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RENATA PETRI
Leitura Psicanalítica do Desenvolvimento e suas Implicações para o
Tratamento de Crianças
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor em Psicologia
Área de concentração: Psicologia Escolar
e do Desenvolvimento Humano
Orientadora:
Profa. Dra. Maria Cristina Machado Kupfer
São Paulo
2006
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2
FOLHA DE APROVACÃO
Renata Petri
Leitura Psicanalítica do Desenvolvimento e
suas Implicações para o Tratamento de Crianças
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor em Psicologia
Área de concentração: Psicologia Escolar e
do Desenvolvimento Humano
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Angela Maria Resende Vorcaro
Instituição: Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade de Minas Gerais –
PUC/MG
Assinatura: ______________________________
Profa. Dra. Leda Mariza Ficher Bernardino
Instituição: Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR
Assinatura: ______________________________
Profa. Dra. Walkíria Helena Grant
Instituição: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP
Assinatura: ______________________________
Prof. Dr. Rinaldo Voltolini
Instituição: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP
Assinatura: ______________________________
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3
AGRADECIMENTOS
A Cristina Kupfer, pela oportunidade de realizar esta pesquisa e a confiança no
meu trabalho.
A Angela Vorcaro e Leda Bernardino, pelas contribuições fundamentais.
A Jean-Jacques Rassial, pela interlocução generosa.
A Ilana Katz, parceira constante, pelas preciosas sugestões.
A Heloísa Prado, pela visão perspicaz.
A Durval Mazzei, pela presença intangível.
A minha família, pelo suporte, colaboração e incentivo constantes.
A Cesar Volpe, pela leitura crítica, a convivência criativa e a revisão do texto.
A CAPES, pela viabilização desta pesquisa.
E sobretudo às crianças, que me ensinam a [re]inventar o Mundo.
4
RESUMO
PETRI, R. Leitura psicanalítica do desenvolvimento e suas implicações para
o tratamento de crianças. São Paulo, 2006, 195 páginas. Tese de doutorado
apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Este trabalho visa a uma sistematização dos princípios gerais para o
estabelecimento das condições e da direção do tratamento psicanalítico com
crianças. Fez-se, portanto, necessária uma reavaliação das noções de
desenvolvimento e de constituição do sujeito, buscando assim delimitar quais
seriam as especificidades da criança como analisante. Nesse sentido, propôs-se
uma escanção da infância em três tempos, cada qual apresentando uma lógica de
funcionamento própria. Tornou-se inevitável a discussão sobre técnica em
psicanálise para apresentar a contribuição aqui pretendida como justamente um
‘anti-manual’ de procedimentos, lembrando ao profissional da clínica a renovada
necessidade de considerar problemáticas específicas em seu ofício. Procedeu-se
então ao estudo propriamente dito das condições e da direção do tratamento com
crianças, abordando as entrevistas preliminares, ocasião da leitura do sintoma e
formulação da hipótese diagnóstica; as particularidades da transferência, da
interpretação e do ato analítico; e o final de análise, levando-se sempre em conta
a importância e o lugar dos pais. O percurso deste trabalho é perpassado pelo
que se revelou um eixo integrador, a noção desejo de analista, definindo o lugar-
função do analista no tratamento como reserva e guardião do elemento central
que articula todos os demais em sua prática: a ética psicanalítica.
Palavras chaves: infância, desenvolvimento, psicanálise, clínica, ética.
5
RÉSUMÉ
PETRI, R. Lecture psychanalytique du développement e des implications
pour le traitement des enfants. São Paulo, 2006, 195 pages. Thèse de doctorat
présentée a l’Institut de Psychologie de l’Université de São Paulo.
Ce travail vise à une systématisation des principes généraux pour l’établissement
des conditions et de la direction du traitement psychanalytique avec des enfants. Il
fût, donc, nécessaire une réévaluation des notions de développement et de la
constitution du sujet cherchant aussi de délimiter quels seraient les spécificités de
l’enfant comme analysant. Dans ce sens il fut proposé une répartition de l’enfance
en trois temps, dont chaque temps présentant une logique de fonctionnement
propre. Il s’est avéré inévitable la discussion sur la technique en psychanalyse
pour présenter la contribution ici proposée comme, justement, un ‘anti-manuel’ de
procédés, rappelant les professionnels cliniques le besoin de considérer les
problématiques spécifiques dans leurs profession. Il s’en suivit, alors, l’étude
proprement dit, des conditions et de la direction du traitement avec des enfants,
en abordant les entretiens préliminaires, occasion de la lecture du symptôme et
formulation d’une hypothèse diagnostique; les particularités du transfert, de
l’interprétation et de l’acte analytique; et la fin de l’analyse, sans perdre de vue
l’importance et la place des parents. Le parcours de ce travail est passé le long de
ce qui fut révélé comme un axe d’intégration, la notion désir de l’analyste dans le
traitement comme réserve et gardien de l’élément central qui articule tous les
autres dans la pratique : l’éthique psychanalytique.
Mots clefs : enfance, développement, psychanalyse, clinique, éthique.
6
ABSTRACT
PETRI, R. Psychoanalytical reading of the development and its implications
for children treatment. São Paulo, 2006, 195 pages. Doctorate Thesis presented
to São Paulo University Psychology Institute.
This work aims to systemize the general principles to establish conditions and the
direction for the psychoanalytical treatment for children. Therefore, a re-valuation
of the developing notions and of the subjected characteristics was necessary, in
order to determine the child specific conditions as susceptible of analysis. For that
matter, a cupbearer childhood in three phases was proposed, each of them
showing a particular logical performance. The discussion about psychoanalysis
technics became inevitable as to present the contribution here aimed as a
procedure ‘anti-manual’, highlighting for the clinic professional the necessity of
considering specific problems regarding his job. Then, a specific study of the
conditions and of the direction for children treatment was conducted, addressing
the preliminary interviews, in the occasion of the reading of the symptom and
formulation of the diagnostic hypothesis; the transference interpretation and
analytical act specifications; and the conclusion of the analysis. The importance of
the roles of parents must be always considered. The route of this work is passed
beyond by what was revealed an integrator axle, the analyst desire notion,
defining the role-function of the analyst in the treatment as reserve and guardian of
the central component that articulates all the others in its practice: the
psychoanalytical ethics.
Key words: childhood, development, psychoanalysis, clinic, ethics.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………. 8
1 DELINEAMENTO DO CAMPO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A TÉCNICA.……….12
1.1 CONDIÇÕES DA ANÁLISE ...............................................................................16
1.2 PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE COM CRIANÇAS .........................................22
1.3 A DIREÇÃO DO TRATAMENTO........................................................................35
2 A CRIANÇA COMO ANALISANTE............................................................................40
2.1 DESENVOLVIMENTO E ESTRUTURA .............................................................40
2.2 O SUJEITO ENTRA A LINGUAGEM E O GOZO ...............................................48
2.3 ‘NÃO RELAÇÃO SEXUAL’...........................................................................55
2.4 UMA PROPOSTA DE ESCANÇÃO ...................................................................71
3 ENTREVISTAS PRELIMINARES E O LUGAR DOS PAIS NO TRATAMENTO .......85
4 DIAGNÓSTICO E SINTOMA ...................................................................................104
5 TRANSFERÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E ATO ......................................................122
5.1 TRANSFERÊNCIA...........................................................................................122
5.2 O BRINCAR SOB TRANSFERÊNCIA..............................................................136
5.3 INTERPRETAÇÃO E ATO ...............................................................................142
6 O FIM DA ANÁLISE.................................................................................................151
7 ÉTICA COMO MANDAMENTO TÉCNICO..............................................................168
7.1 O DESEJO DO ANALISTA...............................................................................173
REFERÊNCIAS................................................................................................................183
ANEXO............................................................................................................................ 195
8
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é apresentar uma sistematização das condições
para a análise de crianças, bem como princípios gerais para a direção do
tratamento, levando em conta os últimos avanços teóricos do ensino de Lacan,
sobretudo no que se refere à noção de gozo e ao nó borromeano, como figura
topológica para a apreensão da estrutura do sujeito do inconsciente.
De modo geral, observam-se três momentos no ensino de Lacan. O
primeiro destaca o registro do imaginário, fundamental na constituição do eu,
como a dimensão principal da experiência analítica, textos como Agressividade
em Psicanálise, 1948, e Estádio do Espelho, 1949, são representativos deste
momento. Em 1953, inicia-se um outro período, longo e de suma importância na
delimitação do campo lacaniano, no qual o registro simbólico é o privilegiado; a
tese sobre o inconsciente estruturado como linguagem marca o início deste
momento com o texto Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise,
seguido por outros como a Instância da Letra no Inconsciente, 1957, e a
Subversão do Sujeito e a Dialética do Desejo, 1960; é na década de sessenta que
alguns conceitos fundamentais da teoria começam a ganhar terreno, como o
objeto a, considerado pelo próprio autor como sua grande contribuição teórica à
psicanálise. Finalmente, na década de 70, o real é tomado como registro
essencial para se pensar a experiência analítica, nesse momento relevam-se os
seminários RSI, 1974/75, e O Sinthoma, 1975/76. Nessas duas décadas finais, a
noção de gozo se tornou absolutamente indispensável, ocupando lugar central na
9
reflexão analítica, em contraposição à noção de desejo. (HARARI, 2002; MILLER,
2002; ZBRUN, 1999).
O interesse de Lacan pela ‘logificação’ do tratamento psicanalítico o
acompanha durante todo o seu percurso, fazendo-o utilizar cada vez mais a
mediação da topologia para a apreensão e articulação dos registros no sentido de
se escrever o sujeito da psicanálise, tornando portanto possível de modo
correspondente dividir também sua obra em três fases ’topológicas’: a gráfica, dos
grafos; a das superfícies, a exemplo da banda de moebius; e a nodal, retomando
as duas anteriores para integrá-las em uma nova perspectiva. (KRUTZEN, 2004).
A topologia auxilia Lacan a pensar questões do tratamento e do lugar do
analista na medida em que permite estabelecer jogos de ligação entre os
elementos que compõem uma figura: “Os objetos topológicos têm esta
particularidade de necessitar a ocupação de um certo número de lugares ou de
vagas por elementos que, logo, vão se encontrar em relações lógicas, produzidas
pela construção desses mesmos objetos. Isso é a estrutura.” (KRUTZEN, 2004,
p.136).
Em cada um dos momentos da obra de Lacan, o arsenal conceitual se
renova, trazendo conseqüências para a leitura e direção do tratamento. Importa
ressaltar que a novidade do terceiro tempo do ensino não é a topologia, que já o
acompanhava, mas o lugar de destaque do real na apreensão da constituição
psíquica. Os desenvolvimentos topológicos dessa fase final servem à inclusão do
real e seu “principal correlato clínico que é o gozo” (DUNKER, 2002, p.26), e é
com a tentativa de apreender esse irrepresentável que a figura do nó borromeano
torna-se essencial nessa etapa.
10
O presente trabalho pretende articular justamente essa última
reorganização teórica em função de uma leitura das condições da análise, assim
como da direção do tratamento, na psicanálise com crianças. Para tanto, fez-se
necessária uma reavaliação das noções de desenvolvimento e de constituição do
sujeito, destacando-se a seguinte questão: como articular o lugar-função do
analista na psicanálise com crianças, levando-se em conta as especificidades
dessa clínica?
A prática analítica não deixa de corresponder a um percurso infinito de
indagações, exigindo constante reflexão teórica em resposta a nossa complexa
condição de sujeitos desejantes, de modo a resguardar a condição de clínica do
singular. Nesse sentido, o tratamento de crianças parece requerer uma
delicadeza especial, que deve atentar para uma estrutura não totalmente
efetuada, um sujeito ainda em constituição.
No primeiro capítulo, procede-se, então, à inevitável discussão sobre
técnica em psicanálise, partindo do que foi originalmente formulado sobre o
tratamento-padrão e seus desdobramentos iniciais, com as primeiras tentativas de
formalização das particularidades da psicanálise com crianças, para propor,
justamente, um ‘anti-manual’ de procedimentos que lembre ao analista a
necessidade de considerar as problemáticas específicas desse trabalho clínico.
O segundo capítulo visa a uma releitura psicanalítica do processo de
formação do sujeito do inconsciente, abordando temas referentes a
desenvolvimento e estrutura, tempos lógicos da constituição subjetiva e
diferenças de posição da criança com relação ao adulto, buscando, enfim,
configurar ‘quem’ é o analisante, quando se trata de uma criança.
11
No terceiro capítulo, argumenta-se sobre as condições propriamente ditas
para a psicanálise com crianças, principalmente no que se refere às entrevistas
preliminares e ao lugar dos pais no tratamento: como, por que e quanto incluir os
pais no tratamento da criança é questão bastante polêmica e de fundamental
importância para a configuração desse campo de trabalho.
No quarto capítulo, aprecia-se a importância crucial do diagnóstico e do
sintoma na infância, como leituras inaugurais realizadas nas entrevistas
preliminares que acompanharão de modo determinante todo o desenrolar do
tratamento. Ainda uma vez, faz-se, então, indispensável, discutir a inclusão dos
pais para precisar a leitura do analista, já que toda criança, ao nascer, é um
objeto para o Outro, e a construção de sua neurose infantil é o que lhe permite
separar-se desse Outro.
O quinto capítulo enfoca a direção do tratamento. A transferência, ponto
nodal da estratégia clínica, é abordada a partir das noções de sujeito suposto
saber e do lugar do analista como suporte do objeto a, causa do desejo e
articulador central de todo o processo. A necessidade da transferência como
condição básica para o fazer do analista, que se sustenta na interpretação e no
ato analítico, impõe, assim, determinados questionamentos: como se estabelece
e se maneja a transferência com uma criança? Pode-se falar em sujeito suposto
saber? È possível a ela engajar-se no ato analítico? Como conceber a
interpretação nesse contexto?
O sexto capítulo dirige-se à questão do fim de análise com a criança, seja
como finalização ou finalidade, procurando uma articulação entre o tempo da
constituição do sujeito e o tempo do tratamento.
12
No sétimo capítulo, apresentam-se considerações finais, mais diretamente
voltadas ao lugar-função do analista como reserva e guardião do elemento central
que integra todos os demais em sua prática: a ética psicanalítica.
13
1 DELINEAMENTO DO CAMPO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A TÉCNICA
Para realizar uma sistematização das condições para a psicanálise com
crianças, assim como levantar princípios gerais para a direção do tratamento, é
inevitável que se proceda a um mapeamento do campo a partir do que já foi
formulado sobre as condições da análise como tratamento inicialmente oferecido
a adultos neuróticos: nesse âmbito, a psicanálise foi inventada e, embora cada
vez mais analistas venham aceitando o desafio de intervir em outras
configurações subjetivas, segundo outros enquadres e demandas, procurando
construir as condições necessárias para o exercício da psicanálise em cada caso,
o tratamento-padrão se mantém como ponto de partida e principal referência.
Tratar das condições necessárias à psicanálise remete ao controverso
campo da técnica, compreensivelmente, quase um tabu entre analistas de
orientação lacaniana.
A origem da palavra técnica é grega e significa o conjunto de processos de
uma arte; maneira, jeito ou habilidade especial de se fazer algo.
A arte é uma produção; logo supõe trabalho. Movimento que
arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o
cosmos do caos. Techné chamavam-na os gregos: modo exato
de perfazer uma tarefa, antecedente de todas as técnicas dos
nossos dias. (BOSI, 1989, p.13).
Na música, por exemplo, a técnica chamada clássica determina o modo
correto de tocar um instrumento, tendo como princípio a economia de movimento.
É óbvio que, numa perspectiva puramente mecânica, poupar esforços
corresponde indiscutivelmente à melhor maneira de otimizar o desempenho de
um instrumentista. Contudo há músicos reconhecidamente geniais desenvolvendo
14
técnicas próprias, diferentes da clássica, diferentes entre si, mas, para cada um
deles, a melhor maneira de realizar sua tarefa: boa música.
A psicanálise difere deste e de outros ofícios com o objeto de seu fazer
intrinsecamente vinculado ao sujeito do inconsciente, imprimindo uma espécie de
torsão no próprio conceito de técnica. Diferentemente do músico com seu
instrumento, ou do artesão com o barro às mãos, o analista dedica-se a criar as
condições para que um determinado sujeito possa realizar sua análise. Freud já
advertia (1919, p.207)
1
: “Não tratamos de edificar sua sina [do analisante] nem de
inculcar-lhe nossos ideais, nem de modelá-lo segundo a nossa imagem, com o
orgulho dos criadores, o que nos seria muito agradável.” Depois, no artigo Esboço
de Psicanálise, no capítulo sobre a técnica, reafirma:
Por mais que o analista possa ficar tentado a transformar-se num
professor, modelo e ideal para outras pessoas, e criar homens à
sua imagem, não deve esquecer que essa não é a sua tarefa no
relacionamento analítico, e que, na verdade, será desleal a essa
tarefa se permitir-se ser levado por suas inclinações.
(FREUD,1938, p.202).
Freud desenvolveu o procedimento padrão para a realização de uma
psicanálise, o que no contexto deste trabalho pode ser chamado de ‘técnica
clássica'. Partindo de sua experiência clínica e construções teóricas
correspondentes, estabeleceu o que julgou como as melhores condições para se
atingir o objetivo desejado no tratamento psicanalítico. A própria regra
fundamental da associação-livre foi elaborada a partir de um achado clínico,
quando uma paciente pede a ele que se cale e a deixe falar, levando-o assim a se
1
Embora essa citação esteja referenciada às obras completas, optou-se por apresentar a tradução do trecho
correspondente conforme proposta no livro de Millot, Freud Anti-Pedagogo (1987, p.89), por ser mais clara.
15
[re]posicionar na forma de uma atenção igualmente flutuante
2
, “elemento central
na constituição de uma ética da escuta e do falar ao outro em sua alteridade [...] É
aqui que a técnica psicanalítica encontra sua ética.”
3
(COELHO Jr., 2000, p. 78).
“O fazer do camponês não desafia o solo do campo. Ao semear, ele
entrega a semeadura às forças do crescimento e protege seu desenvolvimento”
(HEIDEGGER, apud FIGUEIREDO, 2000, p.50), assim como o fazer do analista
não deve tampouco desafiar o analisante, pois não apenas a semente dele
provém, na singularidade do encontro com a mão do semeador, como o seu
crescer, quase sempre inesperado e enigmático, tem seu próprio caminho.
Além dessa regra fundamental, Freud faz algumas recomendações
4
,
sugere o tratamento de ensaio como etapa preliminar à análise propriamente dita
e o uso do divã, discute questões relativas ao tempo e ao dinheiro na análise,
destacando ainda a importância de o analista também ter, ele mesmo, realizado
uma análise, como o melhor meio para apreender a tarefa de analisar.
A preocupação maior de Freud não era tanto dizer como fazer, mas o quê
não-fazer, de modo a evitar equívocos de procedimento entre analistas
inexperientes e afoitos, buscando explicitamente impedir uma banalização
tecnicista da prática psicanalítica. “Nesta medida, seriam sempre de natureza
negativa tanto as suas recomendações como a falta delas na forma de um código
definitivo.” (FIGUEIREDO, 2000, p.15). As recomendações de natureza negativa
referem-se principalmente ao uso abusivo da sugestão, ao furor interpretativo,
2
Coelho Jr. (2000, p.82) lembra que na tradução usual de gleichschwebende Aufmerksamkeit para o
português o igualmente é desconsiderado, sugerindo portanto a tradução literal atenção igualmente flutuante,
que preserva a ênfase original dada à essência da escuta analítica.
3
Essa conexão fundamental entre técnica e ética é recorrente neste trabalho, servindo de substrato para a
discussão sobre a posição do analista, sobretudo no que se refere ao estabelecimento das condições da
análise e a direção do tratamento com crianças, e será especialmente abordada no capítulo sete.
4
Figueiredo (2000, p.14) chama a atenção para o fato de que a expressão alemã Ratschlage usada por
Freud nos trabalhos sobre técnica e geralmente transcrita para o português como ‘recomendações’
corresponde, numa tradução mais acurada, à idéia de ‘pequenos conselhos’, ‘dicas’, desvelando assim um
tom ainda mais leve para as indicações contidas no texto original.
16
curativo e pesquisante, ou seja, a tudo o que está “em franca oposição ao que
seria desejável: uma capacidade de insistir, suportar e sustentar um processo de
cura ao longo de seu percurso e das turbulências deste percurso.” (FIGUEIREDO,
2000, p.19).
Há portanto uma ligação indissolúvel entre aspectos técnicos e teóricos,
sem a qual a técnica estaria reduzida a um simples manual de procedimentos. “As
técnicas, as experiências de cura analítica, a pesquisa e a construção teórica se
entrelaçam dialeticamente, mantendo sempre em aberto as definições tanto dos
procedimentos como das próprias metas da análise.” (FIGUEIREDO, 2000, p.10).
É comum na história da psicanálise, a partir da organização de analistas
em instituições, que ao dispositivo freudiano da associação-livre se acrescente
não mais conselhos ou recomendações, mas o chamado contrato ou setting que,
numa tentativa de criar as condições ideais para que um tratamento se desenrole,
acaba por engessar a situação analítica. Essa burocratização da psicanálise
promove um fechamento do inconsciente, tomando das mãos do analista a única
ferramenta capaz de conferir existência a uma análise, o ato analítico. Quinet
(2002, p.8) afirma que, ao introduzir esse conceito, Lacan retira a psicanálise do
âmbito das regras para situá-la na esfera da ética: “O conceito de ato analítico
desvela que o dito ‘contrato’ do início da análise exime o analista da
responsabilidade de seu ato – trata-se de um contra-ato”.
O esforço de definir um conjunto fechado de regras a serem aplicadas
redunda inócuo, pois justamente devido a todas as razões que restringem ou
modulam a consideração das técnicas em psicanálise, torna-se fundamental que
“se conceda um maior relevo à posição que o analista precisa sustentar para que
17
uma psicanálise ocorra. Assim, somos deslocados das questões das técnicas
para as questões da ética.” (FIGUEIREDO, 2000, p.11).
Delineia-se aos poucos a importância da posição do analista em seu fazer.
A experiência clínica impôs a Freud um modelo de procedimento, requerendo-lhe
uma sustentação teórica compatível, contudo a posição do analista, ali onde a
ética da psicanálise se desvela, é o que de fato opera a interface entre teoria e
técnica. “A técnica ao invés de se sustentar em um código se sustentará na
manutenção de uma posição, de um lugar, vale dizer, se sustentará em uma
ética.” (FIGUEIREDO, 2000, p.38). Neste sentido, não apenas é possível, como
talvez recomendável, que haja variantes técnicas conforme o par
analista/analisante, justamente para que a ética da análise, em sua integridade,
permaneça uma só.
5
1.1 Condições da análise
Sobre o Início do Tratamento, 1913, e Recomendações aos Médicos que
Exercem a Psicanálise, 1912, são textos freudianos que trazem elementos
importantes à procura por uma definição sobre quais seriam as condições
necessárias para a análise do adulto neurótico, enquanto a Conferência 34, das
Novas Conferências Introdutórias em Psicanálise, 1932, traz preciosas indicações
de como Freud pensava as diferenças que se impõem no caso das crianças.
No texto Sobre o Início do Tratamento, Freud parte de sua célebre
metáfora:
5
A discussão sobre a ética psicanalítica, noção central e bastante particular, será realizada na conclusão
deste trabalho, ocasião em que estarão presentes todos os elementos necessários para tal.
18
Todo aquele que espere aprender o nobre jogo de xadrez nos
livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais de
jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a
infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a
abertura desafia qualquer descrição deste tipo. Esta lacuna na
instrução só pode ser preenchida por um estudo diligente dos
jogos travados pelos mestres. As regras que podem ser
estabelecidas para o exercício do tratamento psicanalítico
acham-se sujeitas a limitações semelhantes. (FREUD, 1913,
p.164).
Nesse artigo, apesar da limitação admitida por Freud, há o esforço em
sistematizar princípios, organizando algumas ‘regras’ para o início do tratamento
psicanalítico, claramente apresentadas para não serem tomadas de modo
invariável, mas revistas frente às singularidades de cada caso, para que possa se
estabelecer um procedimento que “em media, é eficaz”. (FREUD, 1913, p.164).
A primeira recomendação é de que o analista realize uma sondagem “a fim
de conhecer o caso e decidir se ele é apropriado para a psicanálise.” (FREUD,
1913, p.165). É nesse momento que uma hipótese diagnóstica se configura.
Freud chama a atenção para os riscos e a responsabilidade do analista nessa
tarefa, ressaltando a dificuldade que existe no estabelecimento do diagnóstico
diferencial, tendo considerado esse momento inicial já como o próprio começo do
tratamento psicanalítico, requerendo, portanto, o mesmo modo de condução.
Em seguida aborda a questão do tempo. Freud conta que cedia uma hora
por dia a cada paciente, reconhece a existência de uma série de situações em
que esse esquema pode ser alterado e aponta que o mais delicado nessa
questão se refere à duração provável do tratamento. Pergunta considerada tão
inevitável quanto sem resposta. As próprias características da neurose tornam tal
questão especialmente espinhosa. Freud argumenta que a neurose tem o caráter
de um organismo, no sentido de que suas manifestações são interdependentes, o
19
que impossibilita a realização de um tratamento com um foco definido a priori,
recomendando prevenir os pacientes de que se trata de um trabalho longo,
porque ainda que o desejo de abreviar o tratamento analítico seja justificável,
“opõe-se [a esse desejo] um fator muito importante, a saber, a lentidão com que
se realizam as mudanças profundas na mente – em última instância, fora de
dúvida, a ‘atemporalidade’ de nossos processos inconscientes”. (FREUD, 1913,
p.172).
Mais adiante, toca na problemática do dinheiro: um meio de
autopreservação e obtenção de poder, envolvendo certamente poderosos fatores
sexuais. Se os pacientes tendem a lidar com o dinheiro com a mesma
ambigüidade com que lidam com questões propriamente sexuais, cabe ao
analista o dever da coerência, respondendo sempre de modo honesto e franco.
Freud atenta para o fato de a psicanálise, mais do que outras especialidades,
correr o perigo de ser bastante prejudicada caso o analista venha a ocupar o lugar
do filantropo desinteressado, uma vez que tal posição certamente emergirá no
tratamento, afetando-o de modo nocivo se estiver associada ao sentimento de
estar sendo explorado, desconsiderado. Recomenda fortemente que os analistas
não aceitem conduzir um tratamento gratuitamente, porque isso “aumenta
enormemente algumas resistências do neurótico [...]”, pois “a ausência do efeito
regulador oferecido pelo pagamento dos honorários ao médico torna-se, ela
própria, muito penosamente sentida; todo relacionamento é afastado do mundo
real [...]”. (FREUD, 1913, p.175). Como em qualquer das recomendações,
preserva a possibilidade de exceções, mas frente à crítica de que as despesas
com o tratamento seriam altas, Freud só faz reafirmar a importância da análise:
”Nada na vida é tão caro quanto a doença – e a estupidez” (1913, p.176),
20
arrematando que uma análise bem sucedida potencializa as capacidades do
sujeito, incluindo a de ser melhor remunerado em sua esfera profissional.
A derradeira recomendação de Freud é sobre a utilização do divã. Defende
tal disposição espacial não só pelo conforto que propicia ao analista ao preservá-
lo de um acareamento ostensivo durante as sessões, mas também por minimizar
o risco de influenciar o discurso do paciente através de reações da pessoa do
analista, como gestos e expressões, facilitando com isso o que nomeou de
isolamento da transferência.
Uma vez definidas as condições para o tratamento, Freud se refere à regra
fundamental da técnica analítica, a associação-livre, na qual o paciente deve dizer
tudo que vem a sua mente, sem qualquer censura ou restrição, ressaltando que
uma vez iniciado o tratamento, qualquer dificuldade em seguir essa regra já se
situa no campo da transferência e sua resistência correspondente.
A transferência, cujo estabelecimento é a primeira meta a ser atingida na
direção de ligar o paciente ao seu tratamento por meio da pessoa do analista, tem
importância capital. Uma construção que requer tempo e uma certa postura por
parte do analista. É preciso demonstrar-se seriamente interessado no que o
paciente tem a dizer, recusando-se a tomar um enfoque moralizador ou qualquer
partido entre as figuras com as quais o paciente possa estar empenhado em
conflito. Para Freud, somente a partir da transferência estabelecida é que o
analista pode fazer as comunicações que julgar pertinentes.
Finalizando o artigo Sobre o início do tratamento, Freud refere-se à
oposição entre duas forças presentes no tratamento: de um lado, a força
motivadora primária que leva o paciente a buscar análise, o sofrimento gerando o
desejo de ser curado; e de outro, o que chamou de benefício secundário da
21
doença, uma satisfação paradoxal que neutraliza parte daquela motivação inicial.
Freud elucida que a força motivadora não é capaz de operar as mudanças
necessárias, pois se encontra desorientada diante do rumo a seguir e desprovida
de energia suficiente para vencer as resistências, apresentando o tratamento
analítico como uma proposta para lidar com essas dificuldades por meio da
mobilização da energia através da transferência e do apontamento de caminhos.
E para o analista, qual seria a condição para a condução de uma análise,
sua contrapartida nas regras a que o analisante deve obedecer? Em
Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise, 1912, Freud destaca a
atenção flutuante do analista, comandada pela neutralidade de sua presença,
como a capacidade fundamental de dirigir a escuta não necessariamente à
compreensão ou memorização de conteúdos, mas aos tropeços da linguagem,
reveladores do inconsciente.
Procurando delimitar o lugar e a função do analista, Freud depara-se com o
que chamou de “uma condição psicológica em alto grau”. Tal condição poderia
ser alcançada através de uma “purificação psicanalítica”: o analista submetendo-
se a uma análise, em busca de condições para exercer seu ofício. Entende-se
aqui esta curiosa expressão freudiana não como a afirmação de que o analista
poderia vir a ser puro no sentido moral, liberto dos flagelos da alma, mas que
deve ‘trabalhar a si mesmo enquanto instrumento de trabalho’, procurando tornar
sua escuta cada vez mais desembaraçada dos próprios complexos.
6
Ainda que simplesmente elencadas, as condições inicialmente propostas
por Freud para o estabelecimento da situação analítica com adultos neuróticos já
6
A esse propósito: “a arte de escutar equivale quase à de bem dizer” - frase de autoria desconhecida citada
por Lacan na aula de 15/04/1964, 11o. Seminário.
22
tornam evidente que tomar a criança como analisante requer a revisão de cada
ponto.
Na Conferência 34, 1932, Freud faz algumas considerações sobre as
condições para o exercício da psicanálise com crianças:
Verificou-se que a criança é muito propícia para tratamento
analítico; os resultados são seguros e duradouros. A técnica de
tratamento usada com adultos deve, naturalmente, ser muito
modificada para sua aplicação em crianças. Uma criança é um
objeto psicologicamente diferente do adulto. De vez que não
possui superego, o método da associação livre não tem muita
razão de ser, a transferência (porquanto os pais reais ainda estão
em evidência) desempenha um papel diferente. As resistências
internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua
maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades
externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem
em veículo de resistência, o objetivo da análise – e a análise
como tal – muitas vezes corre perigo. Aí se deduz que muitas
vezes é necessária determinada dose de influência analítica junto
aos pais. (FREUD, 1932, p.181).
Essa citação condensa muitos elementos a serem desdobrados no
decorrer deste trabalho. Freud afirma a eficácia da psicanálise com crianças, mas
alerta para diferenças importantes quanto à transferência, à presença dos pais, ao
superego, o que permite inferir que em sua leitura sobre a questão do tempo na
constituição do sujeito, a infância corresponderia a um aparato psíquico ainda em
construção, inacabado, dependente do Outro. Embora reafirme em vários
momentos a analisabilidade da pessoa nessa fase primordial, o próprio Freud não
desenvolveu as condições para a psicanálise com crianças, delegando a sua filha
Anna Freud tal tarefa.
Autores notáveis na história da psicanálise pós-freudiana, trouxeram
experiências clínicas distintas e novos aportes conceituais com relação à técnica.
Contribuições, maiores ou menores, que compõem essencialmente o testemunho
da implicação do analista em seu fazer, assim como um músico que, na graça de
23
sua habilidade, descobre uma nova maneira de chegar à determinada solução
sonora. Essas inevitáveis e progressivas alterações na conformação da técnica
psicanalítica encontram-se diretamente associadas ao que pode ser chamado de
o sintoma de cada analista, trazendo ao mesmo tempo uma relatividade bastante
confortável para que o profissional possa empreender sua tarefa e uma enorme
responsabilidade frente à ética psicanalítica, revalorizando ainda, profundamente,
a importância do chamado tripé que sustenta o fazer do analista: a realização da
própria análise - proporcionando uma relação singular com seu sintoma; o estudo
dos textos psicanalíticos - garantindo a constante reflexão teórica; e a supervisão
- demarcando um espaço privilegiado de depuração de seu ‘saber-fazer’.
O presente trabalho parte do padrão inicialmente estabelecido por Freud à
procura de indicadores pertinentes ao tratamento de um “objeto psicologicamente
diferente do adulto”. Não se pretende aqui a formulação de um novo conjunto de
regras para uma ‘psicanálise infantil’, mas uma articulação entre i) os últimos
avanços da teoria lacaniana, ii) as condições da análise e a direção do tratamento
com crianças, enfatizando o caráter central da ética da psicanálise como único
mandamento técnico, e iii) a conseqüente e crucial responsabilidade do analista
por seu ato.
1.2 Primórdios da psicanálise com crianças
A discussão sobre psicanálise com crianças é iniciada por Freud em 1909,
com a publicação de Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, o
‘Pequeno Hans’, caso clínico construído em grande parte por intermédio do pai do
24
paciente. O texto mostra a possibilidade de realização da psicanálise com
crianças, permanecendo ainda hoje como um paradigma. Embora o próprio Freud
em sua obra nunca tenha aprofundado essa discussão, tê-la simplesmente
inaugurado deflagrou de modo irreversível o debate, muitas vezes acalorado,
entre outros psicanalistas.
A primeira importante problematização da psicanálise com crianças
acontece com a oposição teórica entre Melanie Klein e Anna Freud, duas
pioneiras dessa área com leituras bastante distintas do texto freudiano. Além de
manterem divergências quanto a questões propriamente técnicas - o que define
as condições para a análise com crianças, o que é análise, qual o lugar do
analista, o fim da análise, como a transferência se apresenta nesse contexto
específico, qual o lugar e a importância dos pais - diferem fundamentalmente
quanto à possível aproximação entre as relações analítica e educativa nessa
prática clínica.
Anna Freud propôs uma conjunção entre educação e psicanálise como
condição para tal trabalho, não acreditando ser possível nem desejável o
estabelecimento de uma relação puramente analítica com uma criança. Partindo
da diferença com os adultos, chega à conclusão de que é parte integrante da
análise com crianças o exercício de uma função educativa.
No livro O Tratamento Psicanalítico de Crianças, 1926, apresenta suas
razões e o método de trabalho desenvolvido. Um primeiro ponto destacado é o
fato de a criança não apresentar “consciência – insight – da enfermidade, a
decisão voluntária e a vontade de curar-se” (ANNA FREUD, 1926, p.22)
7
, o que
seria indispensável para o início de um tratamento, criando-se assim a
7
Para evitar confusões entre Freud pai e filha, utilizou-se a forma completa Anna Freud nas devidas citações.
25
necessidade de estabelecer, em primeiro lugar, um relacionamento emocional
definido com a criança. Propõe então essa tarefa prévia à análise, portanto não
analítica ainda, para que se obtenha uma situação mais vantajosa para o início do
tratamento propriamente. Esse trabalho prévio, que inclui uma relação de
sedução, visaria a permitir e promover na criança uma boa disposição e
espontaneidade para com o tratamento, levando o analista a ganhar sua
confiança, estabelecendo finalmente um poder de autoridade sobre ela. Essa
‘aliança terapêutica’ teria um caráter pedagógico, no sentido de conduzir a criança
ao aprendizado da importância e dos fundamentos da análise a ser empreendida.
É a partir dessa empreitada pedagógico-educativa que Anna Freud tenta driblar
as dificuldades iniciais no estabelecimento das condições para a análise de uma
criança.
Outro ponto por ela destacado como complicador para a psicanálise com
crianças está ligado a sua crença na inviabilidade da instalação da neurose de
transferência
8
:
A criança não se vê, como o adulto, pronta a produzir uma nova
edição de suas relações amorosas porquanto, como se poderia
dizer, a antiga edição não se encontra ainda esgotada. Os seus
objetos originais, os pais, são ainda reais e presentes como objetos
de amor – não apenas na fantasia, como acontece com os
neuróticos adultos; entre eles e a criança todas as relações da vida
cotidiana existem, e todas as suas gratificações e desapontamentos
dependem, na realidade, desses pais. (ANNA FREUD, 1926, p.60).
Coerentemente, Anna Freud dá importância central à colaboração dos pais
na análise, responsabilizando-os muitas vezes pela possibilidade ou impedimento
do tratamento. Concebe a criança como dependente do outro de tal modo que
deixa de lhe conferir o estatuto de sujeito desejante, retirando-se do campo da
8
Refere-se a ‘manifestações de transferência’ apenas.
26
psicanálise na medida em que toma o objeto do tratamento como objeto de
educação. Sua escuta dos pais está voltada à descrição e observação do
comportamento da criança, ao que se passa em sua realidade cotidiana, uma vez
que “no caso ideal, compartilhamos o nosso trabalho com as pessoas que se
encarregam, na realidade, de educar a criança”. (ANNA FREUD,1926, p.62). O
analista então não deveria se colocar como ‘tela branca’ para que a criança ali
inscrevesse as próprias fantasias, ao contrário, deveria realizar uma ‘ação
dirigida’. Essa posição diretiva é justificada também por sua idéia de que a
associação-livre da criança seria bastante limitada e, se aceita como regra
fundamental, poderia levar o tratamento a um impasse.
Finalmente, Anna Freud articula o que considera como a diferença
fundamental entre a análise da criança e a do adulto, confirmando seu viés
pedagógico: as pulsões da criança não podem ser regidas por um superego
infantil, extremamente frágil, incompleto e dependente dos adultos que o
sustentam, assim como também não podem ser deixadas a cargo dos pais, já que
eles mesmos participam do engendramento da neurose, tornando-se então uma
tarefa para o analista.
Parece-me, assim, que resta apenas uma única solução para
enfrentar esta situação difícil. O analista deve reivindicar a liberdade
de dirigir a criança neste importante ponto, a fim de poder assegurar,
em certa medida, o resultado da análise. Sob a sua influência a
criança deve saber como se conduzir perante a sua vida instintiva e
os seus pontos de vista devem, afinal, determinar que parte dos
impulsos sexuais infantis precisa ser suprimida ou rejeitada como
não-utilizável no seio do mundo cultural; em que medida, maior ou
menor, pode permitir-se uma gratificação direta e o que é que deve
ser encaminhado na direção da sublimação, para cujo processo todos
os recursos disponíveis da educação precisam, então, ser usados.
Resumidamente podemos dizer que o analista deve esforçar-se por
27
se colocar no lugar do Ego-ideal da criança por toda a duração da
análise [...].
9
O analista, em conseqüência, combina em sua própria pessoa duas
funções difíceis e diametralmente opostas: tem de analisar e de
educar. (ANNA FREUD, 1926, p.75-81).
A conseqüência básica dessa posição é fazer com que a busca do final do
tratamento coincida com a procura de uma identificação da criança com o ideal de
eu, lugar esse ocupado pelo analista. Cabe a indagação: como pode a psicanálise
assim concebida sustentar-se eticamente?
