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Sylvia Regina Bastos Nemer
A FUNÇÃO INTERTEXTUAL DO CORDEL
NO CINEMA DE GLAUBER ROCHA
TESE DE DOUTORADO
ORIENTADORA : IVANA BENTES
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Rio de Janeiro, fevereiro de 2005
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A Sergio, pelo apoio sem limites e a Marcos e Lívia que conviveram com
minhas angústias e ausências.
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Agradecimentos
Agradeço em primeiro lugar a Ivana Bentes pela maneira como conduziu a orientação,
incentivando-me, dando-me liberdade para desenvolver um ponto de vista próprio, mas, ao
mesmo tempo, questionando-me e contribuindo com sua experiência para ampliar as discussões
levantadas durante a pesquisa. Devo muito também a Idelette Muzart Fonseca dos Santos que me
acolheu na Universidade Paris X-Nanterre, orientou minhas pesquisas sobre literatura de cordel e
me deu oportunidade para participar de jornadas e seminários que possibilitaram a discussão do
projeto com especialistas internacionais. Agradeço ainda à CAPES pela bolsa que permitiu minha
dedicação exclusiva ao doutorado e pela bolsa-sanduíche concedida pelo período de um ano para
realização de um estágio em Paris que foi absolutamente central para os rumos do presente
trabalho.
4
“Pois, assim como os cacos de um vaso, para poder se deixar juntar,
precisam seguir-se nos mínimos detalhes, no entanto não igualar-se,
assim também deve a tradução, em vez de se tornar semelhante ao
sentido do original, de maneira amorosa e até no menor detalhe deve ela
se conformar, na sua própria língua, à maneira de querer dizer do
original, a fim de que ambas línguas como cacos se tornem reconhecíveis
enquanto fragmento de um vaso, fragmento de uma língua maior.”
(Walter Benjamin. Die Aufgabe des Übersetzers (A Tarefa do Tradutor)
citado por Jeanne Marie Gagnebin. História e narração em Walter Benjamin.
São Paulo, Perspectiva, 1994, p 30)
5
Resumo
Esperando contribuir para ampliar as discussões sobre o problema da intertextualidade fílmica, o
objetivo do presente trabalho é refletir sobre a apropriação da literatura de cordel em Deus e o
diabo na terra do sol (1964) e em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), filmes
de Glauber Rocha dedicados à representação do universo social e cultural sertanejo. A
preocupação do cineasta com a forma de representação, discutida em seus textos Estética da fome
(1965) e Estética do sonho (1971), reflete-se, nos dois filmes estudados, no modo como estes
lidam com o cordel. Recusando o tratamento da temática sertaneja pelo cinema político da época,
o cineasta procurava retratar o sertão a partir de suas próprias tradições que passavam, contudo,
por um processo de transformação visando a sua adaptação, em primeiro lugar, à narrativa
cinematográfica e, em segundo, a uma perspectiva política inexistente nas manifestações da
cultura popular. Isso explica porque as composições, tanto as canções de Deus e o diabo quanto
as falas, inspiradas nos desafios repentistas, de O dragão da maldade, foram feitas por artistas
letrados como Sergio Ricardo e o próprio cineasta que escreveu as respectivas letras. Com base
nessas questões, o presente trabalho procura verificar o que os referidos filmes retêm da tradição
popular do cordel e o modo de expressá-la cinematograficamente.
Abstract
This work aims to discuss the problem of film intertextuality by the analisys of literatura de
cordel appropriation in the films of Glauber Rocha where the sertão, its social and cultural
universe, is focused : Deus e o diabo na terra do sol (1964) and O dragão da maldade contra o
santo guerreiro (1969). The question of form representation, discussed in his texts Estética da
fome (1965) and Estética do sonho (1971), is reflected, in these two films, in the way the cordel
is treated in each one. Refusing the approach of the sertão subject by the political cinema of the
epoch, the cineaste looked for one kind of expression that incorporated the people’s traditions of
the region represented. These traditions, however, were not translated literally. They were, in
fact, transformed to be adapted into the cinematographic language and also into the political
perspective that originaly inexisted in them. This explains why the compositions of both films,
the songs of Deus e o diabo as much as the dialogues inspired by the desafios repentistas of O
dragão da maldade, were created by learned artists such as the cineaste himself, and the musician
Sergio Ricardo that made its musics. Based on these questions, the present work verifies what the
mentioned films keep from the cordel popular tradition and the way they express it
cinematographicaly.
6
Sumário
Introdução………………………………………………………………………………………… 7
Capítulo 1: A reinvenção da tradição…………………………………………………………….11
1.1 – a adaptação cinematográfica do cordel……………………………………………………..12
1.2 – o cordel e suas histórias…………………………………………………………………….22
1.3 – a literatura de cordel e as novelas de cavalaria.....………………………………………….29
1.4 – o mito do cangaceiro e outros mitos………………………………………………………..35
1.5 – a representação do Nordeste no panorama cultural dos anos 1960………………………...49
Capítulo 2: Deus e o diabo na terra do sol: a função da canção…………………………………64
2.1 – canção e transformação…………………………………………………………………….65
2.2 – o som e a imagem em relação ao ritmo…………………………………………………….73
2.3 – a dupla temporalidade………………………………………………………………………84
2.4 – o efeito de pontuação da canção……………………………………………………………94
2.5 – a canção e a construção dos personagens…………………………………………………103
2.6 – elaboração do ponto de vista narrativo……………………………………………………115
Capítulo 3: O dragão da maldade contra o santo guerreiro : a encenação do desafio…………125
3.1 – o desafio e a performance popular (a participação do público)…………………………...126
3.2 – o espectador e o espetáculo cinematográfico……………………………………………...133
3.3 – o western visto por Glauber Rocha………………………………………………………..145
3.4 – o teatro da violência e o novo espectador…………………………………………………151
3.5 – cultura popular e carnavalização………………………………………………………….161
3.6 – a revolução não pode prosseguir sem(…)..……………………………………………….169
Capítulo 4: Os sertões de Glauber Rocha: 1964 e 1969………………………………………...172
Capítulo 5: O sertão e outros sertões……………………………………………………………186
5.1 – o sertão dos primeiros filmes……………………………………………………………...187
5.2 – o sertão do exílio e depois(...)……………………………………………………………..195
5.3 – o problema do significado em História do Brasil………………………………………...205
Conclusão……………………………………………………………………………………….209
Lista dos filmes citados…………………………………………………………………………212
Bibliografia……………………………………………………………………………………...214
Anexo : DVD, filme de 26 minutos sobre o tema da tese
7
Introdução
A construção de imagens do ‘real’ como resultado da produção cinematográfica e das
diversas estratégias e técnicas de filmagem tem sido um distintivo importante da comunicação
visual frente às demais formas de discurso. Não é à toa que nas reflexões contemporâneas que
redefinem a pesquisa no campo da imagem as questões relativas ao ‘real’ estejam no foco das
atenções. No cerne destas discussões está a afirmação de que o cineasta, faça ele documentários
ou cinema de ficção, nunca abandona sua condição de autor. Ele é parte constitutiva da realidade
representada, à qual as imagens, mesmo em se tratando de imagens do ‘real’, não fornecem
acesso direto, embora normalmente criem essa ilusão. Nesse sentido, como os estudos da
comunicação podem se beneficiar das imagens cinematográficas em sua abordagem do ‘real’?
Considerando as imagens como registros frágeis do ‘real’, procuraremos neste trabalho,
compreender o tipo de realidade retratada em Deus e o diabo na terra do sol (1964) e O dragão
da maldade contra o santo guerreiro (1969), filmes de Glauber Rocha dedicados à representação
do espaço social e cultural do Nordeste. Privilegiando a dimensão do imaginário em sua
aproximação do ‘real’, esses filmes constituem experiências importantes no campo da
‘transposição’ da literatura popular oral para a expressão cinematográfica. Partindo do
pressuposto de que a literatura de cordel expressa, de certo modo, a visão de mundo do público
sertanejo a quem originalmente se dirige, qual seria o sentido de sua ‘apropriação’ por uma
manifestação artística dirigida a um público urbano? Como a arte popular do cordel é ‘traduzida’
para as imagens cinematográficas? Como o sertão aparece nessas imagens? Para refletir sobre
essas questões realizaremos uma análise da relação intertextual entre a literatura de cordel e os
dois filmes de Glauber onde o cordel funciona como elemento estruturador da narrativa.
8
Nesse sentido devemos deixar claro que a ‘transposição’, de que falamos há pouco, não é
direta e tampouco literal é a ‘tradução’. Não se trata da representação (tal como o termo costuma
ser considerado) cinematográfica da poesia de cordel, mas da tentativa de levar para a tela
sentimentos e ações que estão na raiz dessa poesia, mobilizando, por meio da imagem e da fala,
os mitos sertanejos que circulam nos folhetos de cordel bem, como a carga de energia mágica,
mística e criativa que envolve o cantador e seu público. Assim, aquilo que do cordel os filmes se
apropriam não é nada além de seus fragmentos. Pois,
sejam quais forem os textos assimilados, o estatuto do discurso intertextual é
comparável ao duma super-palavra, na medida em que os constituintes deste
discurso já não são palavras, mas sim coisas já ditas, já organizadas, fragmentos
textuais. A intertextualidade fala uma língua cujo vocabulário é a soma dos
textos existentes.
1
Partindo dessas questões (da representação do real, da relação entre o real e o imaginário,
da transmissão da tradição e sua transformação pelo ato de apropriação), procuramos no capítulo
1 verificar as várias influências da literatura de cordel, as influências recebidas e as transmitidas:
o legado da tradição cavalheiresca que se incorporou à poesia sertaneja, os seus mitos, suas
migrações, suas transformações e suas apropriações por artistas letrados. Considerando uma
dessas apropriações, a de Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol e em O dragão da
maldade contra o santo guerreiro, dedicamos os capítulos 2 e 3, respectivamente, à discussão da
forma e do sentido dessa apropriação. Em relação a Deus e o diabo, partindo do pressuposto de
que as canções que compõem o filme (inspiradas na tradição de cordel) formam uma narração,
nos orientamos por estudos desenvolvidos por teóricos franceses e canadenses sobre a narrativa
cinematográfica. Esses estudos, voltados para a análise da narrativa clássica, permitiram que
percebêssemos as rupturas estabelecidas pelo filme em relação às estratégias narrativas vigentes
1
Laurent Jenny. « A estratégia da forma » in Intertextualidades. « Poétique » revista de teoria e análise literárias.
Coimbra, Livraria Almedina, 1979, p 21-22.
9
no cinema convencional. No que se refere a O dragão da maldade a base da análise foi a idéia de
performance popular tratada por Paul Zumthor em Introduction à la poésie orale
2
. Nossa
argumentação se preocupou com a questão da encenação tomando como referência os desafios
repentistas que invertem, no referido filme, o sentido usual do duelo cinematográfico mais
especificamente o duelo do western. Nesse filme o cordel ‘carnavaliza’ (segundo termo
empregado por Mikhail Bakhtin
3
) tanto o espetáculo cinematográfico tradicional quanto a moral
burguesa e o mundo da ordem representado pelos poderosos da sociedade sertaneja. No capítulo
4 procuramos entender os diferentes tratamentos dados à temática sertaneja em Deus e o diabo e
O dragão da maldade relacionando-os ao contexto histórico e cultural de suas respectivas
produções. Por último, a fim de compreender os referidos trabalhos no conjunto da obra do
cineasta, procuramos, no capítulo 5, avaliar cada um de seus filmes em perspectiva global,
relacionando-os tanto às idéias apresentadas em seus textos quanto ao momento histórico de cada
uma de suas produções. Ainda nesse capítulo desenvolvemos uma reflexão sobre a questão da
representação cinematográfica, questão essa que se revela uma das principais preocupações de
Glauber Rocha em sua obra.
Em relação aos dois filmes analisados (Deus e o diabo e O dragão da maldade) a questão
da representação está diretamente associada à apropriação, nos mesmos, da literatura de cordel.
Deve-se, contudo, lembrar que, embora tal apropriação assuma, em cada um dos filmes, uma
forma própria, o objetivo, em ambos os casos, é o mesmo, ou seja, romper com o cinema
convencional desenvolvendo, a partir do próprio universo do oprimido, uma nova estética
cinematográfica. Pensada como uma forma de crítica, ao mesmo tempo, estética e política, essa
2
Paulo Zumthor. Introdution à la poésie orale. Paris. Seuil, 1983.
3
Mikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento : o contexto de François Rabelais. São
Paulo, Hucitec, 1999.
10
idéia foi apresentada por Glauber Rocha no texto Eztetyka da fome
4
, onde a violência, como
indicou o cineasta, não é, como no cinema narrativo clássico, simplesmente representada; ela faz
parte da estrutura do filme: montagem, movimentos da câmera, música, luz, e do próprio cordel,
que tem na ‘luta’ seu horizonte de referência, sua base de ‘experiência. Assim, será por
intermédio da análise do papel da luta, da violência como produtora de sentido, que serão
buscadas respostas às problemáticas levantadas por Glauber Rocha nos dois filmes em que o
cineasta se volta para o universo sertanejo.
4
Tese apresentada durante as discussões em torno do Cinema Novo, por ocasião da retrospectiva realizada em
Gênova em janeiro de 1965. Foi publicada em Glauber Rocha. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro,
Alhambra/Embrafilme, 1981 e no livro de Sylvie Pierre. Glauber Rocha. Campinas, Papirus, 1996.
11
Capítulo 1
A reinvenção da tradição
A manutenção da tradição exige a preservação das chamas
e não a conservação das cinzas.
Inspirados em temas do romanceiro tradicional, Deus e o diabo na terra do sol e O
dragão da maldade contra o santo guerreiro evocam a literatura de cordel em seus títulos, nos
versos de suas canções, em sua estrutura dramatúrgica e nas ações de seus personagens.
“Escrever é ter lido, e assim cada texto é a precipitação de muitos outros”
5
. O cangaceiro, o
beato, o vaqueiro e o matador, figuras oriundas de uma certa mitologia brasileira, traduzem para a
tela (uma espécie de segundo texto) os valores e saberes transmitidos de geração para geração
pela poesia popular oral. Caracterizada pelo embate entre as forças do bem e as do mal, essa
poesia prolonga a tradição heróica e legendária dos bandidos de honra cuja missão era lutar
contra os poderosos em defesa dos mais fracos.
Essa poética guerreira e valorizadora do homem valente, do sem-lei, está em
todos os povos. Vive na Inglaterra em Robin Hood, na França com Pierre de la
Brosse, seigneur de Langeais, na Itália com Gasparone, com Bonnacchocia...
6
Lampião, bandido célebre que durante quase vinte anos desafiou as forças da polícia
assegurando sua dominação sobre uma vasta zona do território nacional e sua população, se
inscreve nessa tradição. Ele é o herói de inúmeros folhetos de cordel que testemunham sua
5
Jerusa Pires Ferreira. Cavalaria em Cordel – o Passo das Águas Mortas. São Paulo, Hucitec, 1979, p 16.
6
Luis da Câmara Cascudo. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001, p 122.
12
singularidade, sua ambivalência, sua dualidade profunda. Anjo e diabo, bom e cruel, vítima do
destino e assassino por prazer, o cangaceiro é objeto de múltiplas representações. Imortalizado
pela voz popular, tornou-se personagem de uma narrativa continuamente retomada: sua história
não cessa de ser reescrita, sua imagem de ser reelaborada
7
. No cinema, ele foi retratado pela
primeira vez em 1936 no filme documentário de Benjamin Abraão, Lampião o Rei do Cangaço.
O filme, contrariando as expectativas dos produtores que desejavam cenas de combate e
violência, mostrava os cangaceiros em suas atividades banais, dançando, rezando, costurando,
etc. Censurado em 1937 pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de Getúlio Vargas,
o filme, que segundo os responsáveis pela censura poderia caracterizar uma antipropaganda para
o governo então em luta contra o cangaço, foi conservado em arquivo e suas imagens foram
reutilizadas mais tarde nos filmes Memória do Cangaço (1965) de Paulo Gil Soares, Dadá, a
Musa do Cangaço (1981) de José Umberto, Corisco e Dadá (1996) de Rosemberg Cariry e Baile
Perfumado (1997) de Paulo Caldas e Lírio Ferreira que fala sobre a experiência pioneira de
Benjamin Abraão no acampamento dos cangaceiros.
8
1.1 - A adaptação cinematográfica do cordel
O filme de cangaço ou nordestern, como qualificou Glauber Rocha em alusão ao cinema
americano, constitui uma espécie de gênero cinematográfico. Sua origem é O Cangaceiro, filme
de Lima Barreto rodado em 1952 no estado de São Paulo. Longe do ambiente real do sertão, o
7
Élise Grunspan-Jasmin. Lampião, vies et morts d’un bandit brésilien. Paris, PUF, 2001. Nesse livro a autora analisa
as diferentes versões sobre a vida e a morte de Lampião elaboradas pela imprensa, literatura, poesia popular e
fotografia. O livro discute o processo de construção da imagem e do mito, bem como suas metamorfoses.
8
Sylvie Debs. Cinéma et littérature au Brésil – Les mythes du Sertão : émergence d’une identité nationale. Paris,
L’Harmattan, 2002. O livro propõe uma leitura do sertão e seus mitos a partir das representações feitas pela literatura
e pelo cinema no sentido da construção de certas imagens do Nordeste.
13
filme dirige seu olhar para o típico, o exótico do ambiente sertanejo e suas figuras
9
.
Extraordinariamente bem feito do ponto de vista de sua fotografia, o trabalho de Lima Barreto
ganhou o prêmio em Cannes mas não escapou às duras críticas de Glauber Rocha que anos mais
tarde realizaria seu próprio filme sobre o Nordeste.
Deus e o diabo na terra do sol conta/canta a história do vaqueiro Manuel e sua mulher
Rosa : Manuel e Rosa viviam no sertão / trabalhando a terra com as próprias mão. /Até que um
dia, pelo sim, pelo não, / entrou na vida deles o Santo Sebastião. / Trazia bondade nos olhos, /
Jesus Cristo no coração.
As palavras do cantador off são acompanhadas por imagens que nos revelam a
ambientação da história: a paisagem árida, o gado morto, o grupo de beatos vagando pelo deserto,
o casebre pobre, o vaqueiro e sua mulher. Depois dessas primeiras imagens começa a se
desenvolver a ação que vai se centrar na tentativa de o casal encontrar uma saída após a tragédia
que sobre suas vidas recaiu. Obrigados a fugir depois de uma briga de ajuste de contas com um
fazendeiro da região, os dois acabam se juntando a um grupo de fiéis liderados por um beato que
lhes promete que um dia o sertão vai virar mar e o mar virar sertão. A experiência religiosa de
Manuel, no entanto, terá seus dias contados. A Igreja, incomodada com o crescimento dos
poderes de Sebastião, contrata um jagunço para destruir o arraial onde se reuniam o ‘santo’ e seus
beatos. Antônio das Mortes cumpre a tarefa, porém Manuel e Rosa escapam ao massacre.
Começa então a segunda parte da história devidamente marcada pelos versos do cantador off : Da
morte em Monte Santo / sobrou Manuel Vaqueiro / por piedade de Antônio / matador de
cangaceiro. / Mas a estória continua, / preste mais atenção: / andou Manuel e Rosa / nas vereda
9
Sobre o filme O Cangaceiro, Glauber Rocha comenta que Lima Barreto, sem ter ouvido sobre o romance do
cangaço e sem ter interpretado o sentido dos romances nordestinos « creó un drama de aventuras convencional y
sicológicamente primario, ilustrado por las místicas figuras de sombreros de cuero, estrellas de plata e crueldades
comicas. » Glauber Rocha. Revisión Critica del Cine Brasilero. Havana, Ediciones ICAIC, 1965, p 54.
14
do sertão / até que um dia, / pelo sim, pelo não / entrou na vida deles / Corisco, diabo de
Lampião.
