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A IMPRENSA NA CONSTRUÇÃO DA REALIDADE RACIAL NO
BRASIL
Um estudo de análise crítica do discurso jornalístico
Joseti Marques Xisto da Cunha
Programa de Pós-Graduação
Escola de Comunicação
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Curso de Doutorado
Orientador: Prof. Dr. Milton José Pinto
Rio de Janeiro
2005
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A imprensa na construção da realidade racial no Brasil
Um estudo de análise crítica do discurso jornalístico
Joseti Marques Xisto da Cunha
Tese submetida ao corpo docente da Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de
Doutor.
Aprovada por:
Prof.______________________________
Doutor Milton José Pinto
(Orientador)
Prof._______________________________
Doutora Ana Paula Goulart Ribeiro
Prof._______________________________
Doutor Joel Rufino dos Santos
Prof. _______________________________
Doutor Manolo Garcia Florentino
Prof.________________________________
Doutor Roberto Múrcia Moura
Rio de Janeiro
2005
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DEDICATÓRIA
A todas as crianças negras, mesmo aquelas que o tempo envelheceu.
A meus amados filhos e neto.
A Palmyra Cabral da Silva, minha avó, in memoriam.
AGRADECIMENTOS
A meus pais, pelo estímulo permanente.
A Tati, Leo, Eduardo, Duty e Rafael, por estarem sempre perto.
À Doutora Cláudia Mesquita, fonte permanente de interlocução, conhecimentos e
amizade.
Aos professores e amigos Pedro Vieira, Rose Mary Alessio e Saulo Chagas, pelos
auxílios generosos.
Ao meu orientador, professor doutor Milton José Pinto, por ter-me ensinado a “ler”.
Ao professor doutor Geraldo Nunes, por ter-me ajudado a atravessar as águas turvas
desse rio.
A Deus, que nos reconhece a luta e nos ampara mesmo diante do impossível.
Cunha, Joseti Marques Xisto da
A imprensa na construção da realidade racial no Brasil/ Joseti
Marques Xisto da Cunha – Rio de Janeiro, 2005.
170 fls.
Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Escola de Pós-Graduação em
Comunicação – ECO, 2005.
Orientador: Prof. Dr. Milton José Pinto
1. Racismo. 2. Imprensa e jornalismo. 3. Análise de discurso -
Teses. I. PINTO, Milton José (Orient.). II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Escola de Pós-Graduação em
Comunicação. III. A imprensa na construção da realidade racial
no Brasil – um estudo de análise crítica do discurso jornalístico.
iv
CUNHA, Joseti Marques Xisto. A imprensa na construção da realidade racial no Brasil
um estudo de análise crítica do discurso jornalístico.
Orientador: Prof. Dr. Milton José
Pinto. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2005. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura).
RESUMO
O presente estudo investiga a participação da imprensa na configuração do perfil racial
da sociedade brasileira, utilizando conceitos da Sociologia do Conhecimento, no que se
refere à construção social da realidade, e o instrumental teórico da Análise Crítica dos
Discursos, conforme proposta por Norman Fairclough, para abordagem e análise dos
textos selecionados sobre a mais recente polêmica que iluminou, pela imprensa, a
histórica problemática racial brasileira. A pesquisa tem como principal objetivo indicar
novas formas de compreensão do poder e da influência da chamada mídia jornalística no
tecido social, suas tendências e processos, e os reflexos que possam ter sobre as
mudanças sociais. O corpus da pesquisa é constituído pelos jornais O Globo e Folha de
S. Paulo, no período que abrange o ano de 2002 e, de forma complementar, o ano de
2003.
v
CUNHA, Joseti Marques Xisto. A imprensa na construção da realidade racial no Brasil
um estudo de análise crítica do discurso jornalístico.
Orientador:Prof. Dr. Milton José
Pinto. Rio de Janeiro : UFRJ/ECO, 2005. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura).
ABSTRACT
This study investigates the participation of the press in the development of the racial
profile of the Brazilian society. The author applied the concepts of Knowledge
Sociology for the social construction of reality, and the theoretical background of
Critical Discourse Analysis, as proposed by Norman Faiclough, for the approach and
analysis of the press-published chosen texts about the most recent debate on historical
racial problems in Brazil. The research is primarily intended to indicate new forms to
understand knowledge and the influence of the so-called journalistic media on the social
tissue, their trends and processes, as well as the reflexes they can have on social
changes. The research corpus is taken from the Brazilian newspapers O Globo e Folha
de São Paulo in the year of 2002, and complementarily, 2003.
vi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................7
PARTE 1 - IMPRENSA E JORNALISMO NO CONTEXTO DAS TEORIAS DA
COMUNICAÇÃO
.......................................................................................................................14
1.1.1 - A imprensa “escrita à mão” – relativizando a influência dos suportes ................... 19
1.1.1.1 - Imprensa, atos performativos e rituais de magia social...................................25
1.1.2 - Imprensa e mídia impressa nas pesquisas — por uma revisão crítica..................... 30
1.2 – Ideologia e discurso – jornalismo e prática social; imprensa como estrutura................ 33
1.2.1 – Gêneros de discursos e posicionamentos ideológicos............................................45
1.2.2 – Lugar de fala da imprensa – interdiscursividade e polifonia..................................47
1.2.3 – Ideologia e constituição do sujeito no discurso jornalístico...................................50
1.2.4 – Imprensa e institucionalização – o discurso de auto-referenciação........................63
PARTE 2 - CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE E DESTERRITORIALIZAÇÃO
SIMBÓLICA DOS AFRO-DESCENDENTES
..........................................................................72
2.1 – Jornalismo e construção social da realidade – a sociologia do conhecimento..............78
2.1.1 – Imprensa e racismo – reprodução da ideologia da elite hegemônica .....................84
2.1.2 – Desterritorialização social e discursiva – a notícia da abolição.............................. 87
2.1.3 – A imprensa como acervo social do conhecimento .................................................89
2.1.4 – Institucionalização e legitimação – a imprensa validando a história.................... 101
PARTE 3 LUGAR MARCADO OU A TAUTOLOGIA DA DIÁSPORA – ANÁLISE
CRÍTICA DO DISCURSO DA IMPRENSA
...........................................................................104
3.1 – Teorias sociais e os estudos críticos da linguagem – Norman Fairclough...................107
3.2 – Quadro teórico da análise crítica proposta por Fairclough..........................................111
3.3 - A polêmica das cotas raciais e a divisão do trabalho nas editorias dos jornais............117
3.3.1 – Editoria de Economia – mercado e direitos humanos se encontram no discurso.119
3.3.2 – Cartas do Leitor – a construção do discurso da opinião pública sobre as cotas ... 124
3.3.3 – Artigos de Opinião – o lugar de fala do discurso autorizado................................131
3.3.4 – Reportagem – entre a construção do título e o acontecimento............................. 138
3.3.5 – Discurso e resistência – uma questão da Editoria de Economia...........................141
3.4 – Folha de S. Paulo – discurso da Ciência decreta o fim da raça.................................... 153
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................... 159
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................... 164
7
INTRODUÇÃO
Nunca o mundo se mobilizou tanto na defesa dos direitos humanos como nas
últimas décadas. Organismos nacionais e internacionais se unem na observação das
nações que ferem a dignidade humana pelos instrumentos da violência física ou
econômica. A violência simbólica, mais sutil e difícil de se apontar, acaba sendo
ignorada em seu trabalho permanente de estabelecimento e manutenção das relações de
poder e dominação nos contextos sociais onde circula, reproduzindo e mantendo as
assimetrias sociais que se materializam depois em pesquisas e índices de
(sub)desenvolvimento humano, em uma análise reducionista que tudo explica pelo
contorno econômico. É claro que não se quer dizer que o econômico seja irrelevante, já
que é a face de maior visibilidade de qualquer processo, seja político ou social.
O capitalismo moderno transformou a esfera econômica no termômetro por
excelência dos índices de satisfação da espécie humana. Mas o acirramento dessa nova
ordem, a que Fairclough chama de Novo Capitalismo, induz a uma cultura de soluções
paliativas que desprezam a causa, agindo apenas sobre as conseqüências das distorções.
As propostas de solução passam todas pelo mercado: sanções econômicas entre nações;
campanhas humanitárias de apelo à solidariedade individual que redundam em
doações/esmolas; movimentos pela inclusão em uma ordem econômica que raramente
se conjuga com uma ordem social; medidas legais punitivas que não encontram eco nas
decisões judiciais. Das políticas de combate às discriminações de toda ordem — de cor,
de raça, de raça e cor, de gênero, de opção sexual etc — o resultado mais efetivo tem
sido a institucionalização do politicamente correto, camuflando, através do vocabulário,
o sentido que ainda permanece lá.
8
Escravo – adj.s.m. – (...) “Ser propriedade (com o seu correlativo da
sujeição pessoal) constitui o atributo primário do ser escravo. Deste
atributo primário decorrem dois atributos derivados: os da
perpetuidade e da hereditariedade. O escravo o é por toda vida e sua
condição social se transmite aos filhos
1
.
A realidade traduzida em números dá conta de que de cada 2 mil crianças pobres
no Brasil, 1600 são negras; 76,1 em cada mil crianças afro-brasileiras morrem antes dos
5 anos. No caso da discriminação racial, a definição do que é ser escravo e a constatação
estatística da realidade racial no Brasil mal disfarçam a operação ideológica que se
objetiva na repetição do sentido-lá. Se perguntarmos o significado da realidade que
esses números descrevem, podemos responder com a definição de Gorender de que “do
atributo primário de ser escravo decorrem dois atributos derivados: o de que a
escravidão se perpetua por toda vida e a condição social do escravo se transmite
hereditariamente aos filhos”. Uma aproximação que a naturalização do processo de
exclusão do negro pelo discurso econômico não deixa relacionar. Um sentido que
persiste no tempo, dribla causas, paralisa movimentos, enfraquece as lutas, reduzindo as
ações a meras peças de retórica mercadológica “politicamente correta”.
Fonte: O Globo, 1º out. 2003, p. 16. Coluna Ancelmo Gois.
Quadro 1: Estereótipos 1.
1
GORENDER, J. O Escravismo Colonial. Apud SCISÍNIO, A. E. Dicionário da Escravidão. Rio de
Janeiro: Léo Christiano, 1997. p. 140.
9
Fonte: O Globo, 2 out. 2004, p. 16. Coluna Ancelmo Gois.
Quadro 2: Estereótipos 2.
Munido das recomendações, o mercado sai na frente, adaptando seu discurso a
uma espécie de código de postura que tem como finalidade o desbravamento de novos
nichos de oportunidades: o negro como imagem de consumo para estimular novo
mercado consumidor. Reforçando a falácia capitalista de que há chances para todos na
medida de seus talentos, o negro aparece onde na verdade raramente está.
Os efeitos de sentido estão presentes no discurso e traem a retórica minimalista
do politicamente correto. São os efeitos do esquecimento ideológico operando no
discurso e produzindo uma impressão de atualidade do pensamento, a ilusão de que
somos a origem do que dizemos, apagando sentidos pré-existentes que permanecem em
nós e se revelam no discurso, significando à revelia de nossa vontade.
O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da
linguagem. Ele é eficaz. Ele não “brota” do nada: assenta-se no modo
como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em
uma sociedade como a nossa, por relações de poder
2
.
As pistas do sentido que nos regem o pensamento estarão dadas no discurso; a
forma como esse sentido se engendrou estarão marcadas na história e registradas em
2
ORLANDI, E. P. Análise de discurso – princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999, p. 42.
10
seus documentos. Mas como esses sentidos atravessam o tempo e ganham atualidade no
cotidiano, em contextos que já não os deveriam comportar?
Seguimos a pista de que o trabalho da imprensa desempenha importante papel
nesse jogo de atualização de sentidos, mesmo aqueles que repudia em discurso
manifesto.
Para tentar encontrar essas marcas, definimos como corpus da pesquisa os textos
jornalísticos do ano de 2002, que discutiram, noticiaram ou, de alguma forma,
referiram-se à polêmica que envolve o estabelecimento de cotas raciais para promover o
acesso de negros às universidades públicas. Embora tenhamos acompanhado e
selecionado material sobre a discussão até dezembro de 2004, optamos por esse recorte
por ser o período em que os debates sobre o programa de cotas raciais ainda se davam
no sentido de fazer prevalecer opiniões e influenciar na consolidação das medidas
prometidas pelo Governo Federal em setembro de 2001 na Conferência de Durban, na
África do Sul, onde se discutiram políticas de combate ao racismo e promoção das
minorias. Os jornais escolhidos foram O Globo e Folha de S. Paulo, por serem dois dos
principais veículos em termos de circulação nacional, editados em duas capitais de
grande relevância econômica, social e cultural do país. A seleção dos jornais obedece
também a critérios de circulação, periodicidade e alcance e por circularem em uma faixa
de público considerada formadora de opinião.
Esses são os momentos pontuais com que trabalhamos, embora não nos furtando
a incluir outros textos que vimos encontrando e que colaboram para a compreensão de
nosso objeto. Em capítulo referente aos processos de produção jornalísticos
justificaremos adequadamente esta seleção.
11
Os aspectos teóricos da pesquisa podem ser resumidos em três principais
abordagens: estudos de Teoria da Comunicação, com foco principal na produção
jornalística; elementos de Sociologia do Conhecimento, no que se refere aos
fundamentos do conhecimento na vida cotidiana e da construção social da realidade; e
Análise Crítica dos Discursos, como ferramenta para investigar e interpretar o discurso
que os textos jornalísticos fazem circular sobre a questão racial na sociedade brasileira e
como esse trabalho poderá estar se articulando com uma ideologia que tem sustentado
as desigualdades sociais que historicamente incidem sobre os negros.
Com base nessas abordagens, dividimos a linha argumentativa em três partes, na
pretensão de que o encadeamento das partes contribua para a compreensão do raciocínio
que propomos.
Na primeira parte, refletimos sobre o papel dos veículos de comunicação
jornalística no campo dos estudos da Comunicação de Massas, enfocando as pesquisas
que tratam da construção social da realidade. Ao tratar dos aspectos que diferenciam o
produto jornalístico dos demais produtos midiáticos, reivindicamos uma maior
especificidade sobre o material jornalístico e a elaboração de parâmetros próprios de
abordagem.
Na segunda parte do trabalho, articulamos os conceitos da Sociologia do
Conhecimento com as proposições elaboradas a partir das reflexões sobre as condições
de produção jornalísticas, entendendo os processos de produção como o movimento de
interação comunicacional, que envolve a produção,a circulação e o consumo dos
sentidos.
12
Esta abordagem reforça nossa intenção de compreender o papel do trabalho da
mídia jornalística na construção de idéias e crenças socialmente compartilhadas e como
sentidos se articulam na consolidação de práticas sociais.
A Análise Crítica de Discursos, instrumento com que empreendemos a leitura
dos textos jornalísticos, tem-se mostrado um dos mais eficientes instrumentos de
avaliação dos sentidos postos em circulação pelos produtos culturais e, desde a década
de 80, é um dos setores da pesquisa em comunicação que mais vem se desenvolvendo.
Conduzimos a pesquisa a partir da perspectiva da análise de discursos francesa, que foi
desenvolvida por Michel Pêcheux, na década de 60, com base na teoria de ideologia de
Althusser. Outro de seus principais expoentes é Michel Foucault, cuja abordagem de
análise de discursos é considerada como um modelo pelos cientistas sociais. Em sua
obra, Foucault demonstra como a razão e o pensamento são afetados pelo poder.
Para dimensionar a participação da imprensa na questão racial a partir de uma
perspectiva histórica e identificar suas condições de produção, observamos as marcas e
os traços deixados na superfície discursiva do trabalho jornalístico, a partir das
abordagens de Milton José Pinto e Norman Fairclough. O primeiro, por oferecer uma
visão inovadora em meio às diversas correntes que se alinham em torno desse campo
novo de pesquisas que é a Análise de Discursos. Em sua obra de referência — As
Marcas Lingüísticas da Enunciação — Pinto constrói uma interessante descrição do
fenômeno de modalização, que vai nos orientar no sentido de demonstrar como são
criadas as diferenças de poder entre emissor e receptor, no caso do discurso jornalístico.
Em Fairclough, vamos buscar principalmente os dispositivos de interpretação do
objeto observado, trabalhando na direção por ele proposta de Análise Crítica dos
13
Discursos (ACD). Essa abordagem é baseada no ponto de vista que considera a semiose
como um elemento irredutível da objetivação de todo processo social.
O enfoque de Fairclough da ACD é sobre as mudanças radicais que vêm
ocorrendo na sociedade contemporânea, cada vez mais invadida pelo controle de
mercado. Mas é a prática de análise crítica que ele propõe que nos interessa
particularmente e a forma como demonstra que o discurso é moldado por relações de
poder e ideologia.
Como uma espécie de convite à compreensão do objeto recortado pela
perspectiva de nosso olhar, esperamos atingir o objetivo de demonstrar, na primeira e
segunda partes, o percurso de nossas reflexões sobre o lugar da imprensa na cena social
em geral e no debate racial em particular, propondo, na terceira parte, a leitura dos
textos jornalísticos selecionados a partir deste instrumental. Os textos foram separados
em quatro principais grupos, de forma a permitir uma análise específica do sistema de
produção que condiciona a construção do discurso jornalístico, levando em conta a
especificidade de cada editoria.
Temos então o grupo de recortes de Reportagens, o de Cartas do leitor, o dos
Editoriais (opinião do jornal), o de Artigos (opiniões em geral) e o de Economia. A
divisão, mais do que propriamente agrupar pela divisão de trabalho dos jornais em
editorias, nos permite observar o modo próprio de estruturação deste lugar de fala em
que cada texto se inscreve e sua relação com o receptor.
14
PARTE 1 - IMPRENSA E JORNALISMO NO CONTEXTO DAS
TEORIAS DA COMUNICAÇÃO
A refuncionalização do princípio da esfera pública
baseia-se numa reestruturação da esfera pública
enquanto uma esfera que pode ser apreendida na
evolução de sua instituição por excelência: a imprensa.
Jürgen Habemas
Dimensionar o peso da influência que a imprensa exerce sobre a vida social em
comparação às outras mídias é um dos pontos fundamentais para a compreensão de
nossa proposta. Mesmo que essa operação não seja passível de uma quantificação
objetiva, acreditamos que a observação das abordagens do jornalismo nos estudos das
teorias da comunicação nos ofereça elementos suficientes para justificar nossa intenção.
Nos estudos das teorias da comunicação, os mais diversos veículos são
englobados sobre a mesma rubrica — mass media, mídia ou veículo de comunicação de
massa. Mesmo nas teorias que pretendem traçar o percurso dos efeitos da mídia sobre as
audiências, a referência aos emissores confere o mesmo tratamento geral aos diversos
veículos ou às diversas mídias, observando os fatos midiáticos através do mesmo
referencial teórico. Embora haja uma inegável concentração de exemplos extraídos do
trabalho de produção de notícias, exclusivo dos veículos jornalísticos, nas pesquisas
empreendidas no âmbito da comunicação, a maioria dos teóricos não parece considerar
as especificidades da mídia jornalística como um dado expressivo para a compreensão
da interferência das ações midiáticas no tecido social.
Apesar da expressiva mudança de perspectiva na observação dos efeitos da
comunicação de massas, privilegiando as conseqüências de longo prazo ao invés de a
influência de curto prazo, a metodologia da pesquisa não parece ter sofrido grandes
15
alterações, mesmo que abandonando os casos singulares, como campanhas políticas,
programas de auditório, por exemplo. Esses recortes passam a ser tratados como áreas
temáticas dentro de um campo ampliado de observação de todo o sistema de mídia. O
trabalho de averiguação das mudanças de atitudes e opinião dá lugar à reconstrução do
percurso através do qual o indivíduo transforma sua própria representação da realidade
social.
Na evolução que a questão dos efeitos está a sofrer desde há algum
tempo, muda, em primeiro lugar, o tipo de efeito, que já não diz
respeito às atitudes, aos valores, aos comportamentos dos
destinatários, mas que é um efeito cognitivo sobre os sistemas de
conhecimento que o indivíduo assume e estrutura de uma forma
estável, devido ao consumo que faz das comunicações de massa. Em
segundo lugar, muda o quadro temporal: já não efeitos pontuais,
ligados à exposição à mensagem, mas efeitos cumulativos,
sedimentados no tempo
3
.
A nova orientação, marcadamente sociológica, traz a vantagem de tornar
pertinentes as abordagens interdisciplinares, já que põe em cena os diversos fatores que
interagem na constituição do processo de influência. A partir de então, as pesquisas
centradas na teoria informacional da comunicação — que tem como principal
preocupação os efeitos comportamentais de reação aos estímulos midiáticos que podem
ser objetivamente observados e medidos — dão lugar a uma corrente de investigação
onde a sociologia do conhecimento terá progressiva influência, por lidar com os
processos simbólicos e comunicativos como pressupostos da sociabilidade.
A adoção de um modelo de comunicação centrado no processo de significação
dá ensejo à compreensão da influência da mídia nas opiniões e nas crenças dos
receptores e à percepção de que os processos midiáticos colaboram para a estruturação
da realidade social a longo prazo. No entanto, os estudos baseados nesses conceitos
3
WOLF, M. Teorias da comunicação. 4a. ed. Lisboa: Presença, 1995. p. 126.
16
também observam pela mesma ótica os diversos produtos midiáticos, quer sejam de
natureza publicitária, como as campanhas políticas, quer sejam exclusivamente
jornalísticos e noticiosos.
A opção por essa abordagem mais genérica não encontra uma explicação ou
referência específica nos tratados de teoria da comunicação, mas talvez deva-se à
mesma lógica que fez com que durante muito tempo prevalecesse a perspectiva clássica
administrativa da communication research dos efeitos de curto prazo, onde se
considerava que os processos comunicativos são episódicos, com efeito isolável e
independente; que são assimétricos, supondo um emissor ativo e um receptor passivo;
que afetam diretamente o indivíduo, sendo portanto necessária a observação isolada; e
que a comunicação é intencional, supondo que o emissor atua com uma intenção prévia.
Segundo Wolf, a resistência à mudança desse paradigma explica-se de várias maneiras,
mas relaciona entre elas a problemática do “poder” dos veículos de comunicação.
A isso deve-se acrescentar um elemento inerente à lógica
“administrativa” de grande parte da communication research: o facto
de a teoria dos “efeitos limitados” ser adequada quer aos grandes
aparelhos de comunicação de massa, quer à imagem profissional dos
jornalistas, na medida em que contribuía para “defender”, uns e
outros, de controlos e pressões sociais excessivos, que seriam, pelo
contrário, inevitavelmente acentuados desde que se acreditasse na
idéia de uma influência maciça dos mass media sobre o público
4
.
Mesmo nesta citação que indica uma postergação dos avanços da pesquisa por
interferência externa, podemos notar que a referência ao “jornalista” deixa pouco clara a
amplitude do que o autor quer incluir ou restringir como “mass media”. Se
considerarmos que nem todo profissional que atua nos meios de comunicação de massa
é jornalista, podemos inferir que o autor se refere aos veículos jornalísticos e que o que
chama de “mass media” inclui apenas estes veículos. Podemos ainda interpretar a
4
WOLF, M. Op. cit., p. 127.
17
citação de uma outra forma: os “mass media” como o campo amplo onde se incluem
todos os dispositivos midiáticos, e os “jornalistas” agindo — ou sendo atendidos
para impedir que as pesquisas não denunciassem seu alto grau de influência. O que, de
qualquer forma, evidenciaria a necessidade de se avaliar especificamente o campo
jornalístico, já que está claro o poder que essa mídia específica tem de interferir nos
processos, determinando o rumo que setores estratégicos deverão seguir. A forma
ambígua com que o tema tem sido tratado deixa antever um nível de dificuldade de
abordagem que poderá ter seus fundamentos para além das motivações acadêmicas.
Os detalhes deste debate ideológico não são fundamentais para a compreensão
da hipótese sob a qual trabalhamos, mas é importante citar que um dos textos que
marcaram a mudança de perspectiva dos estudos sobre os efeitos, de 1973, intitula-se
Return to the concept of powerful mass media
5
, de Elisabeth Noelle-Neuman,
pesquisadora alemã que a partir da década de 1960 começa a publicar seus trabalhos
sobre formação e evolução da opinião pública. Elisabeth graduou-se em História e
Filosofia na Alemanha e em Jornalismo pela Universidade de Missouri, nos Estados
Unidos, doutorando-se em Jornalismo pela Universidade de Berlim, em 1939. O pai
dela era membro do Partido Nazista e, aos 19 anos, fazia parte da Organização
Estudantil Nacional Socialista. Junto com o marido, Hubert Neumann, fundou um
instituto de pesquisa de opinião que trabalhou para o partido democrata cristão da
Alemanha. Em 1961, começou sua trajetória acadêmica na Universidade Livre de
Berlim; em 1964, na Universidade Johannes Gutemberg de Mainz, fundou o Institut für
Publizistik. Em 1974, publicou seu mais importante trabalho sobre a influência da
divulgação dos resultados de pesquisas de opinião, que ficou conhecido como a teoria
5
NOELLE-NEUMANN, E. Return to the concept of powerful mass media. Studies of Broadcasting, v.
9, p. 67-112, 1973.
18
SOS, sigla formada com as iniciais do título do livro — The spiral of silence – public
opinion, our social skin —, que mostra a chamada opinião pública como uma forma de
controle social, influenciando e fazendo prevalecer no indivíduo aquilo que é divulgado
como a vontade da maioria. O principal motivo desta pesquisa teria sido entender como
os alemães se deixaram conquistar pela ideologia nazista. A comunidade acadêmica, no
entanto, cobra da pesquisadora uma referência mais objetiva sobre sua própria
participação neste período dramático da história da humanidade. Em The spiral of
silence, Noelle-Nuemann descreve o esfacelamento do bloco comunista no Leste
Europeu como resultado do direcionamento da opinião pública pela divulgação do que
seria a “vontade da maioria” e afirma:
Se nós entendêssemos a força da opinião pública, não seríamos tolos
de pensar que podemos ser ‘bons’ cidadãos completamente
independentes da pressão da opinião pública
6
.
Apesar da polêmica envolvendo a biografia de Elisabeth Noelle-Neumann, o
fato é que é esta se tornou uma das mais conceituadas pesquisadoras sobre opinião
pública e seu trabalho de 1973 fez com que os estudos sobre os efeitos da comunicação
de massa reconquistassem uma importância que havia sido abandonada pelos
pesquisadores americanos desde a década de 1950.
Do nosso ponto de vista, consideramos que a aplicação indiscriminada de
conceitos das teorias da comunicação a todo e qualquer dispositivo midiático nos afasta
da possibilidade de compreender o grau de influência que cada uma das mídias vai ter
no processo de estruturação de realidades públicas relevantes, incluídas aí a formação
da opinião pública.
6
NOELLE-NEUMANN, E. The spiral of silence – public opinion, our social skin. 2a. ed. Chicago:
University of Chicago Press, 1993. p.7.
19
1.1.1 - A imprensa “escrita à mão” – relativizando a influência dos suportes
O que se convencionou chamar de mídia engloba desde as editoras de revistas de
histórias em quadrinhos, passando pela televisão, pelo rádio, indústria cinematográfica,
e desembocando no mais recente dos veículos de comunicação/interatividade de massa,
a Internet. Cada uma dessas instituições engloba um leque variado de dispositivos
midiáticos, podendo ter entre eles aqueles de caráter exclusivamente noticioso. Por
exemplo, todas as emissoras de televisão aberta e algumas a cabo ou satélite têm
produções jornalísticas em suas grades de programação. Mesmo as rádios que “tocam”
apenas notícias, como é o caso da nacional CBN, do Sistema Globo de Rádio, têm
algum nível de entretenimento em sua programação. Mesmo nestes casos, a mídia de
caráter noticioso ainda se diferencia do restante dos produtos veiculados por essas
mídias, guardando semelhança e mantendo um padrão comum, regido por normas
técnicas e por um código deontológico que o diferencia profundamente das demais
mídias. Fora desses veículos, o jornalismo impresso marca um lugar histórico entre as
mídias, representando a matriz de todos os outros dispositivos de mídia noticiosa, não
importando qual seja seu suporte. O jornalismo online, o radiofônico, o televisivo, todos
fazem parte do que se convencionou chamar imprensa. O trabalho da imprensa, não
importando para que veículo é produzido, reúne as mesmas características fundamentais
em todos.
Estamos aqui falando da excessiva relevância que as abordagens teóricas
atribuem ao suporte, no que se refere à análise do resultado social do trabalho
jornalístico. Evidentemente que as análises que pretendem apenas identificar e
classificar os discursos deverão atribuir importância à manifestação material dos
discursos — uma notícia será analisada de diferentes formas e poderá indicar um
20
determinado gênero discursivo levando-se em consideração seus diferentes suportes:
impressos, no caso do jornal; meios eletrônicos no rádio e TV; mídia digital, na Internet
etc. Maingueneau chama atenção para este aspecto:
Hoje, estamos cada vez mais conscientes de que o mídium não é um
simples “meio” de transmissão do discurso, mas que ele imprime um
certo aspecto a seus conteúdos e comanda os usos que dele podemos
fazer. O mídium não é um simples “meio”, um instrumento para
transportar uma mensagem estável: uma mudança importante do
mídium modifica o conjunto de um gênero de discurso
7
.
Mas o conjunto do trabalho jornalístico a que costumamos chamar
genericamente de imprensa, notadamente o da imprensa escrita, tem como suporte, na
nossa visão, além de seus diversos aparatos técnicos, o suporte que lhe define o gênero
que é a imprensa em si. A imprensa, embora seja uma entidade imaterial formada pelo
conjunto material dos diversos veículos de comunicação jornalística e seus
profissionais, é entendida por nós como meio.
A especificidade da mídia jornalística, desde os primórdios de sua história,
sempre foi marcada pela definição clara de seu lugar no território antes escassamente
povoado dos produtores de discursos de ampla circulação. O trabalho de reportar fatos,
opiniões, informações, influenciando o público principalmente em relação a decisões
políticas, era tarefa empreendida pela imprensa, numa referência clara ao fato de o
suporte da informação ser a impressão produzida em prensas, de onde também saíam os
livros e mapas:
7
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2000. p. 71-72.
21
Podemos fixar um tempo exato (1455, na cidade alemã de Mainz).
Embora aproximações grosseiras da imprensa possam ser encontradas
em épocas mais recuadas da história, o primeiro livro foi produzido
por uma prensa que usava tipos móveis fundidos em metal, apenas
poucas décadas antes de Colombo realizar sua famosa viagem. Quase
da noite para o dia a tecnologia disseminara-se pela Europa toda. De lá
partiu para outras partes do mundo e revolucionou a maneira pela qual
desenvolvemos e preservamos nossa cultura
8
.
A evolução tecnológica trouxe novo status à produção de livros, inscrevendo-a
no território das artes, literatura e conhecimento — aliás, uma reivindicação dos
eruditos desde que o jornalismo começou a se popularizar e expandir, no início do
século XVII, conquistando não apenas o público que viria mais tarde a ser observado
como massa, mas cooptando os próprios escritores que viam na nova forma de
comunicação um meio mais constante de garantir a sobrevivência. Para alguns, as
publicações impressas eram um negócio como qualquer outro; para outros, o romance
era a principal forma literária e o jornal vinha para degradar esse ambiente literário a
que somente uma elite tinha acesso.
Na Europa, o afastamento da produção literária do berço comum do jornalismo,
pelo menos na nomenclatura que aos dois definia, talvez tenha começado a se processar
logo nos primeiros momentos em que os jornais mostravam sua vocação popular e de
mercado.
8
DE FLEUR, M. L.; BALL-ROKEACH, S. Teorias da comunicação de massa. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993. p. 24.
22
Para Gissing e Henry James (1843-1916), grande romancista norte-
americano que viveu na Inglaterra, os jornalistas pareciam estar
tomando conta de tudo, tendo atrás de si andrajosos editores. A
mesma impressão tinha o historiador W.E.A. Leck (1838-1903), que
escreveu em 1888 um artigo sobre as mortes coincidentes do
advogado constitucional Sir Henry Maine (1822-88) e do poeta e
crítico Matthew Arnold (1822-88). “O talento literário”, declarou,
“estava sendo pulverizado e absorvido pela imprensa diária ou
semanal”. ‘Suponho’, concluiu, ‘que jamais houve um país ou uma
época em que excelentes talentos literários em tão grande número
tivessem se dedicado à escrita e se tornado imediatamente anônimos e
efêmeros’
9
.
No Brasil, onde a imprensa chegou tardiamente em 1808 com o advento da
transferência da Corte de D. João, a produção jornalística, se é que podemos chamar
assim, é que enseja o florescimento da literatura nacional. Surgida já com o intuito de
representar interesses políticos, a imprensa da época resumia-se a dois jornais: Gazeta
do Rio de Janeiro, jornal oficial que enaltecia os feitos da Corte e reproduzia material
de jornais portugueses e ingleses, e o Correio Brasiliense, de Hipólito da Costa, que era
feito em Londres, do qual se diz — não sem controvérsias — ter sido o primeiro jornal e
marco do nascimento da imprensa no Brasil. Mecenas Dourado, em biografia do
jornalista, diz que o Correio surgiu com a finalidade de “preparar para o Brasil
instituições liberais e melhores costumes políticos”, admitindo que o jornal “não foi
fundado para pregar a independência e não a pregou”
10
.
O atraso da imprensa no Brasil, aliás, em última análise, tinha apenas
uma explicação: a ausência do capitalismo, ausência da burguesia. Só
nos países em que o capitalismo se desenvolveu, a imprensa se
desenvolveu. A influência do Correio Brasiliense, pois, foi muito
relativa. Nada teve de extraordinário. Quando as circunstâncias
exigiram, apareceu aqui a imprensa adequada
11
.
As “circunstâncias” de que nos fala Nelson Werneck Sodré são as condições
políticas para a separação do Brasil de Portugal, e a posterior necessidade de
9
BRIGGS, A.; BURKE, P. Uma história social da mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p.203.
10
DOURADO, M. Hipólito da Costa e o Correio Brasiliense. Apud SODRÉ, N. W. História da
imprensa no Brasil. 4a. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 23.
11
SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. 4a. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 28.
23
estruturação do Estado. A intenção de mobilizar e unir as classes em torno dos ideais da
independência é que levou os representantes da classe dominante colonial a fazerem
concessões à liberdade de imprensa — liberdade que não hesitariam em restringir ao
sentirem que o aprofundamento do processo de independência poderia por em risco seu
domínio tradicional. O aprofundamento da crise política propiciava o crescimento da
imprensa e o aparecimento de novos jornais.
A imprensa definia-se, quanto à orientação, nos três campos, o dos
conservadores de direita, embalados no sonho da restauração, o dos
liberais de direita, que faziam papel de centro, e o dos liberais de
esquerda
12
.
A fundação dos cursos jurídicos, as atividades públicas de governo, o surto da
imprensa faz acelerar o desenvolvimento das letras já na segunda metade do Século
XIX. Ao contrário do que acontecia na Europa, onde os jornais cooptavam os homens
de letras, no Brasil os jornais apresentavam as obras dos escritores europeus em
capítulos. Sodré nos conta que o folhetim era o melhor atrativo do jornal e se
transformava em hábito de leitura familiar.
Machado de Assis, em crônica de 1859, considerava o folhetim um instrumento
de alienação, da forma como se difundia na sociedade brasileira da época:
O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu
gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou
pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do
espírito moderno: falo do jornal (...) Força é dizê-lo: a cor nacional,
em raríssimas exceções tem tomado o folhetinista entre nós. Escrever
folhetim e ficar brasileiro é na verdade difícil
13
.
No entanto, Machado acaba se rendendo ao novo gênero e publica, em 1874, em
O Globo, A mão e a luva; em 1878, Iaiá Garcia, em O Cruzeiro.
12
SODRÉ, N. W. Op. cit., p. 123.
13
Ibid., p. 243.
24
O Jornal do Comércio publicava Joaquim Manuel de Macedo, com A moreninha
e O moço loiro; Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida,
fora publicada em capítulos no Correio Mercantil; Raul Pompéia lançou O Ateneu na
Gazeta de Notícias, em 1888. Era uma fase em que se confundiam “imprensa e
literatura”, para usar as palavras de Sodré.
Por certo ainda não se divisava a força política que a nova mídia começava a
adquirir e que não tardaria a se tornar patente. Uma força com influência direta sobre o
cotidiano da sociedade, causando um grande impacto sobre o bloco monolítico de poder
do qual o conhecimento entesourado nos livros era o instrumento principal. A literatura
e o jornalismo — os dois mais importantes produtos que tiveram a prensa como
tecnologia de produção — passam a se diferenciar ao longo do processo. À literatura
erudita ficou reservado o lugar de transmissão e preservação da cultura, assumindo o
registro pomposo de “editorial”. O mercado editorial, hoje, refere-se quase que
exclusivamente à produção de livros. Ao jornalismo ficou a tradição do nome —
imprensa — que acabou por defini-lo de forma exclusiva no ambiente geral
denominado mídia, que abriga todos os veículos de produção jornalística e de notícias.
O trabalho jornalístico realizado por uma emissora de TV, por rádio, revista, Internet,
constitui-se no trabalho de imprensa, não no trabalho da mídia impressa ou da mídia
radiofônica. A mídia radiofônica e a mídia impressa produzem entretenimento e
propaganda, por exemplo. A imprensa, ao contrário, produz apenas informação
noticiosa a partir de critérios e normas estabelecidos pelos códigos do jornalismo. As
características técnicas de cada veículo alteram as condições de produção da notícia,
obrigando a adequações que diferenciam não apenas a forma, mas o grau de atenção ou
25
de influência que terá junto à audiência. No entanto, o suporte tecnológico nunca foi
definidor da essência da produção jornalística:
Em todos os países, independentemente do tipo de lei, a imprensa
havia se estabelecido por volta de 1900 como uma força social que
deveria ser avaliada em uma democracia futura, tanto quanto havia
sido em um passado autoritário. A impressão gráfica permaneceu um
meio de comunicação básico, mesmo depois do aparecimento da
mídia eletrônica, como florescimento de jornais, livros e
enciclopédias. A tecnologia não era fator dominante. As primeiras
folhas de notícias australianas eram escritas a mão
14
.