Uma leitura da construção teórica de Anna Freud, a partir do instrumental
conceitual atualmente disponível, concluiria que sua prática clínica se confunde
com uma atividade pedagógica de cunho imaginário, por se deter principalmente
na realidade, exercendo uma função normativa de adaptação. Ao estabelecer a
diferença entre adultos e crianças segundo atributos do eu, como maturidade ou
dependência, acaba por tomá-lo ingenuamente como objeto privilegiado de
escuta. Nesse sentido, o trabalho da autora poderia ser situado no âmbito da
pedagogia, já que desconsideraria princípios básicos da psicanálise, sobretudo no
que diz respeito à ética analítica.
Ainda que o testemunho de Anna Freud tenha sem dúvida grande valor, a
conjunção entre psicanálise e pedagogia como única alternativa no tratamento
com crianças é o sintoma com o qual inscreveu seu nome na história da
psicanálise, ou seja, o lugar de onde é possível ler sua filiação, confirmando a
idéia de que é a partir do próprio sintoma que cada analista realiza sua
contribuição. (FENDRIK, 1998, p.61).
9
Importa ressaltar que, nesse momento do desenvolvimento da teoria freudiana, ideal de ego e ego ideal
ainda se confundem. Na tradução espanhola da obra de Anna Freud, por exemplo, tem-se aquele no lugar
deste.
28
No entanto, Atal (1998) em sua leitura do caso a menina do demônio, que
perpassa todo o livro O Tratamento Psicanalítico de Crianças, de Anna Freud,
aponta um detalhe fundamental: a ‘vontade’ da autora de considerar o que lhe
parece inelutável na dimensão educativa da análise com uma criança, interdita-
lhe a percepção do quanto essa análise já transcorre dentro dos parâmetros
analíticos, a partir da neurose de transferência, o que demonstra que as questões
levantadas por Anna Freud, embora pertinentes, encontram soluções teóricas
mais comprometidas com o debate da época do que propriamente com sua
experiência clínica.
Contudo é preciso lembrar que as formulações teórico-clínicas de Anna
Freud representam uma das primeiras tentativas de se pensar a psicanálise com
crianças, o que talvez valide a suposição de que ela, na verdade, tenha de
alguma maneira tomado a criança como um sujeito em constituição, algo que
ainda não se realizou completamente, requerendo, portanto, do analista uma
posição diferente daquela ocupada quando o sujeito já se encontra constituído.
Nesse sentido, deve-se também relativizar sua contribuição no que se
refere ao papel conferido à escuta dos pais, pois se de um lado Anna Freud
atentou principalmente para a coleta de dados sobre a vida e o comportamento da
criança, de outro, não deixou assim de fundar um dos principais pilares do
tratamento, atualmente mais voltado ao recolhimento de significantes importantes
para a criança, bem como o levantamento do lugar que ocupa na estrutura
discursiva familiar.
É provável que o maior equívoco de Anna Freud tenha sido legar ao
analista, o que vale dizer, a si mesma, a posição de ideal do eu, forjando a noção
de uma ‘identificação saudável’ que acaba por impor à criança ideais alheios,
29
contradizendo, enfim, os próprios fundamentos da psicanálise numa
inconsistência ética flagrante.
Melanie Klein, por sua vez, apresenta uma elaboração teórica radicalmente
oposta à de Anna Freud. Mobilizada pelo debate, esforçou-se em ressaltar que a
análise de crianças em nada difere da realizada com adultos, observando que não
apenas as crianças podem ser equiparadas aos adultos no que se refere à
instância do inconsciente, como estão ainda mais susceptíveis à mesma, o que
permitiria a instalação imediata da situação analítica, sem a necessidade de um
tratamento de ensaio. Pressuposto básico que a levou a procurar em toda
expressão da criança um conteúdo simbólico que, através da interpretação, daria
acesso direto ao inconsciente, acreditando ainda que tais expressões na cena
analítica já revelavam em si mesmas uma estrutura associativa, o que culminou
na chamada ‘terapia do brinquedo’.
Não estabelecendo uma diferenciação entre a posição ocupada pelo
analista, seja na análise de crianças ou de adultos, afirma que o complexo de
Édipo deve ser explorado profundamente, sendo desnecessário e mesmo
incompatível o exercício de qualquer influência educativa. Ao postular que a
criança pequena já vivenciou o Édipo e, mesmo que ainda não fale, reatualiza-o
na sessão, Klein volta-se à realização de interpretações no aqui e agora da
transferência, outra divergência com Anna Freud, pois sustenta, assim, não
apenas a existência como também a importância crucial da neurose de
transferência na análise de crianças, seja em sua versão positiva ou negativa.
A partir de suas formulações teóricas sobre o aparelho psíquico precoce,
Klein encara o papel dos pais de maneira muito diferente da colega. Não vincula o
30
supereu da criança aos pais reais, ao contrário, descreve-o como precoce, severo
e autônomo, acessível somente por meios analíticos, acreditando que, na
realidade, o que importa são os pais internalizados pela criança:
A análise de crianças muito novas me demonstrou que mesmo um
menino de três anos já deixou atrás de si a parte mais importante da
evolução do complexo de Édipo. Por conseguinte, ele já está muito
afastado, devido à repressão e aos sentimentos de culpa, dos objetos
que ele originalmente cobiçava. As suas relações com ele têm sofrido
distorções e transformações, de modo que os atuais objetos de amor
são agora imagos dos objetos originais. (KLEIN, 1927, p.209).
Ainda em debate, Melanie Klein compreende educação e psicanálise como
processos absolutamente distintos que só podem coexistir se orientados por
profissionais diferentes. No artigo Simpósio sobre a Análise Infantil, 1927,
comenta e critica passagens do já citado livro de Anna Freud, defendendo que:
[...] o analista de crianças deve ter a mesma atitude inconsciente que
exigimos do analista de adultos, se desejamos que a análise tenha
êxito. Esta atitude deve capacitá-lo a querer realmente só analisar, e
não desejar moldar e dirigir a mente de seus pacientes. (KLEIN, 1927,
p.230).
É categórica quanto à impossibilidade de combinar na pessoa do analista
as funções educativa e analítica, apontando tal inconsistência no próprio
posicionamento de Anna Freud, que já as tinha descrito como duas tarefas
difíceis e contraditórias.
Posso resumir os meus argumentos, dizendo que uma dessas
atividades anula, com efeito, a outra. Se o analista, ainda que só
temporariamente, torna-se representante de agentes educativos, se
assume o papel do superego, bloqueia neste ponto o caminho dos
impulsos instintivos que se dirigiam à consciência: torna-se um
representante dos poderes repressores. (KLEIN, 1927, p.229-230).
Finalmente, um outro ponto importante para iluminar as diferenças entre
essas duas pioneiras da psicanálise com crianças refere-se ao questionável poder
de tais pacientes para associar livremente. Mais uma vez em desacordo com
31
Anna Freud, Melanie Klein acredita que, de forma simples e espontânea, através
da própria atividade lúdica, a criança na verdade só faz associar, a partir do que
desenvolveu a chamada técnica através do brinquedo - play technique -
considerando o brincar da criança na cena analítica como uma forma de
expressão correspondente à fala adulta.
A importância da contribuição de Melanie Klein está ligada à tentativa de se
manter estritamente dentro do campo da psicanálise, apesar das dificuldades que
o tratamento de crianças impunha, sendo marcante, decisiva, inegável para o
desenvolvimento da psicanálise. Contudo, assim como Anna Freud, deixa
depreender das próprias entrelinhas que se está de fato lidando com os
primórdios de um entendimento sobre a criança como um sujeito ainda em
constituição.
Há uma crítica surpreendente dirigida a Melanie Klein, referente ao seu
próprio julgamento de ser radicalmente diferente de sua opositora, Anna Freud.
Segundo Dinerstein (1987), Klein, compreendendo a transferência com respeito
sobretudo aos afetos, vê então o inconsciente como uma estrutura de fantasias, e
a relação do analista com a criança como uma relação dual na qual o primeiro
‘sabe’ - e quem sabe, ensina - concluindo, portanto, que Klein recusa a posição
pedagógica assumida por Anna Freud, sem se perceber incorrendo na mesma.
Fendrik (1988), em sua pesquisa sobre as origens da psicanálise com
crianças, lança luz sobre alguns detalhes muito sugestivos do percurso kleiniano.
No início de sua formação, Melanie Klein dedicava-se a questões relativas à
educação, segundo uma orientação psicanalítica. Não somente seu primeiro
paciente foi o próprio filho – fato aliás deliberadamente ocultado por muito tempo
e cujo relato do tratamento rendeu-lhe a entrada no seio institucional analítico –
32
como a grande maioria das outras crianças que analisou nesse começo de
carreira eram os filhos justamente dos colegas analistas que a acolheram na
Inglaterra: esses fatos somados, embora não invalidem a indiscutível contribuição
kleiniana, não deixam, por outro lado, de fundamentar a suspeita de que a
radicalidade de seu posicionamento teórico quanto ao lugar dos pais no
tratamento, com quem realizava normalmente uma única entrevista inicial, poderia
estar servindo também à própria necessidade de marcar sua diferença e
conquistar um lugar. Certamente foi uma condição necessária para seu trabalho
clínico manter os pais de seus pacientes, a saber, psicanalistas também, no
isolamento de uma distância segura, tanto para o tratamento, quanto para si
mesma, entretanto, não se pode tomar tal procedimento, imposto por um contexto
determinado, como regra invariável. Novamente, o que se destaca é a evidência
de que as contribuições de um analista acontecem vinculadas ao próprio sintoma,
o que deve servir de advertência às instituições que concebem a técnica
meramente como um conjunto de normas.
Uma vez composto esse referencial inicial pelo debate entre Melanie Klein
e Anna Freud, outros autores vêm procurando escapar à mera consonância ou
divergência para trazer contribuições originais.
Com o surgimento das formulações teóricas de Lacan, algumas questões
se recolocam. Rosine e Robert Lefort, por exemplo, defendem que a psicanálise é
uma só, e não haveria portanto uma especificidade na psicanálise com crianças.
Já Françoise Dolto e Maud Mannoni dedicam-se ao estabelecimento de uma nova
visão sobre a criança a partir do ensino de Lacan, a qual
33
[...] propõe em primeira instância, inserir a criança na estrutura
desejante da família, como efeito dessa estrutura. Ou seja, a
criança não seria a criança annafreudiana, aquela que escolhe ou
não se tratar, produto das vicissitudes de seu Ego e de seu
desenvolvimento libidinal. Também não seria a criança kleiniana,
determinada pela quantidade de instinto de morte que se faz
presente no ciúmes e na inveja. A criança na visão lacaniana é
essencialmente inserida na estrutura, efeito da família, ‘desejo do
Outro’. (VOLNOVICH, 1991, p.24).
Na direção do tratamento conforme proposta por Françoise Dolto, por
exemplo, podem-se perceber influências variadas. A autora afirma (1971, p.131)
que o método da associação livre não seria possível com a criança, razão pela
qual emprega o método do brinquedo, do desenho espontâneo e da conversação,
entendida como uma provocação de discursos diversos da criança. Afirma ainda
que, contrariamente à leitura kleiniana, não considera os símbolos que emergem
no encontro com a criança como chaves de enigmas invariavelmente, sendo
portanto essencial considerar o contexto, as descrições verbais, e o lugar que
determinado símbolo ocupa numa série quando aparece no jogo, no desenho, no
sonho ou em estórias. A base da ação terapêutica, que permite à criança ligar-se
ao analista confiando-lhe seus segredos, seria então a transferência, definida
como uma “situação de adesão afetiva ao psicanalista, que se converte num
personagem, e dos mais importantes, do mundo interior da criança, durante o
período de tratamento”. (DOLTO, 1971, p.133). A autora estabelece uma
diferença entre a atitude do psicanalista para com os pais, a quem dá conselhos e
sugestões, e para com a criança, diante da qual assume uma atitude mais
propriamente analítica. A partir de seu conceito de imagem inconsciente do corpo,
propõe, além do desenho, a modelagem, como meio para transposições dessa
imagem, o que faz parte de sua técnica com maior incidência do que o brinquedo,
considerando-a matéria prima mais apropriada à legítima expressão da criança.
34
Com relação ao final de análise, considera a cura assegurada quando do
desaparecimento duradouro do sintoma e uma sensação de “viver interiormente
em paz”, reagindo às dificuldades da vida sem angústia exacerbada, mas afirma
que a cura definitiva só se efetivará na fase adulta, e que a possibilidade de o
analista conduzir a realização de tal tarefa reside no tratamento analítico que ele
mesmo empreendeu.
Outro elemento interessante na abordagem técnica desenvolvida por Dolto
é o pagamento simbólico que instaura no tratamento das crianças. Propõe a
firmação de um contrato com a criança, que deve trazer à sessão, por exemplo,
um selo, uma pedrinha, ou mesmo uma moeda, como um pagamento simbólico,
que não se constitui em um presente nem em um objeto parcial, mas em uma
prova do desejo da criança de se tratar. Trata-se de uma tentativa de incluir toda
a riqueza das questões relativas à troca simbólica que com os adultos aparece
ligada ao dinheiro na análise. No aspecto prático, entretanto, essa proposição traz
uma série de dificuldades e, como recomendação, acabou não sendo assimilada
pela comunidade psicanalítica. Na verdade, a posição da criança no discurso
ainda parece ser a de quem toma emprestado do Outro, ‘engordando’ sua dívida
simbólica, que só posteriormente poderá ser resgatada.
Maud Mannoni, outra figura central no cenário da psicanálise com crianças,
dedicou-se mais especificamente às crianças com questões psíquicas bastante
graves, tendo inclusive construído uma instituição para acolhê-las, local onde “a
escuta analítica [...] produto da transformação produzida pela psicanálise nos
membros do grupo, é uma subversão do discurso médico-pedagógico”.
(LAJONQUIÈRE & SCAGLIOLA, 1998, p.22). A psicanalista destaca a
importância da escuta do desejo do sujeito como ponto central para auxiliar a
35
criança a construir seu lugar no mundo, sobretudo para aquelas que viveram seja
uma institucionalização hospitalar ou uma educação ‘especializada’, defendendo
com afinco o espaço de enunciação da criança.
Com relação à prática clínica propriamente dita, ressalta a existência das
muitas transferências – do analista, dos pais, da criança – o que exige então uma
habilidade especial do analista para manejá-las. Para ela, as reações dos pais
são parte integrante do sintoma da criança e, portanto, da direção do tratamento,
uma vez que a criança doente participa de uma doença coletiva, servindo de
suporte para a angústia dos pais. Conseqüentemente, não se pode tratar de uma
criança sem tocar em problemas fundamentais dos pais, como suas posições em
relação à morte, ao sexo, à metáfora paterna, já que estão profundamente
implicados no sintoma do filho. Mannoni entende que a criança com seu sintoma
ocupa então um lugar na fantasmática parental, o que requer, muitas vezes, a
presença dos pais, ou, especificamente, da mãe, no tratamento.
Com os desenvolvimentos teóricos posteriores da teoria lacaniana, como,
por exemplo, os conceitos de gozo e objeto a, novos avanços foram feitos no
campo da psicanálise com crianças.
No fundo, o que a psicanálise depois de Lacan introduz com a
criança, [...] nada mais é que a categoria de gozo, um outro nome
para o ‘inútil’. Calcular seu ato pelo gozo introduz a questão da
ética: isso supõe, certamente, o desejo do analista, isto é, por em
funcionamento um lugar onde o analista possa colher a criança
sem gozar às suas custas, mesmo quando esta última se oferece
a esse gozo. (SAURET, 1997, p.42).
Tais avanços serão tratados ao longo deste trabalho, mas já se torna
evidente que o tratamento psicanalítico de crianças não é um campo à parte do
referencial teórico da psicanálise, uma ‘especialidade’ no sentido médico do
termo, mas sim um campo no qual a ‘especificidade’ concernente ao sujeito no
36
tempo de sua constituição está incluída, apresentando, portanto, algumas
particularidades para o dispositivo analítico, o que, contudo, não impede que se
conduza a análise de uma criança segundo os princípios da ética psicanalítica.
Importa ressaltar que tais particularidades variam conforme o momento da
efetuação da estrutura no qual a criança se encontra. Os elementos presentes
nos tratamentos de crianças de dois e onze anos de idade, por exemplo, não são
equivalentes.
1.3 A direção do tratamento
Lacan declara no texto A Direção do Tratamento e os Princípios de seu
Poder
10
, 1958, que “o analista é ainda menos livre naquilo que domina a
estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se
em sua falta-a-ser do que em seu ser.” (p.596).
Com essa formulação, Lacan procura delimitar o campo analítico e suas
variáveis, num esforço análogo ao de Freud com a metáfora do jogo de xadrez.
Nesse sentido, ‘política’ equivaleria à própria lógica do jogo, às regras que
possibilitam, na medida em que regulam, o embate dos jogadores; o termo
‘estratégia’ evoca a definição do melhor caminho para que um confronto possa se
desenrolar, correspondendo às diferentes aberturas e possíveis finalizações para
esse específico confronto; e a ‘tática’ se refere ao [re]arranjo de execução dos
movimentos na situação fluida do tabuleiro, à ação direta que serve a uma
estratégia determinada.
10
Todas as citações não nomeadas contidas neste item referem-se a esse específico texto de Lacan.
37
Percebe-se, assim, uma cadeia de subordinações sucessivas na qual a
política requer uma estratégia que por sua vez implica soluções táticas. O analista
seria então praticamente não-livre em relação aos princípios do campo analítico,
sobretudo quanto à posição do analista, na sua falta-em-ser
11
, que remete ao
operador desejo de analista. A estratégia pode ser construída com certa liberdade
através do reconhecimento dos caminhos possíveis em cada caso, mais ainda
quando não se trata do tratamento padrão; a transferência, eixo que sustenta o
tratamento, situa-se nesse âmbito. A tática, definida a partir da estratégia, remete
aos manejos clínicos escolhidos pelo analista para realizar sua empreitada,
campo em que tem maior liberdade; localiza-se aqui a interpretação. Já o estilo,
irredutível, perpassa todos os campos, apontando para o que está ‘além do
tabuleiro’.
Este trabalho situa-se prevalentemente no âmbito da estratégia, ainda que
de fato essas categorias se imbriquem, quer no jogo de xadrez, no campo de
batalha, ou na clínica. Entende-se que uma definição das condições da
psicanálise com crianças seria uma delimitação estratégica, que leva em conta a
especificidade de seu objeto – o sujeito em constituição no tempo da infância.
Será necessário tocar na questão tática, como escolha da ação em campo que
corresponde a uma opção estratégica. Contudo, o âmbito da política, como o que
define o jogo próprio da psicanálise, é de onde se parte para a construção desta
tese: a política é que estabelece a direção do tratamento, a partir do que se define
uma estratégia e suas necessidades táticas.
Lacan apresenta o analista como servindo de esteio, de âncora,
no decorrer da análise, para a fantasia. O analista, que introduz
no começo da análise a associação-livre, o jogo do significante, a
11
Apesar da tradução dos Escritos de Lacan propor a expressão falta-a-ser, optou-se neste trabalho pela
forma falta-em-ser por parecer mais apropriada à língua portuguesa.
38
liberdade do sonho, encarrega-se da fantasia e até se determina
por ela – no sentido mais forte, como dizemos que uma variável é
determinada. Por isso, o analista deve saber para onde está indo;
não basta que seja entorpecido pela fantasia do paciente, que é o
desenvolvimento da neurose de transferência; ele deve saber
para onde está indo, e é essa a sua política. (LAURENT, 1995,
p.17).
A política é pautada pela falta-em-ser do analista, aquele que sabe, desde
a porta de entrada da análise, que o destino final da transferência é o des-ser do
analista, e é isso que deve orientá-lo em tal percurso.
A preocupação de Lacan, no referido texto, é justamente reafirmar essa
posição do analista de acordo com os ensinamentos freudianos, apontando a
impostura de certos grupos de profissionais que se distanciavam largamente da
essência da psicanálise. Denuncia e demonstra como a leitura equivocada de
conceitos freudianos fundamentais onera o labor prático para além de deslizes
meramente técnicos, uma vez que “a impotência em sustentar autenticamente
uma práxis reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um
poder.” Nesse sentido, enuncia um primeiro princípio: “O psicanalista certamente
dirige o tratamento [...] não deve de modo algum dirigir o paciente.” (LACAN,
1958a, p.592).
Lacan elucida que, na grande empreitada de uma psicanálise, não apenas
o paciente, mas também o próprio analista tem um engajamento pelo qual ‘paga’:
com palavras, na interpretação; com sua pessoa, na transferência; com o seu ser,
ou melhor, seu des-ser, remetendo-se ao lugar que [des]ocupa para que seja
possível o ato analítico, enfim.
A direção do tratamento se ordena segundo um processo que vai da
retificação das relações do sujeito com o real, operação realizada nas entrevistas
39
preliminares, ao desenvolvimento da transferência e o uso da interpretação,
objetivando sempre o ‘fim da análise’.
O lugar central atribuído ao desejo é o que define a psicanálise.
O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela
demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito,
articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o
apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da
fala, é também o lugar dessa falta. (LACAN, 1958a, p.633).
O desejo é, portanto, a conseqüência vivida pelo sujeito do fato de ser
submetido à linguagem e, nesse sentido, falar representa a tentativa de declarar
plenamente esse desejo a despeito da inexorável e essencial “incompatibilidade
do desejo com a fala”. (LACAN, 1958a, p.647). Contudo é justamente desse modo
que o sujeito se apresenta na análise, sendo, portanto, crucial que o analista não
responda à demanda, para que a frustração prevaleça à gratificação, garantindo
que o desejo permaneça na relação transferencial, iluminando assim a direção da
análise.
Noutros termos, a ‘direção do tratamento’ corresponde à ‘direção do
desejo’ e compreende levar o analisante à experiência da falta, da castração, por
meio de sua própria fala com “poderes especiais do tratamento” expressa na
associação-livre e da não-resposta do analista à demanda apresentada, deixando
desimpedida ao sujeito a via de acesso a si mesmo, a qual se abre com as
sucessivas e progressivas reatualizações do desejo, através das tentativas,
sempre frustradas, de dizê-lo definitivamente.
Em pesquisa anterior,
12
foram abordadas as estratégias clínicas que
possibilitam o trabalho analítico com crianças psicóticas. No presente trabalho, o
12
Petri, R. O lugar do profissional no tratamento institucional da criança psicótica: analista ou educador?
Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2000.
40
foco é dirigido para a clínica psicanalítica com crianças neuróticas. Cabe a
pergunta sobre quais as condições necessárias à realização da análise com cada
sujeito, no entanto, com aqueles ainda em tempo de constituição, as crianças, a
amplitude dessas variáveis sem dúvida aumenta. As crianças, assim como os
sujeitos psicóticos, reclamam uma originalidade maior para seus quadros. Estes,
por não estarem submetidos à normatização produzida pelo atravessamento
edípico, e pela conseqüente significação fálica; aquelas, por sua condição de
sujeito em constituição, em plena construção de sua fantasia, sem uma estrutura
estável.
Tomar-se-á, então, a criança como um sujeito analisável, procurando
inicialmente definir suas especificidades como “objeto psicologicamente diferente
do adulto”, para depois abordar-se as diferenças técnicas, as condições
necessárias para que uma análise possa acontecer, procurando estabelecer a
particularidade da direção do tratamento na infância.
Na prática clínica lacaniana não existem padrões, pois embora se
reconheça a existência de princípios referenciais, a integridade mesma do
tratamento corresponde a uma experiência ética, envolvendo o par
analista/analisante. O entendimento e, em certa medida, a transmissão desses
princípios se efetiva prevalentemente na análise do analista e nas supervisões.
Contudo, como este trabalho está inserido no âmbito acadêmico, torna-se aqui
então necessário sistematizá-los, com todo o cuidado para que não sejam
confundidos com um manual de procedimentos. Miller (1997, p.222) nomeia de
“discurso do método” essa tentativa de formalização dos princípios da prática
clínica, assinalando, ao mesmo tempo, a importância de não se pretender esgotar
tais questões.
41
2 A CRIANÇA COMO ANALISANTE
2.1 Desenvolvimento e estrutura
Com os avanços da teoria e da clínica psicanalítica, encontram-se cada
vez mais articulações que apontam para especificidades da clínica com bebês,
crianças, adolescentes, adultos e idosos. Cada um desses ‘tempos’ da
experiência humana leva a clínicas diferenciadas que impõem certas condições
para sua realização. O presente trabalho é uma pesquisa teórica com o objetivo
de sistematizar questões relevantes ao estabelecimento das condições para a
análise e a direção do tratamento na psicanálise com crianças. A psicanálise com
bebês e com adolescentes são campos clínicos que fazem a borda e, de certa
forma, delimitam a psicanálise com crianças, tocados aqui apenas
superficialmente.
Como a criança se apresenta na clínica psicanalítica? Como a psicanálise
pode ler esse sujeito? Por que recortar o ‘tempo criança’? Quais as implicações
desse tempo para o sujeito inconsciente?
Toda escanção da experiência humana em fases distintas remete à
articulação entre a noção de estrutura, da qual o sujeito do inconsciente é efeito, e
de desenvolvimento, que inclui a passagem do tempo e as interações do
organismo com o meio: como pensar então a articulação entre desenvolvimento e
estrutura na infância?
O próprio Freud parece apresentar em sua obra uma perspectiva que
acentua a idéia de desenvolvimento, bem ilustrada no desenvolvimento libidinal
42
infantil proposto com os três estádios - oral, anal e fálico - a qual, antes de tudo, já
revela uma preocupação com os efeitos da passagem do tempo na subjetividade.
Karl Abraham deu seqüência e destaque a essa perspectiva que, posteriormente,
abriu margem, a partir de leituras reducionistas, a equívocos desconcertantes
sobre a teoria psicanalítica. Lacan dedicou boa parte de seus seminários à crítica
dessa psicanálise distanciada dos enunciados freudianos fundamentais, a qual
ingenuamente pregava a possibilidade de um desenvolvimento harmonioso levar
a um estado libidinal genital propiciador do encontro com o objeto ideal.
Em seus avanços teóricos, o próprio Freud percebe a inadequação dos
esquemas de desenvolvimento para a apreensão do universo psíquico,
recorrendo então à abordagem do dualismo pulsional.
Esse desfecho exprime bem o que há de problemático na própria
perspectiva de desenvolvimento, na medida em que ela aparece
não poder ser congruente com aquilo de que se trata no psíquico,
pelo menos a partir do momento em que se reconhece aí, com a
libido, o desejo em ação. (GUILLERAUT, 1996, p.121).
Nota-se que a referência ao tempo se mantém, porém elevando-o “à
dignidade de uma memória, de uma historicidade memorial”. (GUILLERAUT,
1996, p.121-124).
Em Lacan, encontra-se um eco dessa formulação:
O que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é
sua história – ou seja, nós o ajudamos a perfazer a historização
atual dos fatos que já determinaram em sua existência um certo
número de “reviravoltas” históricas. [...] Assim, toda fixação numa
pretensa fase instintual é, antes de mais nada, um estigma
histórico. [...] Dito de maneira sucinta, os estádios instintuais já
estão, ao serem vividos, organizados como subjetividade.
(LACAN, 1953, p.263).
Um ponto chave para o interesse central deste trabalho é a reflexão sobre
a constituição do universo psíquico a partir da própria dimensão inconsciente, e
43
não da sua exclusão, como é comum nas teorias desenvolvimentistas. Para tanto,
é preciso articular sujeito e estrutura.
Miller, no texto Ação da estrutura (1996, p.11), afirma que:
O estruturalismo psicanalítico realiza, a nosso ver, a
exportação legítima delas [estruturas lingüísticas], porque
seus objetos são experiências: uma subjetividade
ineliminável está situada aí e elas se desenvolvem segundo
seu tempo interior, indiscerníveis do progresso de sua
constituição. A topologia da estrutura não contradiz desde
então sua dinâmica, que escande o deslocamento de seus
elementos.
Estrutura, portanto, é o que localiza uma experiência para o
sujeito que ela inclui.
A estrutura da qual fala a psicanálise antecede o sujeito por se tratar de
uma estrutura lingüística originária, ao mesmo tempo em que o inclui. No campo
da linguagem, portanto, o desenvolvimento cede seu lugar à história, de certo
modo já presente nas elaborações freudianas. O processo de aquisição da
linguagem não é objetivo, nem tampouco é garantida com a simples maturação
do indivíduo: é o processo através do qual cada sujeito vivencia a própria
subjetivação, conferindo sentido[s] a cada fato no ‘só-depois’, tempo de retroação
de um significante sobre outro, tempo subjetivo que Lacan destaca em sua leitura
da obra freudiana.
Cirino, também nesse esforço de clarear os impasses da articulação entre
estrutura e sujeito, afirma:
O estruturalismo considera que a estrutura é constituída por um
sistema de relações cujos elementos não são entidades
positivas, fixas e preexistentes, mas unidades diacríticas, isto é,
negativas, relativas, opositivas. [...] as partes se inserem na
totalidade de acordo com critérios de ordem e valor definidos
pela lei que constitui o conjunto: cada elemento depende dos
outros e só pode ser o que é na e pela relação com eles. Enfim,
diferentemente da idéia de organização, o conceito de estrutura
em psicanálise implica não só em um formalismo lógico-
matemático, mas também na sua inscrição inconsciente.
(2001,
p.111-112).
44
É portanto a relação entre os elementos que compõem a estrutura que vai
caracterizá-la. O lugar que determinado elemento ocupa nos diferentes tempos da
estruturação confere a cada um desses mesmos elementos propriedades
singulares, e o sujeito, em sua constituição, também sofre os efeitos de tais
mudanças. Como então pode ser levado em conta o tempo nesse contexto?
Sabe-se que os ordenamentos lacanianos propostos com relação às
encruzilhadas psíquicas de um sujeito no percurso de sua própria constituição
estão fundamentados em instâncias lógicas e não cronológicas. Lacan, ao
introduzir a questão do tempo lógico para se pensar o sujeito do inconsciente e
uma clínica que de fato o inclua, formulou uma contribuição de capital
importância, levando aqueles que se encontram com crianças nos seus
consultórios a interrogarem sobre como tal tempo se articula dialeticamente com o
tempo cronológico. Terreno controverso, minado com posições bastante distintas,
mesmo no interior do campo lacaniano.
Rosine e Robert Lefort afirmam, por exemplo, que o sujeito do inconsciente
é sempre o mesmo. “Não há especificidade na psicanálise de crianças. A
estrutura, o significante e a relação com o Outro não concernem de maneira
diferente à criança e ao adulto. É isto que faz a unidade da psicanálise.” (1991,
p.13). A tentativa de evitar os equívocos desenvolvimentistas de alguns
psicanalistas levou esses autores a defenderem a essência da psicanálise de
modo talvez excessivo, incorrendo, por sua vez, também em equívoco. Apesar da
posição dos Lefort ter sido muito importante para a legitimação da psicanálise
com crianças, acabou desconsiderando inteiramente a articulação entre o tempo
do desenvolvimento e o tempo lógico, nódulo teórico essencial para a psicanálise
com crianças. Se, por um lado, é fundamental contemplar a temporalidade lógica
45
na constituição do sujeito, por outro, não se pode deixar de atentar para uma
certa cronologia em jogo.
A crítica a essa perspectiva lacaniana estruturalista, representada aqui
pelos Lefort, aponta para uma implícita dissolução da noção de criança, a qual,
reduzida meramente a uma denominação cronológica, acaba, assim, tornando-se
logicamente incompatível com a concepção lacaniana de sujeito. Miller (1992,
p.10) destaca a importância de se evitar esse radicalismo e preservar a amplitude
do conceito de criança:
Creio que o fato de nos separarmos do ponto de vista do
desenvolvimento, não significa que o fator tempo não seja
tomado em conta. E o fato de que os elementos já estejam
solidários na estrutura, não impede que o encontro do sujeito
com esses elementos tenha uma variável, contingência ou pelo
menos uma indeterminação neste encontro. Sabemos que o
encontro do sujeito com a sexualidade, será um mau encontro;
há algo de estrutural nisso; mas a forma, o momento, etc., isso
não se pode deduzir, isso tem uma indeterminação. Creio que o
tempo lógico que pertence à dimensão significante da estrutura,
deve ser complementado com o tempo lógico ao nível do objeto
pequeno a. Há um fator temporal na libido, para tomar a palavra
freudiana, porque há deslocamento da libido, e isso é o que
podemos apreender de Abraham, e podemos seguir no tempo
como se desloca essa libido. E há uma definição de criança: é o
sujeito cuja libido não se deslocou dos objetos primários. Não
vou dizer que é uma excelente definição, mas na libido não é
indiferente o fator temporal. É por isso que a perspectiva do
desenvolvimento se introduziu a propósito da libido mesma.
Tal formulação é valiosa por apresentar uma definição psicanalítica de
criança que leva em conta o fator temporal na constituição do sujeito. Nessa
mesma vertente, da criança como um sujeito cuja libido não se deslocou dos
objetos primários, Laurent (1994, p.32) ainda acrescenta que os objetos não têm
a mesma incidência dependendo da idade da criança, o que caracteriza “uma
espécie de desenvolvimento lacaniano do sujeito, desenvolvimento tomado na
estrutura”.
46
Ao comentar o jogo do Fort-da descrito por Freud a propósito da
estruturação do campo simbólico para a criança, Lacan reconhece claramente
algo de inacabado na infância, localizando assim o “ponto de inseminação de uma
ordem simbólica que preexiste ao sujeito infantil e segundo a qual será preciso
que ele se estruture.” (LACAN, 1958a, p.601).
Partindo dessa formulação, Elsa Coriat, denuncia duramente a
incompatibilidade entre as teses de Lacan e os autores que afirmam
categoricamente que o sujeito está estruturado do mesmo modo desde o início.
A estrutura, desta vez a do sujeito, não pode ser considerada por
nós como constante nos diferentes tempos lógicos de sua
constituição. Desde o tempo zero em que, pela primeira vez,
surge o sujeito no real, passando pelos tempos em que
‘necessita estruturar-se’, até chegar ao tempo em que o sujeito
já está estruturado, a estrutura (mesmo se, de modo geral,
tivermos a preferência de considerá-la sempre a mesma) vai se
estruturando em um caminho que consiste em ir passando por
configurações onde os mesmos elementos não guardam as
mesmas relações entre si. (CORIAT, 1997, p.294).
Elucida que a estrutura do sujeito pertinente à clínica não é composta
somente de significantes e, levando em conta as dimensões real, simbólica e
imaginária, aponta não somente alguns dos elementos que estão em jogo - a, S1,
S2, Outro, outros, s(A), falo - como também o fato de que a relação do sujeito
com cada um desses elementos não é a mesma ao longo dos diferentes tempos
da constituição.
Ressalta, ainda, a evidência de que os tempos lógicos apenas se
desdobram como tais com a passagem do tempo, medido cronologicamente. Os
tempos lógicos são equivalentes para a constituição de qualquer sujeito, enquanto
os tempos cronológicos variam “dentro de certa margem temporal. Por exemplo:
47
não é arbitrário nem casual, não é um deslize de Lacan, que ele situe o estádio do
espelho entre os seis e os dezoito meses.” (CORIAT, 1997, p.278).
Outra autora importante nessa discussão é Bernardino, com a noção de
‘psicose não-decidida’ da infância
13
, a qual só faz sentido a partir da leitura de
que há nesse período da vida algo de inacabado em relação à estruturação,
sugerindo que a prontidão de uma intervenção clínica poderia talvez viabilizar a
ordenação da estrutura na direção da possibilidade da emergência do sujeito do
desejo. A autora compreende estrutura do sujeito como
[...] a resultante de um processo de construção, composta por
diversas operações psíquicas essenciais – aí compreendendo o
entrecruzamento dos tempos lógico e cronológico – que
pressupõe a relação com um outro da espécie, agente que
desempenha a função de Outro. (BERNARDINO, 2004a, p.36).
Retoma assim a articulação entre tempo e inconsciente, no sentido de
sustentar um entrecruzamento das noções de desenvolvimento e estrutura,
propondo uma definição de desenvolvimento compatível com a abordagem
psicanalítica, na qual o atravessamento das diferentes intersecções de tempos
lógicos e momentos cronológicos permite “o processo simbólico de inscrição e de
passagem de um sujeito do tempo infantil ao tempo de apropriação da estrutura,
em retroação constante [...]”. (BERNARDINO, 2004a, p.57).
Soler (1994, p.9) também contribui para esse debate, propondo uma
diferença entre a criança-objeto e a criança-sujeito, uma vez que, inicialmente, a
criança não é um sujeito, tanto quanto é um objeto para o Outro: “Não podemos
falar de psicanálise com crianças no sentido próprio sem questionar para cada
criança o estado de efetuação da estrutura que ela apresenta.”
13
Cf. Bernardino (2004) As psicoses não decididas da infância : um estudo psicanalítico. Casa do Psicólogo,
São Paulo.
48
Pode-se, então, afirmar que o sujeito do inconsciente, embora atemporal,
sofre as conseqüências das operações lógicas que atravessa ao longo de sua
constituição. Noutros termos, o sujeito do inconsciente não ter ‘idade’ não implica
que o sujeito na infância seja sempre igual, quer a criança tenha dois ou dez
anos, por exemplo. No decorrer do tempo, o sujeito vai enfrentando certos
impasses subjetivos que acarretam transformações na sua leitura e ação no
mundo, e na organização dos elementos essenciais à estruturação psíquica. Não
se está afirmando com isso que exista um sujeito do inconsciente de 2 anos, 3
anos, e assim sucessivamente, mas que as encruzilhadas psíquicas que
atravessa no decorrer de sua estruturação, implicam em transformações nesse
mesmo sujeito, sendo somente na adolescência que os elementos adquirirão uma
maior estabilidade na estrutura.
Portanto, a psicanálise com crianças não é nem uma especialidade, o que
demandaria do analista uma formação técnica determinada, tampouco uma
clínica equivalente à realizada com adultos, sem qualquer atenção às
singularidades da infância. A criança é, sim, um analisante de pleno direito e,
justamente por isso, impõe certas especificidades à clínica que, norteada pelos
mesmos eixos teóricos, difere apenas quanto às condições para sua realização.
O que determina tais especificidades é simplesmente o fato de a criança
ainda estar armando sua estrutura, e o engendramento do sujeito, que dela
emergirá, sofrer os efeitos desse percurso. Para estruturar-se como sujeito, a
criança depende irremediavelmente de um Outro sustentado por um agente de
linguagem, personagem que lhe nutrirá um desejo, dirigindo-lhe demandas, o que
propiciará o seu desenvolvimento. Essa perspectiva é bastante diferente de uma
suposta evolução natural em estádios e parece claramente ir ao encontro da
49
afirmação de que “é na dialética da demanda de amor e da experiência do desejo
que se ordena o desenvolvimento”. (LACAN, 1958b, p.700).
Essa particularidade da infância ser o tempo da constituição do sujeito,
finalizada apenas na adolescência, traz conseqüências fundamentais,
determinantes de todas as outras assim chamadas especificidades na clínica
psicanalítica com crianças.
2.2 O sujeito entre a linguagem e o gozo
Na Conferência 34, 1932, Freud afirma que o fato de a criança ainda não
ter constituído um supereu é o que determina a sua principal particularidade,
apresentando-o, assim, como o divisor de águas que permite caracterizar o
funcionamento da criança em contraposição ao do adulto.