A partir daí inicia-se uma nova fase na vida do vaqueiro que decide abandonar a religião
para converter-se ao cangaço. Batizado de Satanaz ele seguirá Corisco em seus atos de violência
e destruição até que novamente aparece Antônio das Mortes decidido a acabar com o último
representante do cangaço. Mais uma vez poupados pelo jagunço, Manuel e Rosa fogem
atravessando o sertão em direção ao mar. Acompanha a corrida de Manuel a voz do cantador off
que, na forma de profecia, anuncia: O sertão vai virar mar / e o mar virar sertão! / Tá contada a
minha estória, / verdade, imaginação. / Espero que o sinhô / tenha tirado uma lição: / que assim
mal dividido / esse mundo anda errado, / que a terra é do Homem, / não é de Deus nem do
Diabo.
Intercalando as imagens aos versos do cantador, o objetivo de Glauber Rocha nesse filme
foi, segundo suas próprias palavras, “transportar um autêntico romance de aventuras nordestinas,
destes que se compram nas feiras, para o cinema”
10
. Anos mais tarde, dentro dessa mesma
proposta, o cineasta realizou O dragão da maldade contra o santo guerreiro, uma espécie de
continuação do filme de 1964.
Dessa vez o foco da história é Antônio das Mortes que já ‘aposentado’ de seu antigo
ofício, é convocado pelo delegado de Jardim das Piranhas para acabar com o bando de
cangaceiros e beatos que invadiram a cidade, provocando desordem e a ira do coronel Horácio,
detentor do poder na localidade. Após certa indecisão, Antônio das Mortes decide aceitar a tarefa
partindo da cidade grande em direção ao sertão. Em Jardim das Piranhas, Antônio entra em duelo
com Coirana, cangaceiro determinado a continuar a luta de Lampião. Nesse duelo o cangaceiro
10
Luiz Augusto Mendes. Deus e o diabo na terra do sol (trecho extraído do libreto original do filme apresentado no
encarte do DVD). Coleção Glauber Rocha
15
sairá ferido e durante sua agonia o jagunço fará um exame de consciência ajudado pela Santa que
o convence a mudar de lado. Essa atitude faz com que o coronel resolva chamar o bando de Mata
Vaca, que será contratado para terminar o serviço iniciado por Antônio. A missão é executada; os
beatos que se aglomeravam na encosta da montanha são exterminados com exceção da Santa e do
negro Antão. Diante do massacre, Antônio das Mortes resolve entrar em ação; com a ajuda do
professor, do padre, da Santa e do negro montado em um cavalo branco, ele conseguirá vencer o
bando de jagunços contratado por Horácio que durante a luta é acertado pela lança de Antão.
Tendo cumprido sua missão, o ex-jagunço retorna à estrada e afasta-se em direção ao horizonte.
A história de Antônio das Mortes é a história de um matador que após uma crise de
consciência adquire uma nova postura perante o mundo. Trata-se de uma transformação : um
homem mau que torna-se bom. Luiz Távares Junior
11
, em seu livro sobre o Mito na literatura de
cordel comenta sobre essa situação narrativa, segundo ele muito comum nos romances populares.
Em seu estudo ele analisa dois tipos de mitos : o “mito da maldade castigada”, que estaria na base
da construção do personagem de Antônio das Mortes, e o “mito da inocência perseguida”, que
corresponderia ao personagem do vaqueiro Manuel. O combate entre o bem e o mal, que está na
raiz da poesia popular, é a base das duas narrativas: Deus e o Diabo, o Dragão e o Santo
Guerreiro. Em Deus e o diabo na terra do sol os elementos da luta estão definidos: de um lado o
“deus negro”, do outro o “diabo louro”, no centro de tudo, Manuel, que, no fim, decide seguir seu
próprio caminho.
Em O dragão da maldade contra o santo guerreiro esse esquema se complica pois o mal,
que a princípio se encontra do lado de Antônio das Mortes, no fim se desloca para o personagem
do coronel que acaba tornando-se alvo da lança do negro Antão. No filme o cordel atua como
horizonte de referência fornecendo elementos para a construção da trama, no caso, caracterizada
16
por uma profundidade psicológica inexistente na poesia popular onde a transformação do herói
não passa pelo exame de consciência mas pela sua capacidade de vencer o mal, em geral,
simbolizado pelo dragão.
No folheto Juvenal e o dragão de João Martins de Athayde
12
temos um exemplo típico
dessa construção – Juvenal é um rapaz pobre que, após a morte do pai, decide sair pelo mundo
deixando a casa e os poucos bens com a irmã : (Ficou ela na choupana / cumprindo a sina faltal /
o seu nome era Sofia / o dele era Juvenal / que pensava em aventura / atrás do bem e do mal).
Em seu caminho ele encontra uma moça em vias de ser devorada por um dragão. Com a ajuda de
seu cão ele luta contra a fera e consegue salvar a mocinha que, por acaso, é a filha do rei. Depois
de muitas aventuras e desventuras Juvenal vai ao encontro da princesa e como prêmio por sua
bravura casa-se com ela tornando-se herdeiro do reino (Casou-se com a linda princesa / o valente
Juvenal, / repercutiu a notícia / pelo mundo universal / rolou festa 15 dias / no palácio imperial).
O folheto de Athayde destaca um tema recorrente na literatura de cordel: o da luta. Mas
não é só como tema que a luta se mostra importante para os praticantes da poesia oral; na
verdade a luta é a própria razão de ser dessa poesia cuja forma mais típica é a do desafio: “a
terminologia remete à idéia de violência, de luta, onipresente nos torneiros cantados
tradicionais ”
13
.
Em O dragão da maldade contra o santo guerreiro o duelo verbal entre Antônio das
Mortes e Coirana reproduz o desafio de cordel. Em versos rimados, os dois rivais se enfrentam
com armas e palavras:
11
Luiz Távares Júnior. O mito na literatura de cordel. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980.
12
João Martins de Athayde. Juvenal e o dragão in Idelette Muzart-Fonseca dos Santos. La littérature de cordel au
Brésil – Mémoire de voix, grenier d’histoires. Paris, L’Harmattan, 1997, p 210-237.
13
Ibid., p 29 (trad. S.R.B.N.).
17
Coirana – Tenho mais de mil cobrança pra fazer, mas se eu falar de todas a terra vai estremecer.
Quero só cobrar as preferida do testamento de Lampião. Quem é homem vira mulher, quem é
mulher pede perdão. Prisioneiro vai ficar livre, carcereiro vai pra cadeia. Mulher dama casa na
igreja com véu de noiva na Lua cheia. Quero dinheiro pra minha miséria, quero comida pro meu
povo, se não atenderem meu pedido vou vortar aqui de novo.
Antônio – Tu é verdade ou é assombração? Diga logo, cabra da peste ! Eu de minha parte não
acredito nesse roupa que tu veste.
Coirana – Primeiro diga você seu nome, fantasiado. Quem abre assim a boca fica logo
condenado.
Antônio – Pois aprepare seus ouvido e ouça. Meu nome é Antônio das Morte, pra espanto da
covardia e desgraça da sua sorte. Mas uma coisa eu digo: no território brasileiro, nem no Céu
nem no Inferno, tem lugar pra cangaceiro.
A última fala de Antônio das Mortes lembra a parte final do poema de José Pacheco
Chegada de Lampião ao inferno
14
: Vou terminar essa história / tratando de Lampião / muito
embora que não possa / vos dar a explicação : / no Inferno não ficou, / no Céu também não
chegou, / por certo está no sertão.
Cantado na íntegra em uma das seqüências mais longas de O dragão da maldade contra o
santo guerreiro, o poema de José Pacheco evoca o lugar de Lampião na história – o sertão onde
ele permanece vivo, como mito, como personagem lendário. Embora de formas diferentes, essa
dimensão, do mito e sua transmissão, é reforçada nos dois filmes aqui analisados. O modo como
o cordel é tratado em cada um deles explica a diferença na forma de transmissão do mito.
Deus e o diabo é uma espécie de cordel filmado onde as imagens, de certa forma,
reproduzem as falas do cantador: há um diálogo estreito com o cordel, uma transposição de
18
linguagens, da oral para a visual, onde o mito é a repetição do passado no presente. Em O dragão
da maldade, o mito se apresenta como a repetição de uma história, como mostra, no início do
filme a declaração de Coirana: Eu vim aparecido. Não tenho família nem nome. Eu vim tangendo
o vento pra espantar os últimos dias da fome. Eu trago comigo o povo desse sertão brasileiro e
boto de novo na testa um chapéu de cangaceiro. Mas essa história, como indica a fala de Antônio
das Mortes, está cercada de dúvidas quanto a sua veracidade: (Tu é verdade ou é assombração?
Diga logo, cabra da peste. Eu de minha parte não acredito nessa roupa que tu veste). Nesse
filme o cordel aparece como referência isolada, como uma forma de citação que se mistura a
outras provenientes de universos culturais diferentes como, por exemplo, a música Carinhoso,
sucesso nas rádios das capitais do país, cantada por Matos (o delegado) e Laura (a mulher do
coronel) na cena que revela a existência de um affaire entre os dois ‘forasteiros’.
Ao contrário de Deus e o diabo na terra do sol, que está mais imerso no ambiente
sertanejo (o que não significa qualquer intenção ‘purista’ da parte de seu diretor), O dragão da
maldade contra o santo guerreiro mostra a presença no sertão de elementos da cultura urbano-
industrial. Na verdade, a preocupação de Glauber Rocha nos dois trabalhos (aos quais
dedicaremos, mais adiante, uma análise comparativa) é menos com a preservação das verdadeiras
expressões culturais do Nordeste, do que com as misturas, com os cruzamentos, com a retomada
de determinados mitos e seus usos possíveis no presente. “A grande, embora desestabilizadora,
vantagem dessa posição é que ela nos torna progressivamente conscientes da construção da
cultura e da invenção da tradição”
15
.
***
14
José Pacheco. Chegada de Lampião ao inferno in ibid., p 304.
15
Homi K. Bhabha. O local da cultura. Belo Horizonte, UFMG, 1998, p 241.
19
Levando em conta a idéia de migrações culturais (circulação de signos dentro de locais
contextuais e sistemas sociais de valor específico
16
), o trabalho, partindo dos dois filmes
mencionados, procurará analisar o processo de migração da literatura de cordel do seu ambiente
original, caracterizado pela oralidade, para uma realidade estética na qual predomina a imagem.
Poderíamos pensar em termos de uma adaptação, porém o termo está muito condicionado ao
processo de transposição de uma obra literária para o cinema, transposição entendida quase
sempre de forma literal, o que não é absolutamente o caso dos filmes que nos propomos a
analisar. O termo mais adequado seria o de adaptação ‘livre’. Nessa forma de adaptação, a
preocupação não é em produzir uma cópia do original mas em preservar seus aspectos, estruturas
e detalhes mais relevantes. Há, portanto, uma distância que separa os dois textos: uma relação de
‘respeito’ e ‘traição’ do texto fílmico para com o texto literário. Para se avaliar essa relação é
necessário, segundo Francis Vanoye, “trabalhar sobre as estruturas profundas e não apenas sobre
os acontecimentos superficiais, não se limitar ao conteúdo, mas levar em conta a expressão,
consubstancialmente ligada ao sentido”
17
.
A questão do sentido nos leva a pensar na argumentação desenvolvida por Paul Ricoeur
18
a respeito do entrecruzamento entre a história e a ficção, categorias centrais nos trabalhos de
Glauber Rocha (não apenas nos filmes analisados nesse texto mas, basicamente, em toda a sua
obra). Poderíamos inclusive dizer que para o cineasta, o sentido em história está, como para
Ricoeur, relacionado ao imaginário:
...trata-se realmente do papel do imaginário no encarar o passado tal como foi.
Por outro lado, embora não se trate, de modo algum, de renegar a falta de
simetria entre passado ‘real’ e mundo ‘irreal’, a questão é justamente mostrar de
que maneira, única em seu gênero, o imaginário se incorpora à consideração do
ter-sido, sem com isso enfraquecer seu intento ‘realista’.
19
16
Ibid.
17
Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas, Papirus, 1994, p 139.
18
Paul Ricoeur. Tempo e narrativa – Tomo III. Campinas, Papirus, 1997.
19
Ibid. p 317.
20
Segundo essa perspectiva, o sentido não está na história, no passado ‘como de fato
ocorreu’ mas nos seus vestígios: escritos, imagens, objetos, em suma, fragmentos que ‘falam’ do
‘real’ a partir de certas instâncias do imaginário. A história, nesse caso, é entendida como
narração, como a repetição de algo ‘ocorrido’ no passado: lembrando que a repetição envolve
sempre uma transformação.
Encaminhar uma compreensão do ‘real’ partindo das idéias de repetição e transmissão
(próprias ao universo ficcional) é o papel da literatura de cordel nos dois filmes analisados .
Deve-se porém evitar, como alertou Idelette Muzart, ver o folheto “como um documento,
comparável a uma entrevista ou um debate, sem se levar em conta as formas de expressão
poéticas que lhes são próprias”
20
.
Dentre as particularidades da literatura de cordel, destaca-se a sua ligação com a tradição
e, conseqüentemente, o seu caráter conservador. Traço característico das manifestações da cultura
popular, essa dimensão moralista e conservadora da literatura de cordel justificou a acusação de
que esta funcionava como ‘instrumento’ de reprodução da ordem vigente. Hoje consideradas
anacrônicas, tais abordagens se inscrevem no quadro de preocupações relativas à temática
nordestina cujo suporte principal estava nas leituras de Marx que dominaram o ambiente
intelectual dos anos 1960 e 1970. Essa tendência ideológica se manifestou de forma mais radical
em alguns setores dos CPCs (Centros Populares de Cultura) onde a percepção da cultura popular
como ‘expressão do povo oprimido’ era dominante. Seu objetivo era o desenvolvimento de
produções culturais voltadas para o povo a fim de consicientizá-lo de sua condição de alienado.
Os CPCs defendiam a opção pela "arte revolucionária" , definida como
instrumento a serviço da revolução social. A arte, nesse sentido, deveria
abandonar a "ilusória liberdade abstratizada em telas e obras sem conteúdo",
20
Idelette Muzart. Op.cit., p 16 (trad. S.R.B.N.)
21
para voltar-se coletiva e didaticamente ao povo, restituindo-lhe a "consciência de
si mesmo"
21
.
A visão cultural paternalista dos CPCs gerou várias polêmicas entre seus representantes e
o grupo do Cinema Novo que, contra o cinema nacional-popular voltado para a conscientização
das massas, defendia a nacionalização da arte brasileira por meio de uma nova linguagem
22
.
Tratava-se, na verdade, de discutir o que era uma cultura para as massas. Um cinema dirigido
para quem ? A posição de Glauber Rocha a respeito dessa interrogação fica mais clara quando
observamos em seus filmes a forma do cineasta lidar com os elementos da cultura popular. No
caso da literatura de cordel, o que estava em jogo não era a sua instrumentalização ideológica (a
postura didático-reducionista presente em algumas abordagens) mas a sua dimensão poética.
O folheto, nesse caso, deve ser considerado como expressão escrita e oral, como texto e
como voz, o que significa incluir o ponto de vista do observador (leitor do folheto, ouvinte, ou,
no caso do cinema, espectador) no processo de avaliação da obra. Tal inclusão merece ser levada
em consideração na medida em que é nesse ponto, ou seja, no diálogo com o espectador
(representante de um determinado contexto cultural) que se mostra reveladora a apropriação do
cordel por Glauber Rocha em sua obra cinematográfica. Pois consideramos que há uma espécie
de reprodução da relação entre o poeta e seu público na forma como, nos filmes, o narrador se
dirige ao espectador. Deve-se, porém, ressalvar que da mesma forma que a literatura de cordel
(colocando, por exemplo, o vaqueiro ou o cangaceiro no papel do herói) adapta as tradições
européias aos hábitos e instituições nordestinas, os filmes procuram traduzi-las em função das
expectativas do seu público que, por sua vez, não é o mesmo que ouve, nas feiras do sertão
nordestino, os romances cantados pelos poetas sertanejos. Voltaremos a esse ponto nos capítulos
21
Heloisa B. de Holanda e Marcos Gonçalves. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo, Brasiliense, 1990, p
9-10.
22
Sobre a polêmica entre CPC e o grupo do Cinema Novo ver Raquel Gerber. « Glauber Rocha e a experiência
inacabada do Cinema Novo » in Glauber Rocha. São Paulo, Paz e Terra, 1991.
22
2 e 3 quando será analisada mais detidamente a estética do cordel em cada um dos filmes. Por
hora devemos nos concentrar na literatura de cordel procurando desvendar algumas de suas
histórias.
1.2 - O cordel e suas histórias
Intimamente entreleçada aos acontecimentos socio-econômicos e políticos ocorridos no
Brasil nos últimos 150 anos, a história da literatura de cordel tem acompanhado o processo de
modernização do país comentando o outro lado desse fenômeno empreendido a partir do Centro-
Sul, de onde se estende às demais regiões afetando-as de diversas maneiras. Narrando, como uma
espécie de jornalismo popular, a miséria do Nordeste, a exclusão social, a fome, a seca, a
violência e as migrações, o cordel, por meio de suas alegorias, de sua forma peculiar de criar
imagens, oferece um contraponto às visões traçadas do alto dando voz àqueles que vivenciam tais
problemas.
A posição de Antonio Candido é esclarecedora: “pois se a mentalidade do homem é
basicamente a mesma, e as diferenças ocorrem sobretudo nas suas manifestações, estas devem ser
relacionadas às condições do meio social e cultural”
23
. Em relação ao meio social e cultural a que
se refere Antonio Candido, o sertão tem particularidades que, de certo modo, explicam o uso de
uma forma de comunicação própria, diferente daquela que se desenvolve nas demais regiões do
país.
Inicialmente marcado pelo isolamento, pelo abandono do governo central, esse território
árido, inadequado à atividade agrícola (base da economia brasileira até meados do século XX),
começou a sofrer inúmeras intervenções em sua organização política e social depois do advento
do regime republicano. A partir daí, a população sertaneja, sujeita a crises, instabilidade e
23
violência, vai pouco a pouco abandonando a região em busca de oportunidades no Centro-Sul do
país, onde permanecerá, contudo, marginalizada.
A literatura de cordel expressa a condição de exclusão dessa camada da população.
Produzida pelo poeta sertanejo ou pelo migrante nordestino nas grandes capitais do Sul do Brasil,
ela é, em todo caso, uma literatura marginal: marginal em termos sociais tanto quanto em relação
aos meios de comunicação, como observou Oswald Barroso.
Colocado o tema Literatura popular e comunicação, a primeira questão que me
chega à mente, é a do valor fundamental da literatura popular no circuito
marginal de comunicação que o povo construiu para si. E num país onde os
grandes meios de comunicação de massa são manipulados por uma elite
dominante, isso era necessário.
24
Até a segunda metade do século XIX, de quando data o surgimento da literatura de cordel
no Nordeste, o universo rural da região caracterizava-se por um marcado isolamento das
populações que aí habitavam em relação às cidades e mesmo entre si. Nesse quadro de
isolamento um dos poucos meios de comunicação disponíveis era a literatura oral que corria de
boca em boca. Ligada em seus primórdios à divulgação das histórias européias tradicionais, essa
literatura, resumida nos Cinco livros do povo segundo classificação de Câmara Cascudo
25
, foi
paralelamente se adaptando, se abrasileirando, recebendo influências de origem africana por
intermédio das histórias cantadas ou contadas, veiculadas pelos escravos. A literatura que
circulava no sertão era, portanto, inteiramente diferente daquela a que tinham acesso os poucos
alfabetizados das cidades do litoral. Era uma literatura que circulava fora do eixo de poder, uma
literatura feita pelo sertanejo e para o sertanejo.
Depois da década de 1870 o cenário socio-econômico de algumas capitais do Nordeste
sofre importantes modificações. Com o desenvolvimento, embora incipiente, de atividades
23
Antonio Candido. Literatura e sociedade. São Paulo, Publifolha, 2000, p 39.
