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Além de fatores como a necessidade de trabalhar mais cedo para ajudar a família, Petronilha
cita o racismo e a falta de imagens do negro nos livros didáticos como elementos que expulsam
acriança negra da escola. Segundo ela, o problema é de falta de conhecimento real da história
dos negros no Brasil. Uma história que começa, como lembra, na África, e não na chegada dos
escravos em solo brasileiro. Soluções para esses problemas, diz a professora, devem ser
discutidas no CNE, órgão que tem a função de auxiliar o MEC na execução e elaboração de
normas e políticas públicas para o ensino. A história dos negros foi ensinada para Petronilha
por sua família, e não na escola onde estudou, em Porto Alegre (RS). Ela conta que suas avós,
mesmo negras, chegaram ao nível máximo de escolarização permitido a uma mulher no início
do século passado. Petronilha seguiu pelo mesmo caminho. Após seu doutorado em ciências
humanas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fez pós-doutorado em teoria da
educação na Universidade da África do Sul, em Pretória, onde foi professora visitante. Hoje,
ela participa da coordenação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFSCar (Universidade
Federal de São Carlos). Veja os principais trechos de sua entrevista à Folha. *
Folha - A escola básica está praticamente universalizada no Brasil, com quase todas as crianças
tendo acesso a ela. No entanto, a impressão é que a diferença entre negros e brancos não diminui.O
que está errado?
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva - As escolas estão recebendo as crianças negras em suas salas
iniciais. Até a 4ª série do ensino fundamental, o atendimento é até razoável. O problema é que não
há políticas públicas para garantir a permanência dessas crianças na escola. Uma das razões para
a evasão é que as famílias precisam de que os filhos ajudem no orçamento, e muitas crianças negras
têm de começar a trabalhar. Além disso, inúmeros estudos têm mostrado que o racismo expulsa a
criança da escola. Um dos primeiros foi feito em 1985 pelo professor Luiz Roberto Gonçalves, da
UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e falava sobre o silêncio do professor. Ele
mostrava que a criança negra sofre discriminação de outros colegas, mas o professor não sabe
como lidar com isso ou não vê.
Folha- Esse é um problema só do professor?
Petronilha - Não. Há uma ausência quase absoluta de imagens da população negra nas escolas. (...)
Há muitas coisas que a gente desconhece. Eu, pelo menos, nunca estudei na escola que havia reinos
africanos, como o do Congo e do Zimbábue. Quando falamos de ruínas de antigas civilizações,
falamos de Grécia e Roma. Ignora-se que já no século 13 havia três grandes universidades
islâmicas na região onde hoje está Mali [África subsaariana]. Os negros também descendem de
gente educada, com cultura. Outra coisa que não se fala é que os negros escravizados eram trazidos
de regiões onde tinham experiência agrícola, ou seja, não eram mão-de-obra desqualificada. O que
falta é conhecimento real da história. Quem não se orgulha da história de seus antepassados que
trouxeram desenvolvimento? (...)
Petronilha - A questão racial não é exclusiva dos negros. Ela é da população brasileira. Não
adianta apoiar e fortalecer a identidade das crianças negras se a branca não repensar suas
posições. Ninguém diz para o filho que ele deve discriminar o negro, mas a forma como se trata o
empregado, as piadas, os ditados e outros gestos influem na educação.
Folha - A senhora é a favor das cotas para negros em universidades?
Petronilha - Sou absolutamente a favor. O movimento negro costuma dizer que sempre existiram
cotas no Brasil. Elas beneficiavam brancos e descendentes de europeus, que sempre tiveram posição
garantida nas universidades.
Folha - A entrada de negros sem que seja pelo critério do mérito não é um golpe na auto-estima dos
próprios estudantes que se beneficiariam das cotas?
Petronilha - Ninguém está dizendo que eles ingressarão na universidade sem qualificação. O
sistema de cotas que sugerimos é o que leve em conta a aprovação do estudante no vestibular. Em
95, fiz parte de um grupo que estudou a adoção desse sistema na USP (Universidade de São Paulo).
As cotas que propusemos beneficiariam os estudantes que fossem aprovados no vestibular, mas que
não conseguissem a classificação para uma vaga.
p. C8, 25 mar. 2002.