A instância do supereu se inscreve a partir da estruturação do sujeito no
campo do Outro, realizada na infância. “O supereu é o herdeiro da operação de
tomar o significante do Outro, de apreendê-lo, formando-se dos restos das
mensagens de autoridade dos pais” e demais adultos que exercem uma notória
influência sobre a criança. (VIDAL, 2001, p.76). É, portanto, a instância que
articula a transmissão dos antepassados, realizada pelo Outro primordial,
decorrendo do atravessamento do Édipo e do encontro com a falta no Outro.
“Determinado pela castração, que instaura a cisão definitiva do sujeito, o supereu
presentifica o paradoxo em relação ao gozo, exigindo, por um lado, a satisfação
imperativa da pulsão e, por outro, encarnando a mais severa proibição ao gozo.”
(VIDAL, 2001, p.79).
50
O supereu, marcando o sujeito com um imperativo inalcançável de gozo
absoluto, condensa, assim, o paradoxo da existência humana e do próprio
funcionamento psíquico, caracterizados pela busca da satisfação plena e pela
impossibilidade dessa realização, interditada, revestida de proibição. Braunstein
(1999, p.37) chama a atenção para o fato de esse imperativo ser também uma
espécie de chamado, no sentido da dívida que o sujeito tem com algo que lhe é
superior, sua causa e origem. Dessa forma, ainda que o sujeito não tenha pedido
para existir, deve assim mesmo prestar contas a seu criador, “oferecer sua libra
de carne a um Deus inclemente [...] o gozo é consubstancial ao sacrifício”.
A constituição do supereu é, então, uma conseqüência da estruturação do
sujeito, da instalação da lei simbólica, tendo como ponto de amarração a
operação definida por Lacan como metáfora paterna, que introduz o significante
primordial nome-do-pai, centro a partir do qual a subjetividade se organiza. Lacan
confere especial destaque à castração, não como a ameaça aterrorizante
postulada por Freud, mas como interdição salvadora que separa a criança do
gozo da mãe, caracterizando a transmissão necessária realizada pela função
paterna de modo a abrir o caminho para a instalação do desejo.
Pretende-se aqui articular como o sujeito se constitui na infância, entre a
linguagem e o gozo, pela operação da castração. No item anterior discutiu-se o
lugar da linguagem como condição do sujeito inconsciente, passa-se agora a
abordar o papel do gozo e a operação de castração.
Lacan afirma que o complexo de castração tem uma função de nó,
definindo uma posição inconsciente.
1º. na estruturação dinâmica dos sintomas, no sentido analítico
do termo, quer dizer, daquilo que é analisável nas neuroses, nas
perversões e nas psicoses;
51
2º. numa regulação do desenvolvimento que dá a esse primeiro
papel sua ratio, ou seja, a instalação, no sujeito, de uma posição
inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo
ideal do seu sexo, nem tampouco responder, sem graves
incidentes, às necessidades de seu parceiro na relação sexual,
ou até mesmo acolher com justeza as da criança daí procriada.
(LACAN, 1958b, p.692).
Com relação ao gozo, complementa: “A castração significa que é preciso
que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei
do desejo.” (LACAN, 1960, p.841). Essa oposição fundamental entre gozo e
castração, ou ainda, gozo e desejo, é o que ilumina o eixo a partir do qual se
articula a direção do tratamento na psicanálise.
Braunstein, autor considerado o mais importante intérprete da noção de
gozo em Lacan, cujas formulações apresentadas no livro Goce, 1999, são
referências importantes na presente discussão, afirma que o inconsciente,
estruturado como uma linguagem, depende do gozo, enquanto substância que
habita o ser antes da linguagem, sendo assim um aparato que serve à conversão
desse gozo em discurso, operação possível a partir da castração.
14
Ao aparecer no mundo, a carne humana estaria inundada pelo gozo do
ser,
15
ao qual deve renunciar para adentrar o universo propriamente humano de
intercâmbios orientados pela significação fálica. Nesse sentido, a experiência
recorrente da castração do Outro, seu inevitável [des]encontro com a criança
tomada como o objeto que lhe serviria para alcançar uma completude que
redunda impossível, impõe à criança sucessivas renúncias ao gozo do corpo, fora
14
As articulações a respeito do gozo que aparecerão nos próximos parágrafos estão referidas a esta obra de
Braunstein.
15
Braunstein reconhece uma tendência dentro do campo lacaniano em identificar gozo do ser e gozo do
Outro, mas preserva tal distinção na tentativa de contemplar a diferença clínica existente entre o gozo do ser
- vinculado à Coisa, atribuído imaginariamente como gozo do Outro, um Outro devorador/devastador - e o
gozo do Outro - o outro sexo, feminino. Este trabalho apresenta gozo Outro, quando se refere ao gozo do
outro sexo, e mantém as duas denominações, gozo do ser e gozo do Outro, para se referir a esse gozo do
corpo anterior à simbolização, fazendo a diferença quando se toma o ponto de vista da criança - gozo do ser,
ou do Outro - gozo do Outro.
52
da linguagem, para então irromper como sujeito nessa trama já constituída pela
própria linguagem. É o tempo da castração que permite ler, retroativamente, o
tempo anterior como dominado pelo gozo do ser. A partir da chamada invocante
do Outro, apelação subjetivante, o gozo do ser é interditado pela castração,
obrigando a passagem do gozo pela linguagem.
A criança, sofrendo essa traumatizante experiência de ser desde o
nascimento tomada como objeto do gozo do Outro, tenta defender-se, enquanto
um ‘proto-sujeito’, encapsulando tal gozo em seu íntimo, tornando-o o ‘obscuro
objeto do ser’, saber não-sabido, inscrito no inconsciente. Realiza, assim, uma
fixação de gozo que, desde então, passa a comandar o engendramento do
sujeito. É a partir desse núcleo, letra escrita pelo Outro, que a fantasia se
articulará e o inconsciente realizará deciframentos em suas manifestações.
Desse modo, compreende-se a infância como o tempo do assujeitamento
do gozo à castração e, conseqüentemente, da construção do dispositivo
discursivo como a possibilidade de um sujeito se dizer a partir de sua apropriação
da língua. A palavra/fala como um canalizador, abrindo o acesso ao gozo fálico,
faz-se possível, assim, com a submissão do sujeito às leis da linguagem.
Braunstein (1999, p.34) descreve esse processo: “A palavra se grava na
carne e faz desta carne um corpo que é simbolizado nos intercâmbios com o
Outro. Falar, pensar, passar pelos significantes da Lei: tais são os efeitos da falta
do objeto que toma assim o lugar da Causa (Ding).” Dessa passagem do gozo do
ser, localizado no corpo, para o gozo fálico, linguageiro, destaca-se o objeto a.
Da coisa ao falo: este é o sentido da rota freudiana que acaba
dando o lugar central na psicopatologia ao complexo de
castração e suas vicissitudes, reorganizador por retroação
daquilo que ocorreu antes de ter se estabelecido a primazia
fálica. Este processo pode ser entendido como uma sucessão de
migrações, exílios e esvaziamentos do gozo. A sexualidade
53
passa por ‘fases’ que vão demarcando esta longa jornada que
leva do real anterior e exterior à simbolização, à Coisa do
começo, ao real que sobra como saldo impossível depois da
simbolização e que se pretende apreender com as pinças da
palavra mas escorre, e ainda, se produz como efeito de discurso
pela palavra mesma, o objeto a, o fugidio plus de gozo.
(BRAUNSTEIN, 1999, p.34).
Nesse jogo de intercâmbios com o Outro entrega-se algo de real, esse
gozo fora da linguagem, em troca de uma recompensa simbólica, o amor do
Outro, reconhecimento do desejo. O saldo do jogo é o objeto a, manifestação da
falta-em-ser, causa do desejo. É, portanto, fundamental que esse jogo possa se
estabelecer na infância, ou as conseqüências para o sujeito podem ser fatais,
deixando-o confinado ao lugar de objeto a na fantasia do Outro.
A origem do conceito de objeto a remonta à noção de das Ding - a Coisa -
apresentada por Freud como um objeto perdido que o sujeito busca reencontrar:
puro real, anterior a toda simbolização, núcleo de impossibilidade encerrando o
mais íntimo e inacessível ao sujeito. Uma vez que o real só pode ser abordado
pelo significante, a Coisa pode ser suposta somente a partir da incidência da
linguagem, que introduz a falta. Assim, a lei da linguagem é o que [re]cria a Coisa
e a define como perdida. Nesse sentido, o trabalho do significante supõe um real
prévio - a Coisa - e produz um saldo inassimilável e incomensurável - o gozo
perdido, causa do desejo, objeto a, real ulterior. O objeto a é, então, um produto
da incidência da linguagem no ser. É porque a Coisa falta que os objetos do
mundo aparecem e se multiplicam, que os seres falantes entram no mercado do
gozo com o Outro e são constituídos como sujeitos. Os objetos, portanto, são
derivados da perda, representantes fantasmáticos.
Do gozo do ser, pela intromissão necessária do Outro e de sua Lei que
exigem a entrega desse gozo ao mercado de intercâmbios, resta uma falta-em–
54
ser, o desejo. Ocupa-se a vida com a tentativa de dizê-lo, embora tal missão já se
apresente impossível em princípio, pela própria incompatibilidade entre o desejo e
a fala.
Na infância, o sujeito experimenta renúncias sucessivas ao gozo que serão
ressignificadas a partir da castração. Ao sucumbir à castração, o gozo do corpo
tem que passar pelo significante, sendo, assim, redimensionado em gozo fálico.
Esse esvaziamento de gozo ressignifica todas as perdas anteriores em relação ao
falo, significante da falta como universal a todos os seres falantes, o qual divide o
campo da sexuação em duas metades não complementares, a do homem e a das
mulheres. Entre o homem e a mulher há, então, o muro da linguagem.
O falo é um significante ímpar, inarticulável, ao qual vem responder o
significante nome-do-pai, esse sim articulável, que substitui o falo como desejo da
mãe, tornando-se o significante primordial que produzirá a significação fálica.
A castração tem uma função de “habilitação para o gozo, doadora de uma
relativa e precária imunidade contra esse maligno gozo do Outro que deixa o
sujeito fora do simbólico”. (BRAUNSTEIN, 1999, p.82). Como lei do desejo,
transforma a carne em corpo, desaloja o gozo ilícito, interdita-o, desloca-o,
prometendo em seu lugar um gozo legítimo, o gozo fálico. O sujeito através da
castração renuncia ao gozo do Outro, fora da lei, em nome de um outro gozo,
dentro da lei, garantindo-se assim de uma só vez a dimensão possível do gozo e
a viabilidade do laço social.
Braunstein (1999, p.53-61), numa analogia feliz, afirma que, assim como
um diafragma fotográfico regula a passagem da luz ideal, a palavra regula a
passagem do gozo permitido. Desse modo, o diafragma que se fecha diante do
excesso de luz corresponderia ao bloqueio defensivo do sintoma, represando o
55
excesso de um gozo intolerável, experimentado então como sofrimento. Assim,
sugere a palavra como o diafragma do gozo. A análise cria condições para que o
diafragma possa voltar a se abrir, liberando assim a passagem do gozo por esse
dosador constituído pelo atravessamento da castração e a conseqüente
incidência do nome-do-pai como significante fálico. O discurso é o que permite ao
ser falante acesso ao gozo na escala invertida da Lei do desejo.
Antes da estabilidade que pode ser alcançada com a instalação da
castração, dá-se um progressivo esvaziamento do gozo através da canalização
das pulsões, na medida em que o sujeito vai construindo seu dispositivo
discursivo, levando à emergência não de um gozo que se poderia chamar de
sintomático, mas de um gozo apalavrado.
A castração proporciona, então, uma ressignificação das perdas anteriores
atualizadas em relação ao falo, constituindo-se na operação lógica fundamental a
partir da qual se pode falar propriamente em sujeito do desejo inconsciente. “A
divisão primordial, que põe em movimento a sexualidade em seu sentido
psicanalítico é a divisão do sujeito em relação ao gozo induzida pela castração, e
é esta que leva à constituição do objeto como suplência do gozo que falta.”
(BRAUNSTEIN, 1999, p.101).
A castração, como operação simbólica fundante da ordenação do real,
inaugura, assim, o espaço para a passagem do gozo ao desejo: eis o percurso a
ser realizado pelo sujeito na infância.
56
2.3 ‘Não há relação sexual’
Prosseguindo a discussão, tome-se a resposta de Lacan, no seminário Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao questionamento de Dolto sobre
a necessidade de se referir a estágios para pensar a criança pequena:
A descrição dos estágios, formadores da libido, não deve ser
referida a uma pseudo-maturação natural, que permanece
sempre opaca. Os estágios se organizam em torno da angústia
de castração. O fato copulatório da introdução à sexualidade é
traumatizante – aí está um fisgamento de vulto – e tem uma
função organizadora para o desenvolvimento.
A angústia de castração é como um fio que perfura todas as
etapas do desenvolvimento. Ela ordena as relações que são
anteriores à sua aparição propriamente dita – desmame,
disciplina anal etc. Ela cristaliza cada um desses momentos
numa dialética que tem por centro um mau encontro. Se os
estágios são consistentes, é em função de seu registro possível
em termos de mau encontro.
O mau encontro central está no nível do sexual. Isto não quer
dizer que os estágios tomam uma coloração sexual que se
difundiria a partir da angústia de castração. É, ao contrário,
porque essa empatia não se produz, que se fala de trauma e de
cena primitiva. (LACAN, 1964, p.65).
Lacan afirma que a angústia de castração, provocada pelo mau encontro –
sexual e traumático – é o motor da própria constituição psíquica presente desde
os primórdios da constituição do sujeito. É fundamental pensar como esse mau
encontro se apresenta em cada estágio, pois o registro possível que se pode
fazer do mesmo em cada momento é diferente, ainda que esteja sempre
tensionado pelo fio da castração.
O supereu, aqui na concepção recortada em Freud, seria o herdeiro da
transmissão desse mau encontro como o ponto de virada na estruturação do
sujeito.
Dependente de uma tiqué, trata-se de uma marca que não é da
ordem de uma identificação que coletiviza, mas que, ao contrário,
se define como a marca do que faz a singularidade de cada
57
sujeito. Venha ele das primeiras excitações provenientes do
próprio corpo ou do encontro com um gozo que vem do Outro,
esse primeiro encontro com o sexual contém uma verdade
profunda. Nele, o sujeito se depara, pela primeira vez, com um
desamparo estrutural, com a angústia traumática que traduz o
encontro com um impossível, com uma falta no Outro: S(A/).
[...]
O trauma maior do ser humano é o complexo de castração,
estrutura pela qual todo sujeito se confronta a uma falta
irredutível que marca o sujeito na sua constituição de sujeito. O
confronto primeiro desta com essa falta excede as possibilidades
iniciais de resposta do sujeito e lhe exige a invenção de uma
resposta particular como saída deste complexo. Nesse sentido,
nós podemos dizer que ‘o trauma é o nome freudiano do não há
relação sexual de Lacan’, cujo preço é a divisão subjetiva.
(OLIVEIRA, 2004, p.17-18).
Assim, o aforismo lacaniano ‘não há relação sexual’ é central na chamada
última clínica de Lacan. Essa formulação remete ao traumatismo desse mau
encontro, essencialmente sexual, tomado como a forma primeira pela qual se
apresenta a função da tiquê, ou seja, do real como encontro faltoso. Lacan (1964,
p.57) exclama: “Não é notável que, na origem da experiência analítica, o real seja
apresentado na forma do que nele há de inassimilável – na forma do trauma,
determinando toda a sua seqüência e lhe impondo uma origem na aparência
acidental?”
Essa transmissão realizada pelo Outro via trauma dá-se, assim, segundo
um real inassimilável, encerrando, portanto, um paradoxo: a transmissão do
intransmissível. Desse modo, a criança é impelida a construir sua fantasia a partir
do trauma para contornar esse real inconfrontável. A fantasia como uma estrutura
mínima, matriz de significação, é o substrato a partir do qual o sujeito se organiza
em sua relação intangível com o objeto [causa] de seu desejo, objeto a, extraído
desse encontro inaugural e faltoso da criança com o Outro. A fantasia é a
resposta do sujeito à falta-em-ser. Contudo essa passagem do trauma à fantasia
ainda não manifesta na infância todas as conseqüências que tal articulação entre
58
o sujeito e o impossível do encontro com o objeto de seu desejo vai trazer no
adulto. A infância é o tempo de construção dessa fantasia, que assumirá uma
forma mais estável e bem-acabada somente na adolescência.
16
A prerrogativa da inexistência da relação sexual é o que fundamentalmente
orienta a prática clínica do campo lacaniano. “A única verdade da psicanálise, de
acordo com Lacan, é que não há relação sexual, a questão é induzir o sujeito a
encontrar-se com essa verdade”. (FINK, 1998, p.151). Tal questão também se
coloca na psicanálise com crianças: como induzir a criança a esse [mau]encontro
e qual o registro então possível a ela dessa verdade?
A não-relação sexual nunca se escreve. Ela resta sempre como
uma regra que falta a ser inventada, mas que sempre faz falta. É
o que faz com que Lacan tenha dito que o traumatismo é, em
última instância, o traumatismo sexual [...] O que é comum a toda
relação intersubjetiva é a não existência da relação sexual, falha
na qual virão se inscrever os objetos fragmentados do gozo.
(LAURENT, 2004, p.26-27).
No decorrer da constituição subjetiva, a inexistência da relação sexual vai
sendo registrada na medida do encontro da criança com os impasses advindos do
real e segundo os instrumentos que tiver à sua disposição para contorná-los.
Como afirma Braunstein (1999, p.42), a história de cada um é a história dos
modos de faltar o objeto impossível, são os resultados vivenciais da inexistência
da relação sexual. Trata-se da transmissão da falta nos seus diferentes registros,
com a castração como articulador central.
A inexistência da relação sexual desvela a ausência de complementaridade
e simetria entre os dois sexos, decorrentes de posições distintas em relação à
castração e à função fálica, através do processo que Lacan chama de sexuação.
16
S a, fórmula da fantasia na álgebra lacaniana, que pode ser lida como o sujeito do desejo em sua
relação de conjunção/disjunção com o objeto de gozo.
59
O falo é um significante sem par, ordenando posições assimétricas e gozos não
conciliáveis entre homem e mulher. A impossibilidade real da relação sexual se
deve à heterogeneidade dos gozos: do lado masculino, fálico e linguageiro e do
lado feminino, passando pelo corpo para além do falo. Esse gozo feminino, gozo
Outro, do Outro sexo, só pode ser alcançado, entretanto, uma vez aceito o gozo
fálico. O falo, de uma forma ou de outra, impõe sua inegável presença, como
limite, para o gozo masculino, ou como borda a ser ultrapassada, para o gozo
feminino. O gozo da mulher, portanto, não é complementar ao do homem, sendo-
lhe, antes e fundamentalmente, suplementar, o que revela entre os sexos uma
desproporção intrínseca que encarna o próprio impedimento para a realização do
ideal de completude implícito na proposta do amor genital.
Melman (2004, p.26) refere-se à inexistência da relação sexual como uma
patologia central que organiza os discursos. O homem na relação com uma
mulher, relaciona-se, em verdade, com o objeto de sua fantasia que uma mulher
pode vir a representar. A mulher, por sua vez, não mantém uma relação com o
homem, mas com o instrumento que lhe interessa e acontece de ser encontrado
no homem. Em ambos os casos, a relação não é com o parceiro sexual, mas com
o próprio objeto.
“Do gozo ao desejo, do desejo ao amor, e o amor, por sua parte, recaindo
sobre um deslocamento da imagem de si mesmo. Não, não há nada que se possa
fazer, a relação sexual não existe.” (BRAUNSTEIN, 1999, p.28). O amor é, assim,
suplência para o fato de não haver relação sexual, dá forma ao desejo e faz
recuperar fragmentos de gozo.
Os pais, enquanto personagens centrais da trama familiar, cumprindo com
as primeiras e fundamentais transmissões necessárias ao engendramento de um
60
sujeito na infância, referem-se a essa impossibilidade da relação entre os sexos
segundo uma orientação própria que influencia diretamente o modo de transmiti-la
à criança, a qual se vê cercada pela questão desde o início. A entrada no mundo
humano, ou seja, o mundo falado, é realizada por um agente de linguagem, um
Outro primordial perfazendo a transmissão da própria linguagem, leito a partir do
qual um sujeito pode nascer. Essa entrada na linguagem é, então, flagrantemente
traumática por comportar em seu cerne uma não-relação afinal.
A verdade do par familiar é, certamente, que ele não funciona
bem, que ele claudica, como diz Lacan. A claudicação do sexo é
conseqüência do fato de que 'não há relação sexual'. Como a
criança se arranja com essa verdade? Ela constrói um romance,
o romance familiar, assim ela se arranja para que os significantes
copulem. O sintoma da criança é um modo de ajustar-se com
essa impossibilidade da relação sexual. (NOMINÉ).
17
A diferença essencial entre adulto e criança acerca dessa verdade da não-
relação sexual refere-se, portanto, à possibilidade do ato sexual propriamente
dito.
Embora a sexualidade seja organizada através de um ‘infantil’ ao
qual o sujeito se reporta – seja qual for sua idade – quando se
trata de seu desejo, seu gozo, suas pulsões parciais, a
possibilidade de exercício desta sexualidade muda sua posição.
Não há equivalência entre um sujeito em posição de criança, para
quem vigora uma promessa de gozo postergada e o enigma do
desejo do Outro sustentado pelas figuras parentais, e o adulto
que se torna – pelo menos potencialmente – capaz do ato sexual,
e é chamado a ser responsável por este, bem como encontrar
uma forma de lidar com o enigma do Outro sexo. (BERNARDINO,
2004b, p.59).
Torna-se assim claro que, embora a inexistência da relação sexual seja
uma questão crucial para todo e qualquer sujeito, desde sua entrada no campo da
linguagem, a criança, especificamente, por ainda não se confrontar de fato com o
real do Outro sexo no encontro sexual, mantém uma posição diferente diante da
17
Citação sem referência utilizada como divulgação de seminário ministrado em São Paulo, 2005.
61
inexistência de tal encontro. A impossibilidade do ato sexual parece postergar o
encontro ‘olho no olho’ com a inexistência da relação sexual, a qual, para a
criança, aparece então revestida da prevalência do falo. Isso não significa,
entretanto, que a criança não sofra os efeitos do que possa registrar do real dessa
impossibilidade. Freud (1923, p.180) já chamava a atenção para a primazia fálica
como o que caracteriza a organização sexual infantil.
A característica principal dessa organização genital infantil é sua
diferença da organização final do adulto. Ela consiste no fato de,
para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão
genital, qual seja, o masculino. O que está presente, portanto,
não é a primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo.
Como então o real do sexo chega às crianças?
O real não varia, no sentido de que não existe mais ou menos impossível,
mas se apresenta de maneiras diferentes à criança, enquanto sujeito em
constituição, ainda construindo sua fantasia, instituindo seus reguladores de gozo
e seus instrumentos lógicos para fazer frente às irrupções desse mesmo real.
São, portanto, os modos de apreensão que diferem, promovendo nuances
diferentes nas implicações do impossível. O que faz a diferença entre o adulto e a
criança é, então, o real em jogo que, embora sempre sexual, deixa ainda
inacessível à criança todas as conseqüências do encontro com o real do sexo
vivido de fato pelo adulto. O sujeito na infância, como resposta do real ao
significante, aponta, portanto, para uma inconsistência, a qual leva Soler (1994,
p.11) a afirmar que a criança tem uma posição incompletamente decidida em
relação ao gozo.
É verdade que nem a experiência da castração, nem o gozo das
pulsões parciais, não esperam os anos, mas deixam, contudo,
em parte aberta a questão da sexualidade propriamente dita.
Entendo por isso o encontro com o outro sexo, no qual a falta da
castração não é somente determinante, no qual está em jogo o
62
encontro real de uma resposta de gozo que, para a criança, ainda
virá, impossível antecipar. (SOLER, 1994, p.11).
Tal concepção é consonante com a de Laurent na afirmação de que:
Existe algo que separa a criança da pessoa grande; certamente
não é a idade, nem tampouco o desenvolvimento, tampouco a
puberdade. No fundo, o que separa a criança da pessoa grande é
a ética que cada um faz de seu gozo. A ‘grande personne’ é
aquela que se faz responsável por seu gozo. (LAURENT, 1994,
p. 32).
Portanto, o que caracterizaria a criança é o fato de ainda não ser
completamente responsável por seu modo de gozo. A criança, às voltas com a
pergunta sobre o desejo da mãe, tem a primeira versão do impacto do real pela
via da castração materna. A interdição do incesto seria, assim, a modalidade
princeps inscrita na cultura para contornar esse impossível, apaziguando a
angústia de castração.
Michel Silvestre (1982) afirma que o real diante do qual a criança recua é
justamente a constatação de que o sujeito é constituído por dois conjuntos
diferentes, homens e mulheres, e que entre eles não há relação possível,
exatamente por causa do sexual. O complexo de Édipo vem mascarar essa
alteridade entre os sexos, ocultada pelo preço da castração, elegendo o falo como
objeto privilegiado. São esses os elementos disponíveis para contornar a questão.
O falo permite aos seres falantes de ambos os sexos se unirem imaginariamente,
aparentando-se simbolicamente. O real dessa alteridade é colocado em latência e
apenas ressurgirá quando o sujeito se reencontrar com o outro sexo, não mais
como evocador da ameaça de castração – como no primeiro encontro no qual
percebeu a diferença dos sexos – mas como revelador da impossibilidade real de
união e da exclusão irreversível que marca cada sujeito com relação ao sexo a
63
que ele não pertence. Esse segundo encontro marca a adolescência, quando, ao
reler a promessa edípica de completude, o ato sexual inaugura definitivamente a
real impossibilidade de o sujeito saber sobre o sexo e o gozo.
Esse encontro definitivo com o impossível na adolescência provoca uma
instabilidade na estrutura, impondo a necessidade lógica de reordenação dos
elementos em jogo para confrontar a inexistência da relação sexual. É a partir
desse rearranjo que a estrutura alcançará uma estabilidade até então ausente.
Lacan (1969), no texto Nota sobre a criança, trata da transmissão
irredutível necessária para a constituição subjetiva, a qual está relacionada a um
desejo não anônimo, que conjugue as funções de mãe e pai. Mãe, na medida em
que seus cuidados levam a marca de um interesse particularizado, ainda que pela
via de suas próprias faltas, e pai, na medida em que seu nome é o vetor de uma
encarnação da Lei do desejo. Noutros termos, são necessários o desejo da mãe,
por meio do qual a criança se aliena como objeto, e o nome-do-pai, significante
que barra o desejo da mãe, abrindo a possibilidade efetiva para o surgimento de
um sujeito, na operação nomeada de metáfora paterna. Essa operação inscreve
na criança a relação entre o pai e a mãe, numa primeira articulação entre os
elementos do casal parental.
Já na última etapa de seu ensino, no seminário RSI, Lacan traz
contribuições fundamentais para o avanço dessa questão, as quais implicam a
sexualidade feminina de maneira contundente.
Um pai só tem direito ao respeito, senão ao amor, se o-dito amor,
o-dito respeito, estiver, vocês não vão acreditar em suas orelhas,
père-vertidamente orientado, isto é, feito de uma mulher, objeto
pequeno a que causa seu desejo, mas que o que esta mulher em
pequeno acolhe, se posso me exprimir assim, nada tem a ver na
questão. Do que ela se ocupa são outros objetos pequeno a que
64
são as crianças junto a quem o pai então intervém,
excepcionalmente, no bom caso, para manter a repressão, dentro
do justo mi-dieu, se me permitem, a versão que lhe é própria da
pai-versão. Única garantia de sua função de pai; que é a função,
a função de sintoma tal como a descrevi ali. Para isto, basta aí
que ele seja um modelo da função. Aí está o que deve ser um
pai, na medida em que só pode ser exceção. Ele só pode ser
modelo da função realizando o tipo. Pouco importa que ele tenha
sintomas, se acrescenta aí o da perversão paternal, isto é, que a
causa seja uma mulher que ele adquiriu para lhe fazer filhos e
que com estes, queira ou não, ele tem cuidado paternal. (LACAN,
1974/75, p.23).
O avanço aqui está em definir a função do pai a partir do fato de
reconhecer como causa do seu desejo uma mulher, renunciando, assim, a ser
meramente o chefe de uma horda. O que o cuidado do pai transmite a um filho é
o gozo irredutível que advém disso. A pai-versão como única garantia de sua
função como pai é o que singulariza o sujeito, realizando uma escritura articulada
a essa transmissão de gozo.
Quanto à mãe, afirma-se uma importância até então inédita da sexualidade
feminina. Miller (1998) formula, a partir dessas colocações de Lacan, que, para a
mãe ser suficientemente boa, não basta veicular a autoridade do nome-do-pai,
mas cuidar para que a criança, por outro lado, não sature a falta da mãe. É,
portanto, fundamental que a mãe não se desvie de desejar enquanto mulher. O
que requer do pai manifestar-se também enquanto homem. Percebe-se, então,
que para constituir-se o sujeito do desejo na criança são necessários não apenas
um pai e uma mãe, como se poderia supor, mas também, e fundamentalmente,
um homem e uma mulher. Um pai que se apresente unicamente como pai,
faltando enquanto homem que goza de uma mulher, abandonaria a criança ao
gozo do Outro, e a mãe, por sua vez, caso não concedesse em ser, enquanto
65
mulher, a causa do desejo de um homem, gozaria de seus filhos ao invés de se
ocupar deles.
Não há transmissão sem conjugalidade fundadora da
parentalidade. É esta a condição: a família de origem não deve
ser fundada sobre a parentalidade, mas, ao inverso, é a
conjugalidade de um homem e de uma mulher que funda a
parentalidade. (JULIEN, 2004, p.46).
É a partir da conjugalidade entre o desejo da mãe enquanto mulher e do
pai enquanto homem “que se transmite a lei que permite ao sujeito abandonar pai
e mãe e fazer aliança com um(a) desconhecido(a); abandonar a origem torna-se
possível graças a esta borda que o inconsciente inscreve: a marca de uma
perda.” (JULIEN, 2004, p.86).
Tomando uma mulher como causa de seu desejo, o pai, em seu lugar de
homem, transmite à criança o enigma do gozo feminino. Sauret afirma que é a
partir disso que a neurose infantil se organiza. “É precisamente este significante
em falta – que faz enigma – que a criança solicita quando interroga os pais sobre
o que ela é.” (SAURET, 1997, p.41). É a falta de um significante que responda à
pergunta o que o Outro quer de mim? que leva o sujeito a construir uma resposta
fantasmática, orientada pela pai-versão. Versão que remete ao não-saber sobre a
morte, o gozo feminino, a relação sexual, remete, enfim, à incerteza transmitida
pelo pai, a qual nada mais é do que uma maneira singular de se transmitir o
intransmissível. Incerteza já seria um nome para esse inominável, mas guarda,
assim, a marca singular de um sujeito/homem/pai. Tudo em função da tentativa
sempre vã de presentificar de modo tangível o mesmo impossível, então
transmitido sob a forma impalpável da não-existência da relação sexual.
O pai é esse justo meio-deus na medida em que é tanto
representante do Pai simbólico, capaz de presidir à mais elevada
66
das modificações, pois que sustenta a substituição da coisa pela
palavra, e ocupante do lugar de pai real, quer dizer, também
capaz de sustentar a praticabilidade da incompetência em
assumir essa posição, de estar sempre em falta em relação a ela.
(LEBRUN, 2004, p.47).
Essa preciosa e singular transmissão que serve ao engendramento de um
sujeito é a própria transmissão da castração, feita pelo pai real, que pode
transmitir para a criança a relação com a lei do desejo justamente porque ele
próprio não é a lei. Noutros termos, o pai testemunha para a criança uma versão
possível de relação com a causa do desejo, qual seja, a sua própria versão. É a
transmissão de um saber sobre a falta, ou ainda, um saber-fazer com a falta.
Tem-se aqui reunidas as principais questões da psicanálise com relação à
transmissão da castração, levantadas por Freud e bastante trabalhadas por
Lacan: o que é um pai? o que o Outro quer de mim? o que quer uma mulher? É a
partir de uma articulação entre essas perguntas e as tentativas de respondê-las
que o legado se efetiva: o pai transmite o enigma do gozo feminino ao tomar,
enquanto homem, uma mulher como causa de seu desejo, apresentando, assim,
uma trama básica segundo a qual irá se conjugar o desejo do Outro para a
criança.
Abordar a sexualidade feminina seria, então, uma outra maneira de falar
desse impossível ao qual todos somos confrontados. A pergunta o que quer uma
mulher? está implícita para a criança, às voltas com uma questão anterior: o que
é uma mãe?
Assim, Lacan, diferentemente de Freud, localiza a via da maternidade
como oposta à posição feminina, mantendo, porém, uma articulação entre ambas,
na medida em que lembra à mãe o dever de preservar-se mulher, caso queira
propiciar à criança a escolha de uma posição sexuada na vida.
67
Ao se ressaltar a operação de transmissão necessária à constituição de um
sujeito, não se pode esquecer do trabalho da própria criança em tomar para si o
que lhe foi passado, apropriando-se de forma singular da herança que lhe foi
legada. Na psicanálise com crianças é de suma importância a constatação de
que, apesar da indispensabilidade do Outro para que se constitua, um sujeito
apenas se efetiva por meio das respostas que a criança produz a partir daquilo
que recebeu. Num primeiro momento, conta somente com o real de seu
organismo e a estrutura simbólica oferecida pelo Outro primordial, mas,
rapidamente, partindo dessas primeiras marcas, passa a fazer uma leitura desse
Outro e a responder conforme as próprias possibilidades.
Cada momento da estruturação do sujeito implica em impasses específicos
que levam a criança a recorrer a uma fomentação mítica de modo a estruturar um
sistema simbólico que organize seu mundo.
Um mito é sempre uma tentativa de articular a solução de um
problema. Trata-se de passar de um certo modo de explicação da
relação-com-o-mundo do sujeito ou da sociedade em questão
para outro modo – sendo esta transformação requerida pela
aparição de elementos diferentes, novos, que vêm contradizer a
primeira formulação. Eles exigem, de certo modo, uma passagem
que é, como tal, impossível, que é um impasse. Isso é o que dá
sua estrutura ao mito. (LACAN, 1956/57, p.300).
O mito como sistema simbólico visa a integrar o impossível, contornando-o
segundo uma articulação própria, tornando-o, assim, possível.
A criança vai construindo instrumentos que têm uma função lógica para dar
conta do real ao qual está confrontada ao longo de sua constituição. As teorias
sexuais elaboradas pela criança como resultado de sua atividade de pesquisa
com relação à realidade sexual, por exemplo, são mitos que constrói, em
determinado momento, para dar conta da questão da origem, caracterizados por
68
uma leitura do Outro como completo. A operação da metáfora paterna, como
momento de virada na estruturação do sujeito, é o que vai possibilitar a passagem
das onipotentes teorias sexuais infantis para a construção da fantasia na criança,
no qual a falta no Outro já está de alguma maneira incluída, qual seja, a castração
materna, e, assim, na mesma qualidade de mito, continua dando sustentamento
ao desejo, mas segundo uma nova ficção.
Desse modo, com a constante necessidade de rearticulação subjetiva,
devido às renovadas irrupções de real, a organização estrutural vigente mostra-se
insuficiente, requerendo novos e também constantes reordenamentos dos
elementos da estrutura. A criança é, portanto, obrigada a construir um novo mito
para contornar um novo impossível e dar conta desse real então renovado,
realizando assim uma transformação de seu modo de explicar o mundo. A
estrutura se reorganiza para responder a uma questão até se desestabilizar
novamente requerendo outra reorganização. O Outro tem importância
fundamental em cada um desses tempos de reorganização da estrutura, pois é
nele que a criança encontrará ou não os ‘termos’
18
necessários para sua nova
construção. A expressão cunhada por Rassial (1997), Psicogênese do Outro, é
aqui pertinente, por assinalar a importância do Outro na constituição psíquica,
desde o Outro primordial, da alienação, tesouro do significante, passando por
todas as roupagens imaginárias encontradas, chegando à S(A/).
No presente trabalho, a caracterização dos tempos da constituição
psíquica, além da castração como referência central da estruturação do
18
Tais ‘termos’ são, de fato, da ordem simbólica, acessíveis para a criança enquanto elementos da estrutura
do(s) sujeito(s) que sustenta(m) para ela o lugar de Outro, dos quais se serve para reordenar os elementos
intrínsecos à sua própria estrutura.
69
psiquismo, considera a articulação entre real, simbólico e imaginário a partir da
figura topológica do nó borromeano, visando a ampliar o entendimento e a
operatividade clínica.
Parte-se da hipótese de que os três registros vão se entrelaçar no tempo
da infância na direção da construção do nó borromeano, em um movimento de
armação da estrutura psíquica. Desde a chegada do bebê humano, os três
registros estão presentes, sobrepondo-se sucessivamente até constituírem o nó
borromeano. Como afirma Vorcaro (1997), a criança é o lugar onde se amarram:
(i) um organismo irredutível, presença inequívoca do real; (ii) uma articulação
significante que sustenta o discurso, pré-existência do simbólico, atualizado pela
alternância inicial do agente de linguagem entre presença e ausência; (iii) uma
consistência ideal, o imaginário materno, que remete às expectativas e
antecipações realizadas pelo Outro primordial da criança. A autora trabalha seis
momentos de incidência de um registro sobre o outro para chegar à formação
final do nó, mostrando a constituição subjetiva a partir desse enodamento. Sua
leitura fundamenta-se sobretudo no primeiro momento em que Lacan discute o nó
borromeano de três aros, ocupando um lugar central como responsável pela
estrutura psíquica.
Considerando as sucessivas sobreposições que resultarão no nó, torna-se
possível não somente articular as relações entre os três registros, mas também
delimitar lugares e funções. Pode-se localizar tanto os gozos definidos por Lacan -
gozo do Outro, gozo fálico e gozo do sentido (jouis-sens) - como o assim
chamado objeto a. Cada um desses gozos caracterizará o funcionamento
psíquico em tempos distintos da estruturação, o que permite discutir questões
relativas ao sintoma, ao lugar do analista, à transferência e ao final de análise. O
70
objeto a se localiza na prensagem central dos três aros, buraco que designa para
o sujeito o vazio de sua existência. É o objeto a que unifica RSI fazendo com que
os aros referentes aos registros não se escapem.
Como já dito, a topologia é um recurso ao qual Lacan recorre com cada vez
mais freqüência, ao longo de seu percurso teórico, para apreender a indizível
dimensão do real. O nó borromeano mostrou-se especialmente conveniente a tal
tarefa por apresentar propriedades bastante interessantes. A principal, que o
caracteriza, é ser composto pelo enlace concomitante de, no mínimo, três aros,
que se desfaz imediatamente quando qualquer deles se desenlaça. Outra
propriedade importante, decorrente dessa primeira, é cada um dos aros ‘ex-sistir’
em relação aos demais, ou seja, realizar a nodulação, na medida em que,
situando-se alhures, mantém unidos os outros elos. A figura topológica do nó
borromeano relevando, assim, a relação de interdependência existente entre as
argolas que o compõem, tem a qualidade de permitir abordar os registros
correspondentes sem prevalência de um sobre o outro.
Em seus avanços teóricos, Lacan acrescenta um quarto aro ao nó, o qual,
em seminário homônimo, 1975/76, nomeou sinthoma.
