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Juliana Silva Lopes
A ESCOLA NA FEBEM-SP:
em busca do significado
São Paulo
2006
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Juliana Silva Lopes
A ESCOLA NA FEBEM-SP:
em busca do significado
Dissertação apresentada no Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo,
como parte dos requisitos
para obtenção do título de mestre em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
Orientadora: Profa. Titular Maria Helena Souza Patto
São Paulo
2006
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Lopes, Juliana Silva.
A escola na FEBEM-SP: em busca do significado / Juliana Silva
Lopes; orientadora Maria Helena Souza Patto. -- São Paulo, 2006. p.
149.
Dissertação (Mestrado Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano) Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo.
1. FEBEM-SP 2. Escolas públicas 3. Trabalho docente I. Título.
HV9068
Aos meus pais, Nicanor e Terezinha,
pela confiança incondicional
sempre em mim depositada
e por me ensinarem
o valor do ser humano.
AGRADECIMENTOS
À Angela e Marisa
1
pela disponibilidade e amizade com que acolheram a mim e ao
projeto de pesquisa. Obrigada por partilharem comigo um pouco de seus trabalhos, suas
angústias, alegrias e esperanças. Pude assistir a verdadeiras lições de humanidade.
À minha querida orientadora Maria Helena Patto pela orientação precisa do trabalho de
pesquisa, por partilhar comigo seu vasto conhecimento científico e humano e por me
acolher e amparar durante a trajetória desse mestrado – “dando colo e dando bronca” na
medida exata.
À Profa. Dra. Sueli Terezinha Martins com quem tomei gosto pela pesquisa científica,
ainda na UNESP de Bauru. Exemplo de pesquisadora, de mestre, de ser humano.
Obrigada pelas contribuições valiosas no Exame de Qualificação e por continuar
fazendo parte de minha formação profissional e humana.
À Profa. Titular Marília Sposito a quem tive o prazer de conhecer durante as disciplinas
cursadas no decorrer desse mestrado. Obrigada pela generosidade com a qual acolheu
meu trabalho de pesquisa e pelas contribuições valiosas no Exame de Qualificação.
Ao querido amigo Marcelo Roman responsável por minha “internação” na FEBEM-SP.
Foi durante as indagações e angústias vivenciadas pelo trabalho como psicóloga escolar
no interior de uma Unidade de Internação que essa pesquisa foi construída. Obrigada
por nunca me deixar sozinha em meio a tantos questionamentos e conflitos.
À “equipe da escola” do Fique Vivo: Audrey, Milena, Sérgio e, depois, Alex, com quem
vivenciei as angústias e aprendizagens do meu período de “internação”.
Aos meus amados irmãos, André e Daniel, com quem aprendo a exercitar e a respeitar
as diferenças. Obrigada pelo colo e ouvido nos últimos meses. Ao Dani, obrigada,
também, por me ajudar a cuidar da casa, pelos “banquetes” e milk shakes.
À Mila, minha linda, pessoa constitutiva da minha história, que esteve tão perto nos
últimos dois anos: na FEBEM ou em casa, ‘na alegria ou na tristeza, na saúde ou na
doença’. Obrigada por me contagiar sempre com seu sorriso e sua energia infinita, por
me ensinar tanto. Minha pequena que é tão grande...
Ao Wiliam... que esteve comigo do primeiro ao último dia desse mestrado. Você é parte
do que sou hoje e sempre estará comigo. Obrigada ainda pela generosidade em redigir o
abstract. Meu sincero amor e agradecimentos.
À Sylvia, irmã de coração, amiga de todas as horas. Meu espelho, meu amparo, pedaço
da minha vida.
À Letícia, irmã de coração, amiga de todas as horas. Obrigada por se fazer presente,
mesmo à distância. Te carrego sempre comigo.
1
Nomes fictícios.
À Flávia, minha sempre amiga, com quem vivo, busco e aprendo a “ser gente”.
Obrigada também, por “me trazer o João de presente” – mais um amigo querido – e pela
leitura atenta do texto dessa dissertação.
À Audrey, minha mais nova ‘melhor amiga’. Você foi a melhor coisa que São Paulo me
trouxe. Obrigada por estar sempre pronta a me socorrer.
Ao Arnaldo, meu grande amigo, com quem aprendo tanto no jeito tão diferente (do
meu) de olhar o mundo. Obrigada por estar sempre por perto e por cuidar de mim nos
últimos meses.
Ao Tiago pela cumplicidade diante da vida.
À Sheila, Zizi e Machado pela acolhida carinhosa em suas vidas e suas casas.
Vocês são constitutivos do que sou e, por isso, co-autores desse trabalho.
Aos funcionários do IPUSP, pelo auxílio necessário. Em especial à Inês, meu anjo da
guarda frente às questões burocráticas; ao Ronaldo, pela presteza em atender minhas
dúvidas e ao Gerson, pela ajuda com a formatação do texto da dissertação.
À FAPESP, pelo apoio financeiro na realização dessa pesquisa.
(...) E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
(Vinícius de Moraes – “Operário em construção”)
LOPES, Juliana Silva. A escola na FEBEM-SP: em busca do significado. Dissertação
(mestrado) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006.
RESUMO
Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no ano de 1990,
crianças e adolescentes passam a ser entendidos como sujeitos de direitos, estando
prevista a sua proteção integral. Nesse sentido, o ECA pôs em questão as formas
tradicionais de atendimento destinadas a essa população e, como conseqüência, a
demanda de revisão das políticas públicas e das modalidades de atendimento nelas
previstas. A Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM), instituição
responsável pelo atendimento destinado a jovens em conflito com a lei, para se adequar
ao ECA, passou a enfatizar o caráter educativo de suas Unidades de Internação. Com
vistas a reforçar esse caráter, em janeiro de 2003 a FEBEM-SP foi vinculada à
Secretaria Estadual da Educação, o que possibilitou definir o processo de escolarização
dos internos como a base de sua atuação. Diante deste quadro, o objetivo deste projeto
de pesquisa é entender o funcionamento da escola pública na FEBEM e o significado
que ela adquire no interior de uma instituição de caráter prisional. Para investigar as
condições atuais do processo de escolarização, foram realizadas observações
participantes em sala de aula e entrevistas com duas professoras da rede pública
estadual de ensino, que lecionam no Complexo de Internação pesquisado. Para o
tratamento dos dados obtidos nas entrevistas foi realizada uma análise contextual dos
relatos, segundo a definição de Ecléa Bosi. Esta análise permite concluir que a presença
da escola na instituição caracteriza-se pela ambigüidade. Se de um lado ela é cooptada
pela lógica disciplinar da instituição, por outro ela atua como um lembrete incômodo da
humanidade dos adolescentes internados.
Palavras-chaves: FEBEM, escola, trabalho docente.
Juliana Silva Lopes (1978 - ) é natural de Ribeirão Preto – SP. Formada em Psicologia
(licenciatura e formação de psicólogo) pela Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Campus de Bauru (2001).
ABSTRACT
After the promulgation of the Child and Adolescent’s Statute (CAS), in 1990, children
and adolescents become comprehended as subjects of rights, once their full protection is
foresighted. Therefore, CAS questioned the traditional ways in which this population
had been assisted and, as a consequence, the urgency to review the public policies and
their established assisting models. FEBEM, institution which has the responsibility to
take care of the underage youngsters in law conflicts, in order to adequate itself to CAS,
started to emphasize the educative nature of its Internship Units. Aiming to reinforce
this nature, in January, 2003, São Paulo’s FEBEM got bonded to the State Education
Office, defining the interns schooling process as its basic activity. At this point, this
research is intended to understand the public school operation in FEBEM and the
meaning it acquires within an internment institution. To investigate how the schooling
process is at the present day, it has been done some participative observations during
classes and interviews with two public school teachers, who have been working within
the Internship Complex witch had been researched. The information obtained has been
handled by a contextual analysis from the interviews, as defined by Ecléa Bosi. This
analysis allows concluding that the school presence in the institution is ambiguous. It is
both co-opted by the internship disciplinary logic and a disturbing reminder of all
intern’s humanity as well.
Keywords: FEBEM, school, teaching, adolescent in law conflicts.
Juliana Silva Lopes (1978 - ) is from Ribeirão Preto SP. Graduated in Psycology
(major and formation as a psychologist) at the State University of São Paulo, Campus of
Bauru (2001).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – O NASCIMENTO DA PESQUISA p. 1
CAPÍTULO I – A PESQUISA PROPRIAMENTE DITA p. 5
CAPÍTULO II - POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CRIANÇAS E JOVENS NO
BRASIL: a política assistencial e a FEBEM
p. 13
II.1. A FEBEM: presente e passado p. 26
II.1.1. Os genitores da FEBEM p. 26
II.1.2. A FEBEM – SP p. 28
II.1.3. A FEBEM – SP hoje: O Complexo de Internação Observado p. 34
II.1.4. U.I. X p. 36
II.1.5. A escola na U.I. X p. 38
CAPÍTULO III – COMPONDO O QUADRO DA ANÁLISE p.50
III.1 As entrevistadas p.50
III.2. As entrevistas p. 60
III.2.1. O trabalho docente p. 60
III.2.2. O sistema educacional p.73
CAPÍTULO IV – EM BUSCA DO SIGNIFICADO p. 83
IV.1. Aspectos funcionais p. 83
IV.2. A cultura institucional p. 90
IV.3. A relação professor-aluno p. 97
IV.4. A relação escola/FEBEM p. 109
IV.5. As contradições da escola na FEBEM p. 114
IV.6. A importância da Escola p. 134
CONSIDERAÇÕES FINAIS p. 139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p. 145
ANEXO
1
INTRODUÇÃO: O NASCIMENTO DA PESQUISA
Significa sofrer de maneira irreversível,
sem possibilidade de retorno à antiga condição,
o destino dos sujeitos observados.
(BOSI, 2001, p. 212)
Desde a graduação no curso de Psicologia tenho grande interesse na área da
Educação, tendo concentrado minha atuação profissional na intersecção da Psicologia
com a Educação.
Quando cursava minhas primeiras disciplinas no programa de mestrado em
Psicologia Escolar da USP, em 2003, tive contato com um colega que coordenava o
trabalho de uma Organização Não Governamental (ONG) na Fundação Estadual do
Bem Estar do Menor de São Paulo (FEBEM –SP). Convidada a conhecer a instituição e
o trabalho da ONG, em junho de 2003 entrava pela primeira vez num Complexo de
Internação desta instituição. Difícil descrever a sensação ao entrar por aquele portão e
conhecer o mundo por trás dos altos muros.
Para quem nunca havia tido contato algum com uma instituição de caráter
prisional, a estrutura física, a organização, o funcionamento e os olhares surpreendem e
impactam. Lembro-me bem que não senti medo, mas desconforto diante de tantas
grades, guardas, revistas e vigias. Todos acompanham o ‘forasteiro’ com o olhar, mais
do que observando, inquirindo. Foi como se tivesse atravessado um portal para uma
região da vida social de que eu tinha notícia, mas cuja concretude eu desconhecia. Senti-
me em terra estrangeira. Se o Complexo de Internação em si me causou tamanho
impacto, a descoberta de uma escola funcionando nessa outra dimensão pareceu-me
bastante estranha. De imediato fiquei interessada em conhecer melhor como se dava o
funcionamento daquela escola, que não tinha um prédio próprio, porém tinha diretora,
secretário, professores e alunos – presos!
Interessada por essa situação, resolvi aceitar o convite da ONG para trabalhar
junto a escola, desenvolvendo atividades educativas, em sala de aula, com professores e
alunos.
A ONG
2
iniciou seu trabalho na FEBEM-SP, no ano de 1997, por meio de uma
parceria entre o cleo de Estudos para a Prevenção da AIDS da Universidade de São
2
Optamos por não revelar o nome da ONG.
2
Paulo (NEPAIDS/USP) e o Programa Estadual DST/AIDS-SP da Secretaria de Saúde.
Com a ampliação e a visibilidade das ações empreendidas, em 2000 torna-se uma
Associação independente, porém parceira das instituições fundadoras, tendo como
missão:
Desenvolver um conjunto integrado de ações educativas, culturais, sociais, de promoção
de saúde e de subsídio a políticas públicas dirigidas a adolescentes e jovens em situação
de risco social, para que ampliem suas possibilidades de escolha e formas de expressão,
favorecendo a apropriação de bens culturais e sociais e o exercício da cidadania ativa de
forma responsável e emancipatória (Programa de educação e cidadania para a FEBEM-
SP, ONG, 2004).
Nesse contexto, fui contratada como coordenadora de atividades na escola, tendo
como principal função auxiliar no desenvolvimento de ações educativas com os
adolescentes e jovens em regime de reclusão, visando à melhoria na qualidade do
atendimento sócio-educativo a eles prestado. Para tanto, tinha como ações: trabalhar em
sala de aula, com professores e alunos, sobre temas transversais de interesse dos alunos,
tais como: drogas, sexualidade, violência etc; participar das reuniões de HTPC (Horário
de Trabalho Pedagógico Coletivo) auxiliando no entendimento das questões educativas;
mediar as relações existentes entre o setor pedagógico da Unidade de Internação e os
professores da escola. Com o passar do tempo, o número e a diversidade de solicitações
a mim dirigidas tornou-se enorme, o que impossibilitava cada vez mais a delimitação de
um lugar e um foco de atuação.
Neste Complexo específico, as aulas acontecem no interior das Unidades de
Internação, em salas que ficam ao redor do pátio principal, separado do resto da
Unidade por um grande e pesado portão de ferro, sempre vigiado, e por grades nas
janelas.
Ao entrar em contato com as práticas escolares que se realizam no interior de um
Complexo de Internação da FEBEM-SP, com a realidade na qual elas estão inseridas e
ao acompanhar o trabalho realizado pelo grupo de professores que lecionam na
instituição, pude perceber que o processo de escolarização é marcado pela
descontinuidade, a ponto de tornar difícil a percepção de um processo em curso. As
ações parecem sempre recomeçar do zero e os professores relatam a impossibilidade de
dar seqüência ao trabalho iniciado.
3
O trabalho escolar é controlado pelas diretrizes e pelo cotidiano das Unidades,
cotidiano este que, por sua vez, funciona no registro da contenção e não da educação,
tendo a escola (professores e direção) pouca autonomia na realização de seu trabalho.
Nesse contexto, uma questão se repetia: Qual é a viabilidade de uma escola
dentro de uma prisão? Ou seja, quais as possibilidades de uma escola de ensino regular
cumprir com seus objetivos previstos em lei: ser uma escola regular, com professores da
rede estadual de ensino, com o objetivo de transmitir os mesmos conteúdos encontrados
em qualquer unidade escolar, com horário de entrada, saída e intervalo, controle de
presença, provas e férias?
Após algum tempo, entender melhor o funcionamento escolar dentro da
FEBEM-SP passou a ser primordial. Esta é a origem da presente pesquisa.
Uma pesquisa bibliográfica com o intuito de buscar trabalhos acadêmicos sobre
a relação existente entre a escola, a educação, a FEBEM e os professores que nela
atuam mostrou a escassez de dados a respeito. Ficou patente a necessidade de realizar
uma pesquisa que pudesse trazer elementos para a compreensão de um fenômeno tão
complexo quanto o que se quando escola, ensino, professores e alunos encontram-se
dentro dos muros de uma instituição prisional com as características da FEBEM-SP.
Durante um ano pude conviver, duas vezes por semana, com todos os envolvidos
no processo escolar nesta Unidade de Internação: professores, alunos, diretora,
coordenadora pedagógica, técnicas pedagógicas, assistentes técnicas das áreas de
psicologia e do serviço social, agentes de segurança pois na FEBEM a diversidade de
profissionais que, por estarem na instituição, acabam se envolvendo com o
funcionamento da escola é grande e, como vim a saber com o decorrer do tempo, os que
aparentemente menos m a ver com a escola o os que acabam determinando o seu
funcionamento.
Penso que partilhar esse período com professores e alunos, como trabalhadora da
ONG e, portanto, num lugar indefinido na estrutura da Unidade nem de fora, nem de
dentro da instituição – mas, de maneira alguma distante ou neutro, foi fundamental para
a compreensão dos fatos observados para além de sua aparência e, principalmente, dos
sentimentos dos professores, os sujeitos desta pesquisa. Aos poucos, fui descobrindo a
relação entre o lado de lá e o lado de cá do muro.
Com a obtenção de bolsa de Mestrado, desfiz o contrato de trabalho com a ONG
e continuei na instituição como pesquisadora. Portanto, é preciso ressaltar que o
problema que justifica esta pesquisa é conseqüência dessa intensa, desestruturante e
4
singular experiência por mim vivenciada durante um sofrido, mas enriquecedor, ano de
trabalho na FEBEM-SP.
Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a FEBEM-
SP deve dar um caráter educativo ao tratamento destinado à adolescentes e jovens
infratores, tendo na educação escolar um de seus pilares. No momento da realização
desta pesquisa (junho de 2003 a julho de 2004), o processo de escolarização realizado
no interior da FEBEM-SP fazia parte da rede regular de ensino, uma vez que a
Fundação estava vinculada à Secretaria Estadual de Educação. Tal fato reafirmava a
impossibilidade de fechar os olhos para a situação da Fundação e seu processo
educativo, no qual, dia após dia, podemos acompanhar pela mídia a ocorrência de
conflitos que se materializam em fugas, rebeliões, acusações de espancamento etc.
Nesse sentido, o presente trabalho vem somar-se às pesquisas que têm como
foco a realidade e as práticas que se realizam no interior da FEBEM-SP, trazendo como
contribuição principal o entendimento sobre o significado da escola no interior dessa
instituição. Significado marcado pela contradição advinda do encontro entre relações
educativas e punitivas, mas também, pela ambigüidade do próprio papel social atribuído
à Escola historicamente.
5
CAPÍTULO I: A PESQUISA
Historicamente, a FEBEM tem sua imagem ligada a processos de repressão e
punição, a casos reiterados de abuso e desrespeito para com a população atendida que
assemelham-na aos presídios mais cruéis e violentos. A essa imagem denunciada pela
imprensa, por entidades de Direitos Humanos, por funcionários e internos que passaram
pela instituição e desvelada por pesquisas, contrapõe-se o discurso das autoridades e dos
documentos da Fundação, que reiteram a existência de um processo real de reeducação
e de reintegração social do jovem infrator.
Após um ano de convivência com um grupo de professores, de freqüência a
salas de aula e de observação do cotidiano das relações institucionais, algumas situações
me chamaram a atenção.
A educação escolar que se no interior da FEBEM-SP enfrenta problemas e
dificuldades semelhantes aos encontrados em qualquer escola pública do país, com a
agravante de acontecer dentro de uma instituição de reclusão, onde a população
atendida é depositária de todos os preconceitos de raça e de classe, além da
responsabilidade pela violência que aflige o cotidiano dos cidadãos.
Muitas são as preocupações que ocupam a mente e as ações dos educadores na
FEBEM-SP; porém, raramente há questionamentos ou discussões sobre o processo
educativo. Durante os HTPCs pouco se conversa ou reflete sobre os objetivos
educativos, o papel do educador ou a responsabilidade da instituição frente ao processo
de escolarização dos adolescentes que se encontram; quando muito, surgem falas
sobre as “características especiais” dos alunos e de suas famílias, como falta de vínculo,
de afeto, desestruturação econômica e moral etc.
O quadro apresentado nos remete a pesquisas que apontam para o fato de que as
relações escolares, muitas vezes, são atravessadas pelos preconceitos de classe, raça,
gênero e geração. O discurso que permeia a educação pública brasileira centra a
responsabilidade pelo fracasso escolar no aluno ou em suas famílias, a partir de teorias
ideológicas, como a Teoria da Carência Cultural. Mesmo criticado duramente pelo
menos duas décadas, pesquisas recentes mostram a permanência desse discurso entre os
educadores
3
.
3
Sobre a presença de mitos nos discursos de professores sobre a explicação dos problemas de
escolarização consultar: ASBAHR, F. da S. ; LOPES, J. S. 2006.
6
Quando a população a ser educada é formada de adolescentes, majoritariamente
negros, mestiços, pobres e, além de tudo, infratores, é preciso atentar para os perigos de
uma visão preconceituosa, principalmente, porque algumas concepções ditas científicas,
a serviço das relações sociais de poder, depreciam essa população. Mello (2001), chama
a atenção para o perigo da construção de um conhecimento dito científico que, no
entanto, cria ou reforça alguns preconceitos:
Nada pois de espetacular existe no caso das Ciências Humanas. A natureza mesmo do
objeto a ser investigado, por ser mais elusiva, infinitamente plástica e dificilmente
fixável, transforma equívocos em modos normativos de pensar os homens e a sociedade.
O conhecimento significa poder, e o serviço que certos modos de pensar prestam ao
exercício do poder social transformam-nos em ‘verdades’ que o próprio poder torna
inquestionáveis (p. 80).
Nesse sentido, é de extrema importância nos perguntarmos sobre como se o
processo de escolarização formal (elemento básico e integrante de um processo
educacional mais amplo) dentro de uma instituição como a FEBEM-SP. Trabalhar com
concepções educativas é tratar com representações e valores daqueles que pretendem
educar, assim como com a cultura institucional constituída e com o contexto sócio-
histórico na qual ela está inserida.
Cabe uma explicitação, ainda que breve, da concepção de Psicologia utilizada neste
trabalho para a discussão de tais questões.
A partir da década de 80 teve início, no Brasil, um processo de questionamento
da concepção tradicional de Psicologia que se prestava ao papel de reprodutora e
mantenedora da ideologia dominante, pois concebia o homem a partir da visão liberal de
mundo, desconsiderando as múltiplas determinações sociais e históricas que o
constituem (Patto,1984; Tanamachi, 2000; Meira, 2000; Machado, 2000; entre outros).
A partir desses questionamentos, uma nova forma de compreender a Psicologia
Escolar vêm sendo construída. Busca-se a compreensão e o desvelamento do processo
social de construção do fracasso escolar e, para tanto, outras formas de avaliação
psicológica são necessárias, tendo como seu objeto de análise não mais o sujeito e, sim,
as diversas relações envolvidas na construção desse fracasso (Machado, 2000).
Meira (2000, p. 58) propõe, então, que o objeto de estudo da Psicologia Escolar
seja “o encontro entre o sujeito humano e a Educação”.
7
Assim sendo, a Psicologia tem a importante finalidade de fornecer subsídios
teórico-práticos para entendermos a construção social do indivíduo em sua relação com
a educação visto que esta é um dos principais instrumentos para a humanização do
homem, desvelando as desigualdades sociais presentes em nosso sistema, ao invés de
trabalhar para encobri-las.
Pensar em educação escolar dentro de uma instituição de reclusão nos remete à
complexidade do problema que abrange a relação entre educação e opressão; as
finalidades educativas de uma instituição total e as possibilidades e limites de seu
exercício; o papel dos educadores nesta situação específica; a questão dos adolescentes
4
em conflito com a lei e a representação social desses jovens; a relação professor-aluno,
entre outros.
Assim, a pergunta que dá origem à pesquisa pode ser formulada nos seguintes
termos:
Qual é o significado adquirido pela escola no interior de uma instituição
prisional?
Nesta pesquisa, esta questão será investigada do ângulo de um recorte: como os
professores entendem as condições de realização de seu trabalho de educação escolar
dentro de uma Unidade de Internação da FEBEM-SP.
Para tanto, o trabalho de campo incluiu a realização de entrevistas com duas
professoras da Unidade de Internação observada. As entrevistas têm o intuito de
apreender como as educadoras concebem a instituição FEBEM, os internos e suas
práticas docentes.
Minha permanência em campo durou um ano e nesse período foi realizada
observação participante em sala de aula, durante as reuniões em HTPC
5
, em outras
reuniões e eventos que tive a oportunidade de participar, assim como nos momentos e
espaços informais. Permanecia na instituição duas vezes na semana, totalizando cerca
de doze horas semanais.
De acordo com Patto (1997), por trás da estereotipia que caracteriza os
momentos formais da sala de aula existe toda uma rede de expectativas, simpatias e
antipatias presentes na relação professor-aluno, que a determina. É preciso conhecer a
4
Na presente pesquisa, pela especificidade de seu objeto de estudo, as palavras ‘adolescentee ‘jovem’
foram tratadas como sinônimas, embora exista uma diferenciação entre elas na literatura especializada e
nos textos jurídicos, além de uma extensa discussão sobre o conceito de juventude. A esse respeito
consultar: MARGULIS, M. e URRESTI, M, 1998; MELUCCI, A., 1997; CASAL, J., MASJOAN, M.,
PLANAS, JORDI., 1998, entre outros.
5
Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo.
8
história do grupo para compreender os significados que nele são comunicados. Nesse
sentido:
O significado das comunicações não seria acessível à pesquisa não-observacional, à
pesquisa observacional pré-codificada e nem mesmo à observação participante de curta
duração. Somente a presença do pesquisador em sala de aula, durante um longo período,
não só observando, mas também conversando com professores e alunos, pode captá-
lo. Daí a importância das entrevistas, sobretudo das informais (p.434-5, grifos no
original)”.
A escolha pela observação participante, enquanto uma das estratégias de coleta
de dados para esta pesquisa se justifica pela complexidade da mesma, mas, também,
pelos princípios teórico-filosóficos do pesquisador. De acordo com tais princípios,
durante a realização da pesquisa, não existe uma relação sujeito/objeto e, sim, uma
relação sujeito-sujeito. um encontro entre subjetividades que devem ser entendidas
em sua constituição sócio-histórica concreta. Neste sentido, a observação participante é
uma excelente estratégia de conhecimento do campo, assim como de contextualização
dos dados obtidos. Por meio dela é possível compor a “moldura” dos dados que serão
posteriormente analisados.
Mais importante do que nomear a estratégia realizada penso ser discutir algumas
implicações decorrentes da pesquisa qualitativa em Psicologia.
Becker (1999, p.47) conceitua a observação participante da seguinte forma:
O observador participante coleta dados através de sua participação na vida cotidiana do
grupo ou organização que estuda. Ele observa as pessoas que está estudando para ver as
situações com que se deparam normalmente e como se comportam diante delas.
Entabula conversação com alguns ou com todos os participantes desta situação e
descobre as interpretações que eles têm sobre os acontecimentos que observou.
De acordo com Becker, a observação participante tem como característica a
produção de uma enorme quantidade de dados descritivos, o que pode ser um
complicador no momento da análise desses dados. A análise, nesses casos, costuma ser
seqüencial, ou seja, é conduzida durante o momento da coleta de dados, ficando esta
condicionada à interpretação do pesquisador perante as situações apresentadas em
campo. Nesse sentido, é de fundamental importância que o pesquisador esteja atento aos
problemas e hipóteses que formula no decorrer da coleta, assim como, na credibilidade
9
dos informantes selecionados, tendo clareza de que estes sempre darão suas versões do
fato, diante da posição que ocupam no grupo ou instituição, apresentando, portanto, as
suas perspectivas da situação.
Por esta razão, escolhemos justamente perguntar às professoras sobre como
vêem o trabalho que realizam na escola dentro da FEBEM-SP.
Como convivia com os sujeitos da pesquisa, o observando, mas atuando
com eles em seu local de trabalho, pude fazer minhas próprias interpretações dos fatos
vividos e compartilhar, principalmente com os professores, muitos de seus sentimentos.
A inserção do pesquisador em campo pode se dar das mais diversas formas e seu
caráter é eminentemente político. Não tive problemas com minha inserção inicial, pois
entrei em campo como trabalhadora da ONG que atuava na FEBEM-SP e que tinha um
espaço relativamente assegurado. No entanto, durante todo o período de realização da
pesquisa, foi preciso atentar para a dupla natureza do vínculo estabelecido com os
participantes e as demandas e expectativas daí originadas.
Segundo Zaluar (1986), por mais que o pesquisador participante se envolva com
os projetos e lutas da população pesquisada, ainda assim, ele continua sendo um
pesquisador e se diferencia dos demais sujeitos envolvidos no processo pela posição que
ocupa. Esta não é somente dada pela classe social a qual o pesquisador pertence, o lugar
que ele mora, seus costumes e valores, mas também, pelo seu objetivo (de pesquisa)
enquanto participante do projeto em execução.
Aponta, também, a necessidade de estarmos atentos às conseqüências e aos usos
que a comunidade pesquisada pode fazer desta posição diferenciada ocupada pelo
pesquisador. Assim como nós, eles também observam, interpretam, constroem ações em
cima das por nós realizadas e podem, muitas vezes, manipular as forças e relações de
poder presentes no grupo.
Na FEBEM, instituição extremamente hierárquica e repressiva, é preciso estar
atento o tempo todo ao jogo de poder que se estabelece. Porém, é humanamente
impossível dar conta de todas as nuances que envolvem a relação pesquisador-
pesquisado e ilusório pensar que temos qualquer controle sobre elas:
(...) a pesquisa pode e deve ser o momento em que se reflete sobre essas variadas
possibilidades de relacionamento entre pesquisador e pesquisado, sobre os diferentes
impactos que qualquer pesquisa sempre provoca no grupo pesquisado, tomando-se
10
como pano de fundo, uma alteridade nunca resolvida nem dissolvida nos encontros e
desencontros que a pesquisa traz (ZALUAR, 1986, p.115).
A realização de entrevistas é estratégia privilegiada para a minha coleta de
dados. Muitos autores ressaltam a relação de interação presente em qualquer situação de
entrevista e, assim, a importância de se estabelecer um clima de aceitação mútua e
confiança entre entrevistador e entrevistado.
Bosi vai mais longe ao dizer que a relação ideal construída numa entrevista é a
de “laços de amizade”, “envolve responsabilidade pelo outro e deve durar quanto dura
uma amizade” (2003, p. 60).
Bourdieu (1993/1999) entende a relação de pesquisa como uma relação social
que, como todas as outras, exerce efeitos sobre os participantes desta relação. Assim,
demonstra grande preocupação com a violência simbólica que o pesquisador pode
exercer sobre seu entrevistado e busca formas de estabelecer uma comunicação não
violenta.
Nesse sentido, é importante estar atento à desigualdade de posição ocupada pelo
pesquisador e pesquisado na relação de pesquisa, uma vez que é o pesquisador quem
geralmente determina quando e como a entrevista será realizada, assim como, os
objetivos que ela deve atender. Além disso, em muitos casos, existe ainda uma diferença
de condição social, marcada pela posição econômica e cultural diferenciada do
pesquisador.
De maneira geral, os autores indicam a necessidade de se ter clareza dessas
diferenças e minimizá-las, quanto possível, por meio de uma escuta atenta e de uma
disponibilidade total ao outro. É preciso respeitar as opiniões, hesitações e silêncios do
entrevistado, sem se deixar iludir por falas extremamente elaboradas que, em sua
maioria, representam aquilo que o entrevistado acredita que o pesquisador quer ouvir.
Bourdieu (1993/1999, p.697) trata ainda da importância da proximidade e
familiaridade entre pesquisador e pesquisado para se garantir uma comunicação não
violenta:
A proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas das condições
principais de uma comunicação ‘não violenta’. De um lado, quando o interrogador está
socialmente muito próximo daquele que ele interroga, ele lhe , por sua
permutabilidade com ele, garantias contra a ameaça de ver suas razões subjetivas
reduzidas a causas objetivas; suas escolhas vividas como livres, reduzidas aos
11
determinismos objetivos revelados pela análise. Por outro lado, encontra-se também
assegurado neste caso um acordo imediato e continuamente confirmado sobre os
pressupostos concernentes aos conteúdos e às formas da comunicação: esse acordo se
afirma na emissão apropriada, sempre difícil de ser produzida de maneira consciente e
intencional, de todos os sinais não verbais, coordenados com os sinais verbais, que
indicam quer como tal o qual enunciado deve ser interpretado, quer como ele foi
interpretado pelo interlocutor.
Ao partir destas reflexões foram colhidos os depoimentos das professoras com as
quais tive contato mais próximo por partilhar vários momentos em sala de aula, durante
a realização conjunta de atividades escolares com os alunos
6
. Primeiramente, seriam
entrevistadas três professoras. Uma delas, porém, apresentou grave problema de saúde,
ficando impossibilitada de participar da pesquisa. Os alunos também seriam ouvidos
pela pesquisadora. No entanto, a FEBEM colocou como condição para tal que um
funcionário da instituição estivesse presente durante a realização das entrevistas. Diante
desta imposição optou-se por não entrevistá-los.
As entrevistas foram realizadas em duas etapas (não necessariamente duas
entrevistas): na primeira, semi-estruturada, conversamos com as professoras sobre sua
trajetória profissional, sobre a FEBEM-SP, sobre a escola na FEBEM e sobre seus
alunos. Para tanto, foi formulada uma questão disparadora: “Gostaria de saber sobre sua
história profissional como docente e sobre seu trabalho na FEBEM-SP”. Na segunda,
mais dirigida, buscamos informações pontuais omitidas durante o primeiro relato. Desta
forma procuramos oferecer maior liberdade às entrevistadas para estruturarem suas falas
e colher informações relevantes à pesquisa, segundo a proposta metodológica de
Rodrigues (1978).
A análise do conteúdo das entrevistas foi feita a partir das recomendações de
Ecléa Bosi para a pesquisa em Psicologia Social, nas quais a análise de conteúdo é
análise contextual – ou seja, o significado do discurso só é alcançado quando remetido à
totalidade do discurso e à realidade social em que é proferido. Na elaboração do texto
que apresenta a análise, optamos pela sugestão de Sylvia Leser de Mello de priorizar a
transcrição dos segmentos selecionados das falas das entrevistadas, reduzindo ao
máximo as interpretações do pesquisador.
6
O contato com essas professoras se deu por meio do trabalho que realizei na Unidade de Internação
pesquisada, enquanto psicóloga escolar contratada pela ONG, conforme relatado no capítulo anterior. Um
dos fundamentos desse trabalho era a realização de parcerias com os docentes para o desenvolvimento de
atividades educativas com os alunos. Os professores optavam por sua participação ou não no projeto.
12
O montante de informações por nós recolhidas foi produzido no momento da
realização da pesquisa. Advém de nosso referencial teórico, de nossas hipóteses iniciais
(mesmo que intuitivas) e da interpretação que fomos fazendo de tudo que
presenciávamos no momento de realização da pesquisa. O resultado final desse trabalho
é uma construção e, idealmente, uma construção coletiva e partilhada pelo pesquisador e
seus colaboradores, ou seja, os participantes do processo de pesquisa. Poder contar de
onde partimos e como chegamos onde nos encontramos, no momento final do trabalho
de produção do conhecimento, é garantir o rigor necessário a qualquer produção
científica.
13
CAPÍTULO II: POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CRIANÇAS E
JOVENS NO BRASIL – a política assistencial e a FEBEM
A criança é o princípio sem fim, o fim da criança é o princípio do fim.
Quando uma sociedade deixa matar as crianças é porque começou seu suicídio como sociedade.
Quando não as ama é porque deixou de se reconhecer como humanidade.
Afinal, a criança é o que fui em mim e em meus filhos, enquanto eu e humanidade.
Ela como princípio é promessa de tudo. É minha obra livre de mim.
Se não vejo na criança, uma criança, é porque alguém a violentou antes
E o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado.
Mas essa que vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama e comida;
Essa que vive a solidão das noites sem gente por perto, é um grito, é um espanto.
Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo encontro,
Porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós.
(Herbert de Souza – Betinho. In: Criança é coisa séria, 1991).
Neste capítulo apresentaremos, brevemente, os principais aspectos das políticas
de atendimento destinadas a crianças e jovens no Brasil, ao longo da história do país.
* Por que um capítulo histórico?
De acordo com nossos referenciais teórico-metodológicos, os fenômenos
humanos, psicológicos precisam ser compreendidos enquanto um processo em
construção, com caráter eminentemente dinâmico e com base em sua existência
concreta, material. A História é a feitura do homem enquanto homem
7
. Nesse sentido, é
preciso situar o objeto desta pesquisa no tempo, compreendê-lo historicamente,
resgatando as maneiras pelas quais a sociedade se constituiu e se constitui (Shuare,
1990). As produções humanas de existência trazem em si os valores e princípios que as
regulam; a convergência ou divergência de interesses que, entre outras conseqüências,
culminam nas políticas sociais.
Hobsbawm (1998, p. 47) nos traz uma reflexão sobre a importância da História
para a compreensão da sociedade contemporânea, enfatizando que, para tanto, é preciso
além de conhecer o passado, atentar para as semelhanças e diferenças históricas.
Admito que, na prática, a maior parte do que a história pode nos dizer sobre as
sociedades contemporâneas baseia-se em uma combinação entre experiência histórica e
7
Maria Helena S. Patto, 2003, durante aula proferida para as turmas de s-graduação do Instituto de
Psicologia da USP.
14
perspectiva histórica. É tarefa dos historiadores saber consideravelmente mais sobre o
passado do que as outras pessoas, e não podem ser bons historiadores a menos que
tenham aprendido, com ou sem teoria, a reconhecer semelhanças e diferenças.
Apesar de tarefa particular do historiador, conhecer a história, atentando para as
semelhanças e diferenças de cada período, não é tarefa exclusiva deste. Entendemos que
esse é um esforço necessário ao pesquisador que queira entender a complexidade de
qualquer fenômeno estudado e, principalmente, do fenômeno humano.
Se o estudo do passado é imprescindível à compreensão do presente e se esta
compreensão, por sua vez, não pode ser recusada se quisermos de algum modo intervir
na construção do futuro, escreve-se história não para perfilar cronologicamente, a partir
de uma concepção naturalista-evolutiva de história, nomes, fatos e datas, tendo em vista
celebrar grandes homens ou a grande ciência que ajudaram a construir, mas para
entender o presente e refletir sobre o futuro, no marco do inevitável engajamento da
ciência, de seu compromisso ético (PATTO, 2000, p.87).
Partindo deste referencial, o presente texto tem como objetivo levantar algumas
semelhanças e diferenças presentes nas políticas de atendimento às crianças e jovens
brasileiros em diversos momentos históricos, com o intuito de compreender os efeitos
dessas políticas na prática cotidiana, lançando luz para o entendimento da situação atual
e as tendências para o futuro.
Como o objeto dessa pesquisa é a escola que existe dentro de uma Unidade de
Internação da FEBEM-SP é de fundamental importância entender o modelo de
internação de crianças e jovens.
A medida sócio-educativa de internação é a última pedra num complexo
labirinto de dominós que se inicia na construção social. Nas determinações concretas do
momento histórico e econômico e nos valores ético-políticos criados pela cultura e
marcados, pelo simbólico, no campo da subjetividade. Desconstruir esse labirinto é
entender a complexidade dessas determinações, atentando para o momento de sua
construção e os movimentos que se realizam para sua manutenção.
Nesse sentido, para entendermos porquê a internação se tornou a primeira e
quase que exclusiva medida sócio-educativa para adolescentes e jovens em conflito com
a lei precisamos olhar para a história de nosso país e para as formas como essa questão
15
foi sendo colocada ao longo do tempo. Pensar sobre as políticas públicas de
atendimento a crianças e jovens é olhar para a forma como essa população é tratada.
Faleiros (1995) aponta que o período de vida marcado pela infância e
adolescência, no Brasil, sempre foi objeto de políticas e ações sociais, ainda que de
forma fragmentada e difusa, não adquirindo aspectos de atendimento específico das
demandas peculiares a essa parcela da população, mas ganhando concretude nas ações
de controle e segurança. Geralmente marcadas por conflitos de visões e estratégias,
pouco se situando na perspectiva de um Estado de direitos e muito no autoritarismo,
clientelismo e disciplinamento:
A infância dos pobres, e no caso da política educacional, também a dos ricos, sempre foi
objeto de política, isto é, inscrita nas articulações do poder público e privado, no
confronto de diferentes estratégias que implicam controle, proteção, legitimação,
repressão, organização, preparação escolar ou profissional, mobilização, sem que se
esgote o elenco de intervenções do Estado referente à infância e a adolescência
(FALEIROS, 1995, p.49).
