempo representa um acontecer tal como
ocorreu “in principio” ou seja num instante e fora do tempo, numa era sagrada
(Grassi, 19-?, p. 118). Assim, ao narrar ou ouvir um mito, o tempo é suspenso e
os envolvidos são transportados para um tempo mítico. E, mesmo que a
história narrada diga respeito a um lugar distante no espaço, ainda assim
possui validade, que essa história, carregada de divindade, adquire uma
significação eterna. Em outras palavras, ou melhor, nas palavras de Guimarães
Rosa, “as aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim” (Rosa, 1995, p.
36). É por isso que ele podia afirmar que vivia no infinito (Rosa, 1995, p. 37).
Também o poema compartilha dessa característica de transcender a história
(Paz, 1986, p. 23). De acordo com Octavio Paz, durante a leitura do poema,
um instante que contiene todos los instantes. Sin dejar fluir, el tiempo se
detiene, colmado de si (Paz, 1986, p. 25). Nesse sentido, o poema é a
comunicação com o tiempo puro, inmerción em las águas originales de la
existencia” (Paz, 1986, p. 26).
Em busca desse “tempo puro”, a literatura procura também a expressão
da linguagem original. Segundo Calasso, o gesto por excelência da literatura é
conduzir-nos para o lugar de onde brota a palavra (Calasso, 2004, p. 128). É
isso o que buscam os “alquimistas do verbo”, ou seja, decifrar o que para os
discípulos de Hermes se chamava “língua dos pássaros”, a significação
primeira das palavras, que pode levá-los à transcendência. Para os poetas, tal
exercício consiste em libertar as palavras dos sentidos que foram se
impregnando nelas no seu uso cotidiano (Paz, 1986, p. 22). Para Dufrenne, a
poesia é capaz de restituir a linguagem a seu estado de natureza: pois a
linguagem, que se pode considerar artificial enquanto significante, encontra,
como ser expressivo, a densidade e o brilho das coisas naturais, e seu
movimento tem a espontaneidade da vida (Dufrenne,1969, p. 111). Ora,
63
Conforme discutido no capítulo I deste trabalho.
lapsa
corona
comis.
70
também o mito, de acordo com Almeida, citando Vicente Ferreira da Silva,
expressa-se numa linguagem originária, a linguagem poética(Almeida,1988,
p. 64). Assim, tanto o mito como a poesia “buscam uma compreensão da
realidade humana na sua totalidade, através da linguagem simbólica
(Almeida,1988, p. 64).
É dessa busca do sentido original da palavra, de acordo com Guimarães
Rosa, que depende o bem-estar do homem. Ao devolver à palavra seu sentido
original, ao meditar sobre ela, o homem se descobre a si mesmo. Com isso
repete o processo da criação(Rosa, 1995, p. 48). É pertinente lembrar aqui a
já apontada capacidade que tem o mito de repetir o processo da criação.
Importante ressaltar também, nas palavras de Guimarães Rosa, a referência a
uma “descoberta de si”, que equivaleria a uma “compreensão da realidade
humana”, apontada por Almeida. Em poesia, seria o equivalente a dizer que o
homem que lê quer ler-se no que lê, quer encontrar-se naquilo que ele é
incapaz de fazer(Melo Neto, 1994, p. 736 ). É nesse sentido que Dufrenne
afirma ser a poesia verdadeira, que o mundo revelado por ela compreende e
esclarece o homem. Esse mesmo autor, citando Bachelard, atesta que “é
possível que se analise melhor uma infância através de poemas e somos
aqui tentados a sobrepor, ao termo poema, o termo mito do que através de
recordações, melhor através de devaneios, do que de fatos” (Dufrenne, 1969,
p. 110).
Atestada, então, a proximidade entre mito e poesia, constata-se que a
ocorrência dos relatos mitológicos nas elegias possui um significado muito
maior que uma simples adequação a um gênero literário. Nesse sentido,
concorda-se com Prado, para quem:
A utilização de relatos mitológicos, pelo menos na elegia romana (...),
desempenhou uma função, qual seja, resgatar a força expressiva dos
mitos, como símbolos de uma experiência subjetiva e, portanto,
muito apropriados para uso em elegias, e devolvê-la, ampliada pela
força expressiva da própria poesia, ao leitor, que participava de uma
sociedade, cujo fundamento religioso (mitológico) fornecia o
substrato pessoal necessário para percebê-lo, ou, pelo menos, senti-
lo. Tal fato explica por que os relatos mitológicos e as alusões a seus
ritos de celebração ocorrem tão insistentemente nas obras dos
elegíacos. (Prado, 1990, p. 138)
arma
quis
haec
timeat?
71
Antes de encerrar tal argumentação, convém mencionar algumas
considerações tecidas por Roberto Calasso em obra intitulada A literatura e os
deuses. Esse autor, citando o lingüista Jacob Wackergagel, chama a atenção
para o fato de que a palavra grega théos (deus) não é declinada no vocativo e
seu sentido é, então, predicativo: indica algo que acontece (Calasso, 2004, p.
11). Nesse sentido, as palavras de Virgílio Iovis omnia plena fazem soar a
certeza de uma presença que se encontra por toda parte no mundo, na
multiplicidade de seus eventos, no entrelaçamento de suas formas (Calasso,
2004, p. 11). Essa presença divina não é necessariamente a presença do Deus
cristão, ou dos deuses míticos: engloba todos eles. Seria o equivalente ao Uno
dos alquimistas, ou aquilo que, segundo Calasso, da forma mais intensa
possível, nos a sensação de estar vivos (Calasso, 2004, p. 33). E assim,
esse autor chega à definição de “literatura absoluta”, inacessível por outro meio
que não o literário e absoluta por dizer respeito à busca do absoluto, do todo.
Nesse sentido, os verdadeiros escritores, ainda que se detestem, se oponham
ou nem mesmo se conheçam, falam do mesmo objeto (Calasso, 2004, p. 123).
A arte seria, então, um meio de ir diretamente a Deus, sem a mediação da
igreja (Dufrenne, 1969, p. 130). Pode-se, pois, supor que a presença de tantas
divindades nos poemas em questão tem a função de verbalizar, de atestar
essa presença do absoluto, característica da obra literária.
3.2 O mito de Galatéia e as elegias ovidianas
Os Amores de Ovídio se iniciam com uma personificação. Ovídio ou,
antes, o eu-lírico que “narra” o poema, se introduz como a própria obra
Amores, que toma voz no epigrama que prefacia toda a obra. De acordo com
Hardie, Cupido estaria no poema representando não o deus Amor, mas o
desejo. Dois importantes detalhes, presentes no primeiro poema, põem em
questão a real presença do deus e o próprio texto. Assim, o verbo dicitur
(quarta linha do poema) seria, na verdade, uma nota alexandrina e serviria para
colocar a epifania de Cupido no plano da ficção e da alusão textual. Também o
fato de Cupido ter transformado o poema épico que Ovídio estava escrevendo
em elegíaco, roubando-lhe um (do poeta ou do metro utilizado pelo poeta?)
quis non
eat
obvius
illis?
72
também contribui para a confusão entre presença pessoal ou textual e ajuda na
identificação do poeta com seu livro (Hardie, 2002, p. 36). O objeto de desejo
de Ovídio está ausente quando ele se torna escravo do amor. No decorrer da
coletânea, porém, o leitor vai descobrindo, juntamente com o poeta, alguns
traços de Corina. Para Hardie, the roles of the male imagination and of writing
are focusing in the device of the elegiac pseudonym, which imposes on the
puella a identity founded on male poet’s projection of his desires on to a fantasy
derived from a written tradition (Hardie, 2002, p. 32). Assim, a Lésbia de Catulo
está associada à ilha onde Safo escrevia seus poemas. A Cynthia cantada por
Propércio está ligada à Cynthus, a colina em Delos, onde Apolo, o deus da
poesia, e sua irmã Diana, a deusa da caça, nasceram (a forma Κύνθιος foi
usada por Calímaco para designar Apolo). a Corina de Ovídio está
associada a uma poetisa grega (famosa por sua beleza e por versos difíceis)
que muitos associam à preceptora de Píndaro.
A leitura de Hardie para Amores I.5 é bastante intrigante. Fazendo uma
análise freudiana e lacaniana do que ele chamou de “objeto de desejo”, Hardie
enfatiza que, no poema citado, a pergunta feita por Ovídio (cetera quis nescit?)
forja uma aliança entre poeta e leitor, fazendo com que a memória (que o leitor
tem de situações como essa) e o desejo compartilhados criem a ilusão da
presença física de Corina no texto (Hardie, 2002, p. 42). Hardie elenca outros
elementos para sustentar sua leitura: a idéia de “meio” que emerge do poema
(janela parte aberta, parte fechada; meio-dia, os membros no meio da cama).
Citando Stephen Hinds, Hardie mostra que, na linha 10, candida diuidua faz
uma alusão à epifania de Lésbia em Catulo 68, 70-1: quo mea se molli candida
diu a pede/ intulit. Quando lemos em Ovídio toda a palavra, ou seja diu-idua,
um epíteto para o cabelo “repartido” de Corina, tem-se no nível lingüístico a
estratégia do poeta em mostrar Corina como alguém dividida entre ser ou não
ser uma deusa (Hardie, 2002, p. 43). Mesmo concebendo-se uma presença
física de Corina no texto, ela é mostrada ao poeta e ao leitor de maneira
fragmentada (ombros, braços, peitos etc.), do modo que Hardie chamou de
fetishistic metonymisation and dismemberment. Quando, no ato sexual o corpo
deve ser “montado”, o poeta se recusa a dizer mais e faz a citada
interrogação cetera quis nescit? Corina se transforma em algo impossível,
porém mais sedutor: um texto, objeto de desejo, ou seja, uma potente tela para
tempora
noctis
eunt;
73
a projeção da fantasia masculina (Hardie, 2002, p. 46). Para Hardie, reader in
the Amores, where, as we saw, the climatic encounter between Corina and
Ovid in I.5 leaves the poet in possession of an object that is hardly less textual,
less written, than that which the reader holds in his hands (Hardie, 2002, p.
50). Tentando confirmar sua teoria a respeito das puellae dos poetas, Hardie,
citando Girard, mostra que, em Catulo 51, a presença de Lésbia é tão forte que
o eu-lírico precisa emprestar uma outra voz, a de Safo, para descrever a
situação. Nesse caso, o homem que contempla Lésbia tem um papel
importante, é o mediador. Um objeto desejado por outro confere ao objeto de
desejo um valor maior. Assim, quando Ovídio diz que tornou sua Corina
imortal, ele está sendo um mediador e transformando sua puella em um objeto
desejadíssimo para a terceira parte, ou seja, o leitor (Hardie, 2002, p. 52-3).
De fato, em Amores, III.12, o leitor é surpreendido com as reclamações
do eu-lírico acerca dos inúmeros cortejadores de Corina, que conseguiu tal
fama graças aos versos do poeta. Paralelamente às reclamações e no molde
das demais elegias, o poeta discorre sobre diversos relatos mitológicos,
cantados por ele em As Metamorfoses. E é exatamente nessa obra que ele
canta o mito do qual irá se tratar aqui: a transformação de Galatéia, estátua de
marfim, em mulher.
Para traçar os comentários seguintes, parte-se da hipótese de que a
Corina de Ovídio não existiu de fato caminhando pelas ruas de Roma, a não
ser que alguém que caminhasse estivesse portando as elegias de que ela é o
tema. Não entraremos aqui na discussão da existência “real” das mulheres das
elegias, que, no caso de Ovídio, a tradição não parece ter dúvidas de seu
caráter fictício. Este trabalho apoiou-se no tratado escrito por Paul Veyne, em
que se demonstra, de maneira convincente, que as elegias são encenações de
amores em primeira pessoa.
O que se propõe é que Ovídio esteja agindo como Pigmalião, ou seja,
criando Corina, que terá em Roma força de mulher “real”. Assim como
Pigmalião, Ovídio não estava apaixonado, até que Cupido, em Amores, I.1,
praticamente impõe que esse poeta cante o amor. Ovídio-Pigmalião, então,
com arte admirável (mira arte), esculpiu em níveo marfim, uma figura de uma
beleza que nenhuma mulher pode ter; apaixonou-se por sua obra (Ovídio,
1983, p. 189). É mister ressaltar que tal obra se deu com ars. Cabe ressaltar
excute
poste
seram!
74
também que a estátua em questão apresentava uma beleza não equivalente à
de nenhuma mulher de carne e osso, já que se tratava de um trabalho artístico.
Assim, no projeto de elevar Corina à categoria de mito, Ovídio com a arte de
um escultor vai traçando e percorrendo os contornos de Corina ao sabor dos
movimentos de seu stilus.
Em Amores I.3, quando a puella aparece, os três nomes, Io, Leda e
Europa estão ligados a contos de metamorfoses, como se Ovídio estivesse
antecipando seu poema narrativo e legitimando a metamorfose de Corina em
Galatéia.
É por meio do amor que Galatéia se transforma em mulher; por meio do
amor que Pigmalião sente por ela e por intermédio de Vênus, deusa do amor.
Ora, é exatamente por meio do amor, ou seja, o amor tema das elegias, que
Corina adquire fama, ou ainda, por meio do amor personificado (Cupido), que
ordenou que Ovídio o cantasse.
cum multis vereor ne sit habenda mihi.
Fallimur, an nostris innotuit illa libellis?
sic erit — ingenio prostitit illa meo.
et merito! quid enim formae praeconia feci?
vendibilis culpa facta puella mea est.
(Ovídio, Amores, III.12, 6-10)
Já de rivais inúmeros
A vejo cortejada;
Ah! Vejo-a por meus êmulos,
Como por mim, gozada,
E sinto-me abrasar.
Erro? Ou, co’a musa impróvida
Correndo esta cidade,
Eu próprio fui que aos méritos
Te dei celebridade,
Te ornei de nímia luz?