19
Tal proposição traz
conseqüências fundamentais para a clínica. Há divergências no campo lacaniano
com relação às colocações de Lacan nesse seminário, uma vez que muitas
questões estão ali assinaladas sem, contudo, serem desenvolvidas. O presente
trabalho compartilha do entendimento de que o quarto aro não é simplesmente
um reparador que apenas surge quando uma falha específica se apresenta, mas
um elemento essencial presente em qualquer estruturação do psiquismo. Afinal,
se os erros na amarração dos três registros remetem à falha do pai, importa
19
Cf. em anexo o nó do sinthoma, nó borromeano de quatro aros, composto pelos três registros, RSI, que
delimitam lugares e funções como já mencionado, e pelo quarto anel do sinthoma.
71
reconhecer que ele, em alguma medida, sempre falha. Nesse sentido, a
introdução da noção de quarto aro permite deduzir que o nó borromeano de três
aros formado na infância nunca se forma ‘perfeitamente’.
Embora o nó borromeu de três aros, R, S, I, persista como
estrutura ideal do objeto e dos gozos, Lacan nos indica que ‘não
é um privilégio ser louco’ e que, para cada um, o enodamento
tem pouca chance de se constituir segundo este modelo, já que,
bem pelo contrário, tal tipo de costura, tal falha, seja de um dos
aros ou do próprio enodamento, torna necessário um quarto aro,
o do sinthoma [...]. (RASSIAL,1997, p.31).
A construção do sinthoma se dá na adolescência
20
, como um segundo
tempo lógico em relação ao nó anterior de três aros, servindo a partir de então de
base à analise da problemática sexual. Lacan afirma: “é na medida em que há
sinthoma que não há equivalência sexual [...] lá onde é relação, é na medida em
que há sinthoma. Ou seja, onde é do sinthoma que se suporta o outro sexo.”
(1975/76). É somente a partir de então que o encontro com o outro sexo pode se
dar - antes desse momento, certamente, são outras as questões.
O sinthoma é inventado pelo sujeito para fazer frente às inscrições que
recebeu do Outro para sua constituição. Remete a um ‘saber-fazer’ com aquilo
que foi herdado, os fatores da ordem da causa, correspondendo a uma terceira
categoria de saber que não é o saber textual - inconsciente - nem o saber
consciente referencial - conhecimento. Tal saber remete ao poder de se
desembaraçar daquilo que pesa e ata, implicando, portanto, em um certo
desnudamento. A construção do sinthoma remonta assim ao modo pelo qual o
sujeito alivia o peso do Outro que se lhe recai, ou seja, ao modo pelo qual se
desembaraça desse Outro. (HARARI, 2002).
20
Cf. O sinthoma adolescente. In: Estilos da Clínica: Revista sobre a infância com problemas, no. 6, IPUSP,
São Paulo, 1999.
72
Por que então abordar aqui a questão do sinthoma se ele remete a um
momento lógico posterior? Simplesmente porque é na infância que se formam os
pilares sobre os quais o sinthoma será posteriormente construído. Esses pilares
são exatamente os pontos de falha nos enodamentos do nó de três aros. Na
infância, é o sintoma que vem num primeiro momento cerzir a falha de
enodamento, mais tarde tal costura se desfará para ser refeita no sinthoma.
Nesse sentido, a hipótese defendida neste trabalho é a de que uma
intervenção analítica na infância pode contribuir para o desenho posterior do
sinthoma, propiciando mudanças reais, com conseqüências, por exemplo, sobre a
própria escolha do parceiro sexual. Não se confunda aqui a psicanálise com
crianças com uma pretensa profilaxia do que quer que seja: alterar uma escrita é
bem diferente de prevenir seja o que for, pois nunca se sabe exatamente a que
direção uma mudança levará. O que interessa aqui ressaltar é a delicadeza e a
importância da intervenção na infância.
2.4 Uma proposta de escanção
Cada um dos ‘tempos’ da experiência humana tem relações particulares
entre os elementos que compõem a estrutura, requerendo portanto clínicas
também diferenciadas. É vital, para a proposta deste trabalho, que não se
confunda a consideração de diferenças na abordagem clínica com um atentado à
integridade da psicanálise. Não se pretende aqui, portanto, formular um esquema
de desenvolvimento que pudesse talvez servir à idéia de uma especialidade
psicanalítica infantil, mas escandir o ‘tempo criança’, localizando lógicas distintas
73
entre os elementos de modo a fundamentar uma prática clínica que não
desconsidere as especificidades do sujeito na infância: trata-se simplesmente de
‘incluir o que já faz parte’.
É durante a infância que se dá a castração, núcleo organizador de toda a
experiência subjetiva, caracterizando um tempo de fundamental importância, tanto
pelas significações que, partindo dessas bases, serão realizadas a posteriori,
quanto pelo estabelecimento de uma determinada relação com os objetos, de um
modo particular de gozar, que definirão a posição do sujeito no mundo, afinal. As
crianças que chegam para tratamento na clínica psicanalítica encontram-se em
momentos distintos com relação a esse centro organizador, demandando portanto
condições também distintas para a realização do trabalho analítico.
Nesse sentido, enquanto analisante, tem-se (i) a ‘criança pequena’,
caracterizada pelo jogo do engodo e das frustrações que vive com a mãe como
Outro primordial; (ii) a ‘criança edípica’, já inserida na dialética da castração como
encruzilhada estrutural do sujeito; e (iii) a ‘criança na latência’, ocupada em
compreender e assimilar a castração à qual foi submetida. Propõem-se, assim, a
existência de três tempos referenciados pela castração: um tempo preparatório,
anterior ao Édipo; o atravessamento edípico propriamente dito, implicando a
operação da castração; e um pós-édipo, tomado pela tentativa do sujeito de
compreender o que se passou. Considerar a criança a partir de sua experiência
de gozo leva a essa mesma escanção, pois o advento da castração não deixa de
ser uma referência central também nesse âmbito: antes da castração, a criança
está às voltas com o gozo do Outro; a partir de sua incidência, alcança o gozo
fálico possibilitado pela linguagem; e na latência tem-se como alternativa o gozo
do sentido.
74
O que torna possível considerar o período de latência, aqui posteriormente
detalhado, como não meramente uma fase do desenvolvimento, mas como um
tempo lógico com implicações para as condições da análise e a direção do
tratamento? Sobretudo, a recorrente procura pela psicanálise de pais de crianças
atravessando esse momento. Poder-se-ia argumentar que, se existem sintomas
não se trata portanto do período de latência, mas de uma impossibilidade de
enfrentar a castração. No entanto, entende-se aqui que os sintomas desse
período revelam o difícil trabalho psíquico da criança de assimilação e
compreensão da castração e não necessariamente um evitamento da mesma.
Teoricamente, essa hipótese é sustentada por Alberti (2003) que,
orientando-se pelo texto de Freud (1925) Inibições, sintomas e ansiedade,
considera a latência como um momento a ser recortado na estruturação do
sujeito.
A cada momento, o sujeito estruturado conforme a neurose se
depara com diferentes formas de perigo que lhe provocarão
angústia, identificada por Freud como sendo sempre angústia de
castração. [...] o perigo do desamparo fundamental corresponde
ao período inicial da imaturidade do eu [aqui associado ao bebê];
o perigo da perda do objeto de amor corresponde à impossível
autonomia dos primeiros anos de vida [aqui associado à criança
pequena]; o perigo da castração, à fase fálica [criança edípica]; e,
finalmente, na latência, o perigo vem do supereu. (ALBERTI,
2003, p.13).
A autora, aliás, também propõe uma escanção que vem ao encontro da
proposta neste trabalho. Procede-se, então, a uma retomada de cada um dos
tempos já citados. O ‘tempo bebê’ é abordado apenas de passagem, como
introdução ao tempo ‘criança pequena’, uma vez que a psicanálise com bebês
apresenta uma série de diferenças com relação às condições e a direção do
tratamento, as quais escapam ao âmbito do presente trabalho.
75
A criança pequena
No momento inaugural, temos a mãe, Outro primordial, e o bebê, sujeito à
necessidade. Ao nascer, realiza para a mãe a presença do objeto a na fantasia,
saturando sua falta.
O bebê grita diante da tensão orgânica causada pela fome. A mãe
interpreta o grito como apelo e oferece o objeto alimento, o qual é acompanhado
de uma tessitura desejante. A mãe se oferece então como uma matriz simbólica
para a criança, alternando-se entre ausência e presença. A criança vive uma
primeira experiência de satisfação nesse momento mítico do encontro com o
leite/seio materno, numa relação ilusoriamente homeostática com a mãe. Tem
assim a experiência da possibilidade da relação sexual, do fazer-se um com a
mãe, como se o encontro com o Outro pudesse ser bem sucedido, no sentido de
uma plenitude.
A primeira irrupção de real advém do fato de a mãe falhar na sua matriz
inicial presença/ausência, ou seja, não comparecer junto à criança no exato
momento em que era esperada, mas antes, ou depois. Sobre esse inevitável
[des]encontro inaugural, Lacan afirma:
Pois, depois de tudo, por que a cena primitiva é tão traumática?
Por que ela é sempre muito cedo ou muito tarde? […] Trata-se,
na experiência analítica, de partir do fato de que, se a cena
primitiva é traumática, não é a empatia sexual que sustenta as
modulações do analisável, mas um fato factício.
(1964, p.71).
A partir desse momento, a mãe que se apresentava apenas como uma
matriz simbólica, passa a se apresentar também como real. Os objetos que
oferece - ou não - à criança também sofrem uma mudança de estatuto: além de
objetos reais, como o leite, a mãe passa a ser a possuidora de objetos de dom,
76
simbólicos. A mãe aparece então munida de grande potência à qual a criança se
submete, numa dependência aterrorizante. Essa onipotência da mãe tende a se
traduzir numa voracidade de seu desejo, situação periclitante à qual Lacan se
refere pela figura da mãe insaciável.
Tal situação se reorganiza a partir do falo, elemento que ganha destaque
na equação, instaurando o que Lacan (1956/57) chama de dialética da frustração
ou do engodo. A criança, devido a sua dependência dos objetos que a mãe
oferece ou não, passa então a se fazer falo da mãe, na tentativa de resolver o
impasse que se impõe, obturando assim essa primeira brecha através da qual o
real é vislumbrado. A criança presta-se ao jogo do engodo por uma questão de
sobrevivência: identificando-se ao falo, reconstitui o Outro, mantendo-o completo,
ainda que ao preço de, com tal manobra, manter-se alienada a ele.
A partir do ingresso da criança na dialética da frustração, Lacan ressalta
que, embora o objeto real não seja indiferente, não há necessidade alguma de ser
específico.
Mesmo que não seja o seio da mãe, nem por isso ele perderá
algo do valor de seu lugar na dialética sexual, de onde se origina
a erotização da zona oral. Não é o objeto que desempenha, em
seu interior, o papel essencial, mas o fato de que a atividade
assumiu uma função erotizada no plano do desejo, o qual se
ordena na ordem simbólica. (1956/57, p.188).
A mãe, como Outro primordial, só pode propiciar as condições necessárias
para a criança realizar essa nova organização, se estiver marcada ela mesma
pela castração. Se esse Outro falha nesse momento, deixa a criança sem
elementos para lidar com o impasse colocado. É aqui que entra o pai nesse
tempo da constituição, um pai simbólico, um nome, tributário do desejo da mãe. A
função paterna é assim veiculada pela palavra da mãe: o pai, sendo o que dá
77
referência à mãe, não precisa ser necessariamente o genitor, nem mesmo um
homem concretamente presente, mas uma instância que leva a mãe a desviar
seu desejo em outra direção.
Com relação ao trabalho psíquico de confecção do nó borromeano, pode-
se dizer que, nesse tempo, o enodamento entre o real do corpo e o imaginário
como ideal materno se dá prevalentemente, sustentado pela ‘ex-istência’ do
simbólico, pré-existente ao surgimento do sujeito no mundo. É nesse cruzamento
que se delimita o gozo do Outro, ao qual o sintoma da criança pequena está
relacionado, gozo que se caracteriza por se localizar no corpo. A criança ocupa
um lugar no gozo do Outro ao nascer, o gozo que ela então experimenta como
objeto desse Outro.
21
Braunstein (1999, p.83) afirma que o gozo do Outro, fora do simbólico, é
uma atribuição imaginária ao gozo de um Outro devastador, o qual, anterior à
inscrição do nome-do-pai, reaparece no real. É o gozo característico desse
encontro inicial entre a mãe e a criança, a mãe em sua condição de desejante e a
criança oferecendo o próprio corpo para saciar o insaciável.
A carne do infans é desde o princípio um objeto para o gozo, para
o desejo e para o fantasma do Outro e seu lugar no Outro deve
chegar a ser representado, isto é, constituir-se como sujeito,
passando, imprescindivelmente, pelos significantes que
procedem deste Outro sedutor e gozante e, ao mesmo tempo,
interditor do gozo, de um gozo que é confinado por esta
intervenção da palavra em um corpo silenciado, o corpo das
pulsões, da busca compulsiva de um reencontro sempre
fracassado com o objeto. (BRAUNSTEIN, 1999, p.20).
Até esse momento, a criança vive a mais completa imersão no campo do
Outro, tempo de alienação aos significantes desse Outro. Contudo a mãe, se
21
É interessante notar, como destaca Braunstein (1999), que a produção cultural consagrada ao gozo do
Outro corresponde à religião, a qual prega um assujeitamento radical a um Outro todo poderoso como via de
acesso à experiência da completude. Nesse sentido é que Lacan, no seminário sobre o sinthoma, afirma: “A
mulher da qual se trata é um outro nome de Deus, e é nisso que ela não existe”. (1974/76)
78
atravessada pela castração, passa a renunciar pouco a pouco a esse gozo que
obtém através do filho, iniciando um movimento de separação. Nesse sentido,
tanto mãe quanto criança fazem um movimento de renúncia ao gozo do Outro,
preparando assim o terreno para conseguinte castração.
Noutros termos, ainda que a criança pequena viva um tempo inicialmente
harmonioso, no qual a dialética da frustração parece dar conta das primeiras
irrupções do real, essa pretensa harmonia em algum momento se desestabiliza,
revelando a insuficiência da criança como falo da mãe. A criança começa a se
deparar com a inevitável emergência de algumas questões: quem é o falo, afinal?;
o que a mãe deseja, quando deseja além de mim? A partir de então, a
precariedade de sua primeira construção imaginária para lidar com o mundo é
desvelada de modo irreversível, requerendo assim uma reorganização estrutural,
possibilitada pela entrada do pai real no jogo, inaugurando o próximo tempo.
A criança edípica
A passagem do tempo ‘criança pequena’ para o ‘criança edípica’ se dá pela
transição da dialética imaginária do jogo intersubjetivo com a mãe em torno do
falo para o jogo da castração na relação com o pai. A partir de um impasse, qual
seja, a constatação da insuficiência da criança enquanto falo da mãe, a situação
exige uma reordenação dos elementos, com a entrada significativa do pai real,
instaurando uma nova ordem chamada dialética da castração.
Tal passagem ocorre quando o engodo da dialética da frustração se revela:
a criança, deixando de ter sucesso como objeto enganador da falta materna,
percebe que a falta se presentifica. A criança, diante de uma situação que expõe
79
a voracidade ameaçadora do desejo materno, busca no campo do Outro algum
novo ‘termo’ para enfrentar esse impasse. O pai real então aparece como aquele
que pode operar a castração materna, liberando a criança do desejo insaciável da
mãe. “Aqui, é como ser vivo de carne e osso que ele intervirá e sua intervenção
só se sustentará por seu desejo”. (LEBRUN, 2004, p.41). Sendo assim, a palavra
da mãe não é mais suficiente, se ela não desejar como mulher, se não for objeto
para o gozo de um homem, isso poderá trazer conseqüências, por exemplo, para
o futuro posicionamento sexual do filho. Dito de outro modo, além de pai e mãe, é
necessário, agora, homem e mulher.
A dialética da castração apazigua então o conflito deflagrado pela
obsolescência do jogo do engodo e fornece uma estrutura simbólica através da
instauração da lei que regulamenta as trocas humanas - a interdição do incesto -
legitimando a incompletude em oposição a uma plenitude imaginada, que é da
ordem do impossível por estrutura. A falta ganha, definitivamente, estatuto de
motor psíquico e não simplesmente de vazio a ser preenchido. De falta imaginária
na dialética da frustração, a falta muda de categoria, tornando-se uma falta
simbólica.
A partir desse momento de virada, o objeto não é mais o objeto
imaginário com o qual um Outro é sempre capaz de mostrar que
o sujeito não o tem, ou o tem de forma insuficiente. Se a
castração exerce esse papel essencial para toda a continuidade
do desenvolvimento, é porque ela é necessária à assunção do
falo materno como um objeto simbólico. Somente a partir do fato
de que, na experiência edipiana essencial, ela está privada do
objeto por aquele que o tem, que sabe que o tem, que o tem em
todas as ocasiões, é que a criança pode conceber que este
mesmo objeto simbólico lhe será dado um dia. (LACAN, 1956/57,
p.213).
Com a incidência da operação simbólica da função paterna, o falo, objeto
imaginário da dialética da frustração, é elevado ao estatuto de objeto simbólico, e
80
pode, então, ser buscado, de modo próprio, tanto pelo menino como pela menina.
Após a castração, a criança sai marcada em relação ao falo com um sinal de mais
ou de menos, pois numa dialética simbólica “o que não se tem é tão existente
quanto o resto” (LACAN,1956/57, p.125) e o que importa é a marca que irá
vetorizar suas buscas ulteriores. O falo é a moeda principal que possibilitará as
futuras trocas da criança com o Outro. Com a função paterna se estabelece o que
Lacan chama de o ‘jogo de quem perde ganha’: a criança, perdendo a ilusão da
completude materna, ganha pertinência social, ampliando assim seu circuito de
trocas.
A operação da castração aponta para a falta de um significante no Outro
que represente o Outro sexo, encontrando no falo seu único valor.
Uma angústia fundamental, angústia de castração, assedia todo
sujeito, localizando-o, do lado masculino, como ameaça, e, do
lado feminino, como nostalgia. A constelação edípica pai-mãe-
criança-falo inscreve no inconsciente o par pai-mãe como
significante da geração sexuada, ou seja, inscreve os laços de
desejo e amor que os unem, mas nada revela sobre o gozo que
circula entre o par homem-mulher. Sobre o que se passa no
corpo a corpo entre esses dois, o Outro não diz nada.
(OLIVEIRA, 2004, p.17).
Eis o momento crucial da estruturação do sujeito neurótico. É a partir do
confronto com a castração que a criança construirá sua fantasia, definindo então
a relação do sujeito, barrado, com o objeto a, causa de seu desejo. É nesse
momento que os caminhos possíveis da neurose se apresentam. Contudo, a
magnitude da tarefa supera as possibilidades que a criança tem nesse momento
de realizá-la, uma vez que a castração aponta para a inexistência da relação
sexual, mas a criança não tem ainda a possibilidade do ato sexual propriamente
dito, sendo então obrigada a recalcar todo esse material, com o qual se
81
reencontrará apenas na adolescência. Essa espécie de intervalo para ruminar e
digerir a castração é o que vai caracterizar o tempo da ‘criança na latência’.
Com relação à confecção do nó, localiza-se nesse tempo da ‘criança
edípica’, prevalentemente, o enodamento do real, como castração materna, com o
simbólico, como Lei da interdição do incesto, ambos sustentados pela ‘ex-
sistência’ do imaginário, o qual pode aqui ser representado pelas histórias de
rivalidade edípica. O gozo delimitado por esse enodamento é o gozo fálico, já
atravessado pela linguagem. Braunstein (1999, p.83) afirma que o gozo fálico se
inscreve na articulação do real que resta da Coisa, uma vez descolado o desejo, e
o simbólico, que se compõe por meio do apalavramento do gozo ordenado pelo
significante.
22
Do gozo do ser terá se passado para o gozo fálico. Da Coisa
absoluta do ponto de partida, absoluta porque não sabia de
obstáculos nem de mercados de renúncia, apenas ficam objetos
fantasmáticos que causam o desejo desviando para outra coisa,
as coisas do Outro, as que só se marcam quando se as
alcançam, pela diferença decepcionante, com a perda em relação
à Coisa pretendida. O objeto a, oferecido como mais de gozo, é a
medida do gozo faltante e por isso, por ser a manifestação da
falta em ser, é causa do desejo. Pois o gozo do objeto a é
residual, é compensatório, indicador do gozo que falta por ter que
negociá-lo com o Outro que só dá tirando. (BRAUNSTEIN, 1999,
p.46).
Nessa passagem do gozo do Outro para o gozo fálico, resta o objeto a,
saldo impossível da simbolização, efeito do discurso, razão da busca de uma
vida, destinada a nunca apreendê-lo completamente.
A criança na latência
22
Para Braunstein, a produção cultural correspondente à estrutura desse tempo da constituição é a ciência,
como atividade que se propõe apropriar-se do real por intermédio do simbólico, repudiando o imaginário.
Nesse sentido, tanto as teorias sexuais infantis típicas desse tempo, quanto o pensamento científico,
remetem ao gozo fálico.
82
Nesse tempo da constituição do sujeito, o pai é identificado como possuidor
do falo, para onde
23
a mãe, já castrada, dirige seu desejo. A criança terá de
escolher seus próprios caminhos em direção ao falo, variando caso menina ou
menino, enquanto o campo social oferece indicações do caminho, apontando
outros lugares de circulação do falo. Uma vez inscrita a castração, o desejo
sexual sofre a ação do recalque, e a pulsão, então desligada, passa a buscar
outros objetos. É assim que a criança inclui o social.
O supereu é considerado por Freud como o herdeiro do complexo de
Édipo, sendo portanto na latência que ganhará consistência. Alberti sustenta-se
em textos freudianos para defender a tese, com a qual aqui se concorda, de que o
período da latência é o momento durante o qual o eu, recebendo um maior
investimento, irá desenvolver seu jeito próprio de servir simultaneamente ao isso,
ao mundo externo e ao supereu.
Se focarmos o período de latência a partir dessa suposição, esse
período deixa de ser de relativa inatividade e pouco trabalho
psíquico para se tornar um grande período de elaboração, de que
o sujeito precisa para dar conta das impossibilidades com que se
deparou até o fim da infância. Seria, então, o período em que o
sujeito procura se posicionar em sua relação com a castração.
(ALBERTI, 2003. p.16).
Esse trabalho psíquico compreende elaborar a distinção entre pai
imaginário, pai simbólico e pai real. Alberti afirma que se até então estava em jogo
para a criança o pai da exceção, possuidor do falo, representando a função
paterna, o período de latência traz consigo a vacilação do pai imaginário, aquele
que encarna para a criança o pai que barra o desejo da mãe, e graças a essa
vacilação é que a criança pode se deparar com as três versões do pai. “Não que
23
Aqui, como em outras partes do texto, a desobediência à regra gramatical que convenciona o uso do
pronome relativo nesses casos é proposital, visando a relevar a conotação de ‘lugar’ simbólico.
83
elas não estejam aí desde sempre, mas a criança precisará poder distinguir o pai
ao qual agora ‘dessuporá’ o falo e o pai que o mantém”. (ALBERTI, 2003, p.17).
Na latência, a criança faz a constatação de que o saber atribuído ao pai, a
partir da operação da castração, não permite apreender o gozo da mãe. Depara-
se, assim, com a insuficiência desse saber para a apreensão do real,
abandonando, portanto, as investigações propriamente sexuais às quais se
dedicava. Partindo dessa constatação, a criança segue então buscando outros
saberes, pronta a incluir o saber disseminado no social como alternativa ao saber
paterno.
É possível que, eventualmente, essa constatação se generalize, apontando
para os limites da própria linguagem, provocando, portanto, o aparecimento de
sintomas como, por exemplo, a depressão, advinda do reconhecimento lúcido da
nossa irremediável incompletude humana, da insuperável impossibilidade de se
fazer um no encontro com o outro, enfim, da essencial inexistência da relação
sexual. Contudo tal constatação normalmente abre um espaço produtivo para
novas investigações, voltadas à cultura e à civilização. Uma vez que o pai
imaginário é quem sustenta o Outro para a criança nesse momento, torna-se
então possível para ela uma deflação dessa figura que lhe permita a busca por
novos representantes do Outro, como a figura do professor, por exemplo.
A demanda por análise no período de latência não é incomum, sendo,
geralmente, relacionada a dificuldades escolares, na aprendizagem ou no
estabelecimento dos laços sociais. Devido não apenas a esse fato, defende-se
neste trabalho, como já dito, a idéia de que é legítimo destacar esse período
como fundamental para se pensar as condições da análise e a direção do
tratamento. A tarefa que se impõe à criança nesse tempo é bastante específica e
84
aparece articulada à esfera social: espera-se que seja bem sucedida nos estudos
e se relacione bem com o pares. Conseqüentemente, a transferência que se
instala é “baseada na suposição de saber e contribui para a deflação da
onipotência suposta ao Outro, abrindo caminho para os desafios da
adolescência.” (RIBEIRO, 2003, p.53). O período de latência “objetiva o que
Lacan chama de divisão do sujeito: o sujeito se divide entre o gozo e o saber. O
período de latência representa uma lacuna entre o gozo já existente na infância e
o saber da vida sexual do adulto.” (MARTINHO, 2003, p.57).
A criança esbarra aí por não poder tirar as conseqüências do
encontro com a falta não mais do Outro materno, mas da mulher.
[...] à falta da mãe, o pai pode sempre oferecer um princípio de
resposta, de inestimável e indispensável valor na infância, mas
para a falta da mulher não há resposta nenhuma a ser dada, só
resta mudar de posição. Esta mudança de posição é
conseqüência desta barra colocada sobre a mulher, a mulher
toda não existe, diz Lacan, como também a verdade. A verdade
só se pode dizê-la pela metade. E a mulher só se pode tomá-la
uma a uma. [...] entretanto até este ponto ainda é a lógica fálica
que prevalece, e que portanto, ainda deixa o sujeito frente a este
resto inassimilável em uma posição de impotência, ou de
adiamento. Para sair desta posição de ‘impotência’, como
também para mudar sua escolha de objeto sexual e não apenas
substituí-la, é preciso dar mais um passo, não na direção de uma
explicação a mais, mas de uma mudança de causa: sair de uma
posição de acreditar ter seu desejo causado pela busca de ser o
desejo do desejo da mãe, para ser causado pela falta
impreenchível da mulher. (BARROS, 1991, s/p).
É na adolescência que tal passagem se finaliza: pode então haver o
encontro sexual, do qual o sujeito retira alguma satisfação, sem que no entanto
haja a relação sexual, para a qual o sujeito continuará, sempre, por estrutura,
impossibilitado.
Segundo a lógica aqui proposta para o enodamento de RSI na infância, no
tempo da latência dá-se, prevalentemente, a amarração entre o simbólico e o
imaginário, sustentada pela ‘ex-sistência’ do real. O espaço que se cria a partir
85
dessa sobreposição remete ao campo do sentido (juis-sens, gozo do sentido),
24
lugar da
[...] instituição dos objetos da realidade, do consenso
compartilhado, do acordo garantido pela palavra [...] do
reconhecimento do mundo no qual o artífice em nosso tempo é o
comunicador, o Grande Outro da mídia [...] o que uniformiza no
planeta os modos de manter o gozo à distância e configura os
eus que se reconhecem reciprocamente em um ideal comum [...].
(BRAUNSTEIN, 1999, p.83).
O percurso realizado pela criança, na direção de sua estruturação, será
concluído na adolescência, com a descoberta da inexistência do Outro, momento
no qual o adolescente se confrontará de modo renovado com os fracassos
característicos de cada momento anteriormente vivido: o fracasso do amor, que
se refere primeiramente à relação com a mãe; o fracasso da organização fálica,
que não diz nada sobre o genital; e o fracasso do discurso social, que não
produzindo qualquer ideal deflagra o próprio fracasso do sentido. O encontro do
sujeito com o Outro sexo lhe apresentará então ‘cara a cara’ a inexistência da
relação sexual, e a construção do sinthoma, como o quarto aro do nó, virá como
uma tentativa de reparação.
Uma vez caracterizados esses tempos lógicos da constituição do sujeito,
os capítulos seguintes tratarão das condições da psicanálise com crianças,
levando em conta as diferenças de cada momento para a modulação dos eixos da
operação analítica, sem, contudo, desconsiderar as formulações existentes sobre
o tratamento padrão, sempre tomado como referência inicial.
24
Segundo Braunstein, a produção da cultura correspondente são as ideologias, que remetem ao sentido e
se caracterizam por um horror ao real. Nesse sentido, as ideologias podem ser compreendidas como
tentativas de recobrimento dos buracos do real que, embora exibam o apelo de uma coerência interna,
sustentam-se em falsos pilares. A psicanálise, segundo o autor, diferentemente da religião, da ciência e da
ideologia, tendo um saber sobre a estrutura, encontra seu lugar em torno do objeto a, “objeto fugidio inclusive
para o saber, localiza-se ao mesmo tempo nos três registros que marcam a necessária incompletude que
afeta todas as tentativas de dizer a verdade plena, de lograr este Saber Absoluto com o qual sonha o amo”
(1999, p.84).
86
3 ENTREVISTAS PRELIMINARES E O LUGAR DOS PAIS NO TRATAMENTO
As entrevistas preliminares têm a função de realizar a sondagem proposta
por Freud para verificar a pertinência do tratamento psicanalítico. Durante esse
‘ensaio’ é feito o diagnóstico diferencial, porta de entrada para o discurso
analítico, anterior portanto à análise propriamente dita. Período crucial em que o
sofrimento psíquico pode ou não se transformar em uma demanda, sem a qual o
tratamento redundaria inócuo.
Embora análise e entrevistas mantenham a mesma estrutura,
compartilhando a regra fundamental da associação livre, diferem essencialmente
com relação ao diagnóstico e seu tempo. Cabe ao analista decidir se há
condições para transformar o ensaio em tratamento, apoiado em sua leitura das
três funções que basicamente compõem esse momento inicial: a diagnóstica, a
sintomal e a transferencial (QUINET, 2002, p.11), posteriormente abordadas
neste trabalho.
Como caracterizar as entrevistas preliminares no tratamento de crianças?
São as entrevistas iniciais com os pais, os pais e a criança juntos, ou somente se
iniciam quando se passa a encontrar apenas com a criança?
No capítulo anterior, procurou-se esclarecer o que particulariza a criança
como analisante para neste iniciar-se a discussão das condições para que a
análise com uma criança possa se realizar. Se uma criança só chega para
tratamento quando trazida por seus pais ou responsáveis é de se esperar que
sejam portanto eles a trazerem também as primeiras questões ao
estabelecimento das condições para a análise da criança. Onde então alocá-los,
87
como responder a suas demandas, como ajudar na criação de um espaço para
que o tratamento analítico possa se realizar com a criança?
Para responder a tais questões, faz-se, antes, necessário esclarecer quem
são afinal os ‘pais’. A criança constitui sua neurose na relação com o Outro
simbólico, mas, como formula Melman (1997), é com os pais como Outros reais
que a criança se relaciona na vida cotidiana: qual então a relação entre o Outro
simbólico e os Outros reais?
À medida que a criança vai sendo inserida na linguagem, o Outro simbólico
vai se manifestando. “Significa que podemos ver neste registro as funções
paternas e maternas se isolarem em sua dimensão simbólica, eu diria de modo
destacável da aplicação real que lhe dão os pais”. (MELMAN, 1997, p.19).
Contudo o Outro na infância tem ainda uma consistência tal que lhe
demanda estar encarnado em um outro real, presentificado num primeiro
momento pela mãe, enquanto Outro primordial, lugar de linguagem; tão logo a
mãe consinta em ser faltante, desejante, abre-se então o espaço para a
intervenção de um terceiro elemento, presentificado pelo pai. A possibilidade de
independência simbólica do Outro, porém, só virá com a adolescência.
Eles [os pais da realidade] encarnam não somente as três
funções paternas – real, imaginária e simbólica -, como também,
além disso, protegem a criança das potencialidades destrutivas
que estas funções podem conter para um sujeito, quando é
confrontado a elas sem a mediação destes pais da realidade.
(NEUTER, 1997, p.43).
Os pais da realidade estão sempre numa posição de relativa carência
quanto a essas funções, introduzindo para a criança a categoria do impossível:
“impossível se igualar à onipotência do pai simbólico, impossível se igualar à
88
perfeição do pai imaginário, impossível enfim possuir e satisfazer completamente
a mãe.” (NEUTER, 1997, p.44).
Os pais, em seu lugar de suporte do Outro, sobretudo com relação à
função paterna indispensável ao engendramento de um sujeito, imprimem
nuances diferentes na transmissão que realizam, segundo suas próprias posições
diante do impossível - a essencial falta do Outro - tornando, portanto, muito
importante escutá-los no tratamento da criança.
25
Lebrun (2004) chama a atenção para a necessidade de que o social venha
homologar a função de pai, legitimando a pertinência de sua intervenção.
Entretanto é notável que o lugar ali ocupado atualmente pelo saber paterno vem
sendo acometido por uma deflação inversamente proporcional à inflação do saber
conferido à ciência, trazendo efeitos desastrosos não somente ao exercício da
função paterna, com também, e sobretudo, à própria subjetividade da criança.
A figura do pai está hoje ocultada sob a forma de um ‘ajudante de mãe’,
eximido de exercer o contrapeso necessário ao estabelecimento das funções
materna e paterna, as quais passam então a serem supridas por especialistas
representantes de ‘um saber maior’. Diferentemente da função paterna,
sustentada pela enunciação, a ciência se apóia em enunciados, tomados como
verdadeiros, tendo como instância de filiação a própria ciência. Essa lógica
interpõe obstáculos à transmissão da falta, segundo Melman (1994), o bem maior
que os pais podem dar a um filho, dom supremo, alcançado por um traumatismo.
A exigência dos pais enquanto Outros reais com relação à criança sofre o
atravessamento do discurso social vigente, o qual, em nossa contemporaneidade,
remete-se à realização de um ideal negador da castração, enquanto o não
25
Cf. capítulo dois, item dois, discussão sobre a transmissão realizada pelos pais para o engendramento do
sujeito na infância.
89
cumprimento desse ideal é justamente “o que vem manter a criança nesse pouco
de liberdade subjetiva, nessa pequena margem que a protege de uma alienação
realizada.” (MELMAN, 1997, p.20).
Noutros termos, é no sintoma que a criança pode alojar sua subjetividade,
escapando ao cerco social mortificante reproduzido pelos pais. Uma vez o
sintoma instalado, a demanda inicial dos pais aos especialistas, incluindo o
próprio psicanalista, pode em geral ser resumida como um pedido para que se
conserte a criança de alguma falha de funcionamento, através da supressão do
sintoma, ou seja, tornar a criança feliz, preservando-a das vicissitudes da
castração, em uma tentativa de realizar uma exceção à lei dos homens. Os pais
pedem assim ao analista “a garantia de cumprimento de seu ideal.”
(JERUSALINSKY, 1991, p.17).
Embora venha normalmente revestido de muita angústia e sofrimento, esse
pedido para se curar a criança, deixando intocada a mesma verdade familiar que
o sintoma está justamente desvelando, encerra uma contradição ética
fundamental para a psicanálise. É preciso advertir que se o analista corresponder
a essa demanda parental, não haverá análise da criança. Inicialmente, a melhor
resposta é pedir aos pais que falem sobre o filho, através do que falarão também
de si mesmos, permitindo ao analista situar-se quanto aos prováveis
determinantes discursivos dos pais em relação à criança, ao mesmo tempo em
que lhes propicia a abertura de um campo transferencial no qual seja possível
formularem uma demanda própria, descolada do discurso social, com relação à
análise do filho. O encontro com o analista, cuja posição é radialmente diferente
daquela do Outro social hegemônico, o mesmo que os levou até ali, é decisivo
para provocar essa subjetivação dos pais.
90
A depuração da demanda parental aponta para uma questão teórica vital, a
qual, sobretudo na prática clínica, não deixa de se colocar: se a demanda dos
pais é tão inevitável quanto insuficiente, tanto para o estabelecimento das
condições, quanto para o direcionamento do tratamento analítico com crianças,
em que medida então incluí-la?
Freud (1920a, p.188-189), em suas considerações sobre a jovem
homossexual para quem o pai demanda análise, afirma que “não é indiferente que
alguém venha à psicanálise por sua própria vontade ou seja levado a ela”. O pai
da jovem pede a Freud para resolver o problema da filha, o que, para ele,
implicava em ajudá-la a renunciar à homossexualidade. A jovem por sua vez não
apresentava queixa alguma, mas consente no tratamento. No desenrolar da
análise, uma lacuna fatal torna-se então evidente: a carência de uma demanda do
próprio analisante é simplesmente insuperável.
Diante de um processo emperrado, Freud se reconhece capturado pela
demanda paterna, pois confinado à tentativa de curar a moça, havia perdido sua
capacidade de leitura do caso e, com isso, a possibilidade de um engajamento
efetivo por parte da analisante. Esse equívoco primordial no manejo do caso
acabou por submeter o tratamento a uma vertente imaginária da transferência,
impossibilitando ultrapassar a resistência em direção ao campo propriamente
analítico.
Obviamente, as condições para a análise de uma adolescente, a jovem
homossexual em questão, são distintas daquelas para a análise de uma criança,
uma vez que, como já afirmado neste trabalho, trata-se de posições muito
diferentes frente ao Outro. Contudo o caso descrito por Freud serve mais
amplamente a reflexões importantes sobre o lugar dos pais no tratamento.
91
É absolutamente improvável que uma criança chegue à análise “por sua
própria vontade”. A condição de extrema dependência do Outro parental parece
determinar que seja praticamente sempre “levada a ela”. Não equivale dizer que a
criança não venha a demandar a análise, mas para que tais condições se façam
presentes torna-se necessário uma manobra a mais do analista junto aos pais. É
somente a partir da oferta do analista no encontro direto com a criança que será
possível a ela formular, ou não, uma demanda de análise.
O que é necessário para que esse encontro se dê? Como no caso da
jovem homossexual, no qual a captura do analista pela demanda parental impediu
a criação das condições adequadas para que uma demanda do próprio analisante
pudesse talvez se formular, é função do analista não se deixar enredar pela trama
tecida na demanda dos pais, manejando-a no sentido da criação de um espaço
verdadeiramente analítico para a criança.
Bernardino (1997, p.61-62) propõe, como tarefa fundamental das
entrevistas preliminares na psicanálise com crianças, realizar a diferenciação
entre a fantasia dos pais com relação ao filho, que nomeia de ‘filho imaginário’, e
a leitura que a própria criança faz disso. Para tanto, é necessário que, num
primeiro momento, algo da enunciação do adulto tenha lugar, possibilitando que,
num segundo momento, a criança se aproprie do sintoma para transformá-lo num
sintoma analítico, inaugurando assim a análise.
Apesar de se construir a partir de uma extrema dependência do Outro, a
criança carrega uma questão própria. Para que o analista possa atender a essa
sua singularidade faz-se necessário uma escuta dos pais que possibilite
acompanhar a criança em sua caminhada de leitura e interpretação do seu lugar
no mundo, como assevera Bernardino (1997). A escuta dos pais, porém, não
92
pode impedir que o analista tome as produções da criança como formações do
inconsciente de um sujeito em particular, sem o que não haveria escuta da
criança. Essa criança carrega um real, mas que é do Outro, e sua singularidade
se manifesta em como se constrói segundo essa referência, como responde a
essa questão. São justamente as entrevistas preliminares que devem isolar aquilo
que seria da interpretação singular da criança, a partir do que pode-se falar
propriamente de sintoma da criança.