A forma expressa pelas ações sociais voltadas à infância e juventude está
diretamente relacionada ao modo pelo qual o Estado brasileiro foi se constituindo
historicamente, especialmente, ao modo pelo qual considerou as classes populares,
numa explícita separação das classes, expressa pela combinação de descaso e
autoritarismo; além de um privilegiamento do privado frente ao público e do uso da
“máquina pública” para a realização de interesses privados, num claro mecanismo
impeditivo do exercício da cidadania para grande parcela da população.
Pilotti (1995) ressalta que não somente no Brasil, mas em toda a América Latina,
as políticas de assistência à infância se dividem basicamente em três modalidades:
caridade e filantropia; consolidação do sistema jurídico-administrativo; fortalecimento
da alternativa não-governamental.
1. Caridade e filantropia
Modalidade marcadamente presente até o final do Séc. XIX e início do Séc. XX,
período em que os países da América Latina encontravam-se sob governos coloniais e
imperialistas, inspirados pela ideologia liberal
8
, caracterizando-se pela omissão do
8
Para uma discussão a respeito do paradoxo existente entre os princípios do liberalismo e a realidade
brasileira: escravocrata e oligárquica, consultar Patto, M.H.S. A produção do fracasso escolar: histórias
16
Estado frente às questões sociais e a forte presença da igreja (majoritariamente a
católica) e das elites nas ações assistenciais. A primeira preocupada com o ensino
religioso e a segunda, em minimizar o conflito social, via na filantropia uma forma de
subjugar as classes populares, por meio da gratidão obtida com a concessão de favores.
Pela ação filantrópica, as elites da época empreenderam o que poderia ser chamado de
campanhas morais contra a miséria, oferecendo uma assistência de caráter tanto
facultativo como condicional: em troca de favores concedidos espera-se tanto a
submissão do beneficiário assim como mudanças de condutas de acordo com as
expectativas da classe dominante (PILOTTI, 1995, p. 36-7).
A institucionalização de crianças, adolescentes e jovens no Brasil é uma prática
comum e antiga. Sua origem remonta aos tempos do Império, quando crianças eram
colocadas nas “Rodas dos Expostos”, criadas pela Santa Casa de Misericórdia e levadas
a grandes orfanatos, onde eram criadas em regime de clausura e de acordo com os
princípios religiosos. Crianças e jovens pobres, cujas famílias não tinham condições de
criá-los, eram tratados como órfãos ou abandonados e passavam a ser tutelados pelo
Estado.
Desde 1900, nos textos jurídicos, a internação de crianças e adolescentes em
instituições fechadas é considerada apenas como o “último recurso” a ser utilizado no
atendimento dos mesmos. No entanto, não é isso o que se verificou (e se verifica) com a
existência de inúmeros “orfanatos” ou “internatos de menores”, espalhados por todo o
país e que abrigavam milhares de crianças e adolescentes.
É importante ressaltar que a prática de institucionalização de crianças e
adolescentes em sistemas de internatos, desde seu início, teve um caráter de controle
social e político. A nomenclatura dos estabelecimentos, assim como, a missão de cada
instituição variava de acordo com as tendências científicas e educacionais de cada
período histórico. Assim como relatam Rizzini e Rizzini (2004):
Um dos aspectos de grande interesse desta análise centra-se nas iniciativas educacionais
entrelaçadas com os objetivos de assistência e controle social de uma população que,
junto com o crescimento e reordenamento das cidades e a constituição de um Estado
nacional, torna-se cada vez mais representada como perigosa. A ampla categoria
jurídica dos menores de idade (provenientes das classes pauperizadas) assume, a partir
de submissão e rebeldia, 2000. Cap. 2 “O modo capitalista de pensar a escolaridade: anotações sobre o
caso brasileiro”.
17
da segunda metade do Séc. XIX, um caráter eminentemente social e político. Os
menores passam a ser alvo específico da intervenção formadora/reformadora do Estado
e de outros setores da sociedade, como as instituições religiosas e filantrópicas (p.22).
2. Consolidação do Sistema Jurídico-administrativo
Nas primeiras cadas do séc.XX, a ciência é vista com grande otimismo, como
a instância que teria papel decisivo na construção da Nação. No Brasil da primeira
república, médicos e advogados são os verdadeiros representantes do pensamento
intelectual brasileiro, sendo responsáveis pela elaboração de diversos projetos sociais,
cobrando uma maior intervenção do Estado frente às questões de preservação da raça e
da ordem social
9
, aspirando a construção de um grande projeto de consolidação
nacional, com base nos princípios higienistas e eugenistas (Schwarcz, 1993).
Tais intelectuais acabaram influenciando a criação de diversos Códigos de
Menores nos países da América Latina, marcando a “judicialização” da infância e da
juventude, tanto para os abandonados, quanto para os infratores, “com a tendência clara
de patologizar situações de origem estrutural” (PILOTTI, 1995, p. 30).
Nesse contexto, no âmbito das estruturas dominantes de poder, às políticas
destinadas à criança e adolescência no Brasil foram marcadas por dois rótulos que assim
dividiam a população: os coitadinhos e os criminosos. Ou nas palavras de Pilotti (1995),
“a infância em perigo”, aquela que está apartada dos direitos sociais, e a “infância
perigosa”, a da delinqüência.
Faleiros (1995, p.52) apresenta a distinção do tratamento destinado de acordo
com a forma como a infância e adolescência eram concebidas:
Outra polêmica é a que existe entre o privilegiamento do clientelismo destinado aos
‘coitadinhos’ e a repressão pura destinada aos ‘perigosos’; a primeira privilegiando a
doação e a segunda a contenção. também a combinação do gesto arbitrário de quem
doa com o gesto arbitrário de quem golpeia, disciplina e dociliza.
Evaristo de Moraes, importante jurista brasileiro do início do século passado, faz
uma intensa reflexão sobre a situação dos menores, levantando as principais concepções
teóricas e políticas que fundamentavam as ações educativas e assistenciais da época, no
Brasil e na Europa. Assim como outros intelectuais brasileiros do período, influenciado
9
Ver Schwarcz, L.M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-
1930. São Paulo: 1993.
18
pelos princípios evolucionistas, defendia a homogeneização do tratamento destinado aos
abandonados e infratores, corroborando com os preceitos do Código de Menores (de
1927) em vigor
10
. Para ressaltar tal pressuposto cita Junod, jurista francês:
Pequenos mendigos ou vagabundos, jovens delinqüentes, moralmente abandonados,
todos, ou quase todos, foram apanhados na rua; sejam criminosos, ou tenham tido a
infelicidade de ser abandonados por sua família, a condição é a mesma, estão mais ou
menos viciados (in: Moraes, 1927, p.155).
Com o advento da República e o afã cientificista da época, inicia-se um
movimento de cobrança perante o poder público de uma melhor organização e
centralização da assistência destinada à infância, nos moldes das ações médico-
higienistas e jurídicas, difundidas pela Europa e Estados Unidos. Nesse sentido, é criado
o primeiro Juízo de Menores, em 1924, no Rio de Janeiro e o processo é culminado em
1927, com a aprovação do Código de Menores.
A instância judicial, representada pelo Código de Menores, foi a responsável
pela criação da categoria de menor: todos aqueles (crianças e jovens) que ainda não
completaram a maioridade legal, definida pela idade de 18 anos e, portanto, não são
responsáveis por seus atos e nem podem exercer alguns direitos e deveres. Porém, o
título de menor, ao longo do tempo, foi ganhando uma inclinação pejorativa, destinada a
adolescentes e jovens das classes populares, marcados pelo rótulo de se encontrarem em
situação irregular. De acordo com o Código de Menores, em suas duas versões (1927 e
1979 ), assim são estabelecidos:
Para efeito deste Código, considera-se em situação irregular o menor:
I. privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória ainda
que eventualmente em razão de: a) falta, ação ou omissão de pais ou responsável; b)
manifesta irresponsabilidade dos pais ou responsável para provê-las;
II. vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III. em perigo moral devido a: encontrar-se de modo habitual em ambiente contrário aos
bons costumes;
IV. privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou
responsável;
10
Evaristo de Moraes em seu livro Criminalidade da infância e da adolescência, de 1927, faz um
apanhado das principais idéias que dominavam o cenário intelectual da época, marcado pela divisão da
população em normais e anormais, sadios e degenerados, válidos e desvalidos; apresentando as propostas
hegemônicas para o atendimento da infância e dos pobres em geral.
19
V. com desvio de conduta, em virtude de grande inadaptação familiar ou comunitária;
VI. autor de infração penal ( in: Passetti, 1985, 3ª ed).
A criança pobre vista como “menor”, com tendências à delinqüência e à
criminalidade. Por esta forma de entender a infância, o Estado, desde muito cedo, tomou
para si a tarefa de integrar os indivíduos na sociedade, implementando políticas sociais
específicas para crianças e adolescentes advindos da classe popular, numa tentativa de
controle, com o intuito de reduzir a criminalidade e a delinqüência (Passetti, 1999).
Nesse discurso apresenta-se mais uma vez a visão preconceituosa destinada, ao
longo da história deste país, às crianças pobres e suas famílias. Como colocado por
diversos autores (Schwarcz, 1993; Patto, 1999; Chauí, 2001; Passetti, 1999 e Bisseret,
1979) a pobreza, desde o início da revolução industrial, portanto, do sistema capitalista
de produção, passa a ser entendida enquanto inferioridade moral e física, natural de
povos e indivíduos pouco desenvolvidos, primitivos.
As diferenças sociais, historicamente construídas nas constantes lutas pelo
poder, são naturalizadas, tomadas a priori, eternizadas na culpabilização das classes
populares.
O Juízo de Menores instituiu um modelo de atuação junto à infância baseado na
centralização do atendimento pelo governo federal e no destaque à internação de
crianças e adolescentes abandonados e delinqüentes. Tal modelo de atuação permaneceu
no país até a década de 80, quando novas pressões sociais culminaram na extinção do
Código de Menores.
O modelo de assistência à infância passa a ser caracterizado pela ação policial,
com a criação de delegacias e juizados que visavam a identificação, classificação e
encaminhamento dos menores para as colônias correcionais.
É no decorrer desse caminho que surgem o SAM Serviço de Assistência a
Menores e a FUNABEM Fundação Nacional de Bem Estar do Menor, embriões do
que é hoje a FEBEM
11
.
Essa modalidade de educação, na qual o indivíduo é gerido no tempo e no espaço pelas
normas institucionais, sob relações de poder totalmente desiguais, é mantida para os
pobres até a atualidade. A reclusão, na sua modalidade mais perversa e autoritária,
continua vigente até hoje para as categorias consideradas ameaçadoras à sociedade,
como os autores de infrações penais (RIZZINI; RIZZINI, 2004, p.22).
11
Tal tema será abordado no próximo ítem.
20
A consolidação do sistema jurídico-administrativo vem reforçar a tradicional
prática da institucionalização de crianças e jovens, visto que o internamento era a
principal medida adotada, seja em asilos, orfanatos, educandários ou casas correcionais.
Vale ressaltar que a medida sócio-educativa de internação recebe críticas nacionais e
internacionais desde o séc.XIX, sendo o próprio Evaristo de Moraes um crítico da
internação. No entanto, continua sendo ainda hoje, no chamado “terceiro milênio”, a
principal medida adotada.
Apesar dos movimentos pela cidadania infanto-juvenil oficializados pela
Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as visões
assistencialistas e punitivas imperam nas pautas da agenda pública brasileira
12
.
3. Fortalecimento da Alternativa Não-Governamental
Nas décadas de 70 e 80 ganham força, na América Latina, as Organizações Não
Governamentais (ONGs), objetivando a melhoria das condições de vida de crianças e
jovens que vivem em situação de miséria.
De maneira geral, as ONGs surgem para apoiar os movimentos sociais
existentes, auxiliando, por meio do saber técnico, na elaboração e construção de
projetos que utilizem os recursos potenciais da própria comunidade, voltados para a
educação popular.
Segundo Pilotti, por geralmente recusarem estratégias assistencialistas, indo
muitas vezes na direção oposta das políticas governamentais, as ONGs acabaram
gerando, na América Latina, políticas alternativas de atendimento a população carente:
Com efeito, o aparecimento das ONG está intimamente vinculado aos seguintes fatores:
efeitos repressivos das políticas sociais e econômicas dos regimes autoritários; exclusão
de numerosos profissionais, especialmente das ciências sociais, das universidades e do
setor estatal; redirecionamento da cooperação internacional do setor estatal oficial para
o não governamental. Como resultado desses fatores, em muitos países da região as
ações destes organismos se constituíram em uma espécie de política social alternativa e
paralela à oficial, muitas vezes cobrindo as deficiências e omissões desta última (1995,
p. 42).
12
Para um estudo aprofundado do tema consultar: PILOTTI, F. e RIZZINI, I. (orgs). “A arte de governar
crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil”. Rio de
Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Editora Universitária Santa Úrsula, Amais livraria e Editora,
1995.
21
No entanto, é preciso ressaltar que ainda quando bem intencionadas, as ONGs
não conseguem cobrir o buraco deixado pela omissão do Estado. A maioria delas
encontra inúmeras dificuldades de sustentação, pois sofre com a escassez de recursos,
que devem ser buscados junto a iniciativas privadas e, muitas vezes, ao próprio governo.
Desta forma, suas ações geralmente adquirem um caráter pontual, ajudando na melhoria
das condições de um pequeno grupo ou instituição. Melhorias que dificilmente se
sustentam quando a ONG retira suas ações da comunidade
13
.
Desde a década de 90, no Brasil, o governo vem delegando parte considerável de
sua responsabilidade social às Organizações Não Governamentais, por meio de
parcerias e convênios que repassam a estas recursos públicos. Ainda que tais
organizações não visem o lucro, não podemos deixar de notar a semelhança dessa
estratégia à articulação público-privado no atendimento as questões assistenciais ao
longo da história do país, uma vez que a lógica político-econômica continua a mesma.
***
Por essa forma de entender não a infância e a juventude, mas, principalmente,
as relações sociais, a política oscila entre o pólo assistencial (abrigos, asilos,
albergues) e o pólo jurídico (prisões, patronatos, casas correcionais, centros de
internamento), articulada a um processo de institucionalização como forma de controle
social” (ibid., p. 52). Gerando, segundo Pilotti e Rizzini (1995), a criação e a
manutenção da “cultura da institucionalização”.
Como podemos perceber, por meio desse breve relato histórico, as políticas
públicas destinadas às crianças, adolescentes e jovens sempre estiveram relacionadas a
idéias de controle das classes populares, ficando como principais responsáveis para
tanto, as escolas e os internatos.
Alguns autores fizeram um esforço em sistematizar as ações públicas voltadas
especificamente à população jovem. Passemos a um sucinto levantamento dessas
políticas públicas de juventude no Brasil, para caracterizar a forma como os
adolescentes e jovens, um dos focos dessa pesquisa, são retratados pelos governantes de
nosso país.
Políticas Públicas de Juventude
13
Sobre as ONGs e a política neo-liberal no Brasil consultar a dissertação de mestrado de Luciana
Dadico: “A atuação do Psicólogo em organizações não governamentais na área da educação”. São
Paulo, Instituto de Psicologia da USP, 2003.
22
Segundo Freitas e Papa (2003), a questão dos jovens e da necessidade de se
pensar políticas sociais específicas para essa população, começou a surgir nas pautas
governamentais, a pouco mais de quinze anos, com o processo de abertura política e
democratização da América Latina. De acordo com as autoras, antes desse período, os
jovens eram incorporados no processo de modernização da sociedade, por meio das
políticas educacionais ou, ainda como vimos, das políticas de segurança. Marcam a
década de 50, como o início da datação histórica para as políticas públicas de juventude,
ressaltando o enfoque educacional como a principal resposta dada pelo Estado à questão
da incorporação da juventude.
As autoras dividem as políticas públicas de juventude em três principais
enfoques: “controle social, ‘jovem problema’ e jovens como capital humano”. Passemos
a cada um deles:
a) Controle social
Enfoque predominante nas décadas de sessenta e setenta do século XX, com a
presença dos governos ditatoriais. Após um período de incorporação dos jovens ao
sistema educacional, os países começaram a assistir a organização de movimentos
juvenis, principalmente de base estudantil e influenciados pelo maio de 68 francês, de
resistência e contestação ao regime autoritário. A tônica das políticas passou a ser,
então, a de controle e contenção das manifestações. Além disso, como vimos
anteriormente, a questão da infância e da juventude passa a ser assunto de segurança
nacional, diante da “ameaça” comunista e do crescimento de marginalizados vivendo
pelas ruas das principais cidades brasileiras. Nesse contexto surge, primeiramente, o
SAM e, anos depois, a FUNABEM, destinando aos jovens das classes populares um
tratamento preconceituoso, repressivo e violento.
b) O “jovem problema”
Esse enfoque ainda é marcado pelo período da ditadura no país, porém, com o
início da transição para governos democráticos, a partir da década de oitenta. Fase
caracterizada pelo início da recessão e aumento da pobreza. Surgem nos grandes centros
urbanos movimentos de coletivos jovens, muitas vezes identificados como “gangues”,
passando a ser o foco da preocupação dos governantes.
Em resposta, são elaboradas políticas de “compensação social”, como programas
de alimentação, emprego temporário e saneamento básico. Apesar de não serem
23
consideradas políticas juvenis, os jovens são os maiores beneficiados (em números) por
tais ações. De acordo com Freitas e Papa:
No marco das definições de prioridades, os setores juvenis considerados como sendo os
beneficiários das políticas são os setores excluídos socialmente, que apresentam
condutas delinqüentes, sendo um fator de insegurança cidadã. A aplicação desse
enfoque contribuiu enormemente no estigma da condição juvenil, questão esta ainda
hoje muito fortemente enraizada no imaginário sociaL (2003, p.44).
c) Jovens como capital humano
A partir da década de noventa, crianças e adolescentes passam a adquirir o
estatuto de cidadãos, fato culminado no Brasil, pela promulgação do Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA). O ECA traz consigo a demanda por revisão das políticas
implementadas à crianças e jovens, principalmente no que diz respeito a questão da
internação.
Para as crianças, a ordem é a socialização por meio da família e da escola; para
os jovens, a tônica volta-se para o mercado de trabalho.
Com o intuito de crescer economicamente, o país passa a se preocupar com a
formação dos recursos humanos necessários para tal e as políticas de capacitação de
jovens para o trabalho são, inclusive, apoiadas por organismos internacionais, como o
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Além de olharem os jovens apenas como recursos humanos, tais políticas
desconsideraram a incapacidade do mercado de absorver todo esse contingente que
estava sendo treinado, faltando opções a essa parcela da população, que, ao contrário da
economia, cresce vertiginosamente - rumo a marginalização.
Sposito e Carrano (2003) fazem um levantamento das políticas federais voltadas
aos jovens, durante a década de noventa e, mais especificamente, na gestão do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso.
Enfatizam o conflito existente em nossa sociedade, marcado pelo ECA, entre
aqueles que concebem os jovens como sujeitos de direitos, cidadãos portanto, e aqueles
que encaram a situação juvenil como um problema em si mesmo, que precisa ser
resolvido, especialmente enfocando os jovens das camadas mais baixas da população:
Ocorre uma convivência tensa entre a luta por uma nova concepção de direitos à fase da
vida e a reiterada forma de separar a criança e o adolescente das elites e o ‘outro’, não
24
mais criança ou adolescente, mas delinqüente, perigoso ou virtual ameaça à ordem
social (SPOSITO; CARRANO, 2003, p. 6)
A partir da década de noventa, com a constatação de que os problemas
econômicos e sociais afetam significativamente grande parte da população jovem, esta
ganhou um novo rótulo de condição de risco social. Desta forma, muitos programas
foram criados tendo como foco o controle do tempo livre dos jovens da periferia dos
centros urbanos, sendo enfatizados os programas esportivos, de trabalho e culturais:
De qualquer modo, mesmo que não se possa falar na esfera federal de políticas
estratégicas orientadas para os jovens brasileiros, algumas propostas foram executadas
sobretudo a partir da idéia de prevenção, de controle ou de efeito compensatório de
problemas que atingem a juventude, transformada, em algumas situações, ela mesma
num problema para a sociedade ( SPOSITO; CARRANO, 2003, p.8).
Os autores encontraram trinta e três programas que, de forma mais ou menos
específica, voltavam suas ações para a população juvenil. Ao fazer a análise dos
programas desenvolvidos, percebe-se uma grande fragmentação e pouca consistência
conceitual, possíveis indicativos da inexistência de um plano nacional para adolescentes
e jovens no Brasil, elaborado de forma integral, voltado para a cidadania do jovem.
O ECA foi grande propulsor de políticas destinadas a crianças e adolescentes,
principalmente das ações da Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da
Justiça, com o intuito de reformular a visão até então destinada ao menor e colocar em
pauta as novas concepções proposta pelo Estatuto. No entanto, no início da década de
noventa, aumenta consideravelmente a participação de adolescentes e jovens em cenas
de grande violência e junto ao narcotráfico, fazendo com que a preocupação do governo
girasse em torno da criminalidade:
A disseminação das mortes violentas de jovens ou por eles protagonizadas e o
crescimento das redes de narcotráfico se associam ao tema do consumo de substâncias
ilícitas/lícitas, a partir da década de 1990. Desse modo, o tema da criminalidade
atravessa permanentemente o debate sobre as políticas públicas para jovens. Na esteira
dos indicadores sociais e no clamor público do combate a violência, no segundo
mandato consecutivo de FHC, se desenham ões que teriam a pretensão de se
constituírem em instâncias coordenadoras de políticas de juventude. Sob a égide da
segurança pública foi criado o PIAPS, Programa do Gabinete de Segurança Institucional
25
da Presidência da República, sob o controle de um general do exército, num claro
simbolismo da ‘guerraque deveria se travar pela salvação da juventude das garras do
crime, do tráfico e da violência (SPOSITO; CARRANO, 2003, p.20).
Penso que a informação apresentada acima deixa bastante clara a tônica
comumente utilizada pelos diversos governos ao longo da história do Brasil: a questão
da adolescência e juventude tratada como “caso de polícia”. Não estamos questionando
a importância de ações voltadas para o controle da criminalidade e do desmonte do
narcotráfico, pois é preciso considerar que, atualmente, grande parcela de jovens, em
idade cada vez mais precoce, é atraída pelo mercado ilícito, seduzida pelo acesso aos
bens de consumo e outros valores propagados pela sociedade capitalista. A questão que
se coloca é: Por que os jovens, apesar da legislação avançada (ECA), são tratados como
uma questão de Segurança Nacional e não como sujeitos de direitos?
Se no caso de crianças e jovens das classes populares as ações políticas,
historicamente, sempre combinaram descaso, por um lado, e controle, por outro; a
situação dos adolescentes e jovens em conflito com a lei foi e tem sido marcada pelo
autoritarismo, violência e barbárie. Se o governo e parcelas da sociedade civil não
conseguem, ainda hoje, entendê-los enquanto sujeitos de direitos, autônomos e capazes
de participarem da construção das políticas e ações a eles destinados, que dirá da
parcela que ainda mais marginalizada por infringir a lei?
Uma antiga proposta ganha fôlego, recentemente, no cenário nacional
objetivando dar aos adolescentes e jovens um tratamento punitivo de adultos, com a
proposição de rebaixamento da idade penal, aumento da pena de reclusão em anos, entre
outras, que têm como pano de fundo a alteração do Estatuto da Criança e do
Adolescente, com a justificativa de que este só preconiza os direitos e não os deveres.
É importante entendermos que o alto e crescente índice de violência nas grandes
cidades assusta a população, principalmente as classes médias e altas, formadoras de
opinião. No entanto, a porcentagem de jovens em conflito com a lei é mínima frente à
quantidade de adultos inseridos no crime.
Além disso, medidas de significativo alcance e importantes conseqüências
sociais não podem ser tomadas no surgir do pânico, no alarde da imprensa e de
representantes do governo. Como pretendo mostrar nos próximos capítulos a reclusão
de adolescentes e jovens, além de não trazer nenhum benefício a eles, não resolver o
26
problema da criminalidade, ainda contribui para intensificar e reforçar a presença da
violência na história de suas vidas.
II.1 A FEBEM: presente e passado
II.1.1 Os genitores da FEBEM
14
Como dito anteriormente, as crianças pobres e suas famílias são rotuladas
pejorativamente ao longo da história do Brasil. No final do séc. XIX e início do séc XX,
o interesse em controlar e reformar essa parcela da população faz com que intelectuais e
cientistas voltem sua atenção a ela. Intensifica-se a criação de mitos e rótulos no que diz
respeito aos pobres e, os jovens das classes populares, em sua maioria, vistos como
delinqüentes, são temidos e indesejados.
O Estado Novo e a era Vargas trazem a promessa de reformas políticas,
econômicas e sociais. O governo, no entanto, tem um caráter conservador, de ações
centralizadoras e intervencionistas, primando pela manutenção da ordem e controle
social (Faleiros, 1995). É implementada uma política de tom nacionalista, que
transforma as questões sociais e econômicas em questões nacionais, com o intuito de
desestruturar os poderes regionais. Estimula o crescimento da população por meio de
campanhas de incentivo às famílias, ao casamento e à procriação, representantes
tradicionais dos valores morais.
Os chamados menores também são alvo da política nacionalista de Vargas, que
cria um sistema nacional de assistência, integrando o Estado e instituições privadas, o
Serviço Nacional de Assistência a Menores (SAM), em 1941: “A estratégia do
governo é de privilegiar, ao mesmo tempo a preservação da raça, a manutenção da
ordem e o progresso da nação e do país” (FALEIROS, 1995, p.67, grifos no original).
A criação do SAM está mais ligada à manutenção da ordem do que à assistência
propriamente dita. Criado para orientar a política pública para a infância vincula-se ao
Ministério da Justiça e aos juizados de menores, com a função de controlar e fiscalizar
os internatos e educandários privados, diagnosticar os adolescentes para a internação e o
ajustamento e estudar as causas do abandono. Na composição do aparelho repressivo, se
14
Estas informações têm como referência os livros: Pilotti, F.; Rizzini, I. (orgs). A arte de governar
crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de
Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Editora Universitária Santa Úrsula, Amais livraria e Editora,
1995; RIZINNI, I. e RIZZINI, I. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios
do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004 e site oficial da FEBEM:
www.febem.gov.br
27
articula ao SAM e ao Juizado, a Delegacia de Menores, notável por repreender jovens
suspeitos de delinqüência.
Pautado em bases correcionais, punitivas e policiais, articulando o público e o
privado, em toda sua história o SAM esteve envolvido em escândalos de corrupção e
maus tratos, porém, foi com relação aos menores transviados que se tornou uma “estrela
de fama internacional”. Conhecido popularmente como “escola do crime” ou “sucursal
do inferno”, os internos que por lá passavam eram temidos e considerados de alta
periculosidade, sendo marcados para sempre como bandidos cruéis e desalmados
(Rizzini; Rizzini, 2004).
Na era Vargas,
A política da infância, denominada ‘política do menor’, articulando repressão,
assistência e defesa da raça, se torna uma questão nacional, e, nos moldes em que foi
estruturada, vai ter uma longa duração e uma profunda influência nas trajetórias das
crianças e adolescentes pobres desse país (FALEIROS, 1995, p.70).
Após ser criticado por décadas pela imprensa, por políticos e até mesmo por
diretores do próprio órgão, o Serviço foi extinto em 1964, ano do golpe militar. No
mesmo ano, a lei 4.513 estabeleceu a Política Nacional do Bem-Estar do Menor
(PNBEM) e com ela a FUNABEM - Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, cuja
estrutura, semelhante a do SAM, era centralizadora e hierárquica, porém com autonomia
frente ao Presidente da República e ao Ministério de Justiça.
A FUNABEM surge com a difícil missão de se contrapor ao sistema implantado
pelo SAM e acabar com o “depósito de menores”, nos quais os internatos tinham se
transformado. Difícil, pois herdava deste último, não a estrutura física, mas também
seu modelo de organização, os convênios firmados com as entidades oficiais e privadas,
parte dos recursos humanos já existentes no SAM e a “cultura de internação”.
É preciso ressaltar que os propósitos de integração do menor a comunidade e
assistência às famílias apregoados pela Fundação ganham reordenamentos institucionais
num governo ditatorial e repressivo, que continua primando pela ordem e controle
sociais.
Nesse contexto, não é de se estranhar que por mais que o discurso da
FUNABEM difundisse que a internação deveria ser o último recurso utilizado, a
imensa maioria das instituições destinava-se ao atendimento em regime fechado, ou
28
seja, internatos que, em seu dia a dia, eram caracterizados por práticas repressivas e
violentas de atendimento à infância e à juventude. Práticas que, como vimos, estavam
pautadas em princípios preconceituosos voltados à população pobre, assim como em
propósitos de controle e disciplinamento do povo.
Cabe ressaltar que a FUNABEM era um órgão normativo e não executor. Dessa
forma, cabia a ela planejar e coordenar as ações assistenciais, servindo-se de estudos e
pesquisas sobre o menor e sua família.
O governo Federal estimulava a criação de fundações estaduais de assistência ao
menor, as chamadas FEBEM Fundação Estadual de Bem Estar do Menor
representantes do órgão federal nos estados e executoras das ações assistenciais,
delimitando a “Política Nacional do Bem Estar do Menor”, implantada de cima para
baixo, com ênfase nos convênios com instituições privadas e nos internatos.
II.1.2. A FEBEM-SP
Em dezembro de 1973 foi criada a Fundação Paulista de Promoção Social do
Menor – Pró-Menor – baseada no Código de Menores. Em abril de 1976 à Pró-Menor se
torna FEBEM, aderindo assim, às orientações gerais de assistência ao menor,
estabelecidas pela FUNABEM.
Em seu início, a FEBEM atendia crianças, adolescentes e jovens abandonados,
em situação irregular ou de risco social, além dos menores infratores. Com o Estatuto da
Criança e do Adolescente, a Fundação passa a atender somente adolescentes e jovens
em conflito com a lei, prestando serviço de privação de liberdade, semi-liberdade e
liberdade assistida.
De acordo com dados apresentados por Rizzini e Rizzini (2004), no ano de 1973,
artigo publicado no “Jornal do Comércio” informava que no Estado de São Paulo havia
33 mil internos, quando a necessidade era de que cerca de 360 mil menores fossem
assistidos. Uma rápida análise desses números nos permite considerar que a quantidade
de internos era assombrosa e ainda insuficiente, na concepção social da época, que
parecia desejar trancafiar toda a infância e a juventude do Estado, com o objetivo de
eliminá-las das ruas, escondendo a verdadeira situação de miséria em que vivia grande
parte da população.
Outro dado mostra a gravidade da situação:
29
O governo do Estado de São Paulo adotou o exílio para o interior dos menores
da capital, agravando a ‘problemática da internação’, ao afastar o menor da
família, já que um percentual superior a 96% dos internados era procedente da
capital. Boa parte dos internatos contratados (145) e próprios (8) estava situada
no interior, números que revelam uma política deliberada de não ‘limpar’ as
ruas da cidade dos elementos indesejáveis, mas de punição, pelo afastamento
da família e de desarticulação, ao retirá-los de seu meio social (RIZZINI e
RIZZINI, 2004, p.38).
Partindo de tais referenciais era de se esperar que já em 1976, no ano de sua
fundação, a FEBEM –SP estivesse superlotada e enfrentasse sua primeira rebelião. Em
1977 foram divulgadas as primeiras denúncias de tortura e maus-tratos aos internos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado no ano de 1990,
pautado nos princípios dos Direitos Humanos, propôs-se a dar forma jurídica à
cidadania de crianças e adolescentes, valendo-se do princípio de proteção integral a
estes como sujeitos de direitos. Apesar da legislação avançada, o ECA não mudou as
concepções sociais dominantes a respeito da infância e da juventude, ainda arcaicas.
A criação do ECA prevê modificações nas formas tradicionais de atendimento
destinados a crianças e adolescentes e traz, como conseqüência, a demanda de revisão,
por parte do Estado e da sociedade, das modalidades de atendimento previstas a essa
população, dentre elas o tratamento destinado aos jovens em conflito com a lei.
O ECA determina que os estabelecimentos de internação de adolescentes autores
de ato infracional tenham um caráter educativo, em contraposição ao caráter repressivo
e punitivo de atendimento instituído pelo Código de Menores, lei que regulamentava o
funcionamento e a estrutura da FEBEM e que o Estatuto revogou. Mesmo sendo em
estabelecimento educativo, a internação será o último recurso utilizado.
Assim, de acordo com o Título III “De prática de Ato Infracional”, Capítulo IV
“Das Medidas Sócio-Educativas”, Seção I “Disposições Gerais”, Art. 112 do Estatuto
da Criança e do Adolescente:
Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao
adolescente as seguintes medidas:
I – advertência;
II – obrigação de reparar o dano;
III – prestação de serviços à comunidade;
IV – liberdade assistida;
30
V – inserção em regime de semiliberdade;
VI – Internação em estabelecimento educacional (grifo nosso);
VII – qualquer uma das previstas no art.101, I a VI.
A partir do ECA, no estado de São Paulo, a FEBEM passa a atender
exclusivamente os jovens infratores e define atualmente seus objetivos da seguinte
forma:
Aplicar em todo o Estado as diretrizes e as normas dispostas no Estatuto da Criança e do
Adolescente, promovendo estudos e planejando soluções direcionadas ao atendimento
de crianças e adolescentes na faixa de 12 a 18 anos, autores de ato infracional (site
oficial da Febem, ano de 2003).
Com o intuito de dar ênfase ao caráter educacional da FEBEM, o decreto
publicado em 01/01/2003, pelo governo do Estado de São Paulo, determina que:
Artigo - Passa a vincular-se à Secretaria da Educação a Fundação Estadual do Bem-
Estar do Menor - FEBEM-SP, entidade vinculada à Secretaria da Juventude, Esporte e
Lazer (site oficial da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 2003).
Dessa forma, no momento de realização desta pesquisa, a FEBEM-SP era
responsabilidade da Secretaria da Educação, ainda que conservando normas estatutárias
próprias e guardando as especificidades de uma instituição de internação para
adolescentes em conflito com a lei.
Apesar da vinculação da FEBEM à Secretaria da Educação, os objetivos e
formas de atuação da Fundação não foram explicitados. A maior mudança pôde ser vista
na atenção dada à educação escolar.
No Art. 124 da seção VII, o ECA garante aos jovens privados de liberdade, entre
outros, o direito à educação escolar:
São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes: ( ...) XI
receber escolarização e profissionalização; (Estatuto da Criança e do Adolescente,
1990).
A escassez de dados sistematizados sobre a inserção de unidades escolares da
rede pública na FEBEM-SP demonstra o pouco valor atribuído à escolarização dos
31
adolescentes internados. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que
no art. - Dos Direitos Sociais declara: “a educação é direito de todos e dever do
Estado e da família”. O artigo 205 explicita os objetivos da educação: “o pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”. Violante (1985) em sua pesquisa sobre a identidade do
menor infrator aponta a presença de cursos supletivos no interior de Unidades de
Internação da FEBEM-SP. Segundo Pereira (2006), a educação escolar em instituição
de reclusão para adolescentes e jovens em conflito com a lei é obrigatória porque estes
se encontram sob a tutela do Estado enquanto cumprem as decisões judiciais. Lembra
ainda que o sistema de ensino oficial é o responsável por garantir a educação escolar e
não os programas de socioeducação.
No Estado de São Paulo, a educação escolar na FEBEM ocorre no esquema de
parceria entre a Secretaria da Educação e aquela Secretaria a qual a FEBEM se encontra
vinculada. Nos períodos em que ela esteve vinculada à Secretaria da Criança, Família e
Bem Estar Social e à Secretaria da Juventude, Esporte e Lazer foi objeto de algumas
Resoluções.
Enquanto vinculada à Secretaria da Criança, Família e Bem Estar Social, uma
Resolução conjunta desta Secretaria com a Secretaria da Educação (1994) regia sobre as
normas de funcionamento da escola na FEBEM-SP e estabelecia uma divisão das
responsabilidades referentes à educação escolar dentro da FEBEM. Para tanto,
estabeleceu a criação de um Grupo de Trabalho, formado por representantes das duas
Secretarias. Levando em conta a especificidade da clientela atendida, o artigo 2º, desta
Resolução, dispôs sobre a responsabilidade da Secretaria da Educação nos seguintes
termos:
I criar e instalar classes de a séries de ensino de Grau, regular e supletivo,
vinculadas a unidades escolares estaduais, na conformidade da demanda existente;
II promover cursos de natureza supletiva para atendimento da demanda de e
graus, através dos Centros de Educação Supletiva da Capital e do Interior;
(...)VII – por meio das Delegacias de Ensino supervisionar:
(...) e) a implementação de mecanismos promotores de entrosagem entre as unidades
escolares estaduais e os internatos da FEBEM;
(Resolução conjunta SE/SCFBES 1, de 11 de novembro de 1994, disponível no site
oficial da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 2003).
32
O artigo 3º, da mesma Resolução, dispõe sobre a responsabilidade da Secretaria
da Criança, da Família e do Bem Estar Social,
I – assegurar o espaço físico, equipamentos e recursos materiais necessários à instalação
de classes e de ambientes de apoio às atividades pedagógicas;
II promover mecanismos de entrosagem entre os internatos da FEBEM e as unidades
escolares estaduais;
III elaborar, juntamente com a DE, a programação das ações educacionais a serem
desenvolvidas;
IV concorrer para o cumprimento, em tempo hábil, das exigências pedagógicas e
administrativas contidas na programação prevista para cada período letivo.
(Resolução conjunta SE/SCFBES 1, de 11 de novembro de 1994, disponível no site
oficial da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 2003)
No ano de 2002, uma nova Resolução passou a vigorar, pois a FEBEM-SP
vinculou-se à Secretaria da Juventude, Esporte e Lazer. Nos documentos oficiais, o
funcionamento da escola no interior da Fundação sofreu modificações, mas a estrutura
de organização conjunta entre as Secretarias seguiu os mesmos moldes da Resolução
anterior, como mostra o artigo 3º desta Resolução:
O trabalho pedagógico a ser desenvolvido nas unidades da Febem-SP, terá
características próprias em conformidade com a especificidade do atendimento e deverá
ser desenvolvido em parceria com as Secretarias de Estado envolvidas (Resolução
Conjunta SE/SJEL Nº 2, de 20 de dezembro de 2002, disponível no site oficial da
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 2003).
Além disso, esta Resolução previu modificações no regime de ensino adotado,
tanto nas Unidades de Internação Provisória (UIPs), quanto nas Unidades de Internação
(UIs).
O artigo 6º dispõe sobre a escolarização nas UIs:
Artigo 6º - Nas Unidades de Internação (UI), a escolarização dar-se-á por meio de
ensino regular, classes de aceleração, educação de jovens e adultos ou projetos
específicos que atendam às características próprias da clientela (Resolução Conjunta
SE/SJEL 2, de 20 de dezembro de 2002, disponível no site oficial da Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo, 2003).
33
No momento de realização da pesquisa (2003/4) estava em vigor a Resolução de
20 de dezembro de 2002, com a ressalva de que os itens que eram de responsabilidade
da Secretaria da Juventude Esporte e Lazer passaram a ser da FEBEM.