A imprensa não se define pelo aparato tecnológico que dá suporte à circulação
de seus conteúdos — não importa se a velha prensa, a TV, o rádio ou a Internet — mas
por ser ela mesma um meio; meio de difusão de conteúdos de realidade. Os suportes são
apenas os veículos.
Suas características não podem ser descritas objetivamente como os demais
meios de comunicação de massa, justamente por sua abrangência no que se refere aos
suportes midiáticos. No entanto, se considerarmos o fato de que a imprensa detém a
hegemonia dos discursos de verdade — porque o discurso da Ciência está para ser
contestado, refutado, superado, atualizado, e o da imprensa não — que é o lugar onde se
articulam os sentidos que vão dar corpo à realidade socialmente compartilhada,
independentemente do veículo onde esteja inserida, podemos percebê-la com um
contorno nitidamente definido em relação ao que se convencionou chamar de mídia.
1.1.1.1 - Imprensa, atos performativos e rituais de magia social
A famosa história da transmissão radiofônica do romance de ficção científica do
inglês H. G. Wells, A guerra dos mundos, nos permite algumas observações que vêm ao
encontro dos nossos argumentos.
14
SODRÉ, N. W. Op. cit., p. 201.
26
Quando em 30 de outubro de 1938, o Dia das Bruxas nos Estados Unidos, o
jovem ator e diretor Orson Welles colocou no ar a novela radiofônica que descrevia a
invasão da Terra por marcianos, seis milhões de pessoas eram o público estimado da
Columbia Broadcasting System — CBS. Um em cada cinco ouvintes não notou que se
tratava de ficção. Milhares de pessoas entraram em pânico, provocando acidentes e
sérios prejuízos ao tentarem fugir de suas casas e cidades.
O pânico se espalhou entre os ouvintes, especialmente aqueles que
casualmente rodavam o dial à procura de um programa interessante, e
passaram a acreditar naquelas ‘notícias’ como verdadeiras
15
.
Senhoras e senhores, interrompemos nosso programa de música de danças
para levar a vocês um boletim especial da Intercontinental Radio News” — a frase soou
como uma vinheta que chama a atenção dos sentidos do espectador para a realidade,
interrompendo a programação musical que também era parte da novela. O equivalente
moderno desta técnica com maior poder de atração hoje em dia é a vinheta da TV
Globo, que interrompe a programação com uma sonoplastia indicial, informando que o
que vai ser apresentado é de caráter jornalístico, portanto verdadeiro, cujo porta-voz é
reportagem/imprensa, representados na imagem da vinheta pelos inúmeros microfones
de mão (“sorvetões”) e câmeras. A sonoplastia da vinheta atinge até mesmo as pessoas
que não estão sintonizadas na TV, e todos reconhecem que vão receber uma notícia
importante e de interesse de todos, demonstrando a institucionalização de um
procedimento ritual.
Bourdieu nos fala, ao analisar as condições sociais da eficácia do discurso ritual,
que o poder das palavras é apenas o poder delegado do porta-voz, cujas palavras
15
SERVA, L. Os marcianos estão chegando, Folha de S. Paulo, 29 out. 1985. In: MEDITSCHI, E. (org.)
Rádio e pânico – a guerra dos mundos 60 anos depois, [s.l.]: Insular, 1998. p.135.
27
constituem no máximo um testemunho da garantia de delegação de que ele está
investido.
A força ilocucionária
16
da vinheta que indica edição extraordinária não está
localizada no som da vinheta, ou nas palavras do texto que chamam a atenção para algo
extraordinário, tampouco na imagem que irrompe em meio à programação para quebrar
a inércia do espectador. Exatamente como acontece às palavras proferidas em atos
rituais, todo o aparato performativo da vinheta não exerce o poder de atração da atenção
e expectativa apenas por si, mas porque representa uma instituição da qual, naquele
momento, é apenas o porta-voz autorizado. Assim como o poder das palavras nos rituais
é representação, o poder das mensagens, textos e discursos jornalísticos, é também
representação:
O poder das palavras é apenas o poder delegado do porta-voz cujas
palavras (quer dizer, de maneira indissociável, a matéria de seu
discurso e sua maneira de falar) constituem no máximo um
testemunho, um testemunho entre outros da garantia de delegação de
que ele está investido (grifos do autor)
17
.
O jornal – impresso, televisivo, radiofônico, digital – é o porta-voz da imprensa,
assim como o jornalista que o produz e interpreta. No caso da “reportagem” da novela
de Orson Welles, o jornalismo, os locutores, os redatores, os repórteres eram
“impostores”, porque, na verdade, eram artistas forjando a atuação da imprensa. Não
16
Força ilocucionária é um dos conceitos principais da Teoria dos Atos de Fala, a maior contribuição da
pragmática ilocucional desenvolvida por J. L Austin e J. Searle. A Teoria dos Atos de Fala considera
que a linguagem deve ser tratada como uma forma de ação e não meramente como representação, sendo
que as condições do enunciado é que definem seu significado. Em um exemplo, Austin indica que ao
dizer “declaro encerrada a sessão” não se está apenas comunicando o encerramento, mas efetivamente
encerrando a sessão. Bourdieu critica a hipótese de que a força ilocucionária esteja no enunciado em si
ou nas palavras por serem performativas, defendendo que são apenas representantes de um objeto de
crença certificado e garantido, a que ele chama de porta-voz autorizado. Sobre a Teoria dos Atos de
Fala, ver: AUSTIN, J. L. How to do things with the words. Oxford: Claredon Press, 1962. Sobre o
conceito de porta-voz autorizado, ver: BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo:
Edusp, 1996.
17
BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas – o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1998.
p. 87.
28
eram porta-vozes autorizados. Fizeram bem a sua arte de representar e produziram o
efeito que apenas a intervenção da imprensa poderia provocar — no caso, o pânico —,
demonstrando que a eficácia dos enunciados performativos dependem de um conjunto
de condições e de capital simbólico que lhes são atribuídos pela sociedade, dos quais se
valeu a ficção. Parafraseando Bourdieu, “o porta-voz é impostor provido de cetro”, ou
seja, de poder delegado.
Em oposição ao impostor, que não é o que se pensa que ele é, e que,
em outras palavras, usurpando o nome, o título, os direitos ou as
honras de um outro, e também em oposição ao mero ‘pau-mandado’,
substituto ou auxiliar que desempenha o papel do diretor ou do
professor [ou do jornalista] sem possuir os títulos para tanto, o
mandatário legítimo, por exemplo, o porta-voz autorizado é um objeto
de crença garantido e certificado; ele tem a realidade de sua aparência,
sendo realmente o que cada um acredita que ele é porque sua realidade
– enquanto sacerdote, professor ou ministro [ou jornalista] está
fundada na crença coletiva, garantida pela instituição e materializada
pelo título ou pelos símbolos, como galões, uniformes e outros
atributos, e não em sua crença ou menos ainda em sua pretensão
singular.” [inclusões nossas]
18
O conceito de poder delegado se aplica perfeitamente ao contexto do trabalho da
imprensa, com suas diversas vozes e aparatos tecnológicos que lhe portam o discurso,
desde a primeira etapa do processo de produção, até o momento que o conteúdo é
levado ao receptor. O que nos chama a atenção em uma vinheta de edição
extraordinária? A música, a imagem, a mídia que atinge milhões de pessoas?
Certamente não. O que nos chama a atenção é o status de verdade que essa vinheta
carrega. Da mesma forma, não foi o fato de se estar transmitindo a história pelo rádio
que fez com que a população acreditasse na invasão da Terra pelos marcianos, como se
a confiabilidade gerada pela transmissão fosse atributo apenas do aparato tecnológico,
conforme defendem alguns autores; como também não foram as técnicas jornalísticas
empregadas na construção do texto que o tornaram um discurso eficaz. O que fez com
18
BOURDIEU, P. Op. cit., p. 105.
29
que milhares de pessoas entrassem em pânico foi a confiança estabelecida por um
contrato implícito em sua relação com a imprensa — seja ela radiofônica, televisiva,
impressa ou digital — que lhes garante que tudo o que for dito terá sempre como base a
realidade e, em troca, tudo o que for dito será considerado sempre verdade, à
semelhança do ritual de magia social que implica uma economia de procedimentos por
parte do indivíduo.
A formação do hábito acarreta o importante ganho psicológico de
fazer estreitarem-se as opções. (...) E oferecendo um fundamento
estável no qual a atividade humana pode prosseguir com um mínimo
de tomada de decisões durante a maior parte do tempo, liberta
energias para decisões que podem ser necessárias em certas ocasiões
19
.
Confiar em um porta-voz autorizado também poupa o indivíduo de todas as
reflexões e investigações necessárias a definir se o conteúdo informativo que está
recebendo será verídico porque faz sentido que assim seja, com base em referências e
dados plausíveis. Saber que a fonte da informação goza da prerrogativa de
confiabilidade reduz o percurso entre o reconhecimento do fato e a tomada de decisão.
O caso Welles se transformou em um marco na história das teorias da
comunicação e do jornalismo. A partir de então, o aviso de “simulação” passou a
acompanhar todo e qualquer conteúdo televisivo ou radiofônico que porventura
apresentasse grande semelhança com a “realidade”, ou seja, com o trabalho da
imprensa. Cumpre notar, no entanto, que a imprensa radiofônica e televisiva é que
passou a tomar o cuidado de indicar quando determinado conteúdo é de caráter ficcional
ou simulação de algo possível em realidade – como, por exemplo, as simulações de
desastres nas usinas nucleares de Angra dos Reis para treinamento de segurança. A
ficção tem marcas próprias que lhe caracterizam como tal, sendo desnecessário o
19
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. A construção social da realidade. 17a. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
p. 78.
30
cuidado. Todo o esforço empreendido foi no sentido de preservar e reforçar a
credibilidade da imprensa — que poderia ser maculada pelos simulacros – para
salvaguardar a população de eventuais desastres provocados por informações duvidosas.
É importante observar que o jornalismo impresso não se prestaria a esse
ilusionismo, uma das razões pelas quais consideramos o jornal impresso um capítulo à
parte no conjunto dos veículos de comunicação jornalística.
1.1.2 - Imprensa e mídia impressa nas pesquisas — por uma revisão crítica
Se tomarmos a descrição teórica que Fausto Neto faz da mídia para demonstrar o
processo de semantização da AIDS operado pelos veículos de comunicação, vamos
perceber que há apenas uma indicação discreta da especificidade da “mídia jornalística”,
demonstrando com isso não apenas o tratamento indiferenciado que os teóricos da
comunicação dispensam à questão, mas a dificuldade que aparentemente o tema
carrega. Fausto Neto observa que existem outras “ordens” e outros discursos (aspas do
autor) que perpassam o discurso das mídias:
Vale ressaltar o fato de que nas duas dimensões – sociológica e
discursiva – as mídias se apresentam como instâncias distintas, ainda
que tenham também caráter complementar: por um lado se destacam
pela sua instância de mediação de outras “ordens” e de outros
discursos. Por exemplo, são mediações dos próprios ideais
organizacionais das empresas que lhes constituem. Mas, por outro
lado, são efetivamente instâncias mediatizadoras de discursos
midiáticos, na medida em que o peculiar de sua oferta está constituída
por mensagens, mensagens essas que circulam como produtos em um
mercado de discursos
20
.
Cabe perguntar que tipo de “mediações dos próprios ideais organizacionais das
empresas” que constituem a mídia poderiam significar uma interferência substancial no
processo de mediação das demandas da sociedade se, em se tratando de mídias,
20
NETO, Antônio Fausto. Comunicação e mídia impressa – estudo sobre a AIDS. São Paulo: Hackers,
1999. p. 19.
31
poderemos estar incluindo o território livre da Internet, o filme, a novela. Estes últimos
trabalham exatamente uma re-interpretação do real em seus processos de produção. Mas
a mídia jornalística, diferentemente, detém a primazia no mercado de discursos e de
produção simbólica, porque seu lugar de fala é específico e suas regras e leis internas
não apenas a constituem como instância mediadora do real, mas definem a verdade
como o seu compromisso fundamental, sua matéria-prima. O código deontológico do
jornalista, que o obriga a esse compromisso com a verdade, torna-se ele mesmo uma
espécie de objetivação do “contrato de leitura” simbólico a que o autor se refere. E é
certamente à mídia jornalística que Fausto Neto se refere quando sugere que a “mídia”
não opera apenas uma mediação passiva, já que dispõem de uma autonomia para
construir “a própria realidade”, segundo economias e leis próprias. O corpus da
pesquisa que ele vai empreender é exatamente o material noticioso publicado em jornais
de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Salvador, referidos como “fenômenos
midiáticos impressos”. Embora as referências teóricas pareçam englobar a mídia
indistintamente, onde os jornais são colocados sob a rubrica “dispositivos midiáticos
impressos” (como poderiam também ser classificadas as revistas femininas, masculinas
e de fait divers), algumas ressalvas focalizam especificidades do jornalismo, apenas
afirmando que, por sua função indicial, organizam, disponibilizam, tematizam,
hierarquizam os dados do real, dando-lhes contornos de credibilidade e verdade.
Trata-se de uma ampla “conversação pública” desenvolvida por
diferentes campos de poderes e de saberes, que tem basicamente no
discurso jornalístico, por meio de suas estratégias e mecanismos
textuais, o espaço que “coordena” o funcionamento e os respectivos
processos de semantização dessas conversações. (...) É verdade que os
chamados discursos jornalísticos são espécies de “discurso-objeto”, se
considerarmos que necessitam sempre do relato alheio para construir a
atualidade
21
.
21
NETO, A. F. Op. cit., p. 23.
32
A afirmação de que o discurso jornalístico depende sempre do relato alheio para
construir a atualidade é apenas descritiva e reducionista, à medida que parece não levar
em conta o fato de a própria mídia jornalística provocar o “relato alheio” para construir
o discurso que vai fazer circular, a partir de agendamentos de temas e personagens, ou
apenas iluminando determinados aspectos da realidade e dos fatos — “um efetivo
protagonista desse processo de produção de sentidos”, conforme o próprio autor acaba
por reconhecer.
O discurso jornalístico, conforme diz Adriano Duarte Rodrigues, emerge como
notável a partir do momento em que se torna dispositivo de visibilidade universal:
O que torna o discurso jornalístico fonte de acontecimentos notáveis é
o fato de ele próprio ser dispositivo de notoriedade, verdadeiro deus ex
machina, mundo da experiência autônomo das restantes dimensões da
experiência humana
22
.
Seguindo essa linha de raciocínio, diríamos que o discurso da sociedade atrela-se
quase sempre ao discurso jornalístico, que se oferece também como ator social à medida
que ilumina o fato e o lança na arena das atenções públicas, para construir a realidade
que a própria mídia jornalística vai se encarregar de atualizar.
O trabalho de atualização reflete apenas a etapa de circulação dos discursos,
quando o processo de construção dos sentidos que vai fazer circular já terá sido
iniciado. Se considerarmos, à luz da teoria da recepção, que o sentido se realiza no
receptor, poderemos considerar que a mídia jornalística não apenas atualiza, mas
organiza e conduz a maneira como esse sentido deverá se realizar – isso não exclui, de
forma alguma, a divergência eventual de pontos de vista sobre um mesmo tema; muito
pelo contrário, estimula a polêmica, um dos atributos de valor do produto notícia, mas
22
RODRIGUES, A. Estratégias da comunicação. 2a. ed. Lisboa: Presença, 1997. p. 101.
33
delimita o leque de abordagens que entrarão na disputa pela hegemonia da opinião. A
opinião, então, será resultado de uma estratégia de negociação administrada da
produção e circulação dos discursos jornalísticos. Dessa forma, podemos inferir que a
imprensa também constrói a opinião que vai publicizar, reforçando seu papel de ator
social com lugar privilegiado em relação aos demais, ou constituindo-se como estrutura
que delimita o debate.
1.2 – Ideologia e discurso –
jornalismo e prática social; imprensa como estrutura
Fairclough chama atenção para o fato de os textos, como elementos sociais,
terem efeitos causais que podem provocar mudanças em nosso conhecimento, atitudes,
crenças e valores; em nosso comportamento; no mundo material; nas decisões políticas
etc. Podemos aplicar essa observação a um sem número de situações concretas que
vivenciamos a todo momento nas mais diferentes esferas da vida — a começar, por
exemplo, pelo texto das leis. A objetivação de todo o embate político que resultou na
abolição da escravatura se dá no texto da Lei Áurea, que por seu turno passa a regular e
a promover uma série de mudanças na economia, na política e na vida da sociedade
daquela época e de outros períodos da história.
34
Fonte: A Tarde, 14/05/1888, p.1.
Quadro 3: Representação da força da lei.
Não sendo nossa intenção entabular reflexões de caráter epistemológico,
deixaremos de lado a perspectiva que retoma os conceitos de ato de fala de Austin e
Searle, e de porta-voz autorizado de Bourdieu, já referidos anteriormente, e que sem
dúvida abririam ampla linha de discussão se aplicados ao exemplo. No entanto,
percebemos importantes pontos de convergência com essas teorias, quando Fairclough
admite que os textos também são resultado de causas que os definem e destaca dois
desses “poderes causais”: as estruturas e práticas sociais, e os agentes sociais, pessoas
envolvidas nos acontecimentos sociais, e explica:
35
Estruturas sociais são entidades muito abstratas. Pode-se pensar de
estrutura social (tais como uma estrutura econômica, uma classe
social, ou um sistema de parentesco, ou uma linguagem) como
definindo um potencial, um conjunto de possibilidades. No entanto, a
relação entre o que é estruturalmente possível e o que realmente
ocorre, entre estrutura e acontecimento, é muito complexa.
Acontecimentos não são, de alguma forma simples ou direta, os
efeitos de estruturas sociais abstratas. Sua relação é mediada – há
entidades organizacionais intermediárias entre estruturas e
acontecimentos. Vamos chamá-las de ‘práticas sociais
23
.
Estruturas sociais delimitam um conjunto de possibilidades, um potencial;
acontecimentos sociais constituem o que é real, e a relação entre o potencial e o real é
mediada pelas práticas sociais — esta é a definição sucinta da teoria tridimensional de
Fairclough. Práticas sociais, para ele, são vistas como articulações de diferentes tipos de
elementos que estão associados a áreas particulares da vida social. O aspecto que
Fairclough ressalta sobre as práticas sociais e que nos é particularmente importante é
que as práticas sociais articulam discurso, juntamente com outros elementos sociais não
discursivos.
Em uma aproximação com essa abordagem, entendemos o jornalismo como
prática social e a instituição imprensa como a estrutura de onde emanam as ordens de
discurso que se vão articular e constituir em textos jornalísticos, atravessados pelas
diversas vozes – o discurso da imprensa. Ordem do discurso é, segundo o conceito
foucaultiano, a totalidade de práticas discursivas dentro de uma instituição ou sociedade
e o relacionamento entre elas. A articulação de ordens de discurso é decisiva para a
constituição de qualquer formação discursiva. A noção de formação discursiva tem
origem em Foucault, referindo-se a um mesmo sistema de regras historicamente
determinadas. Mas foi com Pêcheux que o conceito entrou para a análise do discurso,
23
FAIRCLOUGH, N. Analyzing discourse – textual analysis for social research. Londres: Routledge,
2003. p. 23.
36
significando que toda formação social implica na existência de posições políticas e
ideológicas que mantêm entre si relações de antagonismo, de aliança ou de dominação:
Formação discursiva designa na AD todo o sistema de regras que
fundam a unidade de um conjunto de enunciados sócio-historicamente
circunscritos, determinando o que pode e deve ser dito a partir de uma
dada posição ideológica numa determinada conjuntura
24
.
O conceito de formação discursiva tem sido substituído em análise de discursos
pela noção de arquivos, mais adequada à abordagem que pretendemos em relação ao
discurso da imprensa. De acordo com Maingueneau, arquivos são “corpos de
enunciados que dependem de um mesmo posicionamento sócio-histórico e que são
inseparáveis de uma memória e de instituições que lhes confiram sua autoridade,
legitimando-se por seu intermédio”
25
. Para Foucault, também estaria aí presente a idéia
de controle:
Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo
tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade
26
.
Para a Análise de Discursos, os contextos sócio-históricos persistem nos
discursos, trazendo à atualidade os efeitos de sentido, reconhecimento cognitivo que
propicia a empatia do leitor com o texto, instando-o muitas vezes a retomar elementos
que se originam na formação de nossa sociedade. A essa resistência de uma memória
discreta que atualiza o passado nos textos atuais, os teóricos da análise de discursos
chamam interdiscurso. Segundo definição de Maingueneau em Termos-chave da
análise do discurso
27
, o conceito refere-se ao conjunto das unidades discursivas com o
24
PINTO, M. J. Comunicação e Discurso – introdução à análise de discursos. o Paulo: Hacker, 1999.
p. 56.
25
Ibid., p. 56.
26
FOUCAULT, M. A ordem do discurso, p. 9.
27
MAINGUENEAU, D. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 86.
37
qual o discurso entra em relação, podendo-se tratar dos “discursos citados, dos discursos
anteriores do mesmo gênero, dos discursos contemporâneos de outros gêneros etc.”
Orlandi enfatiza que o interdiscurso — “um conjunto de formulações feitas e já
esquecidas que determinam o que dizemos” — disponibiliza dizeres que afetam todo o
modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada, inserindo o conceito
em uma abordagem mais ampla advinda da psicologia social e re-elaborada por Pêcheux
no campo da análise do discurso, que é a das condições de produção. Condições de
produção, em Pêcheux, assume a designação de pré-construído, ou seja, representações
imaginárias que se constituem através do que já foi dito, em um jogo de apagamento e
memória construído pelas “filiações de sentidos constituídos em outros dizeres”,
marcado pela ideologia e pelas posições de poder:
Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito e
temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as
considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem o
contexto sócio-histórico, ideológico. (...) A memória, por sua vez, tem
suas características, quando pensada em relação ao discurso. Este é
definido como aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva:
o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retoma sob a
forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível,
sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza
dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação
discursiva dada
28
.
Todas as formulações discursivas se conformam a partir da perspectiva da
memória, do interdiscurso, e da formulação da atualidade. “Para que minhas palavras
tenham sentido, é preciso que elas já façam sentido”, resume a autora, oferecendo a
chave da tradução de discursos comuns que permanecem nos discursos atuais, muitas
vezes sem que se perceba a carga ideológica e de historicidade que carregam.
28
ORLANDI, E. Análise de discursos – princípios e procedimentos, p. 31.
38
O imaginário, que faz parte do funcionamento da linguagem, constrói-se a partir
do modo como as relações sociais inscrevem-se na história e são regidas pelas relações
de poder. O sentido de um texto — texto aí entendido como qualquer formação
discursiva — é determinado pelas posições ideológicas presentes no processo sócio-
histórico em que foi construído, ou seja, a formação ideológica determina o dizer. A
formação discursiva, noção fundamental na Análise de Discursos, vai permitir a
compreensão do processo de produção de sentidos e sua relação com a ideologia. Como
diz Milton José Pinto:
É na superfície dos textos que podem ser encontradas as pistas ou
marcas deixadas pelos processos sociais de produção de sentidos que
o analista vai interpretar. O analista de discursos é uma espécie de
detetive sociocultural
29
.
Pela análise de discursos, podemos perceber a forma como linguagem e
ideologia se articulam e produzem sentido, iluminando a opacidade do texto. Como
ilustração, em uma análise superficial, podemos relembrar o caso do “pé na cozinha” de
Fernando Henrique Cardoso, na campanha presidencial de 1994. Segundo reportagem
no jornal Folha de S. Paulo de 1º. de junho de 1994, o então candidato disse em
discurso de campanha no interior de São Paulo, que “era mulatinho” e que “tinha um pé
na cozinha” . A frase teve repercussão em diversos veículos e foi contestada por FHC,
que afirmou que por falha da reportagem teriam sido publicadas expressões que não
haviam sido ditas por ele. O jornal rebateu a crítica, mostrando que havia gravado suas
declarações.
Representantes do movimento negro também se manifestaram, afirmando que as
expressões eram “pejorativas” e “preconceituosas”. Cinco anos depois, a revista Época
29
PINTO, M. J. Comunicação e discurso – introdução à análise de discursos, p. 22.
39
publica o resultado de uma pesquisa sobre a árvore genealógica de Fernando Henrique,
agora já como Presidente da República em segundo mandato:
O pé na cozinha é da trisavó
Não foi por demagogia que o presidente Fernando Henrique Cardoso colocou seu pé na
cozinha durante a campanha presidencial. A banda da família que governou Goiás e recebeu
comendas no Império já era conhecida. Sua ascendência negra é que só agora é revelada pela
pesquisadora paulista Marta Amato. Motivada a fazer a pesquisa por encomenda da
comunidade mórmon, que pretendia presentear o presidente com sua árvore genealógica,
Marta Amato trabalha há seis anos na busca das raízes familiares de Fernando Henrique e
Ruth Cardoso. Depois de vasculhar cartórios, arquivos paroquiais, inventários e testamentos, a
pesquisadora, de 52 anos, não tem dúvida: "A bisavó do presidente era mulata, e sua trisavó,
negra". Já a primeira-dama, garante, tem cepa bandeirante. No século 17 emplacou dois
ascendentes ilustres: Bartolomeu Bueno, o Anhangüera, e Fernão Dias Pais, que chefiou a
bandeira das esmeraldas.
Fonte: Época, ed. 53, 24 maio 1999.
Observemos que o texto jornalístico defende o fato de não ser “demagogia” a
declaração do então candidato à Presidência. Pelo levantamento feito pela pesquisadora,
ele realmente tinha pelo menos duas antepassadas negras, a avó e a trisavô, esta
certamente escrava e, com muita sorte, trabalhando na cozinha da casa grande. O que
nenhum dos emissores — Fernando Henrique e o jornalista que escreveu o texto — se
deram conta foi de que atualizaram no discurso a imagem de uma mulher
historicamente inferior por ser negra e, como tal, escrava, trabalhando na cozinha. A
tradução do sentido da frase é: “pé na cozinha” = ser negro do sexo feminino, que
corresponde ainda à condição escrava (ou subalterna), cuja função mais comum é a de
cozinheira. E o que confirma a posição de inferioridade a que o discurso relega a
protagonista indireta da história é que o candidato à Presidência tem apenas “um pé” na
cozinha, como se a cada geração fosse se apagando nele a memória da descendência de
negros e escravos; como se o tempo fosse “corrigindo”, no corpo, a memória da cor.
40
No caso de FHC, percebemos a atualização, no discurso, de uma história
densamente carregada de sentido ideológico, identificada, neste caso, com a
discriminação racial. E é pela repetição dos sentidos históricos que atualizamos e
fazemos permanecer ideologias, mesmo contra a vontade consciente.
Esse “esquecimento”, chamado esquecimento ideológico, é da ordem do
inconsciente e produz a impressão de que o que dizemos se origina em nós — é o modo
pelo qual somos afetados pela ideologia, retomando sentidos preexistentes.
Na realidade, embora se realizem em nós, os sentidos apenas se
representam como originando-se em nós: eles são determinados pela
maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isso que
significam e não pela nossa vontade
30
.
Podemos dizer, então, que a história fala nos discursos e que transportamos a
ideologia que a constitui, mesmo que de forma naturalizada, a ponto de não mais
percebermos que a estamos reproduzindo. Pelos princípios da análise dos discursos,
Fernando Henrique é o emissor desse texto, aquele que o pronunciou; o jornalista,
responsável pelo texto aqui realçado, é o autor empírico desse texto. Mas os dois, em
primeira e em segunda instâncias, o produziram fisicamente, sendo portadores de toda a
sua carga de significação. À medida que os dois se atêm mera e simplesmente à
afirmação e à necessidade de comprovação do que reconhecem como “pé na cozinha”,
poderíamos deduzir que ambos partem de um consenso sobre o significado implícito na
expressão “pé na cozinha”.
Se observarmos o texto da reportagem que fala sobre a indignação dos
representantes do movimento negro sobre a desastrosa declaração, também vamos
encontrar marcas que demonstram o funcionamento do jogo sócio-histórico no discurso,
produzindo a evidência do sentido que é, também, um efeito ideológico.
30
PINTO, M. J. Comunicação e discurso – introdução à análise de discursos, p. 35.
41
Negros protestam contra tucano
Da Reportagem Local
O movimento negro vai protestar formalmente contra a declaração de Fernando Henrique de
que é "mulatinho" e tem o "pé na cozinha". Os termos são considerados "pejorativos" e
“preconceituosos". O advogado Antônio Carlos Arruda da Silva, do SOS Racismo e filiado ao
PSDB, vai propor hoje na reunião do órgão a aprovação de uma moção de censura à
declaração do candidato. Adomair Ogunbiye, coordenador do Movimento Negro Unificado,
disse que sua entidade deve divulgar nota ou realizar manifestação contra FHC. O Geledes -
Instituto da Mulher Negra também condenou as expressões. FHC citou esses termos
anteontem, ao dizer que tem origem negra.
"Os negros merecem mais respeito", disse Solimar Carneiro, do Geledes.
"Só se ele é filho de mula. Mulatinho é cruzamento com mula, não com negro".
Flávio Rodrigues, do Soweto - Organização Negra, disse que as declarações "soaram mal e
pejorativamente, principalmente vindas de uma pessoa que tem tese acadêmica sobre o
negro". Geledes, Soweto e Movimento Negro Unificado são entidades suprapartidárias que têm
militantes de vários partidos, inclusive do PSDB.
Fonte: Folha de São Paulo. 1º jun. 1994.
No discurso relatado do jornalismo, não podemos identificar exatamente o que
disseram os entrevistados. Até chegarmos ao texto como este é apresentado ao leitor,
temos a mediação do repórter, que colheu os depoimentos, a do redator, que retrabalhou
o texto da reportagem, e a do editor, que por diversos motivos editoriais ou de decisão
própria reduziu o texto ao que considerou suficiente para cumprir as exigências técnicas
do jornalismo. Retornaremos mais adiante a esses aspectos que se referem à produção
jornalística, inclusive propondo uma nova linha de observação para o conceito de
mediação, quando aplicado ao trabalho da imprensa. Por ora, queremos apenas ressaltar
que mesmo o discurso dos militantes do movimento negro (discurso relatado, é bom
repetir) reflete a permanência da exclusão racial que é comum aos discursos que
circulam na sociedade. Há, nas frases elaboradas para responder ao discurso de FHC,
como que um desligamento do passado histórico que suscitou as referências; a imagem
da mulher, da mulher negra, da mulher negra e escrava, da mulher negra, escrava que
trabalha na cozinha é completamente apagada; o que se reclama é da ordem do
preconceito e do pejorativo. Aprofundando um pouco mais, percebemos que a mulher
negra e escrava que trabalha na cozinha está lá e é real — real no passado histórico e no
presente referido na fala do candidato como formação discursiva que a atualiza e
42
resgata. A forma como ela é reconhecida no discurso do movimento negro é da ordem
da incompletude constituinte.
A noção de discurso constituinte, introduzida por Maingueneau e Cossutta
31
,
qualifica a categoria de discursos que têm um status especial dentro da sociedade e
perante outros discursos. Esses discursos dão sentido aos atos da coletividade e são a
garantia de múltiplos outros discursos. Podemos considerar que a fala de FHC
mobilizou um discurso constituinte, produto de uma comunidade discursiva específica
(a dos senhores de escravos no passado, ou dos brancos após a abolição, ou a dos não
negros agora), cujos enunciados estão inscritos numa memória. Ao dizermos que o
discurso dos representantes do movimento negro é da ordem da incompletude
constituinte, queremos indicar que a ausência de marcas discursivas que evidenciam a
mulher negra, escrava, trabalhando na cozinha e todo o seu contexto nos remete ao
primeiro movimento de exclusão dos negros na história quando, saídos da escravidão,
não encontraram na sociedade um lugar que lhes classificasse, perdendo até o que lhes
havia sido o maior valor, que era o trabalho. Empenhada no projeto de
embranquecimento do país, a elite do século XIX enaltecia o imigrante europeu e
apontava os negros como inferiores até mesmo para o trabalho.
Além de alienar o negro de sua própria história, apregoando o seu
caráter passivo e desinteressado, o movimento abolicionista visava a
infundir uma imagem invertida do mundo aos negros, para que eles
tomassem como parâmetro a conduta dos homens brancos, não se
opondo à forma de “integração” que lhes era oferecida. Dessa forma, o
movimento abolicionista funcionou como um grande estandarte dos
interesses dos cidadãos brancos que pretendiam, de maneira racional e
planejada, adequar o negro a um lugar que não gerasse incômodos à
ordem emergente
32
.
31
MAINGUENEAU, D.; COSSUTTA, F. L’analyse des discours constituiants. Langages 117, p. 113,
1995.
32
SANTOS, G. A. A invenção do ser negro – um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade
dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002. p. 120.
43
Chamamos a atenção para o fato de que estamos partindo do princípio de que o
texto da reportagem teria sido fiel aos enunciadores do discurso, o que muito
provavelmente não terá ocorrido, até mesmo por necessidades técnicas. De qualquer
forma, é importante notar que o discurso relatado é o que circulou sobre a questão.
No caso do discurso relatado, temos na cadeia de produção o resultado final que
relata a reclamação, mas omite o esclarecimento, caso tenha havido, e que poderia
explicar o que é “pejorativo” e “preconceituoso” na referência à mulher negra, escrava,
trabalhando na cozinha. Ele existe e está lá, como um registro de toda a carga da história
da escravidão. O que poderia ser considerado pejorativo seria a forma como FHC se
referiu a ela, sem o devido posicionamento e respeito principalmente a que sua condição
de sociólogo o obrigava, por estar-se reportando a uma época em que as negras eram
comumente violentadas pelos senhores brancos, o que provavelmente ocorreu com suas
antepassadas. Todo este cenário está contido no registro “pé na cozinha”, repetido ao
longo do tempo com um certo ar de pilhéria, por significar exatamente o abuso sexual a
que as mulheres negras eram submetidas quando das “visitas” dos senhores brancos à
cozinha, onde certamente foram gerados muitos de seus descendentes. O presidente
sociólogo não sabia que o que ele falou queria dizer tanto. Da mesma forma que os
representantes do movimento negro identificaram apenas os “termos” como pejorativos
e preconceituosos (ao menos pela reportagem), quando, na verdade, o preconceito e o
tratamento pejorativo estavam no comportamento de Fernando Henrique, o que ficou
demonstrado quando a memória acionou as expressões para dar conta da declaração que
ele pretendia simpática aos negros. A memória acionou a história e a ideologia e
denunciou-lhe a vinculação histórica a partir do cenário da escravidão.
44
As ideologias não são definidas somente em termos de grupos sociais,
relações de grupo e instituições, a um macronível, e em termos de
práticas sociais, a um micronível. Enfatizaremos que as ideologias são
construídas, utilizadas e trocadas entre e pelos atores sociais como
membros de um grupo, em práticas sociais específicas e,
freqüentemente, discursivas. No são constructos individuais,
idealistas, mas constructos sociais compartilhados por um grupo
33
.
Em última instância e objetivando a questão, o que poderiam esperar os negros
em termos de políticas voltadas para suas necessidades de um presidente
ideologicamente identificado com grupos herdeiros de uma mentalidade escravocrata e
racista?
Em resumo, se queremos saber que aparência têm as ideologias, como
funcionam e como se criam, interagem e reproduzem, necessitamos
observar detalhadamente suas manifestações discursivas
34
.
Em termos práticos, a compreensão desse jogo ideológico poderia orientar a
decisão política dos negros naquelas eleições.
E quanto à imprensa? Que tipo de discurso e que posicionamento ideológico
demonstrou? E que repercussão provocou? Não se observou por esses aspectos a
reportagem da revista Época, que vem corroborar o que Fernando Henrique declarou,
partindo do mesmo princípio ideológico — “Não foi por demagogia que o presidente
Fernando Henrique Cardoso colocou seu pé na cozinha durante a campanha
presidencial”. O olhar da imprensa, representada aí pela reportagem, está posicionado
na mesma perspectiva que faz com que Fernando Henrique veja suas avós negras
situadas em uma cozinha histórica, densa, onde ele assume ter o pé. E a imprensa o
redime. Todos os jornalistas que falaram no processo de produção da notícia o fizeram
a partir da Casa Grande, deixando transparecer de que ângulo percebem os rumores da
33
DIJK, T. A. Ideología – una aproximación multidisciplinaria. Barcelona: Gedisa, 1999. p. 23.
34
Ibid., p. 19.
45
senzala. Gilberto Freyre nos fornece relato realista de como funcionava o pensamento
escravocrata em relação às escravas:
Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do
regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a
depravação criando nos proprietários de homens o imoderado desejo
de possuir o maior número possível de crias. Joaquim Nabuco colheu
num manifesto escravocrata de fazendeiros as seguintes palavras, tão
ricas de significação: ‘a parte mais produtiva da propriedade escrava é
o ventre gerador’
35
.
1.2.1 – Gêneros de discursos e posicionamentos ideológicos
Para a análise de discursos, cada texto se enquadra em um gênero de discursos,
conceito fundamental para se proceder à interpretação dos enunciados. Existe uma
imensa variedade de gêneros de discursos, cujos princípios de definição atendem a
parâmetros como o status dos enunciadores e co-enunciadores; o suporte e os modos de
difusão; os modos de organização. No exemplo acima, se separarmos as duas etapas em
que se produziu o enunciado “pé na cozinha”, teremos o discurso político ou de
campanha realizado pelo candidato Fernando Henrique Cardoso, com a intenção de
conquistar os votos e a simpatia dos negros naquela eleição, através da desastrosamente
alegada afinidade racial. No segundo enunciado, o texto produzido por um jornalista se
classifica como discurso jornalístico. Não é o jornalista que está em evidência neste
caso, mas regras de produção explícitas que conformam esse discurso, cujo suporte é
um aparato midiático.
Os gêneros de discurso subdividem-se ainda em dispositivos de enunciação, que
são a explicitação dos chamados posicionamentos ideológicos, posições enunciativas,
ou ainda lugares de fala. O lugar de fala diz respeito à posição dos interlocutores na
cena discursiva; refere-se a status socioeconômico, poder institucional, legitimidade que
35
FREYRE, G. Casa grande & senzala. 43a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 373.