Há, portanto, entrevistas com os pais e também com a criança. A
proposta deste capítulo é organizar o procedimento dessas entrevistas
preliminares ao tratamento da criança em duas etapas: (i) as entrevistas
preliminares com os pais, enquanto aqueles que inicialmente demandaram o
tratamento para a criança, compreendidas como uma condição para esse
tratamento, ainda que não garantam o estabelecimento da situação analítica com
a criança; (ii) as entrevistas preliminares com a criança, anteriores a sua possível
entrada em análise, compreendidas também como uma condição para o
tratamento, na medida em que oferecem o espaço para que sua demanda possa
ser formulada, sendo para tanto necessário que seu sofrimento esteja configurado
em um sintoma que possa ser dirigido ao analista para ser transformado em
questão.
Nas entrevistas com os pais, trata-se de verificar quem é o ‘filho imaginário’
do casal, pois a demanda com relação à criança corresponde a uma leitura que
os pais fazem sobre ela, uma vez que encontram-se absolutamente
comprometidos fantasmaticamente com o filho. Nesse sentido, a função dessa
primeira inclusão do pais é fornecer material significante para que o analista faça
uma leitura da resposta que a criança formula a essa determinada estrutura
93
discursiva, assim como precisar qual o lugar que a criança ocupa na fantasmática
parental, ou seja, produto de qual ‘não relação sexual’ ela é. Nas entrevistas com
a criança, pode-se averiguar qual a sua leitura sobre a demanda parental, abrindo
espaço para a construção de sua demanda, aquela que só ela pode formular,
imprimindo assim sua linha própria na análise que poderá então se realizar.
Portanto, ambos os procedimentos fazem parte da prática analítica com
crianças para que se possa fazer a leitura do sintoma, bem como do diagnóstico,
e estabelecer a transferência, indispensável para a realização do tratamento.
O diagnóstico implica a identificação do tempo lógico que a criança
atravessa, esclarecendo não apenas como o Outro está, ou não, oferecendo
condições para a criança revolver os impasses próprios a tal lógica, mas também
como o sintoma se articula à estrutura familiar. A indicação de análise para a
criança e a possibilidade de sua entrada em análise propriamente dita dependem
portanto desse momento inicial de entrevistas com os pais, bem como,
evidentemente, das entrevistas com a própria criança.
Porge (2003a, p.14) situa a problemática da criança em dois eixos: o eixo
vertical dos laços de gerações, hierárquico, e o eixo horizontal, da relação do
casal de pais com a sexualidade. Tais eixos reforçam o que o autor destacou
como dois pólos, quando tomamos cada sujeito em particular: no pólo vertical
estariam as relações edípicas com as gerações passadas e futuras, e no pólo
horizontal, a questão da diferença sexual e da não relação sexual. Nas
entrevistas preliminares à análise de uma criança é fundamental que o analista
esteja atento a esses dois pólos, nos quais certamente encontrará elementos
significativos para uma leitura do sintoma da criança como um produto da relação
desses pais.
94
No trabalho de escuta e investigação junto ao casal parental, haveria
alguma operação que pode ser propriamente chamada de analítica? Poder-se-ia
pensar numa espécie de ‘retificação subjetiva dos pais’, na qual exista a
possibilidade de mudarem de posição com relação à queixa que trazem do filho,
implicando-se no sintoma o suficiente para se questionarem ao quê da
fantasmática familiar a criança poderia estar respondendo? E ainda, se alguma
operação analítica pode de fato realizar-se, como abordar uma continuidade para
isso?
Importa lembrar que, embora não haja ‘direção de tratamento dos pais’, há
transferência entre eles e o analista do filho, como uma condição para a análise
da criança, e, nesse sentido, ainda que o analista não esteja empenhado em
interpretá-los, faz intervenções que podem trazer efeitos analíticos.
A própria mudança de posição que a criança de alguma maneira realiza,
pode ter um efeito interpretativo para os pais, renovando a questão do lugar que
ocupam, para além das entrevistas iniciais, no decorrer da análise da criança. Tal
problemática é crucial.
O encontro com o analista remete os pais à pergunta pelo desejo
que modelou a criança enquanto sujeito. No curso da análise
terão que se deparar – não sem custo – com a possibilidade
lógica de a criança não mais tamponar, como objeto, a falta do
Outro. São estas algumas das dificuldades externas que podem
tornar-se, em alguns casos, insolúveis, levando o tratamento a
uma interrupção. (VIDAL, 2001, p.85).
Como, então, incluir, ou não, os pais durante o tratamento?
Jerusalinsky (1991, p.16) responde, de maneira categórica, que o lugar dos
pais se define por sua posição na demanda, ou seja, “se demandam a garantia do
cumprimento de seu ideal, seu lugar é fora do tratamento. Se demandam que o
analista se encarregue do desejo ao qual renunciaram, seu lugar é dentro.”
95
De qualquer modo, os pais estão sempre inevitavelmente incluídos no
tratamento, uma vez que seu discurso produz efeitos sobre a criança, e é
sobretudo a partir desse discurso - ou em suas lacunas, mas sempre referido à
ele - que a criança formulará sua resposta, fazendo trabalhar os significantes para
[re]construir sua versão desse lugar discursivo que lhe foi atribuído. Não se deve
esquecer que os pais podem modificar sua demanda ao longo do processo
analítico com a criança, possibilitando então mudar também o lugar que ocupam
no tratamento.
Ademais, o analista pode ainda fazer um trabalho junto aos pais, no sentido
de propiciar que possam dar acolhimento às mudanças que a criança está
realizando, procurando, assim, preservar a continuidade do tratamento, o que
pode ser feito a partir de entrevistas ocasionais, decisão a ser tomada em cada
caso. Contudo, embora tal cuidado seja recomendável, não se constitui em
garantia, havendo casos em que o tratamento da criança é simplesmente
interrompido.
Segundo Boudard (2000), nas entrevistas com os pais não é o discurso
analítico que prevalece, não se pretende tocar-lhes o objeto da fantasia ou
interpretá-los. Entretanto, os efeitos analíticos podem advir como conseqüência
da própria escuta na forma do que autora qualificou de “confrontação do sujeito
com seu próprio dizer”, o que se aproxima do objetivo proposto por Lacan para as
entrevistas preliminares com adultos, qual seja, uma retificação das relações do
sujeito com o real, embora o ‘entrevistante’ nesse caso, pai ou mãe da criança,
não seja um candidato à análise, pelo menos não inicialmente. Desse modo,
pode-se afirmar que as entrevistas preliminares ao tratamento da criança
realizadas com os pais têm a mesma estrutura das realizadas para o tratamento
96
padrão, embora não tenham o mesmo objetivo, uma vez que os pais estão ali
reunidos com o analista para falarem de seu filho. Contudo tal semelhança pode
ser suficiente para que uma demanda de análise venha a ser formulada por parte
dos pais, agora não mais como pais, mas como sujeitos que dirigem uma questão
própria ao analista, a quem cabe a decisão de tomá-los em análise ou privilegiar o
encontro com a criança. Não é raro acontecer de o adulto não conseguir
apresentar uma questão em nome próprio, apresentando-a por meio da criança,
situação que se for esclarecida nas entrevistas pode levar o adulto à análise em
vez da criança.
Em todo caso, a escuta dos pais não serve como chave de leitura para a
escuta do filho, podendo mesmo enviesá-la, o que contribui para a resistência na
própria escuta analítica, impossibilitando a análise da criança. Durante o
tratamento, o manejo transferencial dos pais é, portanto, muito delicado. Não raro,
pais tomados de ansiedade requerem notícias do tratamento com alguma
freqüência, ou ainda, querem contar ao analista episódios cotidianos que julgam
importantes, compartilhando assim suas angústias com relação à criança. O
analista deve ter cautela ao decidir acolher tais demandas, para não obstaculizar
sua escuta da criança. Muitas vezes os pais precisam ser interditados nesse
assédio ao analista para que a análise possa prosseguir. A regulagem ótima da
participação dos pais entre uma certa implicação que permita a continuidade da
análise e o barramento de uma invasão nociva à direção do tratamento, só pode
ser decidida na singularidade de cada caso. De qualquer modo, os pais, como
referência de Outro para a criança, estarão sempre presentes na análise, e o
distanciamento dos pais da realidade, às vezes, se revela necessário para a
criança fazer sua própria interpretação dos pais.
97
Uma outra modalidade de entrevista com os pais é a entrevista conjunta
com a criança. Tal composição traz novos elementos a serem abordados. A
presença da criança interfere no discurso dos pais, que então tendem a amenizar
determinadas questões ou omitir pensamentos e fatos, ou, pelo contrário, falam
como se a criança não tivesse presente ou não pudesse escutar o que está sendo
dito sobre ela. A criança, por sua vez, dorme num determinado ponto da
entrevista, comenta algo que se articula à fala dos pais, pega algum objeto, faz
uma brincadeira, enfim, dá sinais de sua afetação pela fala dos pais. Tais
elementos são certamente valiosos para a escuta do analista sobretudo no que se
refere inicialmente à elaboração do diagnóstico.
Durante o tratamento, após o período inicial das entrevistas preliminares,
portanto, podem acabar ocorrendo entrevistas conjuntas não marcadas
formalmente, ou mesmo imprevistas, pois os pais passam a também freqüentar o
consultório para trazer o filho em atendimento, exigindo do analista um constante
manejo da situação. De modo geral, a experiência clínica ensina que as
entrevistas conjuntas devem ser evitadas tão logo a análise tenha início,
preservando, assim, o tratamento da criança. Contudo, em alguns momentos, ela
pode ser realizada a partir de um pedido da própria criança.
Em outros momentos, a criança pede ao analista que converse
determinado assunto com os pais, mas não deseja estar presente.
26
M., às voltas
com a homossexualidade recém assumida pela mãe, elabora uma série de
perguntas a esse respeito, pedindo ao analista para encaminhá-las à mãe, a qual,
em entrevista marcada, responde com uma carta, entregue ao analista para ser,
26
A patir deste ponto, introduz-se vinhetas clínicas apresentadas de modo ilustrativo apenas, num exercício
de ‘mostração’ das questões teóricas implicadas, sem contudo a intenção de articular elementos para uma
discussão aprofundada do caso voltada a efetivamente interrogar a teoria.
98
por sua vez, encaminhada à criança. Dependendo do assunto a ser tratado com
os pais, é mesmo melhor que a criança não esteja presente, pois existem
questões, por mais que impliquem a criança e seu sintoma, que são dos adultos,
como, por exemplo, a própria sexualidade. Nesse caso, pode-se afirmar que a
criança contou com a função do analista para abordar um elemento de sua
formação sintomática de um modo que preservou seu espaço analítico.
Os pais são os representantes, embora não a encarnação, do Outro para a
criança, responsáveis por proporcionar a ela condições favoráveis para lidar com
cada novo impasse subjetivo. Em todo tratamento de crianças é necessário esse
primeiro passo realizado com os pais, no qual são escutados como os
representantes do Outro da criança.
É a partir da composição das entrevistas com os pais e com a criança que
se torna possível a identificação do tempo lógico da constituição subjetiva que ela
está atravessando. Só então pode-se afinar os demais eixos da operação
analítica. Além da indicação de Jerusalinsky (1991) referente à posição dos pais
na demanda como bússola para incluí-los ou não no tratamento, propõe-se aqui
que quanto menos dispositivos a criança tiver para organizar seu mundo, ou seja,
quanto mais dependente psiquicamente de seus Outros, maior a necessidade da
presença dos pais no tratamento, sobretudo nas entrevistas preliminares. Noutros
termos, quanto mais a criança estiver submetida ao fantasma parental, ocupando,
portanto, o lugar de objeto do gozo do Outro, maior a importância da presença
dos pais, no sentido de potencializar a possibilidade de que favoreçam um
deslocamento do espaço destinado à criança, viabilizando, assim, sua ocupação
de um outro lugar.
99
Considerando-se cada um dos tempos da escanção proposta no capítulo
anterior – ‘criança pequena’, ‘criança edípica’ e ‘criança na latência’ – haveria
alguma caracterização específica das entrevistas preliminares com os pais?
No tratamento da ‘criança pequena’ que ainda não se confrontou com a
castração materna, o agente da função materna tem em geral um lugar
privilegiado na escuta do analista, afinal, é segundo essa referência que a criança
se organiza inicialmente. O pai, como representante do pai simbólico, vetor da
função simbólica, também é convocado, embora não seja necessária sua
presença concreta para que tal função venha a operar. A importância do pai
nesse momento é o lugar que ocupa no discurso da mãe, como terceiro à relação
mãe/criança. Contudo, não é raro nesse tempo da constituição encontrarem-se
pai e mãe na posição de agentes da função materna. Quando isso acontece, é
importante que o pai também compareça às entrevistas.
R. chega para tratamento com dois anos, apresentando uma anorexia
grave, instalada muito precocemente, causa de atraso em seu desenvolvimento.
Durante as entrevistas preliminares, a grande maioria com a mãe, foi possível
verificar em seu discurso uma posição de refém de um ideal desproporcional em
relação a esse filho, entrando portanto em depressão, impossibilitando assim que
a atividade de alimentação, desde o início, apresentasse uma tessitura desejante.
A demanda de completude dirigida à criança parece tornar-se excessivamente
enigmática, vetando o estabelecimento do jogo do engodo entre mãe e filho.
Através da anorexia, a criança inverte a relação de dependência com a mãe,
apontando para o fracasso na dialética da frustração. Noutros termos, a criança
mal-sucedida em identificar-se ao falo passou a acusar a exigência de um ideal
ao qual não tem poderes para corresponder, enquanto a mãe, culpando-se pela
100
falência precoce de seus ideais, permanece incapaz de realizar a operação
fundamental de transformação do objeto real em objeto de dom. Essa leitura da
posição da mãe construída nas entrevistas preliminares mostrou-se muito
importante para a escuta da criança, que logo na sua primeira entrevista, procura
meios para formular sua demanda ao propor uma brincadeira de ‘fazer
comidinha’, endereçando assim seu sintoma ao analista.
No tratamento da ‘criança edípica’ é freqüentemente necessária a presença
também da alteridade paterna nas entrevistas preliminares, como aquele que de
fato sustenta a função paterna nesse tempo da constituição, sendo o agente real
da castração. Nesse sentido, é bastante significativo o caso do pequeno Hans
que, embora seja o relato de um tratamento muito peculiar, serve para
problematizar as implicações da figura paterna nos impasses característicos
desse tempo vivido pela criança. O pai procura através de correspondências
fornecer a Freud o material necessário para uma leitura do caso e o conseqüente
estabelecimento de uma direção apropriada para o tratamento que ele mesmo
pretendia empreender com o próprio filho. Desse modo, a função básica das
entrevistas preliminares realizada com os pais foi desempenhada por cartas entre
o pai-analista e seu mestre-consultor. Na primeira vez em que apresenta
explicitamente essa intenção, declara: “estou-lhe enviando mais algumas notícias
a respeito de Hans, só que desta vez, lamento dizê-lo, se trata de material para
um caso clínico.” (FREUD, 1909, p.33). Passa então a relatar acontecimentos que
julga marcantes nesse período da vida da criança, incluindo sonhos e fantasias,
que teriam culminado no aparecimento de uma fobia. Deixa assim entrever não
somente a importância da participação do pai no momento inicial de configuração
do tratamento de uma criança nesse tempo da constituição, como também
101
elementos relevantes da complexa trama familiar em torno de Hans, mostrando-
se atrapalhado quanto à sustentação da função paterna, notadamente incapaz de
operar a castração materna. É o próprio Freud que, em sua interlocução com o
pai, tenta configurar, numa espécie de tratamento ‘por tabela’, as condições
necessárias tanto para o exercício da função paterna como para a condução da
análise.
Na latência, pai e mãe são escutados no sentido de se propiciar um
afastamento de suas figuras, para favorecer o desvio dos investimentos pulsionais
da criança para outros objetos. Logo na primeira entrevista na qual a mãe de M.
compareceu acompanhada da parceira, ela conta que a criança tinha feito o
pedido para conversar com ‘alguém neutro’, termo aprendido por ocasião da
audiência sobre a guarda dos filhos no processo de separação do casal parental.
Ainda que os pais tenham sido escutados outras vezes, ficou claro logo nessa
entrevista inicial com a mãe que havia um pedido da criança. Embora não
soubesse muito bem a quem dirigi-lo, manifestava-o em um comportamento, que
chamava a atenção dos pais, de apego excessivo a adultos que acabava de
conhecer – dentista, monitor de acampamento e outros – sofrendo então com o
inevitável afastamento. Ao ser levada ao encontro do analista, uma demanda de
análise aos poucos se formulou e as entrevistas com os pais passaram a ser
esporádicas.
Importa ressaltar que, embora essas referências teóricas sejam tomadas
para balizar a clínica, a teoria em si mesma é insuficiente para responder às
questões e impasses que o caso clínico apresenta. É somente a leitura da
transferência e a discussão do caso em sua singularidade que podem iluminar a
cena permitindo ao analista uma decisão acertada.
102
As entrevistas preliminares com a própria criança, por sua vez, têm como
objetivo, através de uma leitura diagnóstica e do estabelecimento da
transferência, criar as condições para a entrada da criança em análise a partir de
sua formulação de uma demanda por meio da qual possa dirigir suas questões ao
analista.
As demandas das crianças, segundo Porge (2002a), podem ser divididas
em três categorias: as demandas formuladas diretamente pela criança, mas que
precisam ser ratificadas pelos pais para chegar ao consultório do analista, mais
comuns em crianças na latência, como M.; as demandas das crianças que se
ligam indiretamente aos pais, como R., com sua anorexia, ou mesmo Hans, com
sua fobia; e a ausência de demanda da criança ligada diretamente ao fantasma
dos pais, como no autismo ou na psicose, em que, pela própria posição subjetiva,
a criança não tem inicialmente como formular questão alguma ao analista
27
.
A partir da formulação de uma demanda, a entrada em análise corresponde
a um primeiro momento de distanciamento entre o desejo do Outro, veiculado
pelos pais, e a ‘resposta-criança’. O operador desejo de analista é então de vital
importância, fazendo para a criança a diferença entre a posição dos pais, que ela
carrega em seu sintoma, e a do analista, que não lhe dirige demandas, não a
toma em sua fantasia, e mostra-se claramente disposto a receber o
endereçamento de suas questões.
Se a demanda da criança não se formular e suas questões permanecerem
endereçadas aos pais, a transferência com o analista não se estabelecerá,
impossibilitando, portanto, o tratamento da criança. Se, ainda, o analista for
capturado pela demanda dos pais, tomando a criança a partir desse lugar,
27
Esse último caso, como já mencionado, não é objeto da atenção deste estudo.
103
também não será possível uma análise. Contudo vale lembrar que às vezes a
criança leva tempo para formular sua demanda e endereçar ao analista sua
questão, através da fala, do desenho e da atividade lúdica. Cabe assim ao
analista criar pacientemente as condições para essa possível formulação a partir
da qual poderá então dirigir o tratamento.
Existem ainda outros tipos de entrevistas as quais o analista é convocado a
realizar que, embora periféricas à análise, não deixam de compor a direção do
tratamento: são as entrevistas com outros profissionais que também se ocupam
da criança, como fonoaudiólogos, psicopedagogos, pediatras, neurologistas, entre
tantos. Se, por um lado, pode ser interessante compartilhar os impasses da
clínica com outros profissionais, por outro, as diferenças conceituais próprias a
cada especialidade tornam um encontro desse tipo muito improvável. Em geral é
de escuta que se trata, afinal são discursos que estão sendo tecidos sobre a
criança e que também têm algum efeito sobre ela. O discurso dos especialistas
têm forte ascendência sobre os pais, colaborando enormemente, como já
mencionado, para a deflação do saber paterno. No âmbito educacional
contemporâneo essa situação se potencializa. Segundo Balbo (1992), o desejo
dos pais atualmente é de sucesso social a partir do reforçamento do eu até a
paranóia. As regras dessa luta do salve-se quem puder “são regras constitutivas
do saber, do acesso ao saber e do sucesso no saber”. A criança deve então ser
bem sucedida para o gozo do Outro social. Nesse contexto, as escolas
desempenham um papel considerável, pois recebem diariamente essa demanda
dos pais, aos quais oferecem suas vagas em nome de realizar a tarefa com
perfeição, valendo-se de tantos especialistas quanto se fizerem necessários.
104
Nesse sentido, pode-se imaginar a inevitável complexidade de uma interlocução
entre os representantes da instituição escolar da criança e o analista de quem se
espera recolocá-la rapidamente nos trilhos previstos pela demanda social.
Possivelmente, a única resposta do analista seja simplesmente não responder à
demanda, esperando através do diálogo sensibilizar talvez a escola para a
existência da singularidade revelada no sintoma da criança. Para realizar tal
façanha, além da escuta, faz-se necessário, às vezes, orientar a escola na
criação de um espaço mais propício à subjetividade da criança. Nesse ponto, não
se trata do exercício de uma função estritamente analítica, mas de uma extensão
do campo psicanalítico. Desse modo, o analista pode representar na escola a
possibilidade de alocar subjetividades, proteger diferenças, alimentar
singularidades. Sua intervenção pode não apenas favorecer a criança em
questão, como também provocar algum rearranjo estrutural na instituição escolar.
O analista teria assim a função de resguardar a integridade do sujeito, ou seja, o
lugar do singular no universal da instituição. Obviamente, a análise de uma
criança não implica necessariamente nessa tarefa, mas criar melhores condições
para a vida das crianças vem ao encontro de um posicionamento ético do
psicanalista diante da tendência atual à massificação. Vale lembrar que essa
tarefa é possível ao analista não porque a psicanálise é detentora de um saber
‘melhor’, mas porque o discurso analítico tem como característica justamente a
possibilidade de apontar a resistência implícita nos demais discursos de modo
desobstacularizá-los.
Tem-se aqui registrado um testemunho das muitas questões que cercam o
início do tratamento com crianças. Nos capítulos seguintes, serão abordados os
desdobramentos de tais questões em relação aos demais operadores clínicos.
105
4 DIAGNÓSTICO E SINTOMA
O estabelecimento de uma hipótese diagnóstica se dá primeiramente no
âmbito das entrevistas preliminares, tarefa nada fácil e de grande
responsabilidade, uma vez que fornece os parâmetros iniciais para orientar a
condução do tratamento, ao longo do qual será constantemente [re]ajustada em
um diagnóstico mais acurado.
A psicanálise propõe três estruturas clínicas constituídas a partir de três
modos distintos de negar a castração do Outro: a neurose, pelo ocultamento; a
perversão, pelo artifício; a psicose, pela recusa. Cada um desses modos de
negação corresponde a uma manifestação fenomênica distinta como retorno do
que foi negado: na neurose, o sintoma; na perversão, o fetiche; na psicose, a
alucinação.
Tais estruturas podem também ser compreendidas como modos distintos
de se posicionar diante do gozo: na neurose, fundada no recalque, a castração
conduz ao gozo fálico, o qual pode ser retido no sintoma, bloqueando a
insistência de um desejo ostensivo fruto da castração mal-concebida como
ameaça, ou pode passar pela palavra, regulado pela castração simbólica; na
perversão, o gozo, tão assustador quanto insondável, exige uma defesa
compatível, levando à invenção de um fantasma de ‘sabergozar’; na psicose, o
gozo invasor do Outro, ignorando a castração, excluindo portanto qualquer
possibilidade de algum registro da inscrição paterna, simplesmente não é
regulado pelo significante, permanecendo assim fora da Lei do desejo
28
.
28
Referência às considerações de Braunstein (1999) com relação ao gozo, aqui abordadas no capítulo dois.
106
Uma vez que as questões fundamentais do sujeito, de um modo ou de
outro, encontram-se articuladas à castração, o diagnóstico deve então ser
buscado no registro simbólico. Para tanto, o instrumento do analista é a
transferência, que permitirá formular o diagnóstico a partir da modalidade de
relação do sujeito com o Outro.
O dispositivo freudiano surge da experiência da neurose, com o sujeito
neurótico a demandar análise em função do sintoma, vivido como sofrimento pelo
excesso insuportável de gozo que comporta. O sintoma foi assim concebido
inicialmente como uma formação de compromisso por meio da qual o sujeito
permite ao material recalcado uma expressão possível, revelando-se então como
uma formação do inconsciente, posição assumida, embora disfarçada, pelo
sujeito diante do desejo, sendo tarefa da análise criar condições para o
deciframento desse enigma, procurando restabelecer o paciente do sofrimento
causado pelo conflito inconsciente que deu origem ao sintoma.
A primeira definição de sintoma na obra lacaniana se sustenta nessas
proposições freudianas, o sintoma como uma metáfora, uma mensagem que
detém um sentido e é dirigida a um Outro para ser decifrada. O sintoma fornece
significado ao sujeito, contendo sua verdade, sendo, portanto, uma construção na
qual o sujeito se reconhece e através da qual pede o reconhecimento do Outro.
A demanda de análise é um pedido para desvencilhar-se desse sintoma,
que uma vez endereçado ao analista, muda de estatuto para o sujeito: de
resposta passa a ser uma questão. Essa elaboração do sintoma como sintoma
analítico já é um efeito da estrutura da situação analítica, sustentada na
transferência. Assiste-se, nesse momento, à histerização do sujeito que, a partir
107
de seu desejo, vai endereçar perguntas ao analista, que questionará o sintoma,
para saber a que está respondendo, qual gozo vem delimitar.
Essas referências são gerais e concernem sobretudo à clínica com adultos.
Na clínica com crianças as delimitações diagnósticas são menos claras para
apontar ao analista os caminhos a seguir. A psicopatologia psicanalítica da
criança propõe, em geral, os quadros de autismo, psicose, debilidade, perversão
e neurose. Contudo um diagnóstico diferencial é difícil de ser realizado, pois é
muito freqüente que esses quadros não se apresentem de forma ‘pura’ na clínica
com a criança. A infância, por corresponder ao tempo de estruturação do sujeito,
implica justamente a constante possibilidade de reordenamentos estruturantes,
trazendo problemáticas específicas para o estabelecimento de quadros
diagnósticos.
A psicopatologia da criança se configura como um dos campos
sobre os quais as convicções inarredáveis aparecem como
condenações e, portanto, campo no qual a certeza diagnóstica é
vértice imaginário que fomenta a direção do tratamento,
delimitando a classe em que a criança cabe no mesmo
movimento em que antecipa o enquadramento no qual doravante
ela será localizada e reconhecida. (VORCARO, 2004b, p.12).
A autora atenta para o fato de que, uma vez que o sujeito se constitui a
partir da linguagem e a infância é o período dessa constituição, aquilo que lhe é
então dirigido como discurso passa, assim, a ser-lhe constituinte. Nesse sentido,
ao invés de abrir caminhos, a convicção diagnóstica do clínico pode justamente
limitá-los, podendo mesmo levar ao engessamento do sujeito em uma
determinada configuração psíquica. Noutros termos, a própria função diagnóstica
exercida pelo analista pode expressar uma opressão tão determinante quanto o
discurso social reproduzido pelos pais sobre a criança.
108
Ainda que a psicanálise possa se apoiar em formulações teóricas sobre
descrições psicopatológicas, sua própria especificidade
29
a impede de se reduzir
a elas, dissociando-as da prática clínica direta com a criança. Lembre-se que o
compromisso da psicanálise é com o sujeito, em toda a sua singularidade, e não
com um sistema classificatório.
30
O psicanalista não se ocupa de um doente que
se submete passivamente a um procedimento curativo, “mas de um sujeito a ouvir
quanto à orientação ou à reorientação de seu desejo, com base na expressão
transferencial que ele pode lhe dar”, assim, “os compartimentos diagnósticos
operam tanto melhor quanto mais o analista os deixa no lugar em que convém:
em segundo plano.” (GUILLERAULT, 1996, p.101).
Sem dúvida a psicanálise produziu os instrumentos de um saber,
de uma psicopatologia da criança. Mas o que constitui a
grandeza da experiência analítica sob este aspecto, e a força de
sua operatividade, é a distância que ela assume do que implicaria
uma mera aplicação desse saber. Nesse sentido, se ela rejeita
todo o projeto de uma psicopatologia academicamente
estabelecida, é porque submete o saber sobre o ofício da
experiência a fins de exploração ou de revelação do desejo.
Desse prisma, ela está sempre além da epistemologia que no
entanto anuncia. Cabe notar que é também isso que lhe confere
sua dimensão ética. (GUILLERAULT, 1996, p.103).
Nenhuma descrição psicopatológica pode ocupar o lugar da experiência
clínica, cabendo então ao analista, a cada nova psicanálise, levantar hipóteses a
respeito desse sujeito que vem encontrá-lo. Na clínica com crianças, vale insistir,
sujeitos cujas estruturas se encontram inacabadas, tal exercício deve ser
constante, o que leva alguns psicanalistas a propor categorias diagnósticas como
29
Note-se a indissociável vinculação entre técnica e ética no campo psicanalítico, a ser discutida no capítulo
sete.
30
A esse propósito, «Como toda classificação, útil ; como toda classificação, falsa», Fernando Pessoa.
109
‘psicose não-decidida’, denominação que encerra a dificuldade de delimitação
clara de um diagnóstico na infância.
31
Os instrumentos de leitura de que dispõe o analista, na clínica com
crianças, para a realização de uma hipótese diagnóstica são, portanto, além da
transferência, por meio da qual pode rastrear a relação da criança com o Outro, a
escuta do discurso familiar nas entrevistas preliminares, para localizar o lugar da
criança na fantasia parental, de modo a recolher significantes familiares
fundamentais que permitam realizar a leitura da resposta da criança a essa
configuração.
Nesse sentido, com todas as limitações e impasses apresentados com
relação ao diagnóstico na infância, o texto de Lacan Nota sobre a criança, 1969,
pode ser tomado como uma proposta de leitura diagnóstica a partir de um
entendimento sobre o sintoma na infância, referência importante, da qual parte a
maioria dos autores do campo lacaniano para falar da psicopatologia da criança.
Lacan afirma que o sintoma da criança se situa de forma a corresponder ao
que há de sintomático na estrutura familiar, definindo-se como representante da
verdade de tal núcleo, revelando sua implicação com a subjetividade dos pais.
A articulação é mais simples quando o sintoma tem a ver unicamente com
a subjetividade da mãe: a criança é tomada como objeto da fantasia materna e
tem como função revelar a verdade desse objeto. Assim, ao realizar a presença
do objeto a na fantasia, a criança obtura a falta da mãe, mantendo-a completa.
Trata-se da criança psicótica ou autista, a própria criança colocada no lugar de
sintoma do Outro, configurando o que se pode chamar de criança sintoma. Essa
armação maciça traz dificuldades para a intervenção analítica, requerendo pensar
31
Cf Bernardino (2004) op.cit.
110
sobre as condições em que tal intervenção pode ocorrer, afinal, quando a
metáfora paterna não se instala, a operação analítica sofre uma inversão, partindo
de um real flagrante a um simbólico ainda impossibilitado.
32
Quando o sintoma representa a verdade do casal parental, o caso é mais
complexo, mas também mais aberto às intervenções do analista, pois a metáfora
paterna já instalada torna o sujeito sensível à linguagem, caso da criança
neurótica, que responde com um sintoma próprio, nomeado, portanto, de sintoma
da criança, ao que há de sintomático na estrutura familiar. São esses os casos
que interessam a este trabalho.
Lacan (1969) faz uma referência específica ao sintoma somático, que dá o
máximo de garantia ao desconhecimento da mãe de sua verdade, trazendo
também mais dificuldades para sua abordagem. De qualquer modo, em cada
caso é preciso se fazer uma leitura minuciosa do sintoma, investigar ao que ele
responde, afinal, mesmo dentro dessas categorias, pode-se deduzir da leitura
desse texto que existem graus diferentes de submissão à fantasia materna.
Em suma, na relação dual com a mãe, a criança lhe dá,
imediatamente acessível, aquilo que falta ao sujeito masculino: o
próprio objeto de sua existência, aparecendo no real. Daí resulta
que, na medida do que apresenta de real, ela é oferecida a um
subornamento [subornement] maior na fantasia. (LACAN, 1969,
p.374).
A criança entra como um novo elemento na dialética que se estabelece em
torno da relação da mulher com sua falta essencial de objeto, cujo significante é o
falo. A questão da criança é saber como pode, ou não, saciar o desejo da mãe
com relação a essa falta: ocupar o lugar de falo imaginário, legado por Freud, ou
o de objeto a, proposto por Lacan. Se a criança ocupar o lugar de falo da mãe, a
32
Esses casos foram objeto de estudo em pesquisa de mestrado já referida anteriormente. Cf Petri (2000)
op.cit.
111
direção do tratamento será examinar qual é a versão de falo intrínseca a seu
sintoma; se ocupar o lugar de objeto a, o analista examinará qual versão desse
objeto ela é para a mãe, e como pode vir a se descolar dele. Uma vez que,
inicialmente, toda criança é para a mãe aparição no real do objeto de sua
existência, e pode, em um segundo momento, ocupar o lugar de falo ou
permanecer realizando o objeto a em sua fantasia, realizar essa leitura diferencial
é fundamental ao analista para decidir as intervenções pertinentes a cada
tratamento.
Nesse sentido, Lacadée desdobra a afirmação de Freud, em Inibição,
Sintoma e Angústia, 1925, de que o sintoma é o sinal e o substituto de uma
satisfação pulsional que não teve lugar: “em o sinal e o substituto reencontramos
a vertente simbólica da criança como substituto fálico e na satisfação pulsional
que não teve lugar, a vertente da criança que, como objeto a, vem preencher o
buraco real que excede a satisfação fálica.” (LACADÉE, 1996, p.81). Quando a
criança está no lugar de falo da mãe, é sinal de que já existe uma referência
ternária, portanto, simbólica; enquanto objeto a, a relação é ainda dual, não
contando com esse distanciamento. Note-se que, na vertente simbólica ou na
real, a criança não deixa de encontrar um lugar como versão substitutiva de um
elemento estrutural desse Outro que agencia sua fantasia.
Note-se, ainda, a importância conferida à sexualidade feminina no avanço
do entendimento do sintoma da criança. Um filho, que de algum modo sempre
aparece como um possível substituto àquilo que falta essencialmente à mulher,
servindo assim para obturar essa falta, estará contudo livre de maiores riscos, se
sua mãe continuar exercendo a própria sexualidade enquanto uma mulher.
Quando consente em servir ao gozo de um homem, renunciando a gozar às
112
custas do filho, a mãe segue então desejando enquanto mulher, posição que será
fundamental à possibilidade de a criança realizar as construções necessárias à
sua própria constituição como um sujeito desejante. Esse momento de apreensão
da castração materna é o ponto central de articulação das questões da infância.
No caso da criança neurótica, o sintoma corresponde então a uma solução,
ainda que parcial, para responder ao real em jogo, sendo, assim, o testemunho de
sua apropriação, como sujeito, do que ela é no desejo parental. É no sintoma que
a criança pode alojar sua subjetividade, garantindo a legitimidade de sua
existência. Para fazer a leitura do sintoma, da resposta que a criança dá ao
desejo que a engendrou, a escuta dos pais nas entrevistas preliminares é, como
já afirmado, fundamental.
O sintoma aparece justamente quando a criança não encontra disponíveis
no campo do Outro os termos necessários para contornar os impasses que
enfrenta, diferentes conforme o tempo da constituição em que se encontra, o quê
inviabiliza a construção de um mito que lhe permita avançar em suas
investigações, na elaboração de suas respostas e questões. Diante dessa
carência de dispositivos para enfrentar o real, ele se impõe, trazendo angústia. A
criança paga o preço das limitações impostas pela invenção de um sintoma que
lhe permita contornar esse real gerador de angústia. Vale ressaltar que não existe
uma equivalência entre sintoma e momento de efetuação da estrutura, podendo o
mesmo sintoma clínico aparecer em momentos distintos da constituição do
sujeito.
Com as formulações do último tempo do ensino de Lacan, sobretudo na
década de setenta, a noção de sintoma sofre mudanças significativas, sendo
trabalhado como uma função, trazendo implicações fundamentais para a clínica.
113
É o que, do inconsciente, pode se traduzir por uma letra, na
medida em que, apenas na letra, a identidade de si a si está
isolada de qualquer qualidade. Do inconsciente todo um, naquilo
que ele sustenta o significante em que o inconsciente consiste,
todo um é suscetível de se escrever com uma letra [...]. O que
não cessa de se escrever no sintoma vem daí. (LACAN, 1974/75,
p.23).
Ressalta-se, assim, o ponto de fixação de gozo existente no sintoma como
função de gozo da letra, configurando o núcleo do sintoma, responsável por um
certo modo de gozo. Essa formulação não invalida a anterior, o sintoma como
metáfora, mas traz um acento na escritura, a face real do sintoma.
A partir dessas formulações, Braunstein (1999) define o sintoma como
gozo encapsulado, com valor de letra, escritura a ser decifrada a partir de sua
conversão em discurso. Quando o sujeito emudece, o sintoma vem ocupar seu
lugar, como reversão do discurso em gozo, gozo ignorado e repudiado pelo
sujeito. Com a tese da palavra como diafragma do gozo
33
, o autor assinala que o
sintoma na neurose aparece diante da necessidade de refrear um gozo vivido
como perigoso e intolerável, quando o diafragma então se fecha, represando
assim o gozo que consistirá no alimento do sintoma. De acordo com essa
imagem, a psicanálise corresponderia a uma incidência sobre a palavra de modo
a permitir o desbloqueio e a passagem do gozo retido. Noutros termos, através
das condições ideais e artificiais do encontro analítico, o sujeito do sintoma
confronta-se com o impossível do gozo, reconhecendo como alternativa para tal
impossibilidade o caminho do apalavramento.
Mais além, Lacan, no seminário Sinthome, 1975/76, aprofunda a questão,
alterando a escrita da palavra sintoma para sinthoma. Leite (s/d, p.9) relaciona as
duas noções: “o sinthoma opera como suplemento. O sinthoma aponta ao real do
33
Cf capítulo dois, item dois.
114
sintoma, real este constituído pela exclusão do simbólico e que aponta o gozo
fora do sentido. O sintoma, além de mensagem cifrada, é efeito do sinthoma,
meio do sujeito organizar seu gozo.” O sinthoma refere-se ao modo de gozo do
sujeito, é da ordem da escritura, enquanto o sintoma é a criação de um elemento
para delimitar um extravasamento de gozo, já sendo uma interpretação, uma
tentativa de deciframento daquilo que faz letra. Quando essa decifração é
realizada pela palavra, o sujeito pode dispensar o sintoma.
O sinthoma corresponderia assim a um quarto anel compondo o nó
borromeano, presente em qualquer estrutura como o elemento que vem amarrar
definitivamente os registros RSI. Nesse sentido, comparativamente ao sintoma,
enigma endereçado ao Outro demandando decifração, o sinthoma não é
transitivo: não precisa de dois, é um. “Não se trata, é claro, da solidão
subjetivada, vivencial, mas do Um como formação psíquica em hiância com o
Outro”. (HARARI, 2002, p.215). A dependência do Outro através de uma dívida
simbólica impagável não se aplica. Em vez de metáfora, o sinthoma é nominação,
ou seja, não uma substituição, mas uma invenção que vem reparar o erro de
escrita do nó, um erro constitutivo que, de algum modo, em alguma medida,
sempre participa de uma estruturação. No sinthoma, o que está em jogo não é a
verdade, mas o real, ao qual só se tem acesso por pontas e pedaços. Nesse
sentido, o tratamento analítico é nomeado como práxis do real e não como busca
da verdade, uma vez que não reside simplesmente em interpretar o inconsciente,
mas em tocar um pedaço do real.
Embora a matéria-prima seja a mesma, as marcas inaugurais do sujeito,
sintoma e sinthoma são construções radicalmente diferentes: o sinthoma remete
ao saber fazer com aquilo que deu lugar ao sintoma, os fatores da ordem da
115
causa. O fim de análise no tratamento padrão, segundo essa leitura,
corresponderia então à identificação com o sinthoma, como uma formação que
não divide, não despedaça.