Não erro, não! Meus cânticos
Vaidosos, imprudentes,
Hão posto aos olhos públicos
Os dotes seus patentes;
À venda eu mesmo a pus.
(Ovídio, 1943, p. 409-410)
É claro que é possível estabelecer uma comparação entre tal mito e
qualquer obra literária de grande alcance. O que se pretende é mostrar que,
para Ovídio, o poeta é responsável por cristalizar mitos, ou mesmo por tecê-
los. O poeta tem consciência de que é na literatura, ou nos escritos, que os
Lentus
es: an
somnus,
75
acontecimentos são imortalizados. Tal consciência é mais palpitante em
Pônticas: são os poetas que criam o mundo dos mitos e, de certa forma, até os
próprios deuses (Ex Ponto IV.8.51-59). Assim, parece clara a consciência do
poeta de que as coisas sobrevivem se forem escritas e que os livros
deixaram os poetas, mas também os heróis e deuses, conhecidos. Assim, para
Ovídio, os deuses existem por estarem cristalizados em poemas. Se
Hesíodo não tivesse escrito sobre os deuses, como eles sobreviveriam ou
mesmo existiriam? É, portanto, a poesia que torna os deuses imortais. Nesse
sentido, cabe voltar à concepção de beleza de Aristóteles ou à epígrafe deste
capítulo, em que se afirma que o poeta é um tecelão de mitos.
Do alvitre
Chamou-se a atenção, neste trabalho, para o fato de que, para entender
poesia, o leitor precisa ler-se nela. Também se afirmou que, nas elegias, os
deuses e relatos mitológicos são postos lado a lado com experiências do
cotidiano do poeta. Em outras palavras, o poeta se iguala aos deuses: cria um
mito e imortaliza os mitos existentes (não seria Corina-Galatéia um exemplo
disso?). Tal fato é sentido com mais veemência nas Heróides, em que a
poetisa Safo está entre os personagens mitológicos. Ao colocar Safo entre as
demais heroínas, o poeta das Heróides está confirmando todas as
características e afinidades entre mito e poesia, sua capacidade de expressar a
divindade, o absoluto. E aqui é pertinente citar Heráclito: O que de fato são os
homens? Deuses mortais. O que de fato são os deuses? Homens imortais”. Ao
afirmar, portanto, que o poeta se iguala aos deuses, faz-se mister um
esclarecimento sobre a direção do movimento dessa equiparação. Nesse
modus operandi com relação ao mito, Ovídio cria uma ucronia em que o ser é
confrontado com a imagem idealizada do ser universal, o ser no todo, na
plenitude da potencialidade. O fato de esses relatos estarem presentes na
poesia lírica aumenta sua força em elevar o indivíduo para o atemporal e
atópico, que essa poesia, por ser subjetiva, tem o poder de desamarrar o
indivíduo do chão. No entanto, Ovídio traz o mítico aos homens e não o
contrário. Em outras palavras, ele faz o céu descer à terra e é exatamente por
qui te
male
perdat,
amantis
76
isso que ele mescla os relatos mitológicos com o que de mais mundano: a
corte amorosa. Uma imagem poética de como isso se pode ser obtida no
poema The ecstasy de John Donne:
(...)
A influência dos céus em nós atua
Só depois de se ter impresso no ar.
Também é lei de amor que alma não flua
Em alma sem os corpos transpassar.
Como o sangue trabalha para dar
Espíritos, que às almas são conformes,
Pois tais dedos carecem de apertar
Esse invisível nó que nos faz homens,
Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado.
Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.
Se alguém – amante como nós – tiver
Esse diálogo a um ouvido a ambos,
Que observe ainda e não verá qualquer
Mudança quando aos corpos nos mudamos.
64
O pouco citado Heráclito pode igualmente ser usado para refutar tal
hipótese de “descida” dos céus à terra: “O caminho para cima e para baixo é
um e o mesmo”. Poder-se-ia argumentar ainda que a corte amorosa não é uma
característica exclusiva dos homens, já que, no Olimpo, as relações amorosas
continham todas as angústias e alegrias “mundanas”. O próprio Ovídio chama
a atenção para o fato de Júpiter cometer perjúrios em nome de suas paixões e
lembra o célebre caso de adultério cometido por Vênus e Marte. No entanto, na
corte amorosa ovidiana, com todas as suas especificidades de ardil, fingimento
e teatro, o elemento de “urbanidade” (urbanitas, -atis) é muito proeminente. As
descrições dos costumes elegantes da Roma antiga são a tal ponto
detalhadas, que fazem com que o texto da Ars suscite interesse histórico. Além
disso, o que se propõe de fato é que Ovídio, na manipulação dos gêneros aos
quais sua obra se filia por traços compositivos específicos, ou seja, o elegíaco
e o didático, realiza, com relação à poesia, processo análogo ao que executou
ao lidar com os mitos. No entanto, é necessário tecer alguns comentários
capazes de elucidar a maneira de conceber a classificação genérica neste
64
Trad. de Augusto de Campos.
verba
dat in
ventos
77
trabalho, bem como levantar aspectos do gênero didático relevantes para a
pesquisa.
aure
repulsa
tua?
78
Capítulo IV
CRÍTICA COM BASE NOS GÊNEROS
De acordo com Dalzell, crítico que se debruçou a pesquisar os traços de
didatismo nas obras de Lucrécio, Virgílio e Ovídio, if books are written out of
other books, then the intertextual relationship has to be a central concern of the
critic and genre will be part of that concern (Dalzell, 1996, p. 5). Assim, a
verificação, a partir do confronto de várias obras, da presença de traços em
comum pode caracterizar tais textos como membros de uma classe. No
entanto, tais traços não devem ser concebidos como um conjunto de regras
das quais o se permitia a fuga, hipótese que a existência de tratados de
poética, como a Epistula ad Pisones de Horácio, por exemplo, pode levar a
crer. Nesse sentido, é mister observar que os romanos não escreviam um
corpo de regras para serem rigidamente seguidas. É certo que encontramos
em Horácio a expressão “legitimum... poema” (Epist. 2.2.109), contudo essas
leges a que o poema “obedecia” constituíam-se mais em diretrizes na busca da
perfeição que em castradores da criatividade poética: os poetas jogavam com
essas regras com o intuito de dar a sua contribuição para uma determinada
tradição. À luz das palavras de Dalzell, theory had not hardened into dogma,
and Roman writers seem in practice to have felt free to develop the tradition as
best suited their purpose (Dalzell, 1996, p. 5). Ainda Dalzell, citando o
professor Rosenmeyer, lembra que os gêneros são “miragens” e que instead
of genre criticism the ancients practised model criticism(Dalzell, 1996, p. 23).
A influência desse modelo determinava alguns traços “formais” do gênero,
como metro, estilo etc. Assim, a busca por elementos que caracterizem uma
obra como pertencente a uma ou outra tradição é não uma forma de catalogar,
mas um método para lidar com os textos e trazer à tona um número de
relações literárias.
4.1 O gênero didático
uma crença de que toda obra literária é didática. Tal crença era mais
evidente na Antigüidade, período em que, com raras exceções, o poeta era
at,
memini,
primo,
79
visto como professor. De fato, os poetas eram vistos como possuidores de
inspiração divina e, conseqüentemente, detentores de um conhecimento que
ultrapassava o dos homens comuns. Na medida em que essa imagem ia
desaparecendo, a crença no ingenium vinha a formular outra para ocupar o
espaço deixado. O poeta passou a ser visto como o possuidor de um talento
nato que o fazia superar os demais homens. Assim, a idéia da autoridade do
poeta nunca desapareceu completamente. Dessa forma, mais capazes de
deter um determinado conhecimento, seriam propensos a ensinar aos demais,
o que legitimou a poesia didática e tornou didática toda a poesia. Esse
conhecimento pode, inclusive, ser especializado em diferentes assuntos.
Assim, Aristófanes (As rãs 1031-6) diz que alguém pode aprender sobre
agricultura com Hesíodo, sobre medicina com Musaeus e sobre a arte da
guerra com a epopéia (Dalzell, 1996, p. 10).
65
No entanto, mesmo na concepção de que poesia é uma inspiração
divina, essa fonte de inspiração nem sempre é confiável. E um dos primeiros
exemplos de poesia (e de poesia didática) chama a atenção para isso: na
Teogonia, as musas dizem a Hesíodo que, quando querem, podem contar
mentiras que soam como verdades. Ou seja, as musas falam da essência da
ficcionalidade. É por isso que, para Aristóteles, poesia e ‘tratado’ eram coisas
distintas, o que fez o estagirita afirmar que Empédocles e Homero nada tinham
em comum a não ser o metro. De acordo com Dalzell, tal distinção se em
Aristóteles por ele considerar que a verdadeira arte é mimética, é uma
representação. Nesse sentido, é essencialmente ficcional, diferentemente do
que deve ocorrer nos “tratados”. É essa a diferença entre historiador e poeta:
um conta as coisas como aconteceram, o outro, como poderiam ter acontecido.
Assim, a função do poeta não é contar a verdade, mas representar os humanos
em ação. Insistir na verdade do que se diz é uma questão de gênero, não um
critério de literariedade (Dalzell, 1996, p. 18).
65
Vale aqui citar Michel Detiene: No cerne do saber tradicional, a epopéia homérica constitui a enciclopédia dos
conhecimentos coletivos. Homero não apenas se pronunciou sobre os assuntos mais importantes, como a guerra,
o comando dos exércitos, a administração dos estados, a educação do homem, mas revelou-se mestre em todas as
artes: rituais detalhados, procedimentos jurídicos, gestos e práticas de sacrifícios, modelos de vida familiar,
relações com os deuses e até instruções completas sobre a maneira de se construir um barco fazem parte das
informações fornecidas pelos milhares de versos da Ilíada e da Odisséia. Homero assume uma função didática
sem igual. E Havelock o comprova em Platão, nos primeiros anos do século IV, com A República, que mostra
exaustivamente com citações, que os poetas, e sobretudo o Poeta, tem a merecida reputação de “conhecer todas
as artes”. (Detienne, 1992 , p. 58)
cum te
celare
volebam,
80
O fato é que com Hesíodo tem início o que a tradição denominou como
gênero didático. Na verdade, tal gênero nunca foi visto pelos críticos como de
fato um gênero separado. Em termos estilísticos, ele ficava ao lado da epopéia,
sendo um subconjunto do verso hexâmetro, figurando, por exemplo, como um
dos gêneros listados por Cícero ou Horácio. Os poetas didáticos eram incluídos
na classe dos escritores que usavam o metro hexâmetro, como quer, por
exemplo Quintiliano, para quem essa poesia era expressa em hexâmetro e
tratava de assuntos épicos ou pastorais.
No entanto, códigos literários capazes de distinguir tal poesia das
demais, de tratá-la como gênero. O mais óbvio deles, segundo Dalzell é apelar
para a autoridade de Hesíodo, o precursor dessa classe. Assim, Aratus is
praised by Callimachus for following the theme and manner of Hesiod (Epigr.
29.1). Virgil describes the Georgics as ‘Ascrean song’ (2.176) and his Works
are later echoed by Columella (10. 436). Nicander appeals to the testimony of
‘Ascraean Hesiod’ near the beginning of his poem on poisionous snakes
(Dalzell, 1996, p. 21-22). Uma prática comum dos poetas latinos era indicar,
logo no início da obra, suas filiações literárias. Manílio, por exemplo, começa a
Astronômica com uma tradução da primeira linha da Teogonia de Hesíodo.
Essas referências a Hesíodo indicariam que os poetas estavam conscientes de
sua posição numa tradição, o que mostra que a literatura clássica admitia o
status de gênero para a poesia didática.
Além dessa referência à tradição, a poesia didática é moldada pela
complexa relação entre professor, aprendiz e matéria ensinada. Nesse sentido,
é interessante perceber como cada um desses elementos é apresentado nesse
tipo de poesia. Para receber o título de magister, este precisa mostrar sua
autoridade no assunto que se propôs a ensinar. Assim, Hesíodo encontra as
musas do Helicão que o inspiram a cantar o passado e o futuro. Esse tema da
inspiração divina tornou-se também uma convenção da poesia didática. Ovídio,
por exemplo, faz referência à passagem com ironia (Ars amatoria I. 25-29).
Pode-se dizer que a autoridade da matéria narrada é também assegurada pelo
uso de exemplos mitológicos nessa poesia. Nesse sentido, o mito é visto como
um discurso de autoridade passado de geração para geração. Além disso, os
exemplos mitológicos têm a função de elevar o tom e quebrar um possível
estado de fastio devido ao didatismo.
pervigil
in
mediae
81
Outro traço característico dessa poesia é a presença do magister,
sentida por suas várias intervenções na narrativa para dar exemplos de seu
próprio proceder. A poesia didática, assim como a poesia lírica, é em primeira
pessoa, mas espera-se que o leitor não se identifique com o “eu”, senão com o
aprendiz, elemento fundamental para que o didatismo se sustente. Virgílio, por
exemplo, nomeia Mecenas como destinatário; Hesíodo, Perses; Lucrécio,
Mêmmio. Na verdade, a existência empírica dessas pessoas importa muito
pouco, o que importa é que o poema a impressão de que está ensinando
alguém, nomeado como nos exemplos acima, bem como em Parmênides,
Empédocles, ou não, como em Arato, Manílio e Ovídio. No entanto,
características formais, como o uso do imperativo ou o pronome de segunda
pessoa, por exemplo, dão a impressão dessa presença durante a leitura da
obra. Porém, mesmo nos casos em que o poema tem um destinatário
específico, é óbvio que esse destinatário abarca uma audiência maior. Assim,
Mecenas, em Virgílio, passa a ser todo leitor de seu texto. Para Sharrock, a
poesia didática tem um destinatário interno (Leitor), uma audiência maior
(leitor) e um uso abundante da segunda pessoa do singular (Sharrock, 1992, p.