46
o autoriza a falar e o confronta com o outro ou outros do discurso. Não há fala que não
seja emitida de um lugar, mesmo que esta seja apenas uma posição imaginária assumida
por um dos interlocutores, aceita ou não pelo outro, que vai estabelecer seu próprio
posicionamento no discurso, a partir de suas próprias credenciais.
Seguindo com nosso exemplo, o lugar de fala de Fernando Henrique ao se referir
ao “pé na cozinha” era o do candidato, supondo uma posição específica em relação a
seus interlocutores-eleitores e que demandava estratégias de aproximação,
diferentemente do que seria o discurso de Fernando Henrique Cardoso presidente, cujo
lugar de fala estaria carregado de todo o simbolismo e poder conferido pelo cargo,
supondo uma situação de prevalência no jogo discursivo. O candidato, em situação de
desvantagem em relação a seus interlocutores hipotéticos — por necessitar de sua
aceitação e voto — assume a personagem da humildade (uma das faces de sua retórica)
e despe-se até mesmo da condição acadêmica que realçava ainda mais a condição de
presidente que viria a assumir mais tarde. Maingueneau refere-se a esse comportamento
discursivo como cenografia, uma exigência feita pelo gênero de discurso, no caso o de
campanha/publicitário, para reforçar o enunciado. Segundo o autor, os gêneros de
discursos mais propícios às construções cenográficas são os discursos publicitários,
literários e filosóficos, embora outros gêneros também possam se valer da mesma
estratégia para tentar estabelecer a hegemonia do discurso:
O discurso político é igualmente propício à diversidade das
cenografias: um determinado candidato poderá falar a seus eleitores
como um jovem executivo, como tecnocrata, como operário, como
homem de grande experiência etc., e atribuir os lugares
correspondentes a seu público
36
.
36
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação, p. 89.
47
O lugar de fala de um candidato a cargo eletivo ou de um presidente da
República é facilmente identificável, mas quando se trata do discurso jornalístico, a
quem atribuir a responsabilidade pelas representações reconhecidas no texto?
1.2.2 – Lugar de fala da imprensa – interdiscursividade e polifonia
O posicionamento ideológico ou lugar de fala são as diferentes maneiras pelas
quais se constituem os enunciados a partir das representações de contextos próprios ao
sujeito, sustentando o dizer da forma como é dito e agregando ao discurso toda a carga
de significação trazida por esse contexto. Podemos inferir, em uma espécie de
remissiva, que os lugares de fala são também constituídos de outros textos que os
legitimam e os fazem significar para além do discurso, textos estes carregados de uma
historicidade própria e que se constituíram alhures no tempo. Essa re-significação
entretecida pelos diversos textos carregados de historicidade, e a que chamamos
interdiscurso, é também elemento constituinte da matéria prima que dá forma a esse
lugar de fala. Um lugar dialógico, que se configura por essas muitas falas em
contradição e disputa, construídas ao longo de lutas históricas pela hegemonia
ideológica e pelo poder; lutas que se transportam para o discurso através do tempo,
despojadas das armas muitas vezes contundentes com que se inscreveram na história,
transformadas em sentidos fantasmáticos que digladiam pela hegemonia do discurso no
presente.
O lugar de fala também significa e fala; é também, de certa forma, polifônico,
por mais que as múltiplas vozes estejam acomodadas no tempo. Os lugares de fala se
constituem nas dobras da discursividade que os engendra — credenciais simbólicas de
que se valem os sujeitos para constituírem a si mesmos no discurso.
48
A lógica da organização do texto jornalístico também se aproxima desta noção
de polifonia, quando oferece as diversas vozes que vão construindo a história e, ao
mesmo tempo, estabelecendo o que chamamos de princípio do contraditório. O
contraditório, no jornalismo, tenta reproduzir a figura do Direito em que o método de
busca da verdade se realiza por intermédio da contraposição dialética:
O contraditório não se identifica com a igualdade estática, puramente
formal, das partes no processo; não exprime a simples exigência de
que os sujeitos possam agir em plano de paridade; nem determina ao
juiz o mero dever de levar em conta a atividade de ambos, permitindo
que façam ou até que deixem de fazer alguma coisa. O contraditório,
como contraposição dialética paritária e forma organizada de
cooperação no processo, constitui o resultado da moderna concepção
da relação jurídica processual, da qual emerge o conceito de par
condicio ou igualdade de armas
37
.
Assim, ao oferecer a versão de ambas as partes, espera-se que o juiz/receptor
possa formar sua própria opinião, a partir de uma suposta igualdade de condições
estabelecida no discurso. Essa prática visa a conferir o caráter de isenção e
imparcialidade ao relato, agregando valor de credibilidade ao processo discursivo. No
entanto, o fato de estar na decisão dos jornalistas que atuam no processo de edição a
seleção do ângulo de observação dos acontecimentos já indica a impossibilidade de
absoluta objetividade. O procedimento é, por excelência, gerador de subjetividade e
estabelece uma espécie de dialogismo, conceito introduzido na teoria de discursos pelo
teórico russo Mikhail Bakhtin, em seus trabalhos sobre literatura para analisar as
diversas vozes em conflito e contradição no romance de Dostoievski. Para Bakhtin.
Dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido no discurso,
sendo entendido também como intertextualidade — vozes de outros ressoando sob as
palavras de alguém.
37
GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas Tendências do direito processual. 2a. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1990. p. 7.
49
Toda enunciação, mesmo sob sua forma escrita cristalizada, é uma
resposta a alguma coisa e é construída como tal. Ela é apenas um elo
na cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a
precederam, estabelece uma polêmica com elas, aguarda reações
ativas de compreensão, antecipa-se sobre estas etc.
38
.
Pensando sobre essa cadeia dos atos de fala, percebemos o texto jornalístico
como um dialogismo de terceira ordem, se entendermos que os jornalistas participantes
do processo estarão submetidos, em uma primeira etapa, à ordem original da
intertextualidade e da interdiscursividade ao elaborar o processo de leitura/compreensão
dos acontecimentos; de segunda ordem, podemos considerar o processo de discussão e
avaliação do tratamento do acontecimento como notícia, onde a subjetividade de cada
um dos participantes estará agindo na elaboração da notícia, submetidos todos à vontade
hierárquica do editor; de terceira, a forma textual com que será publicado, depois de
toda a rotina. Esse processo é geralmente discreto, até mesmo pela rotina que se
estabelece nas redações depois de longa convivência entre seus membros. Quanto às
regras do jornalismo, entendemos que funcionam de maneira semelhante às normas
gramaticais. Constrangem o autor a dizer dentro de limites, mas não o impedem de dizer
da forma como entende e avalia o acontecimento.
Ao privilegiar aparência e reordená-las num texto, incluindo algumas
e suprimindo outras, colocando estas primeiro, aquelas depois, o
jornalista deixa inevitavelmente interferir fatores subjetivos. A
interferência da subjetividade nas escolhas e nas ordenações será tanto
maior quanto mais objetivo, ou preso às aparências, o texto pretenda
ser. Assim, pode-se narrar uma procissão do ângulo da contrição dos
fiéis, ou com destaque aos problemas de trânsito que causa, ou ainda à
contradição entre suas propostas e a realidade contemporânea. No
primeiro caso, estaremos, possivelmente, redigindo um texto de fundo
religioso; no segundo, de intenções agnóstico-mecanicistas; no
terceiro, de intenções críticas e materialistas
39
.
38
BAKHTIN, M. La poétique de Dostoiesvski. Paris: Seuil, 1970. p. 106.
39
LAGE, N. Ideologia e técnica da notícia. 2a. ed. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 16.
50
1.2.3 – Ideologia e constituição do sujeito no discurso jornalístico
A questão do sujeito do discurso está diretamente imbricada com a questão da
enunciação. Foi Benveniste quem ofereceu a definição clássica para onde convergem as
teorias do discurso. Para ele, a enunciação é o ato de produzir um enunciado, não o
texto do enunciado:
Trata-se aqui de um mecanismo total e constante que, de uma maneira
ou de outra, afeta a língua inteira. A dificuldade é apreender este
grande fenômeno, tão banal que parece se confundir com a própria
língua, tão necessário que passa despercebido. A enunciação é este
colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização
40
.
Ao pensarmos o “ato de produzir o enunciado”, encontramos a fonte do
dialogismo de que nos fala Bakhtin. A produção do enunciado se dá a partir da
arregimentação dos diversos textos naturalizados na experiência daquele que produz o
discurso, e que toma os códigos da língua e outros códigos como instrumento. As
muitas vozes que encarnam o enunciado nos falam de um conjunto de subjetividades
que atravessam o enunciador, definido como aquele que fala, mas não nos deixam
identificar mais do que “níveis enunciativos”, conforme diz Bakhtin:
Se eu narrar (ou escrever) um fato que acaba de acontecer comigo, já
me encontro como narrador (ou escritor), fora do tempo-espaço onde
o evento se realizou. É tão impossível a identificação absoluta do meu
“eu” de que falo como alguém suspender a si mesmo pelos cabelos. O
mundo representado, mesmo que seja realista e verídico, nunca pode
ser cronotopicamente identificado com o mundo real representante,
onde se encontra o autor-criador dessa imagem
41
.
“Suspender a si mesmo pelos cabelos”, uma expressão que nos remete ao
legendário personagem do Século XVIII Barão de Münchhausen, tido como o maior
mentiroso do mundo, e que contava entre outras fantásticas histórias que havia
40
BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes, 1989. p. 82.
41
BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética – a teoria do romance. São Paulo: Hucitec/Edunesp,
1988. p. 360.
51
levantado a si mesmo nos ares pelos próprios cabelos. A comparação relembrada por
Bakhtin foi usada por Michel Pêcheux para dar conta da constituição do sujeito
ideológico.
Se é verdade que a ideologia “recruta”sujeitos entre os indivíduos (no
sentido em que os militares são recrutados entre os civis) e que ela os
recruta a todos, é preciso, então, compreender de que modo os
“voluntários” são designados nesse recrutamento, isto é, no que nos
diz respeito, de que modo todos os indivíduos recebem como evidente
o sentido do que ouvem e dizem, lêem ou escrevem (do que eles
querem e do que se quer lhes dizer), enquanto “sujeitos-falantes”:
compreender realmente isso é o único meio de evitar repetir, sob a
forma de uma análise teórica, o “efeito Münchhausen”, colocando o
sujeito como origem do sujeito, isto é, no caso de que estamos
tratando, colocando o sujeito do discurso como origem do sujeito do
discurso(grifos dos autor)
42
.
Pêcheux trabalha seus conceitos a partir das teses sobre ideologia de Althusser,
onde os princípios básicos são o de que “só há prática através de e sob uma ideologia”, e
de que “só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito”
43
.
Althusser inaugura uma das máximas mais freqüentemente citadas em análise de
discursos que é a de que “a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos”, que
quer dizer que só há ideologia pelo sujeito e para os sujeitos; é pela categoria de sujeito
e de seu funcionamento que se torna possível a destinação da ideologia. Althusser
aborda a não explicitação do sujeito como tal, usando como exemplo a ideologia
jurídica, que diz que o homem é naturalmente um sujeito, inaugurando a figura de
“sujeito de direito”, e vai além ao indicar que a categoria de sujeito é a categoria
constitutiva de toda a ideologia, não importando determinações de classe ou o momento
histórico em que se inscreve, porque “ideologia não tem história”. À categoria de
sujeito, Althusser acrescenta a noção de alma e Deus em Platão:
42
PÊCHEUX, M. Semântica do discurso – uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Unicamp,
1988. p. 157-8.
43
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. 7a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998. p. 93.
52
Dizemos: a categoria de sujeito é constitutiva de toda a ideologia,
mas, ao mesmo tempo, e imediatamente, - acrescentamos que a
categoria de sujeito não é constitutiva de toda a ideologia, uma vez
que toda ideologia tem por função (é o que a define) “constituir”
indivíduos concretos em sujeitos. É nesse jogo de dupla constituição
que se localiza o funcionamento de toda ideologia, não sendo a
ideologia mais do que o seu funcionamento nas formas materiais de
existência deste mesmo funcionamento (grifos do autor)
44
.
Essa formulação tautológica implica que o homem é por natureza um ser
ideológico e que tanto autor como leitor são sujeitos e como tal vivem imersos em
ideologia. O fato de eventualmente o autor estar ausente como sujeito, como no discurso
científico, onde se pretende afirmar um “sujeito da Ciência”, realça também a ideologia
da Ciência, lugar institucional que se auto-referencia como tal a cada vez que se
manifesta. Isso nos remete ao discurso jornalístico, onde a impessoalidade provoca a
ilusão da ausência do sujeito, substituindo-o pela ilusão da objetividade no discurso
manifesto. Embora não focalizando exclusivamente a questão ao arrolar “a maioria dos
jornais” entre os aparelhos ideológicos de estado de domínio privado, Althusser indica
que ali estão não apenas os meios, mas o lugar da luta de classes, e que como tal os
jornais funcionam também através da ideologia, inscrevendo-se no conjunto de práticas
materiais que asseguram a manutenção das relações de produção. Para o teórico, as
relações de produção implicam divisão de trabalho e a definição de um lugar na
produção para cada ator social:
O mecanismo pelo qual a ideologia leva o agente social a reconhecer o
seu lugar é o mecanismo da sujeição.(...) esse mecanismo ideológico
básico – a sujeição – não está presente somente nas idéias, mas existe
num conjunto de práticas, de rituais situados em um conjunto de
instituições concretas
45
.
A escola, para ele, seria o aparelho ideológico dominante para as formações
capitalistas. Althusser tem sido duramente criticado por essa posição e por considerar o
44
ALTHUSSER, L. Op. cit., p. 93-94.
45
Ibid., p. 8.
53
Estado o centro de onde emana e para onde converge a ideologia dominante, soberano
além das classes. Embora não seja nosso propósito discutir esse aspecto, queremos
chamar atenção para o fato de o próprio autor ter indicado um movimento de
transformação natural ao estabelecimento da ideologia dominante, quando se refere à
Igreja como tendo sido substituída pela escola como aparelho ideológico de estado
dominante. Ousamos conjecturar que a Igreja não terá deixado de cumprir seu papel
ideológico, embora a escola, em outro momento, tenha se posicionado na linha de frente
desse trabalho. Pensamos que cada época reflete um momento da luta entre classes,
além de também reagir ao desenvolvimento e avanço da ciência, pondo em destaque
uma ou outra das instituições definidas como aparelho ideológico de estado.
Acreditamos que a escola vem assumir o papel que cabia à Igreja quando a ideologia
dominante necessita de cidadãos letrados — a escola apenas assume a função de
fortalecimento da ideologia dominante.
Na atualidade, acreditamos que a mídia como um todo assumiu o papel da
escola, sendo o mais eficiente de seus veículos a imprensa. Althusser posterga a
discussão desse aspecto no que se refere à imprensa, apenas arrolando os veículos de
informação entre as empresas do domínio privado que pertencem à categoria dos
aparelhos ideológicos de estado. E ilustra como a categoria de sujeito é estabelecida
como “evidência”. O exemplo, tirado do senso comum, demonstra o que chama de
efeito de reconhecimento — efeito ideológico que impõe as “evidências como
evidências”, as quais não podemos deixar de reconhecer. O efeito ideológico elementar
é o que nos constitui como sujeitos. A cena do exemplo é a de uma interpelação policial,
onde um indivíduo, ao voltar-se, reconhece a interpelação e a si mesmo na cena como
sendo o “sujeito”:
54
Supondo que a cena teórica ocorre na rua, o indivíduo interpelado se
volta. Nesse simples movimento físico de 180º ele se torna sujeito. Por
quê? Porque ele reconheceu que a interpelação se dirigia “certamente
a ele”, e que “certamente era ele o interpelado” (e não outro)
46
.
Vamos tentar compreender de forma ampliada essa noção de sujeito em
Althusser valendo-nos de outro exemplo em que o teórico ancora suas reflexões nas
premissas freudianas do ritual ideológico da espera pela nascimento de um filho. As
formas de “ideologia familiar, paternal, maternal, conjugal, fraternal” que constituem a
espera pelo nascimento do bebê já preparam sua condição de sujeito a partir de
evidências elementares naturalizadas por esta mesma configuração. Acrescentamos a
isso a noção de que este é o primeiro de uma série de movimentos ideológicos que,
naturalizados ao longo da história, também vão se agregar a essa historicidade que
constitui o sujeito. Ao responderem à “interpelação”, esses sujeitos incorporados pelo
indivíduo vão ter na sociedade o seu lugar dado como um a priori.
Já observamos que o sujeito se constitui pelo “esquecimento” daquilo
que o determina. Podemos agora precisar que a interpelação do
indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do
sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é
constituído como sujeito)
47
.
No exemplo que se segue, mesmo sem grande esforço teórico, podemos observar
o conhecimento instaurado por circunstâncias históricas de exclusão e estigmatização
dos negros e o efeito de reconhecimento que hoje opera sobre os atores da cena.
46
ALTHUSSER, L. Op. cit., p. 97.
47
PÊCHEUX, M. Op. cit., p. 163.
55
Fonte: O Globo, 10 fev. 2004, p. 10.
Quadro 4: Racismo.
Não vamos ainda observar o recorte pelo aspecto da análise do discurso da
imprensa, o que reservamos para apresentar na terceira parte do trabalho. Por enquanto,
vamos nos ater apenas à observação de como a cena ilustra a noção de efeito de
reconhecimento e oferece oportunidade de refletirmos sobre a categoria de
conhecimento, um dos aspectos centrais de uma das vertentes teóricas que sustentam as
proposições desta tese — a sociologia do conhecimento.
O acervo social do conhecimento se estrutura, segundo seus teóricos, a partir da
acumulação contínua de experiências e tipificações que vão se tornando discretas à
56
medida que se afastam no tempo. O fato de se tornarem discretas não impede — muito
pelo contrário — que voltem como elementos na realidade da vida cotidiana. Esta
acumulação inclui o conhecimento de minha situação na sociedade e seus limites,
localizando-me em relação ao outro. A interação na vida cotidiana é diretamente afetada
pelo compartilhamento do acervo social de conhecimento comum.
A realidade da vida cotidiana contém esquemas tipificadores em
termos dos quais os outros são apreendidos, sendo estabelecidos os
modos como “lidamos” com eles nos encontros face a face. Assim,
apreendo o outro como “homem”, “europeu”, “comprador”, “tipo
jovial” etc.
48
Podemos considerar essas tipificações como elementos pertinentes à lógica do
efeito de reconhecimento, que atua a partir de evidências que acionam parcelas de
conhecimento disponíveis sempre que os indivíduos são interpelados em sujeitos,
explicitando, na ação, a ideologia que conformam. Aplicando-se a teoria ao exemplo,
podemos ver claramente o consenso em torno da condição de desvantagem social do ser
negro, mitigada pelas condições de exceção construídas no discurso jornalístico e que o
elevam à condição de vítima credenciada à inclusão num universo dividido
simbolicamente em potenciais vítimas e potenciais agressores. Vejamos:
1. Dentista negro é confundido com assaltante e baleado em São Paulo”. A
explicitação da profissão de nível superior e que autoriza ao seu titular o
tratamento de “doutor” confere à ação dos policiais o caráter de ilegitimidade
que provavelmente não teria se a vítima fosse apenas um negro. Lembrando
que a naturalização dos processos é que lhes confere a oportunidade do
retorno discreto à atualidade dos discursos, propomos aqui um
desmembramento da significação deste subtítulo: embora negro, era dentista,
48
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. A construção social da realidade, p. 49.
57
escapando, portanto, da classificação comum de suspeito a que todo negro se
vê enquadrado.
2. Flávio, que era negro, foi confundido com um ladrão e baleado por PMs
na segunda-feira”. Como nunca houve, em qualquer dos relatos, a presença
do verdadeiro autor do assalto, fica evidente que o homem negro não foi
“confundido” com o assaltante, situação — a de “confundir com” — que
supõe dois atores em cena; ele foi identificado como o assaltante, certamente
a partir de uma tipificação e de um efeito de reconhecimento oferecidos pelo
acervo de conhecimento consolidado na história e representados, na cena,
pelos policiais.
3. Os policiais colocaram os documentos do comerciante assaltado no bolso da
vítima. Se o jovem não fosse um dentista, provavelmente a farsa não teria
sido descoberta. Seria apenas mais um assaltante (negro) morto em
confronto com a polícia.
4. No box, ao centro da matéria principal, temos um relato que deixa claro o
consenso em torno da condição de inferioridade e “indigência” com que os
negros são normalmente rotulados. Neste caso específico, as provas são
contundentes.
5. Observemos o título: “PM é acusada de matar por racismo”. O título é a
parte do texto jornalístico que mais denuncia a presença do autor. Pelas
regras da construção desse enunciado, temos que buscar a parte mais
chamativa do assunto — o que também atende a determinadas regras, sendo,
a mais comum delas, a atualidade — e traduzi-la, em poucas palavras, de
forma a explicitar o mais proximamente possível os fatos narrados na
58
reportagem. A decisão sobre que aspectos do fato serão alçados ao principal
da chamada está nas mãos de poucos elementos da equipe de redação, quais
sejam o editor e o redator. O redator vai fazer o título que poderá ser aceito
ou não pelo editor. O título dessa reportagem baseou-se no depoimento do
pai da vítima, que está no último parágrafo da reportagem. Dar o título
referindo-se a racismo foi uma decisão da editoria.
A análise que Adriano Duarte Rodrigues faz dos títulos de jornais é
extremamente pertinente e pode ser aplicada ao exemplo que trouxemos:
Os títulos da imprensa, graças ao processo de figuração, constituem
um verdadeiro texto dentro do texto. Fazem ao mesmo tempo ver e
esconder o texto para que dirigem o olhar do leitor. São uma espécie
de véu transparente. Em virtude da sua diafaneidade, tanto mostram o
que escondem como escondem aquilo que dão a ver
49
.
Agora vejamos a avaliação que o próprio jornal fez do título, na autocrítica
diária que publica sobre a edição do dia anterior. A avaliação refere-se não somente a
erros gramaticais, mas a inadequações discursivas. Neste caso, o jornalista responsável
pela crítica viu no título da matéria uma inadequação de sentido. Vejamos a partir da
quinta linha do texto da coluna Autocrítica, à esquerda:
49
RODRIGUES, A. D. Estratégias da comunicação, p. 110.
59
Fonte: O Globo, 12 fev. 2004, p. 2.
Quadro 5: Autocrítica.
O jornalista que faz a crítica considera que o título atribui à instituição Polícia
Militar o crime que foi cometido por apenas alguns de seus membros – o crime de
racismo; não o de homicídio. Na opinião dele, um erro. O título, de responsabilidade de
um editor e de um redator, demonstra o quanto a visão individual do jornalista afeta o
texto jornalístico. Neste caso, havia um consenso entre redator e editor. Ambos
consideraram que a denúncia feita pelo pai da vítima — um cabo aposentado da mesma
instituição – era suficientemente competente para respaldar o título. Mas poderia não ter
havido consenso se o editor, por exemplo, fosse o jornalista que faz a crítica.
Poderíamos ter algo como: Policiais matam dentista por engano – rapaz de 28 anos foi
confundido com assaltante. O acontecimento estaria esvaziado de todo seu apelo
ideológico. Seria mais um entre os muitos “enganos” cometidos pela polícia, sem
evidenciar que esses enganos vitimam mais comumente os negros.
Com este exemplo, podemos perceber que, embora não explicite o sujeito da
enunciação, o discurso jornalístico tem autoria, sujeita a uma espécie de polifonia de
60
primeira, segunda e terceira ordens: a primeira, aquela que atua sobre cada um dos
indivíduos envolvidos no processo, no sentido que indica Bakhtin; a segunda, o
cruzamento de outras diversas vozes com suas próprias constituições e polifonias na
decisão do texto, em que pesa ainda a prevalência hierárquica; a última, a composição e
localização do texto final posto em circulação no conjunto de textos das diversas
editoriais. Podemos dizer que este trabalho de constituição do texto jornalístico
assemelha-se à interpelação do indivíduo pela ideologia e, portanto, o constitui como
sujeito no trabalho de construção do texto. Das diversas instâncias que selecionam o
acontecimento (gatekeepers) em meio à concorrência dos diversos temas propostos por
assessorias, agendas e acontecimentos factuais aos textos postos em circulação,
podemos perceber a repetição de uma economia discursiva que atende:
(a) a uma hibridização da ordem logotécnica do jornalismo — suas regras,
normas, aconselhamentos, interdições — e o processo parafrásico que mantém a
memória em todo dizer. Os processos parafrásicos referem-se ao retorno discreto da
memória no texto — a decisão da pauta é já o início da escritura do enunciado. Como
diz Orlandi
50
, “a paráfrase representa o retorno aos mesmos espaços do dizer”, operando
diferentes formulações dos mesmos dizeres na memória sedimentada pelo
esquecimento. Este o primeiro momento em que se forma a primeira dobra da
constituição do sujeito múltiplo do discurso jornalístico;
(b) em um segundo movimento, a economia lingüística assujeita todo dizer ao
limite do sistema gramatical — o sistema conforma o dizer da mesma forma que, em
grau menor, as regras jornalísticas conformam o relato do acontecimento. No entanto,
nem o sistema, nem a regra inviabilizam o processo de interlocução e de comunicação.
50
Op. cit., p. 36.
61
Ambos os códigos são comuns aos interlocutores nas duas circunstâncias e, como tal,
sujeitos às mesmas normas de constituição. O texto jornalístico busca justamente a
coloquialidade para engendrar essa aproximação com o interlocutor/leitor;
(c) quando o texto jornalístico se completa em meio aos diversos outros textos
jornalísticos em uma mesma edição, os sujeitos construtores dos textos desaparecem da
cena enunciativa, em um movimento de constituição de um sujeito simbólico e
institucionalizado — a imprensa. O sujeito imprensa, ao se constituir, apaga o percurso
de sua construção discursiva, adensando a opacidade que encobrirá os indivíduos
participantes do processo para os constituir em jornalistas – sujeitos simbólicos,
inseridos em um universo de valores próprio da instituição, e por isso diferenciados do
contexto geral dos trabalhadores, onde a definição e pertencimento se evidenciam e
constituem exclusivamente pela qualificação de caráter técnico.
O profissional a que aludimos não é aquele simplesmente autorizado por registro
profissional para exercer a profissão, mas aquele que efetivamente atua nas redações e
que, por isso mesmo, reveste-se de credenciais simbólicas que lhe tornam parte do
“corpo” não como categoria profissional, mas do corpo institucional imprensa. E como
tal, esse jornalista é construído e atualizado permanentemente no discurso que também
tem como estratégia a reafirmação da imprensa como instituição no seio da sociedade.
O lugar de fala da imprensa comporta o peso de uma historicidade que é atualizada
permanentemente num discurso auto-referente. É um lugar de poder, não exatamente
pela capacidade de fazer ver, mas pela de fazer crer.
62
O discurso informativo se caracteriza, como já vimos, por fazer saber.
Mas também podem ter uma função de fazer crer, de persuadir. Por
exemplo, nos artigos de opinião mediante diferentes estratégias
argumentativas se pretende fazer crer na adequação de um
determinado ponto de vista
51
.
Como no discurso da Ciência, o autor como sujeito do discurso está
completamente ausente. Este apagamento que legitima um enunciado como “científico”,
conferindo-lhe um estatuto de veracidade por ser a voz da Ciência, é da mesma ordem
do apagamento que constrói a legitimação de um enunciado emitido pela imprensa.
Com a diferença de que à Ciência cabe apenas enunciar “verdades”; à imprensa,
também desmenti-las.
Nos embates mídia-ciência, não são os cientistas, mas os jornalistas
que convencem da necessidade do uso ou aplicação de uma
determinada técnica; assim como na publicidade seus artífices
apóiam-se na ciência para vender produtos de “qualidade
inquestionável”
52
.
Alsina descreve como contratos pragmáticos fiduciários essa relação
comunicativa que os veículos têm com os destinatários, onde se estabelece o acordo
implícito de que o jornal dirá sempre a verdade, supondo a contrapartida de
credibilidade e confiança do leitor. Esse contrato é fruto da institucionalização da
imprensa e da conseqüente legitimação do papel do jornalista. A empresa de
comunicação que abriga a instituição imprensa vai se encarregar de reforçar e dar
visibilidade a esse caráter institucional de onde emana seu principal valor — a
credibilidade. E os jornalistas serão os principais artífices dessa ordem.
51
ALSINA, M. R. Los modelos de la comunicación. 2a. ed. Madri: Tecnos, 1995. p. 159.
52
BRAGA,William Dias. Ciência e mídia: a legitimação de um mito perigoso. Revista da ECO, Rio de
Janeiro, v. 4 n. 1, p. 16, 1999.
63
1.2.4 – Imprensa e institucionalização – o discurso de auto-referenciação
Para a sociologia do conhecimento, toda atividade humana está sujeita ao hábito.
As ações tornada habituais precedem à institucionalização, em um processo de
economia de procedimentos que acarretam ganhos psicológicos significativos para o
indivíduo, fazendo estreitarem-se as opções na tomada de decisões. Qualquer ação
freqüentemente repetida torna-se moldada em um padrão, que pode ser reproduzido
sempre que dada situação semelhante se apresentar, com razoável economia de esforço
para a ação que o indivíduo vier a empreender.
Um exemplo de institucionalização pode ser visto nas rotinas comportamentais
das relações de parentesco — todos os membros do grupo sabem qual o seu lugar em
relação aos outros e o dos outros em relação a si mesmo, partindo dessa premissa e de
todas as prerrogativas nela contida as suas ações entre os membros e na sociedade que
compartilha o mesmo modelo. O mundo institucional tem uma história que antecede o
indivíduo e tem caráter de realidade histórica:
O processo de transmissão simplesmente reforça o sentido que os pais
têm da realidade, quanto mais não seja porque, falando cruamente, ao
dizer “É assim que estas coisas são feitas”, freqüentemente o próprio
indivíduo acredita que é isso mesmo
53
.
A crença generalizada de que determinadas situações são como são faz com que
o indivíduo organize suas ações a partir desse acervo de conhecimentos. Ações
cotidianas podem se tornar institucionalizadas, sempre que há uma tipificação
compartilhada por todos os membros do grupo social, supondo que as ações habituais
terão significado semelhante para todos. As tipificações dessas ações habituais são
53
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. Op. cit., p. 86.
64
acessíveis a todos os membros do grupo, assim como a instituição também tipifica os
diversos atores individuais.
O recorte ao lado, retirado do último parágrafo
da matéria sobre o assassinato do jovem negro que
mostramos mais acima, é um exemplo típico de uma
situação institucionalizada e não apenas pelos membros da corporação a que o pai de
Jonas se refere com certa resignação, mas também pelos negros que “sabem como é o
sistema”; pelos não negros que são facilmente “convencidos” da veracidade de ações
que imputam crimes a indivíduos negros, e por aqueles que, certos de que todos sabem
que “é assim mesmo”, fazem o que fizeram os policiais, tomando como garantida a
possibilidade de aceitação fácil da versão forjada. Esse rápido exemplo demonstra que
parte significativa da sociedade comporta-se em um discreto consenso sobre “ser assim
mesmo” no que se refere a indivíduos negros. Mais ainda, que certos comportamentos
são fruto de um processo de institucionalização de determinadas crenças, conceitos e
ideologias, que são permanentemente atualizadas para além das gerações onde se
originaram.
Luckman e Berger nos alertam para o fato de a objetividade do mundo
institucional ser uma objetividade produzida e construída pelo homem, não adquirindo,
apesar disso, um status ontológico separado da atividade humana que o produziu.
É importante acentuar que a relação entre o homem, o produtor e o
mundo social, produto dele, é e permanece sendo uma relação
dialética, isto é, o homem (evidentemente não o homem isolado, mas
em coletividade) e seu mundo social atuam reciprocamente um sobre
o outro. O produto reage sobre o produtor. A exteriorização e a
objetivação são momentos de um processo dialético contínuo
54
.
54
Op. cit., p. 87.
65
Os significados originais de instituições, como o exemplo da relação de
parentesco referido anteriormente, são inacessíveis em termos de memória e necessitam
ser reinterpretados em várias fórmulas legitimadoras, de modo a convenceram as
próximas gerações. Para isso têm que contar com uma ordem institucional consistente
que disponibilize um “manto de legitimações cognoscitivas e normativas” que serão
apreendidas pelas novas gerações durante o processo de socialização na ordem
institucional. O papel de cada membro do e no núcleo familiar, por exemplo, é
reforçado por todo um sistema baseado em tradições judaico-cristãs, que tem entre suas
estratégias mais contemporâneas a programação em calendário da homenagem aos
personagens mais antigos do núcleo familiar. Se observarmos por essa ótica, vamos
notar que apenas os mais velhos — pais, mães, avós e avôs — são reverenciados; os
mais jovens, os filhos, reverenciam. A homenagem em 12 de outubro não é ao filho
palavra que indica o lugar que o indivíduo ocupa em relação ao pai e aos demais
membros da família —, mas à criança que estará sendo recompensada por seu
comportamento de filho, em uma permanente atualização da estrutura simbólica que a
família representa. A tipificação indica não apenas seu lugar no grupo, mas o
comportamento que se espera dele. O comércio, que institucionalizou o calendário,
apenas se apropriou dessa lógica, da qual também é parte.
Algumas sociedades indígenas atribuem ao filho (menino) um lugar de destaque
e deverá, por isso, ter diferentes procedimentos para a institucionalização da conduta e
preservação da tradição. Luckmann e Berger reforçam a noção quando indicam que é
mais provável que o indivíduo se desvie de programas estabelecidos para ele pelos
outros do que de programas que ele mesmo ajudou a estabelecer. O conhecimento é
adquirido, sem que o significado original lhe seja acessível em termos de memória.
66
Ora, se estamos tratando de um fato que teve sua interdição legal em 1888 — e a
instituição da Lei tem peso relevante sobre as demais instituições —, como se estará
atualizando a discriminação racial para que sistemas racistas persistam discreta ou
ostensivamente, como transparece em situações como a que vitimou o jovem dentista
negro?
Poderíamos elencar diversos outros exemplos de atitudes baseadas na
discriminação racial, assim como poderíamos apontar diversos operadores que
colaboram com a manutenção de sua ordem, a mídia em geral como um dos principais.
As novelas de televisão são freqüentemente citadas como exemplos de demarcação da
exclusão dos indivíduos negros na sociedade, quando os personifica em papéis
subalternos. No entanto, trocá-los de lugar com os personagens não negros apenas
resultaria em reproduzir uma condição que a sociedade não reconhece como verdadeira
(e as pesquisas indicam que realmente não é), como ficou demonstrado no caso da
publicidade do Banco do Brasil que reproduzimos na introdução deste trabalho. Cabe
então a pergunta: os negros não estão lá, mas como a sociedade “conhece” que não
estão, dando por certa essa premissa e pautando suas ações por esse conhecimento? Para
além da novela, que é o discurso da ficção, acreditamos que a imprensa, que é o
discurso da ordem da verdade, desempenha papel crucial neste processo. O teórico da
comunicação português Adriano Duarte Rodrigues, mostra que a confiabilidade que se
tem na imprensa é de caráter universal. Tanto lá como aqui, não há dúvida quanto à
confiança da sociedade na imprensa. Rodrigues comenta:
67
(...) quando assistimos a um telejornal ou folheamos as páginas de um
jornal partimos sempre do pressuposto de que o jornalista é digno de
confiança e de que nos relata aquilo que efectivamente aconteceu,
fazemos normalmente fé na credibilidade de sua palavra, confiamos
na fiabilidade das imagens do acontecimento
55
.
E quanto mais institucionalizada for a conduta, como no caso da imprensa, mais
predizível e controlada.
As instituições implicam, além disso, a historicidade e o controle. As
tipificações recíprocas das ações são construídas no curso de uma
história compartilhada. Não podem ser criadas instantaneamente. As
instituições têm sempre uma história da qual são produtos. É
impossível compreender adequadamente a instituição sem entender o
processo histórico em que foi produzida
56
.
A “autoria” do texto jornalístico, se podemos dizer assim, é confiada a um
profissional investido das mais altas credenciais simbólicas pelo próprio sistema que o
emprega. Uma das estratégias de legitimação da função da imprensa é a autocrítica que,
ao mesmo tempo em que aponta fragilidades do trabalho jornalístico, enaltece a si
mesma como essencial à defesa do cidadão e de uma sociedade democrática, reforçando
a estratégia de auto-referenciação em uma permanente atualização da legitimidade de
seu papel. O conceito de auto-referenciação é aqui referido conforme definição de Ana
Paula Goulart Ribeiro:
Chamamos de lugares de auto-referenciação aos espaços nos quais o
jornal tenta construir uma imagem de si próprio e através dela se
legitimar, como, por exemplo, as campanhas publicitárias, os
editoriais, as edições comemorativas etc.
57
Poderíamos enumerar diversos exemplos nos diversos veículos de comunicação,
mas vamos trazer apenas um que de certa forma resume todos os outros, tirado do jornal
que escolhemos para compor o corpus de nossa pesquisa. O jornal O Globo, em página
55
RODRIGUES, A. D. Estratégias da comunicação, p. 106.
56
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. A construção social da realidade, p. 79.
57
RIBEIRO, A. P. G. Mídia e história: ambigüidades e paradoxos. Revista da ECO, publicação da Pós-
graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, v.4, p.5-10, 1999.
68
reservada à Opinião, traz diversos temas, geralmente vinculados a alguma polêmica da
atualidade, discutidos por pessoas consideradas autoridades no assunto em questão e
que geralmente não têm vínculo com o jornal.
Essa “autoridade” se objetiva no crédito que vem ao pé do artigo, onde consta
nome da pessoa que escreve e função, cargo, ou formação – professor, filósofo,
advogado, jornalista etc. Alguns desses espaços são ocupados permanentemente por
“convidados” com uma periodicidade fixa, o que faz com que possamos considerá-los
como articulistas do jornal. É o caso do professor Carlos Alberto Di Franco, diretor de
um curso de pós-graduação para jornalistas, que escreve regularmente para o jornal
sobre
ética na imprensa. Note-se que no último parágrafo do texto o autor identifica a
imprensa quase que exclusivamente com o jornal impresso.