As várias mudanças políticas sofridas pela instituição no decorrer de sua história
restringiram-se aos documentos e discursos oficiais, não refletindo em melhoria no
atendimento aos jovens internos, como apontado por diversos autores (Violante, 1985;
Rocha, 1994; Rizzini, 1995; Passetti, 1999, entre outros).
De sua criação, em meados da década de 70, até hoje, a realidade da instituição
não mudou muito, apesar das diversas reestruturações, as principais delas ocorridas após
o Estatuto da Criança e do Adolescente, visando enfatizar seu caráter educativo.
Em 30 anos, a FEBEM-SP teve mais de 60 presidentes, sendo que no ano de
realização da pesquisa foram três.
Para ilustrar a grave situação vivenciada pela Fundação, citaremos alguns dados
do censo penitenciário, do ano de 2003
15
:
# 15% da população carcerária do Estado de São Paulo passou pela FEBEM;
# Com 69 Unidades em todo o Estado, atende 6.623 internos, número composto
por adolescentes e jovens na faixa dos 12 aos 18 anos e até os 21, em casos
excepcionais;
# Do total de internos, cerca de 19% são reincidentes;
# No período de um ano (de abril de 2003 a maio de 2004) foram registradas 10
mortes de internos, 26 rebeliões e 52 fugas, totalizando 346 fugitivos;
# Num período de quatro anos, a FEBEM-SP passou por três secretarias
diferentes: Secretaria da Criança, da Família e do Bem Estar Social, Secretaria do
Esporte e Lazer e Secretaria da Educação;
# Outro dado é o número de mortes de ex-internos da FEBEM. Segundo
relatório sobre execuções sumárias entregue à relatora especial da ONU, Asma
Jahangir, preparado por treze entidades nacionais de direitos humanos, os internos da
FEBEM são as principais vítimas dos grupos de extermínio: 20 ex-internos são
assassinados por mês só na cidade de São Paulo. Além dos grupos de extermínio,
muitos são vítimas de pendências contraídas antes da entrada na FEBEM, como guerra
entre grupos rivais e outras desavenças, principalmente, no âmbito do tráfico de drogas.
15
Dados obtidos por meio de reportagens publicadas na revista Carta Maior : Dossiê FEBEM, disponível
no site da revista:
www.cartamaior.com.br ; assim como, em relatórios de entidades de direitos humanos,
disponíveis nos sites da ILANUD: www.ilanud.org e da ANDI: www.andi.org
34
De dez adolescentes e jovens condenados à Liberdade Assistida, seis morrem antes de
cumprir a medida.
II.1.3. A FEBEM-SP hoje: O Complexo de Internação observado
O Complexo de Internação observado foi implantado no ano de 1976, nas
dependências de um orfanato para crianças e adolescentes, criado durante a vigência do
SAM. Passou por diversas reformas e adaptações para chegar a estrutura que possui
hoje: um espaço que compreende as Unidades de Internação (UIs), além de um prédio
para a diretoria e o setor administrativo, responsáveis pela gestão e organização do
Complexo, um prédio para a secretaria escolar, cozinhas, salas de informática e piscina.
O Complexo de Internação observado, no período de realização da pesquisa, abrigava,
em todas as suas Unidades, cerca de 500 internos.
Para entrar no Complexo de Internação, era necessário deixar na portaria, que é,
na verdade, uma guarita de segurança, o nome completo e um documento de
identificação, mesmo quando a visita tivesse sido acertada. O visitante recebia uma
autorização por escrito para permanecer no recinto. Além da autorização, todos,
incluindo os funcionários da instituição, deviam passar por uma revista geral. Os
veículos também eram revistados, e todo material que entrava ou saía da instituição
tinha que ser conferido e anotado pelos guardas da segurança.
Não pude evitar uma enorme sensação de estranhamento e desconforto ao
passar, em minha primeira visita à FEBEM-SP, pela revista da entrada. Com o tempo, o
estranhamento passou, visto que era um procedimento rotineiro; o desconforto, porém,
jamais deixou de existir, mesmo tendo passado um ano freqüentando a instituição.
A estrutura física das Unidades de Internação era bastante semelhante. Os
prédios possuíam uma portaria com guarita, na qual se passava por outra revista geral,
na entrada e na saída. Uma pequena área verde separava a guarita do prédio, tendo uma
alta torre de vigilância que parecia sempre vazia.
No início do ano de 2004, duas novas Unidades de Internação foram construídas
para abrigarem jovens reincidentes considerados de alta periculosidade, maiores de
dezoito anos. Tais Unidades diferiam das demais apresentadas por serem de alta
segurança, caracterizadas por abrigarem um número menor de internos, apresentarem
muros mais altos, maior números de vigilantes, menor número de adolescentes por
dormitório (dois por quarto), entre outras.
35
É importante ressaltar que, no período de construção das duas novas Unidades,
cerca de noventa adolescentes permaneceram três meses alojados em uma espécie de
galpão improvisado, rodeado por cercas de arame farpado e vigiado 24 horas, por
guardas armados e cachorros, enquanto aguardavam as novas Unidades. Tais
adolescentes foram transferidos a esse local após a desativação de uma Unidade em
outro Complexo de Internação da cidade de São Paulo.
Durante o período que aí permaneceram, o atendimento a eles prestado era
precário, visto a inadequação das instalações físicas e o reduzido número de
funcionários técnicos ou pedagógicos no local. Os adolescentes tinham que permanecer
o dia todo sentados, de cabeça baixa e braços para trás, com exceção dos poucos
momentos de atividades a eles ministradas.
Os professores que lecionavam no Complexo foram convocados a atuar nesta
nova localidade, principalmente os professores eventuais, revezando-se na realização de
atividades “pedagógicas” com os adolescentes.
Para o uso da sala de informática e das piscinas, os internos eram divididos em
pequenos grupos de forma que internos de Unidades diferentes não se encontrassem.
Estes grupos eram montados pelo setor pedagógico de cada Unidade, utilizando
critérios, aparentemente, aleatórios de seleção. No geral, para participar do curso de
informática o interno devia possuir um bom nível de escolarização, avaliado pela sua
facilidade na leitura e na escrita. a piscina, em teoria, deveria ser freqüentada por
todos, num esquema de rodízio. Alguns internos, porém, queixavam-se nunca terem ido
à piscina, após meses de internação.
Havia duas cozinhas: uma minúscula, para os funcionários administrativos e
outra um pouco maior, montada pela ONG, na qual alguns internos recebiam aulas de
culinária e auto-gestão e produziam marmitex, vendidos a baixo preço, principalmente,
aos funcionários da escola, que não tinham outra opção de alimentação na instituição.
Maiores detalhamentos da descrição física, assim como da localização do
Complexo serão evitados, com o intuito de resguardar a identificação dos sujeitos da
pesquisa, assim como foi a eles prometido.
Acreditamos que tal cuidado não trará prejuízo à compreensão das informações
por nós descritas, pois o importante a ter em mente é que este, como todos os outros
Complexos de Internação da FEBEM-SP, assemelha-se aos muitos presídios deste país,
cercado por vigilância 24 horas (composta por homens, mulheres e cachorros), muros
altos e outras medidas de segurança.
36
II.1.4. U.I. X
16
Esta Unidade é destinada a adolescentes e jovens, de catorze a dezoito anos,
classificados como primários leves, ou seja, adolescentes que foram apanhados pela
primeira vez cometendo pequenos delitos, no geral, furtos e roubos. No entanto, tal
divisão não é respeitada dentro da FEBEM-SP. Por meio de transferências de uma
Unidade para outra, na U.I. X encontram-se internos reincidentes, assim como outros
que cometeram delitos graves, contrariando o ECA que determina a separação dos
internos por faixa etária e gravidade da infração cometida.
Durante o último mês da pesquisa de campo, em junho de 2004, a U.I. X tinha
106 internos, numa estrutura prevista para cerca de 100. O número de internos,
geralmente, girava em torno de 90, salvo aumentos provisórios quando da desativação
de Unidades ou de problemas em outros Complexos.
O prédio da U.I. era composto por módulos nos quais se encontravam os
dormitórios e banheiros dos meninos, com capacidade média para seis adolescentes por
quarto; uma sala para a direção da Unidade, salas para o setor administrativo, técnico,
pedagógico e de segurança; refeitório, pátio rodeado por salas de aula, biblioteca, sala
de enfermagem, de dentista e horta.
Os dormitórios dos internos ficavam separados das dependências administrativas
por um grande portão de ferro, que permanecia trancado durante todo o dia e era
aberto à noite, no horário de banho. Outro portão do mesmo tipo separava o pátio das
demais dependências. Era no pátio que os internos passavam a maior parte do tempo. A
circulação pelos demais espaços era proibida, a não ser quando chamados pela equipe
dirigente, sempre em pequenos grupos, para alguma atividade específica.
O pátio era coberto, existindo um pequeno espaço aberto para a entrada do sol.
Assemelhava-se a uma grande quadra esportiva, do tipo das encontradas em muitas
escolas públicas, mas sem os componentes de uma quadra, contando apenas com traves
de futebol, um banheiro e um bebedouro.
Das quinze salas situadas em volta do pátio, onze eram utilizadas como sala de
aula; as quatro restantes como sala de TV, sala de artes, biblioteca e sala de oficinas
variadas. Grades de ferro separavam as salas do exterior.
As condições das salas eram bastante precárias. Compostas basicamente por
cadeiras “universitárias” para os alunos e lousa, muitas vezes, no chão, pois arrancada
16
Nome fictício da Unidade de Internação pesquisada.
37
da parede pelos alunos. Não havia uma mesa para os professores; quando muito, uma
cadeira de plástico.
A sala de TV era a maior de todas, contando com um aparelho de TV e um
aparelho de vídeo cassete, nos quais os internos assistiam, sentados no chão, a
programas e filmes selecionados pela direção da Unidade. O horário da TV era
controlado, assim como a programação. Curioso notar que o programa favorito dos
meninos era “Malhação”, seriado adolescente da rede Globo que retrata um mundo de
ricos e belos, completamente fora da realidade dos adolescentes e jovens que se
encontram na FEBEM. Qualquer noticiário era proibido, inclusive da imprensa escrita.
Para realizar uma atividade pedagógica utilizando jornais ou revistas, os professores
encontravam grande resistência por parte da direção e da coordenação pedagógica da
Unidade, fato que contraria o ECA, visto que este garante aos adolescentes e jovens
privados de liberdade o acesso à informação e às notícias.
A sala de artes era a menor e ficava fechada a maior parte do tempo. se
encontravam uma grande mesa de madeira, com um banco de cada lado, e telas pintadas
pelos internos. Era conhecida como a “sala da Sônia”
17
, assistente do setor pedagógico
que dava aulas de pintura, tapeçaria e outras técnicas de artesanato e era muito querida
pelos internos. Foi a única sala preservada durante uma rebelião ocorrida em outubro de
2003.
A biblioteca tinha estantes de madeira, repletas de livros e apostilas em estado
precário de conservação. Utilizada apenas para guardar os cadernos dos adolescentes,
permanecia fechada. No final do ano letivo de 2003, passou por uma reforma que
encerrou de vez o acesso aos internos. Após a reforma, ganhou mesas, cadeiras e livros
em melhor estado, mas inacessíveis aos adolescentes. Passou a ser utilizada pelas
analistas técnicas pedagógicas que, de vez em quando, trabalhavam com pequenos
grupos de meninos. A biblioteca era constante motivo de queixa dos professores, que
gostariam de vê-la funcionando como tal.
A organização e o funcionamento dessa U.I. caracterizavam-se pela rigidez e
excesso de controle, tanto de internos como de funcionários. Rigidez e controle
conseguidos por meio de uma enorme burocratização
18
das práticas cotidianas e
vigilância constante por meio de uma equipe de segurança.
17
Nome fictício.
18
De acordo com o “Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa”, 2004, burocracia é a “Administração da
coisa pública por funcionários, sujeitos a hierarquia, rotina e regulamento inflexíveis”. Sobre o papel da
burocracia no sistema capitalista e sua conseqüente presença na escola, ver: Paro, 1986.
38
Acredito ser importante explicitar a organização e funcionamento da Unidade,
por meio da hierarquização de cargos e funções em seu interior. No topo da hierarquia
encontrava-se a diretora, assessorada pela assistente de direção ou encarregada técnica,
pessoa responsável por supervisionar o trabalho das assistentes técnicas: psicólogas e
assistentes sociais responsáveis por acompanhar o desempenho dos internos, fazendo
avaliações periódicas de conduta e desenvolvimento. Ao lado da encarregada cnica
encontrava-se a coordenadora pedagógica cuja função era planejar e organizar as
atividades pedagógicas realizadas no interior da U.I., tanto no âmbito da escolarização,
como no dos cursos profissionalizantes e demais oficinas sócio-educativas.
Subordinados a ela, estavam os professores de um lado e, de outro, as analistas técnicas
pedagógicas, responsáveis pela realização de oficinas educativas, avaliação de
desempenho dos internos, além da mediação entre internos e equipe dirigente.
Numa escala hierárquica inferior à direção, porém, muitas vezes, com mais
poder de fato, estava o coordenador de turno, pessoa responsável pela escala de trabalho
dos agentes de segurança, representantes imediatos da contenção e punição dos internos.
No último grau da hierarquia estavam os agentes de apoio, encarregados da limpeza da
Unidade e das roupas dos internos.
Outra característica era a grande quantidade de mulheres trabalhando na
Unidade. Com exceção dos funcionários de pátio, de um analista pedagógico e de um
médico (que permanecia pouquíssimo tempo no local), as demais pessoas da equipe
eram mulheres, inclusive a diretora e sua assistente imediata. Penso ser esse um fator
relevante, pois, de diversas maneiras, acabava por marcar o funcionamento e a cultura
local, caracterizados pela soberania da equipe de segurança (homens, em sua maioria) e
por um controle extremado da sexualidade, expresso na tentativa de fiscalizar os
contatos entre internos e funcionárias, e de “esconder” o corpo feminino, criando um
enorme medo da sexualidade dos internos, como se essa fosse anormal, animal.
A escola, no interior desta Unidade de Internação, estava imersa em rituais de
controle, rigidez e burocratização, como veremos a seguir.
II.1.5. A escola na U.I. X
Os Complexos de Internação da Febem-SP incluem escolas. Os maiores contam
com um prédio para a escola; os demais, com salas de aula situadas no interior das
Unidades.
39
As Unidades de Internação da FEBEM-SP, no âmbito da escolarização, estão
ligadas às Diretorias de Ensino de cada região e, na Fundação ficam sob a
responsabilidade da Coordenadoria Técnica Pedagógica, na divisão da Diretoria de Área
Escolar
19
. Os internos, assim que adentram a instituição, dão seqüência ao processo de
escolarização.
Os internos são matriculados em escolas estaduais localizadas na região do
Complexo de Internação que recebem o nome de Escolas Vinculadoras. Destas escolas
também fazem parte o corpo docente, assim como a administração e a direção escolar.
Como estão matriculados nas Escolas Vinculadoras, nos históricos escolares dos
adolescentes não consta nenhuma indicação de sua passagem pela FEBEM.
No Complexo estudado, o calendário escolar era semestral, contando cem dias
letivos para o primeiro semestre do ano e cem dias letivos para o segundo semestre.
Assim, ao final de cada semestre ocorria uma avaliação de desempenho dos alunos, com
a possibilidade de serem reclassificados e transferidos para uma turma que se
encontrava a frente no processo de escolarização (por exemplo: um aluno que
freqüentava o sexto ano do Ensino Fundamental, ao final do primeiro semestre letivo,
poderia ser promovido ao sétimo ano). Além das classes regulares, existiam classes de
aceleração e classes multisseriadas.
Para ministrarem aulas na FEBEM-SP, os professores se inscrevem na Diretoria
de Ensino, na modalidade de “projetos especiais”. A atribuição de aulas se de acordo
com a classificação do professor, por meio da pontuação que possui, assim como na
rede regular de ensino. Porém, para efeito de classificação, os professores devem
apresentar projetos de ensino referentes à sua área de conhecimento. A avaliação desses
projetos é feita por uma comissão formada por membros da Diretoria de Ensino. A
FEBEM-SP tem grande peso na escolha do futuro professor que lecionará na
instituição
20
. No Complexo observado, em julho de 2003, trinta e dois professores se
dividiam para atender às Unidades de Internação.
No mesmo período, treze professoras lecionavam na U.I. X
21
.
19
Ver organograma da FEBEM em Anexo .
20
Maiores informações sobre o processo de contratação de professor para lecionar na FEBEM-SP serão
dadas no próximo capítulo.
21
Durante o ano letivo de 2003, o quadro docente da U.I. X era composto, majoritariamente, por
mulheres. Havia um único professor, responsável pelas aulas de Educação Física que, por lecionar em
período contrário ao destinado as demais disciplinas e não fazer parte dos HTPCs , tinha pouco contato
com o grupo de professoras.
40
A coordenação pedagógica da escola fica a cargo dos Coordenadores
Pedagógicos de cada Unidade (funcionários da FEBEM), que são responsáveis por
planejarem e coordenarem os Horários de Trabalho Pedagógico Coletivos (HTPCs),
assim como o trabalho em sala de aula, as reuniões de pais, entre outros. É importante
ressaltar que por não fazerem parte da rede regular de ensino, esses coordenadores
desconhecem a legislação da área.
Neste Complexo, a escola se organizava em dois espaços principais: a secretaria
escolar e as Unidades de Internação. O prédio da secretaria escolar era o local onde os
professores assinavam o ponto, realizavam as reuniões de HTPC, recebiam orientações
e determinações da vice-diretora da escola e resolviam questões de ordem burocrática,
vinculadas à Secretaria Estadual de Educação (SEE). Era composto pela sala da vice-
diretora da escola, a sala da secretaria, uma sala para os professores, uma pequena
biblioteca, além de uma sala com TV e vídeo para a preparação de atividades
pedagógicas pelos professores. Existia, ainda, uma sala para os equipamentos e o
pessoal da ONG. As salas eram muito pequenas, com pouca iluminação e circulação de
ar.
Todas as Unidades do Complexo observado contavam com salas de aula em seu
interior. Quando iniciei a pesquisa, em junho de 2003, as salas de aula eram
extremamente precárias: paredes sujas, ausência de lixeiras, pouca iluminação, fiação
desencapada os meninos usavam os fios para acender cigarros, com grande risco de
um curto circuito – tomadas sem funcionar, professores em pé, com o material na mão.
Ao término de cada semestre letivo as salas eram pintadas, geralmente pelos
próprios adolescentes internos, porém continuavam em situação precária. Durante todo
o ano que permaneci na Unidade, ouvi as professoras queixando-se da falta de recursos
didáticos e da qualidade do material pedagógico.
Em situação ideal, as salas de aula contavam com cerca de quinze alunos,
distribuídos por série. No ano de 2003 e 2004, havia onze salas de aulas, sendo que três
delas eram classes de aceleração (alunos do primeiro ao quarto ano do Ensino
Fundamental) e outra era multisseriada, na qual ficavam os alunos do Ensino Médio.
As aulas aconteciam no período da manhã, com início às 8:00 e término às
12:00, com um intervalo de 15 a 20 minutos, por volta das 10 horas. Por conta do
excesso de normas de procedimentos existente na Unidade, o período de aulas era
dominado por um ritual extenso, que tomava boa parte do tempo destinado a primeira e
última aulas.
41
Todos os dias, antes de se dirigirem ao pátio para o início das aulas, as
professoras deviam separar o material a ser utilizado no período (folhas de sulfite,
apontador, lápis, caneta e borracha para cada aluno), contar a quantidade retirada e
anotar em uma folha de controle de material.
Ao chegarem no pátio, era preciso esperar que os agentes (de segurança ou
pedagógicos) destrancassem os cadeados das portas das salas. Então, as professoras
dirigiam-se à sala da biblioteca, retiravam as “sacolas” contendo os cadernos dos alunos
e, então, seguiam para as salas de aula. Antes de iniciar a aula, além da habitual
“chamada”, a professora tinha que distribuir o material para cada aluno, anotando na
lousa a quantidade de itens entregues.
Na última aula, os materiais entregues aos alunos deviam ser recolhidos e era
feita a recontagem dos itens. Caso faltasse qualquer material, mesmo que uma única
borracha, professores e alunos tinham que permanecer em sala até que fosse encontrado
ou que um dos coordenadores (pedagógico ou de turno) se dirigisse até a sala e fizesse a
ocorrência do desaparecimento, após uma repreensão verbal.
Tal procedimento, além de demandar um grande tempo destinado ao ensino de
conteúdos (cerca de 20 min. na primeira e última aulas), gerava grande tensão nos
alunos e professores, pois estabelecia um clima de desconfiança e controle. As
professoras se queixavam da situação, pois de um lado acabavam exercendo o papel de
vigias e, de outro, sentiam-se reféns dos alunos quando eram obrigadas a permanecerem
em classe após o término das aulas.
A coordenadora pedagógica justificava a medida perante o freqüente sumiço de
lápis e canetas, visto que os meninos não podiam portar tais materiais fora do período de
aula, temendo que qualquer objeto virasse arma nas mãos dos internos.
Nesse contexto, era impossível que os alunos desenvolvessem qualquer trabalho
escolar fora de sala de aula, pois até mesmo seus cadernos eram recolhidos ao final de
cada período letivo e eram devolvidos ao início da próxima aula. O acesso a livros e
revistas era proibido, tanto no pátio como nos quartos e, até mesmo a Bíblia, objeto
comum em outras Unidades, era proibida nesta.
Para a proibição de livros e revistas, a justificativa era de que os adolescentes
estragavam tudo o que lhes caía nas mãos. A proibição da Bíblia decorria da proibição
de terem nos quartos qualquer objeto pessoal. Raramente ficavam com fotos de
familiares ou amigos; quando muito permitiam a posse de desenhos e cartas.
Procedimento comum em qualquer Unidade de Internação na FEBEM-SP, após uma
42
rebelião, briga ou tumulto causado pelos internos, retirava-se tudo dos quartos, às vezes,
até os colchões. Nessas ocasiões, os pertences pessoais dos internos eram
deliberadamente destruídos, como uma forma clara de punição.
Na U.I. X havia um agente de segurança para cada sala de aula. Isso significava
que, em toda sala, em condição ideal de funcionamento, permanecia um funcionário, do
lado de fora da porta, vigiando os acontecimentos em sala de aula, com a justificativa de
zelar pela segurança de professores e alunos, assim como fazer valer as regras
disciplinadoras estabelecidas pela “casa”.
Como pude observar, a presença dos funcionários nas portas despertava
sentimentos ambíguos nos professores. De um lado, sentiam-se seguros delegando aos
agentes de segurança toda a autoridade em sala de aula; de outro se sentiam vigiados,
invadidos em sua autonomia como docentes e ressentiam-se da ausência de autoridade
em sala. Dividir o espaço de trabalho com um vigilante era algo que os deixava em
conflito.
Os HTPCs eram tomados por queixas e reclamações sobre a estrutura precária
da instituição, a péssima qualidade dos materiais destinados a professores e alunos, o
problema da segurança e, em conseqüência, da necessidade de mais agentes de
segurança para a contenção dos internos, dentro e fora da sala de aula. As professoras
pediam providências quanto aos comportamentos desrespeitosos e “abusados”
(expressão de uma professora) dos meninos em sala, esperando uma atitude “mais
firme” dos agentes de contenção. Porém, ao mesmo tempo em que pediam maior
vigilância, se ressentiam da presença restritiva sobre suas práticas.
Além da rigidez e burocratização de procedimentos estabelecidos, existia uma
enorme preocupação com a tentativa de controle da sexualidade adolescente, por parte
de toda a Unidade e também do grupo de professoras, que parecia apresentar fantasias
de que essa seria uma sexualidade “anormal”, desenfreada, quase animal. Por conta
dessas crenças e da tentativa de eliminar um perigo iminente, adotavam ações que
visavam esconder o corpo feminino, na esperança de que ao anular a presença da
feminilidade no contato com os meninos, estes também teriam seus desejos e
manifestações sexuais anulados.
Para sustentar o controle sobre o funcionamento de tamanha estrutura, uma
gama enorme de profissionais, de formação e cargos variados, acabava interferindo no
cotidiano escolar. Descreverei de forma sucinta, a presença dos profissionais na escola.
43
Vice-diretora Escolar: assim como os professores, era funcionária da escola
vinculadora, na qual exercia o cargo de vice-diretora. Alocada na FEBEM, realizava
todas as suas tarefas dentro do Complexo de Internação, sendo responsável pela
administração escolar (contratação de professores, organização do calendário letivo etc.)
e pela articulação entre a escola vinculadora e a escola na FEBEM.
De junho de 2003 a junho de 2004, duas pessoas com perfis diferentes
exerceram a função de direção da escola no Complexo. Após esse período, nenhuma
pessoa se manteve na função, tendo sido alegado pelas professoras entrevistadas, ser
proibido a presença da vice-diretora na FEBEM. Toda a parte administrativa da escola,
passou a ser realizada, então, pela escola vinculadora.
Secretário escolar: funcionário antigo da Fundação trabalhou, primeiramente,
como agente de segurança, até ser “transferido” para a secretaria escolar, por apresentar
problemas freqüentes de relacionamento com os internos. Pedagogo por formação e
com muitos anos de trabalho na instituição conhecia bem o funcionamento institucional.
Era responsável pela organização do trabalho burocrático da escola, a “papelada
(matrícula dos alunos ingressantes, digitação e cópia de provas a serem aplicadas aos
alunos, entre outros). Pessoa de trato difícil acreditava estar acima de tudo e de todos.
Muitas vezes, provocou desentendimentos no grupo de professores e desorganização no
trabalho.
Coordenadora Pedagógica: no âmbito das U.I., a organização cabia ao
coordenador pedagógico, pessoa responsável por fazer a escola “acontecer”. O
coordenador controlava o horário das aulas, as atividades em sala de aula, eventos e
reuniões de pais. Era quem respondia pela disciplina dos alunos, pelas normas da
“casa”, pela montagem das classes, pela orientação dos docentes. Além do âmbito
escolar, o coordenador pedagógico organizava os cursos profissionalizantes ou não -
que os internos freqüentavam enquanto permaneciam na instituição, assim como as
atividades dos analistas técnicos pedagógicos.
Por ocasião da pesquisa, a coordenadora era pedagoga e funcionária antiga da
instituição. Parecia gostar de seu trabalho, apesar de se queixar da sobrecarga de
atividades e da constante pressão, pois se encontrava entre duas instâncias institucionais
conflitantes: a de educação e a de contenção. De um lado, os professores e suas
demandas de melhores condições de trabalho; de outro a direção da Unidade, que zelava
pelo disciplinamento e controle dos internos; no meio, os analistas pedagógicos,
44
insatisfeitos com as atividades que cumpriam e os internos, que queriam sempre
atividades diferentes e menos controle.
Diante do quadro apresentado, ela encontrava no excesso de normas de
procedimento um meio para organizar seu trabalho. Submetida à direção da Unidade,
zelava pelo controle de tudo e de todos. Impunha aos professores, uma rotina de regras
rígidas: registrar o tipo e a quantidade de material levado para sala de aula; pedir por
escrito, com pelo menos uma semana de antecedência, qualquer recurso didático não
habitual, como aparelho de som ou vídeo-cassete; comunicar qualquer atividade
diferenciada que queriam realizar em sala de aula, como a discussão de um filme ou
letra de música, para obter autorização.
Analistas técnicas pedagógicas: categoria profissional que participava
diretamente da organização e funcionamento da escola. Eram três psicólogas e uma
pedagoga e não possuíam funções claramente definidas. Em geral, cabia-lhes promover
um diálogo próximo com os internos, fazendo a mediação entre estes e a equipe
dirigente. Eram responsáveis pelas entrevistas iniciais com os adolescentes que
chegavam à instituição, por informá-los das regras e procedimentos gerais da Unidade e
por aplicar-lhes um teste de habilidades escolares, geralmente a leitura e a escrita de um
pequeno texto e cálculos simples.
As analistas pedagógicas também realizavam grupos temáticos com os internos,
algumas vezes em parceria com as assistentes técnicas (psicólogas e assistentes sociais).
Existiam cinco grupos temáticos permanentes: acolhimento, cidadania, sexualidade,
drogadição e ressocialização.
No que dizia respeito à escola, as analistas pedagógicas assemelhavam-se a
bedéis, zelando pela disciplina durante o período de aula e buscando materiais a serem
utilizados pelos professores. No pátio, atuavam em conjunto com os agentes de
segurança, com clara diferenciação na forma com que lidavam com os internos.
A relação das analistas com os meninos, no geral, era boa, cultivada na base do
respeito e da negociação, levando em conta o conflito sempre presente quando de um
lado está quem prende e de outro quem quer sair.
Agentes de segurança ou “funça” , como eram apelidados pelos meninos:
eram os responsáveis pela segurança da U.I. Na prática isso se traduzia em vigilância e
punição.
45
Na FEBEM-SP, por mais que o discurso apregoado seja o da educação, a
contenção é quem dita as regras e os responsáveis pela contenção são os que, de fato,
detêm o poder.
Os agentes de segurança, em sua maioria homens, advindos da carreira policial,
eram supervisionados pelo coordenador de turno ou de pátio, pessoa responsável por
fazer a escala dos funcionários, controlar a entrada e saída dos internos e tomar as
decisões relacionadas à segurança. Em última instância era o coordenador de turno, em
consonância com a direção, quem dizia se haveria aula ou não. Por qualquer suspeita de
agitação ou mudança na rotina da Unidade, como falta de água ou luz, as aulas eram
suspensas.
A relação entre os agentes de segurança e os internos era a mais complicada de
todas. Figura geralmente truculenta e carrancuda, o agente de segurança era a pessoa
que passava mais tempo com os internos. Por conta da própria função que exerciam
mantinham um tênue equilíbrio entre proximidade e distanciamento, entre camaradagem
e despotismo. Temiam os meninos e a agressão costumava ser sua maior estratégia de
defesa.
É preciso ressaltar que a agressão também faz parte da cultura institucional
criada por um século de histórias de imposição da força, castigos e torturas físicas ou
psicológicas no trato com os adolescentes e jovens, ainda hoje denominados menores,
por essa categoria profissional.
As contradições dos agentes, inerentes à ambigüidade do lugar que ocupam; o
fato de viverem cotidianamente num clima de tensão e ameaça explica o alto índice de
transtornos emocionais e outras doenças apresentadas por esses funcionários, como
pudemos observar por meio de conversas durante a permanência no campo e pela
existência de um documento da presidência da FEBEM-SP, no ano de 2003, relatando o
alto índice de problemas de saúde como causadores de faltas entre os funcionários.
Com o passar do tempo, fui percebendo que a escola entrava no grande jogo de
negociações entre internos e responsáveis pela contenção. Moeda de troca, ora na mão
de um, ora na mão de outro, tinha como finalidade última para internos e funcionários
da equipe dirigente servir como instrumento de maior poder de barganha. Algumas
situações descrevem essa análise
22
:
Situação 1. Num período em que os internos apresentavam agitação e
descontrole cotidianos, na manhã do dia 14 de outubro de 2003, um adolescente
22
Situações registradas no diário de campo.
46
arrancou a lousa da parede da sala de aula e atirou no meio do pátio, gritando que não
haveria aula, pois eles não estavam “a fim”, num gesto explícito de tomada de poder.
Nesse mesmo dia, cerca de doze horas depois, os internos se rebelaram.
Situação 2. Na semana anterior a rebelião ocorrida em outubro de 2003, os
adolescentes demonstravam comportamentos agressivos (que se chocavam
explicitamente com as regras estabelecidas pela Unidade e por eles próprios). No dia 8
de outubro de 2003, após o intervalo das aulas, quando as professoras começavam a
retornar ao pátio, em direção às salas de aula, um grupo de cerca de 30 adolescentes
cercou um novato (menino recém internado) e o espancou diante das professoras.
Segundo as regras dos próprios internos, comportamentos de extrema violência
raramente ocorriam durante o dia, muito menos na frente dos professores, o que dava
um sentido novo ao fato. Tais espancamentos coletivos, lamentavelmente, eram comuns
entre os internos, que estabeleciam critérios de julgamento e condenação entre si e
realizavam “tribunais” numa velocidade e crueldade impressionantes. O fato de ter
acontecido durante o período de aula, momento no qual a Unidade inteira se volta para o
funcionamento da escola, possibilita-nos a pensar que o objetivo dos meninos pode ter
sido, por meio de um ato bárbaro, dizer: “Vocês insistem em nos ignorar. Esse é nosso
jeito de fazer-nos notar. Estamos fora de controle, infringindo nossas próprias regras.
Estamos raivosos e somos capazes de tudo”.
Situação 3. Na manhã do dia 27 de agosto de 2003, as aulas foram suspensas
para que os adolescentes permanecessem trancados nos quartos, como forma de
punição. A justificativa dada às professoras foi que a Unidade estava sem água, fato que
pude comprovar não ser verdadeiro.
Por outro lado, a escola se constituía como a representante do sistema educativo
e, ainda que minimamente, cumpria seu papel de instância transmissora dos produtos da
cultura. Durante reunião realizada no dia 28 de julho de 2003, com objetivo de planejar
o ensino para o semestre letivo que se iniciava, ao fazer a avaliação do trabalho da
escola, a coordenadora pedagógica ressalta que os alunos alfabetizados na Unidade de
Internação acompanhavam melhor o ciclo II do Ensino Fundamental, do que os alunos
alfabetizados fora.
Os professores se tornam referência para os alunos internados. Durante um
HTPC realizado no dia 24 de setembro de 2003, no qual as professoras discutiam - “o
que é ser educador na FEBEM”? - apareceram várias falas de que o aluno “se expõem”
(fala de professora) mais para o professor do que para qualquer outra pessoa dentro da
47
Unidade. O professor é quem está mais próximo do aluno. Outra professora relata o
quanto aprendeu com seus alunos: “Como pessoa eu aprendi muita coisa. O
relacionamento com esses meninos aprimora nossa visão política”. Apesar de
ressaltarem alguns aspectos positivos do trabalho docente na FEBEM, não deixaram de
enfatizar a descontinuidade do processo educativo acarretada por situações exteriores à
sala de aula.
Os representantes discentes, durante uma reunião realizada com objetivo de
avaliar o trabalho dos professores, avaliaram positivamente o grupo docente que atuava
na Unidade. Algumas falas em relação às professoras: “A professora é educada com a
gente, explica bem a matéria, ‘troca idéia’”
23
; “ela é super humilde, educa direito”;
“A lição é boa, ela explica a matéria para todo mundo, traz novidade, ‘troca
idéia’;“trata todo mundo bem, procura entender a dificuldade de cada um, passa
coisas que fazem a gente pensar”; “ela é igual uma mãe para mim. Se esforça para
ensinar todo mundo, insiste com quem não tem interesse”; “no mundão eu não
aprendia, aqui aprendi rapidinho”. As maiores queixas foram sobre o excesso de
conteúdo ensinado: “passa lição demais”.
***
Durante o período que freqüentei esta Unidade de Internação, pude observar a
dinâmica de todas as salas de aulas, da aceleração ao Ensino Médio.
Existiam na Unidade três classes de aceleração: I, IIA e IIB.
A classe de aceleração I (Ac.I) correspondia ao primeiro e segundo anos do ciclo
I do Ensino Fundamental (E.F.-I) e as acelerações II (AC.II) ao terceiro e quarto anos.
As classes de aceleração diferiam consideravelmente das demais. Ao contrário
das salas de Ensino Fundamental II (5º a anos), as classes de aceleração tinham um
único professor, que permanecia com elas durante todo o ano letivo.
Os alunos da aceleração estavam iniciando o processo de alfabetização,
diferenciando-se entre os que possuíam alguma noção de leitura, escrita e cálculo, e os
considerados analfabetos.
A aceleração I geralmente tinha por volta de quatro, cinco alunos, enquanto a
Ac. II tinha cerca de oito alunos em cada sala.
23
Foram feitas alterações na apresentação das falas dos adolescentes para uma melhor compreensão do
estilo oral dos relatos.
48
Os alunos das acelerações II eram divididos por nível de conhecimento, ou seja,
na Ac.II-A encontravam-se os alunos considerados mais “fortes”, enquanto que na II-B
os mais “fracos”. As duas professoras da Ac.II Márcia e Marisa - se dividiam pelas
duas classes, sendo que Marisa era responsável pelas aulas de português, história e
ciências e Márcia pelas aulas de matemática e geografia. As docentes eram bastante
afinadas na prática escolar, apesar de terem características de personalidade
completamente diferentes, fato que se refletia na forma com que lidavam com os alunos.
O que as aproximava era, principalmente, o jeito maternal de tratá-los, sempre os
acompanhando de perto. Os alunos dessas classes recebiam um tratamento mais
infantilizado, como se fossem crianças de sete a dez anos, idades esperadas para a
realização do E.F.-I. As duas professoras citadas tinham o costume de dizer que os
alunos da aceleração eram mais ingênuos do que os demais ingenuidade com uma
conotação de bondade.
Os alunos gostavam das duas professoras e, aparentemente, da forma como eram
tratados, pois, apesar de, em alguns momentos, rirem e debocharem do tratamento a eles
destinados, reforçavam o comportamento delas ao corresponderem às suas expectativas
e se comportarem da forma que elas desejavam. Com grande freqüência comentavam
sobre a atenção e carinho que elas lhes despendiam; atitudes que destoavam do
tratamento institucional.
Curioso notar que o comportamento desses meninos diferia, consideravelmente,
dentro e fora de sala de aula. Quando na presença das professoras aparentavam certa
ingenuidade, demonstrando um comportamento mais infantil. Porém, quando no pátio
com os demais internos, assumiam outra postura, muito mais adulta e agressiva.
O E.F.-II estava distribuído em seis salas de aula, com grande concentração de
alunos nos três primeiros anos: quinto, sexto e sétimo.
Até o final de 2003, o quinto e sexto anos compunham as turmas de aceleração
III, enquanto que o sétimo e oitavo equivaliam à Educação de Jovens e Adultos (EJA)
ou o antigo supletivo. No ano de 2004, após resolução da Secretaria da Educação, as
classes de aceleração III e a EJA foram extintas, virando classes regulares.
As turmas de E.F.-II eram mais numerosas, variando entre 11 até 24 alunos, num
sexto ano superlotado que precisava ser dividido em dois, mas que assim permaneceu
por falta de sala.
Como salas regulares, os alunos tinham aulas de português, matemática, história,
geografia, ciências, inglês e artes.
49
Muitas professoras lecionavam em diversas salas, sendo que duas delas
chegavam a dar aulas de uma determinada disciplina em todas as classes (do quinto ano
do Ensino Fundamental ao Ensino Médio), como acontecia, por exemplo, com a
professora de matemática e a de inglês. Apesar disso, o quadro de professores nunca
estava completo, necessitando sempre da presença de uma ou mais professoras
eventuais, que podiam substituir professor de qualquer disciplina, mas como não eram
especialistas das áreas, geralmente levavam atividades corriqueiras para os alunos
realizarem, como palavras cruzadas ou exercícios de raciocínio lógico. A presença de
professora eventual era constante.
No início do ano letivo de 2004, poucos professores se inscreveram para dar
aulas na FEBEM-SP, fato que resultou na falta de professores para todas as disciplinas.
A U.I. X, em março de 2004, contava com apenas cinco professores, para um total de
106 alunos. A situação se regularizou no início de maio, após várias atribuições de
aulas.