34
(Harari, 2002).
Qual a pertinência dessa teoria do sinthoma na clínica com crianças?
Como esses novos elementos propostos podem servir à leitura da criança como
analisante?
Há posicionamentos teóricos distintos. Para Jerusalinsky, em Sintomas de
Infância, 1997, o sinthoma refere-se a “uma forma estrutural de resolução da
distância que separa a criança, enquanto sujeito, de seu objeto ideal [...] uma
posição necessária para o sujeito em questão”, ao que nomeia de sintoma de
infância, enquanto o sintoma, ao qual prefere chamar de symptôme, mantendo
uma referência à língua francesa, corresponderia aos sintomas clínicos, que
revela a contingência de uma resolução, de caráter provisório, ao qual nomeia
sintoma infantil.
Noutros termos, o sintoma de infância é “a versão subjetiva que sua
condição infantil [do sujeito na infância] lhe permite dar ao sexual”
(JERUSALINSKY, 1997, p.13), e se refere a toda a problemática da sexuação que
determina a posição do inconsciente durante a infância. A sexuação determina-se
no campo da linguagem, mas é sensível aos ideais parentais: “Ser homem ou ser
mulher já, quando ainda não tem possibilidade do ato que nisso as situe, obriga
as crianças a produzirem seu sintoma [sinthoma] ...que, a partir dali, não é mais
dos pais, mas é próprio.” (JERUSALINSKY, 1997, p.12).
34
A discussão sobre o fim da análise será realizada no capítulo seis.
116
Como abordado no capítulo dois, essa condição de a criança não ter
acesso ao ato sexual propriamente dito caracteriza uma diferença essencial em
relação ao adulto quanto à impossibilidade da relação sexual. Dependendo de
como essa impossibilidade é transmitida, verificam-se efeitos distintos.
A impossibilidade da relação sexual, colocada para a criança
como impotência, é o que faz deslizar do medo noturno a dormir
com os pais, do pesadelo à enurese, do insistente ‘por que’ à
fobia escolar, da teorização sexual ao ritual obsessivo, da
personificação ao mimetismo. (JERUSALINSKY, 1997, p.13-14).
O modo de a criança assimilar a inexistência da relação sexual seria então
o que faz a báscula da neurose infantil, da ordem do sinthoma, para a neurose da
criança, com sua sintomatologia clínica. O autor afirma ainda que a fantasia na
infância sustenta um paradoxo, qual seja, “a sexuação antecipa-lhe na estrutura
uma posição cuja prática está duplamente vedada.” Quando a transmissão da não
relação sexual fracassa, ou seja, o impossível é transmitido como impotência, o
sintoma aparece, possibilitando assim uma saída, mesmo que precária, para esse
impasse.
Para Jerusalinsky, a construção do sinthoma se dá portanto ainda na
infância, equivalendo ao próprio movimento de estruturação subjetiva, não
necessariamente vinculada à emergência de sintomas. O entrave na construção
do sinthoma, ou seja, os impasses e fracassos na construção da neurose infantil,
traz os sintomas clínicos, que configuram a neurose da criança.
Rassial (1997), como já apontado
35
, defende outra tese. Ressalta a
importância da infância como um primeiro tempo da estruturação, com os
sucessivos enodamentos entre os registros real, simbólico e imaginário, a partir
do qual somente na adolescência, um segundo tempo dessa estruturação, é que
35
Cf. Rassial (1999) op. cit.
117
poderia se dar a construção do sinthoma como um quarto elo com a função de
reparar as falhas da primeira estruturação. A adolescência, portanto,
corresponderia ao tempo lógico da construção do sinthoma. O autor destaca essa
questão da temporalidade na teoria dos nós.
Com efeito, se os três primeiros aros, sejam quais foram os
fracassos de seu enodamento, são primários, este quarto aro é,
em sua essência, secundário, pois reparador. Assim, a descrição
sincrônica não basta e sua escritura supõe uma diacronia, ou, em
termos mais explícitos, uma gênese do nó sinthomal. (RASSIAL,
1997, p.32).
Vorcaro (1997) propõe a constituição subjetiva na infância a partir do
enodamento de RSI, segundo uma lógica de construção do nó borromeano de
três aros, apenas citando o quarto aro reparador junto à indecisão teórica que o
cerca - possibilidade de suplência à estrutura ou condição de estruturação –
reconhecendo, contudo, a importância da noção de sinthoma para se refletir sobre
o tratamento de crianças nos casos que escapam a essa condição borromeana
de estrutura de três aros como, por exemplo, o autismo, as psicoses e a
debilidade.
O sujeito pode constituir invenções para o atamento borromeano,
em suprimento aos pontos de fracasso do enodamento, pontos
em que a função da metáfora paterna não teve incidência, nas
versões (pére-versions) que amarram RSI para suportar a
modalização subjetiva. (VORCARO, 1997, p.134).
A hipótese defendida neste trabalho é a de que, embora não esteja em
jogo na infância a construção propriamente dita do sinthoma, como um quarto elo
reparador, é durante esse período que os arranjos fundantes da estrutura se
ordenam, com os enodamentos dos registros e seus possíveis erros de escrita, e
é nessa situação, então já desenhada, que o sinthoma adolescente virá se
118
inscrever. Nesse sentido, em consonância com Rassial, sustenta-se neste
trabalho que a estruturação se dá numa seqüência lógica em dois tempos.
Lacan, no seminário sobre o sinthoma, 1974/75, afirma que o traçado do nó
faz erro, por uma carência do pai. Carência aqui não é sinônimo de falta
simbólica, mas de um chamado dirigido a alguém que não comparece, não
responde, ao que o sinthoma vem reparar. Na infância, são os sintomas que virão
eventualmente sinalizar uma falha, localizada em pontos determinados da
articulação da estrutura. Noutros termos, pode-se dizer que a criança tem um
trabalho psíquico a realizar, tecer o nó borromeano de três aros, articular RSI, e
na ocorrência de um lapso, é por meio dos sintomas que contornará seus
impasses. Lacan (1973/74) afirma ainda que a criança deve aprender alguma
coisa para que o nó seja bem feito, ressaltando que nada é mais fácil do que algo
falhar nesse amarração. Assim, os impasses próprios a cada tempo da
constituição do sujeito desenhariam um mapa sobre o qual a construção do
sinthoma se daria mais tarde.
A função do sintoma na criança e no adulto é, então, diferente. Esse quarto
elo, sinthoma de estrutura, a partir da adolescência, é uma tentativa de reparação
das falhas de enodamento dos três registros, ou seja, uma tentativa de reparação
do impossível da relação sexual. O adulto demanda análise pelo incômodo do
sintoma como mensagem cifrada, mas o trabalho da análise aponta para o
sinthoma. Na infância, os sintomas vêm solucionar algum impasse no
enodamento dos registros, servindo para buscar efeitos parciais de acomodação,
uma vez que a estrutura toda ainda não está em questão. Esse impasse tem
relação com o Outro parental, onde a criança busca os termos necessários para
resolver seus problemas. Muitas vezes essa solução sintomática do impasse em
119
questão traz dificuldades, ou mesmo impossibilidades, causando uma estagnação
na construção da neurose infantil, podendo demandar uma escuta analítica para
propiciar a retomada da estruturação.
A hipótese diagnóstica na infância é então composta de uma leitura
estrutural articulada à leitura do estado de efetuação dessa estrutura, uma vez
que corresponde a um período da constituição no qual os elementos mudam de
lugar configurando ordenamentos distintos. Esse trabalho propõe, como visto no
segundo capítulo, uma escanção da infância em três tempos: ‘a criança pequena’,
anterior à confrontação com a castração materna, em plena dialética da
frustração; ‘a criança edípica’, na travessia do complexo de Édipo; e a ‘criança na
latência’, com um caminho já escolhido para a neurose, em tempo de
compreender a castração. Para precisar a leitura diagnóstica faz-se necessário
detectar qual a relação que os elementos estabelecem entre si e localizar o ponto
de carência que leva o sujeito a inventar um sintoma para repará-lo, permitindo ao
analista realizar a leitura desse sintoma, estabelecer a direção de tratamento e,
posteriormente, definir o momento de encerramento da análise.
Na ‘criança pequena’, o sintoma aparece como correlato do gozo do Outro,
gozo que se situa no corpo, sendo exterior ao simbólico. Quando o agente da
função materna falha, situando-se numa posição não-castrada, deixando,
portanto, de veicular a palavra paterna, impede a criança de encontrar elementos
que possibilitem a resolução de seus impasses. Noutros termos, quando a
renúncia ao gozo simbiótico com a mãe não se efetiva, aparecem os sintomas,
com seu equivalente excesso de gozo.
Freqüentemente, os sintomas da criança pequena aparecem atrelados ao
corpo, uma vez que “o significante, na infância, entrelaça-se com o corpo de uma
120
maneira muito mais estreita do que no adulto.” (CORIAT, 1999, p.152). Nesse
sentido, “podemos ouvir o funcionamento do organismo como ouvimos as
palavras de um analisante ou a produção gráfica de uma criança: são efeitos do
inconsciente de quem as produz, referentes à experiência do sujeito”.
(ELIACHEFF, 1995, p.17/18).
A anorexia mental é um sintoma comum desse tempo, embora apareça
também em outros momentos, acompanhada de outros transtornos como, por
exemplo, vômitos, refluxos, descontrole dos esfíncteres, distúrbios de sono. Tais
sintomas surgem diante de impasses não superados na dialética da frustração,
lógica que caracteriza esse tempo da constituição do sujeito.
R. apresenta uma anorexia em resposta à posição da mãe, leitura feita pelo
analista a partir das entrevistas preliminares, que, diante da distância entre seus
ideais e os acontecimentos iniciais na sua relação com o filho – gravidez
indesejada, nascimento precoce, falta do próprio leite para a amamentação,
alergias da criança com relação a outros leites – construiu um quadro depressivo
que a impossibilita de ser agente transformador do objeto real em objeto de dom.
A criança, por sua vez, recusa sistematicamente seus objetos de necessidade,
passando então a comer nada, objeto possível no plano simbólico.
O fracasso na dialética da frustração apresenta-se assim como uma
inviabilidade para a entrada no jogo de engodo, o jogo no qual a criança aceita se
fazer objeto enganador forjando a complementaridade do Outro. No caso de R., o
jogo fracassa porque o desejo da mãe é a um só tempo enigmático e devastador,
deixando a criança impossibilitada de uma resposta satisfatória. A saída
sintomática encontrada pela criança para se sustentar como sujeito diante da
121
mãe, que se retirou em uma posição depressiva, foi comer nada, de modo a
inverter a lógica do jogo, colocando assim a mãe na sua dependência.
O sintoma na ‘criança edípica’ é referente ao gozo fálico, possível a partir
da incidência da castração. Surge quando há uma falha, que indica uma carência
do articulador essencial de tal tempo, qual seja, o pai real, agente da castração.
A renúncia ao gozo não se realizando, cria um represamento que alimenta o
sintoma. Nesse sentido, a fobia de cavalos do pequeno Hans é exemplar. Entre a
angústia provocada pelo vislumbre da castração materna e a ausência de
recursos ‘paternos’ para ajudá-lo a seguir adiante, Hans só consegue permanecer
no mesmo lugar já ocupado de objeto para o gozo de sua mãe, configurando o
significante ‘cavalo’ como objeto ao qual dirigir uma fobia de modo a aplacar sua
angústia. A elaboração do sintoma de Hans é assim, ao mesmo tempo,
absolutamente singular quanto à escolha do objeto cavalo, articulador central de
suas cadeias significantes, mas também notadamente elucidativa quanto à
importância da função paterna nesse tempo da constituição do sujeito.
A ‘criança na latência’, que já atravessou o Édipo e está às voltas com a
compreensão da castração, apesar de aparentemente manifestar sintomas que
respondem a uma lógica mais próxima do adulto, apresenta particularidades pelo
fato de ainda não estar concretamente confrontada com falta da relação sexual e
não ter construído seu sinthoma. Para além do gozo fálico, a criança tem nesse
momento a experiência da linguagem como insuficiente para dar conta das
perguntas sobre o desejo e o gozo do Outro. A questão do sentido então se
coloca, podendo levar ao que Lacan chamou de gozo do sentido - jouis-sens - o
qual se inscreve na intersecção entre S e I, sustentado pela ex-istência do real.
122
Apontar para o gozo que se obtém através de um sentido é o que pode levar à
[re]abertura da cadeia significante.
M. apresenta sintomas que revelam sua crescente apreensão da
inconsistência do Outro. Torna-se uma criança retraída, mostrando um
desinvestimento nas relações familiares inversamente proporcional ao
investimento excessivo em outras figuras de adultos - professores, dentistas,
instrutores etc. - buscando aparententemente compensar a falta de referências
encontrada junto aos pais. Esse quadro aparece após a separação litigiosa do
casal parental e a posterior assunção pela mãe de uma posição homossexual,
passando efetivamente a morar com uma outra mulher. Esse cenário parece
causar um espécie de ‘curto-circuito’ nas elaborações até então sustentadas pela
criança a partir da transmissão dos modos de gozo realizada pelos pais. A brusca
e traumática ruptura dessa ordem joga-lhe duramente ao encontro com a verdade
de que o saber paterno não pode dizer nada sobre o gozo da mãe, e seu
retraimento pode ser compreendido como uma resposta ao fato de não ter
encontrado no Outro parental condições para elaborar de modo suficiente a
problemática sobre o desejo da mãe.
Como já enunciado, o estabelecimento de uma hipótese diagnóstica e a
elucidação do sintoma são funções das entrevistas preliminares que se articulam
ainda com uma terceira, a transferência, que será mais especificamente abordada
no próximo capítulo.
123
5 TRANSFERÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E ATO
5.1 Transferência
A noção de transferência é central para a clínica psicanalítica. Freud tratou
do tema em vários momentos de sua obra. Primeiramente em Estudos sobre a
histeria, 1895, a propósito de um modo particular de resistência inerente à relação
do paciente com o médico. Na Interpretação dos sonhos, 1905, define-a como um
deslocamento que visa a realizar o desejo inconsciente através do material
fornecido por restos diurnos, pré-conscientes.
Em 1912, Freud caracteriza a transferência como a reprodução atualizada
de um protótipo relacional infantil, fenômeno recorrente em qualquer relação,
embora realçado pela própria estrutura da relação analítica, de modo a revelar os
conflitos essenciais que se tornam objeto da intervenção do analista.
Ainda em 1912, Freud aponta a contradição intrínseca à transferência,
tanto veículo quanto obstáculo para a análise, ressaltando a importância de seu
manejo para o sucesso do tratamento.
Não se discute que controlar os fenômenos da transferência
representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não
se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o
inestimável serviço de tornarem imediatos e manifestos os
impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Pois, quando
tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou
in effigie. (FREUD, 1912, p.143).
Em 1914, Freud nomeia esse fenômeno de neurose de transferência:
Contanto que o paciente apresente complacência bastante para
respeitar as condições necessárias da análise, alcançamos
normalmente sucesso em fornecer a todos os sintomas da
moléstia um novo significado transferencial e em substituir sua
neurose comum por uma ‘neurose de transferência’, da qual pode
124
ser curado pelo trabalho terapêutico. A transferência cria, assim,
uma região intermediária entre a doença e vida real, através da
qual a transição de uma para a outra é efetuada. (p.201).
A neurose de transferência seria então uma doença artificial transitória a
ser curada pela própria análise que a provocou, a qual revela ao analista a
posição do sujeito diante do Outro, configurando assim o “terreno de manobra
onde se desenrola a compulsão à repetição da qual transborda a rememoração,
ao ponto, aliás, de a própria transferência poder ser considerada como uma
espécie de passagem ao ato dessa repetição.” (PORGE, 2003b, p. 140).
Além das considerações sobre a transferência como repetição e
resistência, Freud aponta ainda para o potencial sugestivo da situação. “Devemos
admitir que os resultados da psicanálise repousam sobre a sugestão. Por
sugestão devemos entender a forma de influir sobre uma pessoa mediante os
fenômenos de transferência possíveis em seu caso.” (FREUD, 1912, p.140).
Apesar de todo o desenvolvimento freudiano da questão, a leitura inicial da
transferência como expressão dissimulada do desejo inconsciente manteve-se
inalterada. Com a evolução da clínica, percebeu-se que a própria estrutura da
relação analítica torna a figura do analista uma representação privilegiada para a
qual o deslocamento se dirige. O saber inconsciente, saber que não se sabe, é
confiado ao analista, que se torna assim precioso por ser o depositário do tesouro
do analisante, do verdadeiro cerne de seu ser. Essa estrutura relacional tem como
conseqüência inevitável o amor de transferência, amor àquele que se supõe saiba
sobre o sofrimento que acomete o sujeito, suposição essa necessária para que a
entrada em análise aconteça. Freud realizou um esforço teórico intenso na
sustentação de que para além da questão ética, não responder à demanda de
125
amor do paciente é a própria condição de existência da psicanálise: o analista
deve responder ao amor com o saber.
É com Lacan que a leitura dessa estrutura própria à relação analítica ganha
uma maior precisão, trazendo conseqüências para a compreensão e o manejo do
fenômeno da transferência.
O sujeito suposto saber é, para nós, o eixo a partir do qual se
articula tudo o que acontece com a transferência. [...] Vemos que,
embora a psicanálise consista na manutenção de uma situação
combinada entre dois parceiros, que nela se colocam como o
psicanalisante e o psicanalista, ela só pode desenvolver-se ao
preço do constituinte ternário, que é o significante introduzido no
discurso que se instaura, aquele que tem nome: o sujeito suposto
saber, esta uma formação não de artifício, mas de inspiração,
como destacada do psicanalisante. (LACAN, 1967, p.253-254).
A transferência se articula, então, entre analisante e analista graças ao
significante sujeito suposto saber, constituinte ternário dessa relação, o qual, uma
vez instalado, traz como efeito o aparecimento do amor. A demanda por livrar-se
do sintoma, característica do discurso de chegada do analisante, verte-se, assim,
em uma demanda de amor. O analista deve estar atento para fazer emergir nessa
demanda a dimensão do desejo, como desejo do Outro, permitindo ao sujeito
uma elaboração própria dessa questão, sem o que corre-se o risco de
permanecer na vertente imaginária da transferência, inviabilizando assim o
tratamento.
O amor na transferência é dirigido ao saber, embora não deixe de ter como
finalidade o objeto causa do desejo. “Esse objeto (o objeto a) é o que confere à
transferência seu aspecto real: de real do sexo. Trata-se aqui da vertente da
transferência como colocação em ato da realidade sexual do inconsciente”.
(QUINET, 2002, p.29). O lugar do analista na estrutura da transferência é portanto
o de suporte do objeto causa do desejo, e não o da própria causa.
126
É preciso separar e diferenciar suporte e causa. A causa de um
desejo se sustenta, se ordena no aparato psíquico de quem
deseja [...] A causa do desejo se localiza no (a) de ser fantasma.
Passemos agora a este outro lugar, que é de quem suporta o
lugar de causa; implica a estrutura de quem o suporta, o lugar
desde onde o faz. (...). É necessário destacar que não é o
mesmo suportar o objeto causa do desejo do outro, que ser a
causa mesma, se isso ocorresse haveria relação sexual.
(CAZENAVE, 1991, s/p).
Ao se colocar como o suporte desse objeto, o analista se torna precioso,
condição para manter a transferência, permitindo assim a realização da análise.
Nesse sentido, através da transferência, como função de amor, torna-se possível
ao analisante fazer com que o gozo ceda ao desejo, passando então pelo
diafragma da palavra.
A partir dessa leitura estrutural, a noção de neurose de transferência tal
como propõe Freud parece não se sustentar. Porge (2003b, p.144) explica que
não se poderia verdadeiramente falar de uma reedição da história passada do
sujeito sobre a pessoa presente do analista, pois, “o analista estava já lá na
história do sujeito. E ela [a neurose de transferência] não vem a substituir a
neurose ordinária, uma vez que está em uma relação de coalescência com
aquela”. Noutros termos, o sujeito suposto saber, presente desde o princípio,
juntamente com o objeto a são os dois elementos aos quais se relaciona a
transferência no ensino de Lacan.
De modo esquemático pode-se dizer que o objeto a concerne a
relação do sujeito ‘de um Outro ao outro’, ao objeto, ao mais-de-
gozar, segundo o registro do possível, do contingente, enquanto
o sujeito suposto saber concerne o sujeito em sua relação à
consistência do saber, à coerência significante, à origem da
ciência e se inscreve antes no registro do necessário. (PORGE,
2003b, p.152).
A escolha do analista é também relevante para a instalação da
transferência, formalizada por Lacan como a articulação entre dois significantes: o
127
significante da transferência dirigido pelo analisante ao significante qualquer
representado pelo analista. O efeito dessa transferência significante é a produção
de um sujeito como significado articulado através de uma suposição de saber
inconsciente. (QUINET, 2002, p.27-28).
A transferência é assim uma função do analisante que lhe possibilita entrar
em análise, cabendo ao analista sustentá-la, manejá-la, interpretá-la e conduzi-la
à dissolução, conforme o momento do tratamento.
Uma vez explicitados os elementos essenciais da transferência, como
articulá-los na clínica com crianças?
Freud, na Conferência 34, 1937, ocasião em que afirma que a técnica de
tratamento deveria ser modificada para sua aplicação em crianças, nota que a
transferência em tais casos desempenha um papel diferente, devido
principalmente ao fato de os pais reais ainda estarem em evidência. Mais uma
vez, para abordar a criança como analisante é preciso começar pela presença
dos pais.
Como já visto, o que caracteriza a criança como analisante é o fato de ser
um sujeito ainda em constituição, numa relação de dependência com o Outro,
sem a confrontação com o Outro sexo, o que a deixa numa posição
incompletamente decidida em relação ao gozo. Noutros termos, a infância não
corresponde ao ‘dito e feito’, ao contrário, os chamados conflitos infantis, em
plena vigência, deixam a criança empenhada na busca de elementos,
encontrados no campo do Outro, para contorná-los, trabalho psíquico que realiza
sobretudo através do brincar.
Essa condição estrutural do sujeito na infância traz uma série de
conseqüências para o estabelecimento da transferência. Um primeiro ponto
128
fundamental é que antes mesmo da instalação do constituinte ternário na relação
analista/analisante, o sujeito suposto saber, é necessário ao analista ocupar tal
lugar primeiramente para os pais da criança, para que a análise possa vir a
ocorrer. Efetivamente, já não se está diante de uma situação acertada entre dois
parceiros apenas: tem-se necessariamente pelo menos mais um elemento na
cena, não somente para a configuração inicial, como também para todo o
direcionamento, do tratamento. Enquanto a transferência dos pais não se instalar,
a análise da criança não poderá ocorrer, não apenas porque, objetivamente, seu
comparecimento às sessões depende da mobilização de seus pais, mas também
porque o lugar por eles ocupado, de Outros primordiais, detém o poder de
desautorizar o tratamento, desfavorecendo assim o estabelecimento da
transferência da própria criança.
O analista ocupa então um lugar transferencial ambivalente: é sujeito
suposto saber para a criança, em grande medida, porque é sujeito suposto saber
para seus pais. Atal (1998) usa o termo ‘dupla escuta do analista’ para se referir a
essa transferência de dois lados. Tal configuração traz dificuldades para o manejo
transferencial, uma vez que compõe transferências que se entrecruzam, mas que
mantêm elementos distintos. Em geral, a demanda dos pais é dirigida ao analista
como um especialista e, para que possam aceitá-lo no lugar de sujeito suposto
saber, é preciso portanto que se reconheçam destituídos desse lugar de quem
sabe sobre o sintoma do filho. O manejo dessa transferência implica em não
responder a essa demanda inicial, criando um espaço para o resgate da
possibilidade de confecção de um saber paterno sobre o filho, o que não rivaliza
necessariamente com a análise da criança, mas visa a restabelecer um lugar de
transmissão simbólica que foi interrompida. Sendo assim, a transferência dos pais
129
com o analista é uma condição para a psicanálise com crianças, torna-se tarefa
do analista manejá-la de modo a garantir a situação analítica com a criança.
Uma vez que a escolha do analista é geralmente feita pelos pais, a criança
pode endossar tal escolha, tomando um significante qualquer do analista para
onde dirigir o significante da transferência, ou pode recusá-la, não estabelecendo
a relação transferencial.
Uma particularidade esclarecedora da transferência na clínica com
crianças, especificamente quanto à relação transferencial da própria criança, é o
fato de o lugar de sujeito suposto saber a ser ocupado pelo analista já estar sendo
ocupado pelo adulto, sobretudo o casal parental, “encarnando o Outro com uma
consistência que não é equivalente à que podemos encontrar num adulto”
(CORIAT, 1997, p.300). Nesse sentido, Porge (1998) propõe que a neurose da
criança é sempre uma neurose de transferência, dirigida a algum objeto parental.
Dessa forma, a criança vem à análise quando a neurose de transferência com os
pais entra em colapso, trazendo uma ruptura na transmissão do saber.
O ponto de ruptura da transferência, em um dos pais, é esse
ponto em que não se é mais bom entendedor, onde não se ouve
mais a divisão do sujeito na sua mensagem, ali onde justamente
seria importante que ele o ouvisse. Essa falência é tão geral
quanto a neurose na criança. (PORGE, 1998, p.14).
Lacan (1964, p.197), embora ressalte a importância da presença de
pessoas ao redor da criança, afirma que ela quando fala não se dirige a uma
pessoa, falando “para lá, canto da coxia”. É a partir dessa formulação que Porge
(1998, p.15) elabora a noção de transferência para os bastidores, com a idéia de
que a companhia de um bom-entendedor é fundamental para que a criança
possa, através de suas brincadeiras e indagações, explorar as possibilidades do
saber possível ao seu tempo de constituição, de modo a realizar a construção de
130
sua neurose infantil. Nesse sentido, quando o bom-entendedor, sustentáculo dos
bastidores, deixa de sê-lo, rompe-se a transferência. Tal ruptura ocorre
geralmente quando o adulto em questão em vez de continuar sustentando ‘o
bastidor’ passa a encarná-lo, sobrepujando assim as questões psíquicas da
criança com as próprias. Situação bastante comum em nossa atualidade, na qual,
como mencionado
36
, a relação com a castração se evidencia um problema,
levando o adulto a olhar para a criança como uma possibilidade de restituição
narcísica, sugerindo que ela deva, por sua vez, procurar também escapar à
castração, ao invés de tirar proveito dela.
Nesse sentido, quando os pais fracassam no lugar de bons-entendedores,
dificultando o acesso da criança aos termos necessários para a resolução dos
impasses próprios a suas elaborações, o analista pode ser convocado.
Esse modo de falência atribui ao analista, quando é solicitado,
um lugar equivalente àquele que desempenha para a criança o
romance familiar. [...] O romance familiar é uma maneira de
restabelecer o pedestal do qual os pais caíram. O analista é
levado a preencher a mesma função, a restabelecer uma
transferência posta a prova. [...] O analista chega, de fato, a
encontrar um lugar, na neurose de transferência da criança. Mas
não será, como no adulto, uma neurose de transferência que
substituirá a neurose comum, uma vez que essa neurose comum,
para a criança, já é a neurose de transferência. É uma
transferência indireta que visa sustentar a transferência na
pessoa que, no início, se revelou inapta a suportá-la. É
igualmente um transferência indireta, contemporânea do
estabelecimento de um lugar de transferência para um dos pais,
no momento mesmo em que este último falha. Seria uma
transferência para os bastidores. (PORGE, 1998, p.14-15).
Uma vez que a já mencionada condição estrutural da criança, com um
Outro consistente e sabido, impõe ao analista ocupar justamente esse lugar,
como então não encarná-lo?
36
Cf. capítulo três, p.88-89..
131
A organização simbólica do mundo, sustentada em elementos culturais, é
patrimônio comum recebido por cada novo sujeito. “Se tal organização simbólica
dá à sugestão seu fundamento incontestável, a abordagem de uma criança em
processo de estruturação subjetiva não prescinde de sugestão.” (VORCARO,
2003, p.30). Cabe ao analista saber se posicionar de maneira a “criar condições
para a transmissão simbólica: resgatando a criança do anonimato do desejo,
reconduzindo-a à herança de sua linhagem simbólica própria, para que o sujeito,
constituído, possa fazer com ela algo de novo”. (VORCARO, 2003, p.16).
O analista, assim, sustenta o lugar de Outro, sem contudo encarná-lo.
Diferentemente dos pais, o analista se baliza pelo desejo de analista, não
desejando nada em específico à criança para que ela possa prosseguir na
elaboração de suas próprias questões. Nesse sentido, o analista tende a ocupar o
lugar de semblante de a, abrindo espaço para a enunciação da criança. O lugar
do analista oscila então entre o lugar de Outro e de objeto a, sempre vetorizado
para esse último.
Cabe indagar se o estatuto do objeto a na infância é o mesmo que no
adulto. Segundo Coriat (1997), o objeto a no “sujeito infantil” ainda não tem o
estatuto de radicalmente perdido e articulado na fantasia. Lacan fala das
sucessivas interdições que esse pequeno sujeito sofre em suas quatro versões
corporais do objeto a - voz, olhar, seio e fezes - até finalmente ter, com a
operação de castração, a experiência do objeto totalmente perdido, embora nesse
momento ainda não tenha como contar com a estabilidade da fantasia. “A história
de cada um é a história dos modos de faltar o objeto impossível; um resultado da
inexistência da relação sexual”. (BRAUSTEIN, 1999, p.42). O objeto a, como
saldo da operação de castração, terá a consistência e o estatuto de radicalmente
132
perdido somente na adolescência, antes da qual o sujeito ocupa-se em
desprender-se de objetos primários.
Articulando-se o exposto aqui à escanção proposta no capítulo dois, pode-
se então concluir que o analista ocupa na transferência um lugar que se
transfigura de acordo com o tempo da constituição psíquica da criança, uma vez
que, para ela, esse Outro ocupante do lugar de sujeito suposto saber se
apresenta de maneiras distintas.
No tratamento da ‘criança pequena’, atravessando o tempo da dialética da
frustração com a mãe, o analista ocupa o lugar da alteridade materna, uma vez
que a neurose de transferência da criança tinha esse Outro primordial como
objeto. É esse agente da função materna que fracassa em ocupar o lugar de
sujeito suposto saber para a criança, o qual poderá então ser ocupado pelo
analista. Na análise de R., observa-se que a mãe, objeto da transferência da
criança, esbarra no insuportável de sua própria castração, fracassando assim na
sustentação do lugar de saber. O analista, ao incidir no ponto de impasse que não
permitia à criança entrar no jogo de engodo com a mãe, promoveu o
descongelamento dessa dialética. Logo nas primeiras sessões, foi convocado a
esse lugar de Outro primordial pela criança que propôs um jogo de ‘fazer
comidinha’ e ‘dar de comer’. O analista, enquanto um outro Outro, não operou a
partir da fantasia materna, mas sim do desejo de analista, instituindo um lugar
vazio, um ‘bastidor’, em direção ao qual a criança pôde dirigir questões, formular
elaborações, encontrando condições que propiciaram a retomada da construção
de sua neurose infantil e o prosseguimento da confecção de seu nó borromeano.
No tratamento da ‘criança edípica’, o analista é solicitado no lugar da
alteridade paterna, já que nesse tempo é o agente da função paterna que ocupa o
133
lugar de sujeito suposto saber. “Trata-se pois de sustentar na análise o lugar
simbólico do pai, o lugar da Lei [...].” (OLIVEIRA, 1991, s/p). Com relação ao caso
do pequeno Hans, a formulação de Freud vinculando a possibilidade de
realização dessa análise à peculiar conjugação das autoridades paterna e médica
parece corroborar com a hipótese da importância do pai como ‘lugar’ ao qual
endereçar as questões quando se trata de uma criança nesse tempo da
constituição, ainda que nesse particular caso clínico tal lugar tenha de fato sido
sustentado transferencialmente pelo próprio Freud, uma vez que o pai da criança
não pôde operar a função paterna, assumindo a posição de espectador da
relação entre mãe e filho.
O tratamento da criança que se encontra no tempo da latência, para quem
os pais já perderam a hegemonia do lugar de saber, relativizados por alternativas
apresentadas pela esfera social, solicita o analista no lugar de mestre. É comum
as crianças nesse tempo de sua constituição se referirem à análise como aula.
Mestre aqui não é aquele que exerce a autoridade através do poder, mas uma
figura que pode ser tomada no lugar do pai imaginário, desinflado, para sustentar
uma função simbólica. M., como visto, enfrenta empecilhos na formulação de
suas respostas sobre o desejo do Outro dada sua situação familiar. Convoca
então o analista como “alguém neutro”, não comprometido com a fantasia
parental, para onde dirigir suas questões - para onde o desejo de minha mãe se
dirige? como configurar família? - de modo a proceder à construção de uma ficção
que pudesse fazer frente aos enigmas do desejo do Outro.
A transferência, como ponto nodal da estratégia clínica, impõe ao analista
ocupar esse lugar de Outro para a criança, assumindo inicialmente o semblante
de diferentes figuras de alteridade conforme cada um dos tempos da constituição.
134
Contudo, orientado pelo operador desejo de analista, não lhe dirige demandas,
mas propõe a ela um lugar vazio a partir do qual possa formular uma demanda
própria. Nesse sentido, como suporte do objeto causa do desejo, o analista cria
condições para que a criança possa encontrar os elementos necessários para
solucionar o impasse que a está impossibilitando de seguir na construção de sua
neurose infantil. Importa ressaltar que essas nuances transferenciais no
tratamento da criança devem ser entendidas enquanto tendências, prevalências
do lugar ao qual o analista é inicialmente solicitado, sem entretanto desconsiderar
a complexidade clínica que preservará a possibilidade do analista posicionar-se
de modo singular conforme o caso.
Levando-se em conta a figura topológica do nó borromeano, esse
posicionamento do analista como suporte do objeto a que se inscreve na
intersecção dos três registros, encerra assim três dimensões:
Como semblante de a, resto caído do real que é impossível de
simbolizar, como imagem de um semelhante especular, e como
suporte da regra fundamental que obriga o sujeito a dizer-se [...].
Real, imaginário, simbólico.
Se o que existe é um dispositivo para uma invenção constante e
não uma ‘técnica psicanalítica’ é porque esta tríplice função
legisla não um código de procedimentos mas uma posição do
analista frente à trama linguageira criada por Freud na qual o
próprio analista está enredado. (BRAUSTEIN, 1999, p.217).
Mais além, uma questão permanece: qual o limite da análise da
transferência analisante-analista na clínica com criança?
Há uma limitação estrutural na interpretação dessa transferência: não pode
haver análise da transferência amorosa criança-analista, uma vez que a criança,
não se confrontando com o Outro sexo no ato sexual, não tem como se deparar
com a verdade da inexistência da relação sexual.
135
A criança não pode aceder à análise da transferência amorosa
para o analista porque não tem acesso àquilo que, no encontro
sexual e por ele, vai colocá-la na determinação da fórmula ‘não
há relação sexual’, fórmula que não se confunde absolutamente
com a interdição do incesto tal como a teorizou Freud, e que por
sua vez se desenvolve no campo de uma relação sexual, aquela
entre pais e filhos. É a efetivação dessa interdição que pode, no
melhor dos casos, se realizar com a psicanálise da criança. Mas,
o interdito não está no mesmo plano que o impossível da relação
sexual. (PORGE, 1998, p.17).
Essa condição da criança, além de deixá-la numa posição instável com
relação a suas palavras, não permite responsabilizar-se totalmente também por
seus atos, então remetidos para o futuro. O fato de a criança não ter a mesma
relação com a palavra que o adulto constitui, na leitura de Michel Silvestre (1982),
o principal diferencial da transferência na psicanálise com crianças, implicando na
presença de desenhos e jogos na cena analítica. Situação que leva o analista a
se defrontar com a tentação de completar com a própria fala a expressão
aparentemente faltante da criança, conduzindo assim a análise ao aprisionamento
pela vertente imaginária da transferência. Desse modo, seja tomando o lugar da
criança na tentativa de compreendê-la, ou encarnando o Outro, o analista provoca
o fracasso do tratamento.
Como então escapar dessa armadilha, sustentando o lugar de sujeito
suposto saber para uma criança de modo a garantir a transferência simbólica?
Ainda segundo Silvestre (1982), a insistência da criança em fazer
perguntas remete à sua relação com o saber, a qual corresponde a uma
duplicação de sua relação com a sexualidade, uma vez que, essencialmente, o
saber se origina da curiosidade sexual. Nesse sentido, a criança busca
significantes que possam dar contorno às questões sobre a origem, os quais
fazem assim para ela a função de nome-do-pai. Mas, se perseguir significantes é
136
o que se faz em toda análise, qual seria então a especificidade da análise com
criança? O autor afirma que a diferença em questão é introduzida não pelo
simbólico, mas pelo real do sexo em jogo, diante do qual a criança não tem como
apreender a inexistência da relação sexual entre um homem e uma mulher, uma
vez que não tem ainda como defrontar-se com o Outro sexo. Eis o limite da
análise com crianças, seu fim, seja como finalidade ou finalização.
37
Desse modo, Silvestre (1982) aponta o mesmo limite já assinalado por
Porge (1998): a diferença crucial entre o adulto e a criança é a possibilidade do
sujeito se [des]encontrar com o Outro sexo, confrontando-se assim com a
inexistência da relação sexual. Em cada tempo da constituição psíquica, a criança
se depara com uma versão dessa não-relação, apreendendo diferentes registros
da falta no Outro. É somente na adolescência, com a possibilidade efetiva da
experiência sexual, que o sujeito poderá [des]encontrar-se com o Outro sexo para
construir o sinthoma reparador da inexistência da relação sexual, definindo assim
seu modo de gozo.
Importa ressaltar que a consideração das limitações intrínsecas à condição
da criança não implica em desconsiderar a potência do ato analítico nessa clínica.
Noutros termos, o analista reconhecer as especificidades do sujeito na infância
não equivale a deixar de intervir “como canalizador específico, possibilitando que
se abra [para a criança] o caminho à palavra própria, à responsabilidade pelo ato
e, fundamentalmente, ao andamento ordenado do desejo”. (CORIAT, 1997,
p.300).
37
Cf. capítulo seis.
137
5.2 O brincar sob transferência
Depois de realizado o diagnóstico diferencial e do sintoma configurar-se em
uma questão para o sujeito, o estabelecimento da transferência vem
complementar as condições necessárias para efetivamente iniciar-se uma análise,
colocando um fim nas entrevistas preliminares. No tratamento-padrão, esse
momento é em geral selado com a indicação do divã, recomendado por Freud
não só pelo conforto propiciado ao analista, mas também pela potencialização da
transferência, uma vez que, reduzindo o campo escópico, facilita ao sujeito ater-
se a seu próprio discurso. Nesse sentido, privilegiar a fala implica minimizar os
efeitos imaginários de modo a favorecer a emergência do sujeito do inconsciente.
Vale lembrar que a utilização do divã não é suficiente nem indispensável para
garantir uma análise, pois o que de fato fundamenta o processo analítico é a
sustentação da regra fundamental da associação-livre.
O ato psicanalítico não é um ato sexual, é completamente o
contrário. Mas dizer ‘o contrário’ não é dizer ‘o contraditório’. [...]
A cama analítica (o divã) significa uma área que não está sem
relação ao ato sexual, é uma relação contrária, a saber: não é, de
forma alguma, possível obviar que é uma cama e que introduz o
sexual sob a forma de um conjunto vazio. (LACAN, apud
CORIAT, 1997, p.301).