69
Fonte: O Globo, 7 fev. 2003, p. 7.
Quadro 6: Auto-referenciação
70
A “imprensa” é referida diversas vezes como entidade que deve ser protegida
dos males do mau jornalista, dos maus políticos, das tentativas de instrumentalização,
conferindo ao bom jornalista o dever de defendê-la — “Trata-se do elementar cuidado
no combate às tentativas de utilização da imprensa”. Essa “imprensa” é também
identificada, no artigo, quase que exclusivamente com os jornais impressos, o que fica
claro na seguintes frase, de crítica aos novos meios, como o jornalismo online:
“Entramos na era do jornalismo sem jornalistas, no tempo das reportagens sem
repórteres”. E que se confirma nas frases finais.
No último parágrafo, o autor aponta para o clássico papel de cão de guarda
(watch dog role) que tem caracterizado a imprensa ibero-americana: “O papel da
imprensa é ouvir as pessoas, conhecer suas queixas, identificar suas carências reais e
cobrar solução dos políticos”. Mais adiante: “Só assim prestaremos serviço. Só assim
conseguiremos que os leitores, seduzidos pelo ímã dos novos meios, percebam que o
jornal continua sendo útil, importante, parceiro insubstituível na travessia do seu dia-a-
dia”. O que começou como uma crítica à mídia e aos novos veículos, se desenvolveu
como defesa da imprensa, terminando por enaltecer o papel do jornal impresso,
identificando a função da imprensa não com a tarefa de informar, mas com a de
defender quase que de forma tutelar o cidadão contra o poder público. Desta forma,
justifica-se plenamente o título que aponta a intenção do artigo: “Conquistar leitores”.
O jornalista é também referido como um ser dotado de autonomia e capacidade
superior, imune a pressões que constrangem todo ser humano, ou ao menos deverá ser,
desconhecendo a principal dessas pressões, à qual nenhum jornalista poderá resistir sem
pagar o ônus — a pressão da empresa de comunicação, como declarou o jornalista
Cláudio Abramo:
71
Às vezes me perguntam se sou censurado na Folha. Em minha coluna
não sou, mas no resto fui censurado ultimamente, apesar de ter
dirigido o jornal durante anos. Tudo bem, é uma empresa particular
que não quer que certas coisas sejam ditas; é um direito dela. Ao
longo de minha experiência de chefe de redação, deixei de publicar
coisas dos outros. É um direito lícito do dono. Devo ter suprimido
milhares de matérias ao longo de trinta anos. Não podia publicar,
porque era contra a linha do jornal. Daí não existir liberdade de
imprensa para o jornalista; ela existe apenas para o dono
58
.
58
ABRAMO, C. A regra do jogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 118.
72
PARTE 2 - CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE E
DESTERRITORIALIZAÇÃO SIMBÓLICA DOS
AFRO-DESCENDENTES
O território pode ser relativo tanto ao espaço vivido,
quanto a um sistema percebido no seio do qual o sujeito
se sente ‘em casa’. O território é sinônimo de
apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma.
Ela é o conjunto dos projetos e das representações nas
quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série
de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos
espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.
Félix Guatarri
A Constituição de 1988 define, em seu artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), os direitos territoriais dos remanescentes de
quilombos. Mas o que são os quilombos, se pensarmos em termos de território e de
pertencimento? O quilombo, segundo definição de José de Souza Martins em O
Cativeiro da Terra, era o povoado ou aldeia escondida na mata onde moravam negros
fugidos do cativeiro; ou ainda, como afirma Clóvis Moura em Rebeliões nas Senzalas,
“a unidade básica de resistência do escravo. Pequeno ou grande, estável ou de vida
precária, em qualquer região em que existia a escravidão, lá se encontrava ele como
elemento de desgaste do regime servil.”
59
Moura nos informa ainda que os quilombos não eram circunscritos a
determinadas áreas geográficas — destruídos dezenas de vezes, novamente surgiam em
outros lugares, estabelecendo novos sistemas de defesa. Não eram territórios definidos
geograficamente, mas se consolidaram como territórios simbólicos, caracterizando a
luta contra a opressão, a violência e tudo o que significava a escravidão. A exceção mais
59
MOURA, C. Rebeliões da senzala – quilombos, insurreições, guerrilhas. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1988. p. 87.
73
notável foi o Quilombo dos Palmares, situado na serra da Barriga, atual município de
União dos Palmares, em Alagoas, e que na época pertencia a Pernambuco.
O Quilombo dos Palmares constituía-se de 11 povoados distribuídos por uma
extensão de 60 léguas e foi considerado por Rocha Pitta, um cronista da época, “como
uma república rústica”, tal era a organização da comunidade comandada por Zumbi.
Palmares resistiu aos ataques durante 100 anos, quando a 20 de novembro de 1695,
Zumbi foi morto em uma investida brutal pelo bandeirante Domingos Jorge Velho.
A decisão constitucional abre, então, uma discussão em torno de conceitos tais
como identidade e território, com vistas a definir quem são os remanescentes de
quilombos e a quem deve se atribuir o direito definido no dispositivo legal. O termo
quilombo adquire novos significados para adequar sua carga histórica ao contexto atual
em que se torna necessário identificar, para dar aplicabilidade à lei, quem são os
herdeiros legais das terras de quilombos. Os resultados de uma das pesquisas
empreendidos nesta direção vêm circunscrever esse lugar simbólico onde os conceitos
de identidade e território se entrecruzam e, ao mesmo tempo, se afastam e excluem.
(...) parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida
em que os indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua
pertença a grupos familiares que se relacionam a lugares dentro de um
território maior. Se, por um lado, temos território constituindo
identidade de uma forma bastante estrutural, apoiado em estruturas de
parentesco, podemos ver que território também constitui identidade de
uma forma bastante fluída, levando em conta a concepção de F. Barth
(1976) de flexibilidade dos grupos étnicos que, confrontado por uma
situação histórica peculiar, realça determinados traços culturais que
julga relevantes em tal ocasião. É o caso da identidade quilombola,
construída a partir da necessidade de lutar pela terra ao longo das
últimas duas décadas
60
.
60
SCHIMITT, A.; TURATTI, M. C. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas
definições teóricas. Ambiente & sociedade, ano V, n. 10, p. 4, 2002.1.
74
A segunda acepção de território na formação de identidade por si mesma nos
remete a uma noção de subjetividade, ao indicar que “território também constitui
identidade de uma maneira fluida”, relacionando a “identidade quilombola” à
necessidade de lutar pela terra ao longo das últimas décadas, conforme propõem as
pesquisadoras citadas. A emergência do ato constitucional leva à necessidade de
definição objetiva não só de território, mas também de identidade, o que dá ensejo a
diversas interpretações que pouco fazem além de tentar resolver a questão da lei e, com
isso circunscrever de maneira reducionista uma história densa e de lutas onde o
território parece ter sido a última das reivindicações.
Ao demarcar territórios como política fundamental para a preservação da
história e da cultura dos afro-descendentes como participantes do processo civilizatório
nacional, o estado não está reconstruindo ou preservando a história dos afro-
descendentes, mas circunscrevendo o lugar da história dos afro-descendentes dentro da
história oficial e da cultura hegemônica, onde a posição destes atores sociais estará
sempre atrelada a uma condição subalterna. Um território construído pelo Estado, onde
o conceito de identidade não encontra mais seus elementos constitutivos e autênticos.
Stuart Hall considera que a identidade surge não tanto da plenitude da identidade
que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é
“preenchida” a partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos
sermos vistos por outros, e que a busca da identidade é um movimento permanente:
Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a “identidade” e
construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus
divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer
fantasiado da plenitude
61
.
61
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 4a. ed. Rio de Janeiro: DP 7& A, 2000. p. 38-
39.
75
No entanto, para Mendes, as referências essencialistas e ontologizantes
constituem recursos identitários fundamentais, onde a idéia de território pode ser
recuperada metaforicamente como a casa:
As pessoas não têm dificuldade em essencializar, e procuram, quase
sempre, ancorar as suas identificações em identidades fixas,
essencialistas, naturais, genéticas e históricas. A certeza do que são
passa pela inscrição precisa e delimitada em espaços e lugares
concretos, pela criação discursiva e pragmática de fronteiras, limites e
divisões. A aceitação, a avaliação, dos outros, dependendo da
experiência pessoal de descentramento, ou não, das posições político-
ideológicas, verbaliza-se, institucionaliza-se e simboliza-se em
espaços e lugares considerados pertinentes, porque percorridos por
correntes e marcas de emoção, devoção, amor e ódio. Os
acontecimentos epifânicos pessoais são os principais reveladores
dessas marcas identitárias inscritas no espaço. As suas identificações
pessoais e sociais estão continuamente procurando a estabilização
mesmo que provisória, em identidades
62
.
Se a questão identitária é de ordem subjetiva, como propõe Hall, mas ancorada
em questões objetivas, como sugere Mendes, consideramos que noção de território
assume características negativas se pensarmos nas populações negras que construíram
suas histórias e descendência no Brasil. A idéia de Brasil como território não poderá ser
descolada da de escravidão. A África ressurge, então, como um território carregado de
simbolismo no sentido ontogenético de identidade, onde a idéia de superioridade e
realeza dignifica a condição dos descendentes de escravos. A denominação “afro-
descendente” acaba funcionando como uma espécie de ressemantização da história dos
negros no Brasil. Partimos, então, do pressuposto de que, ao contrário da possibilidade
de construção de um território/identidade a partir da demarcação de terras históricas
onde existiram quilombos, o que temos é uma desterritorialização simbólica que foi
sendo tecida à medida em que se agigantava o fosso que separava – e em certa medida
ainda separa – as populações afro-descendentes das oportunidades e da cidadania a que
62
MENDES, J. M O. O desafio das identidades. Apud SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A
globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002. p. 532.
76
“foram chamados” com a abolição da escravidão. As marcas cotidianas desta
desconstrução de identidade são registradas e atualizadas permanentemente pela
imprensa, que vai, simultaneamente, construindo uma marca de identificação que
caracterizará, em uma dimensão mais ampla, a discriminação negativa de uma raça. Os
conceitos e significados se atualizam por diversos meios, sendo a imprensa aquele que,
além de enunciar, justifica e legitima o que enuncia.
O projeto de “cidadania brasileira” foi pela primeira vez definido quando da
emancipação política do país, em 1822. Com a outorga da Constituição do Império, em
1824, todos os homens são considerados livres e iguais, como convinha a uma nação
moderna no mundo ocidental. Apontado como uma distorção típica do processo de
emancipação política do Brasil, “que teria sido feito sob a égide do Príncipe português e
sob o controle dos proprietários de escravos” o sistema escravagista se estendeu ainda
ao longo de 68 anos, com o reconhecimento constitucional ao direito de propriedade do
qual o escravo era o objeto. Naquela época, havia no país uma das maiores populações
escravas das Américas e a maior população de afro-descendentes livres do continente.
Nesse contexto, a manutenção da escravidão se tornaria o principal
limite do pensamento liberal no Brasil, na chamada geração da
independência. Em algumas interpretações mais radicais, o
liberalismo no Brasil monárquico seria considerado até mesmo como
uma simples importação artificial de idéias européias que, para além
da defesa do livre comércio, pouco se adequavam à realidade
brasileira
63
.
Em termos práticos, a noção de cidadania foi definida pela primeira vez no
processo de independência dos Estados Unidos, na esteira das revoluções liberais. A
Declaração de Independência daquele país indicava que todos os homens nasciam livres
e iguais e tinham direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Embora a liberdade
63
MATTOS, H. M. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p.
8.
77
e os direitos oficializados na declaração não vigorassem na prática, a explicitação deles
estimulou a busca desses direitos, através até mesmo de petições de escravos
respaldadas no documento, propiciando o processo da abolição. A força elocucionária
do enunciado pode não ter corrigido a disparidade entre a realidade e a lei, mas
respaldou o movimento pela mudança. Na Constituição do Brasil, o escravo ainda era
definido como propriedade.
Em 16 de maio de 1888, o ministro da Agricultura Rodrigo Augusto da Silva,
sob cuja pasta estava até então a responsabilidade sobre o trabalho escravo, envia um
ofício a todos os presidentes de província para comunicar as novas diretrizes a partir da
Lei Áurea. O despacho foi publicado nos jornais da época, entre eles a Gazeta de
Notícias, onde se pode ler uma das raras referências ao ex-escravo como homem e a seu
devir como cidadão.
No entanto, analisando-se atentamente o enunciado “espera o governo Imperial
que recém-libertos se mostrem dignos da condição de cidadãos a que acabam de ser
chamados”, perceberemos que a mudança de status não é reconhecida pela autoridade: o
indivíduo que antes era escravo passa à categoria de “recém-liberto”; “se mostrem
dignos da condição de cidadão” também tem como contraparte a exclusão do indivíduo
deste status, indicando que devem se mostrar dignos de pertencer a uma categoria que é
prerrogativa de outros, a que eles não pertencem e à qual terão que se adequar, aderindo
às regras feitas por e para os outros.
No entanto, há uma perspectiva de avanço na condição simbólica do negro
implícita na palavra “homem”, empregada com o significado de humano, condição
antes negada tanto por senhores de escravos e grande parte da sociedade. Mas está
instalada também aí, na palavra “homem”, a condição de igualdade de condição que
78
estabelece o princípio da luta pela conquista de um território simbólico, por parte dos
negros, e a manutenção e preservação da hegemonia sobre esse espaço, pelos não
negros.
(...) Convém que V. EX. faça sentir tudo isto à população, cujo o governo lhe está confiado.
Outrossim, declara V. ex. que, pelo uso útil da liberdade, espera o governo Imperial que
recém-libertos se mostrem dignos da condição de cidadãos a que acabam de ser chamados.
Dirá V. Ex. que a liberdade, a troco dos direitos que confere, impõem deveres necessários à
boa ordem social e que a melhor de todas as applicações, que o homem agora livre pode
fazer da condição nova, é o emprego da sua actividade, legitimamente retribuída –– ou
directamente pelo trabalho em si mesmo, ou por meio de accordos livremente celebrados.
Convertida à dignidade da pátria, a terra já não representa para elle o trabalho forçado e
gratuito, mas o beneficio comum.(...)
Rodrigo Augusto da Silva
Ministro da Agricultura
16 de Maio de 1888
Fonte: Gazeta de Notícias, ano XIV n. 137, p. 01.
Uma de nossas reflexões referem-se a como se dá a institucionalização de
processos que reafirmam posições ideológicas e como, na imprensa, foi-se construindo
uma ordem de exclusão dos negros do projeto de sociedade pós-abolição. O
instrumental teórico que nos orienta nesta etapa é a sociologia do conhecimento, da qual
também se valem os estudos críticos da linguagem.
2.1 – Jornalismo e construção social da realidade – a sociologia do conhecimento
Nesta segunda parte, pretendemos articular os conceitos da sociologia do
conhecimento com as proposições elaboradas a partir das reflexões sobre as “condições
de produção” jornalísticas. O conceito “condição de produção” é uma das categorias da
análise do discurso e refere-se não apenas à fase inicial do processo, mas à produção,
circulação e consumo dos sentidos articulados nos textos jornalísticos.
79
O objetivo desta abordagem reforça nossa intenção de compreender o papel do
trabalho da mídia jornalística na construção de idéias e crenças socialmente
compartilhadas e como essas ideologias são estabelecidas como realidade.
A Sociologia do Conhecimento teve sua gênese nas formulações filosóficas de
Max Scheler, na década de 1920, na Alemanha. Mas o interesse de Scheler pelo tema
tinha como finalidade transcender as dificuldades levantadas pelo relativismo de
situações histórica e socialmente localizadas, de forma que pudesse prosseguir em suas
investigações filosóficas.
Neste quadro intencionalmente (e inevitavelmente modesto), Scheler
analisou com abundantes detalhes a maneira em que o conhecimento
humano é ordenado pela sociedade. Acentuou que o conhecimento
humano é dado na sociedade como um a priori à experiência
individual, fornecendo a esta sua ordem de significação
64
.
No entanto, a formulação de Karl Mannheim é que faria com que a Sociologia
do Conhecimento fosse transposta para um contexto de estudos propriamente
sociológico. Para Mannheim, a sociedade era vista determinando não somente a
aparência, mas também o conteúdo da ideação humana. Mas entre Scheler e Mannheim,
vários teóricos dedicaram-se ao desenvolvimento de aspectos da nova teoria, inclusive
os de orientação positivista. Ao traçar um breve resumo da história da teoria, Mannheim
chama atenção para o fato de que a Sociologia do Conhecimento realmente ganha
destaque a partir de Marx, embora em seu trabalho a disciplina se mostre ainda
mesclada às considerações sobre a validade das ideologias, das quais as classes sociais
seriam o suporte.
Fora da Europa, o mais importante sociólogo que tratou da Sociologia do
Conhecimento foi o americano Robert Merton, dedicando dois capítulos de sua obra
64
LUCKMAN, T.; BERGER, P. L. A construção social da realidade, p. 20.
80
principal ao tema. Em Social Theory and Social Structure, Merton traça um paralelo
entre a Sociologia do Conhecimento (Wissenssoziologie) e a Mass Communication
Research. Entre os pontos comuns, Merton relaciona a definição do problema, a
concepção de dados, a utilização de técnicas de pesquisa e a organização social de suas
atividades de pesquisa.
No entanto, a variante européia dedica-se a encontrar as raízes sociais do
conhecimento, pesquisando as maneiras como conhecimento e pensamento são afetados
pela estrutura social do entorno. O foco principal de investigação está nos sistemas
complexos de conhecimento que são transformados na subseqüente passagem para a
cultura popular. Merton faz uma clara distinção ao indicar que a pesquisa européia
refere-se ao conhecimento, enquanto que a americana refere-se à informação.
A origem mais palpável da mass communication research remonta à
obra de H. D. Lasswell, publicada em 1927, com o título Propaganda
Techniques in the World War. Esse tipo de pesquisa foi fruto da
difusão em larga escala das comunicações de massa e representou a
primeira reação que esta explosão da comunicação massiva viria
provocar em estudiosos de proveniências diversas. Tratava-se de uma
abordagem global dos mass media, indiferente à diversidade existente
entre os vários meios de comunicação
65
.
A abordagem que estamos propondo em nossa pesquisa perpassa as duas
competências, já que estamos analisando a pertinência da mídia jornalística na
sociedade e, indo mais além, tentando inferir o que a duração deste trabalho no tempo
terá significado na construção da realidade racial, através de algumas das categorias da
sociologia do conhecimento. Munidos desta compreensão, tentaremos compreender os
efeitos que este trabalho da imprensa pode ter acrescentado ao perfil da sociedade em
seu aspecto de convivência entre negros e não negros. Para isso, trabalharemos
principalmente dois dos conceitos da teoria: institucionalização e legitimação.
65
SANTAELLA, Lúcia. Comunicação e pesquisa. São Paulo: Hacker, 2001. p. 32.
81
As instituições têm sempre uma história, da qual são produtos. É
impossível compreender adequadamente uma instituição sem entender
o processo histórico em que foi produzida. As instituições, também,
pelo simples fato de existirem, controlam a conduta humana
estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a
canalizam em uma direção em oposição às muitas outras direções que
seriam teoricamente possíveis
66
.
A imprensa é hoje uma instituição, tida mesmo como uma das instituições de
maior credibilidade, ao lado de outros setores da vida nacional, como o governo federal,
Igreja e Justiça. Esse trabalho de “institucionalização” veio sendo construído ao longo
da inserção política da própria imprensa nos cenários mundiais, de seu posicionamento
em relação a grandes debates sociais e, principalmente, a partir de um discurso
permanente de autolegitimação, o que veremos no decorrer de nossa exposição.
O termo legitimação deriva da sociologia política de Weber e tem contornos
ampliados na sociologia do conhecimento, onde diz respeito às origens dos universos
simbólicos, validando seus significados objetivos e enfrentando a contínua necessidade
de manutenção da ordem social. A legitimação ‘explica’ a ordem institucional, dando
dignidade normativa a seus imperativos práticos e outorgando validade cognoscitiva a
seus significados objetivados. Sendo a vida cotidiana pontuada por esquemas
tipificadores em termos dos quais “os outros” são apreendidos, poderíamos deduzir que
a forma como os indivíduos negros vieram sendo referidos ao longo das décadas pelos
jornais e, principalmente, pela mídia radiofônica, consolidou esquemas tipificadores que
ainda hoje fazem com que negros sejam estigmatizados. Evidentemente, não foi apenas
o trabalho da imprensa que teceu essa realidade, mas de todos os discursos que circulam
na sociedade, como já dissemos, o da imprensa é o que tem maior destaque, por ser
legitimado como fonte das enunciações de verdade.
66
LUCKMAN, T; BERGER, P. L. A construção social da realidade, p. 69.
82
A efetiva dimensão que a circulação dos discursos da imprensa têm ou possam
ter tido na conformação desse componente ideológico da sociedade seriam um
importante tema para um estudo abrangente de recepção. Nossa proposta é também
indicar a pertinência de uma abordagem desse tipo, que não poderia ser contemplada
nesse trabalho. No entanto, podemos perceber claramente que há uma reincidência de
determinadas tipificações sobre o negro que coincidem com referências históricas que a
imprensa sempre realçou e o comportamento que hoje a própria imprensa denuncia
como racistas. Podemos ver isso explicitamente na reportagem que reproduzimos na
primeira parte.
Schwarcz, em trabalho que mostra como os jornais do século XIX retratavam os
indivíduos negros, conta que uma polêmica que polarizou a opinião de diversos jornais
foi a instituição da Guarda Negra, uma organização criada após a abolição sob
inspiração de José do Patrocínio e que tinha como finalidade homenagear a princesa
Isabel e a monarquia que os havia emancipado. Um trecho de artigo que se refere a uma
das reuniões da Guarda Negra diz:
Em Campinas se reuniram mais de 200 libertos (...) Presidiu a reunião
Alberto de Souza Aranha que foi escravo do Barão de Itapeva. Esse
cidadão deu a palavra a Francisco de Andrade, também liberto, que
leu o seguinte: (...) [grifos nossos]
67
.
Os jornais de certa foram espelhavam uma resistência de si mesmos e da
sociedade à inclusão dos negros na cena social que dominavam. A linguagem reflete a
ideologia, e, ao tratar os “cidadãos” — posto que o eram por lei — como “libertos” e o
“que foi escravo”, realiza-se uma tipificação que vai ao longo do tempo caracterizar a
relação entre negros e não negros na sociedade. Os jornais massificam essa tipificação
67
SCHWARCZ, L. M. Retrato em branco e negro jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 241.
83
fazendo recair sobre o negro o estigma da inferioridade racial, do cativeiro, da
selvageria, demarcando para eles um lugar à margem na sociedade onde, como libertos,
estavam apenas formalmente inseridos. A tipificação é uma categoria da sociologia do
conhecimento que veremos mais adiante.
Certamente ainda está recente na memória de pessoas com mais de 40 anos a
forma como os jornais se referiam aos negros, geralmente noticiados nas páginas
dedicadas aos crimes e assuntos policiais — exatamente como na maior parte do século
XIX — e mesmo nas páginas de esporte e nas dedicadas à cultura como inferiores,
marginais. Mesmo nas parcas referências das editorias de Esporte e Cultura o negro era
citado de forma geralmente depreciativa às suas características raciais, mesmo quando o
assunto lhe era favorável. Mais bem referidos nos cadernos de cultura, era admitido
muitas vezes com a ressalva de ser “um negro de alma branca”.
Se por um lado os primeiros cadernos, parte nobre das edições, relegaram-no ao
pior do noticiário, reafirmando e consolidando a exclusão, os cadernos de cultura
colaboraram para a construção de um território simbólico de inserção — a porta por
onde, apesar do tratamento quase sempre de coloração pejorativa, o negro adentra
alguns espaços da sociedade, imiscuindo-se no pretendido projeto de uma identidade
brasileira pelo seu lugar mais glamouroso e liberal e construindo para si um território
virtual em uma pátria inventada a cada ato de cada um de seus artistas.
84
A cultura brasileira, sempre em busca de um signo da unidade, uma
imagem para mostrar ao estrangeiro, acabou tendo nas manifestações
negras nacionais a definição deste signo. O Zé-povo das caricaturas
contemporâneas de Lan é invariavelmente negro. Se o Jeca foi
símbolo do Brasil rural na caricatura e na literatura humorística das
primeiras décadas do século, foi a imagem do Brasil urbano que o
substituiu. E a representação do Brasil moderno é ainda o Rio de
Janeiro, cidade do samba e do futebol, espaços de afirmação cultural
do negro brasileiro
68
.
Um território simbólico que não encontra correspondência na realidade da vida
cotidiana da maioria dos descendentes de escravos, conforme denunciam tantas
pesquisas.
2.1.1 – Imprensa e racismo – reprodução da ideologia da elite hegemônica
A realidade da vida cotidiana é admitida pela sociologia do conhecimento como
sendo a realidade — um mundo intersubjetivo do qual participam todos os indivíduos, a
partir de uma economia de procedimentos que faz com que a atitude natural de um
indivíduo corresponda à atitude natural dos outros. Esta realidade compartilhada é uma
facticidade evidente e compulsória que se impõe como real. Para existir nesse universo
da vida cotidiana é preciso estar em interação permanente com os outros, estabelecendo
uma contínua correspondência entre os significados partilhados neste mundo. Esse
movimento, uma descrição mais facilmente observável nas relações interpessoais, se
amplia de acordo com essa mesma ordem para os grupos e para a sociedade em geral.
Esse movimento ampliado é dependente de uma forma “mais remota” de interação, para
a manutenção do compartilhamento e da interlocução entre indivíduos e indivíduos,
indivíduos e instituições, etc.
Nos estudos da comunicação, essa forma mais remota a que se refere a
sociologia do conhecimento está concentrada, na atualidade, nos meios de comunicação,
68
LUSTOSA, I. As trapaças da sorte – ensaios de história política e de história cultural. Belo Horizonte:
UFMG, 2004. p. 286.
85
notadamente a imprensa, que fazem a mediação do conhecimento do mundo com suas
infinitas informações dispersas para sociedades cada vez mais dependentes de
informação. Berger e Luckman afirmam que a realidade cotidiana contém esquemas
tipificadores em termos dos quais os outros são apreendidos, sendo estabelecidos os
modos como se dará a interação.
A realidade social da vida cotidiana é portanto apreendida num
contínuo de tipificações que vão se tornando progressivamente
anônimas à medida que se distanciam do “aqui e agora” da situação
face a face. (...) A estrutura social é uma soma dessas tipificações e
dos padrões recorrentes de interação estabelecidos por meio delas
69
.
O anonimato dessas tipificações não impede que as identifiquemos como
elementos da realidade da vida cotidiana, porque se evidenciam através da linguagem e
outras semioses sociais, tendo permanente atualização pelos seus veículos de mediação,
que podemos arrolar sob a denominação de aparelhos ideológicos de estado, como em
Althusser. A linguagem constrói sistematizações que classificam os indivíduos em sua
relação com a sociedade em que vive, quanto ao gênero, status social, etc. A linguagem
constrói também tipificações que vão indicar o lugar que determinado indivíduo ocupa
na sociedade e como ele é visto pelos grupos que detém a hegemonia da ordem
discursivo-social. Podemos tomar como exemplo de tipificação desta ordem um lugar-
comum na imprensa brasileira — o de iluminar a presença de indivíduos negros em
qualquer ramo de atividade de destaque onde raramente aparecem.
São inúmeros os exemplos como o do jornal Última Hora, na edição de 21 de
março de 1960, que anuncia sem constrangimentos a “diferença” e a necessidade de se
ter “coragem” para apresentar, no tradicional concurso, uma candidata “mulata” — “a
69
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. Op. cit., p. 52.
86
primeira rainha mulata no concurso Miss Brasil”, Dirce Machado, do Clube
Renascença:
Pela 1
a
. vez, rainha mulata no concurso de “Miss Brasil”
Até o ano passado, a ‘Miss Distrito Federal’ era um aglomerado de louras e morenas.
Acontece que nem só de louras e morenas vive o brasileiro. Existe a mulata, esculpida pela luz
que cai do prodigioso céu carioca. Faltava, portanto, na passarela do Maracanãzinho, o
detalhe importantíssimo da mulata. A verdade é que, duas ou três vezes, pensaram no assunto.
Mas que clube, entre tantos, teria a coragem de apresentar uma candidata de pele mais
tostada? Eis que surge, este ano, o Renascença do Méier. É um clube diferente, que reúne na
sua maioria, gente de cor. Pois bem: cabe ao Renascença o privilégio de driblar a rotina do
concurso “Miss Distrito Federal”. Sua candidata atende pelo nome de Dirce Machado e pode
ser considerada como a ‘flor morena do Méier’.
Fonte: Última Hora, Rio de Janeiro, ano IX, n. 2892, p. 1, 21 mar. 1960.
Saltando quatro décadas, ainda somos informados que Heraldo Pereira é o
primeiro negro a sentar na bancada o Jornal Nacional, da TV Globo; que Condolezza
Rice é a primeira negra (e mulher) a assumir a importante pasta de Secretária de Estado
nos Estados Unidos, entre tantos outros exemplos, como o que ilustramos abaixo dando
conta de que Wangari Maathai “tornou-se ontem a primeira mulher africana a ganhar o
Prêmio Nobel da Paz”. O lugar eternamente inaugural — assim classificado e difundido
pela imprensa — dos negros no cenário hegemônico dos brancos é uma forma de
tipificação que tem como contraparte discursiva a exceção, o não lugar, o incomum.
Dizer que um negro está pela primeira vez adentrando um lugar é o equivalente de
afirmar que ali não é seu lugar e que ele se constitui uma exceção.
A estrutura social é a soma dessas tipificações e dos padrões
recorrentes de interação estabelecidos por meio delas. Assim sendo, a
estrutura social é um elemento essencial da realidade da vida
cotidiana
70
.
70
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. Op. cit., p. 52.
87
2.1.2 – Desterritorialização social e discursiva – a notícia da abolição
O discurso do estranhamento vem se construindo ao longo de anos e décadas nas
páginas dos jornais. A marca do não-lugar fica patente no relato das reportagens logo
após a abolição, quando as comemorações tomavam conta das ruas como um grande
carnaval. Era a festa política que exaltava personagens que lutaram para remover o
grande entrave ao projeto de construção do Estado e da cidadania brasileiros, nos quais
os negros não estavam incluídos.
No extenso artigo de 14 de maio de 1888, publicado no Jornal do Commércio,
podemos verificar esse apagamento, onde o negro é referido apenas três vezes: duas
como “escravo” e uma como “indivíduo”. As lacunas devem-se a trechos ilegíveis no
arquivo original e a supressões de trechos desnecessários ao que tratamos:
A Extincção do Captiveiro
Houve escravidão no Brazil. Houve também no seio de grandes nações e de povos
generosos. A humanidade percebeu muito debaixo d’essa forma de opressão que pelo concurso
de circunstâncias às quaes a história fará justiça, pode durar até agora aos traves dos
sucessivos extraordinários que, em todas as espheras da actividade, enchem e illustrão o nosso
século. A hora da liberdade para todos não tinha soado para o nosso Brazil. No firmamento
das nossas instituições livre negrejava formidável mancha, que lhes offerecia contraste
repugnante. Não tínhamos podido pagar grande dívida à dignidade humana ultrajada. Fomos
(...) a fazer perdurar a violência. A escravidão houve de durar até hontem. Até hontem (...)
contar-se em vasta região banhada pelo (...) civilisação de 6.000 escravos. Quis o destino que
(...) coubesse o spanágio triste de comparecermos (...) último ao convívio do mundo culto com a
consciência limpa e satisfeita de haver dado à (...) dignidade , a reparação que lhe devíamos.
(...), porém, a instante supremo. O Brazil não possui escravos. Quando estas linhas que(...)
lançando com a mais viva das commoções, (...) debaixo dos olhos dos nossos leitores
poderemos, nós e elles, encarar a escravidão, como reminiscência dolorosa, facto relegado
para o domínio da história, que será bastantemente imparcial, na serenidade de seu juízo, para
recompensar-nos o esforço ingente com que, há tanto tempo, preparamos o advento do
extraordinário sucesso.
(Cont.)
88
(Cont.)
O Brazil tem razão para (...) com a sua obra, há apenas um anno (...) o captiveiro era
representado por 723.000 indivíduos que povoavão cidades, fecundavão campos e quase
irmanavão conosco em todos os (...) do trabalho rural e fabril. Não era, (...) uma colônia, não
era de possessão longínqua que tínhamos de extirpar a escravidão, mas do seio da pátria, de
entre nós mesmos, do interior de nossas casas, do organismo de nossas indústrias, tínhamos de
faze-lo, não a título de represália, (...)suggestões de ódio contra nenhuma classe, não (...) entre
convulsões de interesse offendido, mas ao (...) de paz profunda, por effeito do geral
congraçamento pela confraternização e pela harmonia (...) estamos testemunhando, como obra
de humanidade ao mesmo tempo, que de sabedoria prática, de previsão econômica e de robusta
confiança na vitalidade nacional.
A grande obra está consummada; a escravidão desappareceu do mundo civilisado.
Congratulamo-nos com o Brazil por este extraordinário feito, que será certamente início de
nova era para os nossos créditos de povos civilisado, para a organisação definitiva do trabalho
nacional, para a prosperidade, (...) e estável d’esta pátria, que é fadada à grandes destinos
porque é capaz de actos tão grandes quanto o de hontem.
Não haverá Brazileiro que não sinta (...) vigorosamente o coração ante acontecimento
de tamanha magnitude. Está escripta a mais bella página da vida nacional. A geração actual
(...) para honra da pátria monumento imperecível. (...) eloquente da lei de 13 de Maio de 1888.
Não invocaremos nomes sem relembrarmos esforços. A história fará justiça aos (...) mortos e
vivos, aos batalhadores que assistem e aos que não puderam assistir ao seu triumpho. Por um
nome que saudássemos, teríamos forçosamente de omittir numerosos outros aos quaes caberia
perfeito direito de reivindicação. Digamos antes, porque tal é a verdade, que para esta
admirável obra cooperou todo o Brazil. Ella não (...) sua longa elaboração senão resistências
pacíficas à sombra das leis, à face da nação inteira, e (...) de motivos novos e aphreensões
patrióticas. Desde muito as nossas leis encaminhão-se e convocão para a solução que
applaudimos. Todos desejamos a opportunidade; todos fazíamos votos para que ella chegasse;
a divergência, toda a divergência versou unicamente sobre a apreciação das circunstâncias que
a alguns se afiguravão menos propícias do que a outros. Nos últimos mezes a opinião mostrou
tão confiante que seria quase o desacerto de não ir ao encontro da vontade nacional. O trimpho
foi realmente de toda a nação.
Possão realizar-se as mais brilhantes esperanças. Possão os factos corresponder, sem
nenhuma excepção, às mais gratas previsões. Possa o Brazil agora verdadeiramente livre,
prosperar e engrandecer-se. Seja cada Brazileiro, na órbita de sua actividade, obreiro
laborioso da reconstrução das forças nacionaes. Esforcemo-nos todos para que a exctinção do
captiveiro nos proporcione dias apenas agitados pelo rumor suave e harmonioso do trabalho
livre, a forma perfeita, estável e definitiva do trabalho humano.
Fonte: Jornal do Commercio, ano 66, n. 185, p. 1, 14 maio 1888.
A tipificação do negro que até este momento é ainda a de “escravo” será
perpetrada pela imprensa nos anos que se seguirão. Com a nova condição e as antigas
conceituações, tem início a construção da nova identidade brasileira pontuada por
tipificações que vão marcar a exclusão dos ex-escravos do processo de cidadania que se
pretendia para o Brasil do futuro.
89
2.1.3 – A imprensa como acervo social do conhecimento
Gislene Santos comenta, em obra que traça o percurso das idéias que difundiram
e naturalizaram o conceito de inferioridade da raça negra:
A preocupação com a nova ordem, a República, que vem substituir o
Império decadente, colocava uma nova questão: que tipo de cidadão
queremos para formar esta nova nação agora livre. Obviamente, não
os escravos, pois a abolição já havia se efetuado, mas e os negros?
Quais seriam as contribuições dos cidadão negros à República? O
recurso à imigração evidencia o papel destinado aos negros na nova
ordem
71
.
Neste momento em que se pensava a construção de uma nova ordem, intensifica-
se o debate sobre o lugar que os negros teriam na configuração do povo brasileiro.
Destaca-se, à época, a escola racista que buscava fundamentar os argumentos de
inferioridade da raça negra, cujo principal expoente era o professor de medicina e
antropólogo autodidata Raimundo Nina Rodrigues, que apoiava o projeto de estímulo à
imigração de europeus como uma forma de evitar o “perigo de enegrecimento” do povo
brasileiro; para ele não havia igualdade entre as raças e a presença do negro como
cidadão atrasava o desenvolvimento do país. Em que pese o pioneirismo no estudo da
presença africana no Brasil pelo que é comemorado, Nina Rodrigues considerava que
“por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços a nossa civilização, por
mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da
escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há
de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo”. A referência
consta do livro póstumo Os africanos no Brasil, de 1933, e foi publicada primeiramente
em artigo no Jornal do Comércio, em 1900. As teses inspiradas no positivismo e no
determinismo científico não ficaram restritas ao ambiente acadêmico. O jornalista
71
SANTOS, G.A. A invenção do ser negro – um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade
dos negros, p. 129.
90
Euclides da Cunha, que desde 1889 assinava artigos como colaborador no jornal
Província de São Paulo sob pseudônimo de Proudhon, participava desse pensamento e
defendia em seus textos a idéia de riscos da mestiçagem:
A mistura de raças mui diversas é na maioria dos casos prejudicial
(...). A mestiçagem extremada é um retrocesso, de sorte que o mestiço
é quase sempre um desequilibrado
72
.