24
Rosemberg Cariry e Oswald Barroso. Cultura insubmissa. Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1982, p 19.
24
artesanais e industriais e com a construção de vias de circulação ligando as cidades ao interior, o
que contribuiu para maior mobilidade da população, o quadro de isolamento em que até então
vivia a região vai aos poucos se alterando. Nesse contexto, a literatura de cordel, que na época
passa a circular sob a forma de folheto impresso (o cordel propriamente dito), foi se
popularizando. O povo ávido de informações e conhecimentos toma-a para si, como forma
literária sua.
Para o homem pobre do meio rural, principalmente, carente de meios de
comunicação e expressão, o cordel passa a significar quase tudo. Os poucos
alfabetizados lêem para grandes grupos que saboreiam cada linha narrada. O
cordel é jornal, é divertimento, literatura, meio de difusão de conhecimentos, de
perpetuação da história e da cultura. É meio de expressão de sentimentos, meio
de refletir e pensar a realidade. É, sobretudo, um veículo que permite participar
da vida do país, debater a realidade, expressar necessidades e aspirações do
povo.
26
A época da expansão do cordel corresponde, no interior do Nordeste, a um período,
iniciado após a implantação do regime republicano, de importantes acontecimentos sociais, como
os movimentos de Canudos e Juazeiro e ainda o fenômeno do cangaço, que criaram um clima
propício a sua rápida proliferação. Estes acontecimentos coincidem com o deslocamento do foco
da agricultura para a industrialização, fato que provocou um duro golpe na economia nordestina e
acelerou o processo de migração da região Nordeste em direção ao Centro-Sul do país. O
agravamento da crise social, o abandono do Nordeste pelo governo central, o descaso das
autoridades republicanas, o crescimento desmedido da violência, a intensificação do fenômeno do
coronelismo, tudo isso vai provocar na região uma série de movimentos de caráter
fundamentalmente religioso. A problemática social incide sobre a estrutura do cordel que, nessa
época, começa a abandonar a tradição heróica ibérica por uma temática mais brasileira. Títulos
como, Carlos Magno e os doze pares de França, A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, A
25
Luis da Câmara Cascudo. Cinco livros do povo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953 citado por Raymond Cantel.
La littérature populaire brésilienne. Poitiers, Centre de Recherches Latino-Américaines, 1993, p 109.
25
donzela Theodora, entre outros inspirados nos romances de cavalaria, tornam-se menos
freqüentes enquanto se multiplicam os folhetos voltados para os problemas sociais e para a
questão da religiosidade popular.
A partir de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, inicia-se no Brasil um
programa de nacionalização da economia que se fez acompanhar por um intenso processo de
centralização político-administrativa. Essas mudanças tiveram conseqüências diretas sobre a
estrutura política da região Nordeste até então controlada por poderosos grupos oligárquicos. A
força de trabalho, presa ao latifúndio e aos coronéis que dominavam a vida política local com
suas tropas de jagunços, começa a deslocar-se para as regiões onde as oportunidades de trabalho
eram maiores. São Paulo e Rio de Janeiro passam a receber enormes contingentes de migrantes
nordestinos fugindo da fome, da seca e da violência. No final de Vidas secas, Graciliano Ramos
descreve em tom melancólico a árida experiência do nordestino: “andavam para o Sul, metidos
naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes (...) Chegariam a uma terra
desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá”.
Na perspectiva do migrante nordestino, como observou Graciliano, o Sul equivale ao
paraíso. E nessa visão idealizada, Getúlio Vargas aparece como o herói salvador. A visão mítica
sobre a figura de Getúlio aparece destacadamente na literatura de cordel, como observa a
pesquisadora Olga de Jesus:
A presença de Getúlio na vida pública brasileira coincidiu com um período de
intensa produção de folhetos, mas foi, sem dúvida, a personalidade carismática e
messiânica do governante que exerceu a mais profunda sedução sobre os poetas
do povo.
27
À parte a personalidade ‘carismática’ de Getúlio Vargas, o que parece interessante,
considerando o conteúdo das narrativas, é a importância dada às reformas por ele introduzidas.
26
Ibid, p 305.
26
Fortemente moralista, a literatura de cordel é avessa a qualquer tipo de proposta revolucionária.
Por outro lado, não se pode dizer que seja uma manifestação conformista. Há um espaço para a
luta. Essa, no entanto, não visa subverter o statu quo. As narrativas, em sua maior parte, têm
como pano de fundo a oposição Bem e Mal, o combate entre as forças da ordem e as da
desordem. Dentro desse quadro formal Getúlio ocupa, via de regra, o papel do herói que tem
como missão reordenar o mundo dominado pela injustiça. Através de um cordel, em que o teor
moralista evidencia-se desde o título, o poeta Manoel Camilo dos Santos dá um Conselho aos
brasileiros: Dr. Getúlio, inspirado / por Deus reto juíz / viu que o Brasil, assim / não podia ser
feliz / deu um golpe de Estado / normalizou o país.
28
A maior parte dos estudiosos da literatura de cordel é unânime em afirmar que, entre as
décadas de 1930 e 1950, Getúlio Vargas e Lampião foram os heróis mais exaltados nas narrativas
populares. “O herói exaltado era o homem de ação”, comenta Renato Ortiz em texto que analisa a
progressiva despolitização da figura do herói.
Pouco a pouco o homem-ação cede lugar aos ídolos de entretenimento
(esportistas, artistas, etc.) que estimulam no leitor não mais uma tendência à
realização de uma vontade, mas o conformismo às normas da sociedade.
29
A partir da década de 1960, dentro de um cenário marcado pela hegemonia cultural da TV
Globo, o cordel encontrará nas figuras do universo televisivo um canal fértil de diálogo. A esse
respeito é curioso o folheto de Abraão Batista intitulado Encontro de Lampião com Kung Fu em
Juazeiro do Norte.
30
Narrando o encontro imaginário entre os dois heróis na cidade de Juazeiro
do Norte, o folheto começa descrevendo os atributos de valentia dos personagens: Meu leitor meu
amiguinho / permita a imaginação / desse encontro imaginário / de Kung Fu com Lampião / na
27
Olga de Jesus Santos. « O povo conta a história » in O cordel: testemunha da história do Brasil. Rio de Janeiro,
FCRB, 1987, p 7.
28
Manoel Camilo dos Santos. Conselho aos brasileiros in ibid.
29
Renato Ortiz. A moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1991, p 150.
27
cidade de Juazeiro / de Padre Cícero Romão. Depois de várias estrofes de elogio as duas figuras
surge um desentendimento que acaba provocando uma briga de sete dias e sete noites : (Nessa
luta eles passaram / sem dormir sem descansar / sete noites sete dias / é o que posso lhes contar /
suavam como chaleiras / mas não queriam se entregar). Por fim, percebendo a tolice daquela
briga, os dois resolvem fazer as pazes: (Nesse momento Kung Fu / e Lampião se abraçaram /
dando fim a um duelo / que sem morrer terminaram / e eu peço aos meus leitores / mil desculpas
se não gostaram...). Esse folheto, escrito na década de 1970, reflete uma tendência do cordel mais
recente: associar elementos modernos a tradicionais e misturar referências da cultura de massas
com a cultura popular.
Os termos usados nesse cordel não se limitam aos usos populares, às falas tradicionais do
cantador nordestino. No entanto, a forma de dizê-los é certamente tradicional. Outros traços bem
típicos do cordel tradicional evidenciam-se nesse folheto como, por exemplo, o direcionamento
do poeta ao seu público no final do relato e a tendência ao exagero. Um dos personagens – Kung
Fu – é um típico herói de entretenimento, conforme a expressão de Renato Ortiz. No entanto, esse
herói deixa de pertencer à esfera da cultura de massas na medida em que sua apresentação não
coincide com a forma ‘realista’ de apresentação dos produtos da indústria cultural, realismo que,
segundo Ortiz, permite à indústria cultural reduplicar a seu modo a ‘realidade’, ao estimular no
público um conformismo às normas da sociedade de massas. Trata-se de uma forma de
resistência à cultura dominante ainda que dentro do espaço de representação dessa mesma
cultura.
Uma perspectiva crítica bastante diferente observa-se nos folhetos de ‘atualidades’ do
paraíbano José João dos Santos – o Azulão –, que escreve e vende seu cordel na cidade do Rio de
30
Abraão Batista. Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro do Norte in Sebastião Nunes Batista. Poética
popular do Nordeste. Rio de Janeiro, FCRB, 1982.
28
Janeiro. Boa parte dos temas de Azulão trata de questões sociais. Em O trem da madrugada o
autor comenta a precariedade dos transportes suburbanos do Rio de Janeiro. Brasil desgovernado
trata da situação política do país no governo Sarney. Brasil de ontem e de hoje inicia-se com um
verso que diz que o fracasso do Brasil / vem dos nossos ancestrais; os versos seguintes
continuam no mesmo tom comentando a miséria do povo, a dependência econômica, os governos
corruptos, e outros males que ligam o passado ao presente representado pelas ‘trapaças’ do
governo Collor. Meninos de rua, Sofrimento do pobre no Brasil dos milionários e Os sofrimentos
do operário são outros títulos que refletem a postura crítica de Azulão em relação aos problemas
sociais.
O cordel como meio de resistência à cultura hegemônica não é restrito a poetas como
Azulão, que propõem uma visão mais crítica da sociedade. Abraão Batista, apesar de colocar em
evidência um herói fabricado pela indústria cultural, subverte, pela expressão, a lógica dessa
mesma indústria. Ambos, no entanto, de uma forma ou de outra, encontram-se ligados à ela:
porque trabalham com seus temas; porque veiculam suas produções em discos e rádios; porque
deixam suas imagens serem veiculadas na TV, no vídeo ou no cinema. Para não falar em outros
meios técnicos de reprodução desde a tipografia até as tecnologias de informação mais modernas,
caso da Internet que, hoje, segundo Roberto Benjamin
31
, veicula a produção de alguns poetas de
cordel.
***
Em sua origem influenciada pelo romance português de cavalaria que chegou ao Brasil
pelas mãos dos colonizadores, a literatura de cordel é, desde o início, caracterizada pelas
misturas. No entanto, em função da sua ‘marginalidade’, da sua condição de ‘isolamento’ em
31
Roberto Benjamin. « Culturas regionais: permanências e mudanças em tempo de globalização » in Cesar Bolaño.
Globalização e regionalização das comunicações. Sergipe, Universidade Federal de Sergipe, 1999.
29
relação à cultura hegemônica, tais misturas não costumavam ser consideradas. Hoje, porém,
percebe-se uma mudança de ponto de vista; devido a sua proximidade com a cultura de massa e
com os meios técnicos de comunicação, devido as suas migrações, deslocamentos e relocações,
devido, enfim, à sua relação com o mundo globalizado, torna-se mais visível o seu sincretismo.
No quadro atual, negando a visão que marcou a maior parte dos estudos realizados no
passado, novas abordagens têm surgido. Dentre estas, destaca-se a abordagem intertextual na qual
tentaremos agora nos fixar analisando, em primeiro lugar, a relação que os folhetos estabelecem
com a tradição cavalheiresca, para depois nos voltarmos para o diálogo entre estes e a estética
cinematográfica.
Uma experiência nessa linha foi feita por Ariano Suassuna em relação ao teatro. O autor,
cuja dramaturgia se constrói a partir da transposição da literatura de cordel para a linguagem
teatral e que teve sua obra adaptada pelo cinema e televisão, é um exemplo da relação
tradição/reinvenção, hoje em dia valorizada pelo público e pela crítica.
A linguagem que cada crítico escolhe falar não lhe desce do céu, ela é uma das
algumas linguagens que sua época lhe propõe, ela é objetivamente o termo de
um certo amadurecimento histórico do saber, das idéias, das paixões intelectuais,
ela é uma necessidade.
32
1.3 - A literatura de cordel e as novelas de cavalaria
O cordel, apesar de inscrito no conjunto das tradições orais, tem a sua especificidade, as
suas próprias regras de composição e o seu modo particular de lidar com a tradição. Trata-se de
uma expressão escrita, transmitida e conservada por intermédio de folhetos que são lidos, em
geral, pelos próprios autores para estimular o público a comprar. Ao contrário das manifestações
coletivas, transmitidas unicamente pela memória, a literatura de cordel é um tipo de produção que
confronta o indivíduo e a coletividade, a tradição e a criação. O poeta popular não se limita,
30
portanto, a reproduzir as narrativas tradicionais. O seu trabalho se caracteriza por uma reinvenção
dessas narrativas que passam por um processo de adaptação às suas condições de produção e
recepção. Tivemos oportunidade de verificar há pouco um exemplo desse processo de adaptação
analisando a apropriação, por parte do poeta popular, de elementos da indústria cultural. Isso não
significa que os personagens tradicionais tenham sido abandonados como evidencia a presença de
Lampião ao lado de Kung-Fu no folheto de Abraão Batista. Trata-se de uma ‘atualização’ da
tradição, procedimento analisado por Jersusa Pires Ferreira
33
em um estudo realizado a partir dos
folhetos onde a autora mostra como se estabelecem as relações entre a herança européia dos
contos, romances e canções e a temática sertaneja objeto da vivência direta do poeta e de seu
público.
O estudo de Jerusa se baseia no processo de transmissão das novelas de cavalaria editadas
em Portugal no século XVIII para os folhetos de cordel produzidos no sertão sobre a mesma
matéria. “A proposta seria a de acompanhar, num relacionamento intertextual, em seu sentido
amplo, o que ficou, porque e como se realizou.
34
. Entre os componentes que se manifestam no
ciclo cavalheiresco ibérico e se repetem na literatura popular do Nordeste brasileiro destacam-se
o combate, o mecanismo representado pela busca contínua e o relato de proezas. A temática, em
geral, é a luta, a prova, os ardis, os dilemas, os monstros. Essa persistência de motivos e temas se
deve à popularidade no Brasil das aventuras de Carlos Magno e os doze pares de França num
percurso complexo que vai do culto ao popular, tanto quanto do escrito ao oral e vice-versa.
Percebe-se uma infinidade de mudanças desde o texto que se reconta até a sua apropriação
pelo imaginário sertanejo. Mas, para além dessas mudanças, há um núcleo básico de significação
que costuma ser preservado e nesse sentido é importante que não se perca de vista o ‘texto-
32
Roland Barthes. Crítica e verdade. São Paulo, Perspectiva, 1999, p 163.
33
Jerusa Pires Ferreira. Op.cit.
31
matriz’. No caso da História do imperador Carlos Magno
35
o texto erudito teria sido utilizado
por vários poetas populares que, substituindo a forma proseada pelo verso, procuraram reescrevê-
lo tão fielmente quanto possível:
Daí que, cada um dos poetas, dentro de suas possibilidades expressivas, uns
mais, outros menos fielmente, seguiram-no em tomadas de partes diversas, como
que com a consciência de que a cada um deles caberia um andamento na
partitura geral, um trecho ou episódio ainda não explorado, embora
funcionalmente e mesmo referentemente, pudessem acontecer situações de
domínio comum. Verifica-se, portanto, um verdadeiro acordo intuitivo e tácito,
combinação a obedecer a imperativos de ordem vária, inclusive aos de mercado
e à sua novidade, sempre na direção de cobrir o mais amplamente possível o
texto matricial.
36
Como se observa pela citação, os poetas populares costumam escolher da História do
imperador Carlos Magno as passagens que mais lhes agradam para a partir destas produzir o seu
relato que pressupõe reduções, supressões, adoções ou ênfase sobre determinados aspectos do
texto-matriz. Assim sendo, a adaptação, mesmo quando pretende seguir o mais fielmente possível
o original, não deixa de representar uma modificação em relação a este.
Dentre os elementos que o poeta popular costuma rejeitar da gesta carolíngea, o apelo ao
maravilhoso é o mais marcante. Fugindo à imaginação desenfreada característica dessa literatura,
no folheto de cordel percebe-se a exigência do concreto (mesmo no corpo do relato maravilhoso).
Tal exigência pode ser vista como uma tentativa de o poeta introduzir um apelo moralizante no
relato, ajustando o recebido ao vivido. O folheto, portanto, participa do mundo no qual está
inserido, denunciando a corrupção, protestando contra os maus costumes, estando em alerta para
aquilo que o povo ama ou odeia, deseja ou detesta; nos seus versos, os males que ameaçam o
povo encontram condenação.
34
Ibid., p 2.
35
História do imperador Carlos Magno e os doze pares de França, traduzida do castelhano por Jeronymo Moreira
de Carvalho in ibid., p 11.
36
Ibid., p 16-17.
32
É esse o caso, por exemplo, do folheto A prisão de Oliveiros de José Bernardo da Silva
que adapta uma passagem da História do imperador Carlos Magno reduzindo seus efeitos
fantásticos em favor de uma mensagem prática voltada para a denúncia social, inexistente no
texto matriz: Na hora da refeição / tudo ali se descuidou / Oliveiros enfrentou / O Almirante
Balão / viu que a vida estava cara / a solução era rara / saltou numa das varandas...
37
.
A adequação do texto a uma práxis social é, portanto, a condição da sua aceitação pelo
público. No caso do público do cordel, a expectativa é de que o poeta se atenha o mais fielmente
possível à tradição. Ao contrário do artista erudito, o poeta popular não pretende ser original mas
agradar seus ouvintes preservando o texto original, já conhecido, mas nele intervindo com glosas
e comentários que fazem referência à sua própria cultura. “O poeta de cordel não é propriamente
um reacionário. É antes um conservador. Às vezes, por atitude e convicção pessoal, de outras por
espírito prático”
38
.
Respondendo aos imperativos da produção e recepção dos textos, o poeta popular, segue a
tradição adequando-a à sua poética. Uma forma de adequação diz respeito à passagem do texto
em prosa para a maneira versificada, com o auxílio do ritmo e da rima que simplificam a
comunicação, tornando o texto mais conciso, mais facilmente assimilado pela memória e de
maior efeito persuasivo. O folheto Roldão no Leão de Ouro de José Bernardo da Silva faz uma
adaptação rimada bastante fiel ao texto original em prosa. Na matriz, a passagem aparece do
seguinte modo: Se me foi acendendo um tal amor à princesa que representa, que, passando à
loucura esta vontade estou dias e noites a olhar a pintura. Enquanto no folheto se lê: Roldão
37
José Bernardo da Silva. A prisão de Oliveiros in ibid., p 31.
38
Orígenes Lessa e Vera Lúcia Luna da Silva. O cordel e os desmantelos do mundo. Rio de Janeiro, FCRB, 1983, p
3.
33
achou no retrato / a rainha da formosura / contemplava em seu palácio / dia e noite tal pintura /
e foi lhe tomando amor / para ser sua futura
39
.
Mas nem sempre se verifica uma utilização tão perfeita da rima. Na verdade, a exigência
desta costuma provocar problemas. Um deles é o sentido, muitas vezes comprometido pela
necessidade de rimar. O outro, também usual, é quando o par soa inoportuno como no caso de
ridículo-veículo, usado para descrever uma situação trágica como a da morte sob rodas. De
qualquer forma, esses desvios, que em uma linguagem culta não poderiam ser ignorados,
merecem pouca atenção do poeta popular, preocupado com a agilidade e espontaneidade do texto.
Seu objetivo é divertir e ensinar, transmitindo valores, práticas e atitudes.