11). Nesse sentido, qualquer leitor pode ser o irmão metafórico de Hesíodo, por
exemplo.
No que diz respeito à relevância da materia narrada, esta é muitas vezes
posta de lado em detrimento da arte do poeta. Para Dalzell, com relação à
verdade do que se propõe a ensinar, devem-se fazer duas perguntas: qual a
atitude do autor perante o leitor implícito no texto? Qual a atitude do autor
perante a mensagem didática? (Dalzell, 1996, p. 33).
Com o intuito, não de responder, mas de refletir como Ovídio se apropria
de elementos do gênero didático, faz-se necessária uma pesquisa acerca da
manipulação poética dos elementos pertencentes a essa tradição.
O que filia a Ars amatoria à tradição didática é, primeiramente, a
referida referência a Hesíodo no início da obra (Ars amatoria I. 27-28). Além
disso, o poema, por diversas vezes, toma emprestado dessa tradição imagens
náuticas e agrícolas, por exemplo. Cabe ainda ressaltar outros traços:
reiteração da competência; linguagem pedagógica a ver com estrutura lógica
(proposição, prova, recapitulação); fórmulas para transição dos assuntos,
presentes, por exemplo, em Lucrécio e Virgílio; digressões mitológicas etc.
sidera
noctis
eras.
82
Soma-se a isso o fato de o poema ter uma ordem cronológica (Ovídio “narra”
todos os passos do relacionamento amoroso, desde a procura pelo objeto do
amor até o clímax da relação sexual), o que está de acordo para o gênero
didático e é estranho para o universo elegíaco (que relata passagens diferentes
mas não necessariamente sucessivas na vida do indivíduo). Outro ponto que
conduz para essa direção é a ordenação dos objetivos da obra no livro I:
Principio (...) Proximus (...) Tertius (...) (Ars amatoria I. 35-38)
66
, que constitui
um “passo a passo” muito caro àquilo que se atribui um caráter didático.
Com relação à autoridade do praeceptor, Ovídio lembra que, ao
contrário do que ocorreu com Hesíodo, não são as musas, nem Apolo quem
dita a ele a obra: esta é fruto da experiência (usus) do poeta (Ars amatoria, I.
25-29). E vai mais longe: diferentemente das musas de Hesíodo, que podiam
contar coisas falsas, Ovídio clama que tratará de verdades (uera). Além
disso, e seguindo a tradição didática, o poeta intervém para dar exemplos de
sua experiência.
Com relação ao destinatário, a Ars amatoria não possui um indivíduo
identificável pelo nome. Ao contrário, a obra se destina “a alguém entre o povo
que não conheça a arte de amar” (Ars amatoria I, 1), ou seja, uma gama
considerável de pessoas, senão todas as pessoas. No decorrer da obra, o
Leitor, na exposta teoria de Sharrock, é construído como ingênuo, pronto a
receber o conhecimento do mestre. E os leitores podem acompanhar o
percurso de aprendizado que, para a autora, é de fato uma manipulação desse
aprendiz. Essa manipulação é também exercida sobre o leitor, que temos
prazer em assistir ao jogo no qual o Leitor foi envolvido.
Resta saber como é tratada a matéria ensinada. De acordo com
Schiesaro
67
, a tarefa de poetas didáticos, tais como Virgílio e Lucrécio is (…)
parallel to that of paternalistic, authoritarian princeps, as they both convey
unquestionable truths and norms validated by divine authority (Schiesaro,
2003, p. 63). Porém Ovídio rejeita esse modelo, que tanto Ars como Fasti e
Remedia descrevem a world of uncertainty dominated more by mutable
66
Principio, quod amare velis, reperire labora,/ Qui nova nunc primum miles in arma venis./ Proximus huic labor est
placitam exorare puellam:/ Tertius, ut longo tempore duret amor (Ovídio, Ars amatoria I, 35-38). “Se vais ao amor
como quem vai/ pela primeira vez ao fogo das pelejas,/ trata de procurar, antes de mais,/aquela a quem desejas./
Trata depois, então,/ de conquistar o coração/ da jovem que elegeste entre as demais mulheres./ E trata finalmente,
em último lugar,/ de esse amor prolongar (Ovídio, 1992, p. 21)”.
forsitan
et
tecum
83
desires (human and divine) and elusive memories than by unyielding natural or
providential laws (Schiesaro, 2003, p. 62). Que a obra não discorra sobre
providential laws é um fato, mas é mister observar que Ovídio a trata como um
ludus “jogo” (Tristia 1.9.61-2; Ars amatoria III. 809)
No que concerne ao uso dos relatos mitológicos como um traço de
didatismo, cabe fazer menção ao mito de Dédalos, narrado no início do
segundo livro. É essa a maior narrativa mitológica do poema (vinte e um
versos) e algumas de suas implicações na obra serão tratadas em momento
oportuno
68
. Mas o dado relevante para essa discussão é a imagem de Dédalos
como um híbrido que, na opinião de Sharrock, [reflects] metaphorically two not
unconnected features of the work: first, the mixture of genre (elegy and
didactic), and, secondly, or generally, the very nature of elegiac couplet
(Sharrock, 1994, p. 130).
A observação da autora traz a necessidade de confrontar os elementos
da poesia elegíaca e da poesia didática presentes na Ars amatoria, já que essa
“mistura” talvez seja o “carvão pulverizado”, imprescindível para ler a carta
escrita por Ovídio com leite fresco (Ars amatoria III 627-28).
O elemento didático foi introduzido na elegia erótica desde o começo
(Propércio I.7, Tibulo I.4), com a preocupação de narrar os eventos da vida
amorosa para uma audiência jovem que poderia achar o material útil. Além
disso, o tema da preceptística amorosa era abordado na comédia com a
diferença de que, nesse contexto, os amantes terminavam a peça juntos e
felizes.
Segundo Harrison
69
:
The Ars begins with some epic analogies for its speaker (Ars I. 5-8),
adapts the metaphors and rhetorical and narratorial devices of the
hexameter didactic of Virgil’s Georgics and Lucretius’ De rerum
natura, includes a lengthy cataloge of passionate heroines from Attic
tragedy and Hellenistic/neoteric narrative poetry, a clear link with the
Heroides (I. 283-342), and even parodies an archaic function of
elegy, that of civic instruction, with a glance at the civic element of
contemporary didactic of the Georgics. Its opening couplet, with its
67
SCHIESARO, Alessandro. “Ovid and the professional discourse of scholarship, religion, rhetoric”. In HARDIE, P.
(ed.) The Cambridge companion to Ovid.United Kingdom: Cambridge, 2003.
68
Ver capítulo VI deste trabalho, subitem “Exemplos de ars em Ovídio”.
69
HARRISON, S. “Ovid and genre: evolutions of an elegist”. In HARDIE, P. (ed.) The Cambridge companion to
Ovid.United Kingdom: Cambridge, 2003.
tua nunc
requiescit
amica -
84
explicit identification of the people of Rome as the addressee of its
precepts (Ars I. 1-2), looks back with amusement on the moralizing
advice handed down to the people of the Athenians in the archaic
elegies of Solon (e.g. fr. 37 West). (Harrison, 2003, p. 83)
A poesia didática, cujos precursores são as uaticinia, sortes e
sententiae, tem como expoentes em Roma Lucrécio e Virgílio. Ao levantar os
nomes de Virgílio e Lucrécio, a impressão que se tem é a de que os poemas
didáticos abordavam somente temas “sérios”. No entanto, ao lado dessa
tradição havia poemas didáticos destinados a temas mais banais. Ovídio, em
Tristia 2.471-94, chama a atenção para poemas sobre pintar a face, nadar,
jogar, etc. O tomar como assunto de uma obra didática temas banais, ou, a
princípio, pouco poéticos remonta a uma tradição helenística. A diferença de
Ovídio não está no tema, mas na forma do poema. De acordo com Dalzell, a
novidade de Ovídio foi escrever Ars no metro elegíaco e não no hexâmetro (Ars
amatoria I. 264: praecipit imparibus uecta Thalea rotis
70
). Isso faz da Ars
amatoria um híbrido: poema didático com o metro e os topoi das elegias. O
mesmo crítico chama a atenção para o fato de que as questões relacionadas
com o gênero foram a maior preocupação de Ovídio ao longo de sua carreira.
Nenhum dos outros elegíacos foi tão consciente dos limites do gênero e das
maneiras de os transcender (Dalzell, 1996, p. 136).
Do parvo alvitre
Uma imagem que, ainda que muito óbvia, pode vir à tona nesse
confronto de gêneros é a de um ato sexual (e tratando-se de Ovídio tal
hipótese ganha força). Assim, ad metam properate simul (Ars, II. 727) diz
respeito não aos amantes, mas também aos gêneros. Ainda mais se
tomadas as palavras de Sharrock, writing poetry, for Ovid, is not just about
‘sexuality’; it is itself an erotic experience, in which it is impossible to distinguish
clearly between sex and poetry(Sharrock, 2003, p. 99). O fato de Ovídio dar
espaço para leitores de ambos os sexos também pode depor a esse favor.
Foi essa imagem que colaborou na escolha da epígrafe do próximo
capítulo.
heu,
melior
quanto
85
Capítulo V
O EFEITO DA MISTURA DE GÊNEROS
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
71
O entrelaçar dos corpos elegíaco e didático é o que denuncia o caráter
inter e metatextual da Ars amatoria. Esse entrelaçamento propiciará uma
subversão nos traços de cada gênero: a transferência do mundo elegíaco
72
para um modelo didático provoca, a princípio, uma mudança de ponto de vista.
O eu-lírico elegíaco e o praeceptor amoris lidam com o mesmo objeto, mas sob
perspectivas diferentes. Enquanto o mundo elegíaco era o da frustração, da
hesitação, o mundo didático precisa assegurar a competência do magister. Na
elegia, o amor é pesar, sofrimento. Já na Ars, o amor é visto como algo
administrável. Se comparados os trechos em que a Ars toma os topoi elegíacos
empregados em Amores (Ars I, 565-606, e Amores I.4, por exemplo), observa-
se, ao invés de uma cena dramática de tristeza dos Amores, uma série de
preceitos calculados na Ars. É como se, agora, o eu-poético de Amores, sob a
pele de magister, estivesse fora da ação, somente dando conselhos: “what is
comic drama in the Amores unravels into a series of scheming directive
(Dalzell, 1996, p.143).
Na poesia amorosa, temos um “eu”, normalmente um homem, que sofre
por causa de uma mulher. Olhando mais de perto, o que é descrito não é nem
a mulher, nem o eu, mas os sentimentos que a relação entre eles proporciona.
Na verdade, esses sentimentos precisam, na maioria das vezes ser tristes e
provocados pela crueldade da amada
73
. Nesse sentido, ser amado significa
70
Eis os elementos que até aqui colheste/ de Tália conduzida por rodas desiguais. (Ovídio, 1992, p. 45)
71
“Amor, pois que é palavra essencial”. In DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos.
72
In Book I alone we meet the following elegiac topics and situations from Ovid’s own Amores or from the Works of
the other elegists: seeking a girl in Pompey’s Colonnade (67-8); devotion to Isis (77-8); Romulus as agent of love
(89-134); accompanying a girl to the Circus (135-62), or to the gladiatorial games (163-70), or to a military
triumph (177-228), or to a party (229-52); temptations of Baiae (255-8); women at Aricia (259-62); violence of
female passion (283-342); the girl’s maid (351-98); mercenary love (339-436); borrowing and not returning (433-
4); love letters (437-86); behavior at a banquet (565-630); lover’s oaths (631-6); female perjury (637); lovers’ tears
(659-68); violence in love (669-80); the wan lover (723-38); sleepless nights (735-6); false friends (739-54). It will
be obvious at once that this list covers the greater part of the book. It demonstrates the extend to which the iocosa
materia of the poem is derived from elegy. (Dalzell, 1996. p. 138)
73
Muitos críticos enfatizaram que a mulher das elegias deve ser vista como uma manifestação da própria poesia
Isso fica mais evidente, de acordo com Sharrock, when the poet, thinking of writing epic, is forced back into elegy
by the puella’s erotic coaxing (Am. 2.1, 2.18), while the personified Elegy (3.1) and the sexy Muse (various in
exile) are presented also as puellae, it is impossible to resist the implication that these girls are poems. (Sharrock,
sors tua
sorte
mea!
86
estar ali para ser cantado; é servir de objeto e não ter uma participação efetiva
no processo. O que importa é o que o eu sente a partir do outro, não o outro.
Nesse sentido, o amado é um escravo do poeta, que será celebrado em
verso se o poeta continuar amando e, sobretudo, sofrendo
74
. A poesia amorosa
é também convencionalmente sincera, confessional, e o uso da primeira
pessoa intensifica esse caráter. Porém, quando os sinais de amor da poesia
são removidos de seu contexto elegíaco e postos no contexto didático, eles
sofrem um processo de aniquilamento de sentimento. Na didascália, o poeta
que se dizia escravo é, na verdade, o dono do discurso, transformando, pois,
os seus discípulos em “escravos” dependentes dos preceitos do professor. No
processo de leitura dos Amores, o leitor se identifica com o eu-lírico, porém,
embora também em primeira pessoa, na Ars amatoria, o leitor tende a se
identificar, até certo ponto, não com o magister, mas com o discípulo. No
entanto, essa relação de dominância do praeceptor é explorada ao máximo por
Ovídio, a ponto de este “trair” seus discípulos. Para Allen, o preceptor works to
throw his readers off balance, to disorient them, in order to make them see
themselves and the reading progress from a new angle” (1992, p. 7).