Os jornais da época, como relata Schwarcz, representavam o indivíduo negro
como libidinoso, violento, imoral, distante dos padrões de comportamento da jovem
República, argumentação entretecida pelos conceitos “científicos” relacionados às
características raciais. Ao mesmo tempo, os jornais tiveram importante participação na
difusão de normas e valores considerados “civilizados”, consolidando a idéia dominante
de que o negro era indesejável. Esse processo de construção da exclusão discursiva do
indivíduo negro do projeto de cidadania que se pretendia para o Brasil é reforçado pelo
movimento maciço de entrada dos imigrantes europeus. A mão de obra negra e asiática
era indesejável. Os grandes jornais participavam dessa política, publicando matérias
sobre a África que retratavam apenas os aspectos mais negativos da conjuntura local, ao
invés de dar informações sobre uma terra exótica e distante. Essa prática discursiva se
preservou e se naturalizou dentro das pautas jornalísticas das editorias internacionais,
que até hoje mantêm a tendência de iluminar com mais ênfase a face mais problemática
da África. Neste caso, não precisamos de uma pesquisa de recepção para comprovar
como a imprensa contribui para o acervo social de conhecimentos, reproduzindo uma
ideologia que está naturalizada no seio da sociedade e que, a mesma forma, afeta o
corpo e profissionais que elabora as edições diárias dos jornais.
72
SCHWARCZ, L. M. Retrato em branco e negro..., p. 223.
91
O presidente Luís Inácio Lula da Silva, ao visitar Widhoek, capital da Namíbia,
cometeu o que a imprensa considerou uma “gafe”. Ele disse que pela limpeza e beleza
arquitetônica, a cidade nem parecia estar na África.
O processo de naturalização não deixa ver, tanto ao leitor quanto ao jornalista,
que o que todos consideram “gafe” é apenas a explicitação sincera do senso comum
a África como sinônimo de degradação. Tratar a declaração como gafe deixa implícito
também que na relação dialógica que se estabelece entre os participantes do evento
discursivo — imprensa e público como os principais — há o contrato simbólico de
reconhecimento de uma África ideológica que tem sentido apenas para os brasileiros.
Caberia perguntar: como o presidente “conhece” essa África que destoa da experiência
presencial? Não temos dúvida de que a imprensa é responsável por essa tipificação,
visível depois nas reportagens:
Presidente comete gafe e causa constrangimento na Namíbia
Lula diz que cidade, 'limpa e bonita', nem parece da África
Eliane Cantanhêde
Enviada especial a Windhoek e Pretória
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou constrangida a comitiva brasileira,
ontem, ao dizer num discurso de improviso que Windhoek, capital da Namíbia, parece não estar
na África, por sua limpeza e arquitetura.
“Estou muito surpreso, porque quem chega a Windhoek não parece que está num país
africano. Acho que poucas cidades do mundo são tão limpas e bonitas arquitetonicamente
quanto esta cidade. E [poucas cidades têm] um povo tão extraordinário como [Windhoek]
tem”, disse o presidente, surpreendendo a platéia que o ouvia na State House, sede do governo
local.
Fonte: Folha de São Paulo, São Paulo, p. 4, 8 nov. 2003.
O “óbvio”:
Presidente afirma que seus críticos deveriam visitar o continente 'para ver as diferenças
dentro dos países'
Só constatei o óbvio, diz Lula sobre a África
Fonte: Folha de S. Paulo, p. A21, 9 de nov. 2003.
92
No ano de 2004, das matérias publicadas sobre a África no jornal Folha de S.
Paulo, seis poderiam ser classificadas com neutras, dez como positivas (todas nas
seções de cultura e esportes), e 20 apresentam temas relacionados à violência, guerra,
pobreza, doenças, enfim, a condições de vida precária e subumana. Trechos das
reportagens e artigos estão relacionados abaixo.
1. 14/01/2004 p. E8: (...) A casa grande, habitada pelo "grande homem" com sua
família, parentela ampla, concubinas e escravas, tal como Gilberto Freyre descreve
para o Nordeste, é costume africano.
2. 24/01/2002 p. D4: (…) A Copa Africana de Nações, o mais importante torneio de
seleções daquele continente, terá um importante reforço em sua 24ª edição, que estréia
hoje, na Tunísia: uma nova resolução da Fifa.
3. 30/01/2004 p. 54: (...) Ao contrário do que se possa imaginar, os objetos retirados do
continente africano, que estão na exposição que tem início amanhã, dia 31, no Centro
Cultural Banco do Brasil, não têm valor meramente antropológico.
4. 6/02/2004 p. B2: (...) acordo operacional com a Casa Brasil, empresas de
representação comercial sediada na África do Sul, para distribuir produtos e serviços
de empresas brasileiras no continente africano.
5. 2/02/2004 p. A18: (...) Mesmo assim, as maiores potências militares européias (o
Reino Unido e a França) estão avançando na direção da criação de uma força de
reação rápida, que teria entre 30 mil e 60 mil homens e seria capaz de responder a
crises no continente africano ou em outras zonas de conflito perto da Europa.
6. 10/02/2004 p. E5: O CCBB paulistano dá hoje mais uma braçada contra a maré, no
oceano de interrogações que nos separa do "continente desconhecido".(...) Para Naná,
a absorção do arcabouço cultural africano sempre foi criativa. "A capoeira vem de um
lugar da África e o berimbau de outro; quem juntou os dois fomos nós", exemplifica.
7. 14/02/2004 p. D2: As duas últimas decisões reuniram países da África Subsaariana.
Em 2000, Camarões bateu a Nigéria. Em 2002, superou Senegal. No ano passado,
nenhum país africano chegou à quartas-de-final dos mundiais sub-17(...)
8. 15/02/2004 p. D3: (...) Tunísia venceu ontem Marrocos por 2 a 1, em Rades, e
conquistou pela primeira vez em sua história o título da Copa da África, o principal
torneio de seleções do continente africano.
9. 10/03/2004 p. A9: (...) O ex-presidente foi levado no último dia 29 ao país africano
por um avião militar americano. A União Africana (UA) qualificou a saída de Aristide
como "inconstitucional" e "um precedente perigoso para a democracia no mundo”.
10. 20/03/2004 p. D1: (...) Só que, com problemas financeiros, o grupo de mídia não
conseguiu vender os direitos como esperava – o continente africano, por exemplo,
exceção feita à África do Sul, recebeu-os de graça – e também foi à bancarrota.
93
11. 21/03/2004 Mais! p.16-17: (...) Os traficantes de escravos que arrastaram para a
América mais de 11 milhões de africanos durante a era colonial não costumavam se
preocupar com a origem deles – aliás, interessava-lhes apagar qualquer ligação dos
escravizados com o continente materno.
12. 16/04/2004 p.A2: (...) O Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Nelson
Mandela e do presidente Thabo Mbeki, deverá conquistar dois terços do Parlamento e
eleger a grande maioria dos governadores das Províncias.
13. 23/04/2004 p.A15: (...) A Aids é também uma das principais causas de mortalidade
infantil no continente africano, informa o Banco Mundial.
14. 5/05/2004 p.C1: (...) Taxas medidas pelo Ministério da Saúde superam as da
África; mais de 32 mil morreram em acidentes em 2002.
15. 16/05/2004 p.D1: Finalmente a Copa é negra: África do Sul supera Marrocos por
quatro votos e vai ser, em 2010, o primeiro país com maioria de negros a abrigar a
principal competição do futebol.
16. 22/05/2004 p.D2: (...) A Fifa e o comitê que organizará a Copa de 2010 criarão um
inédito sistema de cotas para evitar que o primeiro Mundial negro da história do
futebol tenha apenas brancos nas arquibancadas.
17. 27/05/2004 p. A14: (...) O governo do Sudão e rebeldes do sul do país assinaram
ontem acordo que abre caminho para o término da mais longa guerra civil do
continente africano (21 anos). Porém, o tratado não cobre outro conflito, na região de
Darfur (oeste), descrito pela ONU como uma das piores crises humanitárias.
18. 3/6/2004 p. A6: (...) Relatório divulgado ontem pelo Fórum Econômico Mundial
(FEM), em Maputo (Moçambique), afirma que a África protagonizou a "pior tragédia
econômica do século 20”.
19. 18/06/2004 p.C3: (...) Só haverá redução das mortes com controle do tabagismo",
defendeu Katharine Esson.(...) Esson cita o exemplo do continente africano, onde a
abertura dos mercados deve provocar um aumento de 75% no número de fumantes
entre 1995 e 2005.
20. 23/06/2004 p. A13: (...) "No começo de 2003, somente dois países na África
subsaariana tinham endemias. Hoje, no entanto, a África responde por quase 90% dos
casos globais, com crianças paralisadas em dez países do continente que estavam
livres da doença.
21. 21/06/2004 p. A13: Em Genebra (Suíça), representantes da Organização Mundial
da Saúde (OMS) disseram que (...) os casos de pólio neste ano multiplicaram-se por
cinco nas regiões oeste e central do continente africano em comparação com igual
período de 2003.”
22. 26/06/2004 p. E9: Como o multi-instrumentista nigeriano Fela Kuti (1938-97)
exigiu o holofote da história para seus discursos de ritmo incendiário, o baterista Tony
Allen foi deixado em segundo plano como uma espécie de Sancho Pança do jazz-funk
africano.
94
23. 2/07/2004 p. A16: Crânio africano de 1 milhão de anos agrava confusão sobre
hominídeos. (...) Não se sabe o sexo, mas o pequeno indivíduo de 930 mil anos de idade
achado no Quênia (leste da África) criou uma confusão federal na evolução do ser
humano.
24. 12/08/2004 p. E5: (...) A mais recente criação de Brook desembarca aqui pouco
após sua estréia, em junho, na Alemanha. Narra a história do líder espiritual africano
Tierno Bokar (1875-1940), cujas palavras acabam por traduzir fragmentos da própria
filosofia de trabalho do encenador.
25. 20/08/2004 p. A16: A medicina está perdendo a corrida contra a malária, doença
que afeta meio bilhão de pessoas todo ano. O parasita causador da doença adquiriu
resistência a um novo remédio que mal começou a ser introduzido na África, o
continente mais afetado.
26. 23/08/2004 p. A11: (...) O chanceler deve se encontrar com os chanceleres do G-4
até o fim desta semana. Na pauta, também está a necessidade de um candidato africano
– nenhum país do continente se apresentou.
27. 27/08/2004 p. A3: Crianças e adolescentes são freqüentemente sábios no cinema
africano, talvez porque, quando comecem a largar as fraldas, passem a entender e
experimentar privações e provações suficientes para carimbá-los para a vida adulta.
28. 30/08/2004 p. F4: Em Sossusvlei, pode-se ter contato com uma maneira
interessante e barata de viajar pelo continente africano. A região está no roteiro de
enormes caminhões que levam principalmente jovens em longas viagens pela África.
29. 6/09/2004 p. A2: Mas guerrilhas e burocracia acabam impedindo que a comida
chegue; crianças e adultos morrem de inanição. Além disso, o continente africano é a
vítima principal da Aids. Existem formas de evitar, remédios para aumentar a
sobrevida dos aidéticos. Falta dinheiro. Estamos mais perto do inferno.
30. 9/09/2004 p.A15: A ambientalista queniana Wangari Maathai tornou-se ontem a
primeira mulher africana a ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Ela foi contemplada por
seu trabalho de combater a pobreza e tentar salvar as savanas e florestas nativas, que
desaparecem a um ritmo vertiginoso no continente.
31. 14/09/2004 p.E2: Na miscelânea de obras de arte abrigadas sob o tema "Território
Livre", da 26ª Bienal Internacional de São Paulo, está incluída a mostra de fotografia
africana, baseada quase totalmente na forte tradição do retrato existente no continente.
32. 21/09/2004 p. D1: (...) O velho continente e a África, acostumada com o reinado
dos leões, vê agora os ''elefantes'' irem à caça da elite da bola e da Copa.
33. 25/09/2004 p. A3: "A história deste país nunca foi verdadeira. Sou afro-
descendente e fico irritado quando me lembro da verdadeira história da opressão
capitalista sobre o povo africano que para cá foi trazido.”
34. 31/10/2004 Mais! P.2: A biblioteca digital francesa tem seção especial dedicada ao
continente africano, que tem por base principalmente relatos de viajantes.
35. 6/11/2004 p. D2: (...) A primeira eliminatória foi vencida por um sul-africano de 16
anos. A segunda, por um norte-americano de 20 anos.
95
36. 7/11/2004 p. D4: (...) Quando Shimane Morekure, com seus 16 anos, ganhou o
qualificatório africano, seu país viveu momento de êxtase. Sul-africano, ele venceu em
casa (Johannesburgo) e vai correr atrás de uma glória quase inimaginável: ser a
primeira pessoa campeã mundial reconhecida pela Fifa de forma individual.
37. 22/11/2004 p. E4: Os projetos deveriam lembrar aos participantes do encontro da
urgência de uma solução para a epidemia de Aids que se alastra pelo continente
africano.
38. 23/11/2004 p.D2: (...) As derrotas em provas tradicionais no Mundial-03 e nos
Jogos de de Atenas-04 deram o sinal de alerta. A partir de agora, com a criação da
Fundação Africana de Atletismo, os países do continente iniciam a luta para mudar o
quadro.
39. 24/11/2004 p.A17: Levantamento anual da ONU sobre Aids e vírus HIV divulgado
ontem mostra que a epidemia vem se alastrando de forma mais intensa entre mulheres,
especialmente nos países do Leste Europeu e no continente asiático.
40. 25/11/2004 p. A20: (...) Cerca de 500 milhões de novos casos de malária são
reportados a cada ano, 90% deles no continente africano. Mas os cientistas acreditam
que a nova vacina possa proteger uma parte significativa das vítimas da doença, que é
transmitida por mosquitos.
41. 28/11/2004 p. A38: (...) Serra Leoa, o pequeno país do oeste africano que nos anos
1990 teve uma das mais brutais guerras civis da história recente do continente,
enfrenta hoje árduo processo de reconciliação nacional.
42. 19/12/2004 Mais! P.9: Mas mesmo proteções mais baixas seriam úteis no
continente africano. As infecções são ali constantes, as picadas de mosquito, contínuas.
Adolescentes e adultos sobreviventes têm razoável proteção; mas crianças,
especialmente as mais novas, são bem mais vulneráveis.
43. 27/12/2004 p. E8: (...) servem para mapear as perambulações espaço-temporais de
nossos ancestrais iletrados, que teriam se originado todos no sudeste africano e
falavam o mesmo idioma original.
Uma das assertivas que a sociologia do conhecimento e a análise do discurso
compartilham refere-se à maneira como a linguagem constrói representações
simbólicas, zonas de significação linguïsticamente circunscritas, ou campos semânticos,
que transcendem a vida cotidiana, não apenas no terreno altamente subjetivo das
crenças, religiões, filosofia, artes, mas no da memória como experiência tanto biográfica
como histórica dos indivíduos e da sociedade. A acumulação desses conhecimentos é
seletiva, de acordo com os estudos da sociologia, cabendo ao campo semântico
determinar aquilo que será retido ou “esquecido” como partes da experiência. No
96
entanto, para a análise dos discursos, a linguagem materializada nos textos são
representações de acontecimentos onde alguns elementos são incluídos e aos quais se dá
grande destaque, enquanto outros são apenas ignorados. Assim como os elementos
selecionados para compor o texto são, em geral, partes de outros acontecimentos ou de
outros textos, caracterizando a intertextualidade, a decisão de selecioná-los também põe
em disputa uma série de outras possibilidades carregadas de suas próprias
representações, caracterizando uma interdiscursividade que é da ordem do ideológico. O
que responde, até certa medida, a eventual consideração de que não há como se falar da
África de outra forma, já que as condições degradantes e subumanas que se verificam
no continente remetem ao paradigma clássico do jornalismo de que apenas o que foge à
normalidade e aos padrões estáveis da sociedade deverá ser digno de nota e pauta.
Vejamos então, com base apenas no resumo de um ano de noticiário de um jornal de
projeção nacional, o que eventualmente teria sido possível destacar em um noticiário
sobre países do continente africano que não apenas suas desgraças. Das 43 referências,
destacamos apenas aquelas positivas, chamando a atenção para o fato de constituírem
um número quase inexpressivo de dados positivos e que estão restritos basicamente à
Editoria de Esporte e Cultura, sobre o que falaremos mais adiante.
No recorte 2, temos que “a Copa Africana de Nações, o mais importante torneio
de seleções daquele continente”; na 3, que “ao contrário do que se possa imaginar”, os
objetos retirados do continente africano não têm valor meramente antropológico; no
recorte 4, temos que uma representação comercial sediada na África do Sul vai
distribuir produtos e serviços de empresas brasileiras no continente africano; na 12,
informa o jornal que o Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Nelson
Mandela e do presidente Thabo Mbeki, deverá conquistar dois terços do Parlamento e
97
eleger a grande maioria dos governadores das Províncias; mais adiante (16), sabemos
que a Fifa e o comitê que organizará a Copa de 2010 criarão um inédito sistema de cotas
para evitar que o primeiro Mundial negro da história do futebol tenha apenas brancos
nas arquibancadas; no recorte 22, de que o continente africano teve um multi-
instrumentista (nigeriano) Fela Kuti que “exigiu o holofote da história para seus
discursos de ritmo incendiário”, e ainda sabemos que o “baterista Tony Allen foi
deixado em segundo plano como uma espécie de Sancho Pança do jazz-funk africano”;
na nota 24, somos informados sobre o líder espiritual africano Tierno Bokar (1875-
1940); na 28, sabemos que jovens fazem, de caminhão, longas viagens turísticas pela
África; na 30, que uma ambientalista queniana, Wangari Maathai, “tornou-se ontem a
primeira mulher africana” a ganhar o Prêmio Nobel da Paz; na 33, temos a indignação
de um leitor que reclama justamente do que estamos tentando revelar; na nota 35, temos
que a primeira eliminatória de um importante torneio de futebol foi vencida por um sul-
africano de 16 anos.
Ao observar esses dados, compreendemos perfeitamente quando o presidente
Luís Inácio Lula da Silva, em visita a um país africano comete a “gafe” de dizer que
“nem parece a África”, a partir de um conhecimento baseado em noções do cotidiano
oferecidas pela imprensa, muito certamente. Mas, se observarmos as notícias positivas
destacadas, podemos abrir duas vertentes de observação: a primeira: a imprensa está,
afinal, divulgando notícias positivas. A outra possibilidade: todas essas notícias
positivas têm um contexto que provavelmente terá dados também positivos: a do atleta
campeão; a da ambientalista que conquistou o Nobel; a dos arqueólogos que ofereceram
suas descobertas à exposição; a do turismo por onde passeiam os jovens; a de um
contexto filosófico-religioso que consagra um líder espiritual; a de uma cultura musical
98
que tem ídolos como Fela Kuti e o baterista Tony Allen. No entanto, a África
consagrada no conhecimento da sociedade brasileira é a dos mosquitos, guerras, Aids,
pobreza e miséria, que levou o governador do Piauí, Wellington Dias, a ignorar as
proporções do terceiro maior continente do planeta, com 30.330.000 quilômetros
quadrados, para a comparação negativa com um dos menores estados brasileiros, com
251.311,5 quilômetros quadrados, na declaração enfática: “Piauí é a África brasileira”
73
.
Ao iluminar situações como essa, poderíamos estar incorrendo na crítica fácil a
figuras públicas que teriam o dever de saber do que estão falando, mas, muito ao
contrário, estamos falando de um conhecimento receitado que se consolida no acervo de
conhecimentos, comum a toda a sociedade, incluídos aí as figuras públicas desavisadas.
Consideramos que a imprensa, como demonstrado, tem forte contribuição para esse
conjunto de conhecimentos construídos pela maioria das instituições. De acordo com os
princípios da sociologia do conhecimento, a vida cotidiana é dominada por motivos
pragmáticos e o conhecimento receitado é limitado à competência pragmática em
desempenhos de rotina. O jornal impresso cumpre essa função entre as classes
formadoras de opinião, mas os noticiosos radiofônicos e televisivos também
desempenham esse papel nas classes mais sujeitas à influência de informações prontas.
A validade de meu conhecimento da vida cotidiana é suposta certa por
mim e pelos outros até nova ordem (...). Embora o estoque social do
conhecimento represente o mundo cotidiano de maneira integrada,
diferenciado de acordo com zonas de familiaridade e afastamento,
deixa opaca a totalidade desse mundo. Noutras palavras, a realidade
da vida cotidiana sempre aparece como uma zona clara atrás da qual
há um fundo de obscuridade
74
.
Berger e Luckman exemplificam, ainda, que o conhecimento da vida cotidiana
tem a qualidade de um instrumento que abre caminho através de uma floresta e,
73
Folha de S. Paulo, São Paulo, p. A4, 9 ago. 2004.
74
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. A construção social da realidade, p. 67.
99
enquanto faz isso, projeta um estreito cone de luz sobre aquilo que está situado logo
adiante e imediatamente ao redor, enquanto em todos os lados continua a haver
escuridão. Ousamos inferir que o cone de luz, embora não de maneira exclusiva, é
produto do trabalho jornalístico, que nos informa da pobreza na África, da guerra do
tráfico e dos riscos de seguir pela Linha Amarela — mesmo que jamais tenhamos estado
próximos de qualquer dessas situações. Conforme nos diz a sociologia do
conhecimento, a existência humana decorre em um contexto de ordem, direção e
estabilidade. A imprensa, com seu papel ordenador da entropia da realidade, oferece
esta estabilidade ao recortar e organizar a compreensão dos acontecimentos sociais,
colaborando para a progressiva operação humana de produção da ordem social.
A ordem social existe unicamente como produto da atividade humana.
Não é possível atribuir-lhe qualquer outro status ontológico sem
ofuscar irremissivelmente suas manifestações empíricas. [grifo do
autor]
75
.
Lilia Schwarcz identificou, por outros ângulos de observação, a construção de
uma identidade comum a todos os negros pela imprensa do século XIX. A historiadora
ressalta que os periódicos da época tinham uma seção intitulada “Notícias”, comum a
todos os jornais, que compunha a parte essencial dos periódicos, onde se noticiava
acontecimentos provenientes de diversos locais do país, versando sobre os mais
variados temas. Nestas seções, o negro era retratado de uma maneira constante; ora
como assassino, ora como humilde e serviçal. Nota-se que as opções maniqueístas entre
bem e mal reservavam poucas opções aos negros:
A própria repetição de certos temas parece ser preciosa de ser retida,
pois, como diz Roland Barthes, é a “insistência em um
comportamento que revela sua intenção”
76
.
75
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. Op. cit., p. 76.
76
Ibid., p. 119.
100
A pesquisa empreendida por Lilia Schwarcz exemplifica amplamente o
tratamento que a imprensa reservava aos negros no final do século XIX. Após a
abolição da escravidão, os negros tidos teoricamente como cidadãos, mesmo que de
segunda classe, eram referidos nos jornais como viciados e inferiores. A “escola” de
Nina Rodrigues hierarquizava os diversos povos, procurando demonstrar a incapacidade
da raça negra em adaptar-se à civilização. A análise acadêmica ganhou espaço nos
jornais e um de seus defensores era o jornalista Euclides da Cunha, personagem
elogiado na historiografia do país, sendo retratado na mídia contemporânea como
personagem de minissérie.
Logo, nos editoriais e mesmo em outras partes dos jornais, a situação
mostrava-se complexa. Por um lado a exaltação da igualdade e da
convivência pacífica entre as raças, e de outro o medo da influência
negativa das raças negras e mestiças
77
.
Observando essas referências, recorremos à noção da sociologia do
conhecimento que indica que a institucionalização ocorre sempre que há uma tipificação
recíproca por tipos de atores habituais, partilhadas e acessíveis a todos os grupos sociais
em questão. A tipificação, nos exemplos citados, é formulada pela imprensa, único
veículo capaz de dar notícia de uma totalidade social inacessível individualmente por
cada um de seus membros, por ter-se constituído, ela mesma, como “instituição” capaz
de mediar a compreensão dos acontecimentos para a sociedade. A institucionalização do
conceito de inferioridade do negro na sociedade é produto de uma história consolidada
ao longo do tempo, a imprensa como um dos operadores que atualizavam
permanentemente esses conceitos no cotidiano. Conforme indicam os conceitos da
sociologia do conhecimento, “o controle social primário é dado pela existência de uma
77
SCHWARCZ, L. M. Retrato em branco e negro..., p. 224.
101
instituição enquanto tal.” Dizer que um segmento da atividade humana foi
institucionalizado é equivalente a dizer que foi submetido ao controle social.
Um mundo institucional, por conseguinte, é experimentado como
realidade objetiva. Tem uma história que antecede ao nascimento do
indivíduo e não é acessível à sua lembrança biográfica. Já existia antes
de ter nascido e continuará a existir depois de morrer. Esta própria
história, tal como a tradição das instituições existentes, tem caráter de
objetividade. A biografia do indivíduo é apreendida como um episódio
localizado na história objetiva da sociedade
78
.
Como toda a transmissão de conhecimentos/informação exige alguma espécie de
aparelho social, consideramos que a imprensa como instituição desempenha esse papel
na constituição de um perfil de discriminação racial recorrente na sociedade brasileira.
Ainda de acordo com os conceitos da sociologia do conhecimento, toda a transmissão
de significados institucionais implica procedimentos de controle e legitimação ligados à
própria instituição e são propagados dentro da própria sociedade, embora essa
transmissão tenha sempre um caráter dialético.
2.1.4 – Institucionalização e legitimação – a imprensa validando a história
Para a teoria do conhecimento, a legitimação produz novos significados que
servem para integrar os significados ligados a processos institucionais pré-existentes. A
legitimação explica e justifica a ordem institucional, dando “dignidade normativa” a
seus imperativos práticos, sendo não apenas uma questão de valores, mas também de
conhecimento.
A legitimação não apenas diz ao indivíduo por que deve realizar uma
ação e não outra; diz-lhe também por que as coisas são o que são. Em
outras palavras, o “conhecimento” precede os “valores” na
legitimação das instituições
79
.
78
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. Op. cit., p. 86.
79
Ibid., p. 129.
102
Segundo Berger e Luckman, é possível distinguir diferentes níveis de
legitimação: a legitimação incipiente, que diz respeito às objetivações lingüísticas que
acham-se presentes no sistema de reconhecimento das estruturas sociais, como as de
parentescos, e que são transmitidas e apreendidas desde a mais tenra idade e que estão
incluídas no vocabulário. O segundo nível de legitimação contém proposições teóricas
rudimentares, encontradas em esquemas explicativos altamente pragmáticos, como os
ditados populares, provérbios, máximas morais, lendas e histórias populares. Assim, o
indivíduo apreende um universo de significações pré-existentes e que ele terá como
certas em sua história. O terceiro nível de legitimação é o que consideramos incluir o
aparato midiático como um todo e a imprensa muito particularmente, já que contém
teorias explicativas pelas quais um setor institucional é legitimado em termos de corpo
diferenciado de conhecimentos. Os universos simbólicos constituem o quarto nível da
legitimação, e referem-se a realidades diferentes das pertencentes à experiência da vida
cotidiana.
A cristalização dos universos simbólicos segue os processos
anteriormente descritos de objetivação, sedimentação e acumulação de
conhecimento. Isto é, os universos simbólicos são produtos sociais
que têm uma história. Se quisermos entender seu significado temos de
entender a história de sua produção
80
.
Bourdieu considera que os sistemas simbólicos são instrumentos de
conhecimento e de comunicação, um poder de construção da realidade que tende a
estabelecer uma ordem gnoseológica — o sentido imediato do mundo e, em particular,
do mundo social. Consideramos que as instituições têm seus pilares em sistemas
simbólicos que as legitimam para além de suas histórias. A imprensa, como instituição,
tem seu alicerce no poder simbólico de representação de um sistema de ética, probidade
80
BERGER, P. L.; LUCKMAN, T. Op. cit., p. 133.
103
e defesa do bem comum que legitima e autoriza seu discurso na e sobre a sociedade. E
ele afirma, ao discutir e rever o conceito de força ilocucionária das palavras:
O que faz do poder das palavras e das palavras de ordem, poder de
manter ou de subverter, é a crença na legitimidade das palavras e
daquele que as pronuncia, crença que não é da competência das
palavras. O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma
transformada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada,
das outras forma de poder
81
.
81
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 15.
104
PARTE 3 LUGAR MARCADO OU A TAUTOLOGIA DA
DIÁSPORA – ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DA
IMPRENSA
A cor branca extrai a sua hegemonia do fato de deixar
presente na realidade inteira do indivíduo –seja ele rico
ou pobre – a possibilidade de exercício de uma
dominação, já que as identidades constroem-se no
interior das relações de poder assimétricas. Ela tende a
esconder, no essencialismo absolutista da pele, a relação
histórica de poder – tanto as situações imperiais ou
coloniais quanto as condições sociais para a hegemonia
socioeconômica de um grupo determinado, real ou
imaginariamente vinculado à civilização européia.
Muniz Sodré
Na terceira parte deste trabalho, em que analisamos especificamente o conjunto
dos textos jornalísticos sobre as cotas raciais nos vestibulares para as universidades
públicas, queremos ressaltar um aspecto que consideramos original na metodologia que
estamos utilizando, qual seja a de observar o material que compõe o recorte de acordo
com a seqüência cronológica, ao contrário do que encontramos comumente nas análises
que lidam com um corpus extraído dos jornais — geralmente recolhem textos avulsos e
estanques do contexto próprio das edições. Tendo como base as análises e observações
desenvolvidas ao longo deste trabalho, vamos perceber que a leitura seqüencial dos
textos jornalísticos poderá ela mesma nos indicar de maneira inequívoca a tomada de
posição do jornal em relação à situação em tela. A tomada de posição a que nos
referimos aqui não deverá ser confundida com a clássica “opinião do dono do jornal”
tão comum ao que se convencionou classificar como “teorias da conspiração”, ou seja,
linhas de raciocínio sobre a influência do jornalismo nos acontecimentos a partir dos
interesses do dono do jornal. O que pretendemos realçar é a construção natural do
discurso a partir de rotinas dependentes de um grupo de “enunciadores”, se podemos
105
classificar assim, que participam da elaboração do conjunto de enunciados a que
estamos denominando discurso da imprensa.
O corpus da pesquisa é composto pelo material resultante do acompanhamento
diário de todas as matérias relacionadas a cotas raciais publicadas nos jornais O Globo e
Folha de S. Paulo, abrangendo um período que vai de janeiro de 2002 a dezembro de
2002 (O Globo), e janeiro de 2003 a dezembro de 2003 (Folha de S. Paulo). A seleção
do período em questão deve-se, primordialmente, ao fato de o ano de 2002 ser
efetivamente a época em que a discussão ganha característica de um debate, com todos
os atores sociais e elementos discursivos envolvidos claramente evidenciados nas
reportagens. A opção por observarmos também o ano seguinte guarda apenas a intenção
de permanecer testando a metodologia da ordem cronológica, desta feita em outro
periódico, para tentar configurar o que consideramos de forma ampliada como o
discurso da imprensa no Brasil. Apresentaremos, para efeito de amostragem e análise,
todo o conjunto de textos de O Globo e o material relativo ao jornal Folha de S. Paulo
que será referido apenas de forma comparativa ao que observamos em O Globo. A
decisão por esta organização deveu-se à necessidade de reduzir a quantidade de
amostras, para evitar a ampliação excessiva desta apresentação.
Não nos escapa o risco de estarmos tomando o todo pela parte ou
superestimando o resultado de nossas observações. No entanto, na pretensão de abrir
caminhos para novas abordagens e apontar possibilidades de compreensão da inserção
do trabalho da imprensa no tecido social, ousamos inferir que nossas premissas indicam
uma semelhança de procedimentos entre os jornais de grande circulação como
constituintes da parte mais central do que se convencionou denominar por imprensa.
106
Relacionamos, então, por ordem cronológica de publicação, todos os textos das
seções de opinião — textos do editorial do jornal e artigos de opiniões externas —,
reportagens, colunas e cartas do leitor publicados em O Globo no ano de 2002 e
analisamos todos os textos publicados no jornal Folha de S. Paulo em 2003. A opção
por esses dois periódicos deve-se ao fato de serem dois dos jornais de maior circulação
no país com distribuição nacional, além de serem editados em duas capitais de
relevância cultural, social e econômica no Brasil. Os textos aqui publicados foram
editados de forma a destacar as suas partes mais relevantes para nossos objetivos e
evitar um material excessiva e desnecessariamente extenso à amostragem que
pretendemos produzir.
A análise discursiva dos textos jornalísticos, quando considerarmos necessária,
será feita com base em uma das categorias da Análise dos Discursos que consideramos
ser a mais adequada para cumprir os objetivos da pesquisa — a dos implícitos
discursivos. Nosso propósito é identificar uma ordem de discurso que se constitui no
discurso jornalístico e seu funcionamento em relação ao conjunto das edições sobre o
tema em foco. As marcas na superfície dos textos que possam indicar filiações
ideológicas relativas à questão racial serão buscadas nos textos representativos das
vozes autorizadas do próprio veículo — seus colunistas e articulistas. Consideramos
desnecessária uma abordagem com base nas diversas categorias da análise dos
discursos, já que tal perspectiva torna-se fundamental quando o objetivo é demonstrar o
funcionamento dos instrumentos teóricos da análise dos discursos em si. Ao nosso
propósito será suficiente a categoria dos implícitos.
107
3.1 – Teorias sociais e os estudos críticos da linguagem – Norman Fairclough
Aqui faremos uma breve apresentação das filiações e abordagens teóricas
utilizadas por Norman Fairclough na elaboração dos princípios da Análise Crítica de
Discurso e as principais correntes que contribuíram para a construção deste modelo, que
parte do princípio de que a linguagem está dialeticamente interconectada com outros
elementos da vida social e é parte irredutível dela, sendo também, por isso, uma prática
social. Nosso interesse não é reconstituir o caminho percorrido pelo autor, mas indicar
as principais linhas de pensamento com as quais a análise crítica se defrontou para
estabelecer suas próprias premissas.
A origem teórica dos estudos críticos da linguagem, mesmo que de uma
perspectiva questionadora, estão na lingüística, na sociolingüística, na pragmática, na
psicologia cognitiva, inteligência artificial e na análise da conversação e do discurso.
Segundo Fairclough, a lingüística “propriamente dita”, aquela que se ocupa dos estudos
da gramática em um sentido amplo — fonologia, morfologia, sintaxe e semântica —
apresenta uma concepção estreita dos estudos da linguagem, por dar pouca atenção às
práticas de linguagem, como a conversação ou a escrita, caracterizando-as como uma
“competência abstrata”, um sistema estático, estudado através de recortes sincrônicos de
tempo, ao invés de privilegiar a perspectiva histórica e dinâmica que transforma a
linguagem através do tempo.
Esses pressupostos e a negligência da linguagem prática resultam em
uma visão idealizada, que isola a linguagem da sua matriz social e
histórica, fora da qual ela realmente não existe. Correntes lingüísticas
é uma maneira a-social de estudar linguagem, que não tem coisa
alguma a dizer sobre poder e ideologia
82
.
82
FAIRCLOUGH, N. Language and power. 7a. ed. Londres: Longman, 1994. p. 7.
108
Como uma reação à lingüística tradicional e seu desinteresse pela
contextualização social da linguagem, a sociolingüística filia-se a áreas externas à
lingüística, como a antropologia e a sociologia, demonstrando correlações sistemáticas
entre variações na forma lingüística e as variáveis relacionadas ao status social dos
participantes e às situações específicas em que se desenvolve a conversação. A premissa
geral dos Estudos Críticos da Linguagem fundamenta-se nesse aspecto da
sociolingüística, que estabelece que a natureza da prática lingüística é constituída
socialmente. No entanto, Fairclough aponta que a desvantagem da sociolingüística está
na forte influência que recebe da concepção positivista das ciências sociais, tendendo a
observar e descrever os fatos através de métodos análogos aos das ciências naturais.
A tendência a tomar os fatos pelo seu valor de face está conectada
com o tratamento de classe social. O termo classe social é usado, mas
sempre se referindo ao que estaria mais bem colocado como ‘stratus
social’ – grupos de pessoas que são semelhantes entre si em termos de
ocupação, educação ou outros padrões de variáveis sociológicas. (...)
Classes sociais no clássico sentido marxista são forças sociais que
ocupam diferentes posições na produção econômica, que têm
interesses diferentes e antagônicos, e cuja luta é o que determina o
curso da história social. Em termos desta concepção de classe social,
os fatos sociolingüísticos podem ser vistos como a conseqüência da
luta de classe e representam um equilíbrio particular de forças entre
classes
83
.
Fairclough chama atenção, ainda, para o que classifica como falta geral de
sensibilidade desses teóricos para com a própria ordem sociolingüística que buscam
descrever, já que não percebem que estão eles mesmos afetando os fatos ao apenas
focalizar-lhes a existência, sem atentar para as condições sociais que o produziram e
para aquelas que os poderiam transformar.
83
FAIRCLOUGH, N. Op. cit., p. 8.
109
Algumas tendências na tradição anglo-americana da pragmática
84
demonstram já
um interesse semelhante ao que os estudos críticos da linguagem se propõem a
desenvolver. Um dos principais pontos de convergência está no que Austin e Searle
classificaram como atos de fala, onde a linguagem pode ser vista como ação, um
processo de interação onde os participantes agem a partir de um conjunto de direitos e
obrigações apropriados ao contexto. A idéia de emissão como ato é uma das bases da
teoria crítica. Mas as divergências superam as aproximações. Por exemplo, a tendência
da pragmática em conceitualizar a ação em termos de estratégia, atomisticamente
emanando do indivíduo, sempre para atingir seus objetivos, subestima a forma como as
convenções sociais constrangem e influenciam a formação das identidades, dando às
pessoas a falsa impressão de que determinados modos de falar ou escrever são fruto de
sua própria invenção, no intuito de construir uma estratégia discursiva adequada para
atingir objetivos imediatos. A contraparte deste pensamento é a excessiva ênfase sobre a
capacidade de as pessoas manipularem a linguagem com objetivos estratégicos, como
indica o autor:
O resultado é uma imagem idealizada e utópica da interação verbal
completamente contrastante com a imagem oferecida pelos CLS de
uma ordem sociolingüística moldada em lutas sociais e dividida por
assimetrias de poder. A pragmática sempre parece descrever o
discurso como ele deveria ser em um mundo melhor e não como ele
realmente é
85
.