O herói do folheto deve servir como porta-voz dos hábitos e intituições nordestinas,
realizando uma proposta ética em conformidade com o seu ambiente social. Isso fica bem claro
no tratamento dado pelo poeta popular à oposição Bem e Mal, uma das mais abrangentes e
definidoras categorias do cavaleiresco. Ao contrário das novelas européias de cavalaria, onde o
combate possui uma dimensão religiosa (luta contra o pagão, contra o herege), na literatura de
cordel o confronto tem, de modo geral, uma conotação social que se reflete no uso de expressões
que revelam a relação superior/subordinado como, por exemplo, legítimo dono de reinos,
impérios ou sítios encantados. Mostrando a permanência no folheto de referências medievais, é
comum se ver a identificação do mal com a figura do mouro ou do turco. Estes, ainda que
desligados do seu contexto próprio (Cruzadas, Reconquista, Tomada de Constantinopla),
continuarão aparecendo como antagonistas; mudará, porém, o estatuto desses personagens que
passarão do plano funcional (onde representavam o inimigo infiel) para o simbólico onde
funcionarão como referência para outros conflitos presentes. Nesse sentido, vencer o turco ou o
mouro é como vencer uma guerra onde a vitória significa mudança e, portanto, conversão:
39
José Bernardo da Silva. Roldão no Leão de Ouro in Jerusa Pires Ferreira. Op.cit. p 29.
34
Carlos Magno ordenou / que a mesa preparasse / a seu lado se sentasse / o que mais turco
matou
40
.
Tanto na novela de cavalaria quanto no folheto de cordel o combate representa uma
tentativa de derrotar o opressor em qualquer modalidade sob a qual ele se apresente. O desafio do
herói, que tem como armas apenas a sua coragem e a sua força, está ligado à travessia cuja
finalidade é a libertação. O seu adversário, aquele que representa o obstáculo, é o monstro, a fera
horrorosa, o dragão, o gigante.
Nas novelas de cavalaria, a vitória sobre as forças do mal é atribuída a lealdade do
cavaleiro para com o seu senhor, ou seja, a honra do cavaleiro depende de sua lealdade. No caso
do folheto nordestino, é a coragem do herói que lhe permite conservar sua honra. São, portanto,
diferentes os princípios que justificam a ação do herói. O que permanece invariante na passagem
do texto-matriz para a versão nordestina é a luta contra o mal que não significa, contudo, uma
tentativa de reverter a ordem. A superação do cotidiano, nesse caso, se dá não no plano da ação
mas no plano do ritual, do heróico, da aventura, onde “se pode passar à superação e àquilo que se
chamou encantamento do mundo”
41
. A transformação, portanto, não diz respeito ao vivido mas
ao campo do discurso, à sua transmissão que faz viver o passado no presente juntando dois
mundos possíveis.
Com a ajuda do estudo de Jerusa Pires Ferreira, abordamos, ao longo das últimas páginas,
o processo de tradução dos romances tradicionais ibéricos para os folhetos de cordel bem como a
transposição dos ideais de cavalaria de um universo cultural para outro. Importa, no entanto,
sabermos como, no cinema de Glauber Rocha, se processa tal transposição, ou seja, como os
valores e práticas do cordel são transportados para o universo cinematográfico: o que é retido, o
40
José Bernardo da Silva. Batalha de Carlos Magno e os doze pares de França contra Malaco, rei de Fez in ibid., p
73.
35
que é modificado e por quê? No próximo capítulo nos ocuparemos dessa discussão. Por enquanto
daremos continuidade à discussão sobre o cordel analisando alguns dos mitos aí veiculados e que
terão destaque nos filmes que nos propomos a estudar. Partindo do pressuposto de que a literatura
de cordel trabalha com aspectos desses mitos negligenciados em outras formas de discurso, o que
se tentará mostrar é como esses aspectos podem assumir uma dimensão transfomadora. No que se
refere à obra de Glauber Rocha essa é a novidade representada pelo cordel e o que justifica a sua
apropriação pelo cineasta.
1.4 - O mito do cangaceiro e outros mitos
O mito, comenta Luiz Tavares Júnior, costuma ser compreendido de duas formas
diferentes: a forma que tinha o termo primitivamente entre os gregos que o entendiam como uma
narrativa, uma história contada e a corrente em que é sinônimo de invenção, ilusão, ficção.
Segundo o autor, as narrativas de cordel estariam ligadas à primeira interpretação: “o mundo do
cordel, em seu espaço e tempo, podemos dizer, é um mundo mítico; suas narrativas não podem
ser entendidas, segundo a ordem temporal dos acontecimentos, na superfície sintagmática do seu
discurso”
42
. Sua compreensão requer um modelo que leve em conta essa especificidade, ou seja,
de que o cordel é um texto que atualiza um mito transmitido, por sua vez, através de textos
anteriores.
Dentro dessa concepção, o sentido superficial do texto remete a uma estrutura mais
profunda geradora de sentidos múltiplos, ou seja, o sentido do texto não está nele próprio mas em
outros textos não só precedentes ou sincrônicos, mas também posteriores. No que se refere ao
texto do cordel, essa relação é mais do que justa. Produzido por inúmeras vozes, o cordel se
41
Ibid. p 120.
42
Luis Tavares Junior. Op.cit., p 15.
36
caracteriza pelo diálogo entre aquilo que o povo conhece, está acostumado a ler, a ouvir e a
novidade introduzida pelo poeta visando agradar ao leitor que, ao contrário do leitor de literatura
erudita, “exerce a função de co-autor, de colaborador do texto”
43
. O processo de adaptação do
mito à vivência cotidiana é um trabalho conjunto do leitor com o poeta que capta as expectativas
de seu público e as transforma em novas histórias. A habilidade do poeta integrar os temas da
atualidade às tradições preexistentes é, portanto, condição para o sucesso do folheto.
Carlos Magno, por exemplo, continua presente nos folhetos de cordel cujos heróis se
mantêm fiéis aos ideais por ele representados. “Os folhetos que narram as aventuras de
cangaceiros recorrem freqüentemente a esta pedra de toque que constitui a evocação de Carlos
Magno ou de Roland”
44
: Eu choro a falta que faz-me / todos os meus companheiros / qual
Carlos Magno chorou / por seus doze cavaleiros! / Nada me faz distrair / não deixarei de sentir /
a morte dos cangaceiros
45
.
Figura que traduz para o folheto de cordel os ideais da novela de cavalaria, o cangaceiro
se caracteriza por uma dupla posição: a de vítima e a de assassino. Porém, no que diz respeito às
aventuras de cangaceiros, os aspectos que chamam a atenção são a coragem, a disposição para o
combate que dá respeitabilidade ao personagem ligando-o à linhagem da cavalaria, elevando-o,
enfim, à categoria de mito.
O tema predileto do poeta sertanejo é a exaltação da valentia do herói que encarna as
virtudes do guerreiro carolíngeo e, assim, continua a lhe glorificar. Seus feitos de bravura são
distribuídos a todo tipo de herói: vaqueiros, políticos, bandidos e até animais como touros e
cavalos. Os folhetos que relatam esse tipo de história estão classificados no que se costuma
chamar de ciclo heróico da literatura de cordel que encontra na gesta dos cangaceiros seu campo
43
Ibid. p 12.
44
Idelette Muzart. Op.cit., p 74 (trad. S.R.B.N.).
37
mais fértil de inspiração. Como o cangaceiro é, segundo as palavras de Câmara Cascudo, “a
representação imediata da coragem, o sertanejo ama seguir-lhe a vida aventurosa, cantando-a em
versos: Criando Deus o Brasil, / desde o Rio de Janeiro, / fez logo presente dele / ao que fosse
mais ligeiro: / O Sul é para o Exército! / O Norte é pra Cangaceiro!
46
***
Aspectos sociais e culturais predispõem o sertanejo a aceitar e sobretudo a glorificar a
figura do fora-da-lei. Tendo o sertão vivido durante séculos isolado das regiões atendidas pela
justiça regular, a lei do mais forte se constituiu no único meio disponível para resolver as disputas
locais que se estendiam por gerações numa série de lutas violentas onde homens morriam
abatidos como animais. Nessa região, onde o único poder vigente era a bala, os duelos, os
tiroteios e as emboscadas faziam parte do dia-a-dia da população que se acostumou a admirar e a
cantar os feitos daqueles que se mostravam mais destemidos. Nesse caso não importava
distinguir o valente do cangaceiro. A valentia era o que contava e os versos raramente criticavam
a selvageria do assassino. Ele era uma espécie de vítima de uma sociedade onde a lei
correspondia à força bruta e a violência justificada pela necessidade de preservar a honra.
Na poesia popular, a coragem para enfrentar a injustiça é vista como um aspecto positivo
que reabilita o cangaceiro de seus crimes. Na história de Antônio Silvino, a morte do pai justifica
sua entrada para o cangaço: Eu tinha quatorze anos, / quando mataram meu pai. / Eu mandei
dizer ao cabra: / se apronte que você vai... / Se esconda até o inferno / de lá mesmo você sai...
47
.
Com Lampião a história se repete : Assim como sucedeu / ao grande Antônio Silvino, / sucedeu
da mesma forma / com Lampião Virgolino, / que abraçou o cangaço / forçado pelo destino.../
45
Leandro Gomes de Barros. As lágrimas de Antonio Silvino por Tempestade in ibid., p 74.
46
Luis Câmara Cascudo. Op.cit., 2001, p 123.
47
Citado in ibid.
38
Porque no ano de Vinte / seu pai fora assassinado / da rua da Mata Grande / duas léguas
arredado... / Sendo a força da Polícia / Autora desse atentado...
48
Visível nesse relato sobre a entrada de Lampião para o cangaço, o ódio contra a polícia
(as chamadas ‘forças volantes’ que no início do século XX começaram um intenso processo de
repressão ao cangaço) se manifesta em inúmeros folhetos. Representante de um poder
considerado estranho à ordem local, a polícia é vista, em geral, com desconfiança pelo sertanejo:
uma entidade impessoal, anônima, que não merece o respeito dedicado, por exemplo, a uma
figura como Padre Cícero: Lampião desde esse dia / jurou vingar-se também, / dizendo: - foi
inimigo, / mato, não pergunto a quem... / Só respeito nesse mundo / Padre Cisso e mais
ninguém!
49
Venerado pelo povo, Padre Cícero reproduzia, no nível espiritual, as relações
estabelecidas entre o coronel (proprietário de terras que exercia o controle o político e o controle
da máquina da violência) e seus afilhados. Para o bando de fiéis necessitados de conforto
espiritual, o Padre distribuia bençãos e prometia o Reino dos Céus. Para a massa de agregados
que dispunha de seus favores em troca de absoluta fidelidade, o coronel cedia terras para cultivo,
ajudava em casos de doença e protegia dos problemas policiais. Ambos representavam o papel da
autoridade a quem o sertanejo devia obediência e com a qual ‘podia’ contar nos casos de
necessidade.
Marca fundamental dessa sociedade, a relação de dependência iniciada nos primeiros
tempos da colonização e presente durante todo o Império, se tornou mais complexa durante o
regime republicano quando o Estado, antes ausente, começou a intervir na vida política local,
48
Citado in ibid.
49
Citado in ibid.
39
como assinalou Victor Nunes Leal em Coronelismo, enxada e voto
50
. Por força da Constituição
de 1891, que favoreceu o maior controle dos Estados sobre os assuntos políticos e administrativos
dos municípios, o poder privado dos potentados locais teve sua autonomia reduzida. Para fazer
face a essa situação e permanecer no controle da máquina local, os chefes políticos municipais
passaram a ter que garantir os votos de sua clientela em favor do candidado ao posto de
governador. Na disputa pela liderança, os coronéis, para intimidar os adversários, recrutavam
milícias privadas entre os membros de sua parentela, o que propiciou a proliferação do
banditismo na região.
O recrutamento dessas milícias não foi, no entanto, exclusivo à ‘Política dos Coronéis’. O
método de recorrer a bandos armados tem sido utilizado ao longo da nossa história nas ocasiões
em que o proprietário precisa impor seu poder sobre as terras que ocupa. Presente inicialmente na
zona litorânea, o banditismo começou a diminuir nessa região para ocupar o sertão onde, a partir
da segunda metade do século XIX, se desenvolverá o cangaço, fenômeno que representa uma
mudança nas relações de força no interior do Nordeste na medida em que o fazendeiro torna-se
obrigado, para preservar seu senhorio absoluto sobre a política local, a garantir alianças com o
poder central. O mecanismo do voto foi, de certa forma, responsável pelo crescimento do
banditismo no sertão nordestino.
***
Diferentemente do capanga, ligado ao fazendeiro por relações de dependência, o
cangaceiro (cujos serviços começaram, a partir de fins do século XIX, a ser cada vez mais
requisitados) agia isoladamente prestando serviços a quem mais vantagens lhe oferecia. Ele não
era jamais subordinado a um chefe e, ainda que algumas vezes se ligasse a algum fazendeiro,
nunca perdia sua independência. Ao contrário da massa da população, que vivia sob dependência
50
Victor Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo, Alfa Ômega, 1975.
40
direta do coronel, o cangaceiro, era visto como um homem livre, apesar de fazer parte de uma
engrenagem maior.
Os cangaceiros não tinham nem projeto nem visão política revolucionária, nem
mesmo espírito reformista. Eles permaneciam ancorados à uma concepção
parternalista de relações sociais. Improdutivos, vivendo de pilhagem, saqueando
a população das vilas que atravessavam, os cangaceiros se organizaram
progressivamente como uma micro-sociedade no interior de sua própria
sociedade com um código de honra particular, comportamentos sociais estritos e
rituais iniciáticos originais. De um futuro cangaceiro eram exigidos o espírito de
independência, a capacidade de dominar o ambiente, a consciência de respeito
aos valores morais do sertão, uma verdadeira autonomia e o sentido de livre-
arbítrio, sem contar a firmeza de caráter e o sentido de honra.
51
Centrado na figura de Lampião o livro de Elise Jasmin mostra como o mito do cangaceiro
foi se compondo a partir de múltiplos elementos : o que Lampião narrou sobre si próprio, o que
os outros cangaceiros disseram sobre ele, o que foi inventado pelos poetas de cordel, o que foi
escrito pelos jornalistas e pelos escritores. Revelando a impossibilidade de separar o real da
ficção o que, contudo, sobressai em todos os relatos é o uso desmedido da violência (fator de
ligação de Lampião com todos os cangaceiros que o precederam). A violência, associada à
coragem, à disposição de lutar contra as injustiças, constitui o elemento de identificação do
sertanejo com a figura do cangaceiro que, dessa forma, começa a assumir o estatuto de herói.
Mas o fato é que o cangaceiro só passou a existir como herói a partir do momento em
quem encontrou alguém para glorificá-lo, transmitir seus feitos, cantá-lo. Esse papel coube ao
poeta de cordel que narrando suas aventuras ajudou a consolidá-lo como herói ao mesmo tempo
em que consolidava o cordel como poesia do povo. Há inclusive quem diga que o cangaceiro é
uma invenção da literatura de cordel tanto quanto o cordel uma invenção do cangaceiro, cujas
façanhas teriam ajudado a promover junto ao público essa forma de comunicação recente
52
.
51
Elise Jasmin. Op.cit., p 13 (trad. S.R.B.N.).
52
« Sem dúvida os folhetos sobre cangaceiros tiveram tão grande êxito porque participaram ativamente de uma
corrente de moda que fez da figura do bandido o símbolo de uma resistência heróica dos sertanejos às condições
41
Herdeira da poesia oral propagada na região desde o século XVIII pelo menos, a literatura de
cordel propriamente dita aparece no final do século XIX quando, coincidentemente, começam a
circular pelo sertão os primeiros folhetos e os primeiros bandos de cangaceiros. A partir de sua
divulgação pelos folhetos, o cangaceiro assume o papel do herói popular, aquele que é capaz de
realizar os atos de bravura que, desde as histórias protagonizadas pelos heróis de cavalaria, o
homem do povo admira e eventualmente sonha imitar.
***
Na literatura de cordel a virtude do herói está relacionada à sua disposição para enfrentar
o inimigo, representado por forças ou valores antagônicos à ordem do sertão. O papel do
antagonista é o de instaurar um desequilíbrio nessa ordem cujo retorno ao equilíbrio inicial
dependerá da ação reformadora do herói. Herói e anti-herói representam respectivamente o bem e
o mal, a aceitação ou a recusa da moral instalada. A narrativa tem, portanto, como finalidade,
confirmar os valores propostos (honra, lealdade, fidelidade) pela sociedade marcando a vitória
dos que estão de acordo com eles e a ruína dos que estão em desacordo.
Em sua análise do “mito da maldade castigada”, Luis Tavares Júnior aponta a
metamorfose como uma das formas de castigo a que são submetidos os personagens que violam
os códigos culturais. A estrutura se resume no seguinte : o ser ‘endiabrado’ provoca uma agressão
a alguma instância repressora (em geral um representante da religião ou da família) que tentando
frear seus impulsos descontrolados acaba transformando-se em vítima de suas maldades (E
quando fez quinze anos / certo dia de manhã / assassinou um irmão / e agarrou uma irmã / pelas
pernas e rasgou-a / como se fosse uma rã). Violentador da ordem, o ‘possuído’ é castigado
transformando-se em animal (bode, cavalo, cachorro, dragão, cobra, etc). Com essa forma ele
ecológicas e sociais. » Ronald Daus. O ciclo épico dos cangaceiros na poesia popular do Nordeste. Rio de Janeiro,
FCRB, 1982, p 90.
42
percorrerá vários lugares provocando caos e espalhando por onde passa o terror e a morte
(Percorreu todo o sertão / de Cipó à Jacobina / de Gandú até Conquista / Fazendo carnificina /
De maneira mais ruim / Foi o que fez em Bonfim / essa visão assassina). Depois de muito penar a
fera consegue livrar-se da maldição e retomando a forma humana terá oportunidade de se redimir
dos erros cometidos (Assim a pobre da moça / uma década correu / várias cidades bahianas /
Bastantemente sofreu, / para servir de exemplo / que a boa mão é o templo / mais sagrado ao
filho seu)
53
.
O conjunto analisado por Luis Tavares Júnior é composto de cinco histórias
54
onde o
mesmo esquema se repete : “a situação de desrespeito, de revolta dos instintos, de explosão
sexual, de blasfêmia contra o sagrado, na seqüência inicial, cede lugar ao apaziguamento dos
sentidos, ao louvor do divino, na seqüência final”
55
. Transgressão, metamorfose, expiação e
regeneração são as etapas percorridas pelo anti-herói em sua trajetória rumo à purificação e, em
última análise, à confirmação dos valores sociais vigentes.
Mas a presença do animal no papel do anti-herói não se restringe aos casos de castigo e
metamorfose. O anti-herói ocupa sempre o pólo negativo de uma narrativa onde o pólo positivo é
ocupado pelo herói. A luta que se desenrola é invariavelmente entre opostos; são Jorge e o
Dragão, por exemplo: são Jorge representa a luz enquanto o Dragão o obscurantismo, as trevas
56
.
Baseados em arquétipos, em tradições antigas, certos animais carregam traços que
facilitam sua identificação positiva ou negativa. Dessa forma, é criada uma hierarquia baseada em
53
Rodolfo Coelho Cavalcante. A moça que bateu na mãe e virou cavalo in Luis Tavares Junior. Op.cit., p 66.
54
História do filho que botou sela na mãe e amigou-se com a irmã, A moça que bateu na mãe e virou cavalo, A
moça que bateu na mãe e virou uma cachorra, A moça que virou cobra e O monstro do Rio Negro são as cinco
histórias analisadas in ibid., p 58.
55
Ibid., p 66.
56
A luta entre o santo e o Dragão está ligada ao mito do homem lunar. Seguindo tradições arcaicas, costuma-se dizer
que são Jorge, figura comum a todas as regiões brasileiras, é um guerreiro lunar e que sua tarefa é combater o dragão
da indiscriminação para trazer de volta a luz da consciência. Jacob Klintowitz. Mitos brasileiros. São Paulo, Projeto
Cultural Rhodia, 1987, p 82.
43
critérios variáveis como a estatura (sendo os enormes vistos como feras perversas que os
pequenos, reproduzindo o combate bíblico de Davi contra Golias, vencem pela astúcia); a cor (o
branco associado ao bem e o preto ao mal); o aspecto geral (a feiúra associada ao negativo e a
beleza ao lado positivo) e os hábitos (o folclore associa o urubu ao diabo, devido ao seu hábito de
comedor de carniça). É assim que os tabus transformam certos animais em encarnações do mal,
cujo sacrifício é necessário à realização de determinados ideais humanos. O triunfar sobre a fera
“mostra que fé, virtude, espírito e amor sempre vencem e, nesse sentido, os relatos folclóricos
possuem alcance moral e educativo”
57
.