O divã é simplesmente um artifício: uma cama que, referida ao ato sexual,
pode ser remetida à inexistência da relação sexual. “Como não há a possibilidade
do ato sexual na vida da criança, propor-lhe o divã seria uma manobra sedutora,
que introduziria o sexual sem possibilidade de formalizá-lo como conjunto vazio,
porque não haveria nada para deixar fora.” (CORIAT, 1997, p.301).
Com a criança, não apenas o divã não tem sentido, como também a cena
analítica desdobra-se geralmente incluindo os corpos do analista e do analisante,
138
além de uma série de outros objetos, para dar suporte à fala. Inversamente à
função do divã para o adulto, os desenhos e as brincadeiras da criança,
sustentados pelo campo da visibilidade, poderiam levar ao inflamento do
imaginário. Contudo, Stevens (s/d, p.15) ressalta que a imagem corporal não está
tão fixada na criança como no adulto, fazendo portanto menos obstáculo nas suas
relações com o outro.
O corpo é o receptáculo concreto do discurso do Outro primordial e, na
infância, está sendo por ele traçado. Na mesma medida em que o objeto a ainda
não tem estatuto de radicalmente perdido, o corpo também não está ainda
radicalmente recalcado. É a castração que realiza tal operação, qual seja,
interditar o gozo do corpo com a promessa do gozo fálico. A criança perde aos
poucos a “intimidade com o objeto de seu gozo: com o peito, com as fezes, com o
leite, com o corpo materno e com o seu próprio corpo. E, para aceitar essas
perdas, ela tem que poder acreditar numa promessa de compensação”.
(JERUSALINKY, 2001, p.74).
A criança consente na perda em vista do que ganhará: jogo do ‘quem
perde ganha’, como o nomeia Lacan referindo-se à castração. Ganha a promessa
de realizar o desejo de ser adulta, de desfrutar do desejo como os adultos. A
estrutura do sujeito só se estabilizará na adolescência, momento em que tal
promessa, por mais decepcionante que se revele, pode então se realizar.
Desse modo, além da escuta, o olhar e o corpo estão também presentes.
Os objetos que fazem parte da situação analítica com uma criança teriam assim o
objetivo de favorecer a leitura do inconsciente da criança, na direção de criar
condições para a análise. “Todos sabem, e os psicanalistas de crianças em
139
primeiro lugar, que é preciso um bocado de pequenos objetos para manter uma
relação com a criança”. (LACAN, 1958a, p.623).
Freud (1920) já chamava a atenção para esse fato em sua observação do
jogo do ‘Fort-da’, no qual a criança lança e recupera um carretel repetidas vezes
junto a vocalizações que sugerem os significantes partir e voltar. Na leitura
freudiana a criança estaria encenando, por meio de um objeto, a partida e o
retorno da mãe, segundo a manifestação de um instinto de dominação, ou seja,
passando de um lugar passivo para a assunção de um papel ativo estaria
procurando assim um controle imaginário da situação.
A leitura lacaniana aponta para uma outra direção:
Se o pequeno sujeito pode exercitar-se neste jogo do fort-da, é
justamente que ele não se exercita de modo algum, pois nenhum
sujeito pode apreender esta articulação radical. Ele se exercita
com a ajuda de um carretelzinho, quer dizer, com o objeto a. A
função de exercício com este objeto se refere a uma alienação, e
não a qualquer suposto domínio, do qual mal se vê o que o
aumentaria numa repetição indefinida, ao passo que a repetição
indefinida de que se trata manifesta às claras a vacilação radical
do sujeito. (LACAN, 1964, p.226).
Nesse sentido, a criança precisaria de um objeto como o suporte concreto
para operar com o significante de modo a sustentar sua própria fala, pois o
desenvolvimento da cadeia significante ainda não é suficiente na criança para
poder se apoiar somente na palavra. O brinquedo, como suporte do objeto a,
serve ao exercício da criança na linguagem como sujeito, possibilitando assim,
através do brincar, sua elaboração de uma resposta, significante, ao enigma do
desejo do Outro.
Freud (1907, p.149) compara a brincadeira da criança com a criação
literária: “Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta
como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os
elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?” As fantasias e
140
devaneios do adulto corresponderiam, desse modo, a uma herança do brincar
infantil, ou seja, uma substituição dos meios para o prazer que obtinha ao brincar.
Segundo Freud, o brincar da criança é movido por um único desejo, ser grande,
no sentido de ser adulto, da mesma maneira que os desejos insatisfeitos dos
adultos buscam realizar-se por meio de fantasias, devaneios e sonhos. Nesse
sentido, de acordo com a próprias possibilidades, tanto a criança quanto o adulto
revelam manifestações do inconsciente susceptíveis de serem interpretadas.
Através de suas brincadeiras, a criança põe em jogo suas
próprias interpretações, buscando dar um sentido diante da
angústia que desperta o enigma do desejo do Outro. [...] A
posição do analista na estrutura da transferência [tal qual na
clínica com adultos] será a de não agregar sentido às
interpretações que a criança destaca em suas brincadeiras, mas
o lugar de objeto causa do desejo, lugar de Che vuoi? (GIRALDI,
1991, s/p).
Embora faça a diferença entre brincadeira e realidade, a criança ‘brinca a
sério’, seu trabalho é o brincar, atividade que consome seu tempo, demandando
investimento psíquico. O brincar é inevitável para a criança, uma vez que
corresponde ao próprio movimento de sua estruturação psíquica: quando uma
criança não brinca é sinal que existe algum impedimento em seu processo de
subjetivação.
Nesse sentido, o ofício da criança situa-se entre o inacabamento próprio a
sua condição estrutural e o ideal veiculado pelo discurso do Outro, de modo a
“fazer uma brincadeira para construir a ponte entre essa insuficiência e o ideal
para articular algum saber próprio, brincando de vir-a-ser grande”. (TAVARES,
1998, p.61). Entre o real que habita essa insuficiência e o ideal simbólico, há uma
lacuna a ser preenchida que a criança “recobre com esse imaginário que é o
brincar.” O brincar inventa assim uma conciliação do inconciliável entre tal
141
insuficiência e o ideal, permitindo à criança avançar rumo à construção de sua
subjetividade. Vale lembrar que a brincadeira, ainda que seja uma produção
imaginária, está sustentada pelo simbólico, sem o qual não seria possível.
Noutros termos, uma falha no funcionamento do registro simbólico da criança tem
sempre efeitos sobre sua atividade lúdica.
Se o brincar é permanente, por que a criança precisaria fazê-lo junto ao
analista? Importa lembrar que a criança é geralmente trazida para a análise
quando seu brincar espontâneo é interrompido, seja pela ausência ou a ‘repetição
em falso’ da atividade lúdica. Ao se oferecer como um outro Outro, o analista cria
condições para a criança retomar a brincadeira por meio da qual elabora suas
questões. Quando brinca em análise, a criança põe em jogo “os significantes que
a marcaram... porém, agora, em uma nova combinatória, inédita, criada
exclusivamente por ela, de sua própria autoria”. (CORIAT, 1997, p.304).
O psicanalista da criança torna-se também um objeto, embora muito
particular, para o exercício da brincadeira. Nesse sentido, o próprio analista
enquanto semblante de um objeto a “é um brinquedo mágico: quando o brincar se
interrompe, ou quando gira reiterativamente em repetições vazias, é o pequeno
objeto a que se oferece, relançando o tear significante do desejo.” (CORIAT,
1997, p.305).
Giraldi (2004, p.10-11) acrescenta que, além dos objetos, a criança
também brinca com palavras, equívocos e falhas da alíngua, sendo portanto
desnecessário ao analista paramentar seu consultório com brinquedos técnicos
ou convidar a criança para brincar. O analista, outrossim, convida-a a falar, já que
a criança pode brincar de qualquer coisa enquanto fala. A autora assevera ainda
142
que o melhor brinquedo para o tratamento de uma criança é o próprio analista, no
sentido de que ela pode se servir dele.
Vorcaro (2003, p.23) afirma que por meio da brincadeira a criança reordena
seu mundo, operação que se diferencia da fala somente pelo fato de os
significantes utilizados não serem vocais, respondendo contudo às mesmas leis
do funcionamento psíquico, quais sejam, a condensação e o deslocamento.
Sendo assim, o brincar da criança, costurado pelo discurso que ela profere,
seja sobre o enredo da brincadeira ou sobre seu mito familiar, será objeto da
interpretação do analista. Como em qualquer análise, o analista deve se deter no
deslizamento significante e não na trama imaginária, o que exige atenção
redobrada, afinal, como já apontado, todo o cenário montado pela criança seduz
na direção do imaginário. Vale ressaltar que o gesto, o brincar, o desenhar, o
escrever e o falar apresentam graus distintos de complexidade na apropriação da
criança do funcionamento simbólico. Quanto mais a criança puder apreender a
falta no Outro, maior será a operatividade de seu registro simbólico. Como no
analista o simbólico opera em toda sua extensão, torna-se difícil para ele
deslocar-se da imagem utilizada pela criança em seu jogo para tomá-la como uma
produção significante. Obviamente, essa dificuldade refere-se à capacidade de
leitura do analista e não a uma incapacidade de produção por parte da criança.
Nesse sentido, o jogo e a transferência sustentam-se mutuamente no
tratamento psicanalítico com crianças permitindo ao analista operar com a
interpretação. Noutros termos, a brincadeira é objeto e meio, enquanto a
transferência é meio, e não objeto, para a interpretação.
143
5.3 Interpretação e ato
Com A Interpretação dos sonhos, 1900, Freud lança as bases de uma
noção central para a psicanálise. A interpretação, ali introduzida como o
instrumento pelo qual o analista visa a trazer à consciência o sentido latente do
sonho, é posteriormente desenvolvida como uma ferramenta mais ampla, para
preencher lacunas da memória, suprimir a amnésia infantil, reencontrar o sentido
de sintomas, de modo a promover uma mudança subjetiva do paciente. A
interpretação é assim o que incide sobre o desejo inconsciente atualizado na
transferência com o objetivo de interromper a repetição e propiciar o advento de
novas significações.
A tese de Lacan do inconsciente estruturado como linguagem renova a
importância da interpretação. Se a linguagem humana é caracterizada por sua
polissemia, geradora do campo do mal-entendido que serve às manifestações
disfarçadas do desejo, é então seu próprio funcionamento o que cria as condições
para a interpretação. Noutros termos, se o inconsciente se revela à ‘flor da língua',
a escuta do analista é o que torna possível a interpretação.
O analista então colhe significantes no próprio discurso do analisante para
formular uma interpretação, cujo valor é dimensionado em função das
conseqüências provocadas. Uma vez proferida, deve servir de enigma ao
analisante para levá-lo a uma produção significante diversa, causando assim uma
nova incidência na enunciação. O objetivo da interpretação é que o analisante
tenha um ‘ganho de saber’ que promova alguma mudança subjetiva. “É que ao
tocar, por pouco que seja, na relação do homem com o significante, [...] altera-se
144
o curso de sua história, modificando as amarras do seu ser”. (LACAN, 1957,
p.531).
Tal interferência visa a romper o círculo-vicioso das repetições
inconscientes, de modo a libertar o significante aprisionado em uma única
significação.
A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições
inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que
nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução –
precisamente aquilo que a função do Outro permite no
receptáculo do código, sendo a propósito dele que aparece o
elemento faltante. (LACAN, 1958a, p. 599).
Contudo essa operação não se dirige à produção de um novo sentido,
talvez mais consistente, mas justamente a um esvaziamento do sentido, com o
desmantelamento da trama de significações através do jogo em torno do
equívoco. Noutros termos, a interpretação visa ao desejo tanto em seus efeitos de
verdade subjetiva como em sua causa, o objeto a.
Com as formulações do último período do ensino de Lacan, no qual a
análise é concebida como um processo de leitura do gozo inscrito e desconhecido
para o sujeito, a interpretação ganha uma precisão maior. Além de operar sobre a
cadeia significante, busca desvelar ao sujeito o ponto de ancoragem real onde se
inscreveu seu modo de gozo. Esse ponto corresponderia ao sinthoma, núcleo
irredutível do sujeito, constituindo o próprio limite da interpretação: pode ser por
ela apontado, mas permanece, em si mesmo, intocado. A partir de tal avanço
teórico, Lacan (1972, p.493-4) defende que a interpretação deve atentar para os
“equívocos pelos quais se inscreve o lateral de uma enunciação” segundo três
campos: a homofonia, como semelhanças sonoras sugestivas; a gramática, como
transgressões reveladoras; e a lógica, como formalizações paradoxais.
145
Entretanto, a interpretação não é o único dispositivo de que o analista
dispõe para conduzir a análise do sujeito em direção à realização da falta. O ato
analítico, noção bastante posterior à de interpretação e que não se sobrepõe a
ela, amplia a leitura daquilo que cabe ao analista na direção do tratamento. A
psicanálise institui um fazer, orientado pela regra fundamental, realizado pelo
analisante, ao analista cabe o ato.
Interpretação e transferência estão implicados no ato pelo qual o
analista dá a este fazer suporte e autorização. É feito para isso.
É, de qualquer forma, dar algum peso à presença do ato, mesmo
se o analista não faz nada. Logo, esta repartição do fazer e do
ato psicanalítico. (LACAN, 1967/68, p.65-66).
Freud não fala propriamente de ato analítico, mas sim de ato sintomático,
tendo como paradigma o ato falho. Lacan parte dessa formulação para,
ressaltando a dimensão significante do ato, pensar no ato analítico. Destaca ainda
que, já em Freud, o ato só pode ser referido em um segundo momento, ou seja, é
possível apontá-lo somente a posteriori.
Na primeira aula do seminário sobre o ato analítico, Lacan (1967/68) afirma
que o sujeito do inconsciente, profundamente implicado no fazer psicanalítico,
está colocado em ato na transferência. Nesse sentido, a decisão de iniciar uma
psicanálise merece o nome de ato e comporta um certo engajamento, não só do
analisante como também do próprio analista.
Tal engajamento se verifica em toda a estrutura da situação analítica, que
se inicia com a decisão do sujeito por uma psicanálise e prossegue com o
acolhimento que o analista dá a sua demanda, sem contudo respondê-la. Em
seguida, o disparo da transferência, com a instituição do sujeito suposto saber e a
direção assumida desde o início de destituição desse lugar. Toda essa montagem
é da ordem do ato analítico, ainda que somente a posteriori seja possível
146
identificar os momentos pontuais em que um ato aconteceu, tendo produzido
mudanças em um posicionamento subjetivo, das quais a mais crucial seria a
própria passagem de analisante a analista. Entrar em análise é, portanto, engajar-
se no ato analítico.
A transferência é assim condição para o ato analítico, ao mesmo tempo em
que é por ele sustentada. Ressaltando essa intrínseca interdependência, Lacan
afirma (1967/68, p.46): “Fora do que chamei de manejo da transferência, não há
ato analítico.” É através do ato que o sujeito pode aceder a algo da ordem de um
saber, uma vez que o ato implica uma subversão do sujeito, produzindo uma
conversão da posição do sujeito quanto à sua relação ao saber.
Bernardino (2004c, p.38-39) propõe uma diferença entre ato e
interpretação: “o ato é o instrumento que permite lidar com a pulsão, ali onde a
interpretação aparece enquanto inutilidade”. O que os diferencia então seria o fato
de a interpretação ser uma intervenção calculada pelo analista a partir de sua
escuta diante da direção que dá ao tratamento, enquanto de outro modo o
analista é “conduzido ao ato por um desejo que se impõe, produto da imersão no
campo transferencial que dá lugar ao inconsciente do paciente”. A autora define o
ato como “um fazer que, por uma dupla função, faz efeito significante”: a primeira
função refere-se à instituição de “um corte, interrompendo a repetição”, e a
segunda, demarcando “um começo, registra o aparecimento de algo novo, que
exige uma mudança de posição”.
Deduz-se dessa formulação que a interpretação pode ser realizada com o
analista no lugar de Outro enquanto o ato exige-lhe o lugar de objeto a. “O objeto
perdido inicial de toda a gênese analítica, esse que Freud martela em toda sua
época do nascimento do inconsciente, ele está aí, esse objeto perdido, causa do
147
desejo. Teremos que vê-lo como no princípio do ato.” (LACAN, 1967/68, p.88). O
sujeito não é causa de si, mas conseqüência da perda do objeto a, saldo da
incidência do significante no real do organismo. É a partir da sustentação desse
lugar que um ato pode vir a ocorrer.
Como entender a interpretação e o ato analítico na clínica com criança
levando-se em conta o que a caracteriza como analisante?
O fato de a infância corresponder ao período de aquisição da linguagem,
responsável pelo advento do sujeito do inconsciente, faz com que a criança tenha
uma posição particular com relação a essa estrutura que é ao mesmo tempo
condição e veículo para a interpretação. Mesmo que a criança ainda não fale, a
linguagem já opera possibilitando-lhe situar-se nessa estrutura segundo um lugar
que, contudo, guarda certa instabilidade característica ligada aos avatares da
constituição subjetiva.
Obviamente, tal contexto traz dificuldades à tarefa da interpretação na
análise com crianças porque compromete as operações sobre a homofonia, a
gramática e a lógica, sobretudo com relação àquelas que ainda não escrevem,
uma vez que a interpretação e a escrita são intimamente relacionadas. Stevens
(s/d, p.16) faz duas considerações valiosas com respeito à situação da
interpretação na análise com uma criança que ainda não escreve. A primeira
refere-se ao estatuto do significante que ainda não opera em toda sua extensão.
A criança ainda não é sensível ao jogo de palavras, não tendo portanto a
dimensão do equívoco. Noutros termos, não há a possibilidade de se usar a
homofonia, por exemplo, como fundamento para uma interpretação. A criança faz
um jogo de palavras infantil cujo efeito cômico reside na provocação do riso do
adulto e não no próprio jogo de palavras. As crianças tratam assim das palavras
148
como coisas, “tendem a esperar que as palavras idênticas ou semelhantes
tenham, subjacentes, o mesmo sentido – fato que é fonte de muitos equívocos
dos quais os adultos se riem”. (FREUD, 1905, p.142).
Nesse sentido, é o adulto
quem se diverte com os jogos de palavras da criança que, por sua vez, diverte-se
com o riso do adulto sem contudo sofrer os efeitos do equívoco revelador.
A segunda consideração de Stevens refere-se ao objeto. O autor
compreende o desenho como uma produção pela qual a criança vem compensar
o fato de não escrever. O desenho seria assim uma tentativa de recuperação do
gozo por intermédio do significante estruturado pelo traço. O objeto aparece no
desenho da criança de um modo que não demanda interpretação. O desenho
seria um recurso para dar forma ao objeto, de modo diverso do adulto, para
quem o objeto visado é sem forma.
Nesse sentido, os desenhos como os demais objetos que compõem a cena
analítica da criança são suportes imaginários que funcionam como imagens de
um sonho, significantes assim apresentados, correspondendo portanto a sua
produção discursiva.
Se, por um lado, a posição da criança na linguagem traz limitações ao
exercício da interpretação, por outro, não a inviabiliza totalmente. A interpretação
possível pode acontecer sobre a fala que a criança produz ao brincar, relacionada
a seu mito familiar ou ao enredo da brincadeira, ou sobre elementos da própria
brincadeira, quando tal fala não é produzida. Importa lembrar que, assim como
com adultos, a interpretação pretendida com a criança deve sempre apontar para
o significante, evitando o engodo de uma perspectiva imaginária.
A criança ocupa um lugar que já foi antecipado pela transmissão simbólica
realizada pelos pais, sem plenas condições de sustentá-lo, não sendo, portanto,
149
totalmente responsável por seu ato, posição que a leva a conjugar as próprias
ações no futuro – vou ser médico, vou ser jogador de futebol, vou casar com você
etc. – ou no chamado ‘futuro anterior’
38
, geralmente aplicado à elaboração da
brincadeira – agora eu era o papai e você era a mamãe, eu era o médico e você
era o paciente etc.
Tais construções linguageiras revelam uma oposição significativa implícita
em uma enunciação presente que, contudo, remete-se ao passado, apontando
assim o espaço de fantasia no qual a criança pode responsabilizar-se por seu
próprio ato. Enquanto no chamado ‘futuro anterior’ da língua francesa tem-se a
antecipação do futuro no tempo presente, em seu correspondente na língua
portuguesa, tem-se a presentificação de um passado: de um modo ou de outro,
essas flagrantes discrepâncias temporais conjugadas prestam-se à criação de um
‘tempo verbal’ que atenda às necessidades de enunciação da criança. Noutros
termos, a aparente inconsistência temporal dessas conjugações corresponde, em
verdade, a uma plasticidade temporal que a criança manipula com o intento de
enunciar-se. Nas palavras de Jerusalinsky, “uma criança suporta em seu brincar o
dizer do que ainda não pode falar”. (1999, p.43).
A criança está assujeitada a esse futuro que lhe é antecipado, encontrando
em seu ‘faz de conta’ um modo de ‘fazer contar’ sua palavra e seu ato para o
Outro. Nesse sentido, o psicanalista, seja no engajamento efetivo ou na simples
‘escuta’, considera o jogo da criança na cena analítica como material para
interpretação.
Retomando a escanção proposta no capítulo dois, tem-se que a ‘criança
pequena’, alienada à dialética da frustração e normalmente não-alfabetizada,
38
Tempo verbal da língua francesa cuja formulação mais próxima em português seria o pretérito imperfeito
referido a eventos atuais.
150
oferece um campo mais limitado para a interpretação, que então se realiza mais
comumente por meio da própria brincadeira. Na análise de R., por exemplo, o
analista realizou interpretações a partir do lugar assumido nas cenas vividas com
a criança em torno da atividade de alimentação. Ao se oferecer como um outro
Outro, referido ao desejo do analista, ajudou a criança a superar o impasse diante
de seu Outro primordial de modo a seguir na construção de sua neurose.
A ‘criança edípica’, já iniciando seu contato com os enigmas da língua,
começa a abrir espaço para o jogo do equívoco, embora ainda com limitações. É
um momento de franca investigação da vida, com produção de teorias e mitos
para contornar pontos de impossibilidade que emergem do discurso tecido pela
criança, servindo de material para a interpretação do analista. O caso “pequeno
Hans” é bastante rico nesse sentido, com franca produção de fantasias pela
criança que vão oferecendo material e ocasião para a intervenção do ‘analista’.
Com a ‘criança na latência’, já dominando a escrita, a interpretação ganha
uma complexidade próxima à dos adultos. Embora a brincadeira ainda seja
bastante presente, essas crianças geralmente já conseguem sustentar uma livre-
associação na fala. A partir da nomeação dos personagens da história, pai-medo
e mãe-estranha, foi possível a uma criança de nove anos perseguir associações
com relação a esses significantes, medo e estranha, que possibilitaram uma
construção sobre o desejo do Outro sustentado pelos pais, ao qual ela até então
respondera apenas com seus sintomas. Desse modo, o sujeito confeccionou uma
nova articulação significante, liberando-se do sofrimento causado pelo sintoma.
Finalmente, considerando-se as características do sujeito na infância, cabe
lembrar a pergunta de Stevens (s/d, p.13): pode ela engajar-se no ato analítico?
Nada impede estruturalmente que isso aconteça, entretanto é preciso relevar a
151
particularidade da relação da criança com o ato. Sem o direito de realizar
qualquer ato - não pode decidir deixar os pais, por exemplo
39
- tem em suspenso
a conclusão de um dizer por um ato. Tal situação traz dificuldades para o
engajamento da criança na análise, embora não se constitua em um
impedimento. Como já visto, a criança não vem para a análise por sua própria
vontade, colocando uma questão com relação à demanda, o pagamento também
não está em suas mãos, assim como a decisão de dar continuidade ou não à
análise também não lhe cabe, pelo menos em princípio, embora sua palavra
sobre esse ponto deva ser levada em conta pelo analista.
A palavra irresponsável da criança – e aqui é preciso introduzir
nuances dependendo da idade – é solidária de uma fronteira
fluida entre a fantasia, não digo fantasma, e a realidade. [...] mas
sua maior liberdade fabulatória, que paralisa às vezes o analista,
é o estigma de um defeito na sua constituição da realidade, a
qual supõe, no dizer de Freud, uma dessexualização, e nos
termos de Lacan, uma extração do objeto a partir da qual o
fantasma toma consistência ao mesmo tempo em que a realidade
(SOLER, 1994, p.10-11).
O fato de a criança ter uma relação diferente do adulto com o ato não
implica que ela não seja um sujeito do inconsciente. Sua posição como um sujeito
em constituição tem o importante diferencial de levá-la a não decidir e assumir os
próprios atos, na maioria das vezes assumidos pelo Outro, agente de linguagem,
encarnado pelos pais. Obviamente, tal situação a deixa numa posição delicada
com relação ao ato, trazendo conseqüências ao fazer psicanalítico.
Nesse sentido, como já apontado, o ato da criança é produzido sobretudo
na brincadeira através da qual pode ter algum valor para o Outro, enquanto o ato
do analista refere-se à sustentação e direcionamento da análise.
39
Atualmente não é raro tomarmos conhecimento de crianças que abandonam suas casas e seus pais, mas
pela sua posição no laço social, uma vez encontrada, é restituída à família, ou a alguma instituição que teria
como função educá-la e protegê-la.
152
6 O FIM DA ANÁLISE
Qual o tempo de uma análise? Pergunta tão inquietante quanto inevitável,
cuja resposta se revela apenas a posteriori. Freud já aconselhava em todo caso a
prevenir o paciente de que se trata de um período longo, idéia que merece ser
lembrada sobretudo diante do valor conferido à rapidez em nossa atualidade
tecnológica e globalizada. Mas o quê afinal é preciso para que um fim de análise
aconteça? Freud, no texto Análise terminável ou interminável, 1937, levanta a
questão: “existe algo que se pode chamar de término de uma análise – há alguma
possibilidade de levar uma análise a tal término?” Propõe duas condições para
tanto: a primeira se refere a mudanças no paciente, que “não mais esteja
sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições”; e a
segunda cabe ao julgamento do analista, que deve avaliar se o inconsciente,
material recalcado e ininteligível, tornou-se consciente, esclarecido, com as
resistências internas suficientemente vencidas, não havendo portanto a
“necessidade de temer uma repetição do processo patológico em apreço”.
Nesse texto, Freud procura estabelecer os limites da eficácia do tratamento
analítico para circunscrever seu possível término. Refere-se à análise como uma
profissão impossível, que a priori pode-se estar seguro de chegar a resultados
insatisfatórios, já que toda e qualquer intervenção só terá efeitos com o
engajamento do sujeito. De qualquer modo, a possibilidade de condução da
análise a seu termo, que equivaleria ao encontro com o rochedo da castração,
vivido de maneiras distintas pelo homem e pela mulher, depende radicalmente do
analista, que necessita qualificar-se para esse ofício a partir da própria análise.
153
Poder-se-ia abreviar o processo analítico através de algum artifício? -
pergunta-se Freud. Não! Poder-se-ia almejar uma cura definitiva? Bem, a cura
definitiva seria uma cura da neurose. Freud argumenta que a causa da neurose
corresponde ou a uma experiência traumática, que embora traga sofrimento e
sintomas preserva o eu, sendo mais susceptível ao tratamento analítico; ou a um
conflito com a pulsão, diante do qual o eu se altera para defender-se, trazendo
então maiores resistências ao tratamento. Embora admita a hipótese de cura da
neurose, considera a possibilidade de conflitos latentes, não abordados na
análise, eclodirem posteriormente, assim como o risco de uma vivência de
situações traumáticas, após o término da análise, desencadear novamente uma
formação de sintomas.
O percurso realizado por este trabalho aponta justamente para o fato de
que essas duas causas da neurose apresentadas por Freud, a experiência
traumática e o conflito com a pulsão, correspondem, na verdade, a uma só: é a
pulsão sexual que traumatiza. Noutros termos, o encontro com a sexualidade é
sempre um mau encontro necessário ao surgimento do sujeito, definidor de um
modo de gozo, embora haja uma indeterminação de quando e como tal encontro
acontece.
Freud assinalou pontos fundamentais para a discussão sobre o final da
análise, a partir dos quais Lacan realizou um grande esforço de formalização
teórica, articulando à questão da formação do analista. Lacan rompeu com
padrões já instituídos, formulando novos dispositivos para conceber as
qualificações necessárias à ocupação do lugar de analista. O principal deles é o
passe, criado para verificar o que fundamenta a passagem da posição de
analisante à de analista. “Nessa reviravolta em que o sujeito vê soçobrar a
154
segurança que extraía da fantasia em que se constitui, para cada um, sua janela
para o real, o que se percebe é que a apreensão do desejo não é outra senão a
de um des-ser.” (LACAN, 1967, p.259). Contudo a experiência do passe não
coincide necessariamente com o fim da análise, e o que importa nesse momento
não é a formação do analista, mas a noção de final de análise para se refletir até
onde pode ir o tratamento de uma criança.
Observam-se três momentos de elaboração teórica sobre o final de análise
no ensino de Lacan. O primeiro, freudiano, consiste na interpretação do sintoma,
operação realizada no eixo significante que, embora permita ao sintoma adquirir
significação, deslocar-se, desaparecer, corresponde à vertente da análise como
deciframento do inconsciente, sendo assim interminável, dada a própria estrutura
da linguagem.
O segundo momento versa sobre a travessia da fantasia, formulação
possível a partir da invenção do objeto a, que escapa ao eixo significante.
Atravessar a fantasia é ter acesso ao outro pólo elidido, passando
necessariamente pela função de enodamento dos registros presentes na fantasia
onde se inscreve o desejo. “O final da análise consiste na queda do sujeito
suposto saber e sua redução ao advento desse objeto ‘a’, como causa da divisão
do sujeito, que vem ao seu lugar.” O analista passa de uma posição inicial de
significante do Outro para objeto a, resto da operação do ato analítico. “O objeto
pequeno a é a realização desse tipo de de-ser que atinge o sujeito suposto
saber.” Do lado do analisante, ao término da tarefa analítica, o sujeito se realiza
na castração, tomada em sua dimensão de experiência subjetiva, “enquanto
faltante ao gozo da união sexual”. (Lacan, 1967/68, p.89-97).
155
A última formulação se refere ao fim da análise como identificação ao
sinthoma, operação que traria uma estabilização, não no sentido de adaptação,
mas como uma formação psíquica que não faz divisão, que não despedaça.
Como entender essa última à luz das anteriores? O sintoma como
resultado do retorno de um elemento recalcado por se encontrar em desacordo
com o eu, é, assim, uma metáfora que aparece a partir de uma rejeição de gozo.
O sujeito procura a análise acreditando existir no sintoma um saber a ser
decifrado junto ao analista na busca pela cura do sofrimento. Essa análise se
desenrola no campo simbólico e, ainda que se possa terminá-la, não teria
propriamente um fim.
Lacan avança no entendimento do sintoma, ressaltando o ponto de fixação
de gozo nele existente, real responsável por um certo modo de gozo
40
. Embora
se manifeste no simbólico, o sintoma passa então a ser definido como função de
gozo da letra, formulação que não invalida a anterior, do sintoma como metáfora,
mas traz um acento na escritura, na face real do sintoma.
Se colocarmos o inconsciente como linguagem na conta do
simbólico, o sintoma será real por duplo motivo, por causa do
gozo propriamente dito, que não é simbólico, e por causa da
estrutura da letra, que, como idêntica a si mesma, é um
significante fora do simbólico, realizado. (SOLER, 1995, p.76).
Nesse sentido, o objetivo da análise é atingir o ‘núcleo de gozo do sintoma’,
chegar a essa formação mínima, ponto de ancoragem real que sustenta o sujeito.
“Trata-se na psicanálise, de despir o sintoma de sua mentira significante e de
reduzi-lo a seu ser de gozo, sempre idêntico a ele mesmo.” (SOLER, 1995,
p.103).
40
Cf. capítulo quatro.
156
É com esse ponto irredutível, núcleo do sintoma onde se localiza uma
fixação de gozo, que o sujeito se identifica no final da análise, o qual corresponde,
então, a “consentir, reconhecer que [o sintoma] é o modo de gozo central do
sujeito, reduzido, único e privilegiado”. (SOLER, 1995, p.95). Para a autora, essa
última formulação de Lacan apresenta “convergências parciais, embora
verdadeiras” com a proposta de Freud presente em Análise terminável ou
interminável, de que o fim de análise corresponde a “uma revisão das posições do
sujeito quanto à pulsão, notando que assumir ou rejeitar o que descobriu de seu
inconsciente é uma escolha deixada para o sujeito” (1995, p.65), que se aproxima
daquela em que o sujeito se identifica com o modo de gozo revelado pelo próprio
sintoma.
A identificação com o sintoma consiste assim em assumir tal gozo,
definindo uma posição que situa o sujeito no sexual.
Quando Lacan fala de um fim por identificação com o sintoma,
não designa um fim de impotência próprio de um determinado
sujeito, mas um fim de acordo com o impossível da relação
sexual. Um impossível que valha para qualquer sujeito, e não
para um em particular [...] sintoma preenche a falta da relação
sexual. (SOLER, 1995, p99).
O sintoma que traz o sujeito à análise, sintoma clínico, causa de sofrimento
e meio pelo qual o sujeito goza, contém esse núcleo, que pode ser alcançado a
partir de um processo de ‘decantação’ do próprio sintoma. Trata-se portanto de
duas formações distintas partindo de uma mesma origem, ‘feitas’ do mesmo
material. Lacan, no seminário Sinthoma, 1975/76, passa então a usar a escrita
com th para denominar especificamente esse núcleo irredutível, considerado o
quarto anel do nó que fará consistir RSI de maneira singular, articulando o final da
157
análise com o saber lidar com esse sinthoma, entendido assim como síntese do
homem, aquilo que preencheria a falta da relação sexual.
Assim, o sinthome é um núcleo mais radical que o sintoma ou a
fantasia. Não pode ser interpretado como o sintoma, nem
atravessado como a fantasia. O que fazer com ele, portanto? O
sinthome representa o limite do ato analítico. Atingimos o término
do processo analítico: no real do sintoma, encontra-se o esteio de
seu ser. Ali, onde o sintoma estava, reconheceremos o elemento
que garante sua consistência. (PEREIRA, 2003, p.15).
A partir dessas referências, Harari (2002, p.115) afirma que “a proposta da
análise é não gozar por meio do sintoma, mas gozar com o sinthoma”, formulação
que aponta para a responsabilidade e o comprometimento do sujeito com seu
modo de gozo como produto da análise.
Existiriam na clínica com crianças elementos que permitam estar de acordo
com essas formulações sobre o final de análise? Qual seria o fim da análise da
criança, seja como término ou finalidade?
Primeiramente, o que se pode assinalar é que o final de análise com
crianças implica a concepção freudiana de interpretação do sintoma, uma vez que
os avanços lacanianos com relação à travessia da fantasia e identificação com o
sinthoma não se aplicam à infância, tempo da construção fantasmática e
enodamento primário dos registros. Nesse sentido, cabe então ao analista lidar
com o sintoma como uma solução precária e parcial inventada pela criança para
fazer frente aos impasses vividos na construção de sua neurose infantil. Seu
sintoma pode, assim, ser considerado como a melhor resposta à pergunta sobre o
desejo da mãe, uma vez que a questão sobre o que quer uma mulher ainda não
tem uma formulação consistente.
158
Basta se tomar a criança como analisante para notar de imediato o
elemento tempo envolvido na constituição do sujeito: como articular tal tempo com
o tempo do tratamento?
O encontro efetivo com o Outro sexo apenas pode se realizar a partir da
adolescência, e a criança, numa posição incompletamente decidida em relação ao
gozo, já apresenta assim um limite estrutural para a análise. “Há um momento em
que a análise de crianças pára, e essa parada se localiza em relação à estrutura
da relação amorosa que será determinante mais tarde.” (PORGE, 1998, p.18).
Existe portanto algo de sempre inacabado na análise de uma criança, por uma
necessidade estrutural, o que, contudo não implica a impossibilidade de uma
conclusão. Naturalmente, as elaborações que foram suficientes para uma criança
retomar a construção de sua neurose infantil em um certo momento são
provisórias, embora determinantes, com relação ao sinthoma que o sujeito
construirá na adolescência. Nesse sentido, retomando Porge, “como terminar de
tal modo que isso fique inacabado de uma boa maneira?” Para o autor, chega-se
ao fim da análise com a criança com a dissolução da neurose de transferência,
deixando intocada a análise da transferência amorosa criança-analista, já que ela
“não tem acesso àquilo que, no encontro sexual e por ele, vai colocá-la na
determinação da fórmula ‘não há relação sexual’”. (1998, p.17).
Soler (1994) ressalta a importância de não se violar a análise de uma
criança com uma conclusão definitiva sobre o que está, justamente, ainda
indefinido. O analista causa o trabalho do simbólico para que o ‘programa de
castração’ da estrutura seja executado, ajudando assim a corrigir as fixações
sintomáticas de gozo, ao mesmo tempo em que não deixa de reconhecer a
incompletude própria do inacabado.
159
A criança inicia uma análise quando dirige seu sintoma ao analista como
Outro a quem supõe um saber. O sintoma na infância remete a pontos isolados
da construção da estrutura, vem fazer suplência a falhas no enodamento primário
dos registros, e não à inexistência da relação sexual, ainda que o tempo todo
esteja remetido às vicissitudes da transmissão da falta. Permitir que o excesso de
gozo revelado pelo sintoma não impeça a construção da neurose infantil é o
objetivo da análise com crianças. O analista então ocupa o lugar de causa e
suporte da construção da fantasia da criança, permitindo o acesso ao saber
necessário para solucionar o impasse sinalizado pelo sintoma, de modo a dar
continuidade na construção da neurose infantil, o que se revela assim como a
finalidade da psicanálise com crianças. E quanto ao término? Seria possível
estabelecer condições para definir o momento de encerramento?
Toda precaução é pouca quando se trata de fixar critérios de
término de análise pois, quaisquer que sejam, implicariam a
submissão a um novo universal. Não pode haver senão critérios
para o término de uma análise, infinitamente variável para cada
análise. (BRAUSTEIN, 1999, p.243).
O final da análise de um sujeito é sempre absolutamente singular, assim
como a análise de uma criança é sempre, em certo sentido, inacabada. Tais
constatações não impedem, dentro dos objetivos desse trabalho, de sistematizar
elementos para a formulação de finalizações possíveis e pertinentes.
Para refletir sobre o fim de análise com crianças, formulou-se aqui uma
suposta discussão a propósito do caso ‘pequeno Hans’ entre Freud e Lacan.
Segundo Freud (1909, p.104-107), com a última fantasia de Hans - o
bombeiro que teria lhe dado um traseiro e um pipi maiores - a análise teria
chegado a uma conclusão satisfatória, pois “a ansiedade que foi provocada pelo
seu complexo de castração foi superada, e suas dolorosas expectativas
160
receberam uma transformação mais feliz”. Afirma que esse “pequeno Édipo” teria,
assim, encontrado uma solução mais feliz do que a prescrita pelo destino e “em
vez de colocar seu pai fora do caminho, concedeu-lhe a mesma felicidade que ele
mesmo desejava: fez dele um avô e casou-o com a sua própria mãe também.”
Mas para Lacan (1956/57, p.394-395), a elegante solução de Hans não
encontra na própria obra de Freud nada que a sustente como uma solução típica
do complexo de Édipo. “O terceiro que não achou no pai, ele o encontra na avó”,
desdobrando o lugar da mãe. “É precisamente na medida em que, por trás da
mãe, acresce-se uma segunda, que o pequeno Hans instaura a si mesmo numa
paternidade [...] imaginária”.