Como o número de alunos cursando o Ensino Médio era bastante reduzido
(cerca de 12 alunos no total) existiam apenas duas salas para abrigá-los, sendo que uma
delas se tornou classe multisseriada, pois contemplava os alunos do 1º e anos do
E.M., enquanto que a outra era para os alunos do ano, com média de 4 alunos,
durante todo o ano letivo.
O baixo mero de alunos no final da trajetória escolar revela a relação que os
adolescentes e jovens, que por passam, têm com a escola: descontinuidade, fracasso,
abandono. Relão vivenciada não só por eles, mas por grande parcela da população em idade
escolar que freqüenta o sistema público de ensino brasileiro.
***
Os professores da FEBEM vivem o dilema cotidiano de serem funcionários de
uma escola da rede estadual, mas que lecionam dentro de uma instituição com
características e cultura prisional. Precisam atender às normas, gidas e restritivas, da
Unidade, que na prática é quem controla o processo de escolarização. É a “casa” quem
decide quando haverá aula e como essa pode ser realizada. No próximo capítulo serão
apresentadas as versões das duas professoras entrevistadas sobre a forma como
concebem seu trabalho na escola da FEBEM-SP.
50
CAPÍTULO III: COMPONDO O QUADRO DA ANÁLISE
III.1. As entrevistadas
Apresentando Angela
Angela Dias
24
é Bacharel em Letras, com habilitação em Português-Inglês e
pedagoga, com habilitação em administração escolar. Atualmente, dá aulas de português
e inglês para turmas do Ensino Fundamental II e Ensino Médio (quinta série ao terceiro
colegial). Tem 47 anos, é casada e mãe de duas filhas adolescentes. Seu marido também
é professor.
No plano de carreira do Quadro do Magistério do Estado de São Paulo, sua
situação funcional é descrita como “Ocupante de Função Atividade” (OFA) situação do
professor da rede estadual de ensino que não é concursado, mas, contratado pela rede no
início de cada semestre letivo. O OFA está vinculado à rede estadual de ensino
enquanto aulas. Se não lhe forem atribuídas aulas no início do período letivo, o
professor perde o vínculo, tendo que se reinscrever na Diretoria de Ensino para
admissão no ano seguinte
25
. No ano de 2006, Angela decidiu não dar aulas na FEBEM e
acabou perdendo o vínculo com o Estado.
Angela teve uma longa trajetória profissional até iniciar sua carreira docente,
cerca de cinco anos, quando se viu na necessidade de dar aulas para manter o padrão
econômico da família. Antes de tornar-se professora, trabalhou mais de vinte anos no
setor administrativo “trabalho em escritório” - tendo iniciado aos quinze anos como
datilógrafa e chegado a relações públicas do IPTE (Instituto de Pesquisas Tecnológicas
do Estado).
Depois de formada, em 1985, a carreira docente não despertou interesse:
Eu me formei em 84, 85 e na época eu prestei concurso, passei para o
Estado, mas eu trabalhava, vários anos inclusive, então eu tinha
trabalho fixo e tudo mais. Aliás, nesse trabalho eu fiquei praticamente
vinte anos da minha vida. Então, acabei não indo mesmo atrás desse
24
Nome fictício escolhido pela entrevistada.
25
Para saber mais sobre as características e condições do OFA consultar o Estatuto do Magistério do
Estado de São Paulo.
51
assunto. Eu prestei concurso, passei, mas nem acompanhei porque era
recém-formada, não tinha pontuação alguma. Até fui ver e tal, mas era
uma coisa, na época, para mim, muito distante. Eu não tinha interesse,
na verdade, de deixar o que eu estava fazendo. Eu investia na
carreira, na parte administrativa, de relações públicas que me
interessava. (...) Então, este lado eu não desenvolvi naquela época. Eu
mantive o que eu fazia e fui procurando especializações naquilo que
eu precisava profissionalmente na época
26
.
Por volta de 1995, dá-se o ingresso na carreira docente, por motivos
econômicos:
Depois... em 95 mais ou menos, houve grandes mudanças, políticas
inclusive, e a área que eu trabalhava foi uma das várias que sofreu um
corte quase que total de pessoal. (...) com duas adolescentes e depois
com o meu marido também mudando de carreira - ele também é
professor e também trabalhava em outra área a gente teve que
adequar a situação, pelo menos pra manter o que existia, isso em
termos financeiros mesmo, então a possibilidade que se abriu foi dar
aula...
Essa mudança profissional não foi tranqüila:
Praticamente acabei indo para essa área, primeiro porque eu tinha
formação e tinha essa possibilidade e, segundo porque realmente
apareceu oportunidade. Eu fui, aconteceu... Quando eu peguei essa
primeira sala, o pessoal meio que insistiu, porque eu fiquei cheia de
preocupação de pegar eu falava: mas eu não tenho experiência
nenhuma...
- Não, professora, vai lá. Começa. É uma sala só (risos).
26
Algumas modificações foram realizadas a fim de tornar mais acessível ao leitor o estilo oral das
informações apresentadas.
52
Então, foi assim de uma... nossa! Pra mim foi uma situação difícil, eu
diria. E... acabou acontecendo. E daí, não parei mais. peguei uma,
peguei outra e foi indo...
Como professora iniciante, sobraram para Angela aulas rejeitadas pelos colegas:
Eu peguei na verdade uma única sala de aula, Ensino Médio. E uma
única sala que ninguém quis. Na verdade, eu peguei essa sala no mês de
junho e, por incrível que pareça, foi uma experiência bastante
interessante. (...) era aula de inglês para o Ensino Médio.
A situação acima descrita é comum a professores iniciantes. Como não são
concursados, os interessados em dar aulas devem fazer sua inscrição em uma Diretoria
Estadual de Ensino, colocando informações sobre sua formação e declarando seu
interesse em lecionar. Quando surgem aulas a serem atribuídas, em qualquer período do
ano letivo, os professores inscritos podem apresentar interesse por elas, assumindo as
aulas. No geral, quando esse processo ocorre após o início do ano letivo, restam as aulas
ou classes abandonadas pelos professores titulares.
Como imaginado por Angela, os poucos anos de trabalho como docente não lhe
garantiam uma boa colocação no momento da atribuição de aulas, visto que esta é feita
segundo regras classificatórias para os docentes inscritos em uma determinada Diretoria
de Ensino. A classificação é determinada pela situação funcional (os primeiros
professores a escolherem as aulas ou classes são os professores titulares; os segundo são
os estáveis e celetistas e, por último, os “ocupantes de função atividade”); pela
habilitação conferida por diploma; pelo tempo de serviço e por títulos (certificados de
aprovação em concurso público e títulos de mestre e doutor)
27
. Na prática, o tempo de
serviço é o que mais pontua para a classificação. Sua baixa pontuação classificatória fez
com que procurasse projetos alternativos à sala regular, como as telessalas
28
.
27
Para maiores detalhes sobre a atribuição de aulas e classes consultar o artigo 45 da L.C. 444/85. Todo
início de ano, a Secretaria Estadual de Educação divulga os critérios de atribuição específicos para aquele
ano letivo.
28
As telessalas são modalidades de ensino criadas nos cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
São classes destinadas ao ciclo II do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, sendo que para a conclusão
do primeiro nível de ensino as teleaulas não devem ultrapassar dois anos e para o segundo, três semestres
letivos. Os alunos matriculados devem ter no mínimo 14 anos para o E.F. e 17 anos para o E.M. O
professor é denominado de Orientador da aprendizagem. Para maiores informações, consultar a
Resolução SE Nº 181/2002.
53
Essa situação faz com que muitos professores da rede pública encontrem
trabalho em escolas e projetos com os quais não se identificam, o que acarreta prejuízo a
todos, professores e alunos:
(...) como eu não sou uma professora estadual titular, eu sou uma OFA
(riso), você tem que ir no ano seguinte se inscrever, fazer todo o
processo de atribuição para ver se você consegue pegar aula em
fevereiro, que é o começo do ano letivo, para, inclusive, não perder o
vínculo, não deixar de receber, assim por diante. Então, o ano seguinte,
eu me inscrevi em telessala, que era já um contexto que me interessava.
(...) no ano seguinte eu consegui aula, vamos dizer a uma hora, meia
hora ou coisa assim de casa, que mudou totalmente a minha vida...
Num colégio que eu não conhecia, peguei aula à noite, que eu não
queria (riso). De qualquer forma, consegui me adaptar em telecurso,
que é uma outra... nossa! Uma outra situação bem diferente de uma
quinta série.
Angela se interessa pelo telecurso por ser um projeto diferenciado, no qual
poderia adquirir novas experiências, e identifica-se com o público trabalhado. Descreve,
porém, a complicada realidade das telessalas, onde muito conteúdo deve ser ministrado
em pouquíssimo tempo, sinalizando a precarização do ensino:
O telecurso pega um público que já trabalha, pessoas que pararam de
estudar e que têm, praticamente... alguns até da minha idade,
quarenta e poucos anos, trinta e poucos anos, enfim, às vezes até mais.
Ou que parou de estudar ou que está trabalhando e precisa de um
diploma; a maioria trabalha. Então, é extremamente complicado, porque
eles têm muitas dificuldades na escrita, na leitura, na interpretação, na
assimilação, na aprendizagem, até porque tem aquele período, o
duas horas de aula por dia, à noite, todos os dias. Não é obrigatória a
freqüência, mas são obrigatórias as quatro avaliações durante o ano.
Ou seja, se ele não vai para a sala, ele tem que, de qualquer forma,
acompanhar pelo livro em casa... uma idéia geral de Ensino Médio
54
ou Fundamental? Dá. Porém, é muita informação em pouco tempo.
Então, é complicado também.
Passada a insegurança inicial, Angela se depara com outra dificuldade na
carreira docente: ela caos e falta de seriedade no quadro educacional, características
que ela vê como opostas às suas qualidades pessoais:
Eu deparei com um quadro na educação que não batia muito com meu
jeito de ser. Por que? Porque eu sou uma pessoa detalhista, seriíssima
29
nas coisas que eu faço, extremamente organizada, uma pessoa que se
planeja. Tudo que eu faço eu planejo direitinho. eu vou olhar se está
tudo certinho. Eu vou, eu volto, olho...
Além da desorganização e falta de seriedade, a cultura do magistério também lhe
parecia estranha. Viu pessoas com muito tempo de carreira e fechadas ao novo.
Angela dá muito valor à experiência de vida, aos acontecimentos pessoais,
ressaltando a importância de ter abertura diante do mundo. Em vários trechos da
entrevista, menciona a experiência pessoal como determinante da forma como atua e se
relaciona com os alunos.
A mudança profissional para a carreira docente, apesar de ter sido determinada
por necessidade material, é abraçada por Angela, que descobre o gosto pelo trabalho
como professora na convivência com os alunos:
Então, acabei indo parar nessa área, em função da necessidade do
momento, necessidade financeira, mais especificamente. Do meu lado
pessoal e profissional havia mais insegurança talvez, porque não tinha
experiência, não porque não gostasse. Porque a experiência em si
acabou sendo e é muito boa. Eu gosto muito, gosto muito de estar com
os alunos.
A ida de Angela para a FEBEM se deu por intermédio do convite de uma amiga
que lecionava na instituição. Ao tomar conhecimento de que precisavam de um
professor com urgência, Angela marca com a diretora da escola responsável pela
29
As palavras em negrito demonstram ênfase no próprio modo de falar da professora.
55
FEBEM, à época, para conhecer a instituição. Neste primeiro momento, ficou receosa
com o que viu e, ponderando sobre as características do trabalho, a responsabilidade que
deveria assumir e a distância de sua casa, resolveu não aceitar as aulas. No ano seguinte
à sua primeira visita à FEBEM (2003), inscreve-se para o processo de atribuição de
aulas na instituição, passando a lecionar no local até o final do ano letivo de 2005.
Na FEBEM, pude acompanhar Angela de perto em duas salas de aula – 5ª A e
B, em seu primeiro ano de trabalho na instituição.
Nos dois semestres em que a acompanhei em seu trabalho (segundo semestre de
2003 e primeiro semestre de 2004), pude perceber o compromisso desta professora com
seus alunos e sua dedicação à atividade docente. Em meio a inúmeras atividades – aulas
na FEBEM, participação em cursos de capacitação de professores, aulas de
aperfeiçoamento docente na Cultura Inglesa que tomavam todo o seu tempo durante a
semana e vários bados no mês, Angela não deixava de preparar as aulas, pesquisar
assuntos de interesse dos alunos ou ampliar as informações contidas no caderno de
referência para as aulas de línguas (portuguesa e inglesa), do projeto “Ensinar e
Aprender”
30
.
O compromisso de Angela é reconhecido pelos alunos que, no geral, fazem uma
boa avaliação da professora e têm muito respeito por ela. Tal fato pôde ser verificado
durante uma avaliação realizada em 12 de dezembro de 2003, na qual foi pedido para
que os alunos avaliassem seus professores, respondendo a algumas questões específicas.
Sobre Angela, os alunos que participaram da avaliação disseram: “Ela é educada
conosco. Passa e explica bem a matéria; respeita a gente; troca idéia. É boa
[professora] no português e no inglês. Tem paciência”. Participa ativamente dos
horários de HTPC, questionando ou dando idéias para a solução de problemas do grupo
docente. Queixa-se da perda de tempo com assuntos e situações irrelevantes e da falta
de aulas na instituição.
Mesmo tendo acompanhado Angela por quase um ano, vim conhecer sua
história de vida e suas concepções sobre o trabalho que faz durante a realização da
30 Projeto pedagógico utilizado para as classes de aceleração do ciclo II do Ensino Fundamental, nas
Unidades de Internação da FEBEM-SP. Vide Resolução SE-142 de 22/12/2003. Material elaborado pelo
CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e cedido pela
Secretaria da Educação do Estado do Paraná à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, para
impressão e distribuição.
56
entrevista, fato que demonstra a atribulação vivida pelos profissionais dentro da
FEBEM-SP, que dificulta a troca de experiências entre eles
31
.
Apresentando Marisa
32
Marisa é formada em Pedagogia e fez o magistério. aulas para classes do
ciclo I do Ensino Fundamental, em Unidades de Internação da FEBEM-SP. Tem 57
anos, é divorciada, mãe de três filhos e tem uma neta.
Assim como Angela, seu enquadramento funcional na rede estadual de educação
é como Ocupante de Função Atividade (OFA).
Sua carreira profissional resume-se basicamente às aulas na FEBEM, iniciada
após o término do casamento, por volta dos 45 anos. Ao ser solicitada a contar sua
trajetória de trabalho, inicia o relato falando sobre o casamento e sua vontade de voltar a
estudar. Enquanto casada tinha cursado até o sexto ano do Ensino Fundamental II e seu
marido a impedia de continuar os estudos. Foi buscando formas de entender seus
problemas matrimoniais que Marisa decidiu voltar a estudar. Resolve então retomar os
estudos e matricula-se numa escola municipal para cursar a sétima e oitava série do
E.F.II., em supletivo. Ao final do ano, toma conhecimento de que estava aberta a
inscrição para o magistério e vislumbra a possibilidade de continuar seus estudos,
apesar da discordância do marido e dos problemas conjugais criados por esta decisão.
Terminado o nível médio, cursou o magistério.
Com a separação, por volta dos 45 anos, Marisa começa a trabalhar, porque
precisava de recursos financeiros para se manter. Naquele momento, vai trabalhar com
venda de tecidos, em pronta entrega, pois tinha condução própria e uma amiga
vendedora lhe “abriu os caminhos”. A necessidade de se manter financeiramente e a
vontade de provar (a si mesma e ao ex-marido) que podia viver com recursos próprios
impulsionou o trabalho. Cansada de trabalhar como vendedora resolve, após algum
tempo, procurar a 16ª Diretoria de Ensino para se inscrever como professora.
Considera que a ida à FEBEM foi provida por Deus, uma vez que não foi
iniciativa sua. No momento da inscrição na Diretoria de Ensino encontrou-se
31
Esta dificuldade é vivenciada também pelos funcionários da FEBEM-SP e por todos os profissionais de
escola pública, como demonstrado por nossa experiência profissional e pesquisas diversas.
32
O nome de Marisa, assim como os demais que aparecem no decorrer do relato são fictícios.
57
casualmente com a supervisora de ensino na FEBEM, que, nervosa, procurava por uma
professora com urgência, pois a atual havia resolvido abandonar as aulas.
A supervisora é informada pela secretária da Diretoria que Marisa acabara de
fazer inscrição:
Você quer trabalhar na FEBEM?(pausa)
Me pegou tão de surpresa! (risos).
Então, eu falei: Eu quero. (risos)
Eu não sabia nada de FEBEM. Não, nem pensei.
Porque precisava trabalhar. Aí, eu nem pensei.
Neste primeiro encontro, a supervisora mencionou os infindáveis “não pode”
que existem na FEBEM e descreveu o perfil adequado de professor para dar aulas nesta
instituição:
(...) ela voltou pra conversar comigo e falou para mim o que estava
acontecendo, da professora que estava lá. Que não podia ter medo, que
não podia isso, não podia aquilo, não podia aquilo outro... eu falei:
Andréia, eu nunca trabalhei, nunca dei aula. Ela falou: “Mas, você quer
trabalhar?Eu quero pessoa que não tem vício, que nunca trabalhou aqui
fora, que não é cheia de costumes”. Que a pessoa quando chega lá é
melhor que ela chegue... como se diz? Sem maldade, sem maus
costumes, porque as professoras aqui de fora discriminam os alunos.
Quando chegam dentro elas começam a comparar. E quando você
nunca trabalhou, segundo a Andréia, naquela época, ela achava que era
melhor, porque daí você ia começar o trabalho e você ia passar a
enxergar aquela pessoa como aluno, ia criar amor num trabalho que
você ia começar a fazer a partir dali (pausa). Ela disse para mim que
preferia.
Sua experiência profissional como docente é definida por seu trabalho na
FEBEM-SP, iniciado no dia 28 de maio de 1998, como fez questão de relatar. aulas
para as classes de Aceleração II (correspondentes ao e anos do Ensino
Fundamental I).
58
Deu aulas também em turmas de recuperação intensiva em duas escolas que,
segundo ela, atendiam a moradores de favelas. Ela considera que a experiência
vivenciada nessas escolas trouxe uma grande contribuição ao seu trabalho, pois, por
meio dela, percebeu a importância e os benefícios da realização de um trabalho
conjunto, compartilhado. Inicia-se aí, sua parceria de trabalho com Márcia (professora
de classe de aceleração II, como descrito no capítulo IV), que se estendeu às aulas
ministradas na U.I. X
33
.
(...) numa recuperação intensiva de férias, eu e a Márcia fomos
trabalhar no João Cruz Costa, no Jaguaré, com crianças da favela do
Jaguaré, que a população toda daquela escola vem daquela favela. Uma
escola pequenininha, uma gracinha! Bonitinha, eu gosto muito de lá. A
escola tinha, na época da recuperação, acho que 47 alunos. Então, a
diretora fez duas turmas. Uma ficou comigo e a outra com a Márcia. Foi
feita uma capacitação e a gente tinha que dar conta de um conteúdo em
30 dias. Então, o que nós fizemos eu e a Márcia - você fica com os
alunos das 7 horas da manhã até meio dia. Nossa, é muito tempo! Eles
ficam sem suportar você e você fica assim... Então, a gente fazia o quê?
Era cansativo do mesmo jeito: ela ficava meio período com uma turma e
no intervalo a gente pegava e trocava de sala, para eles não ficarem
cansados da gente. Em algumas atividades a gente juntava os 47 numa
sala e fazia tudo junto(...) Então, a gente dividiu as turmas e fez um
trabalho muito legal. Esse foi um dos trabalhos que a gente fez junto.
Foi a partir da experiência de trabalho em “escolas de favelas” que Marisa
percebeu o preconceito de alguns professores em relação aos alunos pobres. É
contundente ao criticar a postura preconceituosa dos docentes e faz uma relação direta
entre essa postura e a ida de adolescentes e jovens para a FEBEM:
(...) eu fiz trabalho em recuperação intensiva de férias e eu trabalhei
uma época com o pessoal da favela da ponte Anhanguera. (...) e aqui na
João Cruz Costa eu trabalhei também com pessoal da favela. Então, a
gente percebe o que? Que a professora, quando o aluno chega na sala
33
Nome fictício da Unidade de Internação pesquisada.
59
de aula e ele não está limpinho, ela não chega perto dele. O garoto da
FEBEM, até mesmo os que chegam, eles chegam sujos, porque parece
que o cheiro está entranhado neles. Então, tem muito professor que não
quer chegar perto. Quando o aluno está na rua e vai para a escola, a
professora também não quer ficar perto. Quando a gente está em
capacitação, a gente ouve as professoras falarem assim: “Ai, eu dou
aula numa escola que todo mundo é limpinho” e não sei o que lá (tom
de desdém). eu falo: Puxa vida, que legal. pensou se Jesus Cristo
viesse morrer só por quem está salvo?! Não precisaria ter morrido.” Ele
morreu por quem? Por quem precisava. Não é verdade? Professor está
na escola pra quê? A gente conversa. A gente até tem uns atritos por
isso. eu falo: olha, por isso que, de repente, tem muito mais alunos
na FEBEM. Porque, quem sabe se um dia, um monte daqueles que estão
na FEBEM, que estiveram na sala de aula e ficou lá no canto porque era
da favela, porque era pobre, porque não tinha a mãe que mandasse
tomar um banhinho de manhã...
Marisa, aliás, faz críticas aos colegas de trabalho durante toda a entrevista.
Durante o período que pude acompanhá-la de perto em sala de aula, nos HTPCs e
momentos informais entre o grupo de professores, pude perceber o carinho que esta
professora tem por seus alunos e a indignação demonstrada diante da postura de alguns
colegas.
Durante a avaliação de professores feita pelos alunos em dezembro de 2003, o
conceito mais atribuído à professora por seus alunos foi “ótima”. Dizem que ela procura
ajudar os alunos que sabem menos e a maior crítica feita a ela é que “passa muita lição”.
Acompanhei o trabalho de Marisa com as duas salas de Aceleração II, durante o
segundo semestre de 2003. Marisa dividia as turmas com Márcia, planejando as
atividades pedagógicas conjuntamente. Muitas vezes, em períodos sem aulas ou em
horários destinados a reuniões coletivas de planejamento, presenciei as duas professoras
planejando juntas, separadas do resto do grupo, suas atividades, trocando experiências,
queixas e preocupações.
60
III.2. As entrevistas
A leitura das entrevistas resultou na criação de três categorias de análise: o
trabalho docente; o sistema educacional; a escola na FEBEM. A divisão destas
categorias em sub-temas ou mesmo a separação dos demais temas abordados durante as
entrevistas é simplesmente didática, visto que ao falar de sua atividade as professoras
falam sobre toda a estrutura de ensino, a FEBEM, seus alunos, dificuldades e resultados
de seu trabalho. Os temas se atravessam e são interdependentes. A ultima categoria de
análise será apresentada no capítulo posterior, pois é o cerne desta pesquisa.
III.2.1. O trabalho docente
Acho que é muito difícil essa profissão...
Extremamente importante
eu acho que é extremamente importante,
mas difícil demais... (Angela)
Para as duas professoras entrevistadas, falar sobre o trabalho docente foi,
principalmente, relatar as formas criadas para ensinar, os objetivos que querem atingir, a
visão que têm de seus alunos. As dificuldades encontradas durante o processo e algumas
tristezas e alegrias vivenciadas fazem parte do “ser professor” no caso específico, do
“ser professor na FEBEM –SP”.
A distância entre o almejado e o que conseguem no dia-a-dia da sala de aula
ocupa grande espaço na fala das entrevistadas. Relatam inúmeras dificuldades
encontradas, sejam de caráter institucional, sejam de alcance entre o que planejam e
aquilo que é assimilado pelos alunos.
Angela fala da dificuldade no ensino da língua inglesa:
Bom, essa época do Architiclíneo
34
foi isso; praticamente um ano. A
experiência de inglês com os alunos de quinta série... Boa, mas,
resumindo, eu usei até material do Cultura Inglesa com eles, de quinta
série. (...) Eu trabalhei o conteúdo por dois bimestres, mais ou menos. A
hora que você vai buscar o conteúdo desse período, você que quatro,
34
Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Prof. Architiclíneo dos Santos.
61
cinco, seis alunos pegaram, mas a grande massa, infelizmente, consegue
aprender pouquíssimo. Então, essa é uma dificuldade grande na língua
inglesa, o que eu estou vendo até hoje, inclusive. A assimilação, a
aprendizagem é muito difícil, principalmente na FEBEM. Por quê? A
primeira coisa que os alunos colocam, eles mesmos colocam: “Mas,
professora, eu não sei nem português, como é que eu vou aprender
inglês...” Então, é uma colocação crucial. Para mim, que sou
extremamente séria, é um drama, um drama! São questões
problemáticas. Ainda não achei uma solução não, mas estou
maquinando esse assunto, muito profundamente – como ensinar inglês?
Como ensinar inglês... que é uma coisa difícil...
Não é em inglês que os alunos têm dificuldade. Angela relata também o
quanto seus alunos não têm o hábito da leitura:
(...) trabalhar textos, leitura é, na minha opinião, difícil. Porque o que
se sente de forma geral: os alunos não têm muita vontade de ler, isso é
uma dificuldade mesmo e isso não é quinta série, é qualquer série
(risinho), inclusive colegial. Se vo pega colegial à noite é porque é
noite e todo mundo trabalha. Se pega de manhã é porque realmente o
interesse é outro. Então é difícil. O que eu procuro fazer é sempre
buscar temas que digam... que digam alguma coisa para esse aluno e
trabalhar em cima disso. Então, eu vou trabalhar textos já escritos,
segundo um tema e buscar redação segundo um tema, alguma coisa que
eles tenham experiência ou que pelo menos conheçam, para poderem
falar, escrever inclusive. Então, isso funciona. Ainda assim, às vezes,
você tem dificuldade porque parece que, com o perdão da palavra, i
ler (risos). Eu não gosto de usar o termo preguiça, que eu acho que é
muito pesado colocar preguiça para aluno, para adolescentes, enfim.
Mas, de qualquer forma, eu procuro trabalhar sempre buscando um
tema que seja de interesse deles. (...) Então, eu procuro reunir ao longo
de planejamento, de replanejamento do curso, das aulas. Eu vou
variando.
62
Apesar de buscar formas diferenciadas de ensino e planejar previamente as
atividades, os resultados obtidos por Angela ficam aquém do almejado:
(...) de tudo que eu planejo, proponho, eu consigo trabalhar... se muito,
50%... Se desse para trabalhar... Se fosse 70%. Língua portuguesa ainda
flui melhor, bem mais, bem melhor, mas a inglesa ainda está difícil...
Então, montei o planejamento com o volume introdução e o I de língua
portuguesa, no “Ensinar e Aprender” e, na paralela, fui colocando
outros textos, textos variados, usando história em quadrinhos, entre
outras coisas, sempre me preocupando em deixar claro para esses
alunos a diferença entre um texto narrativo e um dissertativo, um
instrucional. Então, trabalhar os diferentes tipos de texto que é o que eu
vejo que mais flui em tudo... Nas séries, dentro ou fora da FEBEM,
qualquer prova de avaliação contempla isso... Trabalhar as formas
verbais, um pouco. A produção de texto, bastante; leitura; então, me
voltei mais para isso – tive dificuldades.
O professor encontra diversos obstáculos e desafios para a realização de seu
trabalho. Cenas de violência em sala de aula não são apenas encontradas na FEBEM,
como relata Angela:
(...) eu tive uma situação particular... que foi uma situação que me
balançou muito. Numa dessas quintas séries houve, um dia, um
acontecimento onde três meninos... Três meninos entraram na sala e
começaram a bater em um que estava sentado... Bater mesmo, bater de
tapa e tal... E aquilo pra mim foi assim, um... Impacto horrível! Porque
eu sempre falo, além das colocações, olha tem coisas que não mudam.
Palavrão em sala de aula é não, aqui não é lugar pra isso. Bater,
brincadeira de mão essas coisas é Nao! Vocês vão falar alto, fazer uma
bagunça, a gente vai conversando, agora essas coisas: Não, em sala de
aula não, não é lugar... Quando eu vi aquilo (riso), Meu Deus!
Nesses momentos, o professor fica em dúvida sobre qual é a melhor forma de
lidar com a situação. A cena violenta é sentida pela professora como um disparate, um
63
desrespeito e um desacato à autoridade docente. A quem atribuem a responsabilidade
pelos eventos que ocorrem em sala de aula?
Aí, intercedi, fiquei muito brava, mandei os quatro para a direção.
Porque achei que tinha sido extrapolado. Quê que é isso?! Aí, para
minha surpresa, depois de uns 20, 30 minutos voltam os quatro com uma
das diretoras - que lá tinham três na época - e a diretora entrou, colocou
os quatro de volta na sala e virou para mim e falou que o assunto tinha
que ser resolvido em sala de aula com o professor... Falou um monte
para os alunos, enfim... Foi uma situação que trouxe assim duas lições...
Na hora eu fiquei arrasada, porque eu achei que foi uma postura...
muito indelicada da parte da direção. Registrei em ocorrência tudo que
tinha acontecido e aceitei depois os alunos (...) A lição foi a seguinte: eu
acho que a direção não deixou de ter sua razão, mas acho que ela foi
realmente indelicada e inconveniente em ter se colocado daquela forma,
me expondo daquela forma. Então, tomei a lição, sim, é verdade. Os
assuntos que acontecem em sala de aula devem ser resolvidos em sala de
aula.
Ao mesmo tempo em que se sente na obrigação de dar conta do que ocorre em
sala de aula, Angela questiona a possibilidade de fazê-lo frente ao grande número de
alunos. A superlotação das salas nas escolas públicas é um problema comum, antigo e
sério que contribui para a má qualidade do ensino:
Então... minha conclusão disso tudo é: até que ponto, até que ponto o
professor tem que resolver as coisas dentro da sala de aula, tendo 40,
50, às vezes, alunos dentro da sala de aula? Primeiro que isso é
inconcebível! Para você dar a atenção necessária para esses alunos, o
máximo que você tenha 30 máximo! Para você ter algo razoável.
Então, também aí, é um outro buraco negro (riso) dentro da educação.
(ANGELA)
64
Frente a uma estrutura de ensino fragmentada, o professor sente-se sozinho. Não
encontra apoio nas instâncias hierárquicas superiores, no setor administrativo, entre os
colegas:
E o que acontece... Quando você vai ver, na experiência do dia-a-dia, o
professor, na verdade, está completamente , infelizmente... E isso é
totalmente... (riso nervoso) Bate totalmente de frente com a linha de
educação, com a pedagogia, qualquer pedagogia, nem vou citar nomes!
Mas, gente! Educação: o nome diz... está certo? Ação de educar.
Agora é um conjunto, não é um ilhado lá... Então, o quê faz parte do
contexto escolar: é o professor, é o carinha lá... o inspetor, é o que fica
na porta, é o povo da secretaria, da biblioteca, da lanchonete, os pais, a
direção, não? Então... A supervisão na área também (riso), os pais
presentes isso é educação e isso é um conjunto. Então, foram coisas
que eu fui... Somando e tirando disso as experiências, as lições e
procurando... Venho procurando até hoje, aplicar, lembrar dessas coisas
sempre para poder atuar de uma forma possível... (ANGELA)
Marisa, no trabalho compartilhado com Márcia, tem essa solidão diminuída:
E eu trabalho com a Márcia e trabalhar com a Márcia é muito bom,
porque a gente se ajuda. Eu encontro alguma coisa que eu acho que é
legal para ela, eu já separo; ela encontra alguma coisa que ela acha que
é legal para mim, ela separa.
Diante da solidão vivenciada no dia-a-dia, o trabalho docente torna-se algo
desgastante, que traz sofrimento. O relato de Angela é contundente:
Você que eu tenho praticamente quatro anos de exercício e...
Infelizmente, eu digo isso com muita é... Muita dor, num sentido mais
profundo... Infelizmente... Você entra com uma energia e... O que vai
acontecendo vai minando essa energia e olha que a minha experiência é
grande! Minha cabeça, minha visão é bem ampla... E eu não penso só no
meu lado profissional não que eu acho importante mas eu penso
65
muito, muito nos alunos: o quê que vai ser deles? O que são eles? Para
onde eles vão?! Isso me preocupa profundamente e isso dói
profundamente (...)
Angela, faz uma análise da profissão; importante, porém tão desvalorizada:
Então, uma coisa importante para o professor, seja na FEBEM ou em
qualquer lugar, no meu ponto de vista, é você estar centrado. E, hoje em
dia, isso precisa, oh! Suar, trabalhar para se manter centrado, porque...
ele [professor] tem todo o contexto da problemática do buraco da
Educação. O contexto social de desvalorização da profissão; o contexto
seriíssimo que é a remuneração, que não é adequada e para você se
manter nessa missão, você, muitas vezes, tem que dar aula de manhã, de
tarde e de noite o que torna qualquer professor in-fe-liz! Porque ele
não consegue cumprir a sua tarefa da forma que ele gostaria e ele se
frustra e ele não consegue manter centrado; então, uma coisa leva a
outra.
Acho que é muito difícil essa profissão, sim. Extremamente importante
– eu acho que é extremamente importante, mas difícil demais...
Marisa não faz uma análise direta sobre a profissão docente, porém, em alguns
trechos, fica clara a contribuição libertadora que acredita dar, para a vida dos
adolescentes, por meio de seu trabalho como alfabetizadora:
Eu falo para eles que a única coisa que a gente tem e que ninguém toma
da gente, é o aprendizado. Isso é da gente. O que eu aprendi, eu ensino.
Mas, se eu passasse a minha vida inteira ensinando, eu não ia conseguir
ensinar tudo que eu aprendi. Porque isso é coisa de cada um; é coisa
que a gente vai acumulando. Eu ensino ler e escrever, mas tem um monte
de coisas que eu aprendi que eu nem sei se algum dia eu vou
conseguir passar. E assim, é coisa muito da gente. Nenhum ladrão
consegue roubar isso da gente. Ele pode roubar a vida, dinheiro, o
rádio, o carro; mas, o que a pessoa sabe [balança a cabeça
negativamente] ninguém tira, é teu. Então, eu falo da importância do
66
aprendizado para a pessoa. Da liberdade que a pessoa tem quando ela
aprende. Eu falo da importância; eu falo sempre, sempre, sempre
(pausa).
Diante de condições de trabalho desgastantes, Angela e Marisa em na relação
que constroem com os alunos a possibilidade de encontrarem algum sentido para o
trabalho docente, criando estratégias de ensino e se aperfeiçoando como profissionais:
À parte de toda a pedagogia, de toda a estrutura de ensino, enfim, é a
relação com o aluno; essa acho que é uma marca muito pessoal minha...
Procurar trazer o aluno para perto; procurar ouvir o aluno; procurar
ver esse aluno como um todo e, a partir disso, estruturar uma relação e
uma forma de ensinar.
(...) procurando ouvir acho que esse é o ponto principal e crucial na
educação: é você ouvir esse aluno, porque, embora eu não tivesse
experiência em sala de aula, eu tenho uma grande experiência de vida e
tenho filhos também em idade escolar. Então, você reúne um conjunto de
fatos, de conhecimentos, de informações, para poder tirar disso alguma
coisa que ajudar esses alunos e que ajudar o professor enquanto
profissional, também. (ANGELA)
Eu vou trabalhar de acordo com as pistas que o meu aluno me dá. O que
ele me dá como diretriz – se ele me contar alguma coisa e se eu perceber
que para ele é importante aquilo, eu vou usar aquilo que ele me deu
como importante e a partir daquilo eu vou trabalhar. Se ele me falar da
cidade dele é a cidade dele; se ele me disser de uma rua, de uma
quebrada
35
”, de uma “mina
36
, sei de quem; do filho, sabe; de um
sonho; não importa, é aquilo que eu vou trabalhar. Se ele falar para
mim: “Senhora, porque a senhora não trabalha as famílias silábicas?”
Um garoto falou para mim. Eu peguei e falei: “Mas é claro que eu posso
35
Quebrada: é a expressão utilizada pelos internos para designar a comunidade onde moram.
36
Mina: o mesmo que menina, garota. Comumente utilizada para denominar a namorada ou garota com
quem estejam se relacionando no momento.
67
trabalhar”. Esse falou e todos os outros queriam isso, que ninguém
tinha coragem de falar. (MARISA)
No relato das duas professoras aparece o cuidado em planejar e preparar as aulas
de acordo com os interesses dos alunos a fim de que esses adquiram conteúdos e noções
mínimas. Explicita também, a concepção de educação que está por trás das estratégias
utilizadas por cada professora.
Angela faz questão de estabelecer com seus alunos algumas “regras de
convivência”, que a seu ver são indispensáveis, ainda que, segundo ela, a imagem social
dos jovens não represente esses valores:
Uma coisa que eu bati muito também, firmava muito, são as questões
assim básicas. Dizia a eles que algumas coisas nunca mudam. Então,
por exemplo: dizer bom dia, dizer boa tarde, como vai, com licença,
posso sair para ir ao banheiro? Então, são coisas simples e essas coisas
não mudam, não é? Algumas coisas básicas não mudam. Essas que eu
acabei de citar são algumas, no meu ponto de vista. Isso acaba
funcionando sim, embora a gente tenha aquele... meio que socialmente o
jovem está colocado de uma forma até desagradável para as pessoas
nesses aspectos, por causa também do uso exagerado, algumas vezes, de
gírias e tudo mais. Eles gostam, sim, de ouvir essas coisas e acatam.
Eles acham até... agradável – a forma deles, a forma deles, não é? E por
que não a gente fazer essa troca? Eu acho que isso é muito importante e
ajuda o jovem...
O relato de Angela sobre as regras que estabelece com os alunos remonta ao
sistema escolar moderno europeu, anterior ao século XVIII. A escola era entendida
como um dos principais ambientes de organização e difusão das ‘boas maneiras’ criadas
pela aristocracia como símbolo de civilidade e separação do povo (CAMBI, 1999).
Angela entende que seu principal objetivo como educadora é ajudar a criar nos
jovens consciência cívica, por meio da aproximação da sala de aula com a realidade,
ainda que na forma de discussões e debates:
68
Puxo bastante as questões de datas, de comemorações, datas cívicas que
eu acho superimportante buscar essa identidade, essa cidadania e jogar
isso para o dia a dia deles. Como é que a gente pode mudar isso? O quê
a gente pode fazer para modificar? Buscar um pouco a veia política que,
na maioria das vezes, parece que fica num outro mundo, muito distante
daquele da sala de aula. E não, o jovem precisa ter a consciência de que
é sim a partir dele que as coisas vão modificar e que a opinião e aquilo
que ele fizer vai influenciar em tudo, vai influenciar em tudo. (...) Agora
a grande missão que fica aqui com a gente é estar, pelo menos,
mostrando para ele, jovem, para esse adolescente, que ele tem voz e que
ele deve fazer uso dessa voz, mais rápido do que foi para nós enquanto
jovens. (...) Nós temos que fazer uso daquilo que temos e tentar melhorar
o que existe. Esse é um ponto que eu puxo bastante, no dia a dia com
eles. (Angela)
Para Marisa sua grande missão como professora é alfabetizar. Ela considera de
grande importância o trabalho que realiza com os adolescentes e jovens:
(...) E aí, o que é que eu faço para colaborar para que eles... aprendam
alguma coisa, fazer minha parte. Eu alfabetizo, então, eu... sei lá, é uma
responsabilidade muito grande. É difícil demais alfabetizar! É mais fácil
você alfabetizar um adulto, um velho, do que um adolescente. Uma
criança você alfabetiza no período certo porque ela como fala? ela
vem, ela está pronta para receber. Tudo que você ensina, uma criança
aprende. Se você ensinar o que é bom ela aprende, se ensinar o que é
ruim ela aprende também. O velho, ele passou pela vida, por uma
vida inteira e também, quando ele fala “eu quero aprender a ler e
escrever”, “eu quero entender algumas coisas”, ele vai porque ele
tem uma... uma... maturidade que faz com que ele também esteja atento
e ele aprenda. O adolescente não.