***
Há entre os temas da poesia popular um que interessa particularmente aos poetas. Trata-se
da temática do boi, uma das mais antigas da poesia tradicional do Nordeste. Inúmeros são os
folhetos dedicados ao tema como os romances do Boi Espácio, do Boi Barroso, do Boi Surubim.
Os motivos se repetem em praticamente todas as histórias: um boi infernal é caçado
implacavelmente por um vaqueiro. A atmosfera é a da vaquejada, o homem a cavalo persegue o
animal selvagem que foge e depois volta-se contra o seu perseguidor.
O animal não é mostrado como um inimigo, mas como um ser misterioso como mostram
os títulos A história do boi Mandingueiro e o cavalo misterioso de José Bernardo da Silva e O
boi misterioso de Leandro Gomes de Barros, o mais famoso do gênero. Considerado uma
“verdadeira epopéia do Nordeste, o folheto de 48 páginas, composto de 224 sextilhas, é um
arquétipo da vida e da mentalidade do sertão”
58
. A história segue a mesma linha das demais : o
boi, encarnação do demônimo, da natureza hostil, do desequilíbrio do mundo e das forças
obscuras, deve ser aniquilado mas para isso deve-se encontrar um vaqueiro capaz de realizar tal
57
Yvone Bradesco-Goudemand. O ciclo dos animais na literatura popular do nordeste. Rio de Janeiro, FCRB, 1982,
p 90.
44
façanha. Depois de muitas tentativas e fracassos um vaqueiro desconhecido se apresenta dizendo-
se capaz de realizar a empreitada. Segue-se uma caçada terrível, cujo desfecho é o
desaparecimento do boi e do vaqueiro, ambos engolidos por uma grande fenda que se abriu sobre
a terra.
O folheto de João José da Silva O vaqueiro nordestino traz um enredo parecido. “A
história gira em torno da rivalidade de dois homens para domar um boi fora do comum, Barbatão,
que cresceu solto e tornou-se selvagem. É uma luta árdua entre o homem a cavalo e o animal que
corre como um tufão”
59
. No final do torneio o vaqueiro mais valente consegue domar o animal e
como prêmio casa-se com a filha do fazendeiro.
Verifica-se nesse ciclo a repetição de elementos presentes nas novelas de cavalaria e nos
folhetos pertencentes ao ciclo dos cangaceiros, como a exaltação da coragem e a disposição para
a aventura.
O vaqueiro, representa o herói popular por excelência : trabalhando, se não sem
patrão, pelo menos sem vigilância, é nômade, vive a cavalo, realizando todos os
dias trabalhos duros, que seriam dignos de louvação se não fossem tão humildes
e cotidianos. A lenda e a poesia popular ligam-no quase que naturalmente a um
cavaleiro, cuja armadura é de couro amarelo-alaranjado, cor de ouro – calças,
gibão, guarda-peito, chapéu. Sua silhueta tem os mesmos reflexos metálicos da
armadura medieval; os arreios dos cavalos são cobertos de medalhas de santos,
as esporas brilham, e alguns, segundo a tradição do cangaço, prendem ao chapéu
de couro algumas moedas de prata.
60
Sintetizando uma série de valores da sociedade sertaneja o vaqueiro é uma figura
constante não apenas na literatura de cordel mas em todas as artes voltadas à representação do
Nordeste. Símbolo do sertão, o vaqueiro associa-se ao cantador em sua condição de ‘cavaleiro
errante’ : “o cantador é indissociável do sertão e da dupla vaqueiro e cavalo”
61
. Outro aspecto que
58
Ibid., p 30.
59
Ibid., p 55.
60
Idelette Muzart Fonseca dos Santos. Em demanda da poética popular : Ariano Suassuna e o Movimento Armorial.
Campinas, Ed. da Unicamp, 1999, p 91.
61
Ibid., p 138.
45
liga as duas figuras é a idéia de desafio : o desafio em versos do cantador e o desafio do vaqueiro
em sua luta contra o animal ‘enfeitiçado’. A exposição ao combate e a capacidade de vencer o
oponente elevam ambos, cantador e vaqueiro, à categoria de mito.
***
A luta é uma presença permanente e marcante na literatura de cordel. Ela está sempre
pronta a ocorrer na medida em que o mal, que a justifica, está em toda parte. Normalmente
associado a forças que o sertanejo não consegue explicar, o mal, ou melhor, a obssessão pelo mal,
está na base dos movimenos messiânicos ocorridos no Nordeste, como Pedra Bonita (1836-38)
em Pernambuco e Canudos (1893-97) no sertão da Bahia. Movimentos que envolveram uma luta
feroz entre seus seguidores e as forças da repressão, sua representação na literatura de cordel é,
curiosamente, pouco expressiva. Em pesquisa realizada na década de 1960, Raymond Cantel
localiza apenas o folheto de José Aires (Jota Sara) “intitulado: História da Guerra de Canudos,
1893 – 1898. Biografia de Antonio Conselheiro. Trata-se de um poema de 41 páginas seguido de
uma Profecia do futuro de Canudos com o Açude de Cocorobo, que ocupa as sete últimas páginas
do folheto”
62
.
O estudo de José Calasans publicado em 1984
63
é um pouco mais abrangente do que o de
Cantel a respeito da presença de Canudos na literatura de cordel. O autor localizou, além do já
citado folheto, dois ABCs, recolhidos por Euclides da Cunha, de poetas sertanejos que lutaram na
guerra contra as tropas do governo e mais três poemas escritos por representantes das milícias
federais. Compostos em épocas diferentes, os dois ABCs foram escritos durante a guerra assim
como o poema de um dos enviados pelo poder central, o soldado João de Souza Cunegundes. Dos
outros dois, um, sem data, foi escrito por João Melchíades da Silva em torno de 1904 e o outro
62
Raymond Cantel. Op.cit., p 276 (trad. S.R.B.N.).
63
José Calasans. Canudos na literatura de cordel. São Paulo, Ática, 1984.
46
em 1940 por Arinos Belém. Nos cinco folhetos, a preocupação é simplesmente com a guerra,
descrita com uma visão favorável a Conselheiro nos ABCs e com um enfoque francamente anti-
conselheirista nos demais poemas. O poema de Jota Sara, escrito em 1963, é o único que traz
uma visão profética dos acontecimentos, o que confirma a posição de Raymond Cantel sobre a
exclusividade do citado poema no que se refere à visão messiânica do movimento.
Reimpresso inúmeras vezes desde o início do século XX, o folheto de Jota Sara sobre
Canudos faz menção em quatro estrofes ao nome de Dom Sebastião, rei português morto em
1578 na batalha de Alcácer-Quibir.
Para os portugueses o rei Sebastião encarnava a esperança de ver um dia
Portugal recuperar sua grandeza passada. No Brasil, após a independência obtida
em 1822, seus fiéis esperaram, primeiro, que ele viesse lhes distribuir riquezas e
bens materiais. Um pouco mais tarde eles passaram a esperar que ele restaurasse
a monarquia.
64
Associado à redenção dos justos, à condenação dos pecadores, às promessas de
abundância e felicidade, o sebastianismo revela-se como um discurso profético, de esperança na
salvação do mundo; o folheto sobre Canudos expressa bem esse sentimento : Espalharam mil
boatos / Por todo aquele sertão / Em Belo Monte já estava / O Dom Rei Sebastião / Dos montes
corria azeite / A agora do monte era leite / As pedras convertiam-se em pão.
Observados do ângulo das previsões, os folhetos proféticos se aproximam dos almanaques
populares de grande sucesso no Nordeste. Publicados anualmente (e ainda hoje editados), esses
almanaques indicam, baseados em previsões astrológicas, as perspectivas agrícolas para o ano
corrente. “Mas é comum o almanaque ultrapassar o seu domínio para abordar a profecia,
colocada freqüentemente sob a autoridade de Padre Cícero Romão Bastista, cujo nome
raramente, está ausente desse gênero de produção”
65
. Os termos e temas veiculados nesses
64
Conf. Maria Isaura Pereira de Queiroz. A guerra santa no Brasil : o movimento messiânico do ‘Contestado’ texto
comentado por Raymond Cantel. Op.cit., p 274 (trad. S.R.B.N.).
65
Ibid., p 291-292 (trad. S.R.B.N.).
47
almaques são, o que Raymond Cantel denomina, ‘sobrevivências modernas da literatura popular
de Portugal’. O Almanaque Nacional de 1858 traz em sua capa a imagem “de um astrólogo com
barbas longas agitadas por um vento de tempestade e olhos coléricos. Vestido com uma longa
túnica preta, ele aponta seu bastão ameaçador para o céu. A seus pés o clássico globo terrestre e à
sua esquerda uma coruja”
66
. A idéia de ameaça passada pela imagem, a visão apocalíptica muito
comum nesse tipo de publicação do século XIX, está presente em quase todos os folhetos
proféticos publicados no Nordeste.
Muito popular no que diz respeito à profecia, o folheto Viagem à São Saruê, de Manuel
Camilo dos Santos, repete alguns pontos da história de Canudos escrita por Jota Sara. O poeta, no
entanto, inicia a história avisando que sua viagem é uma viagem do ‘pensamento’ (Doutor mestre
pensamento / me disse um dia: - você / Camilo, vá visitar / o país São Saruê / pois é o lugar
melhor / que nesse mundo se vê). São Saruê é um país de fartura e felicidade onde ninguém
precisa trabalhar e há dinheiro à vontade. Viajando no ‘carro da brisa’ o poeta vê passar diante
dos seus olhos cidades cobertas de ouro, casas de cristal e marfim (as portas barras de prata /
fechaduras de "rubim" / as telhas folhas de ouro / e o piso de "sitim"). No final dessa sua viagem
imaginária, Camilo promete indicar o caminho para se chegar ao paraíso sonhado; mas antes é
preciso que se ‘caia na real’ (Vou terminar avisando / a qualquer um amiguinho / que quiser ir
para lá / posso ensinar o caminho, / porém só ensino a quem / me comprar um folhetinho)
67
. Nos
dois folhetos, o de Jota Sara e o de Manuel Camilo, as privações desaparecem da terra e os justos
têm oportunidade de desfrutar de suas riquezas. Mas enquanto o primeiro carrega no tom
apocalíptico, o segundo se fixa na construção de imagens edênicas ignorando as ameaças de fim
de mundo que caracterizam as profecias sebastianistas.
66
Ibid. p 126 (trad. S.R.B.N.).
67
Manuel Camilo dos Santos. Viagem à São Saruê in Idelette Muzart. Op.cit., 1997.
48
O tema da profecia é bastante explorado na literatura de cordel que dedica uma extensa
lista de títulos aos milagres de Padre Cícero, personagem principal dos folhetos do gênero.
Representante de uma das oligarquias mais poderosas do Estado do Ceará, o Santo de Juazeiro
obscureceu a imagem de Dom Sebastião transformando-se em “Messias nacional, muito mais
próximo do coração dos brasileiros”
68
.
Acusando as desordens do mundo e prometendo salvar os inocentes da ‘destruição fatal’
as profecias de Padre Cícero reproduzem a visão moralista e conservadora típica de todos os
ciclos da literatura de cordel. A esperança de salvação não se inscreve, nesse caso, em uma
perspectiva de transformação do mundo ameaçado pelas privações (como no folheto sobre
Canudos) mas de regeneração dos costumes abalados pela devassidão, pelo protestantismo e pelo
comunismo. Padre Cícero é considerado o Messias salvador: Porque é quem nos defende / do
comunismo infernal / que promove a grande guerra / pelo mundo universal / quando as tropas
malfazejas / vierem quebrando Igrejas / da parte celestial.
69
O tratamento dado na literatura de cordel às figuras de Antonio Conselheiro e Padre
Cícero corresponde, de certo modo, às características dos movimentos por eles liderados. Em sua
análise do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, Idelette Muzart comenta sobre esses
movimentos observando a distinção de duas épocas:
a época messiânica da revolta popular, no século XIX, e a época política da luta
dos senhores feudais, no século XX ... De fato, os movimentos messiânicos são
autenticamente populares – aliam-se à agitação social, traduzem uma revolta
contra o governo estadual ou federal, às vezes contra os patrões mais
próximos.
70
Ao contrário dos movimentos de Pedra Bonita e Canudos, que refletem uma profunda
revolta popular contra os representantes do mundo da ordem, os acontecimentos políticos ligados
68
Raymond Cantel. Op.cit., p 280 (trad. S.R.B.N.).
69
A beata que viu meu Padrinho Cícero sexta feira da Paixão in ibid. p 288.
70
Idelette Muzart Fonseca dos Santos. Op.cit.,1999, p 86-87.
49
à figura do Padre Cícero (Guerra de 1912 e Guerra do Santo Padre de Juazeiro em 1913
71
e
Guerra da Coluna em 1926
72
) manifestam a vitória do poder instituído sobre instâncias que o
ameaçavam. “Essa vitória foi conseguida graças à utilização, como força de pressão política, de
uma massa popular, mobilizada ao chamado de Padre Cícero”
73
.
1.5 - A representação do Nordeste no panorama cultural dos anos 1960
Na perspectiva da literatura de cordel, a profecia serve de base à luta contra o mal
associado a forças que ameaçam a preservação de comportamentos e crenças tradicionais. Tal
preocupação não é a mesma que inspira a visão de escritores e cineastas que se dedicam ao tema.
A diferença entre estes e o artista popular diz respeito a escolha dos episódios tratados: num caso
há uma preferência clara pelas profecias de Antonio Conselheiro, no outro pelos milagres de
Padre Cícero. Por que Glauber Rocha, por exemplo, escolheu o beato Sebastião (personagem
síntese de várias correntes do sebastianismo no Brasil) em vez da figura de Padre Cícero, muito
mais popular entre os nordestinos?
Em Portugal, um pouco antes de sua morte, Glauber define seu sebastianismo :
Sou um sebastianista. Nós dizemos, no Nordeste do Brasil, que Dom Sebastião
desapareceu em Alkacer-Kibir para renascer no sertão. Em meu filme (Deus e o
diabo na terra do sol), o nome do profeta visionário, do beato, é Sebastião. E
Sebastião é um nome forte no Brasil. Deixou de ser um nome aristocrático para
se tornar popular. É como se o Rei tivesse desaparecido dentro das tripas do
povo para renascer vomitado pela coletividade terceiro-mundista e tropicalista.
71
« Os coronéis, que tinham assinado em 4 de outubro de 1911, em Juazeiro do Norte, o famoso Pacto dos Coronéis,
e reafirmado sua solidariedade incondicional ao chefe do partido, Antonio Acioli, revoltaram-se contra o presidente
do Ceará, Franco Rabelo, e conseguiram o apoio de Padre Cícero. A vitória dos coronéis do Cariri contra Rabelo,
traduz-se na intervenção do governo federal e na instalação de um novo presidente "sertanejo" » in ibid., p 85.
72
« Luis Carlos Prestes, oficial do exército, após o chamado Movimento dos Tenentes, assume a liderança de uma
coluna armada que, saindo de São Paulo, percorre todo o interior do país até o Nordeste. Uma lenda formou-se em
torno desta "longa marcha", que valeu a Prestes o apelido de "Cavaleiro da Esperança ". Sua chegada ao Nordeste
provocou uma intensa agitação dos coronéis contra este revolucionário. Mais uma vez, recorre-se a Padre Cícero, que
encarrega Lampião de ser o capitão de uma cruzada contra o "invasor". » in ibid., p 86.
73
Ibid. p 85.
50
Então tudo isso me conduziu a Portugal numa viagem metafórica, numa viagem
poética [grifos da autora]
74
Para Luitigarde Cavalcanti
75
, o que separa os dois beatos é o fato de que Padre Cícero
estava vinculado a alta hierarquia da Igreja enquanto Antonio Conselheiro se manteve autônomo
perante esta. Há, portanto, em relação a Antonio Conselheiro, o caráter de insubordinação que, de
certa forma, explica sua apropriação pelo discurso de esquerda. Há, além disso, o componente
épico, a guerra, a luta narrada por Euclides da Cunha no livro que fundou a memória de Canudos
e promoveu a idéia de que o “sertanejo é antes de tudo um forte”.
76
A visão de Canudos que entrou para a história foi a visão literária que, segundo Walnice
Galvão, ajudou a manter vivo o movimento liderado por Antonio Conselheiro
77
. Por outro lado
essa visão é informada por um ponto de vista externo; a perspectiva que predomina é a do saber e
não a da experiência. Da parte da literatura popular existe um estranho silêncio em relação a
Canudos. Comentamos anteriormente sobre os folhetos publicados a respeito do tema. Desses,
apenas dois foram escritos por poetas sertanejos, além do de Jota Sara que, no entanto, não teve
participação no movimento. O que se sabe a respeito das expectativas dos conselheiristas é que a
sua forma de organização, baseada no modo de vida comunitário, não tinha finalidades políticas
apesar de expressar as contradições políticas, econômicas e sociais do país. De acordo com os
pesquisadores do tema
78
, os habitantes de Canudos tinham como referência básica a religião,
praticando um tipo de catolicismo popular que se contrapunha radicalmente aos preceitos da
Igreja:
74
Entrevista a Manuel Carvalheiro, publicada no Jornal do Brasil de 22 de agosto de 1987 in Ivana Bentes. Cartas
ao mundo : Glauber Rocha. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p 71.
75
Luitegarde Oliveira Cavalcanti Barros. Entrevista a Manoel Neto e Roberto Dantas in Os intelectuais e Canudos –
o discurso contemporâneo. Salvador, Ed. UNEB, 2003, p 96-97.
76
Euclides da Cunha. Os sertões. São Paulo, Publifolha, 2000.
77
Walnice Nogueira Galvão. Entrevista a Manoel Neto e Roberto Dantas in Op.cit., p 190.
78
Luitegarde Oliveira Cavalcanti Barros, Marco Antonio Villa, Claude Santos in ibid.
51
Então, os nossos beatos estavam fazendo rituais no século XIX, que eram os
rituais dos jesuítas no século XVI, e que o Vaticano já não tinha mais aqueles
rituais como autoflagelação, aquelas caminhadas inomináveis, carregar pedra na
cabeça, isso é de um catolicismo do tempo dos catacúmenos. E o catolicismo
popular tem uma característica, como é característica do folclore, de se viver
num mesmo amálgama, rituais e crenças de diferentes séculos, de diferentes
épocas da história. Então, este é o catolicismo popular.
79
Apesar de serem diferentes os perfis dos líderes de Canudos e de Juazeiro do Norte, a
prática religiosa dos conselheiristas era bem parecida com a dos fiéis do Padre Cícero, da mesma
forma que o princípio que os mobilizava. Ligado a uma visão de mundo conservadora, o
“princípio esperança”
80
responde, em ambos os casos, a um anseio regenerador presente nas
manifestações da religiosidade popular. Porém, apesar dos pontos em comum (no que se refere à
prática religiosa), na perspectiva da população sertaneja, a figura do Padre Cícero assim como as
romarias de Juazeiro são mais representativas que a lembrança de Antonio Conselheiro e do
movimento de Canudos que, por outro lado, se tornou um mito entre os intelectuais. Fundado por
Euclides da Cunha no início do século XX, esse mito, observa Sylvie Debs
81
, foi retomado sob
diferentes perspectivas por escritores como Mário de Andrade (O Turista aprendiz), Raquel de
Queiroz (O Quinze), Graciliano Ramos (Vidas secas) e Guimarães Rosa (Grande sertão veredas)
e cineastas como Lima Barreto (O Cangaceiro), Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas),
Glauber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro)
e Ruy Guerra (Os fuzis) nos anos 1950 e 1960 e, depois disso, no processo de retomada do
cinema brasileiro nos anos 1990, por Rosemberg Cariry (Corisco e Dadá), José Araújo (Sertão
das memórias) e Walter Salles (Central do Brasil).