84
Em oposição ao estruturalismo, a pragmática caracteriza uma concepção de linguagem e comunicação
fundada no entrecruzamento de teorias como a Semiótica de Peirce; a teoria dos atos de linguagem
sobre a dimensão ilocutória da linguagem, de Searle; os estudos das inferências que os participantes
tiram de uma interação, de Grice; e os trabalhos sobre enunciação lingüística, em Jakobson,
Benveniste, Culioli e outros. O conceito de pragmática inaugura-se com a divisão feita pelo filósofo
americano C. Morris, em 1938, para distinguir três domínios de apreensão da linguagem: sintaxe,
semântica e pragmática, esta última se interessando pela relação dos signos e seus efeitos com seus
enunciadores. Ver MAINGUENEAU, D. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte:
UFMG, 1998.
85
FAIRCLOUGH, N. Language and power, p. 10.
110
Fairclough aponta três importantes contribuições para a teoria social que
focalizam o papel da linguagem no exercício, manutenção e mudança no poder e que
trazem, por isso, substancial colaboração na construção de um modelo crítico de estudo
da linguagem. A primeira delas, os trabalhos sobre teoria da ideologia, que vêem a
linguagem como o locus da ideologia e, portanto, com grande influência sobre a
organização do poder. A segunda grande contribuição vem do trabalho de Michel
Foucault, que atribui um papel central ao discurso no desenvolvimento das formas
modernas de poder. E finalmente o trabalho de Jürgen Habermas, cuja teoria da ação
comunicativa enfoca a forma como “a comunicação comum e seus padrões sociais
apontam para uma outra instância de comunicação livre de certos constrangimentos”.
No entanto, a limitação dessas contribuições, pela perspectiva dos Estudos
Críticos da Linguagem (CLS, em inglês), é que são modelos teóricos que não foram
operacionalizados na análise de situações particulares de discurso, permanecendo
apenas como teorias. Uma das principais diferenças de abordagem dos estudos críticos é
justamente a análise das interações sociais, de forma a ressaltar os aspectos lingüísticos
e explicitar aí os elementos determinantes que geralmente permanecem ocultos em um
sistema de relações sociais, bem como os efeitos que podem ter sobre esse mesmo
sistema.
As abordagens críticas diferem das abordagens não-críticas não
apenas na descrição das práticas discursivas, mas também ao
mostrarem como o discurso é moldado por relações de poder e
ideologias, e os efeitos construtivos que o discurso exerce sobre as
identidades sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento
e crença, nenhum dos quais é normalmente aparente para os
participantes do discurso
86
.
86
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001. p. 31.
111
O objetivo é mostrar como a análise da linguagem em seu uso cotidiano,
incluída aí a linguagem profissional, nos ajuda a compreender questões de caráter
social. A abordagem teórica proposta no modelo de Fairclough sustenta-se, portanto, em
três pontos de referência: a linguagem, não como um constructu autônomo, um sistema
de sentenças, mas linguagem como discurso, como ação; a teoria social, no que se refere
à formação dinâmica das relações e práticas constituídas nas lutas pelo poder; e as
profissões como instituições, cujas convenções são ideologicamente moldadas por essas
mesmas relações e objetivadas através de discursos particulares.
3.2 – Quadro teórico da análise crítica proposta por Fairclough
Algumas das principais categorias do quadro teórico da análise crítica dos
discursos proposta por Fairclough são fundamentais para a compreensão de nossa
proposta:
Discurso: Fairclough considera a linguagem como uma forma de prática social,
usando o termo discurso como um modo de representação e um modo de ação a
partir do qual as pessoas agem sobre o mundo e umas sobre as outras, o que implica
dizer que a linguagem é uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social,
“existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social: a
última é tanto uma condição como um efeito da primeira.”
87
Sobre este aspecto, propusemos observar o jornalismo como prática social e a
imprensa, enquanto instituição, como estrutura. O trabalho jornalístico cotidiano de
seleção e construção dos discursos que circularão na sociedade é moldado não apenas
pelos constrangimentos impostos pelas regras técnicas características do trabalho
87
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social, p. 91.
112
jornalístico, e que são também, em última instância, uma lógica administrativa do
discurso elaborada pela instituição imprensa, mas também por princípios advindos deste
caráter institucional e que moldam a feição do trabalho jornalístico como prática social.
Podemos ver esta relação nas estratégias discursivas de auto-referenciação que reforçam
e promovem a manutenção desta imagem institucional conforme já referido.
Prática discursiva: envolve processos de produção, distribuição e consumo textual.
No caso do jornalismo, os textos são produzidos em contextos sociais específicos,
de acordo com rotinas complexas e peculiares de natureza coletiva, cujos
profissionais estão envolvidos em todos os estágios da produção. Fairclough
considera que há uma ambigüidade em relação às posições que podem identificar o
produtor no texto jornalístico, indicando a “fonte” externa ao jornal como um dos
possíveis principais produtores.
A esse respeito, tecemos considerações em seção anterior onde propusemos a
observação do jornalismo como prática social e a instituição imprensa como estrutura
de onde emana a ordem do discurso jornalístico, ou seja, a totalidade de práticas
discursivas dentro de uma instituição ou sociedade e o relacionamento entre elas. Por
essa perspectiva, encontrar o “produtor” na superfície textual da prática discursiva
significaria necessariamente excluir a possibilidade de prevalência de qualquer dos
atores sociais envolvidos na produção do texto, principalmente o jornalista.
Consideramos que o discurso da imprensa, assim denominado, deva ser incluído no caso
de discursos particulares onde é importante investigar a natureza das práticas sociais de
que fazem parte e a natureza de sua prática discursiva. Fairclough fornece as pistas por
onde empreender essa leitura, abordagem pela qual nos guiamos ao apontar para um
ângulo de observação diferenciado: as ordens de discursos, às quais já nos referimos, e
113
os efeitos ideológicos e políticos do discurso, baseados nos conceitos de ideologia e
hegemonia:
O conceito de hegemonia nos auxilia nesta tarefa, fornecendo para o
discurso tanto a matriz – uma forma de analisar a prática social à qual
pertence o discurso em termos de relações de poder, isto é, se essas
relações de poder reproduzem, reestruturam ou desafiam as
hegemonias existentes – como um modelo – uma forma de analisar a
própria prática discursiva como um modo de luta hegemônica, que
reproduz, reestrutura ou desafia as ordens do discurso existentes
88
.
O conceito de discurso em Fairclough é situado em uma concepção de poder
como hegemonia e em uma concepção da evolução das relações de poder como luta
hegemônica. Esta abordagem está ancorada nas contribuições clássicas do marxismo do
século XX, de Gramsci e Althusser, este último tendo fornecido as bases teóricas para o
debate sobre discurso e ideologia, lançando foco sobre a teoria da hegemonia de
Gramsci.
O conceito de hegemonia é o eixo de articulação da análise que Gramsci faz do
capitalismo ocidental e da estratégia revolucionária na Europa ocidental. Hegemonia,
conforme definição de Fairclough, é a liderança tanto quanto a dominação nos campos
cultural, econômico, político e ideológico de uma sociedade; é ainda o poder sobre a
sociedade como um todo de uma das classes economicamente definidas como
fundamentais em aliança com outras forças sociais; é a construção de alianças e a
integração — muito mais do que simplesmente dominação — das classes subalternas,
mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento; é também
um foco constante de luta sobre pontos de maior instabilidade entre classes e blocos
para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação/subordinação, que
assume formas econômicas, políticas e ideológicas.
88
FAIRCLOUGH, N. Op. cit, p. 126.
114
A natureza da prática discursiva varia de acordo com fatores sociais, mas
constitui-se, segundo Fairclough, de três dimensões: interdiscursividade e
intertextualidade manifesta, que focalizam a produção do texto; cadeias intertextuais,
referindo-se à distribuição do texto, e coerência, o consumo do texto. Já nos referimos
aos dois primeiros conceitos anteriormente. O conceito de coerência, para o autor, é o
centro de muitas explicações sobre a interpretação, sendo uma propriedade que os
intérpretes impõem ao texto:
Os produtores interpelam os sujeitos intérpretes que são ‘capazes’ de
desenvolver relevantes suposições e de fazer as conexões que
produzem leituras coerentes. Esta visão da coerência e de seu papel na
interpelação ideológica pode ser estendida para tomar em
consideração a intertextualidade
89
.
Condições da prática discursiva: por essa via podemos especificar as práticas
sociais de produção e consumo de texto — se é produzido/consumido individual ou
coletivamente; se há estágios distintos de produção; onde está a figura do autor. Este
aspecto parece bastante claro no que se refere à produção jornalística.
Metáfora: as metáforas definem o modo como construímos nossa realidade;
estruturam a maneira como pensamos e agimos, e denunciam nossos sistemas de
conhecimentos e crença.
As metáforas penetram em todos os nossos tipos de linguagem e em
todos os tipos de discurso, mesmo nos casos menos promissores,
como o discurso científico e técnico. Além disso, as metáforas não são
apenas adornos estilísticos superficiais dos discursos. Quando nós
significamos coisas por meio de uma metáfora e não de outra, estamos
construindo nossa realidade de uma maneira e não de outra
90
.
Intertextualidade manifesta: é a combinação intencional de elementos de textos
outros em um texto e se organizam de forma seqüencial, quando diferentes textos ou
tipos de discurso se alternam em um texto; encaixada, quando um texto ou tipo de
89
FAIRCLOUGH, N. Op. cit., p. 171.
90
Ibid., p. 241.
115
discurso está claramente contido dentro de um outro; e mista, em que tipos de
discursos estão entremeados em um texto de forma mais complexa e menos
identificável. Uma das abordagens da intertextualidade manifesta empreendidas por
Fairclough refere-se ao estatuto das pressuposições. As pressuposições, em
Fairclough, são proposições tomadas pelo produtor do texto como já estabelecidas,
como um conhecimento compartilhado que garante a compreensão do discurso.
Outros teóricos referem-se ao conceito como implícito. Milton José Pinto, em
artigo intitulado Discurso, implícitos e ideologia: — “As ONGs e a visão arcaica da
relação entre o público e o estatal”, esclarece gênese do conceito na matéria e o
tratamento nos diversos autores:
De certa forma, as ciências sociais sempre se referiram em suas
análises a implícitos nos textos, em geral de uma forma um pouco
impressionista, sem levar em conta as características formais, lógico-
semânticas e pragmáticas que os produzem. Essas características vêm
sendo investigadas, pelo menos desde Gotlob Frege (1892), em seu
famoso artigo Über Sinn und Bedeutung, onde pela primeira vez se
faz referência às pressuposições existenciais (ver abaixo), no âmbito
da lógica, da lingüística e da pragmática. O resultado é uma
terminologia às vezes um pouco confusa, em que conceitos como
inferência, pressuposições lógico-semânticas e pragmáticas,
implicação lógica e implicaduras conversacionais nem sempre são
definidos da mesma maneira por este ou aquele pesquisador, dentro
desta ou daquela disciplina, principalmente pelo fato de alguns
reconhecerem, e outros não, a existência de uma lógica própria aos
textos construídos em uma língua natural (chamada de lógica natural),
com diferenças significativas em relação à lógica formal-simbólica
dos lógicos profissionais
91
.
Em nosso trabalho, realçaremos apenas os aspectos referentes ao domínio dos
implícitos, embora lançando mão eventualmente de outras categorias que se façam
imprescindíveis à compreensão da análise. Usaremos também, acompanhando as
referências de Pinto, a denominação implícitos ao invés de pressuposições.
91
PINTO, M. J. Discurso, implícitos e ideologia: - “As ONGs e a visão arcaica da relação entre o
público e o estatal”. Rio de Janeiro: NUPEC, 2001.
116
Pinto distingue, no artigo citado, dois tipos de implícitos: os que podem ser
recuperados automaticamente a partir da própria formulação do enunciado sem
mobilizar recursos contextuais (as chamadas pressuposições), mesmo que numa
segunda análise muitos deles se revelem como traços interdiscursivos (os chamados pré-
construídos), e aqueles cuja recuperação mobiliza necessariamente elementos
contextuais (os chamados subentendidos), que nem sempre são recuperados por
qualquer receptor (como insinuações, alusões e outros modos indiretos de falar).
A implicitação é uma propriedade marcante dos textos, e uma
propriedade de importância social considerável. Todas as formas de
sociabilidade, comunidade e solidariedade dependem de significados
que são compartilhados e podem ser tomados como dados, e nenhuma
forma de comunicação ou interação social é concebível sem alguma
espécie de “base comum”. Por outro lado, a capacidade de exercer
poder, dominação e hegemonia social inclui a capacidade de moldar
de uma maneira significante a natureza e o conteúdo desta “base
comum”, o que torna a implicitação e as suposições uma questão
importante com respeito à ideologia
92
.
Para o teórico, as convenções, ou esta “base comum”, incorporam no discurso as
suposições ideológicas que são tidas como simples senso comum e que contribuem para
sustentar direta ou indiretamente as relações assimétricas de poder. Tais suposições
estão implícitas, sendo o senso comum apenas a sua parte mais visível nos discursos e
práticas sociais, da qual depende o funcionamento e efetividade da ideologia.
As questões que Fairclough se propõe ao tratar da questão dos implícitos são as
que vão guiar nossa intenção de perceber de que forma a ideologia presente no senso
comum do discurso — no caso, discurso jornalístico — vai repercutir sobre o curso da
luta por igualdade racial: até que ponto são as ideologias variáveis no seio da sociedade
e como tais variações se manifestam no discurso? Qual a relação entre mudança
92
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social, p. 55.
117
ideológica e luta social? Como é gerado o senso comum ideológico no curso da luta
social e como o discurso é afetado por isso?
Além disso, a operação da ideologia pode ser vista em termos de
modos de construir textos que constante e cumulativamente ‘impõem
suposições’ sobre os intérpretes e produtores dos textos, sem que
normalmente nenhum dos dois esteja consciente disso
93
.
O teórico da comunicação Adriano Duarte Rodrigues define os implícitos como
um conjunto das significações que resultam daquilo que é formalmente expresso, e faz
uma importante distinção entre implícitos, interditos e não-ditos. Os não-ditos, ao
contrário dos implícitos, não resultam daquilo que é formalmente expresso, mas do
conjunto de significações pressupostas ou implicadas na relação comunicacional. Já os
interditos remetem para aquilo “que sendo formal ou informalmente excluído da
expressão, é, no entanto, significado no espaço intersticial do discurso enunciado, no
espaço vazio entre as expressões do enunciado”
94
.
Em resumo, estas são as orientações teóricas pelas quais observaremos o
conjunto dos textos jornalísticos sobre a implementação de cotas raciais nos vestibulares
das universidades públicas.
3.3 - A polêmica das cotas raciais e a divisão do trabalho nas editorias dos jornais
Ao ler os jornais diários com a perspectiva de apenas um dia — aquele em que
estamos sendo imediatamente informados — não temos noção, muitas vezes, do que
estamos lendo no conjunto das edições. Assim como a análise do discurso nos indica
que podemos ler as ideologias nos textos, inferimos que, no discurso jornalístico,
podemos também perceber a informação ideológica transmitida no conjunto das
edições.
93
FAIRCLOUGH, N. Language and Power, p. 83.
94
RODRIGUES, A. D. Estratégias da Comunicação, p. 68.
118
Muniz Sodré comenta a forma como se processa a transmissão e enraizamento
de uma cultura marcada predominantemente pelos padrões “real ou imaginariamente”
europeizados, indicando a forte influência que a mídia (“jornais, radiodifusão, editoras,
agências de publicidade, etc.”) tem sobre o processo:
A mídia é o intelectual coletivo desse poderio, que se empenha em
consolidar o velho entendimento de povo como “público”, sem
comprometer-se com suas causas verdadeiramente públicas nem com
a afirmação da diversidade da população brasileira
95
.
Nossa compreensão da problemática racial brasileira acompanha as observações
de Sodré, insistindo na premissa de que devemos observar o trabalho da imprensa de
forma diferenciada em relação ao restante da mídia, por estar, a imprensa mesma, em
posição assimétrica de poder em comparação com as outras mídias. No caso dos jornais
que estamos trazendo à análise, são tidos como de forte influência entre os formadores e
propagadores de opinião, com um lugar de fala dificilmente sujeito a contestações —
como de resto toda a imprensa — que tem um padrão conservador que se reproduz até
mesmo em suas normas técnicas, provocando um engessamento no que diz respeito à
possibilidade de reformulações de tratamento de determinadas questões com vistas a
mudanças sociais.
Por outro lado, acreditamos que a partir das reflexões elaboradas na segunda
parte deste trabalho, apenas observando a seqüência organizada das edições, poderemos
compreender exatamente como se dá a participação da imprensa em todo o processo de
construção social da realidade, iluminando-nos a perspectiva de novos caminhos que
possam contribuir para que o senso humanístico, livre de preconceitos e voltado para o
bem comum que notamos no discurso auto-referencial da imprensa possa se constituir
em prática real.
95
SODRÉ, M. Claros e escuros – identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 244.
119
Optamos, também, por agregar os comentários descritivos do funcionamento das
editoriais a cada texto a elas relacionado. Pretendemos, com essa metodologia,
possibilitar a leitura orientada pelas reflexões teóricas dos primeiros capítulos à análise
do discurso propriamente dita. Ressaltamos que nosso interesse é configurar um
discurso jornalístico que possa ser visto como um fragmento do que chamamos
discurso da imprensa. Portanto, a análise dos diversos textos que compõem essa
interdiscursividade da imprensa apenas nos atende quando passam a contribuir para esta
constituição desse discurso amplo. Consideramos que, a partir dessa orientação, estamos
já engendrando uma perspectiva crítica ao nosso trabalho.
3.3.1 – Editoria de Economia – mercado e direitos humanos se encontram no
discurso
A primeira referência às cotas raciais no jornal O Globo, no ano de 2002,
aparece na coluna Panorama Econômico, assinada pela jornalista Miriam Leitão. É
nesta editoria, mais precisamente nesta coluna e por esta jornalista que tem início o
debate propriamente dito, organizando em cena uma voz autorizada, dentre as vozes
autorizadas que conformam o discurso da imprensa, que assume a defesa intransigente
das ações afirmativas e da necessidade de a sociedade assumir que é racista. No texto da
coluna, transparecem argumentações de naturezas diversas: humanas, políticas,
econômicas, conformando um pólo de resistência ao conjunto do discurso do jornal
sobre a questão. Editamos o texto, preservando as partes que oferecem um material de
análise de fácil identificação. À exceção das cartas de leitores, que reproduzimos
exatamente conforme foram editadas por que são textos curtos, optamos por selecionar
partes das outras amostras dada a quantidade de textos que optamos por reproduzir. As
frases que submeteremos à observação estão destacadas em cinza:
120
PAGAR PARA VER
O antropólogo Roberto da Matta disse que o Brasil tem que "pagar para ver". Foi o
que disse quando perguntei se a discussão sobre ações afirmativas para negros não poderia
provocar conflitos raciais. "Nunca tivemos no Brasil até hoje conflito racial, nem ódio",
tranqüilizou. Sobre as cotas raciais ele disse que "há momentos em que tem que se fazer isto"
para avançar.
Em 2001 o debate sobre o tema foi marcante. (...) Recebi inúmeros e-mails. Alguns
discordavam. (...) Houve e-mails agressivos e racistas, que deletei sem responder (...). Houve
leitores perplexos: "por que você entrou neste assunto?" É que não quero ficar prisioneira da
lógica do hedge-swap-spread. Além do mercado financeiro, há um mundo, vasto mundo, que me
emociona e mobiliza. E não fui eu que entrei no assunto, ele é que entrou na agenda nacional.
Entrou tarde, mas, quem sabe, a tempo de evitar o desastre do conflito racial.(...)
Estive em debates, seminários, mediei mesas-redondas e ancorei programas com
pessoas que querem aprofundar esta discussão. Todos interessados em ir além do que está
estabelecido como as verdades brasileiras: de que não há racismo; de que as diferenças são
apenas sociais; de que nos misturamos na miscigenação e não há uma fronteira entre o Brasil
negro e o branco.
Existe um fosso intolerável. Nosso mundo perfeito, construído sobre as piedosas
mentiras que dissemos de nós por um século, ruiu em 2001. Era falso. É doloroso o caminho do
autoconhecimento, mas é ao mesmo tempo libertador. O Ipea foi fundamental neste processo
quando produziu estatísticas reveladoras.
Houve um dia em que, ao final de um programa na Globonews sobre o tema, fui
cercada no estúdio por colegas de trabalho, na maioria negros, querendo continuar a conversa.
Com eles aprendi. Todos tinham dúvidas, inquietações e histórias de discriminação que têm
sofrido nos ônibus, nas ruas, nos clubes, nos bancos. A maioria sofrera, ou sabia de um amigo
que sofrera, constrangimentos ao entrar em bancos. Um deles contou a história de um amigo
que tivera de tirar várias peças de roupa do corpo para entrar numa agência. Atrás dele estava
um branco armado que não foi importunado. Era um policial, que lá dentro exibiu a arma para
provar o estranho critério da porta giratória. Um deles, quando vai a supermercado ou loja,
mostra, antes que alguém peça, o interior da sua mochila. Foi criticado pelos demais por ter
um comportamento passivo. Um deles se lembra do dia da sua infância em que foi o único,
entre seus amigos, a ser barrado na entrada de um clube. O porteiro respondeu à sua dúvida de
criança, passando a mão sobre a pele do braço indicando que ali estava o motivo: "gente assim
não entra aqui".
O racismo é uma doença da alma que não acaba com ações afirmativas. Elas são
apenas a forma de derrubar barreiras artificiais à ascensão dos negros brasileiros. Têm
limitações e imperfeições. Têm que ser criativas, flexíveis, diferenciadas.
As cotas que o ministro Raul Jungmann adotou no Ministério e começam a se espalhar
pelo governo foram um nervo exposto. Recebi e-mails de leitores que perguntam sinceramente
se isto não revoga o princípio de que são todos iguais.
(...) Em 2001 o debate foi alavancado pela Conferência da ONU, pela atitude do
governo tocando na ferida inconfessável. Quando a discussão se aprofundar, muitos vão achar
que estão confirmados seus temores: de que foi importado um problema inexistente. Este
problema não veio de fora. É nosso. Sempre foi. Mas estava soterrado. O acirramento do
debate é o remédio, mas muitos acharão que ele é que criou a doença. Não será uma discussão
fácil e os próximos anos mostrarão isto. Mas ela é inevitável e decisiva. Estamos escolhendo se
seremos a bela mistura que sempre quisemos ser ou se manteremos os negros apartados. Se
teremos uma economia que integra os negros ao mercado de trabalho e ao mercado
consumidor ou se nos amesquinharemos dando apenas a uma parte do país o melhor da
economia. Se teremos uma democracia ampla e irrestrita. Ou se será uma democracia
mutilada: ampla para os brancos; restrita para negros e pobres.
121
Fonte: LEITÃO, Miriam, O Globo, p. 20, 2 jan. 2002. Coluna Panorama Econômico
Comentário: A polêmica racial e as premissas sobre racismo suscitadas a partir
da intenção do Governo Fernando Henrique Cardoso de instituir cotas para promover o
acesso de negros às universidade públicas é nominalizada e metaforizada no discurso da
imprensa de diversas maneiras. No artigo em questão, as expressões que mais se
destacam são: conflitos raciais, racismo, desastre, discriminação, doença, doença da
alma, nervo exposto, ferida inconfessável, problema, democracia mutilada.
O processo de nominalização, segundo Fairclough, é um tipo de metáfora
gramatical que representa processos como entidades, pela transformação do texto que os
descreve em um tipo de nome. Por e exemplo, a palavra “racismo” que é a mais usada
ao longo da discussão, guarda um significado amplo em que estão envolvidos tanto o
lado negro como o branco da questão e suas próprias histórias; da mesma forma a
palavra “discriminação”, que tanto se refere aos argumentos como aos contra-
argumentos em disputa, ambos guardando um conjunto de significações próprias. As
nominalizações sempre excluem uma série de proposições e, normalmente, os agentes
do processo em questão. É da ordem do ideológico e pode ser compreendido como a
base originária de um pensamento, quando oculta o processo histórico gerador dos fatos
em questão.
“O antropólogo Roberto da Matta disse que o Brasil tem que “pagar para ver” —
prática da intertextualidade, comum à construção do texto jornalístico, configura-se aqui
como uma voz autorizada (confirmada pela referência à sua formação científica)
corroborando a afirmação da jornalista. Em outros casos, as diferentes vozes de outros
campos de saber também podem contribuir para estabelecer o contraditório, parte
fundamental da técnica jornalística. Neste caso, como há tomada de posição da
122
jornalista, a voz autorizada confirma textualmente a linha de raciocínio pretendida,
embora o discurso implícito estabeleça uma contradição aparentemente não pretendida:
1. “pagar para ver”: é uma expressão oriunda do jargão do jogo de pôquer, onde um
dos participantes aposta em cartas que desconhece, mas que confia que poderão ser
aquelas que o favorecerão. Sobre a pergunta “
se a discussão sobre ações afirmativas para
negros não poderia provocar conflitos raciais”, a resposta foi a dúvida quanto à
possibilidade de conflitos raciais, embora com a concordância de que o debate seria
oportuno. Na pergunta também está implícito o reconhecimento da hipótese do conflito
racial.
2. “Nunca tivemos no Brasil até hoje conflito racial, nem ódio”, tranqüilizou.” — o
texto aponta para o que seria a preocupação central suscitada pela polêmica das cotas —
a perspectiva de que possa haver “conflito e ódio racial”. O verbo tranqüilizar,
transitivo direto, sem o complemento, não deixa claro quem estaria “intranqüilo” com a
ameaça de conflitos raciais — se todos os participantes do debate em questão, ou se a
própria interlocutora.
3. (...) “quem sabe, a tempo de evitar o desastre do conflito racial.” — ao justificar para
os leitores a sua participação no debate e afirmar que foi o tema que entrou para a
agenda nacional, motivo pelo qual o aborda em coluna de Economia (motivo do
estranhamento dos leitores), mais uma vez a preocupação com um conflito racial volta à
cena. O verbo evitar traz implícito a idéia da existência da ameaça; “quem sabe, a
tempo” infere a emergência de algo já em curso: o conflito racial.
4. “O Ipea foi fundamental neste processo quando produziu estatísticas reveladoras.”
— o assunto, que até este ponto apresentava contornos de caráter de solidariedade
humana, revela sua fonte principal, onde a avaliação sócio-econômica é determinante. O
123
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, vinculado ao Ministério de Planejamento,
Orçamento e Gestão, traçou um mapa da situação sócio-econômica da população negra
no Brasil. O estudo intitula-se Desigualdades raciais no Brasil e levanta dados
referentes a renda e pobreza, trabalho infantil, habitação, desemprego, mercado de
trabalho, educação.
5. “O racismo é uma doença da alma que não acaba com ações afirmativas.” — aqui, a
questão do racismo é posta como insolúvel, já que a “doença” é de caráter imaterial,
resistente a ações concretas, é improvável a solução através de “remédios” materiais,
como as ações afirmativas, conforme anuncia o texto. Quando a questão é transportada
para o terreno do inexorável, resta agir sobre a face econômica do problema, o que se
identifica por “derrubar barreiras à ascensão dos negros brasileiros”, deixando
implícito o sentido de preocupação com avanço de condições de expansão de mercado,
já que a questão do “racismo”, posta como doença de nível imaterial, é dada como
encerrada pelo fato de não ter solução. O que significa dizer que o mercado poderá
servir como paliativo para a questão da discriminação. É inevitável a comparação com
os argumentos que atrelavam o atraso da entrada do Brasil na modernidade à condição
do negro como escravo na sociedade do século XIX. Argumentos econômicos, que
geralmente não trazem a contrapartida da inclusão social.
7. “Estamos escolhendo se seremos a bela mistura que sempre quisemos ser ou se
manteremos os negros apartados. Se teremos uma economia que integra os negros ao
mercado de trabalho e ao mercado consumidor ou se ...”- o implícito, neste enunciado,
é o retorno da ilusão da democracia racial, perceptível emmistura que sempre
quisemos ser”, mas que até mesmo a polêmica instalada desmente. Outro aspecto é a
identificação clara da solução da questão dos negros pela lógica da inserção no
124
mercado, operada pela nominalização dos processos: “mercado de trabalho” e
“mercado consumidor”, que logo adiante encontra definição comparativa em
“democracia ampla e irrestrita”.
No que se refere a artigos de opinião, a Editoria de Economia, através de suas
duas principais jornalistas — Miriam Leitão e Flávia Oliveira — vão empreender a
defesa intransigente das políticas afirmativas para negros, como veremos adiante.
3.3.2 – Cartas do Leitor – a construção do discurso da opinião pública sobre as
cotas
Decreto regulamenta a reserva de 40% das vagas das duas universidades estaduais
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e a Universidade Estadual do Norte
Fluminense (Uenf) terão já a partir do ano que vem 40% das vagas dos cursos de graduação
reservadas para estudantes negros e pardos.
Fonte: O Globo, p. 18, 6 mar. 2002
A notícia da primeira ação concreta sobre a reserva de vagas para estudantes
negros acontece no Rio de Janeiro, coincidentemente o último estado do país a abolir o
tráfico de escravos e onde a reação às cotas tem sido mais ostensivamente retratada pela
imprensa. Quanto à parte referente às reportagens factuais, como a do exemplo acima,
percebemos que apenas relatam tecnicamente os acontecimentos, de acordo com as
regras que regem o jornalismo. Chamamos a atenção para a titulação das reportagens.
Como já indicamos antes, os títulos têm a função de explicitar objetivamente e de forma
atraente — para “vender” — o assunto. No entanto, o redator e o editor podem escolher,
em um leque relativamente restrito de opções, a forma como vão destacar determinado
assunto. No caso da reportagem que anuncia a regulamentação da reserva de vagas para
negros, temos um título cujo sujeito da oração é “decreto”. Não é necessário conhecer
as técnicas de produção do texto jornalístico para percebermos que a notícia poderia ser
125
dada de algumas outras maneiras, ressaltando outros sujeitos do acontecimento, como
“universidade”, “governador”, “negros e pardos”. O fato de se destacar a parte
burocrática do acontecimento — “decreto regulamenta”, o que se poderia ter como uma
certa redundância observada até mesmo nos manuais, equivalente a “polícia prende
assaltante...”, “ladrão rouba carro...”, “assassino mata homem...” — apresenta-se como
evidência de sentido; onde o indivíduo/redator/editor é interpelado em sujeito para a
produção do dizer e da constituição dos sentidos no discurso jornalístico:
O sentido é assim uma relação determinada do sujeito – afetado pela
língua – com a história. É o gesto de interpretação que realiza essa
relação do sujeito com a língua, com a história, com os sentidos. Esta
é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação da
língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há
sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente
ligados
96
.
As palavras fazem sentido e designam coisas a partir de um conjunto de
formações discursivas em suas relações com a história. É o efeito da memória, da
determinação do interdiscurso, na formação do sentido. A escolha por dizer “decreto
regulamenta” em relação às formações jornalisticamente possíveis “negros têm...”,
“governador institui...” ou outras equivalentes constitui-se em uma marca discursiva do
que no conjunto vai se apresentar como o discurso do veículo. A palavra “decreto”
dispensa maiores investigações que confirmem seu peso negativo, guardando uma
memória de autoritarismo, ainda que em determinadas circunstâncias o instituto do
decreto tenha servido a causas amplamente aprovadas pela sociedade. Portanto, está
implícito no título da reportagem a interpretação do acontecimento como uma medida
arbitrária que impôs por instrumento autoritário (decreto) e contra a vontade —
manifestada na polêmica “administrada” pelo jornal — da maioria da sociedade,
96
ORLANDI, E. P. Análise de discurso..., p. 47.
126
excluídos daí a maioria dos negros. Mas o “decreto” não põe fim à disputa pela
hegemonia da decisão sobre o acesso ou não de negros às universidades públicas.
Temos a primeira manifestação de leitores na sessão Cartas do Leitor, no dia
seguinte à publicação da matéria anunciando que um decreto impôs — sim, porque
decretos são impositivos — que negros terão uma reserva de 40% da vagas nas
universidades estaduais. O e-mail refere-se ao decreto 30.766, do então governador do
estado Anthony Garotinho, regulamentando a Lei 3.708 que reserva as vagas para
negros e pardos na UERJ e na Uenf.
Segregação racial
O decreto que garante a negros e pardos vagas em universidades estaduais em nada vai
resolver os problemas educacionais das camadas mais pobres da população. A dificuldade de
acesso se dá muito mais por fatores sociais do que por motivações raciais. Cópia de políticas
americanas, a questão das cotas foi necessária nos Estados Unidos porque os negros foram
segregados oficialmente por políticas públicas. Um país como o Brasil, onde mais da metade
da população é mestiça, como definir quem é negro? A pele? A hereditariedade? Sou neto de
uma negra, mas tenho pele branca. Isso me faz negro ou branco? Quem terá o direito de me
separar das minhas raízes, da minha cultura, ao dizer que, pela minha pele clara, eu não teria
direito a uma vaga reservada aos negros? O Rio vai criar uma política de segregação racial,
em que a condição social é menos importante que a cor da pele.
MARCO FONSECA
Kearny, New Jersey, EUA
8 mar. 2002, p. 6.
Comentário: Aqui podemos observar que a construção do discurso que circula na
imprensa e que podemos considerar como “da” imprensa é dependente de várias dobras
discursivo-ideológicas que incluem todo um conjunto de profissionais e seus próprios
conceitos a respeito da pauta em produção. Neste caso, não cabe a observação do
enunciado em seus detalhes, já que, como parte de uma organização discursiva da
imprensa, o que nos interessa é basicamente o posicionamento do texto em relação ao
assunto e em relação aos demais textos publicados. A procedência da carta também
indica a noção implícita de “conhecimento de causa” por vir de um país onde as cotas já
127
estão estabelecidas e em condições de serem observadas em seus diversos aspectos,
servindo como exemplo. Neste caso, exemplo negativo, já que o leitor justifica a
incoerência de se aplicar o modelo por inferir que aqui os negros não estão alijados das
políticas públicas.
Fausto Neto comenta, a respeito da sessão de Cartas do Leitor, que os jornais
mantêm duas práticas pelas quais a sociedade pode ter acesso a um espaço de fala:
Nesse caso, existem pelo menos duas práticas, no caso dos jornais,
mediante as quais são definidos rituais discursivos pelos quais a
sociedade pode, no âmbito da própria engrenagem midiática, ter
acesso a um espaço de fala e, nesse caso, pronunciar-se sobre
diferentes temas de atualidade. Referimo-nos, especificamente às
“Cartas dos Leitores” e aos artigos assinados, ambos publicados nas
edições jornalísticas”
97
.
Analisando estes espaços como de interação entre a imprensa e a esfera da
opinião pública, Fausto Neto considera que os jornais buscam, através da manutenção
dessas seções, criar condições “para que, em suas páginas, se espelhe o próprio
pensamento da sociedade”.
A seção de Carta do Leitor está submetida a um critério de edição que se refere
fundamentalmente a espaço, ficando a cargo do redator destacado para a tarefa a edição
do conjunto das cartas ou e-mails, não sendo comum uma supervisão editorial da
seleção, com exceção dos temas “importantes” como veremos adiante. Embora
apontando “constrangimentos próprios” das políticas editoriais e “problemas
importantíssimos que se referem à construção dessa mediação”, Fausto Neto contorna a
problemática da representação da opinião do leitor e recomenda o tema para estudos
futuros mais aprofundados. Assim como Fausto Neto, acreditamos que é essencial saber
como se dá o processo de produção nesta editoria, para conhecermos como se dá a
97
NETO, A. F. Comunicação é mídia impressa – estudos sobre a AIDS, p. 93.
128
construção do discurso do leitor nos jornais. Para tanto, entrevistamos o jornalista
Venerando Carlos Martins, que foi responsável pela edição da seção Cartas do Leitor do
jornal O Globo. Devemos observar, no entanto, que a prática é a mesma em qualquer
jornal. Passamos à transcrição:
Entrevista: Venerando Martins, O Globo.
Funções na redação: redator e depois subeditor da editoria Rio entre 1986 e 1990;
redator da editoria Nacional entre 2000 e 2002 e redator da Secretaria de Redação de
2003 até a presente data.
1. Qual a média de cartas e e-mails de leitores que chega ao jornal por edição?
VM: Recebemos cerca de 300 e-mails por dia (no dia desta entrevista, por exemplo,
estão para ser abertos 306, contando spams, mensagens de opinião, respostas de
órgãos públicos a eventuais matérias, pedidos de ajuda etc.). Nos fins de semana
(sábado, domingo e segunda) acumulam-se até 1.000 e-mails. Muita gente prefere o
fim de semana para enviar suas opiniões ao jornal. Também por dia chegam, em
média, 10 faxes e poucas (em torno de 5) cartas enviadas por meio dos Correios.
2. Existe um editor responsável pela seção ou o trabalho é feito exclusivamente pelos
redatores?
VM: O grupo é formado pelo editor das Cartas dos Leitores (Antonietta Ramos) e
dois redatores, que fazem o Painel dos Leitores (p. 2) e as Cartas dos Leitores (p. 6.),
separam as mensagens aproveitáveis, descartam as inaproveitáveis, encaminham aos
respectivos editores as mensagens relativas a assuntos abordados pelas editorias
(Nacional, Rio, Economia, Internacional, Esportes, Segundo Caderno e
suplementos).
129
3. A decisão da edição desse material é exclusivamente da equipe da editoria?
VM: Os assuntos mais polêmicos têm de passar pelo diretor de redação que orienta a
editoria quanto ao tratamento a ser dado. Por exemplo, se o assunto vai merecer toda
a edição das Cartas dos Leitores, o número de cartas publicadas e por aí vai.
4. Que tipo e orientação?
VM: Há orientações, mas que surgem de acordo com o assunto e o enfoque dado
pela diretoria da redação. Mas isto ocorre somente com os assuntos mais
importantes. O dia-a-dia da cidade, por exemplo, queixas contra tiroteios em favelas,
trânsito ruim etc, são decididos pelos próprios redatores e a editora.