Marisa privilegia os aspectos práticos de sua experiência profissional, pois
concebe a relação teoria-prática como uma relação cindida, na qual a teoria é aquilo que
se encontra nos livros, nas bibliotecas e salas-de-aula da faculdade:
69
(...) porque assim, na faculdade, no magistério, a gente aprende a...
teoria. Os teus alunos, eles te ensinam a prática. É ele quem vai te
falando, do jeito dele, com o comportamento dele, ele vai me falando por
onde eu tenho que ir para alcançar o aprendizado dele. Então, assim,
não tem nenhuma mágica.
Angela também ressalta a importância da prática, porém sob outro aspecto, o
acúmulo de experiências pessoais que conduzem o trabalho docente
37
:
(...) eu tinha idéias também diferenciadas, mas não é porque eu tinha
experiência de educação porque eu tinha experiência de vida e de
vivência mesmo em outras áreas, em outros campos que abrem a sua
mente para uma série de possibilidades diferentes. Diferentes mesmo do
dia a dia (risos).
No relato dessas professoras transparece a seriedade com que encaram o trabalho
docente e o esforço que fazem para acolher seus alunos, utilizando-se de atividades
pedagógicas diversas, na tentativa de incentivar e ensinar, mesmo diante de tantas
dificuldades. A seguir serão apresentados trechos ilustrativos das tentativas enunciadas,
tanto por Angela, quanto por Marisa. Cada uma, a sua maneira, construindo
cotidianamente, na relação com seus alunos, o “ser professora”.
Angela, em sua luta constante pelo ensino de línguas:
A partir da língua inglesa você pode puxar, você vai ter o contexto
cultural de outro país, ou de outros, e você vai sempre associando,
sempre comparando ao que tem aqui. (...) E eles têm interesse, sim, em
como são os jovens de outro país, por exemplo; como que eles falam...
(...) Eu fiz esse ano de 2004, eu consegui fazer... na verdade, a partir de
um ditado, que era um texto chamado Meu retrato”, a partir desse
37
Arroyo, M. Em seu livro: Ofício de mestre: imagens e auto-imagens” faz uma análise sobre os
diversos aspectos que constroem a profissão docente. Nesse sentido, fala sobre a multideterminação da
formação do educador: “Carregamos a lenta aprendizagem de nosso ofício de educadores, aprendido em
múltiplos espaços e tempos, em múltiplas vivências” (2000, p.124). Além disso, ele nos lembra a imagem
socialmente veiculada sobre o trabalho docente: “A imagem que a sociedade nos passa do magistério
como uma ocupação fácil, feita mais de amor, de dedicação do que de competências (...)” (p.127). A
junção desses dois fatores apresentados contribui para a idéia de que no trabalho docente, a reflexão e
análise teóricas são menos importantes que a experiência prática acumulada pelo professor.
70
texto, eu fiz um ditado. Depois... eu fiz um trabalho falando de
características de cada um primeiro você vai puxar a biografia de
cada um, para que serve e do que ela fala. E o meu retrato, na verdade,
é uma pessoa falando dela mesma, com algumas características de
personalidade, de jeito de ser. A partir disso, nós trabalhamos um pouco
os adjetivos e eles montaram um texto, mais ou menos direcionado no
sentido de elaboração, para que eles pudessem enriquecer o texto
falando deles mesmos.
Marisa, em sua missão de transformar letras em palavras que, ao serem lidas e
escritas, vão resignificando a vida:
Então, a gente começou com o alfabeto na parede e tinha também o
cantinho da leitura, que a gente levava agora nem tem mais isso a
gente levava e trazia, levava e trazia. Porque os outros pegavam e não
devolviam. Então, a gente fazia o cantinho da leitura e ali tinham livros
de historinhas pequenas, em letra bastão; tinham livros com letra bastão
e aquela minúscula de imprensa e tinha jornal de supermercado; tinha
cartãozinho que a gente pega por aí, tipo propaganda de dentista,
médico; é... que mais que a gente pegava? Esses papéis que a gente pega
em semáforo também. A gente juntava aquele monte de coisa e colocava
naquele canto. Então, quando ele acabava a lição, ele ia no cantinho
e pegava essas coisas e ficava ali. Era aquela coisa, ia para um canto
para leitura. (...) Ele aprendia pelo que a gente trabalhava na aula,
normalmente e, também quando ia ali mexer naquele canto de bagunça.
Depois, não podia mais porque os outros entravam na sala e tiravam;
então, a gente acabou com o cantinho da leitura. Então, o que nós
fizemos? Eu, como dou português, eu escrevo o texto você viu eu
faço o texto no papel, no craft, então, eu faço com letra bastão. Eu
coloco a história da Maria vai com as outras”, que é comprida pra
caramba! Mas, eu coloco, reparto em três partes, não tem importância.
Primeiro eu leio para eles, depois cada um um parágrafo, acaba de
ler do jeitinho deles. Tem muita dificuldade: eu vou cobrindo sílaba
por sílaba.
71
Em meio a diversas tentativas de ensinar e a tantas dificuldades vivenciadas pelo
professor em sua profissão, Angela e Marisa conseguem perceber alguns resultados de
seus esforços, frente aos objetivos que se colocaram. Marisa relata seu contentamento
diante do aluno que demonstra interesse em aprender:
(...) Então, quando não tinha entendido nada, eu jogava a perguntinha,
dava uma pista para ele dar uma lembrada. Fazia perguntas para
incentivá-lo a ler e entender o que tinha lido. E os outros coleguinhas
bagunçavam e, de repente, vo percebia o que? Que mesmo
bagunçando, eles estavam ligados. Porque eles estão bagunçando, mas
não são surdos; eles escutam, então, vão aprendendo. De repente, um
começa a chamar a atenção do outro porque está bagunçando, enquanto
o outro está lendo. Não sei se você chegou a ver isso lá? Então, é muito
legal quando você esse comportamento: um chamando a atenção do
outro para aprender, sabe? Então, a gente está fazendo tudo, tentando,
dando todos os recursos que eles precisam para entender o processo e
aprender. (...) De repente, contando uma história e pedindo para eles
desenhar, para aqueles que não sabem uma parte da história. Se ele
consegue desenhar alguma coisa que tem a ver com a história, nossa!
Ele entendeu muito. E quando consegue escrever, mesmo que com
muitos erros, nossa! Eu me sinto assim, a mulher mais feliz do mundo!
Porque é resultado. Quando a gente trabalha ciência com eles, que eles
conseguem participar porque ciências e história, eu vou mais pela
parte conversada. Quando ele participa e ele fala e o que ele fala tem a
ver com o que está sendo falado, nossa! Ele está entendendo muito! E
se ele consegue fazer isso, quando eu faço a pergunta, ele responde
também. Então, pôxa! Está bom demais.
Para Angela, a gratificação pelo trabalho realizado encontra-se diante da
constatação, pelo aluno, de suas próprias capacidades:
Quando eu peguei esse texto que eles fizeram e digitei, levei digitado
foi uma coisa assim impressionante a reação dos meninos de... você ver
a surpresa estampada na face dele: _ Nossa! Mas, eu que escrevi?!
72
(risos) Eu que fiz?! Nossa, mas ficou legal! Porque eles viram o texto
digitado, eu imprimi e tudo mais. Aí, a partir disso, eu acabei até
criando um projeto que foi além disso. Então, agora, já que vocês
fizeram o retrato individual de cada um, vamos fazer o auto-retrato
desenhando, pintando. a gente teve a colaboração de uma pessoa
da Unidade. Acho que, parcialmente, você também acabou participando
no começo, que a gente puxava identidade e tudo mais. E acabou
resultando num porta-retrato que, de um lado, era o “meu retrato” texto
e, de outro lado, era o retrato desenhado ou pintado... Olha, acabou
sendo um trabalho muito interessante e o gratificante disso foi ter
conseguido puxar a auto estima deles, para que eles vejam que se eles
quiserem, eles podem fazer e eles sabem como qualquer outra pessoa.
Por fim, Marisa enfatiza a importância do compromisso do educador frente à sua
escolha profissional e a responsabilidade pelo seu trabalho:
(...) se a pessoa que está na área da educação levasse a sério. Sabe,
Juliana? Todo mundo precisa trabalhar. Eu preciso trabalhar, preciso
muito! Eu não posso ficar sem meu trabalho. que junto com o meu
precisar trabalhar, tem o compromisso do que eu estou fazendo tem que
ser bem feito! Eu não posso ficar ali só por conta do meu salário. A
impressão que dá é que muita gente está ali só pelo dinheiro.
O comentário de Marisa, acima, nos remete sobre a realidade da educação
brasileira nos dias de hoje, na qual o processo de ensino-aprendizagem é visto apenas
como um meio para atingir fins que o fazem parte do próprio processo, como, por
exemplo, o salário. Tal situação aponta para a presença da alienação no trabalho
docente
38
e para os muitos problemas encontrados no sistema educacional, o que nos
leva a nossa próxima categoria de análise.
38
Sobre a alienação no trabalho docente, consultar: Asbahr, F. da S. F. Sentido pessoal e projeto político
pedagógico:análise da atividade pedagógica a partir da psicologia histórico-cultural. Dissertação de
mestrado, Instituto de Psicologia da USP, 2005.
73
III.2.2. O sistema educacional
o buraco negro da educação (Angela)
Angela e Marisa estão conscientes das mazelas da educação brasileira. Que se
fazem presentes na escola na FEBEM-SP.
Ao falarem sobre o trabalho docente e sobre a realização dele na FEBEM-SP,
aparece com freqüência em seus relatos temas como: capacitação docente; atribuição de
aulas; jornada de trabalho e críticas ao próprio sistema educacional. Tais temas trazem a
estrutura e o funcionamento do ensino em geral.
O tema mais citado pelas professoras, nesta categoria, foi a capacitação. Os
cursos de capacitação de professores parecem ocupar um grande espaço na vida
profissional destas docentes, atravessando temas como atuação profissional, jornada de
trabalho e críticas ao sistema educacional. A maioria dos cursos de capacitação é
fornecida pelo próprio Estado, adquirem formas diversas e são, na maioria das vezes,
obrigatórios:
(...) Bom, então nessa escola, também tive a oportunidade de participar
de alguma capacitação na diretoria de ensino. O projeto “Ensinar e
Aprender” foi uma das coisas trabalhadas que eu achei muito
interessante. Foi um curso que eu gostei muito, embora tenha pego
partes, não tenha pego o todo. (...) Participei nesse período também do
“Leia Brasil”, que infelizmente terminou. Era um projeto... Um
caminhão cheio de livros que fazia algumas escolas, uma delas era o
Maximiliano. Havia um dia que era marcado e nesse dia o caminhão
parava na escola e os alunos iam por série, com um professor
acompanhando, e retiravam livros para ler. Então, um projeto muito
interessante. Extremamente valorosa a experiência. A informação que
eles passaram em termos de treinamento também. Eu participei de uns
dois encontros (...) muito interessantes feitos com dinâmica, para
incentivar a leitura existe um site, que você pode acessar que é o Leia
Brasil... (ANGELA)
74
A idéia reforçada por sucessivos governos de que o professor é mal formado, faz
com que as políticas públicas de formação de professores se voltem para inúmeros
cursos de capacitação e aperfeiçoamento. Para cursá-los, muitas vezes, são necessários
esforços sacrificantes, como a diminuição do número de aulas dadas – que acarreta uma
diminuição de salário, o uso dos finais de semana e, conseqüentemente, uma sobrecarga
na jornada de trabalho:
Nessa época, eu já estava cursando novamente a Cultura Inglesa, no
curso para professor, que é dado pelo Estado. Muitos professores nem
ficam sabendo. Também tem durante a semana, em três unidades da
Cultura Inglesa, em São Paulo, que é Saúde, Santana e acho que Santo
Amaro, e tem aula das dez ao meio dia. Então, o professor se quiser
fazer essa capacitação que é para ele, que é uma parceria com o Estado,
ele não pode dar aulas nesse horário, duas vezes por semana... Então,
ao mesmo tempo em que o Estado dá com uma mão, ele tira com a outra,
porque o professor fica na parede. Nessa época eu estudava... terça e
quinta inglês, que são duas horas de aula, cada aula, então quatro horas
de aulas por semana... À tarde eu dava aula - peguei aulas de inglês em
duas salas de quinta série; à noite, todos os dias, eu dava o telecurso;
aos sábados, eu fui fazer a complementação pedagógica (riso) que foi
um ano e meio e que era aula das 7:30 da manhã até as 5 da tarde.
Então, um ano e meio foi por aí... Fora os cursos de capacitação que eu
fiz também. Eu fiz informática, o “Sherlock” inglês e português... a
“Teia do Saber” (risos) que foi um pouco mais para frente, acho que foi
no ano seguinte e também era aos sábados, o dia inteiro...
Ah, nessa época também, tem um detalhe ainda, eu fiz estágio no
segundo semestre do ano eu ia à tarde e saia às 10 horas da noite
(riso) porque também fiz estágio. Fiz estágio depois no ano seguinte,
no Maximiliano...
Pesquisadora: Estágio docente?
Angela: estágio da complementação pedagógica. Foram 350 horas e
mais 350... Então foram horas e horas. Trabalhei na secretaria, na
biblioteca da escola, enfim, fui fazendo um “tour” ali, que foi muito
interessante, viu, muito válido também atendimento aos alunos, ao
75
público... Foi bem interessante. Acho que é legal quando você consegue
fazer, mas, desgastante, com certeza, em muitas coisas. Porque, além
disso, ainda tem a família, os filhos e tudo mais. Mas, enfim, deu para
tocar.
Os cursos de capacitação nem sempre trazem os benefícios esperados, ou seja,
nem sempre contribuem para a melhoria do desempenho docente e retiram os
professores das salas de aula. Angela critica esse sistema e o excesso de faltas de
professores nas escolas, causando descontinuidade no trabalho educativo:
Eu detesto faltar em escola para ir a curso, mesmo que seja de
capacitação de professor. Uma das avaliações que eu fiz, uma das vezes,
foi:
_ “O que você acha que foi negativo nesse curso?”
– Deixar os meus alunos foi negativo, não é? Porque eu tinha que
deixar... Achava um absurdo aquilo, imagina?! Aulas e aulas inteiras,
você sair para ir a um curso e os alunos lá. Então, isso é uma coisa que
eu acho lamentável. Em qualquer uma das escolas que eu estive, estou,
até hoje, eu acho que esse aspecto é lamentável... Ao longo de todo o
período eu acho que ficam lacunas [no processo de ensino]. Eu acho
que esse aspecto deveria ser encarado de uma forma mais... metódica
mesmo. Porque eu acho que faz falta sim, faz mesmo. Tudo bem, o
professor pode ficar doente, pode uma ou outra vez faltar, mas...
Haveria de existir uma modificação, de cima pra baixo, no geral, no
contexto geral, para que as coisas funcionassem de uma forma mais
adequada, para o professor e para o aluno. O professor necessita, sim,
de tempo, de capacitação, de renovar as informações, de contato com os
colegas. É... de um pouco mais de atenção, de valorização. Agora o
aluno (...) chega na escola e não existe uma seqüência nas coisas para
que ele possa se guiar. Eu acho que aí entra um conflito enorme e muito
problemático (...)
Num contexto de crítica às formas como se dá a capacitação docente, Marisa faz
um relato da capacitação para os professores que lecionam na FEBEM:
76
(...) a capacitação, quando eu entrei na FEBEM, acontecia várias vezes
por ano e era na diretoria de ensino. A gente fazia a capacitação com
professores de toda a rede estadual; não era uma capacitação
específica. Então, você chegava e ficava se sentindo um nada. Ou
então, parecia o cocô da mosca no lençol branco (risos). Quando você
falava que era da FEBEM, acabava a capacitação e todo mundo ficava
em cima da gente perguntando, fazia aquele monte de pergunta, parecia
que a gente era um E.T.. Era um absurdo! Então, durante esses anos
todos a gente fez a capacitação sempre juntos. O ano passado foi que
começaram as videoconferências, que eram para a FEBEM e não
teve mais capacitação, para nós que éramos PEB I
39
, pelo menos.
[tinha capacitação para] quem era novo no projeto; daí ia para a
diretoria de ensino mesmo, fazia junto. (...) vieram essas novas
capacitações da FEBEM. Essas novas são melhores, porque são
pessoas da FEBEM, só professores que trabalham no projeto da
FEBEM. Então é legal porque - apesar assim, começou agora, a gente
começou esse ano com isso, começou em julho. A gente tem achado que
é bom, porque a gente vai poder conversar com pessoas que estão
trabalhando com o mesmo público, com adolescentes, que lidam com
situações meio parecidas com as da gente e a gente vai ouvir coisas que
aconteceram e o que fizeram. A gente vai poder trocar experiência e, de
repente, alguma coisa a gente pode até estar aproveitando.
Marisa vê na possibilidade de trocar experiências com os colegas a maior
contribuição dos cursos de capacitação e critica atividades que são preparadas sem levar
em conta o contexto de trabalho do professor:
Então, a capacitação é legal para a pessoa poder tomar ciência do que é
o projeto. (...) Na capacitação tem informe para colocar a pessoa ciente
do projeto, trocar experiência, ouvir. Para quem é muito novo, que está
chegando, ouvir as experiências dos mais antigos, mesmo que, de
repente, seja uma coisa que você ache exagerado, mas a pessoa está
39
PEB I: Professor do Ensino Básico I. Professor responsável pelas aulas do primeiro ao quarto ano do
ensino fundamental.
77
escutando, tem uma noção do que é. Não vai chegar inocente, pura, sei
o quê e cair numa Unidade de pára-quedas, sem saber nada. Então, a
capacitação é boa por isso. De repente, acontece de rolar uma vivência,
uma atividade ou outra atividade e a pessoa tem noção de como
trabalhar algumas coisas ali dentro. Apesar de que tem uma porção de
capacitação que eu participei que não tem condições, ninguém pode
trabalhar isso dentro. Numa escola de criança normal, criança
normal assim, na idade normal para a série, beleza, mas na FEBEM
não dá. Pra trabalhar lá no... aquela casinha do lado que tem as
criancinhas
40
, pode trabalhar com bolinha, com bolha, pode tudo. Agora
com um rapaz de catorze anos que tem a vivência de um homem, que a
experiência dele, acho que se eu viver duzentos anos eu não consigo ter
a experiência que ele teve, Juliana, você concorda?
A fala de Marisa sobre as capacitações docentes, das quais participa como
professora de uma Unidade da FEBEM, denuncia o descrédito que se tem pelo saber
acumulado do professor, por sua experiência profissional e a falta de autonomia que ele
encontra no exercício docente. Os cursos de capacitação, por sua vez, tornam-se
receituários inúteis, ministrados por pessoas que desconhecem a realidade desse
trabalho:
que as pessoas que estão capacitando a gente, é aquilo que eu te
falei: chegam com uma coisa e querem impor. Eu não vou, Juliana. Você
esteve dentro, se você está num lugar, você tem convicção do que
você está fazendo e está dando certo o que você está fazendo - até aqui
deu certo. Então, eu chego de repente e não sei - sei em teoria - do que
você faz e quero impor alguma coisa? É meio complicado, não é? Então,
a capacitação é super importante, com certeza. que eu acho que
quem capacita, isso a gente colocou lá, deveriam ser pessoas que
tiveram vivência dentro da FEBEM. Pessoa que viu, que quando fala,
fala com conhecimento de causa, não vai falar de uma coisa que ele
40
Marisa se refere a um abrigo destinado a crianças abandonadas, que se localiza atrás do Complexo de
Internação da FEBEM.
78
sonha, que ele imagina, não. Não vai falar do que ele ouviu no jornal,
não.
Um dos motivoS da grande procura por cursos de capacitação e formação é a
possibilidade de reverter o conhecimento adquirido em aumento salarial. No entanto,
como constatado por Marisa, a realidade se mostra diferente e, ao final do curso, o
professor ainda pode terminar com dívidas:
Pergunta quanto que aumentou meu salário porque eu sou formada: 30
reais! SÉRIO. É sério. Se eu soubesse tinha ficado com o
magistério... 30 reais. E estou pagando a minha bolsa agora...
Brincadeira?! Não é fácil não, dona Juliana... (suspira).
As críticas das duas professoras entrevistadas não se limitam aos cursos de
capacitação, mas estendem-se a diversos aspectos do sistema educacional e ao
tratamento dado pelos governantes à educação.
Angela relata com estranhamento e desconforto aspectos da cultura do
magistério. A seu ver, cultura extremamente rígida e fechada ao novo, ao diferente. Em
sua fala também podemos perceber aspectos de sua concepção educativa, que traz, em
seu bojo, a importância do professor ir além do conteúdo esperado e trabalhar com a
formação de valores. A escola enquanto instância formativa dos valores necessários à
adaptação social é uma idéia que remonta à pedagogia moderna (CAMBI, 1999) e que
se faz fortemente presente ainda hoje:
Então, esse período do Architiclíneo teve essa experiência que foi uma
coisa forte e que a partir disso eu percebi que (riso) o professor fica
meio ilhado (risos). também tinham, na época, professores
titulares. Então, por exemplo, tinha os HTPCs, aquelas coisas que têm
em todas as escolas e, eu tive a audácia de levar um livro que trabalha
os valores humanos (...) trabalha especificamente com valores
humanos... é um livro que trabalha... algumas coisas alternativas com os
professores e para os professores e... nossa! O dia que eu caí na besteira
de falar sobre isso meu Deus! o povo caiu matando, especialmente,
aqueles que são titulares. Porque... Imagina?! Vamos falar de amor, de
79
paz, de (risos) cidadania. [De cidadania] fala de uma certa forma
quando tem uma situação aqui. “A gente não consegue nem levar o
curso natural, normal...” Olha, eu sei que foi uma... foi (riso) um balde
de água fria, para não dizer que foi logo os quinhentos litros da caixa de
água inteira! (risos)... Embora a direção, na verdade, até apoiou a
idéia, a iniciativa, mas a enxurrada do outro lado foi... E, na verdade, a
intenção apenas era compartilhar essas idéias e quem sabe a gente
conseguisse trabalhar aquilo, nem que fosse um item. Que eu acho que
essas coisas têm que ser colocadas e trabalhadas, sim valores
humanos!
Então... que aconteceu, como eu era nova na coisa, eu fui lentamente me
colocando, mas hoje que nós estamos em 2004, no final de 2004, é...
você acaba percebendo que algumas coisas são extremamente
complicadas nessa área da educação.
Angela lembra com saudade seus tempos de estudante; o valor dado à escola
pública. Ao fazê-lo, revela sua concepção de escola:
Minha formação é em colégio estadual... Aí, quando eu lembro disso...
eu lembro com orgulho da minha formação em colégio estadual. Eu
tinha orgulho de usar o uniforme da escola. Eu tinha orgulho de
carregar o brasão da escola no braço esquerdo, na camisa branquinha.
Eu tinha orgulho de fazer educação física... Percebe? E eu estudei em
colégio estadual, no interior de São Paulo. Quando eu cheguei aqui o
nível que eu tinha de conhecimento em relação a um colegial era, na
época, excelente, em relação aos meus colegas... Eu me saí muito bem
no colegial, na faculdade, porque eu tinha uma boa base...
Aí, eu vejo minha filha formando, tudo bem, numa escola particular,
que no Estado não tem muito essa coisa de formatura... Mas, que eu não
consigo... ver na postura dela e dos demais alunos esse orgulho... Então,
é que eu falo que dói, é um choque de coisas muito profundas e que
devem ser refletidas como um todo toda a área de educação para ver
se a gente consegue, ainda, mudar o curso das coisas, que a meu ver
está complicado e vai ter que ter grandes mudanças, porque a maior
80
delas a gente teve que é a informática e a televisão, com certeza, que
mudou muito as coisas e muda até hoje...
Marisa é enfática ao comentar sobre as conseqüências da progressão
continuada
41
implementada de forma desastrosa pelo governo do Estado e que se fazem
presentes na escola da FEBEM-SP:
(...) então, assim, o que eu tenho feito: eu tenho procurado ensinar. Ele
chega na minha sala e não sabe ler; um garoto entre quatorze e dezoito
anos, não sabe ler. Não sabe ler nada! Ele passou, a progressão
continuada faz com que ele indo, não é? E assim, a professora não
está nem aí; não é que não está nem aí, não sei. É aquela coisa, não
pára e não atenção para aquele. Por que? Porque ele não vai ter a
responsabilidade, ninguém vai cobrar dele isso. O que está na primeira
deixa-o passar para a segunda, o da segunda não importância, vai
para a terceira, chega na quarta ele pára. Alguém vai cobrar alguma
coisa dele. Aí alguém faz alguma mágica, não sei o que fazem, ele
passou para a quinta e vai para a oitava e vai parar na FEBEM. Chega
lá, vem parar na nossa mão: tem que ensinar a ler.
(...) É aquela coisa que eu te falei no começo, a professora de segunda
série acha que quem tem que alfabetizar é a de primeira, a de terceira
acha que é a de segunda, então assim, uma joga a culpa para a outra e
ninguém faz nada! Quem se prejudica? O aluno.
Marisa fala do descaso do governo com a educação, referindo-se à diferenciação
entre o ensino para as camadas populares e o ensino para a elite:
Então assim, a gente fica numa tristeza grande porque ninguém faz
nada. É aquela coisa... Como é que fala? Como é que é mesmo? Deixa
eu lembrar... O governo faz tudo... tudo o que acontece é de propósito. O
povão tem que receber uma pequenina parcela de educação porque
41
Sobre a progressão continuada e seu reflexo nas escolas consultar: Viégas, L. de S. Progressão
continuada e suas repercussões na escola pública paulista:concepções de educadores. Dissertação de
mestrado apresentada junto ao Instituto de Psicologia da USP, 2002.
81
não precisa saber muito, porque se ele souber muito, ele vai pressionar
muito e se ele pressionar muito, ele vai incomodar quem está no topo
da pirâmide, não é verdade? Então ele não investe por que? Se ele
investir vai ter muito mais gente questionando e cobrando. Então para
ele tanto faz como tanto fez, o que está está de bom tamanho; o
educador que está aí está ótimo, continue assim (...)
Angela fala da precariedade da educação brasileira atual:
Não querendo ser extremamente crítica, não é? Isso são impressões que
eu estou tendo e que estou te falando... A Educação - acho que ela tem
sim grandes colocações, grandes produções, mas a base da educação,
no meu ponto de vista, está totalmente falida, está totalmente fora... e
inadequada para o mundo hoje, para o contexto hoje; para aquilo que
se espera de uma escola daqui para frente, que devia estar em curso,
pelo menos – infelizmente... (longa pausa)
A descrença nesse modelo de educação e a conseqüente qualidade do ensino
fazem com que ela questione a necessidade da própria escola:
Muitas vezes o que acontece na sociedade como um todo é que ninguém
pergunta para a criança: “Você quer ir à escola?” (riso) Isso é uma
coisa que eu estou colocando porque acho que é importante a gente
fazer sim essa reflexão: se é obrigatório o ensino. É, de uma certa forma
é. Mas, o que tem por trás de tudo isso, no contexto do Brasil, vamos
dizer assim, o que é isso, o que é a Educação no Brasil? isso
para se falar tanto e discutir tanto, puxar tantos ganchos e assuntos que
eu acho que já dá assunto para um ano inteiro.
Se a precariedade atual da educação brasileira faz com que, em alguns
momentos, seja possível questionar a utilidade da escola, que dirá da realidade de uma
escola situada numa instituição de caráter prisional? A escola tem alguma contribuição a
dar aos internos dessa instituição? Como fica a precariedade da educação pública
82
quando a ela se soma a precariedade da FEBEM? Como se o encontro entre
professores e alunos nesse contexto? Passemos a nossa última categoria de análise.
83
CAPÍTULO IV: EM BUSCA DO SIGNIFICADO
você não pode fazer nada (Marisa)
Dividimos esta categoria em seis temas que contemplam diversos assuntos
tratados pelas professoras sobre a escola na FEBEM: aspectos funcionais (atribuição de
aulas, contrato de trabalho, “perfil” do professor); a cultura institucional (regras de
trabalho e conduta, rotina institucional, relações violentas e preconceituosas, relações de
gênero e sexualidade); a relação professor-aluno (concepção do adolescente interno,
objetivo do trabalho do professor); a relação escola/FEBEM (professores/funcionários,
dificuldades na realização do trabalho, representação da escola) as contradições da
escola na FEBEM (resultados positivos da presença da escola, resultados do trabalho
docente); a importância da Escola (importância da escola, possíveis alternativas de
atendimento aos adolescentes e jovens, desejos de mudança, sonhos...).
IV.1. Aspectos funcionais
O professor que leciona na FEBEM-SP não é concursado pelo Estado. Ele é
contratado pela Secretaria Estadual de Educação para trabalhar na FEBEM. Para tanto
deve se inscrever em uma diretoria de ensino e apresentar um projeto de trabalho. Quem
faz a classificação é uma comissão composta por representantes da própria diretoria.
Angela relata como funciona a contratação:
Primeiro, você se inscreve na Diretoria. Cada Diretoria tem seu
Complexo de Internação específico. Então, eu me inscrevo em uma
Diretoria como professora, licenciatura plena, português/inglês. Isso é
uma inscrição. Se eu tenho interesse em projetos, eu tenho que ver o
prazo específico para me inscrever no projeto e o que precisa. Daí eu
faço outra inscrição para o projeto. Além dessa inscrição, eu tenho que
entregar um projeto (riso). Que também é dentro de um prazo específico.
Depois disso, eles vão fazer uma classificação de todos esses projetos,
pontuação, se tem ou se não tem experiência, então, por exemplo, quem
deu aula na FEBEM ou não e sai uma listinha com a classificação
FEBEM.
84
Segundo Marisa a apresentação de um projeto de trabalho é para efeito de
classificação do professor, visto que a FEBEM-SP tem seu projeto pedagógico próprio:
Para você dar aula na FEBEM você faz a sua inscrição para atribuição,
que como vofaz inscrição para o projeto, você tem que levar antes
da atribuição, uma proposta pedagógica, uma proposta do teu trabalho,
o que você pretende fazer lá dentro, na sua área. Eu como PEB I, a
proposta é de alfabetização, então, tem português, matemática,
história, geografia, ciências, porque eu sou polivalente, todo PEB I é
polivalente. O que é polivalente? Eu sou responsável por todas as
disciplinas. Então, a gente tem que mandar uma proposta de trabalho do
que vai fazer durante o ano, mas a parte principal é alfabetização.
Assim, cada professor em sua área. (...) apesar de o meu projeto
servir para efeito de classificação, no momento da atribuição. Então, é
somada a nota do seu projeto, mais uma avaliação feita pelo setor
pedagógico da Unidade, mais uma avaliação que a escola faz do teu
trabalho, os dias que você tem trabalhado [tempo de serviço]. É feita
uma somatória, para efeito de classificação. A FEBEM tem projeto
próprio e a gente tem que trabalhar dentro do projeto dela. Então, isso é
só para estar pontuando mesmo.
Para efeito de classificação, o professor, ao final do ano letivo, retira na escola a
qual lecionava um documento contendo informações sobre o tempo de serviço prestado.
Para o professor que leciona na FEBEM-SP, a este documento é acrescida
avaliação dos representantes da Unidade de Internação sobre o desempenho do
professor e o interesse ou não da Unidade em mantê-lo. Angela explica:
Então, por exemplo, eu dei aula na FEBEM. O ano passado inteiro,
eu dei aula na FEBEM. No final do ano, o coordenador da Unidade que
eu trabalhei, da ou das, que no caso foi uma, mas se foi mais que
uma, das duas, três se for o caso. Eles fazem uma avaliação da gente.
Essa avaliação vai contar também na minha pontuação FEBEM. Vai
contar que eu já dei aula lá, quanto tempo e também a comissão vai ter
acesso a algum pró ou contra a meu favor. Por exemplo, se eu dei aula
85
em uma das Unidades do Complexo e vamos supor, Unidade XY. A
Unidade XY acha que eu não sirvo para eles. Para aquela Unidade não
dá. Não gostaram do meu trabalho. Não querem que eu volte. Então,
eles podem colocar isso. Na hora da atribuição, que eu teria liberdade
para escolher qual Unidade eu quero dar aulas, eu posso falar: Ah, eu
quero ir para a XY. “Não. Você pode escolher qualquer outra, na XY
não”. Assim tem funcionado. Comigo não aconteceu isso. Nem uma vez,
mas, é o que está acontecendo.
Essa avaliação feita pela Unidade de Internação causa descontentamento no
grupo de professores, pois os critérios de avaliação não são claros. Exige-se que o
professor tenha determinado ‘perfil’, porém, os requisitos para tal não estão
explicitados:
Eles vão avaliar, com certeza. Se, por exemplo, ficar... Isso é uma
questão extremamente delicada (risos). Porque para você dar aula na
FEBEM, o que eles chamam de perfil... O que eles chamam de perfil é
uma coisa muito delicada. Porque, tudo bem. Eu posso apresentar um
projeto maravilhoso. Eu tenho tempo, vamos supor, isso vai contar.
Se eu tenho tempo lá, isso conta muito. Agora, outra coisa que vai
contar é a postura da pessoa. Em relação a você ter firmeza naquilo
que você quer, ter certeza que você quer; estar consciente do ambiente
que você vai estar; como é que você deve se portar neste ambiente...
Então, eu acho que esses são alguns pontos... Por isso que é muito
delicado. Quem vai estar vendo isso é a pessoa que vai estar olhando
para você! (ANGELA)
Para Marisa o que a Unidade de Internação considera como perfil de um bom
professor está muito distante de sua própria concepção a respeito:
Então, de repente, perfil seria isso: pessoa que tem compromisso, que
não mistura o pessoal e o profissional que quando chega dentro
sabe que está ali para realizar um determinado trabalho. (...) Então, de
repente, perfil poderia ser isso. Compromisso, postura – postura de
86
comportamento, mesmo. Outro dia, eu cheguei na Unidade e um aluno
meu me deu a maior bronca porque eu não tinha ido no domingo de
Páscoa visitá-los. Eu respondi a ele que tinha viajado, mas que desejava
uma feliz Páscoa e tudo mais. Daí, ele abriu os braços e veio... Sabe? E
todo mundo em cima, te olhando! Eu fiquei com uma vontade tão grande
de dar um abraço nele e não pude abraçar! Seria falta de perfil abraçar
o meu aluno naquele momento?Meu coração ficou partido, mas eu
estiquei a mão, peguei na mão dele e coloquei uma mão em cima da
outra e segurei assim e passei a mão na cabeça dele, porque eu não
pude fazer mais que isso... E não seria falta de perfil! Por que uma
professora da minha idade poderia, de repente, abraçar um aluno e o
ser falta de perfil e uma professora novinha que abraça o seu aluno,
quando percebe que ele precisa de um abraço, é falta de perfil? Para a
Unidade perfil é você chegar, cumprimentar, não sorrir, não
responder... Perfil é você ser dura. que eu falo: Pôxa! A vida tem
sido muito dura com eles... E, entre eles, eles também se cobram muito,
são muito duros entre eles! Então, um aperto de mão, um carinho com
eles, não é deixar de ter perfil.
A FEBEM-SP não é o empregador oficial dos professores que lecionam, pois
estes são contratados pela Secretaria Estadual de Educação. Porém, a Unidade de
Internação na qual funciona a escola tem o poder de deixar o professor sem trabalho:
E a gente ainda tem, desde o ano passado (2003), uma avaliação que a
Unidade faz do nosso trabalho e ela pode querer ou não que a gente
continue, e não no final do ano, qualquer época do ano, se eu não
estiver de acordo com o perfil. Aquele perfil famoso, eles podem me
desligar do projeto, a qualquer hora.
Pesquisadora: E aí você fica sem vínculo nenhum?
Marisa: Sem trabalho! Você fica na roda... (MARISA)
Se o professor não deu aula na FEBEM, esta avaliação é feita no momento da
atribuição de aulas, pela própria comissão designada pela diretoria de ensino, sem
nenhum aviso de que faz parte dos requisitos para lecionar na instituição:
87
Na hora da atribuição. vai poder ver na hora da atribuição. Vou te
dar um exemplo que eu presenciei. A moça fez a inscrição, fez todo o
processo, entregou o projeto, entrou na classificação. (...) A professora
fez todo o processo e foi escolher. Mas, chegou assim: Como que é lá?
Quem deu aula lá? Ai, será que não tem problema? Ai, mas eu nunca
dei aula”. Essa professora mora, inclusive, próximo do Complexo. Para
ela seria excelente o local, porque é próximo. Ela mora perto. De
tanto e tantas vezes questionou que a comissão falou: Acho que é
melhor você pensar direitinho se é isso mesmo que você quer”. Então,
veja, uma coisa que... Como é que você vai falar? (ANGELA)
Para Marisa, o professor interessado em dar aulas na FEBEM-SP deveria passar
por uma entrevista, na qual a comissão responsável pela atribuição de aulas pudesse
conhecer um pouco do candidato:
A gente tem sugerido que para os professores novos, que nunca deram
aula na FEBEM ou em lugar nenhum, fosse feita uma entrevista. Que se
entregasse o projeto, como eles pedem mesmo, mas mais para conhecer
a idéia da pessoa. É bom mesmo para ver o que você pensa, o que você
pretende trabalhar. Eu acho legal essa proposta, é bom fazer a proposta.
Mas, além disso, acho que deveria ter um peso grande isso de... alguém
preparado, que conhecesse a FEBEM, tivesse conhecido as Unidades
e pudesse entrevistar essa pessoa, mas para estar conversando, como eu
estou conversando com você. Sabe? Porque eu acho que nada como você
sentir numa conversa, se a pessoa teria ou não perfil.
O professor é informado da necessidade de certas qualidades ou atributos no
momento de conhecer o local onde vai trabalhar:
A própria diretora do colégio vinculador, a que eu conheço, costuma
colocar a realidade nua e crua. Que é para ver se já, digamos - a
palavra acho que é essa - se chocar, já choca de vez. Se a pessoa tiver
que ir, ela vai consciente. Mais ou menos é isso. (ANGELA)
88
Deixar a instituição na vigência do ano letivo significa ficar sem trabalho:
Isso foi colocado pela própria Diretoria de Ensino, uns dois anos
seguidos. Eu acredito que como um tratamento de choque para que as
pessoas tivessem uma responsabilidade maior em relação aquilo que ela
está assumindo para o ano. Foi colocado, em alto e bom tom, para todos
os professores que estavam se inscrevendo: “Olha, FEBEM, você está
comprometido o ano inteiro. Se você deixar aula, você não vai poder
pegar outra coisa, porque voestará deixando um processo em aberto.