79
Luitegarde Oliveira Cavalcanti Barros in ibid., p 95.
80
A obra publicada na década de 1950 (O princípio esperança) do filósofo alemão Ernest Bloch foi citada por
Walnice Nogueira Galvão in ibid., p 184.
81
Sylvie Debs. Op.cit.
52
O mito, de que fala Sylvie Debs, só passa a ter conotação política a partir da segunda
metade do século XX quando o sertão se torna um campo de exercício sociológico
82
. José
Calasans comenta sobre isso:
O conflito sertanejo como que existia apenas por causa do livro consagrado e
consagrador (Os sertões). Somente a partir da década de 1940, a tragédia de
1897 começou a ser encarada como objeto de indagações sociais, políticas,
culturais, econômicas. Presentemente, embora não possamos traçar paralelo
entre o prestígio popular do Padre Cícero e do Bom Jesus Conselheiro, dispomos
de elementos que apontam a existência de uma apreciável literatura de cordel em
torno da temática Canudos, sobretudo nestes últimos dez anos (1974...).
83
Para nós o que interessa particularmente é o contexto dos anos 1960, período dominado
por uma certa unidade ideológica no que diz respeito às representações do Nordeste por setores
da intelectualidade e das artes. Nesse contexto, a idéia síntese de Os sertões (de resistência do
sertanejo face às adversidades) serve de base a um discurso voltado à idéia de revolução.
***
Durante os anos eufóricos de JK, a arte brasileira esteve basicamente preocupada com
questões formais. O surgimento da Bossa-nova e o florescimento, nas artes visuais e na poesia,
do Concretismo atestam essa tendência. No campo cinematográfio é revelador o exemplo de
Glauber Rocha. Como ele próprio diz: “meus dois primeiros filmes, O pátio (1959) e A cruz na
praça (inacabado), são filmes que poderiam ser classificados como formalistas, nos quais a
plástica, o som, a montagem eram muito mais importantes do que aquilo que aparecia no interior
dos planos.”
84
82
Para Sylvie Debs, a politização da questão social do Nordeste coincide com o surgimento do Cinema Novo. « Para
além das características próprias a cada cineasta, Vidas secas, Deus e o diabo na terra do sol e Os fuzis, foram
construídos a partir das mesmas idéias articuladas em torno de três temas : o engajamento para defender os conceitos
de autor, o conteúdo centrado na realidade brasileira, a denúncia da alienação, da situação colonial e do sub-
desenvolvimento. » ibid., p 202 (trad. S.R.B.N.)
83
José Calasans. Op.cit., p 6-7.
84
Glauber Rocha. Entrevista a João Lopes (Sintra, 08 de abril de 1981) in Glauber Rocha. O Século do cinema. Rio
de Janeiro, Alhambra/Embrafilme, 1985, p 250 e Sylvie Pierre. Op.cit., p 202.
53
Em 1961 Glauber Rocha realiza Barravento, seu primeiro longa-metragem. O filme, que
retrata uma comunidade de pescadores, mostra uma mudança de perspectiva em relação à
primeira produção. Influenciado pelo neo-realismo italiano, esse filme traz uma conotação
política que, a partir de então, será a marca da obra do cineasta.
A virada de Glauber Rocha em direção a um cinema social e politicamente orientado
corresponde a uma tendência das artes brasileiras do final da década de 1950, início da de 1960.
Com o debate em torno do tema da Reforma Agrária, com a perspectiva da revolução social
vislumbrada pela esquerda, com os projetos de educação popular e o seu ideal de conscientização
das massas, entre os inúmeros outros fatores de mobilização, instalou-se um ambiente favorável
ao surgimento da chamada arte ‘engajada’.
No campo político, a presença no poder de forças nacionalistas filiadas à
tradição de Vargas e, nesse sentido, sensíveis às demandas populares, favorecia
a emergência das esquerdas, notadamente do Partido Comunista que, na
semilegalidade, desempenhava um papel de crescente importância na articulação
dos setores progressistas. Exercendo uma influência considerável no meio
sindical, estudantil e intelectual, o PCB constituía-se numa peça estratégica do
jogo de alianças do período Goulart. Sua proximidade em relação ao Estado e o
acesso a alguns aparelhos de hegemonia permitiam que seu ideário da revolução
"democrática e antiimperialista" circulasse abertamente no debate nacional.
85
Nesse quadro, o tema da cultura popular, que durante os anos ‘desenvolvimentistas’
estivera relegado a segundo plano, voltou a aparecer no panorama artístico brasileiro contando
com apoio de elementos da esquerda nacionalista e da militância estudantil que viam as
expressões do povo como um instrumento de conscientização. Quando, por exemplo, “os agentes
do CPC se referem às "obras da cultura popular", eles não se reportam às manifestações
populares no sentido tradicional, mas sim às atividades realizadas pelos centros de cultura”
86
. Tal
concepção se colocava como uma espécie de crítica às interpretações dos folcloristas que viam a
cultura popular como o conjunto das tradições do povo que deviam ser preservadas.
85
Heloisa B. de Holanda e Marcos Gonçavel. Op.cit., p 11.
54
Acusando os folcloristas de conservadores e a arte popular de ingênua e retardatária, os
representantes dos CPCs defendiam uma ‘cultura popular’ revolucionária, voltada para o
processo de transformação social. Verifica-se, aí, uma inversão: de uma cultura feita pelo povo,
segundo perspectiva dos folcloristas
87
, passava-se, na concepção dos CPCs, a uma cultura feita
para o povo, esta considerada verdadeira em contraposição à alienação a que estava sujeita a
cultura popular. Essa posição encerrava, é claro, uma contradição pois o popular, a quem se
dirigiam os praticantes da arte revolucionária, devia ser negado, exlcuído do seu próprio processo
de representação. Tratava-se de uma arte produzida segundo o ‘modelo sociológico’, como
observou Jean Claude Bernardet. “É a voz do saber, de um saber generalizante que não encontra
sua origem na experiência, mas no estudo de tipo sociológico.”
88
Analisando alguns documentários produzidos entre 1964 e 1965, Bernardet verificou que,
de um modo geral, as vozes dos entrevistados se anulavam perante a fala do locutor.
Estabelece-se então uma relação entre os entrevistados e o locutor: eles são a
experiência sobre a qual fornecem informações imediatas; o sentido geral,
social, profundo da experiência, a isso eles não têm acesso (no filme); o locutor
elabora, de fora da experiência, a partir dos dados da superfície da experiência, e
nos fornece o significado profundo. Essa elaboração não se processa durante o
filme, nem nos é indicado o aparelho conceitual que a rege, nem donde vem esse
locutor do qual só sabemos que está ausente da imagem.
89
Dentro do que se pode chamar de registro das ‘tradições populares’ observa-se, no cinema
dos anos 1960, muito mais a voz do locutor do que a voz daqueles a quem o filme pretensamente
daria voz. Estes “funcionam como uma amostragem que exemplifica a fala do locutor e que
atesta que seu discurso é baseado no real.”
90
86
Renato Ortiz. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo, Brasiliense, 1985, p 72.
87
Sobre a ciência do folclore e a prática dos folcloristas consultar Renato Ortiz. Românticos e folcloristas. São
Paulo, Ed. Olho d’Água, s.d.
88
Jean Claude Bernardet. Cineastas e imagens do povo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p 17.
89
Ibid.
90
Ibid., p 17-18.
55
Comentando sobre Viramundo (1965) de Geraldo Sarno, Bernadet nos fala de uma
seqüência que trata das religiões. O filme aborda a condição de vida dos migrantes nordestinos na
cidade de São Paulo e tenta mostrar o transe religioso como uma manifestação histérica de
indivíduos sem saída. O componente básico desta seqüência é a alienação que o diretor, na
interpretação de Bernardet, atribui como causa da não resistência popular ao golpe de 1964 : a
alienação impediria que o povo se mobilizasse no sentido revolucionário encontrando na religião
consolo para sua situação miserável. Diante disso, a tarefa do filme é conscientizá-lo da sua
alienação.
Em Viramundo, a resistência do nordestino vai esbarrar em forças superiores como, por
exemplo, a que representa o empresário mostrado no filme como símbolo de um sistema social
que explora o trabalhador. Tipos sociais que reproduziam as dicotomias do pensamento que
dominava largos setores da intelectualidade da época, os personagens entrevistados (os migrantes
de um lado, o empresário de outro) representam, respectivamente, o opressor e o oprimido. Essa
forma de representação, no entanto, não corresponde, embora o filme procure mostrar o contrário,
à representação que o nordestino faz de si próprio. Trata-se, portanto, de uma projeção da
intelectualidade sobre o sertão, sua população e sua cultura, como se observa, por exemplo, na
seqüência das religiões de Viramundo.
A propósito do papel do autor no cinema militante da década de 1960, Jean-Claude
Bernardet, refere-se ao filme Cabra marcado para morrer (1984) de Eduardo Coutinho.
Comparando o Cabra/64 com o Cabra/84, Bernardet comenta que este filme, realizado a partir
das sobras do primeiro, interrompido com o golpe de 1964, é uma espécie de revisão do cineasta
a respeito do modo como, na época, o cinema documentário costumava retratar o povo:
o autor expondo-se em primeiro plano, com tanta importância quanto seu
personagem, era impensável na época do Cabra/64. O autor existia, sim, mas
sempre oculto, transparente veículo da realidade e da mensagem. O autor tornar-
56
se a mediação explícita entre o real e o espectador, o autor expor-se com sua
própria temática de realizador de cinema, isso indica uma personalização do
espectáculo e das relações com o público a qual contradiz a postura ideológica e
estética do Cabra/64.
91
Mostrar ao povo as condições de sua alienação significava, para o intelectual militante, a
única possibilidade de vitória na sua luta contra o sistema. O tema da luta, que na arte popular do
cordel é colocado em evidência, direciona a questão para um outro ponto. Na perspectiva do
cordel, a luta é marcada pela tensão entre o apego ao vivido e o desejo de mudar. Tal concepção
se processa dentro dos limites de uma poética e é marcada por uma profunda ambigüidade. No
que se refere aos representantes da arte engajada a luta é percebida como algo concreto, uma
decorrência natural da condição de miséria da população do sertão.
A idéia do sertanejo sublevado corresponde a um imaginário, fundado (literariamente)
sobre a idéia de um Brasil rural, pobre e explorado, raramente representado na literatura de cordel
(Patativa do Assaré é uma das poucas exceções). O tema ganha um delineamento político, é
urbanizado, volta-se para outros públicos, ganha inclusive outros ritmos: Foi no século passado,
no interior da Bahia, o homem revoltado com a sorte, do mundo em que vivia, levantou-se contra
a lei, que a sociedade oferecia. Os jagunços lutaram, até o final, defendendo Canudos, naquela
guerra fatal...
92
. A transformação do mito Os sertões em letra de samba-enredo é reveladora de
um processo observado por Marilena Chauí: “Um mito fundador é aquele que não cessa de
encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo
que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.”
93
***
91
Ibid., p 233.
92
Os sertões foi o tema que a escola de samba Em Cima da Hora levou para a avenida no desfile de 1976. O samba
sobre Canudos é considerado o melhor da história por muita gente que entende do assunto mas a Escola ficou em 13
O
lugar e desceu para o segundo grupo. Há quem atribua a derrota ao samba, por tocar na ferida numa festa em que o
objetivo é mandar a tristeza embora.
93
Marilena Chauí. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo, Fundação Editora Perseu Abramo, 2000, p 9.
57
Até que ponto as diversas manifestações artísticas sobre um mesmo fenômeno guardam
entre si pontos de contato é difícil dizer. De qualquer forma não se pode negar a importância do
Nordeste e a predominância do enfoque político e social no imaginário cinematográfico dos anos
1960, apesar da variedade de obras realizadas. No campo do cinema documentário, além dos já
citados Viramundo e Cabra marcado para morrer, foram produzidos Aruanda (1960) de
Linduarte Noronha, Maioria absoluta (1964) de Leon Hirszman e Memória do cangaço (1965)
de Paulo Gil.
No cinema de ficção a temática sertaneja foi tratada por Nelson Pereira dos Santos,
Glauber Rocha e Ruy Guerra, cineastas cujas obras ajudaram a reinventar a linguagem
cinematográfica. Colocando-se contra a estética hollywoodiana de O Cangaceiro, a representação
do Nordeste pelo grupo do Cinema Novo pautava-se pela busca de uma expressão própria, livre
do modelo norte-americano copiado pela Vera Cruz e do didatismo que caracterizava certas
produções nacionais supostamente ‘revolucionárias’. Estética da fome, define as bases de um
novo tipo de revolução : a revolução cinematográfica. Escrito por Glauber Rocha para
apresentação na mostra cinematográfica de Gênova em 1965, o manifesto indica o novo modo de
exprimir a a realidade:
Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto
a pôr seu cinema e a sua profissão a serviço das causas importantes de seu
tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta
definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do
Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica
e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina.
94
O Cinema Novo foi um movimento de resistência cultural e política, de resistência ao
colonialismo e às suas formas de expressão. O seu pressuposto básico era de que um país
subdesenvolvido deveria ter uma arte equivalente aos seus padrões econômicos, ou seja, os
94
Glauber Rocha in Op.cit., 1981, p 32-33.
58
meios técnicos deveriam ser compatíveis com a realidade que lhes serviria de suporte
95
.
Comprometer-se com a realidade significava, nesse caso, praticar um cinema quase que artesanal,
o que, de certa forma, explica o interesse pelo sertão, sua cultura, sua paisagem.
***
A originalidade de Glauber Rocha em relação a outros diretores que se dedicaram a
retratar o Nordeste está no modo de o cineasta apropriar-se de elementos da cultura popular,
traduzindo-os para a linguagem cinematográfica. Um primeiro ponto que se deve destacar é que a
tradição, na perspectiva da obra do cineasta, não tem o sentido de conservação mas de
transformação (o que contraria a própria idéia de tradição segundo sua concepção convencional).
Outro ponto é a relação entre saber e experiência que os dois filmes analisados conseguem
extraordinariamente sintetizar (talvez pelas próprias características biográficas do autor: um
cineasta que nunca abandonou sua condição sertaneja)
96
.
Associando o discurso revolucionário aos emblemas da tradição, os filmes de Glauber
Rocha realizados durante a década de 1960 recriam a épica sertaneja encenada pelos personagens
do cordel. Recriam também o modo de proceder característico da literatura de cordel onde, ao
contrário do que normalmente se pensa, o que está em jogo não é preservar uma tradição
ameaçada de extinção mas, ‘salvá-la’ com outro significado. Não estaríamos aí nos aproximando
do modelo cinematográfico criticado por Jean-Claude Bernardet? Na verdade, no que se refere à
apropriação da experiência do ‘outro’, as diferenças são muito sutis: em um caso informadas pela
95
A relação cinema/subdesenvolvimento foi tratada por Paulo Emílio Sales Gomes. Cinema : trajetória no
subdesenvolvimento. São Paulo, Paz e Terra, 1996.
96
Esse é o ponto que talvez explique a diferença do olhar (endógeno) que Glauber Rocha dirige ao Nordeste dos
olhares (exógenos) de Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra, cineastas que, na mesma época, se dedicaram a
retratar a região. Sobre esse argumento ver Sylvie Debs. Op.cit. p 165-168.
59
noção de objetividade, pelo pretensão de dar a palavra ao povo, de deixá-lo falar
97
; no outro pela
problematização dessa idéia
98
.
No que se refere a cultura popular, não há, da parte de Glauber Rocha, a pretensão de
retratá-la, mas de reinventá-la; por exemplo, a idéia de combate: enquanto na literatura de cordel
esta é determinada pela coragem e pelo desejo de aventura, nos filmes, essa mesma idéia
corresponde a motivações de ordem política – inteiramente ausentes nas manifestações da cultura
popular.
Ideais que circulavam no ambiente cultural dos anos 1960, a expectativa de mudar o
mundo, a esperança na Revolução
99
entendida como negação radical do vivido, contrariam a
lógica das sociedades tradicionais onde presente e futuro são percebidos como continuações
naturais do passado, tal como manifestam suas representações culturais.
***
Na literatura de cordel o legado do passado se atualiza na figura do herói. Herdeiro das
novelas de cavalaria, ele age unicamente em nome da aventura. Seu desejo não é mudar a ordem
do mundo, traçada pelo plano divino. Como na sociedade feudal, interpretada segundo o modelo
97
Sobre esse ponto, é interessante notar, no filme Cabra marcado para morrer, a diferença entre a versão de 1964 e
a de 1984 no que se refere às entrevistas com Elizabeth (mulher do camponês morto). « As entrevistas com Elizabeth
são bastante próximas do modo de filmar encontrado em documentários de meados dos anos 60, algo do tipo
Opinião pública (Arnaldo Jabor). Já as entrevistas feitas na Baixada Fluminense com filhos e filhas de Elizabeth
revelam certo sensacionalismo emocional que as aproxima de um estilo de reportagem televisivo atual. ». Jean-
Claude Bernardet. Op.cit., p 233.
98
A relação entre o intelectual e o povo foi abordada em Terra em transe (1967). A cena em que o poeta Paulo
Martins tapa com sua mão a boca do ‘homem do povo’ é emblemática a esse respeito.
99
Nas sociedades tradicionais, a mudança estava relacionada à idéia de restauração de uma ordem anterior perdida
após um período de convulsões. Segundo tal concepção, o termo ‘revolução’ era interpretado de acordo com as
noções da astronomia : a trajetória de um astro até seu retorno ao ponto inicial. Em termos políticos essa
interpretação corresponde à idéia de uma revolução de tipo conservador como a que ocorreu na Inglaterra em 1688.
« O conceito moderno de revolução, inextricavelmente ligado à noção de que o curso da História começa
subitamente de um novo rumo, de que uma História nunca antes conhecida ou narrada está para se desenrolar, era
desconhecido antes das duas grandes revoluções do século XVIII. » Hannah Arendt. Da revolução. São Paulo, Ática,
1990, p 23.
60
das três ordens (clero, guerreiros e servos)
100
, a sociedade sertaneja se organiza em um rígido
sistema de hierarquias. Trata-se, no entanto, de dois contextos distintos, com códigos culturais
próprios. Na canção de gesta, por exemplo, a luta, inserida no sistema de vassalagem, expressa a
lealdade do cavaleiro para com o seu senhor. Já na literatura de cordel, a glória do herói é
condicionada por sua condição de independência em relação aos poderes instituídos. Não é a toa
que os principais símbolos do ciclo heróico da literatura de cordel são o vaqueiro e o cangaceiro,
personagens que se situam à margem das relações de compadrio que marcam a sociedade como
um todo. Deve-se, no entanto, notar que a postura do rebelde não se caracteriza por qualquer
projeto coletivo de transformação social. Mudar significa subir na escala social, façanha realizada
pelo herói que por sua valentia recebe a honra de casar com a filha do fazendeiro
101
. A mudança
encontra-se, nesse caso, restrita à experiência individual e aos limites da história contada cuja
repetição implica uma transformação do herói e uma transformação do próprio texto na medida
em que este sofre uma contínua adaptação às condições de recepção, às expectativas dos
ouvintes/leitores. A posição de Ronald Daus é esclarecedora dessa questão:
De vez em quando a aversão a determinados traços de um chefe cangaceiro pode
impedir uma identificação, mas a certeza de que também este bandido permitirá
por seu poderio a cada sertanejo participar de seu domínio é mais forte do que
qualquer condenação racional. Assim pode acontecer que Lampião, depois de
sua morte, seja apresentado de maneira cada vez mais positiva, que vá perdendo
cada vez mais sua primitiva atrocidade.
102
Segundo o comentário anterior, a importância dada pelo povo a determinadas figuras recai
sobre o imaginário construído em torno destas e não sobre papel histórico por elas exercido. O
100
Jacques Le Goff. « Nota sobre a sociedade tripartida » in Por um novo conceito de Idade Média. Lisboa, Estampa,
1980.