A análise de Hans se mostra portanto insatisfatória na leitura de Lacan,
pois ao invés do encontro com a impossibilidade formulada pela castração,
permitiu uma manobra que ludibriasse tanto o pai quanto o filho, preservando-os
imaginariamente da inexistência da relação sexual, o que certamente marcou a
posição sexual de Hans, definindo seu modo de relação com as mulheres.
O parceiro feminino não terá sido engendrado a partir da mãe, e
sim a partir desses filhos imaginários que ele pode fazer na mãe,
eles mesmos herdeiros desse falo em torno do qual girou todo o
jogo primitivo da relação de amor, da captação do amor, em
direção à mãe. (LACAN, 1956/57, p.396).
Freud e Lacan diferem quanto ao que seria um final de análise satisfatório
para o caso Hans, pois enquanto um se contenta com o desaparecimento do
sintoma por meio de uma solução imaginária do Édipo, o outro aponta a
necessidade da experiência subjetiva da castração para legalizar as relações, o
que permitiria assim a circulação do falo, lembrando que nesse ponto da
formulação lacaniana, é a teoria fálica que permite a leitura do lugar da criança.
161
Laurent, no texto Existe um final de análise para as crianças, 1994, apóia-
se principalmente nos escritos de Lacan Alocução sobre as psicoses da criança,
1968, e Nota sobre a criança, 1969, para trazer contribuições preciosas a essa
problemática. Compreende o termo ‘pessoa grande’, mencionado por Lacan,
como o “sujeito que poderia fazer-se responsável por seu gozo”, afirmando que “a
dignidade da psicanálise, se é que existe alguma, é a de produzir grandes
personnes”. Quando Lacan toma o pai “não tanto em termos de relação ao falo,
mas em relação com o objeto a” passa a compreender que o sujeito se define não
“a partir do significante desse desejo [desejo da mãe], que é o falo, mas a partir
do resto”. (1994, p.30).
Dessa maneira, Laurent se refere à báscula teórica realizada por Lacan
com relação ao estatuto da criança, que passa de versão do falo à de objeto a,
extraindo conseqüências para o entendimento do final de análise.
Em um caso é a criança quem pode responder do ponto de vista
fálico e a resposta que pode dar determina o final. Quando a
criança tem uma versão do falo, não vale a pena continuar, já é o
suficiente e ainda que tenha que colocá-la à prova, isto já basta.
No segundo caso, será necessário que a criança tenha uma
versão do objeto a. (LAURENT, 1994, p.31-32).
A construção da fantasia na infância garante que a criança não permaneça
como objeto para o gozo da mãe, promovendo sua separação desse lugar, ainda
que tal formação não tenha alcançado a estabilidade e consistência possíveis no
adulto. Para Laurent, essa fantasia fundamental corresponde a “construções de
ficção” que possibilitem à criança responder à pergunta sobre o gozo da mãe.
Nesse sentido, o tratamento de uma criança corresponderia então a uma oferta
de condições para que ela formule sua versão de objeto a: “um modo no qual a
criança, inclusive a criança psicótica, venha a dar uma posição, não de seu
162
inconsciente mas uma posição de gozo.” (1994, p.32). A ficção construída por
Hans, ao contrário, mantém-no justamente comprometido com o gozo da mãe.
Reconhece-se então, com Laurent, uma primeira condição para o final de
análise com uma criança, qual seja, o fato de “que o sujeito tenha construído
suficientemente o fantasma que o anima, com a versão do objeto que dispõe
segundo a idade que tem”. (LAURENT, 1994, p.32). Construindo tal ficção a
criança garante seu descolamento da posição de objeto condensador de gozo
para a mãe, passando assim a assumir sua própria posição de gozo, ainda que
incompletamente decidida. Com esse rearranjo de lugares, essencialmente
estrutural, ocorre uma destituição da posição subjetiva da criança na fantasia dos
pais, levando-a enfim a separar-se do gozo do Outro. Essa tarefa da criança
corresponde ao que Lacan já mencionara como fomentação mítica
41
, ou seja, a
estruturação de um sistema simbólico como tentativa de articular a solução de um
problema. Se a ficção por excelência é a fantasia, cabe ao analista criar as
condições para que ela aconteça.
Nota-se na clínica que essa destituição da posição da criança na fantasia
parental
42
tem em geral duas possíveis conseqüências: ou precipita um pedido de
análise por parte de um dos pais, ou o Outro parental em jogo, ao libertar a
criança desse lugar, encontra um novo suporte para seu objeto, de modo a não
desestabilizar significativamente sua própria equação fantasmática. A mãe, por
exemplo, pode voltar a investir em seu trabalho, ou casar-se novamente, ou,
ainda, conceber um outro filho. As intervenções junto aos pais durante o
tratamento são fundamentais para ajudá-los nessa direção.
41
Cf. capítulo dois, p.66.
42
Fantasia parental nesse sentido pode referir-se aos pais enquanto casal, ou somente à mãe, dependendo
do caso, como discutido no capítulo quatro.
163
Rassial (2004)
43
parte desses mesmos elementos teóricos para afirmar que
o objetivo da análise da criança seria então aliviar o sujeito da dependência de
seu objeto, possibilitando-lhe assim um ‘ganho de charme’. Nesse sentido,
observa alguns efeitos do final do processo analítico com a criança: o terapêutico,
que consiste no desvencilhar-se do sintoma então obsoleto para a infelicidade
neurótica, o ganho de laicidade, no sentido de se desembaraçar dos pais,
passando a desacreditar dessa figura ideal do adulto, e o didático, implicado na
construção de uma outra relação com o saber.
Ressalte-se aqui a seguinte questão: pode a criança, por estrutura,
desembaraçar-se do Outro encarnado pelos pais? Pode a demanda dirigida ao
Outro esvaziar-se na infância?
A entrada no mundo se dá pela demanda, assim como é também por meio
de uma demanda que se caracteriza o momento da entrada no processo analítico.
Segundo Miller, essa demanda se modifica durante o tratamento, pois o sujeito
apreende que toda demanda é fundamentalmente sem saída. O término de uma
análise consistiria então no desaparecimento radical da demanda, ou seja, o
desaparecimento do Outro a quem dirigir o pedido para suprir a falta,
correspondendo assim à aceitação da castração, a partir da qual o sujeito vive
uma importante destituição subjetiva. (MILLER,1995, 28-32).
Esse desaparecimento da demanda é, contudo, apenas um evento,
marcadamente pontual, que, embora produza efeitos permanentes na posição do
sujeito com relação ao Outro, não corresponde propriamente a um estado que
possa ser alcançado, mesmo quando se trata de uma ‘pessoa grande’. A função
do analista implica justamente essa habilidade, elaborada a partir da própria
43
Em seminário na USP, 21/08/2004.
164
análise, de [des]ocupar o lugar do Outro para o esgotamento da demanda do
analisante, sobretudo no final de uma análise. Importa lembrar que, embora essa
ocorrência conduza o sujeito efetivamente a uma outra posição, na qual não mais
se encontre como prisioneiro da demanda, não erradica, contudo, a formulação
de demandas no mundo. Caso contrário, poder-se-ia ser analista, enquanto se
sabe, com Lacan, que o analista é exatamente um des-ser.
O que acontece no final de uma análise é então um desinflamento do
Outro, uma descrença de que se poderia ali encontrar o objeto perdido, aquilo que
em falta causa o sujeito. Compreende-se assim, de modo relativo, a possível
independência com relação ao objeto.
Ainda que a criança possa minimizar o peso do Outro, relativizando seu
papel, permanecerá estruturalmente em uma posição de dependência desse
Outro, que assim mantém sempre uma certa consistência. Entende-se aqui que a
criança trazida para análise volta-se ao analista porque não encontrou no Outro
parental, esse mesmo que a trouxe, as respostas necessárias às próprias
elaborações, seja por uma carência de elementos ou por um excesso da
presença desse Outro. Diante dessa espécie de curto-circuito no jogo da
demanda e do desejo, o analista se apresenta como um bom entendedor da
mensagem da criança, um outro Outro que poderia auxiliá-la a retomar a
construção da neurose infantil. O término da análise seria, então, não somente a
resolução do impasse responsável pelo sintoma, mas também a restituição dos
pais no lugar de suposto saber para a criança. Nesse sentido, o final de análise
para a criança não seria um desaparecimento da demanda, mas o
reendereçamento da mesma ao Outro parental, lançando ao futuro a possibilidade
do sujeito voltar à análise. O acompanhamento da construção da neurose infantil
165
torna-se indispensável somente quando houver riscos flagrantes para a
constituição do sujeito, seja pela fragilidade das construções da criança, seja pelo
fato de os pais demonstrarem-se insuficientes para [re]assumirem a função de
suposto saber. Delineia-se, assim, uma segunda condição para o encerramento
do tratamento da criança, qual seja, a possibilidade de os pais recuperarem o
lugar de sujeito suposto saber, sendo bons entendedores da mensagem da
criança.
Importa ressaltar que a análise com uma criança pode-se interromper a
qualquer momento, independentemente da relação analítica, uma vez que, em
última instância, é uma decisão dos pais. Em geral, a tendência deles é demandar
que a análise termine o quanto antes, seja devido a todos os inconvenientes e
incômodos que traz ao núcleo familiar, seja pelo legítimo desejo de que a criança
viva melhor.
Nesse sentido, a interrupção pode sobrevir: i) a partir da melhora da
criança - situação que comumente provoca um ‘rearranjo’ no Outro parental - mas
sem levar em conta o processo analítico, uma vez que o final dos distúrbios não
coincide necessariamente com o fim da análise; ii) se não se nota na criança uma
melhora, pois é difícil aos pais renovarem a transferência quando o sintoma
parece não ceder, ainda que o analista advirta que esse não é o único parâmetro
para se avaliar o avanço de um tratamento; iii) quando a criança aparenta piorar,
exibindo uma intensificação do sintoma que não necessariamente implica a
ineficácia do tratamento, podendo justamente apontar para o uso que a criança
está fazendo do espaço analítico para realizar uma construção mais elaborada da
qual, somente num segundo momento, poderá abrir mão.
166
Para que uma análise chegue ao seu término, no sentido de uma
conclusão do processo, não basta, portanto, que a criança esteja engajada: é vital
que os pais não interrompam o tratamento. Para tanto, é fundamental que o
analista dê sustentação a um campo transferencial no qual também os pais
estejam implicados.
A ‘criança pequena’, que vive ainda a relação de frustração com a mãe,
quando algo impede que a dialética se instale, trazendo um excesso de gozo do
Outro, alimentando sintomas, a restauração da dialética pode ser suficiente para o
encerramento da análise, o que aconteceu com R., cujo sintoma, anorexia,
revelava justamente o fracasso do jogo do engodo da criança com seu Outro
primordial. Uma vez que o analista se oferece como uma outra versão de Outro,
sustentado no desejo de analista, propicia à criança encontrar elementos que
permitem retomar a construção de sua fantasia. O sintoma cede e os pais,
principalmente a mãe, recupera seu lugar de sujeito suposto saber para a criança.
Na ‘criança edípica’, o final de análise, como destacou Lacan a propósito
do Hans, deve ter uma saída simbólica, no sentido da transmissão da castração,
permitindo a construção da fantasia e legalizando as trocas nas relações da
criança com o Outro. A discussão feita mais acima sobre o final da análise do
caso Hans ilustra este momento.
Na latência, ainda que a criança já tenha construído sua fantasia, essa
construção pode apresentar uma certa inconsistência, que leva a criança a
inventar sintomas na tentativa de se sustentar subjetivamente. O final de análise
seria tornar essa construção mais estável, alcançando finalmente o
apaziguamento necessário para a criança poder se lançar em outras direções. M.
constrói, em seu processo analítico, uma ficção, a partir da apropriação de uma
167
questão significante veiculada pelo pai – seu receio de que a convivência com o
casal formado por sua mãe e a namorada pudesse atrapalhar sua formação
psíquica. M. inventa um personagem, que “encontra no consultório do analista”,
uma formiga que nomeia Fú, confeccionada com um pedaço de papel, que
inicialmente tem a função de facilitar o endereçamento de suas questões ao
analista. Aos poucos este personagem vai ganhando expressão, aparecem seus
pais, Fé e Fó, um irmão mais novo, o Fí e uma irmã mais velha, a Fá (M. é a filha
do meio, tendo duas irmãs). Constrói uma casa para esta família habitar, a escola
onde vão diariamente os três irmãos, além do local de trabalho dos pais, que se
localiza na mesma rua da escola. Fala sobre as diferenças e semelhanças dessa
família com a sua, o que permite a veiculação de suas demandas em relação aos
membros de sua família. Nos últimos meses de trabalho, M. toma para si a tarefa
de escrever um livro sobre a história desses personagens, um livro bastante
singular, uma vez que ao invés de texto, existe uma legenda no início do livro com
as figuras e o que elas representam, o que permite a leitura da história. É
interessante notar que não existe propriamente um final na história, M. apresenta
os personagens, coloca-os em movimento e, uma vez que não precisam mais
dela para existir, fica indicada a continuidade autônoma de suas vidas, assim
acaba o livro. Na capa, aparece o nome da história – A História das Fús, o nome
de M. como desenhista e escritora, ao lado do nome do analista, editor. Através
da construção dessa ficção, que não se configura em uma resistência em aceitar
a nova configuração familiar, M. coloca novamente em relação o casal parental,
constrói uma resposta para o enigma do desejo do Outro, recuperando a
possibilidade de viver bem e investir em outros objetos. Trata-se de uma
elaboração singular em que é possível o emparelhamento do casal parental em
168
termos significantes, permitindo que M. viva bem com sua nova configuração
familiar.
De modo geral, o objetivo da análise da criança seria permitir a ela separar-
se do objeto de gozo dos pais, ocupando um outro lugar por meio da construção
de uma posição própria diante do desejo do Outro, o que só é possível a partir da
aceitação da falta, nas versões possíveis a cada tempo da constituição.
169
7 ÉTICA COMO MANDAMENTO TÉCNICO
Discutiu-se no primeiro capítulo deste trabalho como a experiência clínica
impôs ao inventor da psicanálise um modelo de procedimento, requerendo-lhe
uma sustentação teórica compatível, desafio a que todo analista está
permanentemente confrontado em sua práxis. Contudo a posição do analista, ali
onde a ética da psicanálise se desvela, é o que de fato opera a interface entre
teoria e técnica.
A Ética é o estudo das apreciações que se referem à conduta humana,
campo do julgamento dos atos, diferente da Moral, que corresponde ao conjunto
de regras de conduta consideradas válidas em determinado sistema de relações.
Freud não trabalhou explicitamente essa diferença, mas sua obra permite
concluir que a psicanálise não se ocupa de questões morais, enfatizando
outrossim a ética, que assume contornos bastante específicos. A preocupação
moral não é estrangeira ao trabalho do analista, mas justamente nesse âmbito é
que deve reconhecer que “o bem e o mal de uma vida não se decidem a partir de
princípios preestabelecidos; eles se decidem na complexidade da própria vida da
qual se trata.” (CALLIGARIS, 2004, p.12). Não cabe, portanto, ao analista
formular um juízo moral, pré ou pós-concebido, o que de outro modo lhe impediria
de desempenhar sua função.
Como apreender esse campo ético? “Se há uma ética da psicanálise é na
medida em que, de alguma maneira, por menos que seja, a análise fornece algo
que se coloca como medida de nossa ação.” (LACAN, 1959/60, p.374). O que
seria essa medida?
170
O homem como sujeito de um desejo é um ser em falta. Essa redundância
envolvendo falta e desejo, equivalentes no vocabulário psicanalítico, é aqui
justificada pelo fato de, sendo tão recorrente, sobretudo no campo lacaniano, ter-
se transformado numa espécie de obviedade oculta. Reafirmar explicitamente que
o homem é em falta corresponde a ratificar de modo inequívoco o próprio cerne
da questão ética na psicanálise, em uma contraposição, tão difícil quanto
necessária, aos valores morais apregoados em nossa atualidade. Segundo
Lacan, enquanto a moral é definida a partir dos ideais de eu, a ética está
implicada nas relações do sujeito com o desejo inconsciente. Uma ação humana
só pode ser então devidamente avaliada tomando como princípio a singularidade
da situação. A originalidade da contribuição psicanalítica reside justamente em
assumir o desejo como referência ética central e, nesse sentido, a verdadeira
medida de nossa ação.
A indagação “Agiste em conformidade com teu desejo?” (LACAN,1959/60,
p.373) encerra assim uma questão crucial.
Diante do desejo o sujeito faz uma escolha entre a responsabilidade e a
culpa. A culpa é sustentada pelo assujeitamento aos ideais morais, diante do que
o sujeito capitula ao desejo; a responsabilidade, por outro lado, consiste em
responder pelo seu desejo inconsciente. A ética pode assim ser definida como a
articulação entre ação e o desejo inconsciente que a habita, o que em última
análise equivale dizer que a ética é fundada no desejo.
Nesse sentido, a neurose não é uma enfermidade, mas um mal ético.
(BRAUNSTEIN, 1999, p.220). O autor explica tal assertiva por meio de uma
metáfora na qual a vida corresponderia a um jogo. O sujeito deve jogar quando é
sua vez, não pode passá-la como, por exemplo, no jogo de xadrez. Fazer a
171
jogada de acordo com o desejo, submetendo-se às conseqüências, implica
aceitar uma limitação de gozo em função de um outro caminho na escala invertida
da Lei do desejo. O sujeito deve jogar e o saldo da ação é uma perda irreparável.
Quando não joga, manifesta impotência ou renúncia com relação a sua própria
posição, o que configura um mal ético. Se quem joga pode perder, quem não joga
já está perdendo e, nesse sentido, o verdadeiro jogador não joga tanto para
‘ganhar’, quanto para ‘continuar jogando’. A análise propõe ao sujeito jogar o jogo,
esse jogo inverso do ‘quem perde ganha’, resguardando a integridade do desejo
como única alternativa para um posicionamento ético frente à própria existência.
“[...]o tratamento analítico tende a reconquistar a terra estrangeira interior,
fazendo-a passar pelo diafragma da palavra inédita e insólita que invente uma
saída para o desejo pela via do ato afirmativo da particularidade subjetiva.”
(BRAUNSTEIN, 1999, p.227).
Obviamente, a ética na psicanálise não se confunde com uma ética dos
costumes, uma redução historicamente determinada destinada à crítica da moral
ao serviço dos bens, mas, justamente ao contrário, remonta a um
comprometimento radical que implica a relação entre a ação e o desejo que a
anima. “Não há outro bem senão o que pode servir para pagar o preço ao acesso
ao desejo - na medida em que esse desejo, nós o definimos alhures como a
metonímia de nosso ser”. (LACAN, 1959/70, p.385).
Como pode então o analista, sustentado em seu fazer pela ética da
psicanálise, acolher essa nossa recorrente demanda contemporânea por uma
mal-concebida felicidade ostensiva? Mais além, o que pode fazer quando o
aspirante a tal conquista é uma criança sofrendo a carga do discurso social
implícito na demanda parental?
172
O ideal de felicidade atualmente celebrado pela sociedade de consumo é
francamente incompatível com a idéia de regras e limites para o gozo. Essa
felicidade fantasiosa guarda a imposição de um gozo indomado, ilimitado,
absoluto, ou seja, um ‘todo-gozo’ impossível, desconsiderando, numa trágica
ironia, exatamente aquilo que de fato possibilitaria ‘algum-gozo’. Segundo Melman
(1995), essa situação é especialmente comprometedora quando se pensa na
criança, pois os pais não apenas descarregam sobre ela todo o peso desse
discurso social, mas vêem-se desamparados para agirem de outro modo. A atual
sobrevalorização da ciência, cada vez mais fortalecida como o único verdadeiro
saber, acaba por desautorizar o saber essencial que só a função paterna poderia
transmitir, e os pais, assim solapados, passam então a prometer a seus filhos
uma mentira de gozo.
Nesse sentido, percebe-se que a felicidade em nossos dias se apresenta
contaminada por um ideal perverso, de gozar a qualquer custo, sempre, mais e
melhor. Certamente, esse estado das coisas traz dificuldades para o trabalho do
analista. Contudo, a psicanálise ensina que a demanda é sempre demanda de
uma outra coisa, ou seja, uma tentativa de dizer o desejo, ainda que incompatível
com a fala. A ética do campo analítico orienta então o analista a tomar essa
demanda por felicidade, seja ela qual for, na direção de fazer deslizar o desejo na
fala. Esse posicionamento do analista é, a um só tempo, um princípio ético e um
mandamento técnico.
Tal posição é apenas possível a partir da função que exerce o analista na
direção do tratamento, qual seja, a de suporte do objeto causa de desejo. O
desejo de analista orienta-o a se presentificar como esse objeto que toca o
sujeito, suscita a fala e possibilita o desfilar do desejo pelo significante, aplacando
173
assim o sofrimento gerado pelo represamento do gozo no sintoma. Não é a via
para aquela felicidade total que prometia a existência da relação sexual, mas uma
via pela qual o Outro perde seu peso de cruz a ser carregada, trazendo a leveza,
por que não dizer, de uma certa felicidade. Uma análise visa, portanto, a permitir
a transformação da “miséria neurótica” em “infelicidade banal”, ou seja, uma
báscula da impotência ao impossível.
Não somente o que se lhe demanda, o Bem Supremo, é claro
que ele [o analista] não o tem, como sabe que não existe. Ter
levado uma análise a seu termo nada mais é do que ter
encontrado esse limite onde toda a problemática do desejo se
coloca.
Que essa problemática seja central para todo acesso a uma
realização de si mesmo, é a novidade da análise. (LACAN,
1959/60, p.359).
O que é felicidade no âmbito analítico? Qual definição de felicidade seria
cabível aos princípios éticos da psicanálise? O que os analisantes podem esperar
de uma análise, enfim?
Mezan (1996) propõe que se considere a proteção da sobrevivência
psíquica do sujeito como um valor ético-analítico fundamental. O analista não
ataca nem desacata essa proteção, mas oferece as condições para que se criem
soluções, talvez mais criativas, nas quais o amor, o trabalho e o sofrimento não
precisem mais ser temidos ou evitados, podendo então desempenhar seu papel
estruturante. Note-se aqui a ressonância do que Freud certa vez anunciou sobre o
que se poderia esperar de uma psicanálise: devolver ao analisante a capacidade
de amar e trabalhar, trabalho esse que no caso das crianças corresponde ao
brincar.
Note-se ainda uma afinidade com a formulação de Calligaris (2004), que
propõe a felicidade possível como a qualidade da experiência vivida, definida em
174
função da intensidade com a qual nos permitimos viver, para além da alegria ou
tristeza de cada momento. Nesse sentido, pode-se mesmo dizer que há algo de
moral na psicanálise, uma vez que o analista zela pela qualidade da experiência
do analisante na mesma medida em que a considera um valor.
O autor introduz assim uma noção de normalidade aceitável como meta de
cura na psicanálise por ser eticamente cabível: “nosso ideal de normalidade é o
estado em que um sujeito se permite realizar suas potencialidades, ou seja, o
estado em que nada impede que alguém viva plenamente o que lhe é possível
nos limites impostos por sua história e sua constituição.” (CALLIGARIS, 2004,
p.72-73). Para além das individualidades, o desinflamento do Outro e a
conseqüente experiência da própria pequenez humana que a análise proporciona,
tende a levar o sujeito a viver melhor.
Torna-se evidente a impostura da demanda de cura vinculada à noção de
felicidade veiculada pelos pais das crianças que procuram ajuda na psicanálise, o
que requer um posicionamento ético consistente por parte do analista, que
desvelará o elo necessário entre cura e castração, avesso em estrutura à
imposição de ideais, fazendo da psicanálise talvez a única modalidade de
psicoterapia que faz limite ao discurso cientifico, como guardiã da singularidade
da experiência humana.
7.1 O desejo do analista
Durante todo o percurso deste trabalho, destacou-se o lugar-função do
analista como o elemento central articulador dos demais tanto no estabelecimento
175
das condições para a psicanálise quanto no direcionamento do tratamento.
Considerando a importância vital dessa questão, intrinsecamente ligada ao modo
como o analista age com seu próprio ser, “cabe formular uma ética que integre as
conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do
desejo de analista.” (LACAN, 1958a, p.621).
Freud não faz nenhum tratado sobre o desejo de analista em sua obra,
mas no texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, 1912,
encontra-se um apontamento do que seria necessário por parte do analista para
que pudesse conduzir uma análise: ter passado por uma purificação analítica,
submetendo-se ele mesmo a um tratamento, tornando assim sua escuta
desembaraçada de seus próprios complexos. A partir das formulações
lacanianas, pode-se inferir que Freud estaria ali antecipando a função desejo de
analista, entendida como um dos resultados da análise do psicanalista, o principal
deles no que se refere à capacidade desse profissional para desempenhar seu
ofício.
O desejo de analista corresponde então a uma função lógica que possibilita
ao analista dirigir o tratamento, uma vez que lhe permite ocupar o lugar de
suporte do objeto causa de desejo para o analisante. Ocupando tal lugar, o
analista deixa desimpedida a via de acesso do analisante à dimensão alienante
do desejo – desejo do Outro – promovendo assim um ‘encontro com a separação’
de modo a desvelar o objeto causa de desejo. O desejo de analista, portanto, não
é desejo do Outro, ao contrário, deve apontar justamente para a inconsistência
desse Outro.
Enquanto o desejo inconsciente [desejo do Outro] é uma
pergunta, o desejo do analista é uma resposta. É uma resposta
do analisante ao sem-saída da via da demanda, uma resposta à
ausência de resposta do Outro, uma resposta ao desamparo. [...]
176
[...] é um desejo derivado do saber que não há relação sexual,
que não há Outro do Outro, que não há o ato do ato. (QUINET,
2003, p.112-115).
Torna-se óbvio que o desejo de analista não se refere ao desejo da pessoa
do psicanalista, mas exatamente a seu dever analítico, essencialmente ético, de
calar o próprio desejo enquanto sujeito, resguardando assim o lugar vazio que
permite “ao paciente demarcar o objeto de seu desejo, para além das miragens
do amor, a partir da falta de seu signo no Outro”. (COTTET, 1989, p.173). Nesse
sentido, o desejo de analista é qualificado como ‘desejo prevenido’, relevando
justamente a idéia de que não se deve desejar o impossível. (LACAN, 1959/60,
p.360).
Lacan se utiliza de uma imagem interessante para pensar o trabalho do
analista:
Um santo, para que me compreendam, não faz caridade. Antes
de mais nada ele banca o dejeto: faz descaridade. Isso para
realizar o que a estrutura impõe, permitir ao sujeito, ao sujeito do
inconsciente, tomá-lo por causa de seu desejo. [...] o santo é o
rebotalho do gozo. [...] Na verdade, o santo não se considera a
partir de méritos, o que não quer dizer que ele não tenha moral.
(1974a, p.32-34).
Essa idéia de ‘des-caridade’ pode ser compreendida como uma certa
impiedade necessária à posição do analista, um dever de coerência com a única
verdade da psicanálise, a de que não há relação sexual, uma vez que o
psiquismo só se estrutura ao redor dessa falta, única via para a instalação e
reconhecimento do desejo.
Seja na posição do analista exercendo sua função ou do adulto diante de
uma criança, esse posicionamento fundamental à necessária transmissão de uma
herança simbólica é difícil de ser sustentado. Especialmente em nosso atual
177
contexto histórico no qual os adultos, enquanto mantenedores do discurso social
vigente, reproduzem sobre suas crianças a demanda de uma felicidade sem lei,
como se o determinante atravessamento da castração pudesse ser simplesmente
ignorado
44
. O adulto, independente da função exercida, ocupa inevitavelmente o
lugar de Outro para a criança, pela assimetria própria a essa relação, por habitar
a linguagem de modo mais estável, por dispor de uma fantasia mais consistente,
enfim, pelo fato mesmo de ser um adulto, e o analista, enquanto tal, acaba sendo
também convocado a essa posição, precisando responder diferentemente. A
situação do adulto frente à criança implica poderes, ou ainda, ‘deveres’, sobretudo
quanto à transmissão do legado cultural necessário à constituição do sujeito, mas,
se não cabe ao analista corresponder à demanda social, não lhe cabe tampouco
assumir a função dos pais.
Como então sustentar o lugar de desejo do analista na clínica com
crianças? “Como o analista pode se fazer parceiro da criança, sem se tornar seu
mestre, seu instituteur simbólico, sem tomar o lugar de guru?” (THIBAUDEAU,
1994, p.30). Noutros termos, como o analista pode acompanhar a criança sem
gozar às suas custas? Mais além, como, enquanto adulto, abdicar à transmissão
de seu próprio saber sobre o mundo? O que se transmite numa análise com
crianças, afinal?
Segundo Soler (1994), a condição para que o desejo de analista possa
operar é a existência de um desejo constituído no analisante, efeito da subtração
de gozo que engendra o sujeito. Nesse sentido, ocupar o lugar de objeto causa do
44
Note-se aqui a possível vinculação entre o lugar ocupado pela ciência em nossa sociedade de mercado, a
função do consumo mitologizado pela mídia, e a tentativa infantil de perpetuar a dialética do engodo com a
falsificação imaginária de um gozo absoluto.
178
desejo requer que a criança já seja um sujeito de desejo, ou, pelo menos, esteja a
caminho de sê-lo, não se encontrando impedida por permanecer encravada no
lugar de objeto da fantasia materna, situação que requereria do analista
manobras clínicas anteriores.
A possibilidade de sustentar o desejo de analista diante da criança remete
à capacidade do analista de ocupar um lugar de ‘abnegação subjetiva’ que lhe
permita operar com o desejo liberto de sua fantasia, posição nada fácil diante da
criança, uma vez que o risco de tomá-la como objeto de gozo é especialmente
tentador, sobretudo para aqueles com a escuta obstruída pelas próprias
fantasias
45
.
Como discutido no capítulo cinco, a palavra na criança não engaja o
sujeito, aumentando as dificuldades do analista para a sustentação de seu lugar.
Isso não impede forçosamente a análise, mas a inconsistência marcada pela
liberdade fabulatória, apontando para um processo não finalizado de extração de
objeto e montagem da fantasia, indica uma posição a respeito do gozo ainda
incompletamente decidida, instável, à espera de uma definição.
A grande importância do desejo de analista está em designar a presença
inelutável da questão ética na prática analítica, levando o profissional a não
identificar “o desejo que aprendeu a reconhecer durante a sua análise, atrelado a
sua fantasia fundamental, [...] com o desejo do Outro dos seus pacientes.”
(GOLDENBERG, 2004, p.20). Na psicanálise com crianças, essa capacidade do
analista é fundamental, uma vez que, “na falta de um tratamento-padrão, a
análise de crianças só existirá se for interrogado o desejo do analista, em seu ato,
como efeito de um estilo”. (RASSIAL, 2004, p.34). O autor ressalta ainda a
45
Soler (1994) refere-se à posição de alguns dos primeiros psicanalistas de crianças, aqui abordados no
capítulo um, os quais acabaram por realizar transmissões partindo ingenuamente de suas próprias fantasias.
179
tentação do analista de se desviar da direção orientada pelo desejo do analista
rumo a outras posições quando se depara com uma criança como analisante.
Bernardino (2004b) afirma que o vazio introduzido pelo operador desejo
de analista proporciona uma experiência inédita à criança, fazendo-a recolocar o
enigma ‘o que o Outro quer de mim’. A criança se depara com um outro Outro que
não lhe deseja nada em específico, a não ser que persiga suas próprias questões
para o desvelamento do desejo, tornando o sintoma menos essencial,
possibilitando assim a retomada da construção da neurose infantil. O desejo do
analista, introduzindo a falta no Outro, tem um efeito apaziguador para a criança,
o que também afeta, de outro modo, os pais, então desafiados a suportarem
‘perder a criança’. Nesse sentido, o operador desejo de analista tem uma
importante função também nas entrevistas com os pais, permitindo-lhes, por sua
vez, um [re]posicionamento quanto à falta e ao lugar ocupado pelo filho.
Bernardino (2004b) lembra outros pontos sobre os quais o desejo do
analista deve estar ‘prevenido’ quando se trata da clínica com crianças, como o
apelo à aliança com algum dos pais; o risco de associar-se com ‘A criança’,
sintoma do infantil; o fascínio exercido pela criança ‘Mestre do gozo’; e a tentação
do viés educativo, por exemplo. Como se livrar de tais armadilhas? Além da
análise do analista, a autora ressalta a importância da supervisão como o espaço
por excelência da transmissão de um ‘saber-fazer’ analítico.
Ressalta ainda uma característica fundamental do fazer do analista na
clínica com crianças, qual seja, a convocação do analista à invenção,
corroborando assim a formulação de Rassial de que o analista não tem como se
esconder atrás de um suposto tratamento padrão quando está diante de uma
criança.
180
Ao analista de crianças aparece como uma conseqüência lógica
que ele seja chamado a inventar, ali onde a teoria serve apenas
de ponto de partida e a técnica é bastante insuficiente – cabe-lhe
ousar, na busca de um ato que possa funcionar como
significante, que possa fazer corte, que possa dar início a um
desenho, uma modelagem, um jogo, que ponham a criança na
via da enunciação, a trabalhar. (BERNARDINO, p.73).
Essa conseqüência lógica se deve às particularidades do sujeito no tempo
da infância, que tornam a criança um analisante ‘mal comportado’: traz
brinquedos, comida, pessoas à sessão; fecha a porta da sala com o analista para
fora; quer pegar um objeto na sala ao lado; pede para levar objetos para casa;
cria inúmeras situações, enfim, para as quais o analista precisa inventar uma
resposta, construir uma intervenção, conceber um ato, sempre orientado pelo
desejo de analista para estabelecer a melhor direção para cada tratamento.
Como visto no capítulo cinco, o analista intervém a partir de um duplo
lugar: semblante de objeto a e Outro. Na transferência, o analista é chamado a
encarnar o Outro, entrando com seu corpo, sua história, seu desejo, cabendo-lhe
suportar tal lugar sem contudo deixar-se tomar por ele, possibilidade que se
apresenta condicionada ao operador desejo de analista. Contudo, importa
lembrar, “mesmo que o desejo de analista não seja um desejo particular, seu
lugar é particular a cada caso. Essa singularidade não supõe fazer do analista um
sujeito, mas é uma maneira para diferenciá-lo do Outro o qual ele sustenta a
função”. (BERENGUER, 1994, p.50).
Segundo Berenguer, o desejo de analista deve intervir no lugar no qual o
impasse que trouxe a criança à análise se apresentou, procurando levar o sujeito
para além das miragens que o fixaram numa determinada relação com o Outro. O
analista é convocado pela criança a responder com relação a esse ponto. “A
abnegação própria ao desejo de analista, sua não-resposta, ou sua resposta
181
outra, produz-se no mesmo lugar onde já houve alguma coisa. Ali o desejo de
analista desvela sua diferença em relação ao desejo da mãe ou ao desejo do
Outro”. (BERENGUER, 1994, p.50).
Essas afirmações parecem vir ao encontro da hipótese sustentada neste
trabalho de que o lugar ao qual o analista é convocado pela criança guarda certas
particularidades dependendo do tempo da constituição do sujeito em que a
criança se encontra, uma vez que os impasses são próprios a cada tempo. Cabe
ao analista responder em cada caso, mas sempre orientado pelo desejo de
analista.
Nesse sentido, só o que pode restar de qualquer análise como transmissão
é então a inexorabilidade do vazio resultante da extração do objeto a. A análise
de uma criança não é diferente nesse aspecto, embora o objeto a no contexto da
infância não seja sempre o mesmo, no sentido de não ter o mesmo valor nem a
mesma função em cada um dos tempos da constituição psíquica. Como já
apontado no capítulo anterior, na análise “trata-se de que o sujeito tenha
construído suficientemente o fantasma que o anima, com a versão do objeto que
dispõe segundo a idade que tem.” (LAURENT, 1994, p.32).
O objeto a é o que unifica RSI, “é o cerne do gozo que se sustenta com o
nó borromeano [...] causa vazia da realidade psíquica de um sujeito desejante”.
(VORCARO, 1997, p.130-1). O analista, semblante de tal objeto, opera segundo o
desejo de analista na direção de criar as condições para que o enodamento
borromeano se realize fazendo consistir RSI e, nesse sentido, deve oferecer linha
e agulha para a confecção do nó justamente ali aonde alguma falha veio se
inscrever.
182
Noutros termos,
Esse objeto insensato, que especifiquei de “a”. É isso, o que se
agarra à fixação do simbólico, do imaginário e do real como nó. É
ao justo agarrar que vocês podem responder àquilo que é função
de vocês: oferecê-lo como causa de seu desejo aos seus
analisantes. É isso que se trata de obter. Mas se vocês aí se
prendem a pata não é tão terrível. O importante, é que isso se
passe sob os seus encargos. (LACAN, 1974, p.20).
Se o que se transmite numa análise a partir do analista no lugar de suporte
do objeto a é o vazio necessário à realização da falta inscrita no Outro e, como já
mencionado, o bem maior que os pais podem transmitir a seus filhos é essa
mesma falta, qual seria então a diferença entre esses dois modos de
transmissão?
Os pais transmitem a falta a partir de suas próprias posições fantasmáticas,
ou seja, versões singulares de como puderam em suas vidas lidar com a lacuna
estruturante do psiquismo. Noutros termos, a falta assim transmitida está
fundamentada no testemunho de um saber particular sobre como as figuras
parentais arranjaram-se com a incompletude intrínseca à condição humana. Ainda
uma vez importa lembrar que os valores sociais atualmente celebrizados tendem
a caracterizar a falta dos pais como um ‘defeito’ deles, sugerindo à criança a idéia
de que o vazio estrutural de um sujeito não só pode como deve mesmo ser
preenchido. Nesses casos, o trabalho do analista junto aos pais inclui manobras
necessárias a [re]autorizá-los a operar a partir dessa falta fundamental.
O analista, por sua vez, ocupa-se em também transmitir esse vazio
essencial, mas, orientado pelo desejo de analista, opera a partir dessa posição de
“abnegação subjetiva”, procurando justamente manter-se desembaraçado da
própria fantasia para permitir, promover e sustentar a construção de uma resposta
fantasmática própria por parte da criança, que então pode articular de maneira
183
renovada os elementos que já se encontram presentes como resultado da
transmissão simbólica operada pelo Outro parental.
Importa concluir que, não apenas no que se refere a essa transmissão,
mas com relação a tudo até aqui discutido ao longo deste trabalho, o diferencial
analítico, seja na clínica com criança ou no tratamento padrão, remonta sempre a
uma mesma unidade, essencialmente ética. Considerar as especificidades da
criança como analisante, bem como, de modo particular, as singularidades de
cada caso, implica fundamentalmente o desejo do analista, tanto para a criação
das condições quanto para o direcionamento do processo analítico. Pode parecer
contraditório que uma mesma posição manifeste-se de diferentes maneiras, mas
justamente porque o analista baliza-se pelo operador desejo de analista é que
pode reconhecer, no adulto, na criança, em cada um, as possibilidades para uma
via legítima de realização da falta. A [re]invenção do caminho interrompido,
esquecido, perdido, para o acesso do sujeito analisante ao desconhecido vital do
desejo gira assim em torno do eixo sustentado por esse lugar-função do analista
como reserva e guardião do elemento central que integra todos os demais em seu
fazer: a ética psicanalítica.
184
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ZBRUN, M.A. (1999) Lacan e o campo do gozo. Revinter, Coleção Freudiana, Rio
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196
ANEXO
Nó do sinthoma
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