5. Poderia descrever a rotina do jornalista responsável pela seção?
VM: Primeiramente, abrir a correspondência para ver qual assunto está provocando
mais reações junto aos leitores e consultar o diretor de redação sobre como ele sairá
na seção no dia seguinte. Por exemplo: no caso da publicação de uma resposta de
uma autoridade a um assunto tratado pelo jornal, temos de consultar o editor da área
e depois ver como será tratada a carta da resposta (tamanho, diagramação).
6. O jornal recebeu muitas cartas sobre a questão das cotas raciais?
VM: Sim, muitas, e este é um assunto recorrente. Independentemente de haver
alguma notícia específica sobre o assunto, sempre há leitores se manifestando a favor
ou contra as cotas.
7. Qual o índice aproximado das que eram contra e a que eram a favor da medida?
VM: É muito difícil dar uma resposta, já que teria de ser consultado o arquivo, que já
foi deletado (os e-mails, mesmo os que não foram aproveitados, são preservados por
dois meses. Depois é necessário apagá-los para não sobrecarregar o sistema, tal a
quantidade acumulada). Mas lembro-me de que as críticas são constantes à idéia de
130
abrir a universidade aos menos preparados, sob a alegação de uma queda na futura
qualidade dos profissionais. Um número muito grande de leitores, principalmente
professores e gente ligada à educação, defende o aprimoramento, primeiro, do ensino
básico para, aí sim, dar chances iguais a todos de disputa.
8. Há uma preocupação, ao selecionar as cartas, de tentar reproduzir a opinião que
eventualmente o jornal já tenha manifestado sobre algum tema?
VM: Não, pela minha experiência pessoal. As mensagens (e-mails, cartas e faxes)
podem incluir críticas às opiniões dos articulistas do Globo ou à posição do jornal.
Mas as críticas chegam em maior número para as autoridades (prefeito, governadora,
Lula, Imposto de Renda, aposentadorias do INSS, violência, insegurança nos bairros
— numa ordem aleatória).
9. Diria que a seção de cartas consegue refletir a opinião pública sobre determinado
assunto?
VM: Com absoluta certeza. Quem escreve para o jornal são os leitores mais
observadores, de maior leitura, os que não têm medo de assinar o próprio nome numa
crítica a uma autoridade. Pode-se discordar das opiniões deles, mas certamente não
são os alienados.
10. Há essa preocupação por parte do jornal ou o rigor do horário de fechamento
elimina a possibilidade?
VM: O jornal se propõe a refletir a manifestação dos leitores. A seção Cartas dos
Leitores reflete os assuntos veiculados pela mídia nos dias imediatamente anteriores.
* * *
O que podemos perceber, a partir da entrevista, é que há uma orientação do
diretor de redação em assuntos considerados “mais importantes” e que a polêmica em
131
torno das cotas ou do racismo não estava arrolada nesta categoria. Neste caso, é mais
provável que tenha havido mais interferência dos próprios redatores na construção desta
representação de discurso público, configurada por sua tendência e ponto de vista sobre
o tema — o que é mais fácil de ocorrer devido à pressão própria da rotina da editoria,
que obriga os jornalistas a selecionar um número reduzido de opiniões em um conjunto
amplo.
Por mais que esteja atento à necessidade de publicação dos “dois lados da
questão” — técnica que configura a chamada “imparcialidade” — a simples seleção de
um texto “a favor” em um universo de textos “a favor” e a seleção de um texto “contra”
em universo também amplo de textos “contra” já configura a posição do redator na
tomada de decisão. Como o trabalho é realizado por um grupo de redatores, podemos
inferir daí diversos níveis de interdiscursividade na composição do discurso jornalístico
que configura a representação da opinião pública, na seção Cartas do Leitor. Diante
disso, acreditamos que a quantidade e a qualidade das cartas selecionadas constitui uma
configuração de um discurso outro com tendências ideológicas específica.
3.3.3 – Artigos de Opinião – o lugar de fala do discurso autorizado
Sob o título “Racismo e cotas raciais”, em 11 de março, José Roberto Pinto de
Góes considera que o sistema de cotas cria a “ figura do estelionato racial”. O artigo foi
publicado na seção de Opinião, p. 7, onde supostamente são publicadas as opiniões da
sociedade em geral. Página cobiçada por autoridades e figuras públicas, os editores são
constantemente assediados por assessores em busca de visibilidade para seus
assessorados. Como “convidados”, autoridades referendadas pelo cargo que ocupam na
iniciativa pública ou privada ou ainda pela titulação acadêmica que os distingue
132
discorrem opinativa e tecnicamente sobre os assuntos trazidos à pauta pelos
acontecimentos ou pela pauta do jornal. Alguns são “convidados” fixos que poderiam,
devido à freqüência e periodicidade que mantém em suas intervenções, serem
considerados articulistas do jornal. Podem até, eventualmente, ter alguma forma de
contrato com a empresa jornalística, o que é irrelevante do ponto de vista da inserção
deles na estratégia discursiva da seção em questão. Esses colaboradores fixos poderiam
ser considerados articulistas que representam, de certa forma autonomamente, a opinião
editorial do jornal ou pelo menos a organização discursiva mais ampla que o próprio
veículo, através de seus principais editores, pretenda dar à seção — a de um painel com
as diversas vozes autorizadas pelo conhecimento implícito no cargo ou patente que
justificariam tecnicamente as tendências e debates circulantes na sociedade.
Nosso breve comentário a respeito da seção de artigos mostra que a opinião ali
espelhada depende tanto do que o autor descreve como “regulação e organização das
estruturas editoriais” — em outros termos, da política editorial do jornal — que seria
contraditório considerar que o pensamento da sociedade estaria ali representado.
Ousamos sugerir que a organização da sessão Opinião tenta construir e legitimar a
opinião editorial discreta do jornal, a partir do gerenciamento das práticas discursivas na
sociedade, a mais comum delas a polêmica e o contraditório. No entanto, a construção
de uma heterogeneidade discursiva seleção dos diversos gêneros discursivos, lugares
de fala, vozes autorizadas e até mesmo a condição de polêmica são administradas de
acordo com a política editorial do jornal, fazendo prevalecer a ordem do discurso
jornalístico. Frisamos o fato de que o que temos aí é uma heterogeneidade discursiva
construída.
133
O conceito de heterogeneidade discursiva refere-se à presença de diversos
discursos outros no discurso. Em Bakhtin, o conceito assume a forma de um dialogismo
geral, indicando que um discurso se constitui em interação com o discurso do outro; em
Pêcheux, ancorada na referência psicanalítica e na concepção althusseriana de ideologia,
temos que o discurso se constrói sob o complexo das formações ideológicas:
O próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência
do sentido que aí se forma, a objetividade material e contraditória do
interdiscurso, determinando essa formação discursiva como tal,
objetividade material que reside no fato de que ‘isso fala’ sempre
‘antes e alhures e independentemente’
98
.
A opinião autorizada é sem dúvida a que merece maior atenção por parte dos
editores responsáveis pela edição de um jornal.
O artigo em questão não é de um convidado fixo, embora o autor apareça com
uma certa freqüência no jornal. Mesmo que não esteja explicitado pelo jornal, a
impressão que geralmente o público tem a respeito desta seção é de que a página é uma
tribuna livre de caráter especializado e que a seleção/convite ao especialista/articulista
ou se dá diretamente pelo jornal ou por iniciativa do próprio autor do artigo.
Na verdade, a página de opinião de qualquer jornal é um espaço altamente
disputado. Os artigos são geralmente recebidos, mas não há garantia de que serão
efetivamente publicados. Também é comum receberem-se diversos artigos sobre um
mesmo tema com opiniões semelhantes ou divergentes. Caberá ao editor de Opinião
selecionar, sempre a partir de uma discussão de pauta, qual deles terá o privilégio de
figurar na edição — alguns poderão nunca aparecer com suas opiniões, que o público
jamais saberá qual terá sido.
98
MAINGUENEAU, D. Termos-chave da análise do discurso, p. 80.
134
O crédito que autoriza o artigo em questão e seus pontos de vista neste espaço
privilegiado é o de Professor de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
que acabava de inaugurar as cotas raciais em seus vestibulares.
Racismo e cotas raciais
Foi regulamentada a lei que destina 40% das vagas, nos cursos de graduação da Uerj e da
Uenf, para estudantes negros e pardos. Segundo noticiou O GLOBO (06/03/2002), a garotada
vai ter de anexar, à ficha de inscrição, uma fotografia colorida e indicar se são negros ou
pardos. Também ficou estabelecido que quem mentir estará sujeito a processo por fraude.
Está criada a figura do estelionato racial. Despropósitos à parte, é curioso o espetáculo de
contorcionismo do processo de implantação de cotas raciais no Brasil. Com todo o respeito,
cota destinada a "negros" e "pardos", no Rio de Janeiro, talvez exclua apenas Xuxa e Sacha
(menos mal, pois Sacha não estuda numa escola pública degradada e certamente ingressará na
universidade que escolher).
A idéia de cotas raciais presume que o Brasil é uma sociedade estruturalmente racista, na qual
a população negra é excluída porque é vítima da intolerância racial, disfarçada por um
racismo dissimulado. Isso não é verdade.
Jean Baptiste Debret morou no Rio de Janeiro, no tempo de d. João VI. Ele registrou que os
escravos, ao encontrarem um conhecido na rua, se cumprimentavam assim: "Deus te faça
balanco". No português estropiado do cativo, Deus te faça branco. À primeira vista, a
saudação parece querer dizer que a escravidão aniquilava a auto-estima dos africanos. A uma
vista sem pressa, pode significar outra coisa.
Supondo que os escravos não tenham se deixado furtar do amor-próprio, eles podiam estar
dizendo: Deus te faça livre e próspero, como os brancos. Deus te dê fortuna. (...)
Um resultado feliz de tudo isso foi impedir que a escravidão brasileira estabelecesse a sua
legitimidade em bases raciais. Ficava combinado que esse negócio de raça era muito relativo.
(...)
As características do racismo brasileiro - dissimulado, escondido, velado - não são provas de
vitalidade, mas uma confissão de derrota. O racismo é muito mais racismo quando pode exibir-
se impunemente, sem peias nem vergonhas. (...)
Que Deus nos faça balancos, a todos nós, cativos de todas as cores, que nos dê boa fortuna, ao
invés de uma cidadania em migalhas e repartida segundo critérios raciais. Só é uma pena que
Ele tenha toda a eternidade para Se decidir.
JOSÉ ROBERTO PINTO DE GÓES é professor de história.
Fonte: O Globo, p. 7, 11 mar. 2002.
A opinião “especializada” trazida pelo jornal beira o irresponsável ao abusar da
ironia. Prega, de certa forma, os conceitos entendidos na lógica da tolerância e da
democracia racial, cujas referências estão explicitadas na afirmação de que o “racismo
brasileiro — dissimulado, escondido, velado” — não são prova de vitalidade” do
racismo, portanto é passível de tolerância, chegando, em alguns momentos, a surgir uma
certa complacência sobre as assimetrias que afetam mais diretamente os negros na
135
sociedade. Não vamos nos ater a considerações sobre o texto do artigo, porque ele não
se constitui, pela nossa abordagem, o discurso jornalístico em si. As marcas que
poderíamos identificar como constitutivas do discurso jornalístico seriam a posição
contrária às cotas do autor, a ironia em relação à idéia de racismo, as credenciais que o
autorizam a ocupar o espaço da página de artigos de opinião, e o fato de o editor ter
selecionado este artigo em detrimento de outros que certamente disputavam visibilidade
no espaço.
Observando rapidamente os trechos marcados, podemos ver que o articulista
considera que (1) a instituição das cotas é que determina a existência de racismo; (2)
que a exclusão dos negros das oportunidades sociais — o acesso à universidade entre
elas — não se deve à intolerância racial, portanto não se constitui um problema a ser
resolvido; (3) ao propor uma outra leitura para “Deus te faça balanco”, a “saudação”
entre os negros ao tempo da escravidão, o professor supõe que não estaria aí
configurado um aniquilamento da auto-estima dos negros, mas uma constatação, por
parte deles, de que ser branco era sinônimo de ser livre, próspero e afortunado. Da
mesma forma que “branco” era sinônimo dessas qualificações, o negro era o antônimo,
o que está claro na expressão — Deus te faça aquilo que você não é. Não é necessário
empregar qualquer técnica de análise de discursos para perceber que os significados
entendidos pelo autor guardam uma natural contraparte, que define os negros pela
escravidão, pela miséria e falta de oportunidade. A não ser que o autor acredite que
aqueles seres não tinham um mínimo grau de compreensão de si mesmos e do seu
entorno, o equivalente a não terem alma.
No dia seguinte, em espaço menos nobre e sujeito a critérios de edição rigorosos,
temos a manifestação do “leitor” Carlos Alberto Medeiros:
136
Cotas Raciais
No artigo "Racismo e cotas raciais", o historiador José Roberto Pinto de Góes diz: "A idéia de
cotas raciais presume que o Brasil é uma sociedade estruturalmente racista (...). Isso não é
verdade.” Mas é exatamente o que dizem as estatísticas do IBGE, do Dieese, do DataFolha, do
Data UFF: a sociedade brasileira estrutura-se numa pirâmide constituída por homens brancos,
mulheres brancas, homens negros e mulheres negras - nessa ordem. O peso da discriminação
fica evidente pelo fato de o negro ganhar menos que o branco, na média, para o exercício de
igual função, ainda que tenha o mesmo nível de escolaridade e o mesmo tempo de experiência
profissional.
CARLOS ALBERTO MEDEIROS
p. 6, 12 mar. 2002.
Importante observar que o “leitor” é despido de suas credenciais ao ter sua
opinião publicada na seção Cartas do Leitor, transformando-se apenas em uma espécie
de célula da chamada “opinião pública”. A rubrica Painel do Leitor atenderia melhor à
organização dessa dialética controlada, justificando de certa forma a assimetria de poder
entre os lugares de fala distribuídos pelo jornal e, igualmente, entre seus participantes na
lógica administrativa sobre debates relacionados a temas sociais candentes. O leitor
Carlos Alberto Medeiros é um exemplo: resolvemos buscar suas referências na Internet,
já que a provável coincidência de nome poderia sugerir tratar-se do jornalista e ativista
negro com livros publicados sobre o tema — “Racismo, preconceito e intolerância”,
em co-autoria com Jacques D'Adesky e Édson Borges, e Na lei e na raça, a partir da
dissertação de Mestrado defendida na Uerj, onde é doutorando. Tratava-se da mesma
pessoa.
Na mesma página, sob o mesmo título, dois outros leitores se manifestam sobre
o artigo do professor Pinto de Góes sobre as cotas. Forma-se um painel também
desigual, onde apenas a manifestação acima mencionada é a favor e outros dois leitores
são contra, supondo que a instituição das cotas estimularia uma atitude racista antes
inexistente.
137
A idéia de que a exclusão dos negros é, na verdade a exclusão dos pobres
começa a aparecer no painel dedicado à manifestações dos leitores, prenunciando o tipo
de polarização que vai prevalecer nas discussões daí em diante:
A criação de cotas raciais, imposta por alguns quem interesse em acirrar o racismo, terá no
futuro um resultado errado porque o problema não é número de alunos negros/pardos em
universidades, mas sim o fato de não ser dada base desde o início dos estudos até o ingresso
no ensino superior. Primeiro é preciso consertar o problema que vem da base; assim no futuro
as desigualdades serão amenizadas. Em qualquer lugar do planeta sempre existirá algum tipo
de racismo ou preconceito, e a única coisa a se fazer é dar formação religiosa, educação e
condição de vida digna a todo ser humano.
CARLOS JOSE V BARBOZA
Rio, p. 6, 12 mar. 2002.
No dia seguinte, um outro leitor perde as credenciais que o qualificam para o
debate, sucumbindo à massa de nomes que compõe a opinião de leitor: Nei Lopes,
escritor, compositor, pesquisador das culturas da diáspora africana:
O artigo "Racismo e cotas raciais", do professor José Roberto Pinto de Góes (11/3), nega o
racismo estrutural na sociedade brasileira. Mas, como negar? No Brasil, os negros (pretos e
pardos afro-descendentes) são esmagadoramente pobres, em sua maioria, porque seus
ancestrais foram, quase sempre, os escravos abandonados à própria sorte após a chamada Lei
Áurea, a lei de um artigo só. Alijados do mercado de trabalho até nas atividades subalternas -
quitandeiros, vendedores ambulantes, carregadores - por imigrantes europeus etc., esses
trabalhadores e seus descendentes foram, salvo pouquíssimas exceções, engrossando a legião
dos despossuídos. E o quadro persiste. Principalmente porque, na medida que mais brancos
vão ficando pobres, os negros vão sendo ainda mais excluídos, como provam as estatísticas. É
preciso, então, corrigir essa distorção. E a política de cotas é um dos caminhos.
NEI LOPES
Rio, p. 7, 15 mar 2002.
Ao marcarmos a maneira como os leitores são apartados das qualificações que
os credenciam ao debate, queremos chamar a atenção para a lógica de administração do
discurso nas redações, que parece atender o perfil conservador e ideológico do próprio
veículo. O jornal também disputa espaço de opinião com as diversas vozes da sociedade
e põe em cena recortes que acabam por sustentar e dar legitimidade a seu próprio
discurso, ocupando um lugar duplamente privilegiado em relação aos demais: o de
138
administrar o debate do qual participa e de por em circulação um discurso em que
prevalece predominantemente a sua própria opinião.
3.3.4 – Reportagem – entre a construção do título e o acontecimento
Os textos de reportagens, controlados pela técnica jornalística, deixam menos
transparente a eventual tendência a um dos lados do debate. Diríamos que a técnica
controla as chances de interferência direta do repórter, o primeiro e efetivo mediador
entre o fato e o relato do fato. Conforme ressalta Adriano Duarte Rodrigues, uma das
regras da prática jornalística consiste em afirmar que a opinião é livre, mas os fatos são
soberanos.
UFRJ terá bolsa para alunos carentes
Novo reitor é contra a implantação da política de cotas para negros
O futuro reitor da UFRJ assume o cargo apenas no próximo semestre, mas já elegeu suas
prioridades. Metade dos recursos extra-orçamentários que a reitoria irá receber será destinada
à concessão de bolsa-auxílio para alunos carentes. (...)
Mas não falem com Lessa sobre cotas raciais. Estudioso voraz da constituição do Estado
brasileiro, ele se diz radicalmente contra a política de ação afirmativa, já em vigor na Uerj,
para facilitar o acesso dos negros à universidade. Para ele, o racismo deve ser combatido com
armas jurídicas. Contrariando militantes do movimento negro da própria UFRJ, Lessa diz que
as cotas serviriam apenas para rotular os universitários afro-descendentes e ameaçar o que ele
chama de "interessante convivência étnica do país".
- Estaríamos copiando a terrível e segmentada sociedade americana, em vez de consolidarmos
a nação brasileira - argumenta.
Fonte: OLIVEIRA, Flavia, O Globo, p. 31, 31 mar. 2002. Editoria de Economia.
A Editoria de Economia, em reportagem assinada pela jornalista Flávia Oliveira,
que também assina interinamente a coluna Panorama Econômico, dá conta da opinião
do novo reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Lessa, como
radicalmente contrário às cotas. Aqui, ao contrário do que acontece na maioria das
reportagens, há uma indicação que agrega valor à descrição do principal entrevistado da
reportagem.
139
A referência à qualificação técnica de Lessa — “estudioso voraz da constituição
do Estado brasileiro” confere peso diferenciado à declaração dele, deixando
implícita uma espécie de legitimação de autoridade à manifestação de sua opinião, que é
contrária às cotas e que, já neste ponto do debate, são definidas como estímulo a
atitudes racistas por parte dos negros e simpatizantes das chamadas ações afirmativas.
É uma contradição se pensarmos que a repórter Flávia Oliveira é colunista
interina da coluna Panorama Econômico, que vai protagonizar ao lado da jornalista
Miriam Leitão a defesa intransigente das ações afirmativas.
Em abril, artigo assinado por “Pedro Flexa Ribeiro, educador” anuncia que “está
instalada a polêmica”, embora desviando o foco da questão dos negros para uma
vertente que será a tônica dos discursos sobre acesso de negros à universidade ao longo
dos anos seguintes (em 2005, ainda podemos acompanhar o debate pelos jornais): um
sistema que permita não apenas ao negro, mas aos pobres em geral o acesso ao ensino
superior gratuito. E esta passará a ser a argumentação da “opinião do jornal” daí em
diante:
140
De carro, a caminho da universidade
Está instalada a polêmica em torno da lei que determina o sistema de cotas raciais para o
ingresso na universidade. Se, por um lado, essa medida soa equivocada e demagógica, por
outro ela tem a virtude de reaquecer o debate em torno da vocação e destino da rede pública
de Ensino Superior.(...).
As questões em torno do vestibular envolvem bem mais do que apenas a passagem de um nível
de ensino ao outro. (...) Legitima-se que a classe média e a elite do país se apropriem de
recursos públicos para cinzelar a esmerada formação de seus herdeiros. Isso faz parte de um
acordo tácito entre governo, classe média e comunidade acadêmica. (...)
Essa preocupação está presente nas demandas que famílias dirigem às escolas dos filhos, às
vezes desde a educação infantil. Desde cedo se empenham em assegurar vagas no ensino
superior público. Essa aprovação confere status social a toda a família. Também entre pais e
filhos são feitos pactos e promessas. Assegurada a gratuidade na universidade, freqüentemente
comemora-se com um carro zero. (...)
Uma saída talvez fosse um sistema em que, uma vez conquistada a vaga por méritos
acadêmicos, a concessão ou não da gratuidade seria estudada caso a caso. Ela deixaria de ser
um direito adquirido desde o vestibular.
Adotar como critério a renda familiar parece bem mais razoável do que agir com base em
origens étnicas. (...)
É o mínimo que se pode esperar de um país que pretende vir a ser sério e menos injusto.
PEDRO FLEXA RIBEIRO é educador.
Fonte: O Globo, p. 7, 9 abr. 2002. Opinião.
No caso deste artigo, é importante observar as proposições implícitas no texto,
porque serão estas as argumentações que vão encaminhar a interlocução do jornal com a
sociedade/leitores daí em diante. Há uma visível mudança de eixo da discussão até aqui
entabulada pelo jornal, desclassificando a tônica da polêmica, que é a instituição de
cotas para negros (“medida equivocada e demagógica”), e realçando uma discussão que
até aí não estava em pauta — “o debate em torno da vocação e destino da rede pública
de Ensino Superior”. Mais adiante, um processo a que Fairclough chama de
nominalização — um tipo de metáfora gramatical que representa processos como
entidades e que sempre requerem a exclusão dos agentes sociais da representação dos
eventos: as palavras são “renda familiar” e “origens étnicas”.
141
3.3.5 – Discurso e resistência – uma questão da Editoria de Economia
Em 19 de abril, o tema finalmente é assumido como polêmica e vai para a seção
Tema em Debate do jornal. Os “debatedores” são o “embaixador aposentado M. Pio
Correa” e “Ivanir dos Santos, presidente do Centro de Articulação das Populações
Marginalizadas”, juntamente com “Carlos Alberto Medeiros, jornalista”, o mesmo que
antes tivera uma carta publicada na seção Carta dos Leitores.
A tônica da argumentação de Pio Correa será o apelo à auto-estima dos negros,
no sentido de que a reserva de cotas caracterizaria a inferioridade deles e uma injustiça
para com os outros bem preparados, como está implícito nos dois primeiros trechos
marcados.
Nos trechos seguinte, o autor lança mão de um passado longínquo ou de uma
sociedade estrangeira para provar que “a cor nunca foi obstáculo”. Quanto aos
defensores das ações afirmativas, demonstraram, em seu artigo, a preocupação de
recuperar as credenciais que os autorizam ao debate durante toda a primeira parte do
texto, ao invés de efetivamente defenderem o ponto de vista que lhes tocava no debate a
que foram chamados. De certa forma, eles respondem ao conjunto das edições que
pontualmente desqualificavam as argumentações apresentadas pelos defensores das
cotas ao dar espaço às opiniões contrárias. A argumentação faz sentido apenas para
quem esteve permanentemente atento às manifestações sobre o assunto nos jornais. Ao
definir quais são os setores que apóiam e os que combatem as cotas, os articulistas
definem alguns setores da mídia como aliados e “membros da elite branca,
principalmente encastelados ns universidades” como seus principais detratores. O artigo
parece ter como alvo o professor da UERJ, José Roberto Pinto de Góes, que escreveu o
142
artigo a que o jornalista Carlos Alberto Medeiros não conseguiu responder por ter tido o
texto publicado nas Cartas dos Leitores.
Uma demonstração de que a administração técnica do discurso dos jornais
também se constitui em vantagem para o veículo mesmo quando cede espaço às vozes
concorrentes.
TEMA EM DEBATE
Cotas para negros
Racismo às avessas
(...) Trata-se de iniciativas de ordem baixamente demagógica, além de insultantes para a raça
negra, pois partem evidentemente do pressuposto de que candidatos negros não seriam capazes
de competir em igualdade de condições com concorrentes de outras raças.(...)
Estabelecer uma cota preferencial para uma raça - digamos, azul - significaria que as vagas a
ela reservadas ficariam vedadas ao acesso de candidatos de outras cores, ainda que mais bem
capacitados. Seria, pois, uma exclusão lesiva à eqüidade e à justiça, que devem presidir ao
provimento de cargos públicos bem como à formação dos quadros discentes universitários.
A cor nunca foi obstáculo ao acesso de grandes valores a posições de eminência na nossa
pátria. Sem remontar até Henrique Dias, valoroso chefe negro na guerra contra os holandeses,
agraciado por el-rei de Portugal com o hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo, patrono
durante todo o período imperial das "Companhias dos Henriques", compostas por soldados
negros, em todos os batalhões de infantaria de linha, José do Patrocínio, grande jornalista,
gozou de tal consideração junto à família imperial que a princesa herdeira, d. Isabel, fez
questão de dançar com ele em um baile da Corte. Tivemos, nos tempos modernos, Machado de
Assis como príncipe das letras brasileiras, o professor Juliano Moreira como luminária da
psiquiatria, e o Itamaraty já teve à sua frente um chanceler mestiço - Octávio Mangabeira, por
sinal que um grande chanceler e um grande patriota.
Quanto a mim, consulto há muitos anos um médico de cor, profissional destacado em sua
especialidade, que deve a sua carreira e o seu renome aos seus êxitos no curso de doutorado
em medicina, grau ao qual teve acesso pelos próprios méritos. Não teria eu tanta confiança em
consultar um beneficiário de um mecanismo de favor. (...)
Nos Estados Unidos, o atual secretário de Estado, principal ministro do governo americano, é
um negro, o general Colin Powell. Da mesma raça é a consultora do presidente dos Estados
Unidos para assuntos de segurança, Condoleeza Rice, que tenho a honra de conhecer
pessoalmente. E, no mundo empresarial americano, acha-se à frente de um dos mais poderosos
conglomerados, a American Express Company, um homem de cor, executivo de extraordinário
êxito, Kenneth Chenault. (...) Cabe recordar também que a Organização das Nações Unidas
elegeu para o seu mais alto cargo executivo, o de secretário-geral da organização, um negro,
Kofi Annan.
Política democratizante, justa e não-discriminatória para promover a ascensão na escala
social de jovens das classes menos favorecidas seria aumentar o número de bolsas
universitárias para estudantes pobres, aprovados em exame vestibular.
M. PIO CORRÊA é embaixador aposentado.
143
Ação afirmativa e honestidade intelectual
Como diz o historiador Peter Wolfe em artigo recentemente publicado na "American Historical
Review", "raça é endêmica à modernidade". Com efeito, a idéia de raça, tal como hoje a
entendemos, nasceu na virada do século XV, como subproduto do processo de expansão
européia, conhecido pela alcunha de "descobrimentos”. Começavam a soprar então os ventos
da modernidade, e foi sob a égide da moderna racionalidade científica que se desandou a
produzir taxionomias reservando aos europeus e a seus descendentes uma posição de primazia,
enquanto africanos, asiáticos, nativos da Austrália e das Américas eram racializados como
inferiores.
Nasceram então as "raças" branca, negra, amarela e vermelha, às quais foram atribuídas
características não apenas físicas, mas igualmente intelectuais, morais, psicológicas e
espirituais. Os "brancos” seriam os detentores de todas as virtudes, os verdadeiros seres
humanos integrais, enquanto os demais grupos eram apresentados, no máximo, como
portadores de uma humanidade restrita. (..)
Ao contrário do que nos quer fazer crer uma historiografia comprometida com a manutenção
do status quo, a sociedade brasileira não inventou a mestiçagem, tampouco é a única do mundo
a praticá-la. Onde quer que tenham convivido por tempo suficiente, diferentes grupos humanos
não conseguiram deixar de misturar-se. Já os produtos dessas misturas têm sido tratados de
formas variadas nas diversas sociedades, segundo os fatores estratégicos e demográficos
supracitados. Onde e quando foi interessante para o colonizador, mestiços física e
culturalmente europeizados acabaram sendo aceitos para integrar o grupo dominante. (...)
Todas essas considerações têm por objetivo enriquecer o debate que ora se trava no Brasil a
respeito da adoção de medidas destinadas a compensar os negros por séculos de exploração e
discriminação. Esse debate envolve basicamente dois grupos: de um lado, afro-brasileiros e
alguns aliados nas arenas da academia, da política e da mídia; de outro, membros da elite
branca, encastelados principalmente na universidade. Uma das características mais marcantes
dessa discussão é uma curiosa inversão de papéis: diferentemente do que seria de esperar, o
grupo dominado, neste caso, é aquele que detém as informações mais completas e atualizadas:
em que consiste a "ação afirmativa", onde apareceu, em que países tem sido aplicada, em
relação a quais grupos e com que resultados.
Enquanto isso, os adversários se limitam a repetir chavões históricos ufanistas sobre
escravidão e mestiçagem, fabricados no início do século XX por intelectuais brancos como
Gilberto Freyre, e prontamente adotados como parte da ideologia oficial de um Estado
preocupado em construir uma identidade nacional que pudesse incluir (evidentemente, num
papel subordinado) sua população de origem africana. (...)
Os inimigos da ação afirmativa costumam apresentar graves sintomas de desonestidade
intelectual. Aquilo que não lhes interessa, simplesmente ignoram. (...) A ação afirmativa é uma
das formas internacionalmente consagradas de promover a igualdade de oportunidades para
segmentos populacionais discriminados, como negros e mulheres. Mas pode haver alternativas.
Para apresentá-las, nossos adversários precisam estudar o assunto. Um bom começo seria
partir dos dados da realidade, e não da manipulação histórica. Continuamos esperando o
debate sério.
IVANIR DOS SANTOS é presidente do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas;
CARLOS ALBERTO MEDEIROS é jornalista.
Fonte: O Globo, p. 7, 19 abr. 2002. Tema em debate.
Além disso, a seção Tema em Debate simula uma situação que somente se pode
configurar quando os contendores estão presentes para disputar a hegemonia de sua
opiniões, o que não ocorre e nem poderia ocorrer em jornal impresso onde não há a
144
possibilidade do confronto em tempo real requerido. Os artigos, embora versem sobre o
mesmo tema em posições contrárias, não dialogam entre si.
A estratégia discursiva do jornal, não se desprezando o fato de dar oportunidade
ao contraditório sobre a questão, colabora apenas, no que diz respeito ao discurso
jornalístico, para a consolidação de um discurso auto-referencial que legitima o papel do
jornal como mediador dos grandes temas sociais. Acrescentamos a esses aspectos a
administração de estratégias discursivas como a que simula o debate, além de outras já
referidas como a publicação permanente de auto-crítica por articulistas ou ombudsman.
A seção de Cartas do Leitor, de certa forma, também cumpre essa função,
embora de uma maneira menos controlada, até mesmo por suas condições técnicas de
produção. As manifestações dos leitores no mês de abril são todas contrárias às cotas,
que são identificadas como uma forma de acirrar o ódio racial, opinião compartilhada
também por uma leitora que se declara negra:
As cotas raciais demonstram ingenuidade ou leviandade e arrastam a população a identificar
as raças de forma oficial. Quem perde são os negros e todos os que mais uma vez são tapeados
com promessas de pequenas esmolas. Sabem que as empresas enviam à Caixa Econômica a
Relação Anual de Informações Sociais, que classifica a raça? Trabalhamos com isto e já
tivemos dificuldade em qualificar pessoas. Quando isto ocorre classificamos como "mulato". A
educação é mais demorada e mais cara.
ARISTIDES MARTINS,
Rio, p. 6, 23 abr. 2002.
Tem razão o leitor Sergio de Souza Tôrres (2/4) quando estabelece a diferença entre racismo e
exclusão social. Esta decorre da falta de oportunidade que leva tanto pretos como brancos a
serem marginalizados. Racismo é outra coisa: é o ódio entre raças; é a crença de que uma
pessoa é superior a outra por causa da cor da pele. Mas atualmente tanto se fala em racismo
que vão acabar introduzindo-o entre nós. A preocupação maior deveria ser com o ensino
público, reconhecidamente o melhor e mais eficaz meio de ascensão social.
HELENICE N. OLIVEIRA
Niterói, p. 6, 23 abr. 2002.
145
Sou negra e, como tal, manifesto meu protesto conta o projeto de lei que estabelece cotas para
minha raça para vagas em universidades e no serviço público. Este projeto na verdade é um
retrocesso do processo de integração dos negros à sociedade brasileira já que, através de uma
segregação descabida, criará ressentimentos raciais, especialmente entre os mais jovens.
Afinal, se a lei tiver por objetivo combater a discriminação racial, os legisladores deveriam
saber que não se põe fim ao racismo por decreto, mas através da educação e do
esclarecimento. Se o objetivo for melhorar as condições sociais dos negros, também será
inócua a lei, haja vista que irão preencher as cotas os negros mais bem preparados e de melhor
nível econômico, e que não precisam das cotas. Enfim, trata-se apenas de um projeto
extremamente demagógico, sem qualquer finalidade social.
MARIA EUDÓXIA DE LIMA PAES LEME
Rio, p. 6, 23 abr. 2002.
Em maio, nova notícia dá conta de que as decisões de Governo sobre as políticas
compensatórias para a raça negra seguem alheias ao debate ideológico travado na arena
da imprensa. A tônica do debate, nos três anos seguintes, será a polarização do tema
entre racismo versus democracia racial e qualificação do ensino para todos versus
políticas de acesso aos negros nas universidades públicas. Uma nova polarização que
daria ensejo a uma interessante pesquisa de recepção, que poderia comprovar se o
debate assumido pelo jornal teria sido também assumido pela sociedade.
Senado aprova cotas para negros
Projeto reserva 20% dos empregos públicos e de vagas em universidades
BRASÍLIA. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou ontem o projeto do
senador José Sarney (PMDB-AP) que dá aos negros o direito de ocupar 20% dos cargos e
empregos públicos da administração pública direta, indireta e fundacional de qualquer dos
poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Além disso, destina a eles
20% das vagas de universidades públicas e privadas.
(...) O sistema de cota deve vigorar, de acordo com o projeto, durante 50 anos, a partir do
primeiro dia de vigência da lei. Segundo os parlamentares, se as cotas vigorarem por duas
gerações será possível corrigir as distorções provocadas pelas desigualdades raciais.
Terão direito às cotas os cidadãos brasileiros que se declararem de cor negra ou parda. Se esse
percentual de 20% não for preenchido, "as vagas remanescentes serão revertidas para o
aproveitamento dos demais candidatos devidamente qualificados", diz o texto aprovado.
Fonte: DELGADO, Maria Lúcia, O Globo, p. 12, 9 maio 2002. O País. Chamada, p. 2.
Começa a aparecer, na seção dos leitores, a opinião de que o mal da exclusão
está na baixa qualidade do ensino fundamental e secundário, conforme enunciado no
artigo publicado no mês anterior, de autoria do educador Pedro Flexa Ribeiro.
Observamos um processo de nominalização onde as palavras pobre e negro guardam
146
todos os elementos contidos no debate, significando todo o processo da contenda que
teve seu eixo redirecionado para outras problemáticas que não estavam em questão,
como a qualidade do ensino de nível básico, a condição de escolaridade e sobrevivência
do povo brasileiro e a ameaça de instalação do ódio racial, conforme mostra o carta
seguinte:
Cotas raciais
A cota racial para o ingresso em universidades e empresas públicas tenta resolver um
problema atuando em suas conseqüências. A causa não está na cor da pele, mas na diferença
de oportunidades que só será corrigida quando houver uma educação gratuita e de qualidade
para todos, desde os primeiros anos da escola. Com a instituição da cota, haverá dentro das
universidades e empresas públicas duas categorias de indivíduos: os que ingressaram mercê de
seus próprios méritos; e os que entraram beneficiados pelo critério racial. E do lado de fora
candidatos que, embora aprovados, foram preteridos em razão da cor de sua pele. Aí, talvez,
estarão lançados no Brasil os germes da segregação e do ódio raciais.
PAULO M. S. ELOY RESENDE
Rio, p. 6, 10 maio 2002.
O anúncio das “cotas para minorias”, que incluía transexuais, mulheres, idosos,
povos indígenas, estrangeiros, ciganos, foi feito pelo então presidente da República,
Fernando Henrique Cardoso, em cerimônia de lançamento do Programa de Direitos
Humanos em 13 de maio de 2002, e teve o tratamento que denuncia a técnica de
observação do que é notícia pelo negativo da racionalidade, ou pela inversão da
normalidade. A manchete que chama a atenção para a “união de gays” deixa em
segundo plano a discussão que vinha merecendo atenção do jornal. Na verdade, a
hipótese que tentamos comprovar nesta tese poderia se aplicar ao estudo do processo de
discriminação, pela imprensa, de diversos segmentos da sociedade, entre elas os
homossexuais e as mulheres,
FH defende união de gays
Presidente apóia mudança de registro de transexuais e criará cotas para negros e
mulheres
Fonte: JUNBGBLUT, Cristiane, O Globo, p. 3, 14 maio 2002. O País.