101
A fórmula foi analisada por Antonio Fausto Neto que caracterizou o cordel como um instrumento de reprodução
do statu quo social. Segundo o autor, na literatura de cordel, o foco da narrativa recai sobre a ação individual, o que
provoca « o esvaziamento de uma situação estrutural de tantos milhões de trabalhadores rurais e camponeses
nordestinos e brasileiros. Apenas aquele sertanejo se enfrenta com o coronel, e apenas ele o faz por suas qualidades
pessoais que não estão presentes nos demais seres humanos normais da classe subalterna. » Antonio Fausto Neto.
Cordel e a ideologia da punição. Petrópolis. Vozes, 1979, p 106.
102
Ronald Daus. Op.cit., p 69.
61
poeta popular assimila essa tendência e incorpora a tradição adaptando-a aos hábitos e valores do
seu público. O mesmo o fará Glauber Rocha levando em conta os pressupostos da cultura
revolucionária. Não se trata simplesmente de uma apropriação da tradição mas de uma tentativa
de inserir-se em seu curso buscando um diálogo com formas passadas às quais se incorporam as
questões do presente. Há um posicionamento interior à tradição e ao mesmo tempo exterior; na
verdade um posicionamento ambíguo que coloca em questão a fala do ‘outro’ ou a fala sobre o
‘outro’.
A presença do locutor em alguns documentários, como observou Jean-Claude Bernardet,
visa estabeler, em relação as tradições populares, um discurso de saber. Colocando-se fora da
experiência vivida, a fala do locutor representa, contudo, uma verdade ; uma verdade legitimada
pela autoridade da ciência.
A solução narrativa apresentada por Glauber Rocha em seus filmes encurta
significativamente a distância entre o ‘outro’ e a fala que o representa. Não se trata, contudo, de
dar a palavra a esse ‘outro’ mas de tentar penetrar em seu universo produzindo imagens que
evoquem sua ambiência, suas tradições e sobretudo seu imaginário (uma das vias, segundo Paul
Ricouer, para se chegar ao ‘real’).
Seus personagens são praticamente os mesmos que circulam nas páginas dos folhetos:
vaqueiros, cangaceiros, beatos, jagunços, mitos enraízados na memória popular, cujas ações são,
no entanto, movidas por princípios éticos diferentes. Voltados para uma noção de justiça outra,
suas trajetórias os impelem para outros caminhos, para outras aventuras, para um além onde
talvez realizem suas utopias.
Referindo-se a Deus e o diabo, Ismail Xavier comenta sobre a relação
passado/presente/futuro:
62
O filme possui um tom de ritual, e inegável. No entanto, esse ritual não se faz
para evocar o gesto inaugural, a ação exemplar a ser atualizada num presente
que é ponto de uma vivência mergulhada no tempo cíclico e dotada de sentido
na medida em que o mundo se fecha e, no fim, encontra a origem, numa eterna
repetição do mesmo. Deus e o diabo ocupa-se do passado para caracterizá-lo
como perecível, ao mesmo tempo que o dignifica como aquela travessia que
torna possível a corrida em direção ao télos.
103
Contrariando os discursos da esquerda ‘engajada’ (defensores de uma verdade sobre o
papel do povo no processo revolucionário), prevalece nos filmes de Glauber Rocha, a idéia de
possibilidade, de ‘sim’ e ‘não’ como diz o cantador na abertura de Deus e o diabo : Manuel e
Rosa viviam no sertão / trabalhando a terra com as próprias mão / até que um dia, pelo sim, pelo
não, / entrou na vida deles o Santo Sebastião...
O filme não se propõe a defender um argumento (uma espécie de tese de tipo
sociológico), mas a contar uma história, repetir uma lenda. Cinco anos mais tarde, em 1969 com
O dragão da maldade contra o santo guerreiro, essa mesma lenda será retomada. Será, no
entanto, um filme diferente apesar de lidar com os mesmos mitos, os mesmos tipos sociais, a
mesma paisagem cultural. Nesse filme o cineasta terá a oportunidade de reinventar seu próprio
cinema dando destaque àquilo que permanecerá central em toda sua obra: os mitos, seus
processos de transmissão e suas formas de renovação. Trata-se, assim, não de uma ritualização
mas de uma atualização do mito “porque prevalece a não-aceitação do dado a partir do dado.”
104
A idéia de revolução como devir, tal como postulado por Ismail Xavier em sua análise de
Deus e o diabo, se constrói a partir do uso que Glauber Rocha faz da tradição popular, adaptando-
a a uma proposta de mudança. É nesse sentido, por exemplo, que o messianismo, caracterizado na
literatura de cordel por uma visão moralista do mundo, ganha uma nova dimensão, abrindo
espaço, através de figuras perturbadoras como Sebastião ou Corisco, para uma possível
transformação social.
103
Ismail Xavier. Sertão mar : Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo, Brasiliense, 1983, p115.
63
Repetindo a fala de Ismail Xavier, a relação presente/passado/futuro não se faz a partir do
“eterno retorno do mesmo”; ainda que mínima, há uma brecha por onde se pode vislumbrar o
novo, desde que, é claro, se preserve a esperança utópica, fio condutor que liga o cinema de
Glauber Rocha à literatura de cordel e às tradições mais antigas caracterizadas pela oralidade,
pela força da palavra falada:
A voz, de sua profundidade espacial, se distancia da Ordem muda. Ela faz
naturalmente escândalo. Ainda que, nas culturas tradicionais, o poeta dotado de
sua boa consciência submeta sua fala à autoridade e a sujeite à censura, por si só
sua voz, calorosamente corporal, elevada em meio a tantos discursos fugazes e
sem peso, significa outra coisa.
105
Considerando, como observou Paul Zumthor, a voz como um dos elementos capazes de
transgredir a ordem, a centralidade da palavra falada nos filmes de Glauber Rocha representaria
um diferencial em termos de ‘fala revolucionária’. Essa, em última análise, seria a função da
literatura de cordel em seus filmes: dar-lhe a oportunidade de colocar em cena o potencial
transformador da fala, cantada em Deus e o diabo ou pronunciada em O dragão da maldade. É o
que analisaremos a seguir.
104
Ibid.
105
Paul Zumthor. Op.cit., p 264 (trad. S.R.B.N.).
64
Capítulo 2
Deus e o diabo na terra do sol: a função da canção
Deus e o diabo na terra do sol é um filme influenciado pela estética do cordel tanto em
suas imagens quanto em suas canções. Trata-se de um filme para ser visto e ouvido; um filme no
qual o som suscita no espectador uma atitude perceptiva específica; no qual a poesia e o canto
apontam para a esperança e para um possível despertar da ação. Por meio do cantador o
espectador é colocado na condição de ouvinte. E, como na tradição oral, ele faz parte da
performance contribuindo para constituir a trama. O espectador, nesse caso, é implicado na
interpretação. Seu lugar, como o de Manuel (protagonista da história em questão), é instável. O
que o espera mais adiante? Qual o ponto de chegada? A história termina no final da narração? A
posição do espectador define o ato de compreensão.
“O componente fundamental da recepção é assim a ação do ouvinte que recria
para seu próprio uso e de acordo com suas próprias configurações interiores, o
universo significante que lhe é transmitido. Os traços que lhe imprimem esta
recriação pertencem a sua vida íntima e não aparecem necessariamente e
imediatamente no exterior. Mas pode ser que eles se exteriorizem em uma nova
performance: o ouvinte torna-se, por sua vez, intérprete, em seus lábios, em seu
gesto, o poema se modifica de forma, quem sabe? radical. É em parte assim que
se enriquecem e se transformam as tradições.”
106
A voz do cantador se dirige ao espectador, mas ele não é necessariamente o destinatário
da canção. Para o espectador, a voz que a ele se endereça não pertence àquele que a fala: ela
provém de um mais além; “de suas harmonias ressoa, levemente, o eco de um outro lugar...
Jamais neutro, o poeta oral se engaja no jogo de poderes que ele assume ou recusa; não é a
tradição ou a moda que determinam sua fala. Se ele fala pelos outros, é apenas aí, que seu
106
Ibid., 229-230 (trad. S.R.B.N.).
65
discurso, impossível de ser totalmente apropriado, permanece disponível a outras vozes, que
ressoam pela sua.”
107
2.1 - Canção e transformação
Inúmeros são os exemplos de canções transformadas em incitações à luta; “canções
transformadas em armas”, como observou Paul Zumthor que, entre outros casos, citou a folk-song
americana:
“em sua origem fundada sobre uma tradição pacifista sustentada por canções da
época da Guerra de Secessão: tristeza dos garotos recrutados à força, noivas
perdidas, cólera diante da morte absurda. Um Tom Paxton, um Phil Ochs, cem
anos mais tarde, saberão tirar desses fundos as palavras tragicamente irônicas de
suas canções sobre o Vietnam.”
108
Na linha da canção engajada inspirada na tradição, os exemplos mais expressivos no
Brasil são Raul Seixas, Zé Geraldo e Zé Ramalho, que recuperaram alguns temas e melodias da
poesia popular sertaneja dando-lhes um ritmo de rock e uma conotação política. Inicialmente
caracterizada pelo experimentalismo, pela recusa à integração, esse tipo de canção foi pouco a
pouco sendo absorvido pela indústria que se deu conta do potencial de vendas representado pelo
gênero.
Nos anos 1990 a TV Globo lançou a novela Rei do gado com a música Admirável gado
novo como tema de abertura. O enfoque conservador do folhetim reduziu sensivelmente o caráter
explosivo da canção. No entanto, a carreira de Zé Ramalho ganhou novo fôlego. Mas esse não foi
um caso isolado.
A apropriação da canção de protesto pelo establishment tornou-se tendência nos EUA a
partir do final dos anos 1960. Foram, segundo Paul Zumthor, “dez anos de festas libertadoras”.
107
Ibid. p 232 (trad. S.R.B.N.).
108
Ibid., p 271 (trad. S.R.B.N.).
66
Depois disso, continua ele, “as vozes se calam”
109
. No Brasil, devido a censura imposta pela
ditadura, esse processo, apesar de um pouco mais lento, não tardaria a se manifestar consolidando
o poder da indústria de discos e a carreira de um certo número de artistas. Alguns, não quiseram
se submeter a esse movimento de incorporação pelo mercado; outros, cuja música estava menos
inclinada a passar uma mensagem explícita, não quiseram ou não puderam.
Sergio Ricardo, músico ligado a um tipo de composição inspirada na poesia popular
sertaneja, foi um deles. Suas canções evocam as tradições populares, no entanto sua música não é
o que se costuma chamar de canção de contestação. Muito mais do que despertar a comoção
(exigência primordial do mercado), ela se interessa em descobrir novos caminhos melódicos e
poéticos. O que não significa que seja uma música alienada.
A força transformadora de uma canção não reside apenas no seu conteúdo, na mensagem
que ela passa, mas nos seus sons, no seu ritmo, nos seus tons, capazes de liberar o inconsciente
coletivo, de evocar a memória daqueles a quem a palavra se limita a descrever.
***
Caracterizado pelas misturas entre o clássico e o popular, Sergio Ricardo, mais conhecido
pela cena da quebra do violão
110
do que por sua obra, musicou as letras dos poemas compostos
por Glauber Rocha para o filme Deus e o diabo, assim como os interpretou. As melodias,
fortemente influenciadas pelos ritmos do sertão, atingiram completamente as expectativas de
Glauber. O problema de Sergio foi com as gravações. Em depoimento, o artista atesta a
dificuldade que teve em transformar sua voz, preparada para um tipo de canção urbana, na voz de
109
Ibid. p 277-278 (trad. S.R.B.N.).
110
A cena aconteceu em 1967 no Festival da Canção quando o público não deixou o compositor interpretar a sua
música Beto bom de bola. O episódio se inscreve em uma das muitas polêmicas da época : a que colocava de um
lado a corrente nacionalista da música de protesto e de outro os compositores ligados a uma linha mais metafórica.
Nesse clima poucos perdoaram o lirismo de Sabiá, canção de Tom Jobim e Chico Buarque que ficou com o primeiro
lugar no FIC de 1968 e a música de Caetano Veloso É proibido proibir, inspirada no movimento de maio dos
estudantes franceses.
67
um cantador. Glauber entendia que “o negócio tinha que ser puro. Sergio ouviu péssimas
gravações do cego Zé e de seu primo Pedro: pegou e matutou o tom”. Após vários ensaios, Sergio
Ricardo finalmente “deixou os preconceitos e soltou a voz e os dedos no violão”
111
.
O comentário de Glauber indica sua intenção quanto à ‘pureza’ das canções executadas
por Sergio Ricardo, exigindo dele uma interpretação muito próxima à da cantoria. Glauber
poderia, inclusive, ter recorrido à voz de um cantador em vez à de um artista pertencente a outro
meio. Mas a sua intenção não era reproduzir as cantorias tradicionais e sim transmitir uma idéia
utilizando-se do imaginário sertanejo.
Observa-se, em relação ao uso da canção, um movimento contínuo de aproximação e
afastamento da tradição. Um dos motivos desse posicionamento ambíguo é a diferença entre os
espaços socio-culturais do cordel e do Cinema Novo. O outro é a própria especificidade das duas
manifestações que pressupõem códigos próprios de comunicação e expressão.
Enquanto no cordel a demanda é apenas sobre o ‘ouvir’, no cinema a recepção exige do
espectador uma predisposição conjunta para ‘ver’ e para ‘ouvir’, sendo que cada uma dessas
atitudes possui, segundo Michel Chion, seus próprios códigos de percepção:
“No cinema o olhar é uma exploração, ao mesmo tempo espacial e temporal,
dentro de um dado a ver delimitado pela tela. Enquanto isso a escuta é uma
exploração dentro de um dado a ouvir e, em todo caso, muito menos delimitada,
com contornos incertos e cambiantes.”
112
De acordo com Chion, o dado sonoro, por ser “menos delimitado”, abre para
possibilidades exteriores ao campo da imagem. É por isso que no cinema a música tem um
sentido particular e essa foi uma das razões de Glauber ter dado a incumbência a Sergio Ricardo
que “embora sambista com mistura de morro e asfalto, tem paixão pelo Nordeste, tem a vantagem
111
Conforme depoimento de Glauber Rocha na seção extras no DVD de Deus e o diabo na terra do sol (Coleção
Glauber Rocha).
112
Michel Chion. L’audio-vision : son et image au cinéma. Paris, Nathan, coll. Cinéma, 2002, p 32 (trad. S.R.B.N.).
68
de ser cineasta e sabe que música de filme é coisa diferente: tem que ser parte da imagem, ter o
ritmo da imagem, servir (servindo-se) à imagem
113
.
As canções são formadas a partir de um poema, escrito por Glauber Rocha, contando a
história do vaqueiro Manuel, sua trajetória entre Deus e o Diabo, as viradas do seu destino. O
poema é composto de dez estrofes cada uma representando uma fase ou episódio da história
contada. Apesar de se tratar de um poema narrativo, não há, na passagem entre as estrofes,
qualquer linearidade. Em todo caso, pode-se identificar o argumento do filme nas estrofes lidas
em sua seqüência, ou seja, o poema faz sentido mesmo sem o acompanhamento das imagens. A
questão que nos interessa, no entanto, não é o poema por si só, mas este em relação às imagens
que o modificam e são por ele modificadas.
Como na relação entre a imagem e a palavra (falada ou cantada) o diálogo com a poesia
popular se atualiza? A questão, fio condutor do presente trabalho, deverá, a partir de agora, se
dirigir para o estudo das estruturas e funções das canções compostas por Sergio Ricardo e
Glauber Rocha para o filme Deus e o diabo na terra do sol.
Em relação à poesia popular sertaneja e em relação à cultura cinematográfica, ou melhor,
à forma de utilização da música no cinema, a canção em Deus e o diabo tem um caráter duplo, de
transgressão e adaptação de códigos. Deve-se, no entanto, observar que não é à canção,
propriamente dita, que estamos nos referindo nesses termos, mas à sua utilização, à sua interação
ao campo visual.
Como observou Glauber Rocha, a música feita para o cinema tem que “ser parte da
imagem”. O curioso é que ao dar a Sergio Ricardo (músico e cineasta como ele próprio fez
questão de ressaltar) a incumbência de compor as canções de Deus e o diabo ele não permitiu que
o compositor conhecesse as suas imagens. Sergio, fez as músicas do filme sem tê-lo visto; o
113
Depoimento de Glauber Rocha no DVD citado (extras).
69
único material à sua disposição era o poema escrito por Glauber
114
. As canções não foram
compostas para essa ou aquela cena específica, mas para o poema que, em todo o caso, é o
próprio enredo do filme. E é isso que me parece central, pois, apesar da autonomia que possui em
relação à imagem, a canção é, ao mesmo tempo, parte desta, como se procurou destacar no
quadro a seguir
115
.
Cenas
116
Resumo do filme
Canções
1
2 / 5
O sertão seco. O gado morto. O vaqueiro Manuel
observa a cena desoladora, monta em seu cavalo e se
afasta do local.
Durante as primeiras cenas do filme a voz do
cantador acompanha as imagens de Manuel em seu
cavalo atravessando a paisagem árida. O quadro é de
tristeza e desesperança. Um dia Manuel encontra o
Santo Sebastião peregrinando no sertão com um
grupo de beatos. O quadro o impressiona e ele
comenta com Rosa, sua mulher, que parece não lhe
dar ouvidos. A casa pobre e o trabalho duro que
executam para sobreviver é tudo que possuem.
Tempos depois numa feira na cidade Manuel escuta
um violeiro cantando os milagres do beato.
Manuel e Rosa, viviam no sertão /
trabalhando a terra com as próprias
mão / Até que um dia pelo sim, pelo
não, / entrou na vida deles o Santo
Sebastião / Trazia bondade nos olhos,
Jesus Cristo no coração.
Sebastião nasceu no fogo, no mês de
fevereiro, / anunciando que a desgraça
/ ia acabar com o mundo inteiro, / mas
que ele podia salvar quem estivesse ao
lado dele, / que era, que era santo, / era
114
Depoimento de Sergio Ricardo no DVD citado (extras).
115
O quadro deve ser lido de três formas distintas: somente a segunda coluna ; somente a terceira coluna ; a segunda
em relação à terceira. A segunda faz um resumo do filme. A terceira em sua seqüência conta a mesma história na
forma versificada (o que revela a autonomia da canção em relação às imagens). A segunda articulada com a terceira
indica o tipo de ordenamento dado pelo filme : a canção, nesse caso, apesar de sua autonomia, faz parte da imagem.
Poderíamos dizer que se trata de uma história narrada através de imagens a que se superpõe uma história narrada por
meio de palavras (os versos da canção).
116
Conforme distribuição de Orlando Senna (org). Roteiros do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro, Alhambra /
Embrafilme, 1985.
70
6 e 7
8 / 17
18 / 26
Depois de ouvir o violeiro e andar pelas ruas da
cidadezinha, Manuel chega a um curral onde
encontra o coronel Morais, dono do rebanho que
tinha sob seus cuidados. O coronel não aceita lhe dar
as vacas que lhe cabiam na partilha. Inicia-se uma
discussão. O coronel chicoteia o vaqueiro que num
ato de revolta puxa o facão e o mata. Perseguido,
Manuel chega à sua casa onde um jagunço atira
matando sua mãe.
Seguindo o esquema do romanceiro tradicional,
onde a morte de um parente próximo implica na
virada do destino do herói, Manuel vai procurar
outro caminho para conduzir sua vida. Junto com
Rosa, que o segue contrariada, junta-se ao grupo de
beatos comandados por Sebastião, o ‘Deus negro’
que promete a um grupo de camponeses famélicos,
um mundo melhor onde o “leite sairá das pedras”.
Porém o domínio que Sebastião exerce sobre os
beatos não durará. Vendo crescer seu poder sobre a
população pobre da região, as autoridades locais,
preocupadas, convocam Antonio das Mortes para
restabelecer a ordem e impor uma solução final às
subversões de Monte Santo.