Nas elegias, o leitor é levado a crer que aqueles topoi são de fato
sentimentos naturais e espontâneos. Quando esse leitor se defronta com a Ars,
nota que na verdade eles são imitações de sentimentos. Em outras palavras, é
declarado a ele que a maneira de agir de um apaixonado não passa de uma
série de convenções. Assim, ele reconhece que agir como apaixonado é o
equivalente a estar apaixonado. Para Allen, esse reconhecimento é construído
pela Ars e Remedia amoris, quando o leitor, tendo sido ensinado a criar uma
ilusão do amor em Amores, é, de repente, confrontado com um livro que coloca
o amor e suas convenções como perigosas e falsas (Allen, 1992, p. 9). Isso faz
com que o leitor, que acreditava estar seguro em seu mundo tenha que refletir
sobre a dicotomia realidade/ficção. É mister salientar, apesar de estar claro,
que esse escancarar” da ficcionalidade da poesia se deu por meio da
2003, p. 151). A mesma autora chama a atenção para o poema 2.19 de Amores, que, de acordo com ela reflete o
conceito Calimaquiano de que a poesia tem mais validade quanto maior dificuldade apresentar na produção.
Assim, a amante (poesia) é mais atraente na proporção da dificuldade para alcançá-la. (Sharrock, 2003, p. 155)
74
Sobre esse mesmo tema um poema de Hilda Hilst: Porque tu sabes que é de poesia/Minha vida secreta. Tu
sabes, Dionísio,/Que a teu lado te amando,/Antes de ser mulher sou inteira poeta./E que o teu corpo existe porque o
meu/Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,/É que move o grande corpo teu//Ainda que tu me vejas
extrema e suplicante/ Quando amanheces e me dizes adeus. HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão.
São Paulo: Globo, 2001, p. 60.
dummo
do sic,
in me
87
transposição do material elegíaco em didático. Assim, each time the Ars refers
to Amores, Ovid shows his readers that the love affairs his elegies describe are
strictly poetic, and they should be read as such(Allen, 1992, p. 35). E esse é
só o primeiro ardil elaborado pelo magister. No capítulo destinado a tecer
comentários acerca do humor nas elegias, um item abordado foi “contradição”.
Cabe agora uma discussão mais profunda sobre a maneira com que tais
“contradições” aparecem na obra ovidiana.
Para Allen, se o leitor simplesmente aceita que foi enganado e não
reflete sobre isso, não volta no texto para entender o que de fato aconteceu,
ele retém a obra parcialmente. Mas, se percebe que esse processo de criar
uma ilusão e deixar claro que ela é uma ilusão é uma demonstração do
poder da ficção, então o texto e suas, a princípio, contradições tornam-se
significativas (Allen, 1992, p. 10). Em síntese, o esquema traçado por Allen
acontece da seguinte forma: primeiro o professor ensina como o leitor deve
criar uma situação especial ou “armação” entre ele e o suposto amante. Essa
moldura, ou “armação”, é composta pelos topoi da poesia amorosa, ou seja, ele
é ensinado a fazer de seu amor uma ficção convencional. Então percebe, aos
poucos, que ele mesmo está sendo seduzido pelo professor, que este
ensina como enganar, iludir, ou seja, dita preceitos permeados de teatralidade
e humor
75
. Sendo assim, o discípulo chega à conclusão de que é isso o que o
magister realmente sabe fazer: enganar, o que coloca seus próprios
ensinamentos em questionamento. Durante todo o livro I e II, Ovídio ganha a
confiança de seus leitores homens, dizendo que todas as mulheres são
passíveis de serem conquistadas e vai armando-os para tanto. Allen chama
também a atenção para o fato de Ovídio, ecoando Virgílio, criar imagens
relacionando as mulheres aos campos agrícolas (I, 349-50), prontos para
serem dominados pelos homens. Porém, no livro III, o mesmo Ovídio, sob a
justificativa de que Vênus havia pedido para que ele não deixasse as moças
desarmadas, escreve um livro para as mulheres, entregando-lhes todos os
segredos ou vantagens que os homens julgavam ter em relação às
adversárias. Porém, também nesse momento ele é cínico: quanto mais as
mulheres ficarem dispostas a se entregar aos homens do livro I e II, maior
75
Em Ars a performance é o ponto central: lágrimas fingidas (I. 659-62); estar bêbado (I. 597-98); a aparência de um
apaixonado (I. 737-38), etc.
durae
transite
catenae!
88
vantagem eles terão. No entanto, Ovídio pede para que as discípulas se
acautelem com relação aos homens que fingem (exatamente o que ele os
ensinou a fazer!). Assim, como atesta Allen, Ovídio encerra tanto a parte
“masculina” quanto a “feminina” da obra pedindo para que os discípulos o
venerem como magister (2.744; 3,812). Cada grupo acredita estar na posição
de conquistador em relação ao outro, enquanto o preceptor é mestre dos dois
(Allen, 1992, p. 25).
Como se isso não bastasse, o magister escreve um quarto livro que
serve de “antídoto” para os precedentes. O que coloca todo o seu trabalho em
xeque, pois, se qualquer pessoa que não soubesse amar seguisse os
conselhos de Ars, conselhos esses ditados pela experiência de alguém que se
propôs a tratar de verdades (uera), não precisaria de um remédio, que não
fracassaria.
Dalzell afirma que o leitor ideal para a Ars é alguém que está preparado
para ficar chocado, ou, pelo menos, alguém que terá prazer em pensar que
outros leitores se chocarão (Dalzell, 1996, p. 155). No entanto, parece que o
propósito da obra é formar um leitor ideal. Com os sucessivos ardis do
magister, o leitor reconhece que o texto é todo ficção e se percebe, ele
também, dentro dessa ficção. E é essa a principal lição da Ars: como se tornar
um leitor de poesia amorosa, admitindo que toda obra literária é uma ficção.
Para Allen, no fim da experiência, o discípulo pode ter se tornado a well-read
student of elegiac poetry(Allen, 1992, p. 16). A hipótese levantada por ele é a
de que o leitor não precisa acreditar no que o texto diz, mas precisa entendê-lo
como ficção literária: um texto que é falso com ele mesmo de tantas maneiras
que não pode ser lido como verdadeiro (Allen, 1992, p. 17). This interpretive
method teaches the reader how fictional lovers behave and what that role
demands. It also shows the reader how to bridge the gap between his or her
individual identity and the identity of the reader inscribed in the texts, and
demonstrates the power of literary conventions and the pleasures of amatory
fiction. Such reading is itself a kind of love (Allen, 1992, p. 12). Assim, com
essas “traições”, o leitor não questiona mais a validade da informação, se ela é
falsa ou verdadeira, isto é, se a obra realmente ensina como seduzir alguém:
aos poucos, o leitor passa a notar que o professor na verdade não fala de amor
e sim de arte. Em outras palavras, ele evidencia de que modo se a sedução
tempora
noctis
eunt;
89
da arte e a Ars passa de um manual de amor a um manual de teoria literária
76
.
Ovídio, ao invés de descrever ou definir como se o processo de leitura, faz
com que o leitor experimente esse processo. Assim se explica o fato de usus
(experiência) ditar a obra: o termo se refere à experiência de Ovídio poeta e à
experiência do confronto com a ficcionalidade.
76
Uma passagem como a encontrada em Ars III. 344-5, por exemplo, vai a favor dessa hipótese, que demonstra a
preocupação de Ovídio com a maneira de ler seus poemas: Elige, quod docili molliter ore legas:/ Vel tibi
composita cantetur Epistola voce: (Ovídio, Ars amatoria, III, 344-345). “Escolhe um poema, lê-lo com voz
suave e comovida/ ou com brilho declama uma das suas cartas, (Ovídio, 1992, p. 207)”.
excute
poste
seram!
90
Capítulo VI
A LUZ DA LUA
Do medio alvitre
De como a dissertadora pretende passar de discipula a magistra
A tese de que a Ars amatoria é um “ensinar a ler” sob a pele de um
“ensinar a amar” fez com que a obra adquirisse novas nuanças. Então, como
se Psiquê fosse, porém já douta em mitos, portanto, tomando cuidado para não
derramar azeite fervente, sai a dissertadora à procura do “marido”. E então
lembra das palavras do magister que clama poder o Amor remanere per artes
(fixar o Amor por meio de artes) e que a melhor diretriz para trilhar seu
caminho é pesquisar como a arte se dá, que é por meio dela (per artes) que
o amor foi preso. Para tanto, busca os ensinamentos contidos nos manuais de
literatura e nos testemunhos de poetas que concebiam a poesia como técnica,
com o intuito de compará-los aos preceitos ditados por Ovídio e, assim,
desvendar como ele pôde trazer e manter o Amor.
6.1 Confrontando poéticas
Na bagagem para uma tal jornada, segue a comparação entre alguns
preceitos de diferentes tratados sobre poesia, principalmente o de Horácio, que
foi contemporâneo de Ovídio, e os preceitos ovidianos contidos na Arte de
amar. Dessa forma, apesar de concordar com João Cabral que cada poeta tem
sua poética (Cabral de Melo Neto, 1994, p. 724), selecionaram-se semelhanças
entre momentos diferentes da expressão do artesanato poético, de modo a
estabelecer como que um modelo de arte poética.
Fallimur,
an verso
sonuerunt
91
6.1.1 Ars e ingenium
Conforme se apresentou anteriormente, na Antigüidade o artista é, como
atesta Roberto Brandão, inimigo da improvisação, sendo importante para a
obra o seu plano e execução. Para Horácio, a perfeição só será atingida
quando o poeta tiver pleno domínio do material criativo, possível através da
razão, do trabalho e da disciplina, instâncias implícitas no conceito de arte. No
entanto, para Horácio, a “arte” está sempre ligada à “natureza”, que, no seu
estado bruto, é informe, caótica. Assim, arte e engenho são complementares
como instâncias específicas, mas mutuamente compromissadas
77
:
Natura fieret laudabile carmen an arte,
quaesitum est; ego nec studium sine diuite uena
nec rude quid prosit uideo ingenium; alterius sic
altera poscit opem res et coniurat amice.
Qui studet optatam cursu contingere metam,
multa tulit fecitque puer, sudauit et alsit,
abstinuit uenere et uino; qui Pythia cantat
tibicen, didicit prius extimuitque magistrum.
(Horácio, Arte Poética, 408-415)
Já se perguntou se o que faz digno de louvor um poema é a natureza
ou a arte. Eu por mim não vejo o que adianta, sem uma veia rica, o
esforço, nem, sem cultivo, o gênio; assim, um pede o outro, numa
conspiração amistosa. Muito suporta e faz desde a infância, suando,
sofrendo o frio, abstendo-se do amor e do vinho, quem almeja
alcançar na pista a desejada meta; o flautista que toca no concurso
pítico estudou antes e temeu o mestre. (Bruna, 1985, p. 67)
Também Longino, em congruência com o conceito de techné retórica e
poética da antigüidade, debruça-se a discutir se existe ou não uma “arte do
sublime”. E, apesar de reconhecer que algumas pessoas consideram a
obtenção do sublime um dom inato, Longino mostra que o sublime tem suas
próprias leis e que, se a natureza é sua fonte, cabe ao método mostrar seus
limites adequados
78
:
(...) ela constitui a causa primeira e princípio modelar de toda
produção; quanto, porém, a dimensões e oportunidade de cada obra
e, bem assim, quanto à mais segura prática e uso, compete ao
77
BRUNA, 1985, p. 8.
78
BRUNA, 1985. p. 13.
cardine
postes,
92
método estabelecer âmbito e conveniência. (Longino, Do sublime, II,
2)
Também Ovídio considera necessário unir as qualidades “inatas”, como
os “dons do espírito”, a beleza e a sorte com a disciplina, o estudo e a ars:
Vt dominam teneas, nec te mirere relictum,
Ingenii dotes corporis adde bonis.
Forma bonum fragile est, quantumque accedit ad annos
Fit minor, et spatio carpitur ipsa suo.
(Ovídio, Ara amatoria II, 111-115)
Se pretendes guardar a tua amiga / e não ter a surpresa de ser
abandonado/ (...) / junta os dons do espírito às vantagens do corpo. /
A beleza é um bem demasiado frágil, / tudo aquilo que aos anos se
acrescenta/ com rigor a beleza diminui: a própria duração a faz
murchar. (Ovídio, 1992, p. 109)
Nec levis ingenuas pectus coluisse per artes
Cura sit et linguas edidicisse duas.
Non formosus erat, sed erat facundus Ulixes,
Et tamen aequoreas torsit amore deas.
(Arte de amar II, 121-124)
Não te pareça um frívolo cuidado/ pelas artes liberais a inteligência
enriquecer/ e as duas línguas aprender/ Não era belo Ulisses mas o
dom tinha da eloqüência/ Tanto basta/ para que as duas marinhas
divindades/ dos tormentos do amor sofram a penitência (Ovídio,
1992, p.111).
Nec minor est virtus, quam quaerere, parta tueri:
Casus inest illic; hoc erit artis opus.
(Arte de amar II, 13-14)
Na conquista o acaso toma parte./ A conservá-la/ te ensinará a
minha arte (Ovídio, 1992, p. 99).
Percebe-se, na Arte Poética, que Horácio tem aversão aos poetas que
possuem o “gênio” e não cultivam a arte. Dessa forma, tais poetas tornam-
se semelhantes a “loucos” (Arte Poética, 453-456):
Ingenium misera quia fortunatius arte
credit et excludit sanos Helicone poetas
Democritus, bona pars non ungues ponere curat,
non barbam, secreta petit loca, balnea uitat.
(Horácio, Arte Poética, 295-298)
raucaque
concussae
93
Porque Demócrito crê que o engenho é mais afortunado que a
mísera arte e exclui do Helicão os poetas equilibrados, uma boa
parte deles não cuida de cortar as unhas nem barba, busca os
lugares retirados, evita os banhos. (Tringali, 1993, p. 33)
Ovídio também pede para que seus “alunos” não se descuidem da
aparência:
Nec male deformet rigidos tonsura capillos:
Sit coma, sit trita barba resecta manu.