Um projeto. Projeto tem que começar e terminar”. Digamos que eu
peguei 20 aulas na FEBEM e me aparecem 20 aulas do lado da minha
casa que me interessam mais. Isso era muito comum. Não só na FEBEM,
geral. Então, o professor pega hoje, em detrimento de vários outros 10,
100 que vêm atrás dele, depois dele e dali dois dias largou. Às vezes,
nem vai à escola e já largou! Para completar a carga, isso para garantir
que vai ter as aulas que eles precisam. Todos precisam. Se estão é
porque precisam. que isso é uma estrutura, um processo muito mais
complicado do que parece. Não culpo nem o professor e nem a estrutura
em si. Porque é uma coisa que tinha que ser revista geral. Para isso é
um... uma coisa complicada realmente. Claro que você tem profissionais
e profissionais, também. Como na Febem, especificamente, a falta de
um, dois, dificulta. é difícil, é um lugar complicado, então, se tem o
grupo dos professores, faltam duas, três matérias ficam aquelas aulas
vagas, quer dizer, tem que botar os meninos para aula, uma classe
entra e outra não entra. Aí é um outro problema que vo tem que
administrar. Você não, mas a Unidade. Ou então, professor pega e larga
e aí, foi atribuição e para arrumar professor que vai pegar, às
vezes dez aulas, às vezes cinco, às vezes seis, entendeu? Então, foi em
relação a esta questão. E eles meio que botavam na parede, vamos dizer
assim. (ANGELA)
Além das especificidades no momento da atribuição de aulas e contrato de
trabalho, a pontuação para o professor que leciona na FEBEM-SP também é diferente
das demais escolas da rede. Segundo Angela e Marisa, a pontuação acumulada pelo
89
professor, por seu tempo de aulas dadas na FEBEM, não é contabilizada no momento da
atribuição de aulas para uma escola regular fora. As professoras não sabem dizer de
onde vem tal determinação, acreditam ter sido colocada pela Diretoria de Ensino
Centro-Oeste. Tal fato faz com que os professores que lecionam na FEBEM sejam
prejudicados em relação aos demais, no momento de atribuição de aulas na rede
estadual de ensino:
Nós somos contratadas, a pontuação, a partir de 2004, não vale para
fora. Então, eu sou a pessoa como PEB I que tem mais pontos... Não,
não como PEB I, no geral, eu sou a pessoa que tem mais pontos
dentro da FEBEM, porque eu sou a mais antiga. Então, eu tenho
pontuação por tempo, por anos trabalhados, por horas trabalhadas, por
tudo; que a minha pontuação não serve aqui fora. Se eu for dar aula
aqui fora, eu não tenho ponto nenhum! (MARISA)
Seria essa uma estratégia para tentar “prender” o professor na FEBEM?
Por outro lado, a pontuação obtida pela experiência de trabalho nas escolas
regulares também não é contabilizada para efeito de atribuição de aulas na FEBEM:
Pesquisadora: E para os professores de fora? O ponto de quem é de fora
vale pra quem vai entrar na FEBEM?
Marisa: Não, não leva. Quem está lá dentro, não serve aqui fora e quem
está de fora... Por que? Porque ele vai chegar de novo. Começa
dentro. A não ser que ele tenha trabalhado em outra Unidade, em outro
Complexo que é projeto. E assim, se eu prestar um concurso e passar, eu
tenho que escolher. Ou eu fico como efetiva numa escola aqui fora e saio
da FEBEM ou eu fico na FEBEM e não dou aula aqui fora. Eu não
posso trabalhar aqui fora como efetiva e dentro como contratada.
(MARISA)
O professor que decide lecionar na FEBEM-SP sente as diferenças em relação à
escola regular já no momento de atribuição de aulas e do estabelecimento do contrato de
trabalho. Muito rapidamente percebe-se que essas diferenças são acentuadas quando se
entra na instituição.
90
IV.2. A cultura institucional
Angela relata de maneira clara e intensa seu primeiro dia na instituição, a
primeira impressão e o impacto provocado. Lembra-se do olhar dos meninos e da
solidão ao passar pelos corredores trancados por portões e grades de ferro:
A primeira impressão... um certo medo, sim, a primeira vez que você
entra. Os meninos olham para você com muita curiosidade. Mas uma
coisa que gravou muito: eles sempre olham para você e olham nos seus
olhos. Foi uma coisa marcante para mim. Ao mesmo tempo, eu senti um
gelo naqueles corredores, grades, abre porta, fecha porta, aquelas
coisas, e uma solidão horrível também, que você sente no ato de entrar
nesses corredores... Ao mesmo tempo, havia essa coisa do olhar desses
meninos, que foi uma coisa marcante para mim... E que, de certa forma,
não te dá medo. Não te dá mais medo do que aqueles corredores gelados
e com aquele cheiro característico (risos). Então, é um contraste!
Aquilo é um contraste! Sem contar o próprio contexto geral. A
estrutura geral é muito gelada. Mas, o contato com esses meninos, não.
Então, isso para mim foi o que marcou – no primeiro encontro ali,
naquela situação de só ir conhecer...
O ambiente físico é de uma prisão. Porém, a urgência vivenciada no cotidiano
escolar se assemelha às escolas públicas regulares. O relato de Marisa sobre seu
primeiro dia na FEBEM-SP descreve bem a situação vivenciada pela escola e seus
professores no atropelo institucional. Tudo é urgente; não lugar para o planejamento,
a continuidade e a avaliação do trabalho:
Quando chegamos lá, ela [supervisora de ensino] me apresentou a
Unidade, me mostrou as salas... Aí, ela falou que no dia seguinte eu iria
novamente para a décima sexta diretoria de ensino, para ela me passar
o material e me explicar o que era o projeto de classe de aceleração, que
eu não sabia. Depois ela marcaria para eu vir [à FEBEM], que a
professora ela dispensaria e tal. que no dia seguinte, quando eu
cheguei [na diretoria de ensino], ela falou: Marisa, ela não vai mais.
Ela disse que não vai. Ela está apavorada e disse que não vai. Você vai
91
ter que ir para hoje!” Então, ela sentou comigo e planejou uma aula
comigo... Falou: É assim que se planeja uma aula no projeto. Então,
você vai para hoje à tarde e vai para sala de aula... Eu fiquei
apavorada! Tremi até na alma (risos)!
Nas relações de gênero no interior da FEBEM-SP, o corpo feminino deve ser
escondido, a feminilidade disfarçada. A presença da mulher é tida como um perigo ao
desejado controle absoluto dos internos, pois a sexualidade dos adolescentes internados
é vista como “desenfreada”.
Num local assim, a sexualidade ameaça, motivo pelo qual é preciso negá-la:
(...) tem todo um outro contexto também, de postura e de apresentação
na FEBEM. Você não vai com sua sandalinha e sua mini-saia, por
exemplo. Voestá numa FEBEM que é menino. [Não se deve usar]
cabelão todo produzido, brinco, batom etc. Via de regra, quando se tem
a orientação é para que não use e que seja o mais discreto possível.
Avental, sim; de preferência de manguinha... isso não é uma regra
fechada e rígida na Unidade X, que tem uma postura... A maioria usa,
mas se não quiser usar, não use. que todos os professores usam.
(ANGELA)
Às vezes, eu chegava lá de manhã e sei lá, estava de perfume – lembra
que eles falavam que não podia perfume? (MARISA)
Nós tivemos naquele ano... Uma situação onde uma das técnicas não
usava avental e era uma pessoa que por si aparece - uma pessoa
grande, com cabelo loiro e tal. Uma pessoa grande mesmo, de tamanho
grande... Uma pessoa de olho claro... E, nossa! Quando entrava no
pátio, a Unidade parava todos os meninos queriam olhar a mulher!
Então, sabe, isso também... É relativo na Unidade X. Mas, via de
regra, todos usam avental, todos usam o cabelo preso e todos têm que
ter esse procedimento de entrada, de saída. (ANGELA)
92
Durante todo o tempo em que lá permaneci fui questionada pelos internos,
principalmente por aqueles com os quais estabeleci contato mais próximo, das razões do
uso do jaleco. Chegaram a me perguntar diretamente se era porque os temia, se pensava
que poderia ser atacada caso não usasse. E ridicularizavam o seu uso, ora argumentando
que no “mundão” nenhuma mulher andava coberta, ora desdenhando do conteúdo que o
jaleco poderia esconder: “Ih, senhora! Essa mulherada está tirando!! Como se
tivesse alguma miss para nós querermos olhar...”
No entanto, tal prática parecia ser inquestionável no grupo de professores.
A diferença no lugar destinado a homens e mulheres não se restringia ao contato
com os internos. Todas as relações dentro do Complexo são permeadas por um forte
machismo e os papéis sexuais muito bem distribuídos. Ainda que em algumas
Unidades, como na U.I. X, a direção esteja a cargo de uma mulher, em momentos de
confronto direto com os internos, os homens assumem o poder.
Beleza, delicadeza, gentileza e fragilidade, atributos comumente associados às
mulheres, não combinam com uma instituição como a FEBEM, historicamente
identificada pela truculência e violência no trato dos internos.
Marisa e Angela são testemunhas da violência institucional:
Sei lá, a gente faz uma retrospectiva e tudo que eu vi nesse tempo, o que
eu vi de rebelião, vi moleque apanhar, vi moleque chegar na sala de
aula quebrado. A gente ficou sem carteira nenhuma porque eles
quebraram tudo e ficaram sentados no chão. Eu vi moleque ser tirado da
sala e desaparecer, foi transferido não sei para onde. Então, você tem
que ficar ali e você tem que administrar de um jeito que você não... Saiu
de lá, ficou dentro, você não pode trazer com você, porque se trouxer
você fica doente. Porque a gente chega em casa acabada, arrasada
porque você não sabe para onde foi fulano e os que estão lá ficam
assustadíssimos. (MARISA)
Nós tivemos algumas rebeliões, sim. O ano passado, 2003, eu não estava
dentro quando ocorreu, mas ocorreu... E eles quebraram tudo, sim.
Tudo que tinha dentro, tudo que eles puderam eles quebraram,
arrebentaram tudo. Numa das Unidades mais, organizadas, vamos dizer,
no funcionamento. Esse também é um outro problema, porque até
93
retomarem as aulas levam, às vezes, dois meses. Então se tinha muita
dificuldade, a dificuldade fica maior ainda. É uma coisa muito triste,
muito desgastante quando acontece, muito tensa. Eles sofrem muito e
todos os que estão sofrem muito também. Infelizmente a coisa
continua e vira e mexe acontece. Esse ano não teve ainda... Em 2004
tiveram indícios, não nos lugares em que eu estou dando aula, mas
tiveram situações de tensão. (ANGELA)
A violência presente durante as rebeliões se estende a outros momentos que as
sucedem. Parte dos representantes da ordem e do controle - funcionários da instituição
e polícia - e atinge os internos
42
.
Dificuldade é você ver um adolescente que chega e você percebe que ele
foi violentado e você não pode fazer nada. Dificuldade é a gente chegar
de manhã e ver que entre eles teve uma briga, o garoto da sua sala
chega de olho roxo e você sabe que ele não fez nada, porque, de
repente, ele não se submeteu a alguma coisa, ele tem que apanhar? Isso
é dificuldade. (MARISA)
Contudo, dentro da FEBEM-SP, a violência não se manifesta apenas durante as
rebeliões. Ela é a maior reguladora das relações institucionais.
Marisa vai além em sua crítica à instituição, passando por um questionamento
do próprio sistema judicial:
(...) Você, de repente, um garoto que roubou galinha mesmo, no
interior, está aqui misturado e vai virar bandido porque têm mania de
baterem nele. Então, isso é dificuldade. A gente não concorda. Por que
o sistema não cria um jeito diferente de punir? É uma punição. De
pegar e corrigir isso. Porque o garoto que fez isso no interior, que é
gravíssimo, tudo é grave, com certeza: pegar uma bolacha no
supermercado. Mas, porque é reincidente vai vim para a FEBEM? Não
42
Sobre as rebeliões na FEBEM-SP, sua dinâmicas determinantes e conseqüências consultar: Vicentin,
M. C. G.“A vida em Rebelião: histórias de jovens em conflito com a lei. São Paulo: Tese de doutorado,
Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2002.
94
sei, é muito complicado. A gente não consegue entender. Eu não
consigo. tentei processar, mas não saiu uma resposta. Eu não
consigo entender isso. Para mim, isso é dificuldade. Entender como é
que as pessoas, que em princípio são formadas, estudaram um monte,
estão lá, estão julgando. Não sei qual o critério que eles usam para dizer
que esse vai para tal lugar, aquele vai para outro lugar. O rumo que eles
dão para as vidas das pessoas. A gente vê que, de repente, por causa
dessa decisão eles podem estar sacrificando mais ainda a vida deles [dos
adolescentes em conflito com a lei]; podem estar sacrificando mais.
A sala de aula é atravessada pelas relações violentas que caracterizam o espaço
institucional. O professor entra no meio de uma luta de forças travada pelos internos.
Marisa relata a história de um aluno constantemente violentado pelos colegas:
Os meninos diziam que ele era “Jack”. Jack é estuprador. Ele tinha uma
carinha mesmo de louco, tinha uma carinha de doido. Ele não olhava
assim como a gente está se olhando. Ele ficava de cabeça baixa, o
falava, não conversava. Ele era um menino lindo! Moreno, o cabelo
bem liso e como eles usavam o cabelo bem cortadinho, bem curtinho,
era bem espetadinho. Lindo, lindo, lindo, o Fabiano. Então, ele não
conversava, não participava, apanhava dos meninos. Eles batiam muito
nele e a gente tirava, sabe? Não deixava, mas, chegava de manhã com o
olho roxo, marcado, ele apanhava pra caramba! Na sala de aula, eu
conversava com todos, então, com o Fabiano também, lógico! E ele
falava comigo bem baixinho, às vezes, ele ficava de cabeça baixa,
porque ele não podia olhar, porque os moleques queriam bater nele. (...)
Os professores são controlados rigorosamente pela Unidade de Internação.
Numa instituição pautada pelo objetivo disciplinar, nada pode escapar do previsível, o
novo ameaça, a rigidez tem de ser absoluta, a flexibilidade ameaça:
A experiência na [U.I. X] foi um ano. Olha, esse um ano! (riso). Foi de
tudo, viu? Teve, inclusive, rebelião nesse um ano. O primeiro semestre
foi de adaptação com a Unidade. Porque de lá, de todas as Unidades, a
95
X tem um funcionamento... bem... metódico, que bate bastante comigo,
com certeza (riso). que é um metódico que, em primeira instância,
[comparando com] a experiência que eu tinha fora, foi um pouco
chocante... Porque a forma do pessoal tratar os professores, a forma
de... Colocar, muitas vezes, acabava sendo... Como se os professores
fossem um pouco... Inexperientes ou... Como eu vou dizer? Dava uma
sensação de impotência na gente e de irresponsabilidade, coisa que para
mim era um choque, o sei para os outros, para mim era (riso). No
sentido de que [ouvíamos]: “vamos, vamos, vamos” (bate palmas como
se estivesse querendo apressar alguém). Coisas assim... Sabe? Eu sei o
meu horário, sei que eu tenho que ficar dentro da sala; porém, uma série
de burocracias acaba te emperrando, porque diferente de uma escola
fora dali. Uma escola fora você chega, assina seu ponto, você tem seu
armário guarda o seu material, pelo menos, normalmente. Não vou
dizer que todas sejam assim, mas a experiência que eu tinha até aí, pelo
menos da última, tinha sido isso e... Antes de entrar para aula os
professores têm um certo tempo para entrar na sala, conversam entre si
e tudo o mais, bateu o sinal vai para sala. na FEBEM não tem sinal
(risos) - começa a diferença - mas tudo bem, tem o relógio e tudo
mais. Mas, você tem que contar o material das salas, tem que assinar um
papel dizendo quanto que você está levando de material; o lugar que
você assina o ponto é diferente do lugar onde você a aula; o lugar
onde você pega o material também é diferente do lugar onde você a
aula; para entrar na sala de aula você tem que esperar abrir as salas,
então, tem toda uma burocracia antes, que nada, nada se você bobear
uma hora, praticamente uma hora e isso não é considerado
atualmente, nem se recebe por isso...
(...) e todos têm que ter esse procedimento de entrada, de saída. Entrar,
contar o material, depois sair e devolver. Tem que estar certinho o
material, não pode sair da sala se não estiver certo, enfim, existe uma
série de procedimentos lá dentro. Nem sempre os professores novos
recebem essas informações, eles vão aprendendo, infelizmente, na
marra. Então, também têm grandes falhas ali... Grandes buracos
negros... Já tem o da Educação que vem de fora; lá, esse buraco ainda é
96
mais profundo, mais problemático, então, você tem outras situações ali
que não têm fora, mas somam-se às de fora, às situações e às
problemáticas de fora... (ANGELA)
Além da rotina dominada pela burocracia, o professor tem que lidar com duas
instâncias decisórias: a direção da escola e a direção da Unidade de Internação, mais a
presença de outras equipes que trabalham na escola:
Então, o que acontece, houve um certo choque sim, principalmente,
porque você tem também (riso) várias estruturas: você tem uma vice-
direção da escola, com uma secretaria, então você tem que dar
satisfação para essa vice-direção; mas, você também tem que dar
satisfação para o coordenador da Unidade, que fica no outro lugar.
Além disso, você ainda trabalha com mais uma equipe que é a equipe
que fica no pátio... Então (risos)... Olha é meio complicada a coisa, meio
complicada... Para engrenar e se adaptar a tudo isso... (ANGELA)
É pouca a autonomia concedida aos professores:
Você tem que estar lá, tem que saber onde está pisando, o que pode, o
que não pode, mesmo porque tem muita cobrança. Então, a gente não
pode, tudo não. A maior parte é não e bem pouquinho é sim. É
complicado... (...) Tem um professor que teve uma decepção grande. Ele
dava aula de química. Nossa! Ele vinha tendo idéias mil. Ele estava na
USP. Não lembro o nome dele, bem novinho. Nossa! Ele foi podado
porque chegou com novidade, entendeu? Então, não pode. Tudo que é
novo não pode. Tudo o que tem que mexer, fazer a gente tirar o corpo
da cadeira, não pode. Tem que ficar ali, todo mundo sentadinho,
quadradinho. Eu gosto das carteiras em círculo e me perguntaram por
quê. Porque é melhor, eu posso ver todo mundo. Se me chamam, eu
posso chegar, não preciso estar esbarrando em ninguém. Então, tudo
que é diferente, a FEBEM estranha. (MARISA)
Muita cobrança e controle. O apoio, no entanto, deixa a desejar:
97
Entrevistada: (silêncio) Dificuldades? Como professora, eu o vejo
dificuldade. A dificuldade que eu poderia dizer é que não tem uma
pessoa que pudesse estar cooperando com a gente em relação ao
material. Material eu tenho. O que eu quero, na minha sala, por
exemplo, ela é pequena, tem uma lousa e eu uso as paredes. Por
exemplo, se eu quero trabalhar um texto, eu o posso levar um livro
para cada um, então, eu não trabalho um livro, eu trabalho textos. (...)
eu vou levar o que, vários “xérox”, mas, não pode. Eu falo assim,
alguém que pegasse e falasse: Não, vamos fazer isso aqui porque é
necessário”. Ou que, de repente, tivesse orientando os professores que
estão meio perdidos para que a coisa funcionasse.
IV.3. A relação professor-aluno
A escola é um corpo estranho dentro da FEBEM, causa desconfiança até para os
adolescentes internos.
Quando relata seu primeiro dia de trabalho, Marisa apresenta outra dimensão
vivenciada pelos professores que lecionam na instituição: o desafio de ensinar alunos
que testam o professor a todo momento, num mecanismo de intimidação inicial, de
provocação, até que algum vínculo seja construído:
Então, meu primeiro dia na FEBEM. Foi assim... Adrenalina total! Eu
cheguei numa sala de aula, uma sala super cheia. Os alunos já tinham
apavorado uma professora e achavam que iam me apavorar também.
Então, quando eu cheguei na sala de aula me apresentei a eles, porque
eles me viram (no pátio), mas não sabiam para onde eu ia. Eu falei que
ia trabalhar com eles. Então, um deles, chamado Anderson não
esqueço o nome desse garoto sentado na primeira carteira, se esticou
todinho, com a mão dentro da calça... Olhou para mim, ficou o tempo
todo me olhando, me medindo. , eu falei que eu ia tentar ensinar para
eles alguma coisa. Então, ele pegou, olhou para mim e falou assim: “A
senhora vai tentar, senhora?” (tom irônico)... Bem assim, me lançou um
desafio; foi um desafio. eu falei para ele: Não, eu não vou tentar, eu
98
vou ensinar... Aí foi. Passaram-se, sei lá, muitos Anderson passaram por
mim. Esse, quando foi embora, saiu alfabetizado. (...)
Não é difícil entender a postura dos internos frente uma pessoa desconhecida.
Para tanto, não é necessário nem evocar suas histórias de vida, marcadas, geralmente,
por perdas e quebras de vínculo e de confiança muitas vezes dramáticas. As
características da própria instituição em que se encontram, punitiva e violenta, e os
rituais estabelecidos neste local como estratégias de sobrevivência são suficientes para
justificar a desconfiança e o afastamento iniciais.
Angela relata a dificuldade que teve em lidar com um aluno que,
constantemente, testava seu poder de influência sobre ela e outros alunos. Este garoto
era uma liderança na Unidade e sua atitude inicial, com quem quer que fosse, era de
provocação e embate. Ao professor que leciona na FEBEM cabe identificar essas
lideranças, conquistá-las, construir alianças. Do contrário, sua situação dentro da
Unidade pode ficar bastante desconfortável:
(...) eu tive algumas situações particularmente difíceis... Uma,
especificamente, com um aluno que era muito difícil... E que ficou
praticamente quase que o ano todo. Foi muito difícil lidar com ele. Eu
acho que esse marcou porque foi um caso particular particular no
sentido de que a crise dele era tão grande e tão... Contagiante, que eu
tive que me manter muito firme para acabar não misturando... A
emoção com a razão. A emoção no sentido de você se manter firme para
poder orientar esse menino, porque a crise dele era muito grande e com
isso o que ele fazia: ele fomentava a discórdia dentro da sala. Às vezes,
até chegava a ser desagradável com o professor em sala de aula.
Desagradável assim, mal criado mesmo, grosseiro. E isso é difícil de
lidar quando isso é uma coisa persistente. Porque, via de regra, eu
consegui manter impecável a questão do respeito, de uma certa ordem
em sala de aula; uma disciplina que eu acho que está bom. Eu acho que
está bom porque não existe cem por cento de disciplina lidando com
adolescente...
99
A escola é aprisionada. Nesse sentido, a relação professor-aluno é permeada
pelas características de uma instituição prisional e tem que ser construída dentro dos
limites impostos por tais características.
As condições psicológicas vivenciadas pelos alunos na FEBEM-SP requerem
que o professor não se esqueça do local onde está trabalhando e a influência dele sobre
o comportamento dos alunos:
Olha, Juliana, eu penso que mesmo aquele adolescente que está ali....
Quando eles chegam na [FEBEM] parece cachorrinho que caiu da
mudança, que perdeu a família de repente, que fica perdido... Eles ficam
totalmente, parece que estão totalmente... Eles ficam revoltados. Vão
para a sala de aula forçados, porque eles têm que ir forçados. Então,
mesmo que revoltados, mesmo que forçados, com toda essa confusão
que está na cabecinha deles e, mesmo não fazendo nada, eu falo: eles
não são surdos. Eles estão ouvindo e isso uma hora vai... Ele não é...
Eu falo assim, burro, não existe pessoa burra. Existe pessoa que, de
repente, não parou para pensar direitinho no que está sendo falado.
Aquele garoto que está sendo mais rebelde e que está se fazendo de
louco, como eles dizem, não quer falar... Uma hora ele vai responder
alguma coisa sobre o assunto, ele não vai agüentar. (MARISA)
Nesse contexto, Marisa e Angela tentam repor a escola como um espaço possível
de aprendizagem, de aquisição de conhecimentos:
Eu falo que eles não são uma porta. Estão ali sentados, estão
revoltados... ninguém nasceu para viver longe. Como é que fala? Sem
poder ir para onde quer e vir. A gente fala assim:
_ “Você sabe porque você está aqui. Você fez alguma coisa que não era
certa. Era certo?”
_ “Não”.
_ “Então, você foi pego; a polícia te pegou, te levou para o juiz, o juiz te
julgou e falou que vodeveria ficar um tempo aqui. Então, e agora?
Você vai ficar o que? O tempo todo chutando, batendo, xingando. Vai
fazer o que por você? Vai te adiantar o que? Nada. Então, por que você
100
não aproveita esse tempo para estudar um pouquinho? Porque fora
você não estudou. Aprender, porque não aprendeu fora. Usar o seu
tempo aqui para isso. Não vai adiantar nada [se revoltar]”. (MARISA)
Quando você chega e vai dar aula na FEBEM, que você entra e escreve
o nome da escola vinculadora na lousa porque a FEBEM tem a escola
vinculadora e você diz para os alunos: “Olha, aqui é a escola e o
nome da escola é tal”. (...) Você colocar o nome da escola é motivo de
riso. De riso e de indagações sem fim:
_ “ Como que aqui é a escola?! Aqui é uma prisão!”
_ “Não, aqui, neste momento, é o momento que nós temos para estudar.
Não para levar 100 meninos lá fora nessa escola. Como vocês estão
aqui por uma razão, que vocês sabem também, não dá para pegar os 100
e levar fora, então, a escola vem aqui até vocês; e este é o nosso
momento”.
Mas, eles não têm a idéia... e, nem assim, a... clareza do porquê eles
estão ali, porquê eles estão na escola, para que serve a escola, aonde
chegar com esse conhecimento da escola. Eles não conseguem ter essa
visão, essa noção do significado, do porque é importante, isso em termos
gerais, em qualquer disciplina, qualquer disciplina... (ANGELA)
O ambiente da sala de aula pode ser um lugar de construção de um vínculo de
confiança dos alunos no professor. Por meio do vínculo construído com o professor, a
escola pode se tornar um espaço de aquisição de conhecimentos e de acolhimento do
adolescente internado:
(...) não adianta ficar em cima deles. Ali dentro não adianta. Você pegar
e forçar e falar: “você tem que fazer”. Não adianta. Ali não funciona
assim. Tem que conquistar aos poucos, sabe? Ele adquirir confiança na
gente também, você viu isso lá. Quando ele confia em você, que você
pára, você ouve... Quer dizer, tem que deixar ele falar. Ele quer falar,
ele precisa falar. Então, ele começa a falar e vose torna amiga dele.
Então, ele te procura e você nunca pode falar... se você tiver muito
ocupada: “Depois, na hora do intervalo a gente conversa. Agora não dá
para falar”. Aí, você não pode esquecer. Se você esquecer, você negou a
101
voz para ele. Então, você tem que parar e conversar e ouvir. Então, você
escuta, deixa que ele fale tudo o que tem que falar, daí você volta de
novo no assunto. Responde o que ele queria, se você puder responder,
depois volta na escola: “Olha, mais é importante estudar”. A gente
sempre está reforçando: é importante, é importante. (MARISA)
Esta professora complementa sua visão da importância do professor na FEBEM,
ao falar de sua relação com os alunos:
Uma relação boa. Uma relação de amizade. É o que eu te falei, a gente,
primeiro, tem que conquistar. Ele não pode sentir - pelo que eu tenho
percebido esse tempo que eu tenho dentro, o que eu converso com ele
ali, ele confia em mim. Ele tem uma confiança na gente, nem em todos.
Mas, o professor... Pelo que eu percebo, em mim, na Márcia, eles
confiam. A ponto de falarem coisas deles, da família deles: da mãe que
está doente; da e que está presa; do irmão que foi não sei para onde.
Eles contam muito; do filho, das ansiedades deles. Então, para mim,
isso é super importante. Eles não falam para qualquer um. E quando
eles comentam isso com a gente, eu o chego e não conto para
ninguém. Eu não falo para a coordenadora, eu não falo para a técnica,
eu não falo para ninguém. Se ele tiver muito ansioso, eu pergunto para
ele:
_ “Você quer que eu converse com a sua técnica?” Se ele falar:
_ “Não, senhora, eu não quero. Aquela senhora está me tirando
43
e não
sei o que lá”.
Então, eu não posso falar. Porque se eu falar e ela chamá-lo para
conversar, ele vai se sentir traído. Então, eu acho que eu tenho uma
relação de amizade com eles, boa, de confiança. A ponto de, não agora,
em outros tempos, deles chegarem para a gente, em dias que iam ter
alguma confusão, eles chegarem e falarem: “Senhora, não vem;
senhora, não fica”. Hoje, até está acontecendo, você viu. Esses dias, a
partir de maio, teve rebelião, levou, na YY não foi professor, mas
levaram funcionário para o telhado; mas, professores, o ano passado
43
Está me tirando: está fazendo pouco caso; está tratando com descaso ou ainda, fazendo chacota.
102
levaram na YZ, mas nunca tinha acontecido. Porque para eles o
professor é a pessoa mais próxima, é como se fosse alguém muito íntimo
deles. É aquela pessoa que ele senta, que conversa e que ele sabe que
não vai delatá-lo, como eles falam. Então, eu tenho um relacionamento
bom. Tenho alunos que dão problema, tenho (...)
Como em qualquer instituição total, a manifestação de afeição dentro da
FEBEM-SP, é extremamente controlada, reprimida, proibida (Goffman, 2003).
Disciplinamento e afeição são conceitos opostos.
Para os professores, no entanto, a demonstração de afeição é fundamental na
construção do vínculo professor-aluno:
(...) quando você pega e põe a mão na cabeça dele, você pega, você
abraça. Que não pode de jeito nenhum. Não, não pode. Mas, a gente fala
que, dependendo da situação, é fundamental um abraço. Um garoto, foi
no comecinho desse ano, eu cheguei de manhã, ele me abraçou... Não
sei se foi depois de um final de semana, numa segunda-feira. Eu fiquei
até sem jeito, porque ficou todo mundo me olhando. que eu não falei
para ele não faça isso”. Porque eu percebi que ele não fez por
maldade, estava com saudade. E eu comentei com a Sandra
44
depois:
“Olha, aconteceu isso, todos os funcionários ficaram me olhando, só que
ele me abraçou e eu deixei ele me abraçar. Eu segurei na cabecinha
dele, encostei ele aqui no meu peito, ele é pequenininho... ela pegou e
falou: “Tudo bem, mas evita”.
Isso tudo é muito complicado. Principalmente para a gente, que é
professora, a gente é observada o tempo todo. As pessoas censuram
muito qualquer coisa que a gente venha a fazer. Agora não, agora a
gente já pode cumprimentar segurando na mão, mas teve uma época que
a gente não podia dar a mão para eles. Nossa, como é difícil! Um dia eu
falei: Gente, eu não consigo me imaginar educando, ensinando meu
aluno sem por a mão nele! (...) Então assim, eu não consigo. Não tem
como você ensinar sem tocar; não . Eu falei para a Sandra: “É um
conjunto. Não me pergunte por que eu não vou saber jamais explicar
44
Sandra é o nome fictício da coordenadora pedagógica da Unidade pesquisada.
103
isso. Mas, faz parte”. Aquela coisa: o toque, mais o conteúdo, mais o
que acontece, até as briguinhas, as brigas deles na sala de aula,
dependendo da briga, é a briga do irmão que não teve em casa. (...)
então, aprendizado é troca; é um conjunto de coisas que faz com que ele
aprenda.
Pesquisadora: Como é que se constrói vínculo sem estar próximo?
Marisa: Não tem condições, não tem. Não tem...
Pesquisadora: E como é que se ensina sem ter vínculo?!
Marisa: Não tem como; não tem como.
Pesquisadora: Essa é a grande questão...
Marisa: Não, não tem. Uma coisa sem a outra não funciona. É tudo
juntinho, muito junto mesmo. (MARISA)
***
A forma como essas professoras constroem, no dia a dia, a relação com seus
alunos, é orientada pela imagem que têm deles; por suas concepções sobre o adolescente
em conflito com a lei e como educá-los, marcadas pela ambigüidade.
Ao falarem da vida de seus alunos atualizam o discurso corrente no meio
educacional sobre a “família desestruturada”:
(...) agora o aluno, também, o contexto dele, hoje, é muito difícil.
Porque ele não tem nem um contexto na casa, na família, um contexto,
na maioria das vezes, o contexto é... Como é que eu vou usar a palavra?
Na família, na maioria das vezes, disfuncional, na maioria das vezes.
(ANGELA)
Expressam também outro mito comum sobre as dificuldades de aprendizagem
problemas cognitivos ou psicológicos impedem o aprendizado, que tem sido chamado
pelos estudiosos da área de “psicologização” do fracasso escolar:
Então, eu tenho dois alunos... Eu tenho na sala o Carlos e tenho o
Reginaldo, dois alunos que não vão aprender. O Carlos tem um
problema de... ele é débil mental, então já vai ser encaminhado. Agora o
Reginaldo tem um outro problema, ele nasceu colado com o irmão, pela
104
cabeça. Então, tiveram que operar e um deles foi sacrificado estou
falando até baixinho (risos). A técnica dele falou que, segundo ele, a mãe
fala que a parte ruim ficou. Então, esse garoto, tem um bloqueio. Ele lê,
acabou de ler, ele não de novo. Acabou de ler e não de novo. Ele
tem um comportamento que eu acho que ele é retardado. Eu não vou
saber porque eu não fiz psicologia. A minha psicologia é o básico da
pedagogia, as coisas bem básicas mesmo, não aprofundei nada. Ele
tem dezoito anos completos, está porque quando cometeu o delito era
menor, então ele tem que ficar. Mas, a minha neta tem um
comportamento mais adulto que ele, ela vai fazer oito anos. Ele se
comporta como uma criança e os meninos querem bater nele toda hora,
porque ele não pára. Ele brinca com tudo, ele não leva nada a sério, não
fala nada sério. que ele está brincando e está escrevendo e acaba de
copiar primeiro que todo mundo. O caderno dele é o caderno mais
organizado que tem na sala. que ele não aprende e é bloqueio
mesmo.
(...) que assim, no caso do Reginaldo e do Carlos, eu não fico
frustrada. Não fico e fico. Porque quando é um problema de
retardamento, você sabe que é uma coisa que foge do que você poderia
estar fazendo por ele. O que esse garoto pode aprender a fazer?
Então assim, eu não me sinto frustrada em relação a isso, porque é uma
coisa que eu não vou conseguir alcançar.
No caso do Reginaldo, eu me sinto frustrada porque eu sei que é
bloqueio. Como eu vou fazer para quebrar esse bloqueio eu não sei.
Pesquisadora: E esses diagnósticos de onde vem?
Marisa: Ah, isso vem de fora.
Pesquisadora: Não é da FEBEM?
Marisa: Encaminhado por especialista; não da FEBEM. Eu nem posso
usar esse termo numa avaliação, num relatório dele. Eu coloco que ele
tem muita dificuldade de aprendizado. Jamais eu posso falar isso, eu não
sou especialista. É um diagnóstico feito por alguém que é da área
mesmo, da área médica. (silêncio) (MARISA)
105
Família desestruturada, problema psicológico, pobreza. Rótulos presentes no
imaginário e nas práticas pedagógicas desde o século XIX, no Brasil. Mas, não falta
compaixão pelas condições de vida de seus alunos:
Eu sim, consigo imaginar o que é o contexto desses meninos, isso eu
consigo imaginar e fica muito difícil realmente. Fica mais difícil do
que você ver um aluno quando ele está fora... Porque, esse ainda, para
mal dos pecados, numa linguagem bem popular (risos), ainda cometeu
algum delito, que na maioria das vezes, o professor não sabe qual foi.
Alguns mais graves, outros não, mas cometeu um crime e acho que a
maioria vai estar reincidindo na coisa infelizmente. Porque não tem as
condições necessárias para viver de outra forma... É lamentável (olhos
marejados). (ANGELA)
E a compaixão pode levá-las a perceber aspectos da vida dos internos ignorados
pela instituição:
Para ele, o contexto normal ou o contexto dele de vida é, de um lado, a
bandidagem, o tráfico de drogas, as armas... Este é o contexto deles. A
família num outro pólo, a família como sagrada. A mãe, então, nem
pensar em mexer! A mãe é um ser sagrado, o único ser que o ama é
isso o que a gente ouve todos os dias. Quando tem! Quando tem mãe,
quando tem pai. Mas, do pai eles quase não falam, eles falam muito é da
mãe mesmo. Mas, não consegue enxergar o todo: a família dentro de um
social, dentro de uma comunidade que tem um governo maior e uma
presidência que forma o país que ele vive e do qual ele é filho. E de que
forma ele pode atuar dentro disso. Para ele, a única organização que
existe e que pode fazer alguma coisa por ele é o mundo da bandidagem...
Muitos até vislumbram, sim, vislumbram uma luz no fim do túnel...
Mas, parece algo muito longínquo, muito distante dele alcançar.
Então, via de regra, eles colocam: _ “Eu nasci assim, minha vida é
essa...” E muito pior ainda que isso: eles têm plena certeza de que o fim
deles é a morte e logo! Então, eles têm plena certeza de que a vida deles
é isso: ou matar ou morrer – e logo!
106
Então, tem essa divisão, esse paralelo. As coisas caminham como se o
mundo deles fosse um e o resto fosse outro mundo! Infelizmente é uma
realidade que você percebe no dia a dia. (ANGELA)
Os adolescentes internos têm consciência do risco iminente de morte e falam
sobre isso com freqüência. Para quem se inserido num círculo de matar ou morrer, a
escola pode não ser prioridade. Mas, a existência neles do desejo de viver faz com que
alguns professores que com eles trabalham mantenham alguma esperança de que seu
trabalho não é em vão. Apesar de os internos serem obrigados a freqüentar a escola,
Marisa acredita que eles querem, de fato, aprender e que são capazes de perceber
quando o professor está interessado em ensiná-los:
O garoto na FEBEM chega de manhã para aula, senta porque ele quer
aprender. Eu consigo enxergá-lo assim. Ele quer aprender. Então, ele
espera muito do professor... E o garoto da FEBEM que está ali dentro,
ele tem assim uma... sabedoria que eu acho que os daqui de fora não
têm. Ele consegue olhar para o professor e ele sabe se o professor... Ele
consegue detectar se o professor sabe e vai ensinar. Se ele olhar para o
professor e ele perceber que o professor não vai conseguir ensiná-lo, ele
larga e começa a desrespeitar, brigar, fazer tudo que eles fazem. Então,
eu consigo enxergá-los desse jeito. A grande decepção da gente é ver
professor que chega na sala de aula de manhã, ou qualquer dia, sem
preparar nada e o aluno percebe isso. Então, quando o professor vai lá
para frente e começa a falar qualquer coisa, o aluno fala assim: “E aí,
senhor? O senhor não vai dar aula não?” E ele falou e começa a
escrever qualquer coisa, o aluno decepciona. Ele fala: “vai ser mais um
que não vai me ensinar nada...” Para mim, eu os enxergo desse jeito,
depois de estar com eles sete anos.
Os próprios internos, ao questionarem Marisa sobre suas razões para lecionar na
FEBEM-SP, ajudam-na a explicitar a maneira como os vê:
Eles falam:
107
_ “Oh senhora, por que a senhora não vai dar aula no mundão? A
senhora dá aula no mundão?”
Eu falo:
_ “Não”.
_ “Mas, por que a senhora não aula lá? A senhora vai vim dar aula
aqui para bandido, senhora? Bandido vai prender, depois ele vai sair e
vai roubar...”
- “Bandido não. Para mim você é meu aluno. Eu não estou te cobrando.
Eu não te julguei. Aqui é nossa sala de aula e você é meu aluno”.