147
Uma dos aspectos que devemos observar ao tentar perceber a implicitação
contida em um enunciado é seu contexto de produção, as regras que regem a gramática
de determinadas ordens logotécnicas. Mais uma vez indicamos que, dentro do leque de
possibilidades de escolha de situações para compor o título, a opção foi por aquela que
indica o extraordinário, excepcional, sendo por isso digno de apontamento. Certamente
essa lógica da seleção para o título pode encontrar justificativa em diversas instâncias
— nas hostes jornalísticas principalmente. Cumpre lembrar que a naturalização dos
processos faz com que repitamos uma mesma ordem de coisas que tendem a se
consolidar como realidade para além das demandas de uma época. No caso dos
homossexuais, certamente a situação se configura mais difícil, fora das disputas
plausíveis da sociedade. Já a questão dos negros, conforme a organização do título,
passa a ter uma importância secundária de acordo com as normas técnicas do jornalismo
e na configuração discursiva da imprensa; no entanto, na ordem social, a questão dos
negros, conforme se depreende do “debate” mostrado pela imprensa, se configura um
problema mais sério, envolvendo possibilidades de conquistas ideológicas que, de
acordo com as inúmeras opiniões circulantes na imprensa, podem significar a invasão
dos privilégios da elite dominante. Nota-se, também, que os textos das reportagens
guardam uma certa isenção em relação às polêmicas entabuladas pelas outras ordens
textuais presentes nas edições, ressalvado-se apenas a composição dos títulos e
subtítulos, que tendem a trazer implícito o nível de discussão ampliada pelo jornal.
Os títulos da imprensa, graças ao próprio processo de figuração,
constituem um verdadeiro texto dentro do texto. Fazem ao mesmo
tempo ver e esconder o texto para que dirigem o olhar do leitor. São
uma espécie de véu transparente. Em virtude de sua diafaneidade,
tanto mostram o que escondem como escondem aquilo que dão a
ver
99
.
99
RODRIGUES, A. D. Estratégias da Comunicação, p. 110.
148
O texto abaixo apresenta um exemplo fácil de análise de implicitação, quando a
“leitora” define o que pensa sobre aqueles que defendem as cotas: “quem as deseja são
apenas os oportunistas (...)”. Podemos refletir, também, sobre o editor ter a opção de
escolher uma entre as centenas de cartas que chegam todos os dias à editoria. Rodrigues,
ao se referir ao processo de comunicação como um todo, define o constrangimento da
instituição das regras que regulam o processo comunicacional de uma forma que se
aplicaria perfeitamente ao processo de construção do discurso jornalístico, notadamente
nesta seção das Cartas do Leitor a que estamos nos referindo. Ele diz que “as regras são,
por um lado, o resultado do processo comunicacional que as institui, mas, por outro
lado, são também o quadro que lhe ditam o sentido e o regulam.”
100
Em 15 de maio,
temos três cartas; duas contra e uma a favor.
Sou mulher e tenho consciência do espaço que temos conquistado. Consciência esta que me faz
corar quando vejo que o governo pretende nos reservar 20% de cotas nos concursos públicos
federais. Hoje já somos ampla maioria entre os aprovados em qualquer concurso. Então por
que sermos tratadas como inferiores? Ninguém precisa de cotas. Quem as deseja são apenas os
oportunistas, que não conseguem dar valor a uma conquista feita pelo esforço, preferindo o
jeitinho e o favorecimento.
ANA CRISTINA AGUIAR
Rio, p. 6, 15 maio 2005.
Está na hora de os políticos lerem a Constituição. Não à discriminação; não a cotas para quem
quer que seja.
VITOR SAWCZUK
Rio, p. 6, 15 maio 2002.
É impressionante o número de cartas contra o sistema de cotas para negros que o
governo está implantando. Ninguém quer discriminar os outros, e sim criar uma opção
de acesso a estudo e trabalho para aqueles que estão sempre em desvantagem.
SAMIR EL SAID
Rio, p. 6, 15 maio 2002.
O debate sobre as cotas raciais vai sofrer uma brusca interrupção no caderno
principal do jornal, que abrirá espaço e voltará suas atenções para duas importantes
100
RODRIGUES, A. D. Op. cit., p. 69.
149
pautas factuais: a Copa do Mundo no Japão e Coréia, que foi de 31 de maio a 30 de
junho, e a palpitante campanha para as eleições majoritárias que viriam a modificar o
perfil político do país, elegendo, em outubro, o candidato do Partido dos Trabalhadores,
Luís Inácio Lula da Silva.
A polêmica das cotas raciais caminha, então, para outra seção, com público
diferente daquele com quem o jornal vinha dialogando nesta primeira etapa.
Especialistas e estudantes candidatos a vestibulares em universidades que adotaram as
cotas iniciam um diálogo que também vai se configurar em polêmica no caderno
Megazine, cujo público alvo são os jovens e estudantes que, em geral, estão se
preparando para o vestibular. A análise deste novo debate seria sem dúvida interessante,
mas abriria uma nova frente de discussões que não haveria de ter aqui o espaço e tempo
suficientes.
A última manifestação no mês sobre o assunto foi publicada no espaço de
Opinião do próprio jornal, ou seja, de decisão do editorial do jornal:
“Governo defende negros, mulheres, deficientes e gays”, diz O GLOBO de 14/5.
Ninguém cresce com paternalismo. Essa decisão de separar cotas para cada camada
dos chamados discriminados de nada adiantará se não tivermos uma política de
respeito a cada um deles. É necessário que eles tenham condições reais de concorrer
com todos, pois do contrário farão parte de outra coluna de discriminados (...).
Fonte: O Globo, p. 6, 15 maio 2002. Opinião.
3.3.6 – Discurso e resistência – uma questão da Economia
O assunto reaparece apenas em novembro, referindo-se ao último debate dos
candidatos à presidência da República levado ao ar pela Rede Globo. O “gancho” como
se costuma dizer nas redações, foi a primeira pergunta sorteada no debate entre os
candidatos, e referia-se às cotas raciais.
150
O assunto não ganhou relevância nas páginas dedicadas a reportagens, mas teve
destaque na coluna de opinião assinada pela editora de Economia, Miriam Leitão. A
jornalista vem encampando a causa em sua coluna e, ao que parece, dentro da própria
redação do jornal, onde terá como principal opositor o articulista Ali Kamel, ex-editor-
chefe de O Globo por 6 dos 12 anos em que lá esteve, e que assumiu, em junho de 2001,
a Direção Executiva de Jornalismo da TV Globo. O artigo de Miriam Leitão:
Melhor de quatro
Não se mede a capacidade de governar de um candidato pelo conhecimento que ele tenha de
uma sigla estranha de um imposto recente. Isto é tão determinante do futuro desempenho do
candidato quanto saber a fórmula da água. Relevante, no debate da Globo, foi a informação
que dele se extraiu sobre pontos concretos dos programas que os candidatos pretendem
implementar.(...)
Tema ausente no debate nacional há mais de um século, a forma de enfrentar o racismo abriu,
por sorteio, o mais importante debate desta eleição. Cotas raciais na universidade ou não?
Como definir quem é negro? Este tema precisa entrar na pauta porque é necessário discuti-lo.
Pode-se ser contra ou a favor das cotas, mas é impossível ignorar que os negros têm estado
apartados do progresso brasileiro desde o começo da construção da nacionalidade. Primeiro,
como escravos. Depois, como os mais pobres. Eles são metade do país. É auspicioso, para usar
palavra de José Serra, que o assunto seja discutido como vem sendo nos últimos anos.
Fonte: LEITÃO, Miriam, O Globo, p. 26, 5 out. 2002. Panorama econômico.
Um artigo assinado por um economista é publicado no mês seguinte,
contrapondo-se às cotas, a partir de argumentos sustentados na autoridade que o lugar
de fala lhe confere. Para ele, a solução está no combate à pobreza, reafirmando a
posição agora já claramente assumida pelo jornal:
Ainda as cotas
(...) Segundo fui informado, a idéia inspirou-se no sistema de cotas raciais para admissão de
empregados nos Estados Unidos. Lá o sistema, que opera na base do autodeclaratório,
funciona satisfatoriamente. Sobretudo, porque é razoavelmente difundida (em especial entre os
afro-americanos) a crença de que pertencem a esse grupo étnico todos aqueles que possuam
uma ascendência africana, em alguns meios, até a quarta geração.
No Brasil, é diferente. Apesar da inegável existência de preconceito e discriminação,
constituímos uma sociedade culturalmente miscigenada. A fratura social que existe em nosso
país não tem uma conexão mais estreita com o problema das diferenças étnicas. E sim, mais
propriamente, com a questão da renda.
(Cont.)
151
(Cont.)
Tampouco pode ser considerada a roupagem um pouco mais sofisticada da mesma tese,
inadvertidamente colocada pelo então candidato Luiz Inácio Lula da Silva no último debate da
TV Globo, da existência de "métodos científicos" para definir quem é negro e quem não é.
Apesar de saber em que contextos (atenuantes) foram dadas tais declarações, confesso que não
pude evitar a lembrança da cena, há muito vista no cinema, de médicos, na Alemanha nazista,
medindo narizes e crânios para ver quem era ariano e quem não era. (...)
Até do ponto de vista legal, em que pese a legitimidade de adoção de políticas compensatórias,
há quem considere o sistema de cotas inconstitucional, posto que colidiria com o princípio
consagrado na Constituição de que "todos são iguais perante a lei".(...)
Eu, se fosse inequivocamente negro e jovem, não ia querer ser beneficiado com o instituto da
cota. Nem ia querer que ele existisse. Porque, mais que o passado, me preocuparia o futuro.
Além de me sentir atingido em meu orgulho, temeria que se estivessem criando no Brasil duas
classes de profissionais de nível superior: a dos que entraram na universidade e se formaram
por seus méritos próprios, e "o pessoal da cota". Imaginaria, daqui a quinze anos, um médico
ou engenheiro negro, por mais capaz que pudesse ser, sendo preterido pela suspeita de que
conseguira seu diploma simplesmente pelo fato de ser negro. Nesse caso, estaria se fazendo
uma monstruosa injustiça com o imenso contingente de negros que são determinados e, apesar
de todos os pesares, capazes de lograr um lugar ao sol, do mesmo modo que os brasileiros de
outras etnias. (...)
A solução para a correção das injustiças sociais e garantia de igualdade de oportunidades
para os brasileiros é o combate sem tréguas à desnutrição e às carências de saneamento
básico, bem assim a melhoria dos padrões de qualidade do ensino de primeiro e segundo graus,
elementos essenciais de qualquer política conseqüente de distribuição de renda.
Não se combate a discriminação com uma nova forma de discriminação
MARCOS POGGI é economista e escritor.
Fonte: O Globo, p. 7, 5 nov. 2002. Opinião.
Dias depois, duas cartas de leitores são publicadas apoiando as cotas e
estimulando o debate.
Cotas raciais
De fato, estabelecer cotas de cidadania e direitos especiais para corrigir o efeito discriminador
de preconceitos enraizados em nossa sociedade é aventurar-se em terreno polêmico. O conceito
de discriminação positiva é interessante, mas perfeitamente claro para qualquer brasileiro de
boa-fé. É inútil tapar o sol com a peneira dos eufemismos. Discriminemos positivamente, em
favor dos discriminados negativamente.
MARCO AURÉLIO CHAUDON
Rio, p. 6, 8 nov. 2002.
A questão das cotas raciais levanta um problema difícil para o brasileiro, que não gosta de se
incomodar. Racismo? Isso é coisa de americano. Nas estatísticas do IBGE a frieza dos números
mostra: cidadãos obviamente negros, com a mesma educação dos não obviamente negros, têm
salários mais baixos e menos possibilidades de promoção no Brasil corporativo. Até hoje nunca
apareceu um empresário para explicar o porquê. Significa que, se está na cara que você é
negro, está fadado a nunca saber de onde vem o golpe. Porque as oportunidades são iguais
para todos. Já está mais do que na hora de se travar uma discussão adulta sobre racismo e
preconceito.
ORLANDO SANTOS DO NASCIMENTO
Rio, p. 6, 8 nov. 2002.
152
Nove dias depois, a jornalista Flávia Oliveira publica, na Coluna de Economia, a
propósito das comemorações do Dia da Consciência Negra, um artigo contestando os
argumentos contrários às políticas afirmativas.
O porquê das cotas
Já que nesta quarta-feira o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra, vale retomar o tema
da adoção de cotas para negros nas universidades. Quem desconfia da idéia, em geral, o faz
por dois motivos. A miscigenação dificulta identificar quem é negro. A exclusão social dos afro-
descendentes se dá por razões econômicas, não raciais - melhor, então, beneficiar os pobres.
São falsos dilemas.
A sociedade brasileira jamais teve dificuldades em decidir quem era ou não negro, até a
discussão sobre cotas entrar em pauta. Frei Davi Santos, diretor-executivo da Educafro, diz
que a polícia, por exemplo, nunca enfrentou o dilema quando teve de escolher quais seriam os
indivíduos revistados numa blitz. Departamentos de Recrutamento e Seleção das empresas, por
longos anos, também não hesitaram. (...)
Uma vez aprovada a política de cotas, os defensores do sistema não duvidam que o melhor
critério de classificação é a autodeclaração, usado pelo IBGE. Apesar de o presidente eleito,
Luiz Inácio Lula da Silva, ter derrapado no debate da TV Globo, às vésperas do primeiro turno,
ao sugerir critérios científicos como forma de coibir abusos.
O professor Sérgio Danilo Pena, da UFMG, investigou o DNA de um grupo de brasileiros que
se declaram brancos. Descobriu que pela linhagem materna, 70% têm ascendência negra ou
indígena. Significa dizer que, até quem se diz branco no Brasil, poderia se declarar negro ou
mestiço. Não o fazem porque não interessa.
- Os indicadores sociais dos brancos são muito melhores que os dos pretos e pardos. E há uma
impressionante afinidade entre esses dois segmentos, que deixa claro o abismo entre brancos e
não-brancos, diz Sérgio Besserman, presidente do IBGE. (...)
O outro ponto diz respeito ao favorecimento aos negros, em detrimentos dos pobres -
especialmente dos brancos pobres. Em que pese o fato de que quase sete em cada dez pobres no
Brasil são negros ou mestiços, o que já sugere um forte componente racial, só quem se opõe às
políticas de ação afirmativa acha que elas são excludentes.(...)
Tratar desigualmente os desiguais para criar oportunidades de inserção social é fazer Política
Pública. Com letra maiúscula.
Panorama Econômico, 17/11/2002, pág.36.
Colunista interina: Flávia Oliveira
Fonte: OLIVEIRA, Flávia (colunista interina), O Globo, p. 36, 17 nov. 2002. Panorama econômico.
Os anos de 2003 e 2004 veriam um intenso debate sobre cotas raciais nas
páginas de opinião do jornal O Globo, onde o destaque seria para a voz do ex-editor-
chefe do jornal, agora como articulista da página de Opinião. Ali Kamel vai empreender
uma verdadeira cruzada contra a adoção de cotas, mesmo depois de as leis terem sido
sancionadas e as medidas entrado em vigor. Em 20 de novembro de 2003, as jornalistas
153
Miriam Leitão e Flávia Oliveira publicam, pela Editoria de Economia, um caderno
especial intitulado Retrato do Povo de Zumbi, onde revisitam a história da resistência à
escravidão e da luta contra o racismo.
3.4 – Folha de S. Paulo – discurso da Ciência decreta o fim da raça
Durante todo o ano de 2002, o jornal paulista Folha de S. Paulo publica nove
textos — reportagem, entrevista, cartas do leitor, artigo, relacionados às cotas raciais. O
primeiro deles, da sucursal do Rio de Janeiro, é uma entrevista com a professora
Petronilha Beatriz Gonçalves, “primeira negra a ocupar uma vaga no Conselho Nacional
de Educação”. O jornal cumpriu a regra jornalística de averiguar tudo o que foge ao
estabelecido na sociedade. A entrevista com a professora submetida à categoria de
“primeira negra” dá espaço amplo para as considerações que explicam a condição
histórica dos negros na educação, mas acaba redundando na pergunta-chave que orienta
raciocínio semelhante no jornal carioca: “A entrada de negros sem que seja pelo critério
do mérito não é um golpe na auto-estima dos próprios estudantes que se beneficiariam
das cotas?”
‘Racismo expulsa criança negra da escola’
ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO
A professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, 59, será a primeira negra a ocupar uma
vaga no Conselho Nacional de Educação (CNE). Sua indicação foi oficializada no "Diário
Oficial" da União na segunda-feira passada pelo ministro Paulo Renato Souza (Educação )e
por FHC.
A escolha de uma negra para uma das 24 cadeiras não se deu por acaso. Fazia parte de uma
promessa de Paulo Renato de incluir um representante dos negros e dos índios no conselho. A
representante dos índios é a professora Francisca Novantino Pinto de Angelo.
No caso de Petronilha, pesou o fato de sua produção acadêmica ter como foco a presença do
negro na educação brasileira. Para ela, as desigualdades raciais na educação permanecem
não por causa da falta de acesso ao ensino básico, mas pela ausência de uma política que
estimule a permanência do negro na sala de aula.
(Cont.)
154
(Cont.)
Além de fatores como a necessidade de trabalhar mais cedo para ajudar a família, Petronilha
cita o racismo e a falta de imagens do negro nos livros didáticos como elementos que expulsam
acriança negra da escola. Segundo ela, o problema é de falta de conhecimento real da história
dos negros no Brasil. Uma história que começa, como lembra, na África, e não na chegada dos
escravos em solo brasileiro. Soluções para esses problemas, diz a professora, devem ser
discutidas no CNE, órgão que tem a função de auxiliar o MEC na execução e elaboração de
normas e políticas públicas para o ensino. A história dos negros foi ensinada para Petronilha
por sua família, e não na escola onde estudou, em Porto Alegre (RS). Ela conta que suas avós,
mesmo negras, chegaram ao nível máximo de escolarização permitido a uma mulher no início
do século passado. Petronilha seguiu pelo mesmo caminho. Após seu doutorado em ciências
humanas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fez pós-doutorado em teoria da
educação na Universidade da África do Sul, em Pretória, onde foi professora visitante. Hoje,
ela participa da coordenação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFSCar (Universidade
Federal de São Carlos). Veja os principais trechos de sua entrevista à Folha. *
Folha - A escola básica está praticamente universalizada no Brasil, com quase todas as crianças
tendo acesso a ela. No entanto, a impressão é que a diferença entre negros e brancos não diminui.O
que está errado?
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva - As escolas estão recebendo as crianças negras em suas salas
iniciais. Até a 4ª série do ensino fundamental, o atendimento é até razoável. O problema é que não
há políticas públicas para garantir a permanência dessas crianças na escola. Uma das razões para
a evasão é que as famílias precisam de que os filhos ajudem no orçamento, e muitas crianças negras
têm de começar a trabalhar. Além disso, inúmeros estudos têm mostrado que o racismo expulsa a
criança da escola. Um dos primeiros foi feito em 1985 pelo professor Luiz Roberto Gonçalves, da
UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e falava sobre o silêncio do professor. Ele
mostrava que a criança negra sofre discriminação de outros colegas, mas o professor não sabe
como lidar com isso ou não vê.
Folha- Esse é um problema só do professor?
Petronilha - Não. Há uma ausência quase absoluta de imagens da população negra nas escolas. (...)
Há muitas coisas que a gente desconhece. Eu, pelo menos, nunca estudei na escola que havia reinos
africanos, como o do Congo e do Zimbábue. Quando falamos de ruínas de antigas civilizações,
falamos de Grécia e Roma. Ignora-se que já no século 13 havia três grandes universidades
islâmicas na região onde hoje está Mali [África subsaariana]. Os negros também descendem de
gente educada, com cultura. Outra coisa que não se fala é que os negros escravizados eram trazidos
de regiões onde tinham experiência agrícola, ou seja, não eram mão-de-obra desqualificada. O que
falta é conhecimento real da história. Quem não se orgulha da história de seus antepassados que
trouxeram desenvolvimento? (...)
Petronilha - A questão racial não é exclusiva dos negros. Ela é da população brasileira. Não
adianta apoiar e fortalecer a identidade das crianças negras se a branca não repensar suas
posições. Ninguém diz para o filho que ele deve discriminar o negro, mas a forma como se trata o
empregado, as piadas, os ditados e outros gestos influem na educação.
Folha - A senhora é a favor das cotas para negros em universidades?
Petronilha - Sou absolutamente a favor. O movimento negro costuma dizer que sempre existiram
cotas no Brasil. Elas beneficiavam brancos e descendentes de europeus, que sempre tiveram posição
garantida nas universidades.
Folha - A entrada de negros sem que seja pelo critério do mérito não é um golpe na auto-estima dos
próprios estudantes que se beneficiariam das cotas?
Petronilha - Ninguém está dizendo que eles ingressarão na universidade sem qualificação. O
sistema de cotas que sugerimos é o que leve em conta a aprovação do estudante no vestibular. Em
95, fiz parte de um grupo que estudou a adoção desse sistema na USP (Universidade de São Paulo).
As cotas que propusemos beneficiariam os estudantes que fossem aprovados no vestibular, mas que
não conseguissem a classificação para uma vaga.
p. C8, 25 mar. 2002.
155
Em 1º. de maio de 2002, o ator e produtor “norte-americano” Morgan Freeman,
“um dos mais respeitados artistas da comunidade afro-americana em Hollywood” esteve
no Brasil para divulgar seu novo filme, Crimes em Primeiro Grau. Em entrevista, ele
respondeu, entre outras perguntas, qual seria a solução para uma maior
representatividade dos negros no cinema. A resposta acaba por corroborar a opinião
difundida de que as cotas são perigosas para a qualidade do sistema.
(...) Folha - Na sua
opinião, qual seria a solução para que os negros tivessem uma maior
representação no cinema brasileiro?
Freeman - Eu não sabia que o Brasil tinha problemas raciais até chegar aqui. Quando
cheguei, vi que não havia negros na TV brasileira e pensei: "Eles precisam de cotas
urgentemente". Mas para resolver o problema é preciso começar pela base. A primeira coisa
seria tornar o sistema educacional mais includente. A criação de cotas para atores negros é
perigosa, pois o sistema acaba admitindo pessoas sem qualificação e produzindo mediocridade.
Mas como resolver o problema? As ações afirmativas são necessárias como solução provisória.
p. E4, 1º maio 2002.
As declarações de Freeman ganham destaque e são repetidas na seção Frases da
mesma edição:
FRASE
"Eu não sabia que o Brasil tinha problemas raciais até chegar aqui. Quando cheguei, vi que
não havia negros na televisão brasileira e pensei: 'Eles precisam de cotas urgentemente'. Mas
para resolver o problema é preciso começar pela base. (...) A criação de cotas para os atores
negros é perigosa, pois o sistema acaba admitindo pessoas sem qualificação e produzindo
mediocridade.”
MORGAN FREEMAN, ator
p. E4, 1º maio 2002.
Outro artigo, ainda no mesmo mês, atribui à política de cotas a responsabilidade
por reproduzir os mesmo resultados “discutíveis” verificados nos Estados Unidos:
156
Problema de escolarização surge no ensino básico
EUNICE R.DURHAM
Especial para a Folha
Lamento que, no Brasil, tenhamos nos encaminhado no sentido de imitar os Estados
Unidos na questão das cotas “raciais”, quando eles já reconheceram os resultados discutíveis
dessas iniciativas, as quais, além do mais, não levam em consideração as diferenças entre a
realidade americana e a brasileira.
O Brasil sempre teve o bom senso de evitar o destrutivo caminho seguido pelos Estados
Unidos e pela África do Sul, que consistiu em oficializar uma rígida separação preexistente
entre brancos e pretos, forçando que cada um optasse por uma ou outra condição: quem não é
branco é negro. Entre nós, há de fato muito poucos negros e poucos brancos puros. A imensa
maioria da população é mestiça, e o nosso caminho para enfrentar a discriminação consiste em
reconhecer essa realidade e valorizar a mestiçagem.(...)
Fonte: Folha de São Paulo, p. E5, 23 maio 2002.
O assunto volta depois, em julho, na seção Painel do Leitor — definição mais
apropriada para a participação editada do que se convencionou chamar opinião pública
— em carta que reconhece as injustiças históricas que atingem negros e mestiços, mas
contestando as cotas como uma possibilidade de solução:
Cotas raciais
Vem-se falando em separar cotas para estudantes negros nas universidades públicas já
há algum tempo. Constata-se, desta vez, que a idéia se tornou fato numa nota sobre a
Universidade Estadual da Bahia (Cotidiano, pág. C3, 22 de julho), que destinou 40% de suas
vagas a 'afro-descendentes'. Mas é preciso atentar para o caráter dúbio desse ato.
Historicamente, negros e mestiços são vítimas de injustiças raciais constantes. Mas
tomar como solução para o problema uma medida integralmente paliativa como essa só dará
um retorno negativo para negros e brancos. Uma medida construtiva é investir no ensino, do
pré-escolar ao superior. E quanto aos brancos? Com a medida, suas chances de ingressar na
faculdade decairão?
Gabriela Celebrone, Jaú, SP.
Folha de S. Paulo, p. A3, 24 jul. 2002.
A reportagem de agosto dá conta de uma decisão governamental, onde o próprio
ministro se declara contra a política de cotas:
157
Governo financiará bolsas para índios, negros e pobres
O governo editou ontem uma MP (Medida Provisória) no "Diário Oficial" da União
criando o programa Diversidade na Universidade, que transferirá recursos financeiros da
União para entidades que atuem na área de educação, como escolas e universidades, e
implementem cursos pré-vestibulares ou dêem bolsas de estudo para pobres, negros e índios.O
Ministério da Educação obteve verba de US$ 10 milhões para custear o programa por meio de
empréstimo do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). O programa foi a forma
encontrada pelo MEC para desenvolver políticas de inserção social e estratégias de promoção
ao ensino superior para grupos socialmente desfavorecidos, afro-descendentes e indígenas sem
ter de implementar cotas para negros. O ministro Paulo Renato Souza (Educação) é contra as
cotas. Ele escreveu, em artigo na Folha, em 2001, que espera que o Brasil não precise chegar à
instituição de cotas raciais na universidade e que acredita na capacidade de desempenho do
estudante brasileiro de qualquer origem social ou racial, quando estimulado e apoiado.
O ministro afirmou que, se isso não for suficiente, ele será o primeiro a defender as
cotas, porém ressaltou que não há por que imaginar que alunos pobres, negros ou pardos não
entrem na universidade por seus próprios méritos. O MEC considera que a adoção das cotas
não é ideal, pois criaria novas desigualdades. (...)
Fonte: Folha de S. Paulo, sucursal de Brasília,p. C6, 28 ago. 2002.
Em dezembro, uma nota “da redação” informa que a Suprema Corte dos Estados
Unidos vai rever o sistema de cotas para minorias:
Supremo dos EUA vai reexaminar ação afirmativa
Órgão anuncia que reabrirá casos controversos ligados ao favorecimento de
estudantes pertencentes a minorias étnicas
DA REDAÇÃO
A Suprema Corte dos EUA anunciou ontem que determinará se as universidades públicas
poderão continuar a levar em conta a raça dos estudantes ao analisar os pedidos de admissão.
O tema é delicado e tem repercussão nacional, afetando a educação superior e as políticas de
ação afirmativa – que favorecem as minorias. A mais elevada instância da Justiça americana
concordou em reexaminar casos que envolvem a faculdade de direito da Universidade de
Michigan e seu sistema de admissão de alunos. Esses casos têm um valor político muito elevado
e foram estudados pela última vez há 24 anos, quando uma decisão histórica foi tomada.
Negros e representantes de outras minorias étnicas defendem a ação afirmativa e argumentam
que se trata de um modo de diminuir o fosso existente entre os brancos e as outras raças e de
diversificar o corpo estudantil.
Os críticos da ação afirmativa sustentam que ela é uma forma inconstitucional de
"discriminação ao contrário".
Fonte: Folha de S. Paulo, p. A9, 3 dez. 2002.
Ainda no mesmo mês, o editor de Ciência, Marcelo Leite, informa que “não
existe base objetiva para a introdução de cotas raciais nas universidades públicas.” As
bases objetivas remetem ao discurso da Ciência, da qual o entrevistado é o representante
neste espaço. Em poucas intervenções, o jornal Folha de S. Paulo explicitou sua posição
no debate sobre as cotas raciais. Argumentos fortalecidos por instâncias que detêm
158
também um lugar de fala privilegiado na questão: a Suprema Corte dos Estados Unidos,
e a Ciência, através de um de seus representantes. A utilização, pela imprensa, do
discurso científico, cumpre a função de validar seus argumentos junto ao receptor,
agregando credibilidade a seus pontos de vistas. A naturalização desta premissa poderia
indicar a observação de que, afinal, trata-se de uma declaração respaldada na Ciência.
Raça é só conceito social, diz DNA brasileiro
MARCElO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
Nem todo negro no Brasil é geneticamente um afro-descendente, e nem todo afro-
brasileiro é necessariamente um negro. Assim se pode resumir a pesquisa do grupo de Flavia
Parra e Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgada
hoje na internet pela revista da Academia de Ciências dos EUA, onde o estudo dos
pesquisadores brasileiros poderá ter grande impacto.
De quebra, o trabalho deita por terra a possibilidade de encontrar um "critério
científico" de grupos raciais, como defendeu o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em
debate na TV. Pena, 55, um especialista na origem genética da população brasileira, diz que a
complexidade envolvida é "brutal" e que não existe base objetiva para a introdução de cotas
raciais nas universidades públicas, por exemplo.
Fonte: Folha de S. Paulo, p. 16, 17 dez. 2002.
Sobre o discurso da Ciência e sua relação como cotidiano, Moles afirma:
O pensamento científico julga-se pela contingência histórica tornar-se
um novo totalitarismo do espírito: totalitarismo, pois não existe
ninguém, tanto o cidadão televisivo quanto o homem político, que
pretenda reverenciar o pensamento racional e científico como guia de
suas ações, inclusive é claro quando se sacrifica ao culto ecológico ou
ao das pesquisas de opinião. Se não pensamos cientificamente, nós
nos queremos mal e nos consideramos indignos (provisoriamente) de
ser um agente da modernidade
101
.
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MOLES, A. As ciências do impreciso. São Paulo: Civilização Brasileira, 1988. p. 360.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vamos apresentar nesta etapa final apenas algumas considerações sobre o que
observamos neste levantamento, resumindo os pontos mais conceituais das observações
que estão explicitadas ao longo do trabalho.
Percebemos, logo de início, ao colecionar os diversos recortes que compõem o
corpus de análise, que temos uma imprensa conservadora, que repete padrões que não
condizem com as demandas sociais contemporâneas, demonstrando que ainda está
impregnada de preconceitos arcaicos, o que fica evidente no discurso que constrói no
calor da polêmica sobre as cotas raciais. Acreditamos que essa tendência afeta a grande
imprensa de um modo geral, mesmo quando a observamos pela amostra de dois grandes
jornais. Essa tendência, em nossa opinião, está relacionada, em um estágio mais
primitivo, à própria gênese da imprensa no Brasil, representante que foi de interesses
pragmáticos de uma classe que reconhecia na força do povo a alavanca para mudanças,
e que produzia não propriamente jornais, mas panfletos e revistas doutrinárias, com o
objetivo de atingir metas políticas que nem sempre tinham um compromisso com a
massa de que se valiam.
Por outro lado, em pese a naturalização dos processos ideológicos submersos no
campo das opacidades discursivas, a atualização desses preconceitos raciais se
atualizam no discurso pela participação individual dos jornalistas no processo de
produção das notícias e se formalizam enquanto discurso na organização editorial.
Os dois jornais analisados são visivelmente contra a instituição das cotas raciais
para a promoção do acesso dos negros às universidade públicas. Mas o fato de serem
contra, em que pese o caráter de isenção e imparcialidade que os deveria por regra
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caracterizar, não é de todo o mais grave aspecto observado. Podemos até eventualmente
admitir que os argumentos contrários às cotas são mais plausíveis do que os argumentos
a favor, se aos dois lados fossem dadas oportunidades iguais de manifestação. Esta seria
a única forma de os cidadãos se inteirarem do debate, já que nem todos são diretamente
afetados pela decisão da implementação ou não das cotas e, por isso, não participam dos
fatos diretamente. A “opinião pública” que percebemos através dos jornais é uma
construção discursiva que se organiza no encadeamento das editoriais e que passa a ser
considerada, em uma revitalização e re-atualização promovida pelo próprio processo de
produção do discurso jornalístico, como a opinião pública por excelência.
Em fins do século XIX, a imprensa artesanal vai aos poucos sendo substituída
pela imprensa industrial; na virada do século temos já a chamada “indústria jornalística”
que acompanha o desenvolvimento das relações capitalista no país. Ao contrário dos
jornais do século XIX, que eram de opinião explícita e nascidos, muitos deles, a
propósito da defesa de seus ideários, porta-vozes de lutas políticas e partidárias que
manifestavam claramente — mas que também desapareciam quando já não havia mais
por que lutar — o jornais modernos atendem a uma lógica de mercado que os subordina
como a qualquer empresa produtora de um bem comercial qualquer.
Instala-se nesse momento uma contradição com que os grandes jornais terão que
eternamente lidar: como servir ao bem comum pertencendo a um universo onde o poder
político e empresarial se impõe? Pensar que poderá ser pelos compromissos comerciais
que lhes exigem eficiência é transferir ao mercado a função de controle de algo que
também não é de sua natureza — o atendimento preferencial aos interesses do cidadão,
o que seria fácil em se tratando de automóveis e geladeiras, mas nem tanto quanto se
afeta a ordem social hegemônica. Principalmente se levarmos em consideração que os
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governos estão entre os principais anunciantes dos veículos de imprensa, com uma
substancial fatia das verbas publicitárias que circulam no setor.
O que configura o poder dos veículos jornalísticos é sua relação com a “opinião
pública” — essa entidade abstrata que apenas o próprio veículo tem o poder de
auscultar, através de suas pesquisas, cartas dos leitores, páginas de opinião etc.; e de
também mobilizar, levar às ruas e passeatas. A capacidade de mobilização da opinião
pública é que se constitui na força política do jornal. Essa massa que se homogeiniza em
opinião pública apesar de geralmente difusa, ao atender ao “apelo” às vezes insistente
do jornal, não o faz pela qualidade de seu noticiário apenas, nem por sua qualidade
técnica. Mas pela garantia de que o jornal — e neste caso muito mais os impressos do
que os de outras mídias — estará permanentemente a serviço de seus interesses,
principalmente contra os desmandos de governos e classes empresariais — porque a
chamada “opinião pública qualificada” tem acesso direto aos setores onde
eventualmente precisa discutir seus interesses, e até mesmo aos jornais e suas seções de
Opinião. Os indivíduos da massa comum que confiam na imprensa o fazem por motivos
claros e a imprensa deve retribuir com os atributos da imparcialidade, isenção e
credibilidade, sua real moeda de valor. Sabemos todos que a isenção é uma ficção e a
imparcialidade é uma difícil construção. A credibilidade, no entanto, está na
dependência direta da capacidade de o jornal resolver as duas outras complicadas
premissas.
Com esse preâmbulo queremos ressaltar apenas o fato de que os discursos do
jornal e da imprensa em geral são controlados por esses valores simbólicos, que se
constituem na peça de divulgação por excelência dos veículos. No entanto, os jornais,
na figura de seus diretores, editores e até mesmo de seus jornalistas em funções com
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menos autonomia não se abstêm de interpor suas opiniões nos assuntos mais candentes.
É aí que se dá a construção de um discurso que analisamos como o discurso da
imprensa.
No caso de um juiz que rouba ou de um político corrupto, o texto de condenação
é fácil e certo: estamos todos de acordo. Mas quando a questão é racismo, ou benefício
com base na constatação de que há discriminação na sociedade, fica mais difícil assumir
claramente a posição contrária ao que se oferece como positivo para os indivíduos que
compõem a população prejudicada na questão. Afinal, eles também conformam — e
quanto! — a opinião pública. Como deixar que o debate transcorra sem tomar posição?
E afinal quem toma posição: jornal ou os jornalistas? Quem é contra as cotas: o jornal
ou jornalistas? Podemos falar de um “discurso da imprensa”?
Nosso ponto de vista é de que a interdiscursividade de vários graus a que nos
referimos conforma um discurso, que podemos referir como o discurso da imprensa nas
seguintes condições:
1. Em assuntos onde há consenso entre os grandes jornais impressos, já que
costuma haver consenso na maioria dos temas;
2. Na contradição entre discurso manifesto e discurso implícito. Quando
conseguimos “ler” através dos títulos e elementos de edição, a conformação de um texto
outro que poderá contradizer a vocação da imprensa, publicizada pelos diversos
veículos jornalísticos, confirmando-a ou simplesmente contradizendo a linha editorial
do próprio jornal.
O que notamos como tomada de posição dos “jornais” pode ser arrolado como
um erro básico na regra jornalística que recomenda a imparcialidade. Notamos, na
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seqüência dos textos reproduzidos, uma tendência desfavorável aos defensores das cotas
raciais. Seria um erro técnico, não se tratasse de uma oportunidade rara de interferência
em um processo social excludente que secularmente vitima os negros. No entanto, o que
pudemos perceber foi uma flagrante tendência a um dos lados do debate, construída ao
longo das diversas edições.
Entre a imprensa e a empresa, sabemos que a distância é curta. Mas entre o
discurso da imprensa e a realidade social, sabemos que existe uma larga distância que
apenas os jornalistas são capazes de cerzir. Isso mesmo, cerzir nos sentido de costurar e
aproximar, de fazer valer a profissão de fé de que a imprensa trabalha na defesa do bem
comum. Afinal, já que aos jornalistas se atribui a força da comunicação e a
responsabilidade pelas falhas que a imprensa comete, que se cumpra a lenda e que a eles
seja atribuída a missão de restaurar a imprensa humanística do fosso tecnicista onde se
meteu.
O esforço empreendido nesta tese, de certa forma, caminha nesta direção e visa a
oferecer aos jornalistas, aos estudantes de jornalismo e aos cidadãos em geral subsídios
para a compreensão do papel que a imprensa e o jornalismo desempenham na
construção da sociedade que compartilhamos. Acreditamos que a única forma legítima
de controle e supervisão do trabalho da imprensa é aquela instalada pelo conhecimento
— de quem elabora e de quem recebe a informação.
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