Et nihil emineant, et sint sine sordibus ungues:
Inque cava nullus stet tibi nare pilus.
(Ovídio, Ars amatoria, I, 517-520)
que os teus cabelos o sejam deformados/ por um mau corte nem
fiquem eriçados;/ sejam por um barbeiro experiente/ os pêlos da tua
barba trabalhados;/ que as tuas unhas sempre se apresentem/
limpas e bem cortadas/ e nenhum pêlo desponte das narinas;
(Ovídio, 1992, p.69)
Sed tibi nec ferro placeat torquere capillos,
Nec tua mordaci pumice crura teras.
Ista iube faciant, quorum Cybeleia mater
Concinitur Phrygiis exululata modis.
Forma viros neglecta decet; (...).
(Ovídio, Ars amatoria, I, 503-507)
Oh! Não frises com ferro os teus cabelos
Com a pedra pomes as pernas não depiles.
Esses cuidados deixa àqueles que com uivos
À moda frígia a Cibele rendem culto.
Convém aos homens a beleza descuidada.
(Ovídio, 1992, p. 69)
6.1.2 O processo de criação como algo laborioso e feio demais para ser
manifesto
Para João Cabral, o ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se
passa sem testemunhas. De acordo com ele, os poetas da inspiração não
descrevem o momento da criação por saberem que a força que os faz escrever
é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões
ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é
capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir
(João Cabral de Melo Neto, 1994, p. 723). A mesma idéia de “vergonha” em
deixar ver por trás dos bastidores é mostrada por Poe, que salienta os
signa
dedere
fores?
94
inúmeros relances de idéia, que não chegam à maturidade da visão completa,
(...) as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações,
numa palavra, para as roídas e rodinhas, os apetrechos de mudança do
cenário, as escadinhas e os alçapões do palco (...), a tinta vermelha e os
disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a
característica do histrião literário (Poe, 1944, p. 78).
Também Ovídio pede para que as mulheres só se apresentem diante de
seu amante quando estiverem prontas, para que eles nunca as vejam durante
o ato de preparação. É interessante notar que tanto Ovídio como Poe usam
metáforas vindas do teatro para elucidar tal idéia:
Cur mihi nota tuo causa est candoris in ore?
Claude forem thalami! quid rude prodis opus?
Multa viros nescire decet; pars maxima rerum
Offendat, si non interiora tegas.
Aurea quae splendent ornato signa theatro,
Inspice, contemnes: brattea ligna tegit;
Sed neque ad illa licet populo, nisi facta, venire,
Nec nisi summotis forma paranda viris.
(Ovídio, Ars amatoria, III,227-234)
Não!, recuso-me a saber /De onde te vem a brancura /A nívea cor do
teu rosto./ Fecha a porta do teu quarto/ Não mostres obra
imperfeita./Há muita coisa que aos homens/ Convém ignorar./ Como
elas nos chocariam/ se as víssemos por dentro./ Contempla as
decorações/ douradas que ornam a cena:/ que leve folha delgada/ de
metal sobre a madeira!/ Mas não se mostram ao público/ enquanto
não acabadas./ Do mesmo modo, mulheres, / é na ausência dos
homens/ que a beleza é preparada (Ovídio, 1992, p. 195)
Estabeleceu-se, portanto, uma aproximação entre o “rosto belo” e “obra
acabada, perfeita”. Tal aproximação é pertinente por conta da palavra usada
por Ovídio nesse trecho: opus. Tal termo, empregado por Ovídio em não
mostres obra imperfeita, referindo-se a rosto, tem, em latim, a acepção de obra
literária, e Ovídio a emprega nessa acepção para tratar de obras de grande
importância. Em Arte de amar I, 29, Ovídio diz que a experiência (usus) é que
move sua obra (opus), no caso, referindo-se à própria Arte de amar. Em Arte
de amar III, 338, Ovídio emprega novamente a palavra opus, agora para referir-
se à Eneida, a obra mais ilustre que o Lácio produziu (A.A., III, 338). Em Arte
de amar III, 414, Ovídio usa a mesma palavra para se referir à Ilíada.
Fallimur -
inpulsa
est
animoso
95
6.1.3 A unidade da matéria
Um princípio que une as diferentes poéticas está relacionado com a
unidade de tema e extensão da obra. Assim Horácio salienta que em suma, o
que quer que se faça seja, pelo menos, uno (Horácio, Arte Poética, 23
79
).
Prega também, seguindo o preceito de Catão, segundo o qual rem tene, verba
sequentur” (domina o assunto, as palavras seguirão), que os escritores
dominem um assunto e, antes de escrever, ponderem se darão conta de tal
empresa. Assim procede Ovídio que, em Amores III, 1 escolhe qual Musa irá
atender, se a da tragédia ou da elegia amorosa. A unidade é também preceito
para os amantes. Em Amores, II.4, Ovídio assevera que centenas de tipos
diferentes (de mulheres) para amar. No entanto ele pede para que os homens
elejam uma mulher para ser o objeto de seu amor: Elige cui dicas 'tu mihi
sola places' escolha uma mulher e diga só tu me agradas” (Ovídio, Arte de
Amar, I, 42. Grifos nossos).
Para Aristóteles, o belo reside na extensão e na ordem, sendo mister
que as fábulas tenham uma extensão que a memória possa abranger inteira
(Aristóteles, 1985, p. 27).
Para Poe, a obra de Milton era constituída de cinqüenta por cento de
prosa pois o conjunto se vê privado, por sua extrema extensão, do vastamente
importante elemento artístico, a totalidade, ou unidade de efeito (Poe, 1944,
p.79).
6.1.4 Adequação do discurso, gênero e metro
Outra característica unificadora das poéticas é a exigência da
adequação do gênero, discurso e metro. Assim, com o único intuito de fazer um
paralelo entre idéias semelhantes, apresentam-se a seguir os trechos mais
significativos em que os autores discorrem sobre tal preocupação:
Discriptas seruare uices operumque colores
cur ego, si nequeo ignoroque, poeta salutor?
79
BRUNA, 1985, p. 55.
ianua
vento.
96
Cur nescire pudens praue quam discere malo?
(...)
Singula quaeque locum teneant sortita decentem.
(Horácio, Arte Poética, 86-88; 92)
Se o posso nem sei respeitar o domínio e o tom de cada gênero
literário, por que saudar em mim um poeta? Por que a falsa modéstia
de preferir a ignorância ao estudo? (...) Guarde cada gênero o lugar
que lhe coube e lhe assenta
80
.
Finiturus eram, sed sunt diversa puellis
Pectora: mille animos excipe mille modis.
Nec tellus eadem parit omnia; vitibus illa
Convenit, haec oleis; hac bene farra virent.
Pectoribus mores tot sunt, quot in ore figurae;
Qui sapit, innumeris moribus aptus erit,
(...)
Nec tibi conveniet cunctos modus unus ad annos:
(Ovídio, Ars amatoria, I, 753-763)
Aqui dispunha-me eu a terminar/ mas manda-me a verdade declarar/
que diferem as almas das mulheres./ Para almas tão diferentes
conquistar/ importa mil recursos empregar/ De uma só terra não
podes tudo recolher,/ Neste terreno dá-se melhor a vinha; / àquele
agrada mais a oliveira; / aqui despontam verdes cereais./ Têm os
corações tantas facetas/ quantos semblantes o mundo abriga./ O
homem que procede com prudência/ sabe adaptar-se a esta
divergência; / (...) / A mesma tática não é recomendável/ para todas
as idades (Ovídio, 1992, p. 93-94).
Vt ridentibus adrident, ita flentibus adsunt
humani uultus; si uis me flere, dolendum est
primum ipsi tibi; tum tua me infortunia laedent;
Telephe uel Peleu; male si mandata loqueris.
(Horácio, Arte Poética, 101-104)
Assim como o rosto humano ri com os que riem, assim compartilha
com os que choram. Se queres que eu chore, tu mesmo deve sofrer
por primeiro, então, ó Télefo ou Peleu, os teus infortúnios me
tocarão
81
.
Fac modo, quas partes illa iubebit, agas.
Arguet, arguito; quidquid probat illa, probato;
Quod dicet, dicas; quod negat illa, neges.
Riserit, adride; si flebit, flere memento;
Imponat leges uultibus illa tuis.
(Ovídio, Ars amatoria, II, 198-202)
Desempenha o papel que ela quiser./ Se ela censura, serás
censurador;/ o que ela aprova, não deixe de aprovar;/ dirás o que ela
poderá dizer;/ e nega o que ela poderá negar;/ se tua amiga ri, rirás
80
Bruna, 1985, p. 57.
81
Tringali, 1993, p. 29.
ei mihi,
quam
longe
97
com gosto;/ se chora, não te esqueças de chorar./ Guia tua
expressão pelo seu rosto. (Ovídio, 1992, p. 117)
De acordo com a experiência, o metro que se ajusta é o heróico. Se,
com efeito, alguém compusesse uma imitação narrativa em qualquer
outro ou em vários metros, a inadequação seria flagrante.
(Aristóteles, 1985, p. 47)
Entretanto, a pompa do vocabulário nem sempre é vantajosa, pois
empregar sem assuntos de pouca monta palavreado grandioso e
solene pareceria o mesmo que assentar uma grande máscara trágica
numa criancinha. (Longino, Do sublime, XXX
82
)
6.1.5 Sobre o tom dos poemas
Non satis est pulchra esse poemata; dulcia sunto
et, quocumque uolent, animum auditoris agunto.
(Horácio, Arte Poética, 99-100)
Não basta que os poemas sejam belos, é preciso que sejam doces e
transportem o espírito do ouvinte para onde quiserem
83
Este procul, lites et amarae proelia linguae:
Dulcibus est verbis mollis lendus amor.
(Ovídio, Ars amatoria, II, 151-152)
Longe de nós as ásperas discussões/ e os combates travados pelas
línguas mordazes./ Doces palavras, eis o alimento/ que nutre o terno
amor. (Ovídio, 1992, p.113)
6.1.6 A crítica como algo inerente à criação, proporcionando experiência
– a experiência e o trabalho de lima
Roberto Brandão observa que, para Horácio, o trabalho do poeta não
acontece só no momento da criação, mas representa o acúmulo da experiência
criativa
84
e representava ainda uma quase incessante “briga” com os versos.
Tal afirmação pode ser atestada nos seguintes excertos da Arte Poética:
Quintilio siquid recitares: "Corrige, sodes,
hoc" aiebat "et hoc"; melius te posse negares,
bis terque expertum frustra; delere iubebat
et male tornatos incudi reddere uersus.
82
Bruna, 1985, p. 99.
83
Tringali, 1993, p. 29.
84
Bruna, 1985, p. 9.
spem
tulit
aura
meam!
98
Si defendere delictum quam uertere malles,
nullum ultra uerbum aut operam insumebat inanem,
quin sine riuali teque et tua solus amares.
(Horácio, Arte Poética, 438-444)
Quando se recitava alguma coisa a Quintílio, ele dizia: “por favor,
corrige isto e também isto”; quando você, após duas ou três
tentativas frustradas, se dizia incapaz de fazer melhor, ele mandava
desfazer os versos mal torneados e repô-los na bigorna. Se, a
modificar a falha, você preferiria defendê-la, não dizia mais uma
única palavra, nem se dava ao trabalho inútil de evitar que você
amasse, sem rivais, a si mesmo e à sua obra
85
.
Vir bonus et prudens uersus reprehendet inertis,
culpabit duros, incomptis adlinet atrum
transuorso calamo signum, ambitiosa recidet
ornamenta, parum claris lucem dare coget,
arguet ambigue dictum, mutanda notabit,
fiet Aristarchus, nec dicet: "Cur ego amicum
offendam in nugis?" Hae nugae seria ducent
in mala derisum semel exceptumque sinistre.
(Horácio, Arte Poética, 445-452)
Um homem honesto e entendido criticará os versos sem arte,
condenará os duros, traçará, com o cálamo
86
, de través, um sinal
negro junto aos desgrenhados, cortará os ornatos pretensiosos,
obrigará a dar luz aos poucos claros, apontará as ambigüidades,
marcará o que deva ser mudado, virará um Aristarco e não dirá: “ Por
que hei eu de magoar um amigo por causa duma ninharia?” Tais
ninharias levarão o autor a sérios dissabores, uma vez achincalhado
e recebido desfavoravelmente
87
.
Ao encontro de Horácio vai Longino, que afirma que o julgamento do
estilo é resultado final de uma longa experiência (Longino, Do sublime, c. VI).
Também para João Cabral o trabalho dos artesãos não é limitado ao
retoque (...) ao material que o instinto fornece”. Sendo assim, o poema é
escrito pelo olho crítico, por um crítico que elabora as experiências que antes
vivera, como poeta” (João Cabral de Melo Neto, 1994, p. 733).
Ovídio, por sua vez, se diz capaz de escrever um tratado sobre o
processo do amor porque é experiente no assunto. Não atribui a “tessitura” do
poema a Apolo, mas sim à sua experiência enquanto amante; mais, enquanto
poeta:
85
Bruna, 1985, p. 67-68.
86
O correspondente da caneta vermelha atual.
87
Bruna, id. p. 68.
si satis
es
raptae,
99
Non ego, Phoebe, datas a te mihi mentiar artes,
Nec nos aeriae voce monemur avis,
Nec mihi sunt visae Clio Cliusque sorores
Servanti pecudes vallibus, Ascra, tuis:
Usus opus movet hoc: vati parete perito.
(Ovídio, Ars amatoria, I, 25-29).