Eu falo assim:
_ “Olha, o que vocês vão fazer com aquilo que vocês aprenderam... Eu
gostaria muito que vocês usassem para o bem de vocês, agora se for sair
daqui e for roubar... Eu vou ficar triste, mas, eu vou fazer o que? Pelo
menos aprenderam algumas coisas. Eu tenho certeza que um dia vocês
vão parar e vão refletir, a esperança que a gente tem é essa, que um dia
pare e pense e use o que aprendeu para o bem de vocês”.
Aos olhos de Marisa
45
, muito dessa imagem social que os retrata como bandidos
e internalizada por estes jovens pode ser abalada pela maneira como o professor se
apresenta a eles:
O que eles fazem? Eles estão todos mascarados. (...) Por que? Quando
chegam lá, eles têm que botar aquela máscara de bandido e te olham
feio. Na hora que você chega perto deles e que eles percebem que vo
gosta deles, que quer ensiná-los... Um dia, um garoto chegou e falou
assim: “Ih, maluco. Essa senhora não é igual aquelas professoras do
mundão, não. Ela quer te ensinar de verdade”. Ele não falou para me
agradar; ele não falou para me agradar. São falas que a gente vai
ouvindo no decorrer desses anos, então, nossa! Isso para mim é uma
vitamina... Sei que nome eu dou para isso que me faz sentir mais
vontade de ensinar, sabe? Lá entre eles, papo deles.
***
45
Angela não é citada porque em seu relato não faz menção a tais temas.
108
Junto com sua missão de alfabetizar, Marisa tem como objetivo transmitir aos
seus alunos conceitos básicos que ela entende que faltaram em suas vidas. Essa crença
demonstra a concepção que tem dos adolescentes internos. Concepção marcada pela
idéia da falta - falta de atitudes e valores fundamentais para o convívio em sociedade.
Vê na relação professor-alunos a oportunidade para suprir o que não têm:
A gente fala para a nossa coordenadora pedagógica de certos filmes que
a gente acha que deve estar levando para eles, as histórias, livros. Sei lá,
tudo que a gente faz, a gente está o que? Fazendo com que eles formem
conceitos. Eles não têm nenhum conceito formado. Quem foi que esteve
presente na vida deles, na época que eles precisavam, para fazer com
que eles formassem conceitos? Conceito de família, conceito de cidadão,
os conceitos que são necessários para as vidas das pessoas. Quem foi?
Então, se eles não tiveram isso aqui fora, por razões, sei lá, por mil
motivos, então, a gente agora é que tem, eu acho assim, que a gente tem
a chance de estar fazendo isso. Porque você esteve lá, você sabe, com a
gente ele não é mascarado. Ele, é ele mesmo. Então, você acha que você
vai perder essa chance?! De estar ajudando ele a ver certas coisas?
Você não vai perder. se você for louca! Então, eu tenho procurado
fazer isso. Sabe, são os meus alunos... E assim, eu fico super-feliz!
O objetivo de Angela como professora na FEBEM é ampliar o referencial dos
alunos, com discussões que abordem a responsabilização de cada um pelo coletivo e que
busquem com urgência a transformação da vida de seus alunos e do próprio país:
(...) eu sempre procuro ouvir muito e prestar muita atenção naquilo que
eles dizem. Eu acho que tem uma troca de crescimento de ambas as
partes. E o jovem, especificamente, não necessariamente o da FEBEM,
mas o jovem, especificamente, ao contrário do que a gente imagina, ele
tem muita coisa para estar dizendo, sim e a gente tem que entender e
saber interpretar isso, que também não é muito fácil (riso).
(...) Agora, o ponto que você coloca especificamente: “Olha, você aqui
dentro da sua comunidade. O quê você pode fazer para mudar esse seu
contexto, de que forma você pode atuar?” Esse tipo de discussão é uma
109
coisa que acontece bastante dentro da FEBEM e que a gente tenta
através destas conversas, destes debates e muitas vezes de atividades
mesmo, mais específicas, estar abrindo novas portas, novos horizontes
para os meninos.
Ele não consegue enxergar como que ele ali vai estar influenciando o
governo, ou até as ações do presidente da República: “ Eu , imagina! Eu
um insignificante adolescente de 14 anos...” Mas... é necessário, sim,
através da educação e desse auto-conhecimento mesmo do menino, ele
estar crescendo e vendo que um depende do outro. Cada um funciona
meio que como uma lâmpada dentro de uma comunidade, cada lâmpada
tem que estar acesa. momentos em que ela está apagada, mas cada
uma tem que estar acesa e cumprindo o seu papel.
(...) O menino não consegue se enxergar dentro de um contexto social
como um todo, ele se vê sempre naquele mundinho dele e mal se vê nesse
mundinho dele: _ “Olha eu nasci assim, eu tenho mesmo essa vida
difícil...” E parece que aquilo não tem condições de mudar; ele não
consegue enxergar além; fica meio que uma redoma entorno do menino.
Então, eu procuro sempre estar puxando, sim, essas questões.
O adolescente internado é como uma jóia bruta a ser lapidada pelo professor:
Às vezes, é uma questão de aparar, de lapidar o diamante, vamos
dizer assim. Eu acho que a missão do professor na FEBEM é bem essa, é
lapidar o diamante, no dia-a-dia, com muita calma, muito cuidado. Você
tem que saber usar o instrumento que você tem, para não estragar... E
também para que ele tenha todo seu brilho resplandecendo. (ANGELA)
IV.4. A relação escola/FEBEM
Os ditames institucionais determinam não a maneira de construir a relação
professor-aluno, mas toda a forma de conduzir o trabalho docente. Tal fato faz com que
o trabalho do professor em sala de aula seja constantemente interrompido. A
rotatividade de alunos também é grande, visto que a entrada ou saída de alunos numa
110
classe não segue o calendário letivo, mas o início ou término da internação. Assim, uma
questão se coloca: como ensinar tendo em vista a especificidade da instituição?
A rotatividade dos internos faz com que apareça nos relatos das professoras a
tarefa sempre reposta de conhecer os alunos com quem vão trabalhar:
(...) não adianta chegar com nada pronto. Você até vai com alguma
coisa pronta, você tem que levar alguma coisa pronta no começo. Mas,
primeiro você tem que conhecer quem são eles que estão lá. Em julho eu
deixei uma turma, eu voltei é outra turma. Mudou tudo! E aí, eu vou
continuar? Se fosse a mesma turma, eu saberia onde eles estavam, mas
esse pessoal novo eu não sei. Estou sabendo agora. Agora eu já sei.
(...) Então, tem que ter um começo. É aquela coisa, você um pontapé
inicial. Tem as regras, lógico, que eu vou conduzir essas regras de
acordo com o que eles vão me mostrando. Eu não vou impor; eu não
posso impor. Senão, eu chegaria lá, pegaria a cartilha “Caminho
Suave” e “ vamos lá, copiar, decorar”. Faria assim, não é? (MARISA)
Angela e Marisa descrevem o que, a seu ver, é fundamental ao trabalho do
professor na FEBEM:
(...) a minha experiência diz que:
- Primeiro, trabalhar em cima de um planejamento muito fechado é
totalmente impossível. O planejamento tem que ser totalmente flexível -
é uma das coisas;
- As atividades têm que ser pon-tu-ais. Começo, meio e fim naquele dia.
Falou de pronome, você fala naquele dia. No máximo você vai retomar e
avançar... Com certa dificuldade, porque também você tem uma
rotatividade grande. O que eu dei na segunda pode ser que na sexta tem
aluno novo que não pegou... É complicado. Então, as atividades têm que
ser pontuais e diversificadas. O planejamento, praticamente tem que
rever toda semana, para ir adequando, também, aquilo que eles trazem...
(ANGELA)
111
Você tem que ser firme, você tem que ser firma na sua fala, você tem
que ser uma pessoa que tem que ter... Sei lá, você tem que ter atitude,
eles falam que a pessoa tem que ter atitude. Você não pode ter medo de
olhar para eles. Eu cansei de falar para professor: “Gente, vocês não
podem ter medo de olhar para eles. O adolescente quando ele fala com
você ele olha no teu olho. Se você desviar o olho, era!” Eles ficam em
cima da gente assim ó, falta entrar dentro do olho, falta entrar na
mente da gente, não é verdade?
Pesquisadora: Você não pode se deixar intimidar...
Marisa: Não, não. Então, ele te olha, te mede, lembra como eles faziam?
Te medem, eles te olham da unha até aqui, entendeu? Você tem que
olhar, cruzar o braço e encarar. Você vai fazer o que? Se você quer
trabalhar com ele, você tem que encarar, sem ter medo. O que ele está
pensando sobre a sua pessoa? Puff... Eu falei, pensamento é livre, eu
falo para eles. Vocês podem pensar o que vocês quiserem, desde que não
falem. (MARISA)
Angela lembra da importância e do poder da palavra na FEBEM:
Para o professor, na minha opinião ainda, um ponto crucial dentro da
FEBEM para você dar aula é honrar a palavra dada. Jamais diga aquilo
que você não vai poder fazer, nem prometa nada, que, aliás, isso já é, de
uma certa forma, uma regra... E, se você fala que você vai fazer, você
faz; porque eles são muito observadores e extremamente rigorosos na
cobrança das coisas. Então, eu digo que eles têm memória de elefante
para determinadas coisas e eu jamais vi tamanha organização num
grupo como funciona entre os meninos dentro de uma FEBEM.
Organização, planejamento, execução, avaliação do que fizeram e tudo
isso, muitas vezes, na memória. Nem a Educação, com toda a
estrutura, tem essa organização, esse planejamento... Isso é uma coisa
impressionante e isso é uma coisa que a gente tem que valorizar e
então, usar estas estratégias para que a gente possa trazer esses
meninos atuando dentro de suas comunidades. que eles têm
organização, têm planejamento, isso meio que... Eles se juntam e
112
conseguem fazer isso facilmente. Com uma facilidade, uma rapidez
impressionante. E eles têm tudo para isso: eles têm bom senso,
paciência, inteligência, experiência. Então, como que a gente vai usar
isso a nosso próprio favor, a nosso favor, no caso deles.
Destaca-se também a importância do professor estar comprometido com o
trabalho. A ausência de compromisso presente entre alguns professores demonstra o
preconceito em relação aos internos:
Então, imagina que você é professora e você escolhe trabalhar dando
aula na FEBEM, por exemplo. Você sabe o que é a FEBEM, você sabe
que ali dentro tem menor infrator, desde aquele menino que roubou uma
galinha, até aquele garoto que roubou um banco, seqüestrou e matou.
Você sabe quem são e o que eles fizeram, você sabe quem são.
(...) só que assim, Juliana, se você, quando entra numa sala de aula, não
olha para aquele adolescente ali como aluno e ignora, esquece eu sei
que ele está ali cumprindo uma medida sócio-educativa, que eu não
olho, para mim eu não quero nem saber o que ele fez, porque se eu
olhar, eu não vou conseguir. Porque se eu souber o que ele fez, de
repente, eu (...) vou julgar. E eu não estou ali para julgar, eu não estou
ali para julgar. Eu fiquei sabendo muitas coisas de alunos meus e,
mesmo assim, eu falei: ele é meu aluno, não quero saber. Eu não sou
juiz, o juiz já o julgou. A sociedade já julgou. Ele mesmo se condena; ele
se condenou. Quando eu falo que ele se condena é porque ele está tão
atormentado pela vida dele, por tudo e por todos da vida dele, que eu
acho que isso é um castigo para ele. Está longe da família,
apanhando, às vezes, não é verdade, Juliana? A gente sabe que
apanham, entre eles, fora deles. Então, para mim isso é o cúmulo da
violência. Se eu olhar para esse garoto como isso que todo mundo fala
que é, eu não vou conseguir trabalhar com ele. Então, imagina só, se
você sabendo tudo isso fala: não, eu quero trabalhar lá, eu tenho uma
proposta e quero desenvolver dentro e quando chega lá... (...) Não
vai. Então, cada dia tem um motivo para não querer entrar e quando tem
rebelião fica feliz da vida. Você entendeu, Juliana?
113
Como é que eu, Juliana, como uma professora que estou ali para educar,
com uma proposta, eu quero ver aquela coisa caminhar; eu quero ver o
adolescente chegar, cumprir o tempo dele e ir embora, em liberdade.
Como é que eu posso ficar feliz com uma rebelião?! Como é que eu,
como educadora, posso ficar feliz com isso? Pegar, olhar para você e
falar: “Agora entra, você quer entrar”. Todo dia eu não quero entrar e
fico forçando os outros a não entrarem e quando acontece isso falo:
“Agora vai e entra” (sarcasmo). Eu não falo com essa pessoa. Eu
falei assim: “O que você está fazendo aqui? O que será que você, na
sala de aula, fala para o seu aluno?! O que você tem para ensinar para
ele?! O que você tem para ensinar para esse adolescente? Está
cooperando com ele em quê? Eu tenho vergonha de saber que você é um
professor. Que você carrega o nome professor’ antes do seu nome,
como eu. Porque para mim, você não é professor não, está no lugar
errado”. (...) Então, Juliana, para mim, quando eu escuto um professor
falando isso; quando eu vejo ficar contente com rebelião; quando eu
vejo passar seis meses nessa sala, sem dar aula direito. De cem dias
olha, o ano tem duzentos dias letivos, se eu não me engano - cem dias
letivos, que é o primeiro semestre, dar vinte e poucas aulas e o resto
receber sem ter feito nada. Então, eu fico pensando, que trabalho que
eles estão fazendo, Juliana? Que trabalho? Me fala, por favor...
(tristeza) Que tipo de trabalho que está sendo feito?Mas, a gente não
pode generalizar. (MARISA)
Para Angela, o trabalho docente deve objetivar a formação cívica dos alunos
presos:
Para dar aula eu acho que esses pontos básicos que eu andei
colocando são importantes e é importante que o professor tenha uma
visão bastante ampla das coisas, para poder passar isso para eles. Que
ele tenha uma visão bastante politizada para poder estar formando esse
lado nesses meninos e outras ações até mais variadas e alternativas são
importantes. Mas, a gente ainda tem muito o que fazer, muito o que
pesquisar também e muito o que aprender. Mas, a cultura desses
114
meninos hoje, ela está sobressaindo e muito, por que o que eles fazem
com o olho fechado? Dance street street dance (riso), brincando; os
raps, mais do que eles não sei se tem; capoeira é colocar e eles fazem.
Então, esse tipo de coisa, teatro mesmo, se você por teatro eles fazem e
são ótimos! Aprendem rapidinho, eles têm muito talento, têm muita
energia, muita energia. Essa energia precisa ser aproveitada e
direcionada para esse país, porque eles são sim, talvez a grande maioria
gente. Então, nós temos que pensar nisso e rápido, então nós temos que
fazer alguma coisa com urgência. Eu penso desta forma. “Ah eles não
têm nada, não sabem nada...” Eles sabem sim, gente e muitas coisas e
precisa ter uma oportunidade para esses meninos, eu acho que essa é
uma lacuna séria.
IV.5 As contradições da escola na FEBEM
Os professores são controlados por mecanismos institucionais estranhos à
escola. Tornam-se reféns da dinâmica institucional da FEBEM:
Bom, coordenador da Unidade, direção da Unidade nos avisa qual é o
procedimento. Normalmente se a gente estiver dando aula e alguém
percebe algum movimento, alguma coisa fora do normal, a ordem, o
combinado entre os professores é um avisar o outro e sair! Sair da
Unidade. Sair do pátio, se estiver dando aula.
Entrevistadora: Isso se o professor percebe alguma coisa estranha?
Angela: Se um professor. Pode, também, ser um agente de pátio que
avisa para sair ou a própria coordenação da Unidade. Então, aí, a gente
sai fora do contexto do pátio, da parte aberta onde tem as aulas e,
dependendo de como estiver a situação, se reúne na sala do pedagógico,
que é fora da parte onde ficam os meninos. E, se ainda tiver mais
problemática, sai da Unidade. Depois, alguém da Unidade vem nos
comunicar o que é para fazer: se é para ir embora; se é para ficar; se
vai ser geral no Complexo; o que está acontecendo. Então, a primeira
coisa é um avisar o outro e garantir que todos saiam. Se for relacionado
aos meninos.
115
(...) Se tiver indício de rebelião ou de algum movimento estranho todos
saem. Aí, normalmente, os meninos são recolhidos, se possível, se
possível (risos). (ANGELA)
Ao professor resta apenas a confiança na relação estabelecida com os alunos:
Entre nós, temos um combinado. Não é bem um combinado. A gente
tenta se preparar psicologicamente para isso. Caso venha ocorrer uma
situação de conflito, tentativa de fuga, rebelião, seja o que for, a
gente, se der tempo de sair, a gente sai. Se não der tempo, a gente tem
que manter a calma. Porque a gente parte do princípio de que a gente
confia no trabalho que faz dentro. Então, a gente confia. Caso
aconteça uma situação dessas, mesmo que um professor seja pego como
refém, não vai ser pego como refém porque eles estão pretendendo fazer
alguma coisa de mal com a pessoa. Então, de repente, eles podem pegar
um professor porque eles estão querendo sair (da Unidade, fugir), então,
que o professor saia junto. Então, a gente vai procurar manter a calma.
aconteceram vários fatos dentro (na U.I. X). O ano passado, em
maio, teve aquela rebelião feia, estava pegando fogo fora (no
Complexo de Internação) e nós dentro tentaram entrar e a aula
continuou normal até o intervalo, quando nós saímos e não voltamos
mais. A própria diretora falou que não era para voltar. Mesmo estando
preocupados, nós procuramos manter a calma. (...) a gente fala:
ninguém vai ficar aqui dentro sozinho. Ou sai todo mundo ou ninguém
sai. Pode ter certeza e é isso mesmo que vai acontecer. Se, na hora do
intervalo, estiver faltando um professor que ficou na sala, ninguém vai
para dentro. Na saída, a mesma coisa.
Quando não começou a aula, a diretora (da Unidade) decide se vai
suspender ou não a aula. (MARISA)
Os professores são como apêndices institucionais. Sobrepõe-se a eles a lógica de
ferro da instituição. Ficam impotentes. Isto fala, de modo eloqüente, do lugar ocupado
pela escola na FEBEM:
116
Pesquisadora: Como é que os funcionários tratavam os professores?
Esse tratamento no dia a dia, mesmo, no corriqueiro?
Angela: Eu acho que de forma geral o pessoal trata bem, mas que se
ter um tempo e não tempo como (risos) também uma certa tarimba,
vamos dizer assim, para você se adequar.
Entrevistadora: O que você está querendo dizer com tarimba?
Angela: Estou querendo dizer que você tem que ter um jogo de cintura
para entender que, muitas vezes, determinadas atitudes não são
exatamente pessoais, mas são necessárias para se manter um ritmo na
Unidade. Então, por exemplo, uma vez a gente teve uma situação de
rebelião fora da Unidade que estávamos trabalhando. (...) Todo mundo
assusta quando tem uma rebelião. Porque de onde você está, você
fumaça, helicóptero, o barulho, enfim. Você não sabe o que está
acontecendo. Vonão sabe se tem colega seu preso e também não sabe
se vai evacuar o prédio ou não. Porque, teoricamente, quando se tem
uma rebelião num Complexo, a ordem seria evacuar todo mundo, o
pessoal, o professorado, enfim. Quanto menos gente na Unidade é
melhor, até por questões de segurança também. Então, a gente
presenciou, viu que estava acontecendo e a postura era sair. Porém,
desde coordenação, funcionários, funcionários de pátio, coordenadores
de pátio, enfim, até a vinda, inclusive, da direção. A direção veio e
falou: “Olha, lá fora está acontecendo isso, o pessoal está lá, as pessoas
devem estar tomando as providências, aqui dentro está tudo tranqüilo.
Eu garanto, vocês podem entrar.”
(...) Inicialmente, a postura dos professores, depois de ver a situação,
era: “vamos sair”. Mas, quando a gente foi sair, veio a direção e nos
colocou dessa forma: “Não, não tem problema. Aqui dentro não está
tendo nenhum problema. Está tudo calmo, nós garantimos.” A minha
sensação foi de tremer por dentro entrando de volta (risinho) para dar
mais duas, três aulas, eu não lembro quantas faltavam. Todo mundo
entrou. Entrou assim, que nem soldadinho, duro (risos)! Realmente
numa situação muito estressante. (ANGELA)
117
Angela relata o medo que sentiu por ter que lecionar numa situação de
insegurança frente ao tumulto que ocorria em Unidade de Internação próxima. Além
disso, o mal-estar instalado pela imposição da direção da Unidade:
Me senti muito mal. Muito mal. Eu olhei, encarei a direção... Foi uma
coisa que incomodou muito. Teve acho que um ou dois professores; um
professor que não voltou, que se recusou e não entrou mesmo. Os
demais entraram. Eu fui junto. Eu tive um apoio muito grande de uma
pessoa, uma professora antiga, que pegou na minha mão e falou: “Não,
vamos lá, olha, respira, não é nada disso, fica calma”. Foi uma pessoa
que me deu a maior força na hora. Depois, eu fui acalmando. Mas eu
estava dando aula ouvindo (risos nervosos) o helicóptero e a boca estava
seca tal a situação de estresse por dentro. E você não pode passar isso
[para os alunos]. Mas minha boca estava seca de tão nervosa.
Em momentos como esse, os meninos também ficam nervosos, agitados,
temerosos, pois não sabem exatamente o que está acontecendo. A Unidade teme que
seus internos aproveitem o tumulto criado ao lado para tentar fugir ou iniciar uma
rebelião. Além disso, pode acontecer de internos rebelados de uma Unidade invadirem
as outras. E, nesse contexto, a ordem para o professor é de que não comente com os
alunos o que está acontecendo fora, tente passar tranqüilidade, normalidade. Angela
continua seu relato:
Entrevistadora: E os meninos percebem o que esacontecendo, porque
eles ouvem os helicópteros...
Angela: Eles ficam fazendo perguntas, que nem a gente, todo mundo fica
em pânico. Eles também têm medo, porque de uma Unidade para outra
você nunca sabe, os outros podem vir para essa. (...) A fala era: “Aqui
está tudo bem. Está tendo algum problema fora, mas está tudo... Eu
não lembro agora qual era a fala exata, mas todo mundo tinha que falar
a mesma coisa”.
Diante da situação vivenciada instala-se a ambigüidade de sentimentos - medo,
raiva, admiração:
118
Olha, a lição desse dia, para mim, foi: ao mesmo passo que eu tive
raiva, muita raiva naquela hora da direção; depois eu tive, também, na
mesma proporção, uma grande admiração. Fiquei pensando,
imaginando como é que é isso. Como é difícil, como é que é o grau de
responsabilidade, de sensibilidade e de coragem que você tem que ter
para falar para um grupo, que não eram os professores envolvidos,
têm todas as outras equipes da Unidade e os próprios professores
envolvidos, quer dizer, é muita coragem. Então, o grau ficou na mesma
proporção. (ANGELA)
O funcionamento da escola na FEBEM é marcado por aparentes incoerências.
Num momento, os professores são obrigados a dar aulas durante uma situação de
insegurança, tensão e medo. Em vários outros, as aulas são suspensas sem aviso prévio.
Um olhar mais apurado pode trazer o verdadeiro significado desses acontecimentos: a
escola serve como instrumento para a realização do controle dos internos. As
professoras, no entanto, parecem não ter total clareza deste aspecto:
Entrevistadora: Porque esse dia, em específico, que os meninos ficaram
na tranca e as aulas foram suspensas e o motivo alegado foi falta de
água, o que eu senti é que eles estavam sendo punidos por algum motivo,
então, a tranca foi uma punição. E como eles tinham que ser punidos
ficando de tranca, não podiam ir para as aulas. O que eu fico me
perguntando é: se essa é a lógica e, o tempo que eu estava lá, me lembro
de uma vez que estávamos conversando e você pegou o diário de classe e
comentou: Olha, nesse mês de tantas aulas que eu tinha que dar, teve
menos da metade, menos da metade do tanto de aulas que tinham que ter
sido cumpridas”.
Angela: E isso continua acontecendo. (...) Na prática é isso que
acontece. Agora, como explicar isso? É muito complicado dizer. Porque
é o que eu falei: o grau de proporção de raiva e de admiração acaba
sendo o mesmo em relação a uma direção de Unidade. Então, aquela
Unidade tem suas peculiaridades e algumas vezes deixar todos
trancados é uma solução viável sim, por mais que isso seja contraponto
em relação à educação, à aula. Mas você tem, às vezes, dois que
119
pisaram na bola em detrimento de cem que não pisaram... E aí? É muito
delicado. (ANGELA)
Os professores estão de passagem pela Unidade de Internação. permanecem
durante um único período do dia, dão aulas e saem. poucos espaços e momentos de
troca com os demais funcionários da Unidade. Muitas vezes, tornam-se meros
“desconhecidos costumeiros”. Angela cita a necessidade de se fazer um treinamento
para as diversas equipes de trabalho, como forma de diminuir a distância criada entre os
funcionários e os professores:
[um treinamento] Para os professores, para os funcionários, até para os
gerais, que dizem respeito a esse inter-relacionamento das equipes. Tem,
mas é uma coisa muito superficial para a responsabilidade, para o
tamanho do peso da coisa no dia-a-dia. Então, o que eu quero dizer,
assim, tipo treinamento (riso) de pessoas que chegam numa empresa?
Mais ou menos isso. Tipo um treinamento de adaptação mesmo, de
entrosamento inicial. (...) Tem um nome isso na área de recursos
humanos, eu não lembro agora. Mas, acho que lá seria uma coisa que
ajudaria bastante, evitaria dissabores e incômodos pessoais também, de
professores ou mesmo de funcionários. Eu que não sou uma pessoa
muito boa para gravar fisionomia, estas coisas, a não ser que eu veja
com muita freqüência, tem Unidade que eu não conhecia as pessoas.
Assim, funcionário que eu via, mas eu não sabia o nome, eu não sabia
que período trabalhava, ou então era assim: Bom dia”; “Boa tarde”;
“Tchau, até logo”. Só! Só! Quer dizer, um ano você fica num lugar e
você se limita a isso. Duas ou três pessoas eu conversei, algumas vezes,
um pouco mais. Até, porque, no dia a dia, você tem também as pressões:
“Ah, vamos entrar”; “Ah, vamos não sei o que”; “Ah, vamos sair”...
Sabe? A hora que voprecisa você os grupinhos nos cantos. Então,
isso já é uma coisa que afasta. Ninguém passa ali: “Ah, você está
precisando de alguma coisa”. Sabe?
Tal treinamento, no entanto, não eliminaria a razão original do distanciamento: o
impasse entre a escola e a prisão.
120
Até o primeiro semestre de 2004, a vice-diretora da escola vinculadora ficava no
Complexo de Internação da FEBEM-SP para orientar e auxiliar os professores frente às
questões administrativas da escola. Era a figura de referência para o professor. Depois
foi proibido. O professor se sente sozinho, como único representante do sistema
educacional:
Eu penso que da direção, a escola, ela não dá, ela não dá... A gente tem
que manter pela gente mesmo. A gente não tem um coordenador
pedagógico para estar orientando a gente. Não é orientar, não é nem
orientar que eu acho que isso aí, não sei, acho que não é necessário.
Cada um de nós vai para uma capacitação... É para estar ali dando um
suporte. Eu preciso disso, por favor, me ajuda. Eu preciso xerocar
alguma coisa... A gente tem que correr atrás de tudo, ninguém ajuda a
gente em nada.
(...) Eu falo assim que a direção não é presente. A gente tem uma
diretora que está no Walter
46
, ela não está dentro. Ela entrou desde
que eu estou na FEBEM ela entrou, antes do recesso ela aplicou a
prova da diretoria de ensino na YY e ZZ e ela subiu, nem entrou. Foi
num dia e não voltou mais. A lei não permite ter uma diretora dentro.
Então, a gente agora tem as coordenadoras das Unidades que estão
responsáveis pela escola. Cada coordenador é responsável por
acompanhar toda a parte da escola e tem uma coordenadora geral que é
a Irene, ela agora é a coordenadora dos coordenadores. (MARISA)
Da escola, a gente. A maioria das reuniões. Então, você não recebe
informação de fora, da nossa própria diretoria. Porque os informes
gerais que dizem respeito à Educação são passados no HTPC, pelo
coordenador pedagógico. Então, o coordenador pedagógico da Unidade
quando recebe ele passa, mas nem sempre ele recebe. Nem sempre está
na pauta. Ás vezes, você perde curso, às vezes, você nem fica sabendo.
Eu ficava sabendo, muitas vezes eu levava, porque eu trabalhava em
outra escola fora. Na outra, o que tinha? Tem um quadro que você
46
Nome fictício atribuído a escola vinculadora do Complexo de Internação da FEBEM-SP pesquisado.
121
pode... Mesmo que você uma vez por semana, você fica sabendo,
porque está afixado. Eu leio os avisos, então... (ANGELA)
As relações estabelecidas entre os funcionários da FEBEM-SP e os professores,
também são determinantes das condições e da qualidade do serviço prestado pela escola
aos internos. Não um entrosamento entre as diversas equipes presentes na Unidade
de Internação:
Tiveram algumas situações nesses dois anos de FEBEM... de muita
tensão, onde... Os professores todos passaram por situações muito
difíceis. Eu falei da própria estrutura que é muito pesada, a
burocracia também é difícil. O principal problema na minha opinião
é que o um entrosamento entre as diversas equipes. Nós
professores prestamos um serviço na FEBEM através da Secretaria da
Educação e, hoje, é ; hoje é só isso. Porém, nós trabalhamos com uma
estrutura da Fundação que são os funcionários de lá, então, que se
trabalhar em conjunto, porque um depende do outro ali, um depende do
outro... Esse é um outro fato importante. (ANGELA)
No atropelo cotidiano, as equipes funcionais que atuam na Unidade de
Internação, cada uma com seus objetivos e concepções de trabalho diferentes, acabam
se “chocando”:
Bom, em princípio, eu acho que de ambas as partes há uma proposta de
entrosamento, de se ter uma boa relação, uma relação amistosa, uma
relação agradável. Agora, no contexto do dia a dia, da forma que são
feitas as coisas... (...) não havia entrosamento, por exemplo, na própria
Unidade, interequipes e, dessas equipes, conseqüentemente, com o grupo
de professores. (...) Eu acho que uma proposta de aproximação, de
entrosamento que, na prática, é muito superficial. Ela acontece
superficialmente. O professor que não se encaixa muito, vamos dizer,
que não tem um bom relacionamento, pelo menos um relacionamento
amistoso com todas as pessoas ou com a maioria, ele vai se sentir mal,
ele vai se sentir mal. (ANGELA)
122
Com os professores tal desencontro é acentuado pelo choque de concepções
presentes nos objetivos propostos para a escola e nos objetivos propostos por uma
instituição prisional. A cultura institucional que concebe os internos como bandidos
irrecuperáveis que necessitam de contenção e punição desvaloriza o intuito educativo da
escola. Entre educadores e guardas forma-se um grande abismo:
Veja: os funcionários da FEBEM são funcionários da FEBEM. Os
professores são funcionários da Secretaria da Educação. A FEBEM hoje
(março de 2006), ela está subordinada a Secretaria da Justiça. houve
todas estas mudanças também. Quer dizer, são secretarias diferentes,
com certeza com diretrizes diferentes. E a Educação, o confronto que
aparece aí... Primeiro: professor não é funcionário da FEBEM. Ele vai
prestar, entre aspas, um serviço; por isso, acho que chama um
“projeto”. Então, você não consegue nem mandar, nem desmandar
exatamente. Porque o coordenador é responsável pelo professor,
enquanto o professor está ali, naquele período de tempo. Mas, ele não
pode mandar e desmandar num professor. Ele pode passar as
orientações: “Aqui funciona assim ou você se encaixa ou a sua
avaliação... Em algum lugar vai aparecer”. “Você não deve faltar, por
favor, porque vai atrapalhar o meu programa”. Mas é diferente de um
funcionário que entra as sete, oito da manhã e sai as cinco, que a
maioria pedagógica, do corpo pedagógico (da FEBEM), é das oito às
cinco, a maioria, ou das setes às quatro, alguma coisa assim. Então,
começa aí. Quer dizer, você trabalha com uma equipe que é sua, mas
não é sua. Você tem, mas não tem a responsabilidade. Você manda, mas
não manda. Então, são coisas difíceis mesmo de lidar. Aí, o que
acontece? A própria cultura que se tinha lá dentro é que, muitos -
atualmente acho que já mudou um pouco deste perfil - mas a cultura que
se tinha “Ah, aqui tem bandido, vagabundo, ladrão e isso não serve
para nada. Imagina dar aula para isso!”. Exatamente desta forma,
aparece, apareceu explicitamente em falas isso. (ANGELA)
O tratamento preconceituoso de alguns funcionários em relação aos internos
também desvaloriza a escola:
123
(...) Muitas vezes tiveram situações não muito interessantes em relação a
falas deste tipo. Fala que podia ser desde agentes da Unidade, até os
próprios guardas espalhados por lá, eu já presenciei sim.
... (procurando expressão) Inclusão Social? Não é isso que queria falar.
É a medida Sócio-Educativa (risos). Quer dizer que é bem estridente o
choque que tem.
Entrevistadora: Choque de concepções?
Angela: Não sei se de concepção. Eu diria que é uma realidade que bate
de frente com a outra que não é aquela, porque não dá. Você tem uma
proposta: Medida Sócio-Educativa. Jamais, em hipótese alguma,
poderia estar sendo colocado para os adolescentes estes termos
absurdamente discriminatórios, preconceituosos mesmo. (ANGELA)
Pelo comportamento deles (funcionários) no horário de aula, pelo que
eu ouvia. Eles falavam assim: Bandido em escola?” (tom de desdém).
Eles falavam que bandido ia para a escola, depois ia continuar
roubando, não ia aprender nada, que a droga não deixa. Então, aquela
coisa toda que a gente ouvia. Que a gente era obrigada a ouvir. Eu sei
que muitos aprendizados, pelo uso da droga, são prejudicados mesmo.
Mas, se eu não acreditar que ele vai aprender, não tem motivo de eu
estar ali. (MARISA)
A oposição dos funcionários aos internos institui uma permanente guerra
explícita ou surda entre eles:
Uma postura de desafio mesmo do funcionário para o adolescente. De
confronto mesmo! Sabe? De querer confrontar. Por exemplo, o garoto
está estressado, fala alguma coisa e o funcionário, ao invés de falar com
ele como uma pessoa madura, ele entra em debate como se fosse de
homem para homem. Na intenção de provocação. Se o garoto está com
algum problema, de repente uma coceira, uma coisa de homem, ele pega
e tira sarro da situação do garoto. Enquanto a gente tenta minimizar,
mandar para a enfermaria... Qualquer situação, o funcionário fazia
um esparrame! O pátio inteiro ficava sabendo. Por exemplo, o garoto
124
que ia para a tranca, quando voltava, eles ficavam provocando o garoto:
“É, porque você tinha que ir para a tranca mesmo...” Então,
provocando o garoto que voltou da tranca. São situações que eu
presenciei. (MARISA)
É importante lembrar que tais funcionários encontram-se à porta das salas de
aula. Marisa relata que a presença constante dos agentes de segurança em sala dificulta
seu trabalho com os alunos:
Com funcionário eu não tenho dificuldade. Quando acontece alguma
coisa a gente procura conversar. O que me incomoda, como, às vezes
eles entram, ficam dentro da sala de aula e eu percebo que estão
inibindo o aluno, então, eu saio e peço para a Sandra: “Olha Sandra,
aconteceu isso assim, assim e o aluno ficou com vergonha de ler na
frente dele. Ele tem dificuldade de leitura”. Se com a gente , eles têm
uma... Depois de um tempo eles se sentem à vontade com a gente, então
não ficam com vergonha. Quando um ri do outro eu falo: Pôxa, você
está rindo por que? Você já aprendeu porque voprestou atenção, mas
você também começou assim. Então, não pode rir. Deixa ele aprender
também”. Então, se inibe, eu peço para que não fique, para que na hora
da leitura fique na porta, sei lá, mas não fique dentro da sala. Eles falam
para mim que é necessário e eu falo que a minha sala é diferente; então,
atrapalha. Isso cria uma dificuldade.
O professor na FEBEM-SP precisa adequar seu trabalho ao local e ao público
específicos. Local onde a escola é obrigatória, mas a prioridade não é a educação
escolar, e sim, a ordem e o controle:
A escola, muitas vezes, é uma pura e simples obrigação. A maioria não
freqüenta fora, dentro é obrigatório e, mesmo assim, não são todas as
Unidades que funcionam a rigor. Depende da Unidade e, muitas vezes,
eles [alunos] vão e estão perturbados. Eles têm outros problemas no
interior da Unidade. Muitas vezes dormem durante o período de aula,
você questiona: Ah, o dormi a noite”. Muitas vezes por medo, por
125
medo de ser atacado; por medo de, de repente, entrar choque (tropa de
choque da polícia militar). Enfim, são coisas que acontecem no dia a dia.
Então, eles falam muito pra gente: “A senhora não imagina o que é viver
aqui dentro”. Eu acho que eu não imagino (risos). Eu acho não, eu
tenho certeza que eu não imagino realmente, o que é você estar
internado lá. A gente consegue reunir fatos, situações, palavra daqui,
frases dali, mas... (ANGELA)
No embate entre a educação e a punição, Angela acredita que a escola adquire o
significado de um “passatempo” tanto para os internos, quanto para os próprios
funcionários:
Eu acho que eles vêem como uma forma de ocupar o tempo,
sinceramente falando, tá? Infelizmente, eu sinto desta forma. Mas, é o
que eu sinto. Como uma forma de ocupar o tempo destes meninos para
que eles tenham um fôlego para, depois, preparar as outras coisas no
outro período que fica sobrando. Eu acho que alguns têm boas idéias e
boas propostas e realmente pensam neste aspecto, nessa meta da
questão Sócio-Educativa. Acho que têm várias pessoas que possuem,
sim, este contexto. Agora, no geral, acho difícil... Não sei nem como
colocar isso... É um trabalho extremamente complicado, complexo para
conseguir ter, vamos dizer, uma postura dentro desse ponto de Medida
Sócio-Educativa, porque acaba ficando fragmentado. Tem um aqui que
vai, tem outro ali que não vai. Então, fica uma coisa fragmentada. Eu
não vejo todos por um e um por todos. É o que eu sinto. Eu vejo “Eu
vou, você não vai... Aquele vai, aquele não vai, ah, aquele vai!” Então,
você não consegue adquirir a força necessária para esta mudança, para
concretizar este trabalho. Eu acho que tanto isso é fato, que, você vê que
a maioria não recupera. Pelo menos os dados que se tem oficialmente,
eu não sei, eu não vou muito atrás disso, estou falando de conversas, de
ouvir, de ler, e tal.
Na visão de Marisa, a escola é um incômodo para a FEBEM-SP. O espaço da
126
escola tumultua, dificulta a manutenção da ordem e do controle pretendidos pela
Unidade de Internação:
(...) quando não tinha aula, parecia que era um alívio para os
funcionários. Porque era mais fácil, o trabalho no pátio ficava mais fácil
– liberava os trampos
47
. O adolescente ficava ali no chão, o tempo todo,
então estava bom demais. De repente, dois, três funcionários no pátio
davam conta. Porque como eu te falei, quando não tinha aula parecia
que era um alívio, parecia que a escola incomodava no pátio. Porque os
garotos davam trabalho, tinham que ficar cuidando, quando tinha briga
eles tinham que fazer alguma coisa, tinha que estar ali. (...) parece que a
gente era meio que um incômodo. Quando era algo para a escola, tudo
era mais difícil. Quando você precisava de alguma coisa para o
cotidiano da escola era mais complicado. Se fosse para nós, era mais
complicado. Não tinha, não podia. Era muita barreira. Você lembra, não
é? (...) Quando a gente precisava conversar com alguém, seja
coordenador, seja funcionário, a pessoa não parava para te ouvir.