Não mentirei, ó Febo, assegurando/que por ti esta Arte me foi
dada;/nem que p´la voz dos pássaros em bando/ela, sem eu saber,
me foi ditada;/nem que de Clio eu tenha recebido/(ou de suas irmãs)
esta mensagem, /enquanto, nalgum vale mais sombrio,/ o meu
próprio rebanho pastoreava.../Nada disso direi, portque somente/
aquilo quanto o sei o devo à prática./Graças a ela é que fiquei
exp’riente: /eis o preço maior dessas palavras!(Ovídio, 1992, p. 21)
6.1.7 A audiência
Outro princípio importante para esses poetas é o papel da audiência
que, segundo Roberto Brandão, no caso de Horácio, é um fator implícito no
poema. Sendo assim, o leitor é co-produtor da obra e sua expectativa
determina as exigências estruturais que o poeta deve atender se quiser obter
a aprovação do público”:
Tu quid ego et populus mecum desideret audi,
si plosoris eges aulaea manentis et usque
sessuri donec cantor. "Vos plaudite" dicat.
(Horácio, Arte Poética, 153-155)
Ouça você o que desejo eu e comigo o povo, se quer que a platéia
aplauda e espere, sentada, a descida do pano, até o ator pedir
“aplaudi”
88
.
Citando ainda Roberto Brandão, a audiência condiciona o modo de
composição da obra, não apenas por exigência da necessidade retórica de
adesão, mas como um meio para se atingirem fins mais importantes, que
Platão, embora negasse à arte, entendia como utilidade moral inscrita no
conhecimento da verdade, Aristóteles descrevia como uma forma de prazer
específico, o autor do Tratado do Sublime apontaria como a manifestação da
elevação da alma humana, e Horácio, na Arte Poética, resume na fórmula
visceralmente romana do utile dulci” (Horácio, Arte Poética, 343-344).
88
Bruna, 1985, p. 59.
Borea,
memor
Orithyiae,
100
Com base nesse raciocínio, fica claro porque Longino parece dar “a
todos” a capacidade de apreciar o sublime:
Em resumo, considera belas e verdadeiramente sublimes as
passagens que agradam sempre e a todos. Quando pois, mau grado
da diversidade das preocupações, do teor de vida, dos gostos, da
idade, do idioma, todos ao mesmo tempo pensam unânimes o
mesmo a respeito duma mesma coisa, então essa, digamos assim,
sentença concorde de juízes discordes outorga ao objeto da
admiração uma garantia sólida e incontestável. (Longino, Do sublime,
VII, 4)
Assim, para Longino, o sublime é o ponto mais alto e a excelência, por
assim dizer, do discurso e que, por nenhuma outra razão senão essa,
primaram e cercaram de eternidade a sua glória os maiores poetas e
escritores (Longino, Do sublime, I, 1)
89
.
Nesse sentido, de acordo com Phillip Hardie, de todos os poetas da
Antiguidade, “Ovid is perhaps the most aware of the rewards and hazards of his
own reception” (Hardie, 2003, p. 3). Em Amores II, 1, e em Arte de amar, ele
endereça seus poemas a ambos os sexos, ou seja, a todas as pessoas. no
epílogo de As Metamorfoses, Ovídio predicts that (...) will be ever ‘on the lips
of the people
90
. Dessa maneira, os textos ovidianos trazem a consciência de
seu status as books to be circulated and read, and Ovid has some claim to be
the inventor of the generic ‘dear reader’”. Tarrant nas críticas sofridas por
Ovídio, no que concerne ao excesso de estilo (Sêneca, Contr., 9.5.17: nescit
quod bene cessit relinquere), uma prova de que Ovídio estava sempre
revisando seu trabalho. Com efeito, Ovid acts as his own strong reader,
constantly seeing new possibilities in apparently finished work
91
. Para Tarrant,
isso fez com que ele se transformasse de elegíaco em tragediógrafo, de poeta
amoroso em professor do amor, de escritor de elegia em escritor de épica e
poesia etiológica e, então, todos esses poetas no poeta do exílio.
Ovídio também reclama seu lugar como grande poeta pelo fato de que
todas as pessoas o conhecem e o aclamam, o que o torna um grande escritor
(em consonância com as observações de Longino e Horácio),
89
Bruna, 1985, p. 71.
90
Tarrant, R. Ovid and ancient literary history. In Hardie, P. (ed.) The Cambridge companion to Ovid.United
Kingdom: Cambridge, 2003. (p. 23).
huc
ades et
surdas
flamine
101
independentemente das críticas contrárias que, segundo Ovídio, refletem a
inveja de seus opositores:
Nuper enim nostros quidam carpsere libellos,/Quorum censura Musa
proterva mea est./Dummodo sic placeam, dum toto canter in
orbe,/Quamlibet impugnent unus et alter opus. (...)/Rumpere, Livor
edax: magnum iam nomen habemus;/Maius erit, tantum quo pede
coepit eat./Sed nimium properas: vivam modo, plura dolebis;/Et
capiunt animi carmina multa mei./Nam iuvat et studium famae mihi
crevit honore. (Ovídio, Remedia amoris, 361-393)
É que recentemente alguns andaram criticando meus livrinhos;
segundo dizem meus sensores, é licenciosa minha Musa. Contanto
que eu agrade assim, contanto que recitem meus versos por todo o
mundo, um ou dois podem atacar a obra que quiserem. (...) Rala-te,
voraz inveja; tenho um grande nome; maior será, basta que eu
ande com os passos da estréia. Estás apressada demais; possa eu
apenas viver e mais irás sofrer; muitos poemas cabem em minha
cabeça. O amor da glória me deleita e cresce em mim com o
reconhecimento.(Ovídio, 1994, p. 53)
6.2 Exemplos de arte em Ovídio
Mas como se o trabalho de arte em Ovídio? Poder-se-ia esmiuçar
toda a obra de Ovídio para citar vários exemplos. Selecionaram-se, então,
alguns trechos em que o trabalho de artesanato poético fica evidente para
comprovar que os preceitos amorosos do artifex dicendi (“o artífice da palavra”,
para usar uma expressão de Cícero), anteriormente comparados com preceitos
poéticos, estão de acordo com o seu próprio modus operandi de poeta. Poder-
se-ia dizer que seus preceitos se lhe aplicam várias vezes: o poeta dita as
fórmulas para a conquista amorosa, pois é experiente em amar (como escritor
ele também pode ditar preceitos, é também experiente, que escreveu os
Amores). Em Arte de amar III, Ovídio enumera alguns autores para que as
mulheres se tornem mais atraentes aos olhos dos homens. Dentre os autores
citados nessa passagem, alguns o fontes da elegia erótica romana
(Calímaco, Filetas, Anacreonte, Safo e Terêncio), outros realizadores dessa
poética (Propércio, Galo, Tibulo e o próprio Ovídio). Nessa mesma passagem,
91
Tarrant, R. Ovid and ancient literary history. In Hardie, P. (ed.) The Cambridge companion to Ovid.United
Kingdom: Cambridge, 2003. (p. 27).
tunde
foris! urbe
silent
tota,
102
Ovídio aconselha as puellae a lerem seus livros Amores e Heróides (gênero
epistolar que ele criou). Uma outra recomendação aos “alunos” diz respeito à
importância de escrever cartas aos destinatários de seus amores. Ora, ele
mesmo escreveu as Heróides, uma coletânea de cartas de amor de
personagens históricos e mitológicos.
No início do livro II da Arte de amar, Ovídio, após pedir a ajuda de
Cupido, de Vênus e da musa Erato para a empreita de escrever em versos
seus ensinamentos, começa a narrar o feito de Dédalo, a quem, no livro VIII de
As Metamorfoses, chamou de ingenio fabrae celeberrimus artis “o mais
célebre dos artistas em metal”
92
(Ovídio, Metamorfoses, VIII, 159). Não é à toa
que esse mito é narrado nesse momento, que o trabalho de Ovídio, ou seja,
a “tessitura” do poema, será equivalente ao de um artífice. Dédalo, de acordo
com Ovídio, é capaz de voltar seu espírito para artes desconhecidas e inovar a
natureza (ignotas animum dimittit in artes naturamque novat
93
(Met., VIII, 188-
189). No trecho da Arte de Amar, Dédalo declara que chegou a hora de mostrar
o seu engenho (Materiam, qua sis ingeniosus, habes Arte de Amar, II, 34
94
),
ou seja, é hora de Ovídio mostrar toda sua habilidade enquanto artifex de
elegias. Sua aproximação com Dédalo dá-se também pela similaridade da
expressão dita por Dédalo a seu filho, quando o está ensinando a voar:
“Guiado por mim, estará seguro”. O praeceptor amoris também se propõe a
“guiar” os jovens em todas as etapas” do amor. Tal aproximação dá-se
também com relação à empresa de ambos: enquanto Dédalo foge de Minos
por meio de asas, Ovídio precisa aprisionar o alado Cupido. Tal aprisionamento
pode ser interpretado de duas formas: o aprisionamento do amor de outrem ou
o do tema “amor” na forma de elegia.
Aliás, a arte de unir forma e conteúdo é algo muito presente na obra de
Ovídio. Nesse sentido, é pertinente chamar a atenção para as observações de
López (Ovídio,1995, p. 101) em um outro trecho presente em Amores, I , 4, 31-
32. Nesse poema, Ovídio está ensinando sua amante que irá, acompanhada
do marido, a um banquete em que o poeta vai estar. Devido ao “empecilho”,
Ovídio combina sinais com sua amante para que eles possam comunicar o que
92
OVÍDIO. As Metamorfoses. Trad. David Gomes Jardim Júnior. São Paulo: Ediouro, 1983. (p. 147).
93
“Trata de voltar o espírito para artes desconhecidas e inovar a natureza”. Ovídio, 1983, p. 147.
94
A ocasião de mostrares teu engenho,/ ó Dédalo, é chegada (Ovídio, 1992, p. 101).
vitreoque
madentia
rore
103
estão sentindo sem que ninguém perceba. Ovídio, então, se propõe a fazer
tudo o que a amada fizer, nos seguintes termos:
quae tu reddideris, ego primus pocula sumam
et qua tu biberis, hac ego parte bibam.
(Ovídio, Amores, I, 4, 31-32)
Onde os lábios teus puseste,
Porei logo ardentes lábios;
Beberei néctar celeste;
(Ovídio, 1943, p. 241)
Temos aqui, no plano da forma, um espelho em que tu e ego,
pertencentes a hemistíquios diferentes dentro do verso, se refletem. É o que
está acontecendo realmente no plano do conteúdo.
Em Amores II, 4 9-10, Ovídio mostra a variedade de tipos femininos que
existem e afirma que todos lhe agradam. Ele usa a palavra amores no plural, o
que nos remete tanto aos amores do homem Ovídio quanto aos Amores, título
de seu livro:
non est certa meos quae forma invitet amores
centum sunt causae, cur ego semper amem.
(Ovídio, Amores II. 4, 9-10)
Não é certa a formosura
Quem meus amores motiva;
Mil causas diversas fazem
Que eu sempre de amores viva
(Ovídio, 1943 p. 301)
Talvez o poema Amores I, 1, em que Ovídio discorre sobre sua opção
pelo gênero elegíaco em detrimento do épico, seja o poema mais elucidativo
dessa união formal e conteudística:
Arma gravi numero violentaque bella parabam
edere, materia conveniente modis.
par erat inferior versus—risisse Cupido
dicitur atque unum surripuisse pedem.
(...)
cum bene surrexit versu nova pagina primo,
attenuat nervos proximus ille meos; (grifos nossos)
(Ovídio, Amores I, 1)
Ser de Homero rival lembrou-me um dia; / Cantar guerras, heróis; e
em nobres vôos/ À grandeza do assunto alçar meus versos./ na
destra o clarim, na fronte os louros,/ Na mente a glória, me ensaiava
tempora
noctis
eunt;
104
aos cantos./ Riu-se Cupido...e rindo-se furtou-me/ O laurel, o
instrumento;/ De rosas e de murtas/ C’roou-me num momneto;/ Pôs-
me nas os a lira/ Tão cara à mãe de Amor. (...) Apenas tenho
escrito uma linha/ Em majestoso estilo,/ Ei-lo acode a afrouxar-
me, e a destruí-lo!
(Ovídio, 1943, p. 231)
Primeiramente, cabe observar o diálogo que essa elegia metatextual
trava com o gênero épico. Cairns, dando como exemplo o Idílio 12 de Teócrito,
chama a atenção para o fato de que indirect initial announcements of the
genre of a piece are common in ancient literature, and they play an important
part in generic communication between author and audience. Their function is
sometimes to alert the audience to the further occurence of standard topoi in
less obvious and more sophisticated forms (Cairns, 1972, p. 25). Tal diálogo é
prontamente estabelecido na primeira palavra do poema, ou seja, arma. Ao ler
arma, os leitores são facilmente remetidos aos primeiros versos da Eneida
arma uirumque cano (...) (canto as armas e o homem). Kennedy (1993, p. 31)
chama a atenção para o fato de que o adjetivo durus (duro, rigido) e mollis
(mole, flexível) são so gender-specific que a palavra mollitia (sensibilidade,
fraqueza) pode ser usada pejorativamente em se tratando de um homem
95
. Ao
adjetivo durus está, portanto, ligada a idéia de virilidade ou, em termos
literários, à épica. o adjetivo mollis estaria mais próximo de delicatus, como
atestado em Catulo 16
96
. Ora, enquanto o verso está em hexâmetro (metro da
epopéia), o poeta usa o verbo surgo (no perf. surrexi) “levantar, surgir, elevar-
se, crescer”. Quando o verso é um pentâmetro (que evidencia que o metro
usado no poema é o dístico elegíaco), o tom cai (de épico, de maior prestígio,
passa a elegíaco, de menor) e, portanto, o verbo utilizado é attenuo “diminuir,
enfraquecer, (Ret.) reduzir o estilo à expressão mais simples”(Faria, 1967, p.
114). Soma-se a essas noções expressas pelos verbos citados o fato de que o
que é atenuado são os neruos “nervo, músculo, tendão”. Todo o dístico,
portanto, pode ser lido como uma metáfora do ato sexual. A flecha de Cupido
torna Ovídio uma love-machine, alternately erect and flacid”, mantendo a
95
Ver nesse sentido Catulo 16.
96
Propertius, in urging his friend Lynceus to turn from epic to elegiac verse, wrote: Incipe iam angusto versus
includere torno,/ Inque tuos ignes, dure poeta, veni [ii. 34,43-44]. The writing of elegy can, as here be described
either as writing in a polished style or as writing of one’s own love. As an epic poet Lynceus was durus, but if he
would turn to elegy and the theme of love he would become a tener poeta. From this point of view the personality
of the poet himself, in so far as he is a poet, is determined by the style in which he writes. (Allen, 1950, p. 146).
excute
poste
seram!
105
cadência do metro elegíaco
97
. Durante o hexâmetro, metro da épica, o homem
se manifesta. Quando Cupido surripuit pedem “roubou-lhe um pé”, o homem é
atenuado e a obra se torna uma elegia. É também pertinente salientar a
adequação entre forma e conteúdo nos versos em que o “roubo” se dá: estava
o poeta escrevendo a sua obra em hexâmetros (graui numero) e, assim que
Cupido lhe tira um pé, o verso seguinte aparece “furtado”, ou seja é um
pentâmetro.
A leitura de que o poema representa o ato sexual é também atestada
pelo particípio presente (conueniente) do verbo conuenio, uma forma polida
para copular. Assim, de acordo com Kennedy, [materia] conueniente modis,
pode indicar as diferentes posições para o ato sexual.
6.3 A união de ars e ingenium
Retomando a acepção 4 do Novíssimo Dicionário Latim-Português
percebe-se que, embora a palavra ars se refira a “trabalho de lima”, está
também ligada às Musas e, portanto, à inspiração. De fato, para os poetas da
Antiguidade ars e ingenium não poderiam andar separados. Longino, por
exemplo, declara que [...] no discurso (...) o pensamento e a linguagem se
implicam mutuamente” e que “a beleza das palavras é luz própria do
pensamento” (Longino, Do sublime, c. XXX).
De acordo com João Cabral, as duas maneiras de composição (pela
inspiração e pela arte) não se opõem essencialmente. De acordo com ele,
houve épocas em que essas formas não se repeliam como pólos de uma
mesma natureza. Épocas essas em que a arte [incluía] a inspiração. Não as
[dirigia]. [Executava]-as também” (João Cabral de Melo Neto, 1994, p. 736).
Quando Poe afirma, em trecho citado, que a composição de O Corvo
se deu como a resolução de um problema matemático (Poe, 1944, p. 78),
remete o leitor a um conto de sua autoria: O escaravelho de ouro. Nesse conto,
que se assemelha à teoria de composição de Poe, o protagonista deixa claro
que o acaso, ou a fortuna, deu o ponta-pé inicial para todo o desenlace da
97
HABINEK, T. Ovid and empire. In HARDIE, P. (ed.) The Cambridge companion to Ovid. United Kingdom:
Cambridge, 2003, p. 47.
Aut ego
iam
ferroque
106
história, mas coube ao protagonista (que agora passa a representar o poeta)
usar essa “Fortuna” adequadamente. Idéia semelhante à de Horácio, para
quem a inspiração ou o ingenium por si só não basta, pois é informe e caótico:
que a fortuna julgou por bem me presenteá-lo [o escaravelho],
me cabe utilizá-lo convenientemente. (Poe, 1981, p. 344)
É mister comparar o trecho acima com o seguinte excerto de Longino:
Demóstenes declara que, na vida comum dos homens, ter sorte é o
maior dos bens; o segundo, não inferior ao primeiro, é tomar boas
decisões e quando falta este, se anula totalmente o primeiro.
(Longino, Do sublime, II, 2).
Poder-se-ia, então, continuar a citação de Poe com a conclusão de
Longino: o mesmo podemos dizer da literatura: a natureza ocupa o lugar da
boa sorte; a arte, o da boa decisão. E, o que é mais importante, mesmo o
dependerem exclusivamente da natureza alguns dos predicados do estilo,
temos de aprendê-lo da arte e de nenhuma outra fonte(Longino, Do sublime,
II, 2). A expressão utilizada por Longino, traduzida por arte, foi τέχνη, de que
ars é o equivalente latino. para expressar boa sorte, a expressão foi της
ευτυχίας, que o tradutor da Loeb para o inglês traduziu como good fortune,
evidenciando ainda mais a proximidade entre os trechos.
Longino ainda vai mais longe, afirmando que a natureza, embora quase
sempre siga leis próprias nas emoções elevadas, não costuma ser tão fortuita e
totalmente sem método”. Dessa forma, compete ao método estabelecer a
conveniência nas obras, já que os gênios, se muitas vezes precisam de
espora, muitas outras, de freio”.
Também Aristóteles, que dita vários preceitos para uma boa
composição, verifica que existem “poderes” que a técnica não pode atingir: a
obtenção de boas metáforas, por exemplo. Segundo ele, unicamente isso não
se pode aprender de outrem e é de talento natural, pois ser capaz de belas
metáforas é ser capaz de apreender as semelhanças” (Aristóteles, 1985, p. 45).
Horácio, por sua vez, também não como separar, num grande poeta,
ars e ingenium:
ignique
paratior
ipse,
107
Natura fieret laudabile carmen an arte,
quaesitum est; ego nec studium sine diuite uena
nec rude quid prosit uideo ingenium; alterius sic
altera poscit opem res et coniurat amice.
Qui studet optatam cursu contingere metam,
multa tulit fecitque puer, sudauit et alsit,
abstinuit uenere et uino; qui Pythia cantat
tibicen, didicit prius extimuitque magistrum.
(Horácio, Arte Poética, 408-415)
Já se perguntou se o que faz digno de louvor um poema é a natureza
ou a arte. Eu por mim não vejo o que adianta, sem uma veia rica, o
esforço, nem, sem cultivo, o gênio; assim, um pede o outro, numa
conspiração amistosa. Muito suporta e faz desde a infância, suando,
sofrendo o frio, abstendo-se do amor e do vinho, quem almeja
alcançar na pista a desejada meta; o flautista que toca no concurso
pítico estudou antes e temeu o mestre. Hoje em dia, o poeta se
contenta em dizer: “Eu componho poemas admiráveis; apanhe a
sarna quem chegar por último; seria para mim vergonha ficar para
trás e confessar que deveras não sei o que não aprendi.”
98
Dufrenne também se questiona sobre a existência ou não do estado
poético no poeta. A conclusão dele é a de que não se mede uma obra pela
quantidade de trabalho, sendo necessário, portanto, e Malraux também já
havia insistido sobre isto que alguma coisa distinga os poetas felizes que
saem do anonimato de uma escola ou de uma tradição para inventar: os
verdadeiros poetas, os que conseguem selar a difícil aliança do som e do
sentido, da significação e da expressão”. De acordo com Dufrenne, é
necessário reconhecer no poeta uma natureza especial”, que se revela a ele
em certo minuto de infinito preço”. Infinito para ele, acrescenta Valéry, pois
o trabalho pode possibilitar a esses momentos um porvir (Dufrenne, 1969, p.
128). Nesse sentido, conclui Dufrenne, é inútil separar inspiração e trabalho: o
trabalho explora a inspiração, é propriamente ele que é inspirado”. Dessa
forma, se o houvesse o trabalho de arte, a inspiração seria um relâmpago
na noite, uma ilusão...”. Dufrenne afirma ainda que a distinção feita entre
“inspirados” e “artesãos” nunca foi aceita pelos verdadeiros poetas, para quem
escrever poemas se caracteriza como a coisa mais importante do mundo
(Dufrenne, 1969, p. 138).
98
Bruna, 1985, p. 67.
quem
face
sustineo,
108
Para finalizar, Longino partilha da mesma idéia ao atestar que, em tudo,
convém pedir à arte que ajude a natureza, pois talvez consista a perfeição
numa aliança estreita entre ambas” (Longino, Do sublime, XXXVI, 2)
99
.
Do magno alvitre
Para Dalzell, o tom cínico da Ars is in part the consequence of its
didactic pose, and that in turn is explained by the nature of the experience
described, o que torna a obra um delightful poem to read provided that one
meets it on Ovid’s terms. It is in every sense a mock didactic poem, a didactic
poem for those who do not need to learn (Dalzell, 1996, p. 164). Uma
afirmação como essa dá a entender que a Ars amatoria não cumpre seu
primeiro objetivo: tornar o leitor doctus. No início do poema, quando evidencia
os possíveis destinatários de sua obra, Ovídio assegura que os que não
conhecem a arte de amar se tornarão docti
100
ao ler o seu canto. O adjetivo
doctus, sendo o particípio passado de doceo (“ensinar, instruir”), designa o que
é instruído, sábio, douto, prudente, hábil, astuto. Ora, terá mesmo Ovídio
fracassado em seu intuito? Uma afirmação como a de Dalzell se justifica se
considerada a sedução ou corte amorosa como a principal “lição” da obra. No
entanto, nesse “seduzir” ou “fazer-se amar” está latente uma outra idéia, que o
caráter híbrido da obra acaba por revelar. Na transposição do material elegíaco
em didático, verifica-se uma alteração de ponto de vista: magister passa de
apaixonado das elegias a professor em Ars amatoria, passando, então, a
ensinar como se tornar o amator que o praeceptor costumava ser (Allen, 1992,
p. 17). No entanto, durante a instrução, o método didático do preceptor se
baseia em pregar peças” em seus discipuli, o que põe em dúvida a própria
matéria que ele propõe ensinar. Para Allen, com essas “peças”, o professor
tem em mente outra lição: com tantos deslizes do professor, o aluno passa
gradualmente a acreditar neles mesmos. Essa desconstrução da credibilidade
do professor é reforçada, por exemplo, quando este confessa não só sua
dificuldade, mas também seu fracasso em seguir determinados preceitos.
99
Bruna, Cultrix, 1985. p. 106.
100
Si quis in hoc artem populo non nouit amandi,/Hoc legat et lecto carmine doctus amet. (Ars amatoria, I.1-2).
tecta
superba
petam.
109
Além disso, pouco a pouco, o aluno vai reconhecendo que muitas das
situações narradas estavam presentes em outra obra do magister: Amores.
Tal “dica” é dada pelo próprio professor que, além de citar Corina no corpo da
Ars amatoria, pede textualmente para que seus alunos leiam a obra em que ela
é cantada. O aluno, então, vai vendo que a experiência atestada do professor
provém, não da vida do homem, mas sim da vida do poeta. Em outras
palavras, seus leitores recordam que ele é mais feliz em compor poesia que em
amar efetivamente (Allen, 1992, p. 19-20). É conveniente lembrar também que
a elegia latina depende de convenções que dão diretrizes para que o leitor a
reconheça como tal. Na elegia, é nítido que o eu-lírico é mais poeta que
amante
101
. Ovídio, por exemplo, começa o primeiro livro dos Amores
escrevendo um poema. Até a chegada de Cupido, o eu-lírico não estava
apaixonado: Cupido é responsável por trazer tanto a inspiração como o amor.
Explorando um pouco mais essa imagem, o que Ovídio descreve é o “furto” de
um métrico, o que acarreta a transformação de sua potencial epopéia em
elegia. Tal “furto” tem implicações de outra ordem: ele não só se mostra
escrevendo elegia, mas também discutindo gêneros literários e sua opção por
um deles.
O procedimento de remeter o leitor para sua outra obra faz com que este
estabeleça relações entre textos diferentes, além de mostrar que that literary
love (as manifested in the Roman elegiac tradition, and specically in his own
elegies, the Amores) is a conventional and constructed fiction which poet and
reader creat together, and which can exist only within the clearly designated
bounds of the textual world” (Allen, 1992, p. 1-2).
No processo de adequar o material elegíaco em didático, de acordo com
Sharrock, o poeta conta ao leitor como ler, como olhar para o mundo, como se
engajar no discurso erótico. Assim, e confrontando com a citação de Dalzell, o
magister ensina not only where to find a girl, how to choose, how to make the
first approach, how to avoid giving expensive presents, and how to feel like a
lover, but also how to read love poetry, how to write himself into the Amores
(Sharrock, 2003, p. 159). É isso que faz Sharrock afirmar que a obra is nearly
101
Resgatar, nesse sentido, também a idéia de que Corina é uma criação literária. Hipótese esclarecida no capítulo III,
que versa sobre as implicações do uso dos relatos mitológicos em Ovídio.
nox et
Amor
vinumque
110
as much obsessed with its own metapoetics as it is with Eros” (Sharrock, 2003,
p.160).
A característica metapoética da obra, apontada por Allen e Sharrock,
ligada ao conceito de ars que permeia todo o poema, propicia um olhar para a
Ars amatoria sob um novo ângulo. É por meio de ars que Cupido, o menino
alado, pode ser capturado e mantido prisioneiro. Entretanto, chama a atenção
em Ovídio que, para ser realmente útil, essa ars deve estar sempre latente
102
.
No conceito de arte latente está implícita a noção de fingimento
103
. Assim, o
auge da aplicação da ars é “parecer” e o “ser”, o que remete à idéia de
artificialismo, bem como de ficcionalidade.
Para Schiesaro, o ’knowledge’ [ovidiano] will eschew Lucretius´atomistic
foundationalism and Virgil´s theodicy, and will be shown to be based, if
anything, on the powers and perils of rhetoric (Schiesaro, 2003, p. 63). Assim,
nesse “parecer” a retórica é essencial:
Nominibus mollire licet mala. Fusca uocetur,
Nigrior illyrica cui pice sanguis erit;
Si paeta est, Veneris similis; si flaua, Minervae;
(Ovídio, Ars amatoria II, 657-659)
Com palavras abrandam-se os defeitos.