Parecia que você estava ali atrapalhando, porque ele estava correndo,
estava com pressa. Quando precisava conversar: “Não, porque agora
tem que fazer a formação
48
para o almoço...” ou não sei o que lá. Então,
sempre tinha alguma coisa que não podia ser naquele momento. E você
sentia uma urgência em estar falando, para não ficar para o dia
seguinte, alguma coisa que tivesse acontecido em sala de aula.
O relato de Angela traz mais elementos para pensarmos o conflito instalado pela
presença da escola:
A suspensão da aula, até onde eu entendi até hoje, você... O menino vai
para uma FEBEM, a ordem do juiz, a medida sócio-educativa do menino
é exatamente a escola. É obrigação única e primeira dele. Ele vai,
47
Trampos: passatempo mais freqüentemente realizado pelos meninos. Caracteriza-se pela confecção de
objetos em dobraduras de papel e afins. Os adolescentes passam horas fazendo dobraduras e criando
patos, cestinhas, flores etc.
48
“Fazer a formação”: organizar os internos em fila, para o estabelecimento de uma ordem na realização
das atividades.
127
mesmo que ele não queira, não goste, abomine, é obrigação dele. A
medida sócio-educativa é estudar, é ir para a escola. Então, diante
disso, você tem uma situação também extremamente delicada. Por que?
Primeiro porque a estrutura não é uma escola, que todo mundo sabe.
Que uma escola tem salas diferentes do que se tem na FEBEM, tem
carteiras diferentes do que tem na FEBEM, tudo é diferente. Ou a
grande maioria das coisas é diferente, inclusive o quadro negro (risos)
é pintado na parede. Bom, mas isso à parte, você tem que ter “x”
número de aulas, no âmbito geral de Estado e, se você por algum motivo
não teve “x” aulas, as 200 do ano, essas “x” aulas têm que entrar como
reposição, porque o calendário letivo tem x” número de aulas. É a
praxe. Aí, o que acontece na FEBEM? Primeiro, você não tem como
repor aula, esse é o primeiro ponto diferente, nesse aspecto. Segundo,
você tem um contexto onde a segurança e o envolvimento das pessoas
que estão trabalhando tem que ser assegurado. Então, (riso) algumas
vezes, você tem que suspender a aula em função disso mesmo. Então,
veja, fica uma situação onde vo tem uma ordem judicial a ser
cumprida e uma realidade funcional que muitas vezes não permite que
aquilo seja cumprido cem por cento, a própria estrutura da realidade
funcional lá. Então é complicado. A FEBEM tem que prestar conta. Ela
é cobrada! Sem contar as formalidades que isso envolve, que é o
documento mesmo, o documento do menino, ele vai ter que sair de
com Histórico Escolar, se foi, se não foi, se faltou, tem tudo isso.
Angela conta como percebe a distância, na escola da FEBEM-SP, entre a lei e a
realidade:
A escola muitas vezes não tem a... não lhe é dada a importância que lhe
é atribuída (risos).
Entrevistadora: Quando você fala Não é dada a importância que lhe é
atribuída”...
Angela: É a primeira... Na verdade, a sentença do menino é estudar sim,
é estudar, ele tem que estudar. Essa é a medida sócio-educativa.
Entrevistadora: E aí, no dia a dia, isso acaba não sendo priorizado?
128
Angela: Eu não diria não sendo priorizado, eu diria a você que, até
agora, não se consegue cumprir adequadamente. Por “n” razões.
Entrevistadora: Por que? Quais seriam?
Angela: A estrutura funcional, a estrutura até ambiental, falta de apoio,
de reconhecimento de valor; talvez a própria sociedade (risos) que
também não está nem ai.
E Angela explicita a desvalorização social dos adolescentes e jovens em conflito
com a lei:
Entrevistadora: Quando você fala: “falta de apoio, reconhecimento de
valor” é de quem para quem? Ou, do que para que?
Angela: Eu, na minha concepção, é da sociedade.
Entrevistadora: Que não dá valor ao trabalho feito com esses meninos?
Angela: Nem ao trabalho e muito menos àqueles meninos. Muito menos
a eles. Porque fica uma... é uma incoerência, é uma coisa difícil mesmo.
Às vezes você não tem um conflito? Eu sou professora na FEBEM!
“Ah, mas como que você aula na FEBEM? Para os próprios meninos
que te assaltam na rua, que podem dar um tiro na sua filha?” Não é uma
incoerência? Entendeu? Então, isso é mexer o dedo na ferida. Eu, na
minha concepção, mexer, enfiar o dedo na ferida da sociedade. Agora
eu respondo para você: “Tudo bem, eu dou aula para aqueles montes de
meninos...”.
Entrevistadora: E como é isso para você?
Angela: Então, eu dou aula para esses meninos e, de repente, pode um,
sei lá, por um acaso, me dar um tiro ou na minha filha. Mas, quem me
garante que amanhã não é a minha filha que está na FEBEM? Quem?
Eu posso garantir? Alguém pode? Ninguém pode. Então, para mim - eu,
pessoalmente, não tenho esse problema. Eu não sinto - eu sinto o
contrário, tudo o que eu senti até hoje dentro foi... foi tentar passar
alguma coisa boa, alguma coisa que seja útil, tentar levar coisas,
valores e conhecimentos que possam ajudar, possam somar, por ele
mesmo. É isso. Da mesma forma me senti sempre aberta para receber
também! Porque, por pior que seja a pessoa, ela também tem as suas
129
coisas boas e também te ensina. Então foi assim a minha relação lá.
Uma troca, uma troca boa. Eu não considero ruim.
***
Além das inúmeras restrições encontradas pelas professoras dentro da Unidade
de Internação e do choque de concepções existente entre a escola e a FEBEM, ainda
existem as imposições dos representantes do poder. Numa escola regular, os professores
têm que se adaptar as diretrizes e determinações advindas da Secretaria Estadual de
Educação. Na escola dentro da FEBEM-SP, tais determinações também se fazem
presentes e, somam-se a elas, as imposições advindas dos gestores da Fundação. Cada
troca de Secretaria Estadual, cada troca de presidência da FEBEM, alteram-se os
“rumos” dados a escola. E os professores, assim como no ensino regular, nunca são
consultados:
Fizeram esse projeto e ninguém procurou, ninguém perguntou nada.
Veio de cima para baixo. Isso é uma dificuldade. Alguém chega e te
impõe: Oh, daqui em diante você vai fazer isso”. Coloca numa sala de
aula alunos de quinta a oitava e você que se vire. Isso é dificuldade. Se
antes estava complicado e agora? Você entendeu? Não é complicado
demais? Você alfabetizar o garoto em dois meses; dar um prazo. É
absurdo, não é não?! É um absurdo! Um absurdo!
(...) Para começar, aonde você já ouviu falar que alguém vai alfabetizar
alguém em dois meses?! É uma proposta mágica! É mágico!! (pausa) É
um despropósito! Como é que alguém consegue alfabetizar alguém em
dois meses?! Sabe? Eu não sei. se de repente alguém colocou (risos)
uma droga no alimento dele para ele ficar...ligadão (risos). Será que é
isso e eu não estou sabendo?
se teve alguém que inventou um produto novo no mercado e eu não
estou sabendo (risos). (MARISA)
A autoridade do professor é afrontada, desconsiderada pelas instâncias
decisórias do poder. Os professores nada podem, já quando interessa aos governantes:
130
(...) a FEBEM está assim, ótimo! Está pior agora... Ao invés de
melhorar, piora. Os meninos estão tudo assim: “E agora senhora?” Eu
não sei, eu não sei. “Agora que eu aprendi a ler, senhora, na oitava
série?!” O Nilton me perguntando. E ele não passou na reclassificação.
Nós passamos sete na reclassificação e ficaram três dos antigos. veio
essa prova
49
e passou esses três que a gente não passou. Falta de
respeito total! O professor segura porque acha que precisa ficar mais
um pouco. A gente o segurou porque a gente quer atrasar ninguém; é
porque precisa mais um pouquinho. Para que ir para quinta série se ele
vai sair de liberdade e, lá fora, não vai acompanhar o pessoal da
quinta? E vai parar de estudar porque não acompanhou. Então, é
melhor ficar até o final do ano na quarta, para ir bem forte, ler melhor,
escrever melhor. Chegar fora, ele pode até ir para um supletivo, pela
idade pode quinta, sexta, sétima e oitava pode. Ele não pode ir para o
Ensino Médio, mas o resto ele pode, então, me soltam o garoto na
oitava! Dá para entender?
Pesquisadora: Marisa, quem fez essa prova? Quem aplicou? Porque
você disse que vocês não passaram os alunos e daí veio a prova e...
Marisa: Foi o próprio pessoal da FEBEM (sai sussurrado). Quando nós
chegamos lá estava tudo prontinho já...
Pesquisadora: E vocês não puderam interferir?
Marisa: (balança a cabeça negativamente) A Luciana
50
do Walter
esperneou, levou a APEOESP, mas... Foi a FEBEM via Secretaria da
Educação. Eles arranjam uma resolução e essa resolução torna tudo
legal. O que é ilegal fica legal... Tinham tirado uma aula da gente,
49
Diante da grave situação vivenciada pela instituição no ano de 2005 (afastamento de funcionários
acusados de agressão e tortura aos internos, constantes rebeliões nos Complexos de Internação da capital
e do interior, greve dos agentes de segurança etc), o governo do Estado de São Paulo, em conjunto com a
presidência da FEBEM recém assumida, implementou novas medidas para o tratamento aos internos e,
junto delas, um novo projeto pedagógico. Uma das atitudes tomadas pela FEBEM, em conjunto com a
Secretaria Estadual de Educação foi realização de uma prova para avaliar o nível de aprendizagem escolar
dos alunos. Tal avaliação foi elaborada e aplicada sem o conhecimento dos professores, que tiveram que
acatar as modificações realizadas em função dela.
50
Nome fictício da diretora da escola vinculadora.
131
lembra? Então, voltou, a gente entra sete e meia agora, as aulas têm 50
minutos. É das sete e meia até as dez horas, depois das dez e quinze ao
meio dia. Então, quando quer, pode. Quando a gente quer, não pode.
Quando eles resolvem que pode, pode. (silêncio) (MARISA)
Angela, ao comentar sobre as inúmeras instâncias decisórias que afetam o
funcionamento da escola na FEBEM-SP, faz uma análise da possibilidade de realização
do processo de escolarização no interior da instituição:
(...) Tudo bem, nós temos um currículo, um conteúdo e tudo mais. Você
consegue trabalhar na FEBEM? Consegue parcialmente. É um
projeto, você aplica, de uma certa forma a base dele ainda é o projeto
“Ensinar e Aprender” que é um projeto de Curitiba, foi criado para
Curitiba e não para São Paulo. Apesar disso acho que é um projeto
muito interessante, sim, que dá para adequar. Mas, enquanto professor e
aluno nós todos temos que nos adaptar a todas as mudanças, inclusive,
àquelas que nos fogem ao controle, como a mudança que houve, duas ou
três vezes, neste ano de 2004, de mudança de secretaria [estadual],
mudança de presidente [da FEBEM], mudança de direção [do
Complexo], mudança de direção nas Unidades. Então, tudo isso são
fatores que, infelizmente, acabam danificando mais ainda a condição
[de trabalho] que a gente tem, infelizmente.
***
Em meio a tantos desmandes e interferências, mesmo não sendo a prioridade no
processo de atendimento aos adolescentes internos, as duas professoras entrevistadas
acreditam na possibilidade de realização de bons trabalhos com os internos e relatam, o
que a seu ver, são resultados positivos da presença da escola no interior da FEBEM-SP:
Apesar disso, a gente ainda consegue, sim, fazer bons trabalhos. Muitos
alunos de quinta série... às vezes, até no Ensino Médio você vai achar
aluno que não sabe escrever direito ou que mal sabe escrever e ler.
Então, o que a gente faz é estar puxando esses meninos para uma
aceleração. Eles permanecem [na classe de aceleração por] um período
132
até que consigam ler e escrever melhor; então ele retorna para sala que
seria a sala regular dele. Na maioria dos casos em que isso acontece o
aluno consegue voltar para sua sala, mas é final de semestre ou de
ano. Então, normalmente, [o aluno] vai ficar até mais do que um
bimestre ou dois na sala fazendo um reforço mesmo, a gente chama de
reforço lá. Mas, para ele é uma coisa maravilhosa! Quando ele começa
a entender, a ler, a escrever melhor, o menino fica outro, ele se
transforma. Então, quando ele volta, digamos, se for para uma quinta,
ele volta uma outra pessoa. Porque mesmo entre eles exclusão sim;
mesmo entre eles. Se tem um menino na quinta série que não consegue
escrever, ele é motivo de graça com os outros. Ali ninguém sabe mais
que ninguém. Alguns são um pouco melhores, mas a grande maioria tem
grandes dificuldades. (...) Você consegue achar no meio daquelas
grandes dificuldades, meninos excelentes! Grandes artistas, grandes
talentos: talento musical, talento gráfico, com talento até de
representação, de voz muito boa, de oralidade muito boa. Então, muitas
vezes, o professor também se surpreende muito com aquilo que eles
colocam. Alguns com um raciocínio assim im-pres-sionante: raciocínio
rápido, raciocínio profundo, profundo na temática... Quando eles
conseguem expressar e se conseguem expressar é uma coisa muito boa.
(...) às vezes, você recebe notícias boas. Vários alunos que são
premiados na FEBEM, em concursos e projetos... Alunos que passaram
em vestibular; alguns que a gente sabe que estão fazendo faculdade
ou que vão casar... (ANGELA)
Na escola na Unidade de Internação observada o professor tem a possibilidade
de dar uma atenção mais individualizada ao aluno:
(...) Então, para mim, é muito importante o que ele fala e quando ele
consegue falar também, nossa! É muito bom! Porque aqui fora eu sei
que ele não podia falar. Ele não tinha chance, não tinha espaço. Porque
dentro eles têm esse espaço. A gente fala para eles que, ali dentro,
eles têm uma professora quase que particular, porque uma sala está com
onze alunos na I A (Aceleração I) e a I B tem oito alunos. Apesar que
133
oito homens numa sala é muita gente, porque eles são muito grandes
(risos). Você viu. Mas, eu falo assim, a gente consegue parar do lado de
um por um e dar atenção, um por um... (MARISA)
O bom trabalho realizado pelo professor, no entanto, não aparece:
Porque tem pessoas que quando você fala da FEBEM: Mas como você
tem coragem de trabalhar, isso e aquilo...” Por que? Porque a mídia
mostra a rebelião. Eu estava comentando um dia desses na (U.I) X, a
pessoa me falou de uma coisa legal que aconteceu e não foi falado. E eu
falei: “Pôxa, mas por que não pode falar? Por que quando tem rebelião
fica todo mundo em cima e quando acontece isso não se fala? Por que só
fala do que é ruim?! Tem que mostrar o que é bom também”. Se o
professor fez um trabalho e foi legal, porque não pode falar, pelo menos
no jornal interno da FEBEM. De repente, até acaba vazando, sei lá,
mas, tem que falar! A mídia tinha que falar, mas se for coisa assim
aberta, não pode. (MARISA)
Segundo Marisa, dar aulas na FEBEM-SP é lidar com o sentimento de que
sempre poderia ter feito mais:
Eu comento com os meus colegas professores assim: cada ano é como se
a gente tivesse fazendo um curso. Eu sinto a FEBEM como... como...
quando eu terminei a sétima e a oitava, quando eu fiz o magistério em
cada final de curso parece que você não fez nada... Sabe? Parece que...
Nossa! Podia ter feito isso, podia ter feito aquilo. Eu não aprendi, eu
tinha que ter aprendido mais, tinha que ter feito mais; tudo mais. Então,
a gente enxerga os erros. Parece que passa pela mente da gente como
se fosse uma fita, tudo o que aconteceu e o que você poderia ter feito. No
final do período, você aprendeu um pouquinho mais e fala: Pôxa,
naquela época eu poderia ter feito isso ou aquilo e eu não fiz ou... sei lá
é tudo... Nada é igual; tudo, todo dia é diferente você esteve lá, você
sabe. A diferença... O bom dali é porque não tem rotina.
134
Angela compara a rotina de trabalho do professor na FEBEM-SP ao clima. Tem
que se estar preparado para tudo:
Você dando aula no dia a dia da FEBEM é isso. Acontecem coisas
inusitadas, situações de tensão, seria mais ou menos como o clima hoje:
você tem quatro estações no mesmo dia. Às vezes, votem quatro
estações no mesmo dia (riso).
6. A importância da escola
Ao falarem sobre a forma como vêem a escola na U.I. X, Angela e Marisa
analisam a instituição, o sistema educacional, a sociedade como um todo e apresentam
suas respostas para a pergunta desta pesquisa. Limito-me a apresentar suas falas, dando
voz a pessoas que normalmente não são ouvidas.
Angela e Marisa, ao serem questionadas sobre a importância da escola na
FEBEM, repõem suas concepções de educação. Por outro lado, falam das marcas que o
espaço escolar pode deixar tanto nos internos, quanto na instituição.
A escola traz o lembrete de que os internos “são gente”:
Que importância? Eu acho que tanto quanto fora de lá, a educação é
o caminho mesmo. Agora, como é que a gente vai conseguir essa
aproximação, essa... não é entrosamento, mas essa aproximação com o
jovem em si, é que é a questão, no meu ponto de vista. (...) Eu acho que
dentro da FEBEM o professor consegue essa aproximação, tanto ele
consegue que você, a maioria pelo menos que eu vejo que faz um
trabalho lá, se sente gratificado.
Entrevistadora: Você fala dessa aproximação com os adolescentes?
Angela: É, de poder ter essa troca, de poder trazer alguma coisa e de
ver que realmente funciona. É possível! Você que funciona, você
consegue progresso. Eu acho que a escola é extremamente importante. É
o caminho principal. É o caminho para ajudar estes meninos, para estar
realmente levando alguma coisa para que eles possam se sentir gente, se
sentir parte do contexto do mundo. Eu acho que é extremamente
importante. Por menos que se consiga dentro, se você consegue uma
135
gotinha no mar, vai fazer diferença para eles, porque a carência é muito
grande. É muito grande. Então, para a grande maioria, nem que seja
uma gotinha que modifique, ajuda. (ANGELA)
Eu vou falar que tem importância. Porque? Vai fazer nove anos que eu
estou lá, dia 25 de maio vai fazer nove anos que eu estou ali dentro. Daí
meu aluno falou assim: “Eh, senhora. O que a senhora fez para não
conseguir pegar liberdade?” (risos). Pelo que eu escuto deles, eu acho
que vale a pena. Um aluno meu falou: “Senhora, no mundão, eu não
ia ficar fazendo lição de jeito nenhum, porque a professora nem me
escutava”. Esse é um motivo. Outro motivo... (...) o fato de você
conseguir passar algumas coisas boas para eles: aprender a ler um
pouco, escrever um pouco, compreender um pouco, ouvir algumas
coisas. Formar conceitos de família, de respeito, de amizade. Eles
sentirem um pouco do amor que a gente tem por eles. Sabe? Eu acho que
esse tempo que a gente tem através da escola é super importante. Para
eles que nunca tiveram isso fora, porque não tiveram, é discriminação
total. Na fala de muitos deles: a professora o olhava, tinha raiva.
Então, pela oportunidade que eu tenho, pela escola, de estar ali com
eles, de saber que eu estou fazendo alguma coisa para contribuir que ele
forme algumas coisas que ficaram faltando na vida dele, eu acho que
vale a escola na FEBEM. Mesmo que ele não use o que ele aprendeu ali
dentro. Eu tenho certeza que ele não vai esquecer, de jeito nenhum, os
dias que ele esteve ali dentro. Então, a gente não pode deixar escapar
nenhum minutinho, tudo ali é importante. Seja uma conversa, uma
aula... é fundamental. Quanto mais tempo eu fico ali, mais eu percebo
que cada dia é importante.
Então, eu acho que a escola dentro, por menos que faça, ainda é
muito. Eu acho bastante. Ele está ali sempre te esperando para formar...
é formar, porque tem uns que não tem conceito de nada: sobre família,
sobre amizade, sobre carinho. Sobre alguém que está perto dele porque
quer fazer alguma coisa boa para ele, de verdade. Sem interesse. Por
que o que eu quero deles? Eu não quero nada. quero que eles
aprendam. isso que eu quero. Saber que ele leu, que escreveu, que
136
entendeu, que ele vai poder, quando sair de lá, fazer alguma coisa para
ele. Porque eu falo que o ensino, o aprendizado é a única coisa que
ninguém toma dele, é dele. Você vai morrer e vai levar com você...
(...) Eu falo que eu vou ficar contente, se saber que quando eles saírem
dali, eles vão sentir saudade da escola dentro. Eu falo isso para eles.
Que se eu souber que eles sentiram saudade, eu vou ficar... Nossa! Super
feliz! (MARISA)
Não são só os internos que ganham na troca estabelecida com o professor:
A escola dentro da FEBEM, como eu estava te falando, é um espaço
precioso. (...) é preciosos demais. A escola ali é um momento assim...
que não existe dois! Eu falo sempre que quem trabalha na escola dentro
da FEBEM, para cada ano que trabalha seria equivalente a dez aqui
fora, em termos de experiência. O que eu aprendi com eles dentro,
acho que se eu tivesse trabalhado desde os quinze anos aqui fora, eu não
saberia. E quando eu vejo alguma coisa aqui fora, eu falo que isso não é
nada em comparação com o que a gente tem lá dentro. (MARISA)
Apesar da importância atribuída pelas professoras à presença da escola na
FEBEM,os desafios são enormes quando se pensa na situação do atendimento prestado
ao adolescente em conflito com a lei:
Então assim, a gente está num projeto, numa situação diferenciada, mas,
por mais diferenciado que seja, acaba entrando no contexto do país, do
Estado. E... os problemas, na verdade, eles vão passando de um lado
para outro. Algumas coisas o pessoal vai modificando, vai tentando
melhorar, pegar experiências que deram certo...
A educação precisa modificar algumas coisas também, não só lá, eu vejo
de uma forma mais ampla.
(...) É muito difícil para todos! E o buraco, eu acho que é mais em baixo
também. Ou mais em cima. Porque é uma coisa... Se você falar em
termos de FEBEM, especificamente, bandeira da FEBEM é política. Se
você falar em termos da Educação, a Educação hoje, em que está
137
(riso)? Então, o que a gente tem que fazer? É um trabalho enorme! É um
trabalho que eu acho que talvez daqui vinte anos se a gente conseguir
fazer com que os de dez anos hoje comecem a ter um pouquinho de
raciocínio político e valorize um pouco mais a Educação, talvez mude.
Isso eu acho que é o resultado de quarenta, trinta, quarenta anos dessas
transições que vem sofrendo o país. vai uma coisa para macro.
(ANGELA)
Angela relata uma reflexão que fez em sala de aula perante a fala de um aluno e
que tem mudado sua forma de conceber a FEBEM, seu trabalho, a sociedade:
Teve uma coisa muito curiosa que aconteceu numa dessas quinta séries
que foi um menino que... Eu sempre procuro ouvir muito e prestar muita
atenção naquilo que eles dizem. Eu acho que tem uma troca de
crescimento de ambas as partes. (...) Eu estava pensando em relação à
FEBEM como um todo, ao lugar, que, na verdade, não deveria existir. E,
um dia, eu cheguei para dar aula e um menino falou exatamente não
falou assim, isso aqui não deve existir – mas, falou:
_ “Olha onde nós estamos, olha aqui esse lugar!”
Porque quando você chega e fala bom dia é todo mundo torcendo o
nariz:
_ “Pôxa! Como você vem falar bom dia, nós estamos presos!”
Então eu sempre lembro que o céu está ali, a gente pode ver o céu azul
ou não, mas que o céu está ali e estamos vivos e isso é uma graça
muito grande que a gente tem que valorizar.
Então, quando eu cheguei e falei isso, ele se referiu que não tinha nada
de muito bom ali. Então eu falei:
_ “Olha, sabe de uma coisa, eu estava pensando nisso e eu acho que
realmente esse lugar o deveria existir... porque se a gente parte do
princípio de que todas as pessoas têm os direitos e deveriam ter as
mesmas condições, esse lugar realmente não deveria existir.
Socialmente, analisando, esse lugar não deveria existir”.
(...) Isso foi uma reflexão assim muito séria para mim e que eu penso
ainda, porque... quando você começa a pensar nesse aspecto uma
138
certa tristeza e uma sensação... de redoma de vidro que eu coloquei
antes. Você começa a pensar no contexto como um todo: “Como é que a
gente vai solucionar isso?” “O que nós podemos fazer? (...)Eu acho que
coisas básicas estão comprometidas: a família, a família está
comprometida; o Estado, a máquina Estado como um todo, também.
E no lugar da FEBEM:
Deveriam existir outras coisas que... pudessem atender as necessidades
dos adolescentes e do jovem, como um todo. Daqueles também que
tiveram problemas mais sérios, como é o desses meninos...
(...) Talvez o caminho seja ter outras opções para esses meninos. Ter
uma assistência, uma orientação mais direta em relação à família e, na
falta desta ele poder ter, como é o direito dele, a escola, o trabalho, uma
casa e comida. É básico! Não foge é o básico e infelizmente, ainda
nós, em termos de básico, estamos muito aquém da necessidade das
pessoas, dos jovens principalmente, das crianças. Nós estamos falando
de adolescente, que a coisa fica mais gritante porque adolescente
tem voz, ele anda com as pernas dele e, às vezes, quebra as duas, mas
ele sabe andar e a criança, a criança a gente está vendo , no meio
da rua. Então, uma FEBEM, investir numa FEBEM... Talvez a gente
possa pensar numa coisa mais interessante... Eu acho que isso é uma
coisa que a gente tem que estar pensando e refletindo e rápido!
Mesmo questionando a existência da FEBEM, Angela conclui seu raciocínio
ressaltando a importância da escola:
Mas, enquanto estamos lá, podemos atuar e ajudar sim, muito muito
mesmo. Então, você tem notícias de meninos que saíram da FEBEM e
estão trabalhando, e isso é muito gratificante para o professor. Gostaria
que a estrutura permitisse que a gente pudesse atuar de uma forma até
mais significativa... Quem sabe, mais a frente aí, se esse lugar ainda
existir...
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“‘Bandido em escola?”
(...) a gente era obrigada a ouvir. (MARISA)
É o caminho para ajudar estes meninos,
para estar realmente levando alguma coisa
para que eles possam se sentir gente... (ANGELA)
Quando, no início da pesquisa, perguntamos das possibilidades do processo de
escolarização no interior de uma instituição total para adolescentes infratores, com as
características da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, partimos de uma
descrença. Afinal, dentro de tal instituição, com uma história constituída de práticas
violentas, de uma concepção preconceituosa dos adolescentes atendidos, de casos de
corrupção e desmandos, que lugar haveria para a escola? Como seus objetivos poderiam
ser cumpridos dentro dessa lógica? Se na escola regular o ensino ministrado não tem
qualidade, os professores não encontram condições adequadas para a realização de seu
trabalho e os alunos não vêem sentido na aprendizagem escolar, o que esperar de uma
escola funcionando no interior da FEBEM-SP?
De fato, ao final da pesquisa, essa impressão foi confirmada. A escola regular
numa Unidade de Internação tem suas limitações aumentadas, pois somam-se às
características constitutivas da instituição. Pelos relatos das duas professoras
entrevistadas pudemos perceber que o trabalho docente, tão difícil e desvalorizado na
escola pública regular com jornadas de trabalho exaustivas, baixos salários, parcos
recursos materiais e humanos, controlado por instrumentos burocráticos advindos da
Secretaria Estadual de Educação no interior de uma unidade prisional torna-se ainda
mais. A estrutura rígida e violenta da instituição faz com que os professores tenham que
lidar com instâncias que fogem ao cotidiano da escola regular. É certo que a violência
está em todo lugar o é característica exclusiva da vida na FEBEM. Porém, nela a
violência é constitutiva, a tensão é permanente e o professor está inserido no campo de
forças da disputa institucional: de um lado os que prendem; de outro, os que querem a
liberdade.
A falta de autonomia que o professor encontra na realização de seu trabalho na
estrutura da rede pública regular de ensino onde freqüentemente implementam-se
140
projetos, modificam-se decretos, elegem-se novas concepções ou técnicas de ensino sem
consultar os docentes, sem respeitar os seus saberes, suas experiências, suas escolhas – é
intensificada no interior da instituição total. Os projetos implementados sem consulta
têm origem não só na Secretaria de Educação, mas também numa outra instância – a dos
gestores da Fundação.
O trabalho docente deve ser enquadrado nas regras da Unidade de Internação,
onde a prioridade é o controle e o disciplinamento. Não os alunos são vigiados em
sala de aula por funcionários da segurança; os professores também o são.
O professor precisa conviver com equipes de trabalho diversas, com concepções
e objetivos diferentes, num lugar a que não pertence e, no qual ocupa uma posição
secundária.
Os alunos, por sua vez, têm relações para além das paredes da sala de aula. Têm
conflitos e pendências externos à escola e suas formas de resolvê-los. O professor, mais
uma vez, encontra-se em meio a essas relações.
A educação escolar nunca teve um lugar de destaque na vida desses
adolescentes. Para a maioria, o período passado nos bancos escolares é lembrado com
descaso ou desgosto. Repetidas histórias de fracasso e discriminação são relatadas por
eles em diversas ocasiões
51
. Na FEBEM, a escola é identificada com a instituição,
motivo pelo qual ela é recusada como tudo que envolve a reclusão e a punição.
Foi preciso penetrar nessa realidade para conhecer os meandros do
funcionamento escolar numa Unidade de Internação da FEBEM-SP, as características
particulares do trabalho docente, da relação professor-aluno, enfim, da dinâmica escolar.
Penso que trazer a público tal realidade seria uma contribuição, na medida em que
poucas pesquisas debruçaram-se sobre o processo de escolarização nesta instituição. No
entanto, esta caracterização não seria suficiente se limitada às dificuldades encontradas
pela escola. Ao longo da pesquisa, uma outra necessidade se impôs: apreender o
significado que a escola adquire no interior desta instituição.
As limitações são tantas que se percebe facilmente que a escola contradiz a
imagem da FEBEM difundida pelo Estado: a de que ela é uma instituição educativa. A
presença da escola explicita a contradição constitutiva dessa instituição prisional.
51
PEREIRA (2006) traz informações sobre os índices de escolarização de adolescentes cumprindo
medidas cioeducativas em regime aberto ou fechado, em vários Estados brasileiros. Os dados
apresentados pela autora vêm ao encontro dos relatos dos internos da U.I. X.
141
Angela e Marisa, assim como outras professoras que trabalham, ao proporem
construir, não sem ambigüidade, uma relação com os alunos pautada no respeito e no
diálogo trazem a possibilidade de produzir fendas na forma dominante de tratamento
dos internos, ou seja, podem atuar como “artífices das brechas”, criando rachaduras no
instituído. Reitero a fala de Marisa: “com a gente, ele é ele mesmo”. Por não serem
tratados como bandidos, os adolescentes, ainda que em espaço restrito e em breves
momentos, podem viver experiências intersubjetivas que repercutam positivamente em
sua subjetividade, em especial, sobre a sua identidade
52
, para o que o número reduzido
de alunos em sala de aula pode contribuir.
Para refletir sobre esta contradição é preciso trazer, ainda que brevemente, o
objetivo fundador dessas duas instituições a Escola e as instituições prisionais no
momento de construção da sociedade capitalista. Qual é o significado social dessas duas
instituições?
A origem da Escola remonta ao século XVII, como instituição controlada pelo
Estado, com o objetivo de formar o “homem-cidadão” e o “homem-técnico”. De acordo
com Cambi (1999, p.311) uma das características da Pedagogia Moderna é o “desejo de
conformação e de controle do homem todo”:
Toda a vida escolar foi depois submetida a sistemas de controle e planificação, a rituais
e a instrumentos (a chamada, o registro) que permanecerão centrais em toda a história
da escola moderna, e que exercem ao mesmo tempo um papel disciplinar e formativo
(p.306).
Para Foucault (2005) a escola é uma instituição disciplinar que utiliza métodos
que possibilitam o controle rigoroso e detalhado do corpo humano, numa relação de
“docilidade-utilidade”. O espaço e o tempo são rigidamente marcados e divididos, as
ações são fragmentadas até a sua estrutura mínima, reguladas pelos critérios de
brevidade e de clareza numa “microfísica do poder”:
A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas
parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital
ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse
cálculo místico do ínfimo e do infinito. (...)Uma observação minuciosa do detalhe, e ao
52
Entendemos identidade como metamorfose, de acordo com o conceito desenvolvido por Ciampa
(1987). O autor entende a identidade humana enquanto um processo de desenvolvimento do abstrato ao
concreto, num eterno vir-a-ser.
142
mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização
dos homens, sobem através da era clássica, levando consigo todo um conjunto de
técnicas, todo um corpo de processos e de saber, de descrições, de receitas e dados. E
desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno (p. 121).
As características da Pedagogia Moderna, iniciadas no século XVII, são
aprimoradas no século XVIII, criando as bases para a Pedagogia Contemporânea. Nas
sociedades de classes a educação escolar é concebida para reproduzir a estrutura social
segundo, por exemplo, os estudos de Althusser (1980) e Bourdieu; Passeron (1975). No
entanto, a Revolução Francesa põe em relevo a Escola para a formação de cidadãos e o
direito universal à educação. Na era contemporânea aperfeiçoam-se as instituições
disciplinares e enfatizam-se os direitos civis, sociais e políticos dos homens, das
mulheres, das crianças, das minorias. Cambi explicita com propriedade essa
contradição:
A escola contemporânea, tão entrelaçada com o político, tão imersa no social, corre o
risco também de ser submetida a uma espécie de ‘duplo regime’ teórico, de duplo ideal
ou modelo: de instituição técnica e profissionalizante, que age, como destaca Luhmann,
qual um subsistema social, que no sistema da sociedade desenvolve um papel essencial
e constante (de reprodução da força de trabalho e da seleção); de instituição formativa e
cultural, que promove o crescimento intelectual, moral e social do indivíduo, torna-o
partícipe dos valores culturais, mergulha-o naquele ‘terceiro mundo’ que serve para
emancipá-lo da sua contingência histórica e social e introduzi-lo no ‘reino do espírito’.
São duas finalidades e duas funções que a escola contemporânea entrelaça sem
conseguir harmonizá-las e que constituem no seu dualismo- um dos elementos de
problematicidade mais radical da escola contemporânea (ao lado daquele paralelo
da oposição entre ideologização e autonomia, da dependência do político e da
autonomia formativa e crítica) (CAMBI, 1999, p.401).
O processo educativo é constituído, portanto, pela ação de formar e conformar.
Nas palavras de Cambi é “(...) a complexidade-antinomicidade presente em todo ato
educativo, necessária e estruturalmente dividido entre antinomia e heteronomia, entre
autoridade e liberdade” (p. 353).
***
143
O outro pólo do binômio que compõe esta pesquisa é a uma instituição total.
Segundo Goffman (2003), toda instituição tende a um certo “fechamento”, porém,
algumas são muito mais fechadas do que outras. Nestas últimas:
s
eu ‘fechamento’, ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o
mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema
físico por exemplo portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água,
florestas ou pântanos (p.16).
Goffman divide as instituições totais em cinco tipos, entre as quais as que são
organizadas “para proteger a comunidade contra perigos intencionais, e o bem estar das
pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato: cadeias, penitenciárias,
campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração”
(p.17).
As características historicamente construídas desses dois pólos do binômio em
questão permitem-nos concluir que a relação entre eles é, ao mesmo tempo, de
aproximação e de distância.
Em seu objetivo disciplinar de docilização dos corpos, a Escola, ainda hoje, é
constantemente convocada a conformar os homens. Assim, uma unidade escolar no
interior de uma instituição para adolescentes em conflito com a lei pode servir como
mais uma instância de conformação e controle dos internos, ou seja, de construção da
heteronomia. Porém, sua atribuição histórica de formar o cidadão e de garantir-lhe o
direito à cultura, faz dela locus que pode impedir o esquecimento de que esses jovens
também são sujeitos de direitos.
Nesse contexto, a escola, instala uma ambigüidade no interior da instituição
prisional. Por um lado, alia-se ao regime disciplinar da instituição e é incorporada à sua
lógica. Na disputa instalada entre internos e equipe dirigente, a escola, muitas vezes, é
utilizada, deliberadamente pelos dirigentes para manter a ordem e o controle. Com os
alunos sentados em sala de aula, na presença dos professores – figura geralmente
respeitada pelos internos que, pela sua própria inserção forasteira, não fazem parte da
disputa institucional vigiados pelo funcionário à porta, a escola pode ser um elemento
que minimiza as possibilidades de agitação, de rebelião. Assim, as aulas são mantidas
apesar da fumaça e do helicóptero que podem ser vistos das janelas das classes e da
sensação de insegurança geral que se instala no Complexo de Internação em momentos
de confronto. Em outros momentos, são os internos que fazem uso da escola para
144
inverterem a balança do poder e do controle: atacam o tempo, o espaço e os materiais
escolares para afrontar as normas disciplinares da Unidade de Internação. No encontro
entre Escola e FEBEM, a primeira é apropriada pela lógica da segunda, tornando-se
mais um instrumento de controle. Realidade confirmada pela impressão de Angela de
que a escola é um “alívio” para os funcionários da instituição.
Por outro lado, a escola, enquanto instância formadora de cidadãos, funciona na
FEBEM, como um lembrete incômodo de que os jovens internados são mais do que
bandidos irrecuperáveis ou quase bichos que precisam ser confinados e adestrados. Eles
são humanos, possuem direitos e devem ser respeitados. Nessa esfera, a escola ameaça o
regime disciplinar da instituição.
Professoras como Angela e Marisa que tentam e, às vezes, conseguem olhar e
tratar seus alunos com humanidade, dignidade e respeito, impedem a lógica prisional de
roubar, por completo, a humanidade de seus internos. O olhar e a atitude dessas
professoras podem instalar alguma dúvida em membros da equipe dirigente, como
sugere uma observação feita por um agente de segurança: “Quando a gente olha esses
caras na sala de aula parece que são moleques como qualquer outros”
53
. Na percepção
de Marisa a escola é um incômodo para a instituição.
Diante da ambigüidade instalada, cabem duas tarefas: fazer à crítica à educação
escolar que se realiza no interior da Fundação, por seu caráter descontínuo e precário,
denunciando assim o discurso do secretário de educação que, no ano de 2003, chegou a
anunciar que a FEBEM era a maior escola do Estado de São Paulo; ressaltar a
importância da presença da escola como espaço em que as relações podem se constituir
na direção contrária das relações reificadas que dominam nessa instituição.
Terminemos com Gramsci (1978):
A possibilidade não é uma realidade, mas é, também ela, uma realidade: que o homem
possa ou não fazer determinada coisa, isto tem importância na valorização daquilo que
realmente faz. Possibilidade quer dizer “liberdade”(…) Mas, a existência das condições
ou possibilidade, ou liberdade ainda não é suficiente: é necessário “conhecê-las” e
saber utilizá-las. Querer utilizá-las.
53
Fala de um agente de segurança registrada no diário de observação de campo em 15/06/2004.
145
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