Morena chamarás aquela cujo sangue
é mais negro que a pimenta da Ilíria.
Se for ruiva, compara-a a Minerva.
Se for vesga, com Vênus é parecida.
(Ovídio, 1992, p. 161)
Como bem observou Sharrock, the reader cannot really control love, but
he might learn love´s discourses: cum dare non possem numera, uerba
dabam
104
(Ars II, 166)” (Sharrock, 2003, p. 160).
Isso tudo leva a crer que, ao evidenciar o poder da retórica (que nada
mais é senão evidenciar o poder da manipulação da linguagem por meio de
ars), e ao remeter o leitor a suas obras e “pregar peças”, Ovídio está, de fato,
ensinando como escrever poesia. Todo o “treino” pelo qual passou o leitor tinha
102
Preceito importante também para a retórica. Quintiliano pede para que tudo pareça advir mais da causa que do
orador. Parece não haver arte onde ela não se deixa ver, porém, para Quintiliano, a arte deixa de ser quando
aparece.
103
Nesse sentido está, por exemplo, a passagem: Tantum, cum finges, ne sis manifesta, caveto:/Effice per motum
luminaque ipsa fidem. (A. A. III. 801-802) Mas cuidado não seja o fingimento/manifesto e visível./Que a fingida
expressão e os movimentos/que o teu amante enganam/seja aos teus olhos crível. (Ovídio, 1992, p. 247 )
104
Quando presentes não podia dar/ palavras oferecia (Ovídio, 1992, p. 115).
nihil
moderabile
suadent;
111
o intuito de fazê-lo entender como funciona a ficção, não para que ele
ficasse doctus em ler, mas também doctus em escrever. É mister lembrar que
esse mesmo adjetivo é usado para designar os poetas e ainda a poesia
elegíaca. Assim, quando enumera os topoi da elegia, Ovídio na verdade quer
que seu leitor os utilize como topoi de poesia. Usou-se mal, aqui, a expressão
“quer que”, que Ovídio, mais que querer, seduz seus leitores a querer; em
suma, trata-se antes de um manipulativo “fazer querer”. A pergunta mais óbvia
para refutar tal hipótese é: por que então não fez ele um manual de teoria
poética como o de Horácio? A resposta é simples: Ovídio, não fala sobre o
método: deixa falar o método na própria linguagem do artifício. não é mais
ele quem está falando: é a própria poesia.
Cumpre, portanto, ele mesmo, o que denominou como a ação mais
justa: morrer o artífice pelo próprio artifício.
Iustus uterque fuit; neque enim lex aequior ulla est
Quam necis artífices arte perire sua.
(Ovídio, 1992, p. 83)
Não há lei mais conforme à eqüidade
do que a lei que destrói com o próprio invento
aqueles que para o crime executar
inventaram um pérfido instrumento.
(Ovídio, Ars amatoria, I. 653-655)
Ao escancarar seu fazer poético de Amores, Ovídio, na verdade, está
deixando o leitor ver os bastidores da poesia. Assim, ela é desmistificada,
mostrada como pura ficção. E, nesse escancarar, ele vai fornecendo, pouco a
pouco, ao futuro escritor, os topoi e convenções de que ele precisa para
escrever uma obra. Todo esse processo é muito mais sedutor que um
convencional tratado didático sobre poesia. Nesse sentido, o título é o primeiro
elemento de sedução. Muitos críticos discutem a utilidade da mensagem
ovidiana, que é muito difícil acreditar que alguém lograria êxito em seduzir
pelo fato de deter o conhecimento de preceitos técnicos. No entanto, o manual
não fala de sedução, mas é sedutor, sendo, portanto, essencialmente um
manual de sedução: sedução do leitor em ver a linguagem manipulada, de se
sentir “enganado” e de ver, finalmente, que tudo era uma ficção que, enquanto
durou, absorveu-o integralmente.
illa
pudore
vacat,
Liber
112
Nesse processo ocorre o que Ovídio salientou com diferentes imagens:
por causa do amor, alguém pode passar de patrono a cliente, expectador a
ator, ou, de leitor a poeta.
Quique aliis cauit, non cauet ipse sibi;
(Ovídio, Ars amatoria, I, 84)
E aquele que a causa de outro advoga
a própria não defende.
(Ovídio, 1992, p. 27)
Hunc Venus e templis, quae sunt confinia, ridet;
Qui modo patronus, nunc cupit esse cliens.
(Ovídio, Ars amatoria, I, 87-88)
Vênus sorri maliciosamente:
aquele que ainda há pouco era patrono
candidata-se agora a cliente.
(Ovídio, 1992, p. 27)
Spectatum ueniunt, ueniunt spectentur ut ipsae.
(Ovídio, Ars amatoria, I, 99)
Porque se vêm gozar o espetáculo
também gozam o espetáculo que dão.
(Ovídio, 1992, p. 27)
Illa saepe puer Veneris pugnauit arena,
Et qui spectauit uulnera uulnus habet.
Dum loquitur, tangitque manum, poscitque libellum,
Et quaerit, posito pignore, uincat uter,
Saucis ingemuit telumque uolatile sensit,
Et pars spectati muneris ipse fuit.
(Ovídio, Ars amatoria, I, 165-170)
Quantas vezes foi essa mesma areia/ Das lutas de Cupido/ O campo
belicoso!/E quem alheias feridas contemplava/ A si mesmo ferido se
encontrava. / Tais são os meios: durante uma conversa / tocam-se as
mãos e pede-se um programa,/ fazem-se apostas sobre o vencedor/
e eis que uma ferida os faz gemer,/ uma rápida flecha o peito atinge./
É assim que te volves em ator /Do espetáculo a que assistes.
(Ovídio, 1992, p. 35)
Em sua Arte Poética, Horácio afirma:
Non satis est pulchra esse poemata; dulcia sunto
et, quocumque uolent, animum auditoris agunto.
(Horácio, Arte Poética 99-100)
Não basta que os poemas sejam belos, é preciso que sejam doces e
transportem o espírito do ouvinte para onde quiserem
105
.
105
Tringali, 1993, p. 29.
Amorque
metu.
omnia
113
Existe convite mais sedutor que ser transportado e posto a espiar pelo
buraco da fechadura?
Naso Magister erat (Ars Amatoria II.744; III. 812)
Pars superat coepti, pars est exhausta laboris.
Hic teneat nostras ancora iacta rates.
106
(Ovídio, Ars amatoria, I. 769-770)
106
Resta uma parte da tarefa empreendida;/ a outra, aqui a dou por concluída./ Detenhamos aqui o nosso navio/ e a
âncora lancemos (Ovídio, 1992, p. 95).
consumpsi,
nec te
precibusque
114
CONCLUSÃO
O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que
nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são
apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes
em tudo, não sabem amar: têm que aprendê-lo. À primeira vista, pode parecer
ter sido com constatação semelhante a essa de Rilke que, mais de dois mil
anos, Ovídio compôs a Ars amatoria. Colocando-se na posição de praeceptor
amoris (preceptor do amor), ele proclama que sua obra é capaz de tornar
instruídos (docti) os que não sabem amar. O título dado à preceptística
evidencia uma concepção de amor como ars, ou seja, relacionada à perícia,
técnica, habilidade, bem como a método, teoria, sistema de procedimentos.
Dessa forma, artificium (ars, facere = fazer arte) é o proceder com arte, arte
que pode ser ensinada e aprendida. No entanto, apesar de as acepções de ars
parecerem capazes de imantar a obra de traços sérios, uma série de
elementos cômicos permeia o poema, tais como: referências textuais à alegria
e ao riso, comicidade presente na tradição elegíaca (os poetas alexandrinos, a
influência da retórica, a influência da comédia nova), aspectos teatrais do texto
ovidiano, desmistificação e elucidação da origem do amor descrito,
contradição, exagero, paródia, inversão e tira. O mico presente na obra
ovidiana está, sobretudo, relacionado à idéia de arte latente e fingimento, ou,
em outras palavras, presta-se para evidenciar o papel da ficcionalidade. Para
deixar mais evidente esse papel e mostrar o poder que ele pode ter, Ovídio faz
um uso bem próprio de relatos mitológicos, lugar comum da poesia elegíaca.
No que diz respeito às implicações do uso desses relatos, traçando um paralelo
entre a linguagem mítica e a linguagem poética e entre o mito de Galatéia e a
construção de Corina nos Amores, constata-se que Ovídio põe deuses e
relatos mitológicos lado a lado com experiências de seu cotidiano. Em outras
palavras, o poeta se iguala aos deuses: cria um mito e imortaliza os mitos
existentes (não seria Corina-Galatéia um exemplo disso?).
O assunto ao qual a ars é aplicada é, para dizer o mínimo, intrigante:
como acreditar que alguém é capaz de “domar Eros”? Como crer que essa
pessoa é também capaz de ensinar tamanha façanha? A maneira como Ovídio
minisque
movimus,
o foribus
durior
115
responde essas questões no poema, ou seja, o modo como esse “domar” é
ensinado tem o poder de enredar o leitor. E enredar, no poema ovidiano,
suporta duas acepções do termo: envolver e ludibriar. O adjetivo intrigante,
usado para qualificar o tema da obra, pode ser estendido também ao caráter
híbrido do texto: um poema didático composto em metro elegíaco e não em
hexâmetro (Ars amatoria I. 264: praecipit imparibus uecta Thalea rotis),
permeado de topoi próprios das elegias. E é o entrelaçar dos corpos elegíaco e
didático que denuncia o caráter inter e metatextual da Ars amatoria. Se, nas
elegias de Amores, o leitor é levado a crer que aqueles topoi, circunscritos à
realidade dessa obra, são de fato sentimentos naturais e espontâneos, quando
esse leitor se defronta com a Ars, nota que, na verdade, eles são imitações de
sentimentos. Em outras palavras, é declarado a ele que a maneira de agir de
um apaixonado o passa de uma série de convenções. Assim, ele reconhece
que agir como apaixonado é o equivalente a estar apaixonado. Isso faz com
que o leitor, que acreditava estar seguro em seu mundo, tenha que refletir
sobre a dicotomia realidade/ficção. Aos poucos, percebe também que ele
mesmo está sendo seduzido pelo professor, que este ensina como
enganar, iludir, ou seja, dita preceitos permeados de teatralidade e humor.
Sendo assim, chega à conclusão de que é isso o que o magister realmente
sabe fazer: enganar, o que põe em xeque seus próprios ensinamentos. Agindo
dessa forma, Ovídio remete seu leitor para outras obras elegíacas, inclusive as
suas próprias (Amores, Heróides, Os remédios para o amor), capacitando-o a
estabelecer relações entre textos diferentes. Nesse processo de adequar o
material elegíaco em didático, de acordo com Sharrock, o poeta conta ao leitor
como ler, como olhar para o mundo, como se engajar no discurso erótico.
ainda de ser ressaltada a existência de semelhanças muito
importantes com os preceitos ditados por Ovídio para a conquista e
manutenção do amor com preceitos formulados e ensinados em diferentes
momentos da expressão do artesanato poético (Aristóteles, Horácio, Longino,
Poe, João Cabral), de modo a ser possível o estabelecimento de uma espécie
de arte poética, tomando como temas: ars e ingenium, o processo de criação
como algo laborioso e feio para ser manifesto, a unidade da matéria,
adequação do discurso, gênero e metro, o tom dos poemas, a crítica como algo
inerente à criação (experiência e trabalho de lima), a audiência. O que parece
ipse tuis.
non te
formosae
116
haver é uma transposição de discursos, os dos preceitos artísticos para os
preceitos amorosos.
Assim, ao evidenciar o poder da manipulação da linguagem por meio de
ars, remeter o leitor a suas obras e “pregar peças”, Ovídio está, de fato,
ensinando como escrever poesia. Todo o “treino” pelo qual passou o leitor tinha
o intuito de fazê-lo entender como funciona a ficção, não para que ele
ficasse doctus em ler, mas também doctus em escrever. É importante lembrar
que esse mesmo adjetivo é usado para designar os poetas e ainda a poesia
elegíaca. Assim, quando enumera os tópoi da elegia, Ovídio quer que seu leitor
os utilize como topoi de poesia. Usou-se mal a expressão “quer que”, que
Ovídio, mais que querer, seduz seus leitores a querer. Ao escancarar seu fazer
poético de Amores, Ovídio, na verdade, está deixando o leitor ver os bastidores
da poesia. Assim, ela é desmistificada, mostrada como pura ficção. E, nesse
escancarar, ele vai fornecendo, pouco a pouco, ao futuro escritor, os topoi e
convenções de que ele precisa para escrever uma obra. Todo esse processo é
muito mais sedutor que um convencional tratado didático sobre poesia. Nesse
sentido, o título é o primeiro elemento num processo de sedução no qual o
leitor se transformará num grande amante: se não o for na vida real, será na
ficção, que ele agora, graças ao magister, sabe como criar.
decuit
servare
puellae
117
BIBLIOGRAFIA
Todas as obras abaixo listadas contribuíram direta ou indiretamente para
a elaboração desta pesquisa, embora nem todas sejam citadas no corpo do
trabalho.
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detracta
corona
capillis,
123
Não-coincidência
entre
fim da dissertação
e
poema-em-outra-direção
lembrar que
para além de quaisquer interpretações
POESIA
é ela própria um convite de si mesma
dura
super
tota
limina
124
nocte
iace!
125
tu
dominae,
cum te
126
proiectam
mane
videbit,
127
temporis
absumpti
tam
128
male
testis
eris.
129
Qualiscumque
vale
130
sentique
abeuntis
honorem;
131
lente
nec
admisso
132
turpis
amante,
vale!
133
vos
quoque,
crudeles
134
rigido
cum
limine
postes
135
duraque
conservae
136
ligna,
valete,
fores!
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