Na igreja, com o padre e o coronel, Antonio das
Mortes primeiramente vacila em aceitar a tarefa,
porém, acaba aceitando diante da soma oferecia pelo
padre que lhe permitiria mudar de vida. A sua
missão, no entanto, será cumprida apenas em parte
pois Rosa, desesperada diante da imolação de um
recém-nascido por Sebastião, incumbe-se de matá-
lo. Resta então a Antonio a tarefa de liquidar os
beatos que, sem reação, morrem saudando o sol.
En
q
uanto isso Rosa e Manuel
,
estarrecidos diante do
santo e milagreiro.
Meu filho, tua mãe morreu. / Não foi de
morte de Deus, / foi de briga no sertão,
/ de tiro que jagunço deu.
Jurando em dez igrejas / sem santo
padroeiro / Antonio das Mortes /
matador de cangaceiro. / Matador,
matador, / matador de cangaceiro.
71
27 / 29
30 e 31
32
33 e 34
Enquanto isso Rosa e Manuel, estarrecidos diante do
corpo ensagüentado de Sebastião, permanecem na
igreja. Ao encontrá-los, Antonio resolve deixá-los
vivos.
Depois de vagarem com Cego Júlio pelo sertão,
Manuel e Rosa encontram Corisco, o ‘Diabo louro’,
único remanescente do bando de Lampião, morto
dias antes no massacre de Angicos.
A partir desse encontro Manuel volta-se para outra
vida na ilegalidade. Batizado de Satanaz, Manuel
segue o cangaceiro que lhe exige uma solução por
meio da violência. Por outro lado Antonio continua
sua busca.
Antonio das Mortes, em conversa com Cego Júlio,
embora visivelmente contrariado, mostra-se
determinado a cumprir a missão da qual fora
encarregado.
Sem conseguir convencer Antonio das Mortes, Cego
Júlio retorna para informar Corisco sobre a
aproximação do jagunço. Corisco começa então a se
preparar para o encontro. Manda embora com o
ouro
,
Sabiá e Macambira
,
os dois can
g
aceiros
q
ue o
Da morte em Monte Santo / sobrou
Manuel vaqueiro / por piedade de
Antonio / matador de cangaceiro. / Mas
a estória continua, / preste mais
atenção : / andou Manuel e Rosa / nas
vereda do sertão / até que um dia, / pelo
sim, pelo não / entrou na vida deles /
Corisco, diabo de Lampião.
Lampião e Maria Bonita / pensava que
nunca morria./ Morreu na boca da
noite, / Maria Bonita ao romper do dia.
Andando com remorso, / volta Antonio
das Mortes. / Vem procurando noite e
dia / Corisco de São Jorge.
Procurando pelo sertão / todo mês de
fevereiro / o Dragão da Maldade /
contra o Santo Guerreiro. / Procura
Antonio das Mortes !
72
35
36
ouro, Sabiá e Macambira, os dois cangaceiros que o
seguiam. Satanaz permanece a seu lado até o
momento em que surge Antonio correndo e atirando
para anunciar sua chegada.
Daí em diante Manuel e Rosa começam a correr.
Dadá, baleada, arrasta-se pelo chão e Corisco
continua atirando até que atingido, gira o corpo para
frente de Antonio e grita: “Mais fortes são os
poderes do povo” e cai morto. Antonio das Mortes
puxa o facão e corta sua cabeça.
Poupados novamente por Antonio, Manuel e Rosa
correm atravessando o sertão. Rosa cai e Manuel
continua até alcançar o mar.
Procurando pelo sertão / todo mês de
fevereiro / o Dragão da Maldade /
contra o Santo Guerreiro. / Procura
Antonio das Mortes!
Se entrega Corisco ! / Eu não me
entrego não, / eu não sou passarinho /
pra viver lá na prisão ! / Se entrega,
Corisco ! / Eu não me entrego não, /
não me entrego ao tenente, / não me
entrego ao capitão, / eu me entrego só
na morte, / de parabelo na mão !
Farreia, farreia povo, / farreia até o sol
raiar : mataram Corisco, balearam
Dadá.
O sertão vai virar mar / e o mar virar
sertão ! / Tá contada minha estória, /
verdade e imaginação. / Espero que o
sinhô / tenha tirado uma lição : / que
assim mal dividido / esse mundo anda
errado, / que a terra é do Homem, / não
é de Deus nem do Diabo.
73
Em termos da relação som/imagem, as dez canções que compõem o filme, assumem um
papel diferente do normalmente assumido pela trilha sonora cinematográfica. Pois em Deus e o
diabo as canções não têm como função exclusiva, imprimir um certo clima ao enredo (suspense,
aventura, emoção...) ou proporcionar uma descrição de tal cena ou personagem. Seu papel é
articular a narrativa e produzir, por meio dos versos rimados e seus acompanhamentos melódicos,
uma ambiência do sertão, seus códigos e referenciais. Vamos nos concentrar, primeiramente,
nesse segundo aspecto, ou seja, o da relação da canção com certas referências culturais do
Nordeste. A questão que nos ocupará é a do ritmo, isto é, da correspondência entre o ritmo da
canção e o da imagem.
2.2 - O som e a imagem em relação ao ritmo
Em seu comentário sobre Deus e o diabo, Ismail Xavier
117
fala dessa relação referindo-se
à cena da morte da mãe de Manuel (cena 8)
118
. Pautada pelo silêncio do vaqueiro, pela sua
desorientação diante do ocorrido, a cena tem como pano de fundo a canção: Meu filho, tua mãe
morreu / não foi de morte de Deus, / foi de briga no sertão, / de tiro que o jagunço deu. Entoada
em ritmo monótono, monocórdio, sem acompanhamento de instrumento musical, apenas com a
voz do cantador, ela lembra os cantos de penitentes. Freqüentes ainda hoje em algumas regiões
do Nordeste
119
, esses cantos, nos quais a dor e o pranto fazem parte do processo de expiação dos
pecados, acompanham os grupos de penitentes em seus rituais de autoflagelação.
No filme, a canção ajuda a marcar o sentimento de Manuel em relação à tragédia que
sobre ele se abateu. Reforçando a imobilidade do personagem (que sem saber o rumo a dar a sua
117
Comentário de Ismail Xavier no DVD citado.
118
Orlando Senna (org). Op.cit. p 265-266.
119
«Juazeiro do Norte, Missão Velha, Barbalha, Lavras de Mangabeira, Brejo Santo, Jardim, Várzea Alegre, Farias
Brito e Cedro são algumas das cidades do Ceará onde mantêm-se vivas as tradições das Ordens de Penintentes ».
74
vida, vagueia lentamente ao ritmo da ladainha) a canção é interrompida na mudança de plano que
representa uma ruptura: uma mudança no estado de espírito do personagem que, diante da cruz
fincada na terra seca sobre o túmulo da mãe, parece tomar uma decisão. Após um longo momento
de silêncio, ele a comunica a Rosa. O seu destino será Monte Santo que aparece na cena seguinte
(cena 9)
120
onde o movimento da câmera sobre o monte é acompanhado pela fala de Sebastião e
pela música de Villa-Lobos, cujo ritmo ascendente estabelece uma correspondência com a
trajetória da imagem da base do morro até o seu topo.
Nessa seqüência, o tom forte da música contrasta com o tom breve da canção entoada na
seqüência anterior. Tal inversão, que atravessa, na verdade, todo o filme (pontuado pela
alternância entre momentos fortes e fracos)
121
, tem um sentido de ruptura na linha do
personagem, da sua história individual, mas um sentido de continuidade no que se refere à lógica
da história contada. Pois se a tônica do filme gira em torno das noções de sacrifício, esperança e
salvação, o canto dos penitentes, que acompanha a seqüência relativa à morte da mãe, encontra
sua correspondência na seqüência seguinte que define o espaço do messianismo, suas práticas e
rituais. Trata-se de uma forma muito sutil de ligar, por intermédio de uma idéia, duas seqüências
aparentemente distintas. A música ajuda a fazer a ponte estabelecendo uma comunicação entre os
dois momentos do filme ao mesmo tempo em que os deixa existir separadamente e distintamente.
A necessidade de Manuel buscar salvação na figura de um ‘protetor’, fato que representa
a primeira ruptura do filme, vai se repetir mais adiante quando ocorre a segunda ruptura. Nesse
momento, Corisco aparece como a única esperança na vida de Manuel. No entanto, antes que o
vaqueiro assuma uma posição quanto a sua entrada para o cangaço, assistiremos a um outro
Rosemberg Cariry. « Ordens de Penitentes » in Penitentes do Sítio Cabeceiras. Encarte do CD, Coleção Memória do
Povo Cearense – vol.III, junho 2000.
120
Orlando Senna (org). Op.cit., p 266.
121
René Gardies. « Glauber Rocha : política, mito e linguagem » in Glauber Rocha. São Paulo, Paz e Terra, 1977, p
80.
75
momento de indecisão. A atitude de Manuel é a mesma, os mesmos gestos, o mesmo olhar, o
mesmo andar, que caracterizara o momento anterior a sua decisão de partir para Monte Santo.
Com o olhar meio perdido ele anda de um lado para o outro ouvindo a história do massacre do
bando de Lampião contada por Corisco a Cego Júlio
122
. No fundo, quase abafada pelo discurso de
Corisco, ouvimos a voz do cantador: Lampião e Maria Bonita / pensava que nunca morria. /
Morreu na boca da noite. / Maria Bonita ao romper do dia. A canção, também nesse caso,
lembra o canto dos penitentes. Ela se interrompe com o grito (Tem macaco por perto?) que inicia
o monólogo onde Corisco ocupa simultaneamente o seu lugar e o de Lampião, empresta-lhe sua
revolta, sua voz para contar sobre o combate contra as tropas do governo. É uma cena muito rica,
feita em um único plano
123
. A câmera se concentra em Corisco, se fixa em seu rosto, circula pelo
seu corpo coberto dos símbolos do cangaço. Sua fala densa, carregada de ódio e sofrimento,
ocupa todo o plano, sem interferência de nenhum outro som. No final uma brusca interrupção
pelo barulho de tiros e logo depois a imagem de Manuel se sujeitando ao comando de Corisco
como havia feito anteriormente em relação a Sebastião. Batizado de Satanaz, sua entrada para o
cangaço será marcada pela canção de Villa-Lobos que se estenderá ao longo da cena seguinte
iniciada pela imagem da destruição do bolo dos noivos
124
.
Observa-se, mais uma vez, a passagem do tom fraco da cantoria para o tom forte da
música de Villa-Lobos, passagem esta que representa uma nova virada no destino de Manuel e no
ritmo da ação. Estamos diante de uma construção muito parecida com a da entrada de Manuel
para o bando de beatos. O ritmo longo das cenas correspondentes aos momentos de dúvida de
Manuel, o sofrimento, a revolta, a presença da morte, sentimentos reforçados pela voz do
122
Cena 29 em Orlando Senna (org). Op.cit., p 275.
123
Ibid.
124
Cena 30 em ibid., p 276.
76
cantador, remetem ao mesmo quadro de desespero e busca de saídas, ponto em que convergem a
história de Deus e o diabo e a história do povo nordestino narrada nos folhetos de cordel.
***
Manuel, homem simples do povo, representa o sentimento de desamparo que se encontra
na base dos mitos que circulam pelo sertão na voz dos cantadores, uma “voz rouca, nasalada, a
ponto de se confundir em alguns momentos com um som instrumental”
125
. Na poesia popular
cantada a voz tem um valor poético por si só. Na verdade, esse tipo de canção é menos
condicionado pelo instrumento do que pela voz do cantador, pelo ritmo “imposto pelos versos e
pela acentuação tônica obrigatória em algumas sílabas”
126
. Portanto, cantar um poema é
desenvolver, por meio da voz, um determinado ritmo que, por sua vez, varia segundo o tipo de
estrofe.
Na literatura de cordel a estrofe predominante é sextilha com versos de sete sílabas e
rimas em ABCBDB. No poema de Deus e o diabo, com exceção da sextilha substituída pela
quadra, o esquema praticamente se repete. Existem, é claro, variações de timbre de voz; afinal,
não se pode exigir de um artista com uma educação musical, como Sergio Ricardo, o
desenvolvimento do mesmo tipo de entonação desenvolvido pelo artista popular. Sergio, em todo
caso, não deixou a desejar. Lembrando os cantadores do Nordeste sua voz traz para o público
urbano a memória daquele mundo esquecido, desconhecido e que não cessa de se transformar em
outro.
A voz do cantador transporta para o presente a história de Manuel, uma história passada,
mas sempre possível de se repetir. A canção, peça-chave dessa repetição, implica, contudo, uma
transformação da história. Transformação, não apenas, decorrente da voz do intérprete (diferente
125
Idelette Muzart. Op.cit., 1997, p 80 (trad. S.R.B.N.).
126
Ibid (trad. S.R.B.N.).
77
da voz de um cantador) ou do instrumento por ele utilizado na execução das canções (no filme o
violão substitui a viola nordestina e a rabeca, instrumentos normalmente usados na cantoria) mas
decorrente, sobretudo, da relação que se estabelece entre o campo sonoro e o visual.
Tal como narrada nas canções que compõem o filme, a história de Deus e diabo, sem o
acompanhamento das imagens, poderia ser considerada quase uma peça do romanceiro
tradicional. As imagens, contudo, modificam as canções emprestando a estas um tom politizado
inexistente na letra do poema que Glauber entregou a Sergio Ricardo para musicar. Pode-se
inclusive supor que esta tenha sido a razão de Sergio não ter visto as imagens antes de compor as
músicas, recurso que possibilitou uma aproximação maior com a sonoridade da poesia popular
sertaneja. A canção “menos delimitada” do que a imagem (segundo palavras de Chion citadas
anteriormente), realiza uma transferência, um deslocamento, dando ao espectador, por meio do
ato de ouvir, a oportunidade de penetrar em outro universo semântico.
As duas canções analisadas lembram, como já se disse, o canto dos penitentes, evocando
o sacrifício e sua ligação com o sagrado. Típico de algumas regiões do Nordeste, esse canto fala
de sofrimento, das provações e horrores do mundo e propõe a salvação em um além onde o
homem se libertaria de todos os males experimentados em sua existência terrena. O filme, no
entanto, não tem a intenção de reafirmar esse discurso. Não há também a pretensão de
desqualificá-lo, mostrá-lo como exemplo da alienação e ignorância do povo, como no cinema
militante, mais inclinado ao didatismo. Costuma-se dizer que os filmes de Glauber Rocha são
ambíguos, e de fato são: o bem se confunde com o mal, as posições não estão definitivamente
estabelecidas, tudo é passível de mudar de lado, de se transformar no seu contrário. Porém, se há
algo que está absolutamente claro na obra do cineasta é o seu caráter político (que, por sua vez,
não deixa de se conectar com o mítico). Essa transição, do mítico ao político e vice-e-versa, se
processa por meio das inversões do ritmo da narrativa, que alterna sem cessar os tons fracos
78
(relativos aos momentos de imobilidade em que, por meio da canção, se sente a presença da
tradição) e os fortes (correspondentes às viradas, aos momentos de alerta em que o presente se
orienta em direção ao futuro).
Os filmes de Glauber Rocha estão imersos em uma temporalidade outra ao mesmo tempo
em que puxam o espectador para o momento vivido. O papel da imagem é central em relação a
isso. Ela ajuda a recuperar, com os efeitos de contraste (entre tempos fracos e fortes), a dimensão
do agora que a voz do cantador quase nos levara a esquecer. Devemos, contudo, esclarecer que o
mítico não diz respeito apenas aos momentos fracos atravessados pela voz do cantador e que
remetem ao passado quase perdido das tradições, mas também aos momentos fortes onde as
imagens, situadas no presente, fazem apelo a certos mitos cinematográficos. O filme lida com o
mítico nesses dois níveis: o da fábula sertaneja e o da fábula cinematográfica. O político, por sua
vez, se situa nessa operação de desajuste entre os dois códigos atuantes na narração.
***
A passagem de um modo de narração a outro, como se destacou anteriormente, costuma
ter como objetivo a marcação de tempos diferenciados: um retorno ao passado dentro de uma
narrativa que se faz no presente, caso dos flash backs, das rememorações. Em A noite de São
Lourenço (La Notte de san Lorenzo dos irmãos Taviani, 1981) se observa esta construção. O
filme começa com uma voz off feminina, doce e aveludada que diz:
esta noite, noite de São Lourenço, meu amor, a noite das estrelas cadentes, nós,
aqui na Toscana, costumamos dizer que a cada estrela cadente um desejo é
realizado... Espere, não durma... Você sabe qual é o meu desejo, esta noite?
Conseguir encontrar as palavras para te contar uma outra noite de São
Lourenço; há muito tempo atrás...
127
A voz vem de um quarto escuro de onde, em determinado momento, se vê, através da
janela, uma estrela cadente. O desejo se realiza dando início ao relato da outra noite de São
79
Lourenço que, por um efeito de contraste, aparece luminosa. “O relato começou, mas não é mais
a voz off que fala. São as imagens e os sons que me fazem ver e entender os acontecimentos
picados de um mundo que toma forma”
128
.
De dentro do quarto escuro, a voz off, que se ouve nas primeiras cenas do filme dos
irmãos Taviani, evoca uma espécie de horizonte distante. Em Deus e o diabo, a voz off do
cantador produz o mesmo efeito. Será, como questiona Zumthor, o “efeito mágico da voz?”
129
.
Digamos que sim. Nesse caso, a voz teria o poder de nos transportar para longe, para a dimensão
do outro, estabelecendo uma ponte com o mundo de Manuel, com o mundo do sertanejo pobre,
explorado, que vê no misticismo e no cangaço suas únicas possibilidades de salvação. O
imaginário dessas duas manifestações encontra-se representado nas canções do filme,
principalmente na voz sofrida do cantador, que acompanha e repete essas histórias. Trata-se de
uma forma de lidar com o imaginário social sem cair nos estereótipos. Usando o termo
empregado por Jacques Rancière, qualificaríamos o imaginário veiculado nas canções de “ficções
da memória”. Tais ficções, comenta Rancière, “se opõem a este ‘real da ficção’ que assegura o
reconhecimento em espelho entre os espectadores da sala e as figuras da tela, entre as figuras da
tela e as do imaginário social”
130
.
O tratamento do imaginário social sertanejo, em Deus e o diabo, passa pela utilização da
canção que pode ser considerada, segundo denominação de Christian Metz, um “código
especializado”. Algo que pertence à nossa cultura mas ao mesmo tempo está fora. “Por exemplo,
um indivíduo francês, nascido e criado na França, não precisa aprender especificamente qual é o
gesto que expressa a ira, a recusa, a aceitação resignada, nem qual o gesto que significa ‘Venha
127
Trecho citado por André Gardies. Le récit filmique. Paris, Hachette, 1993, p 9 (trad. S.R.B.N.).
128
Ibid (trad. S.R.B.N.).
129
Paul Zumthor. Op.cit., p 161 (trad. S.R.B.N.).
130
Jacques Rancière. La fable cinématografique. Paris, Seuil, 2001, p 203 (trad. S.R.B.N.).
80
aqui!’, mas, por mais francês que seja, terá que aprender especificamente a datilológica dos
surdos-mudos (entendamos os surdos-mudos de língua francesa), se não, não a conhecerá
nunca”
131
.
A poesia popular sertaneja possui um nível de codificação (como a linguagem dos surdos-
mudos) a que tem acesso apenas um grupo social específico. No filme as canções têm o papel de
nos colocar diante desses códigos, levando-nos, talvez, a ver com outros olhos aquele mundo,
estranho, incompreensível, distante. Mas sem, obviamente, eliminar a distância, sem provocar
aquele efeito de ‘reconhecimento’ de que falamos anteriormente a propósito do comentário de
Rancière.
Por meio da voz do cantador, somos transportados, por um efeito de “analogia”
132
, à
cultura, ao universo do outro. As imagens, a quase ausência de ação, de movimento dos
personagens, o silêncio que os envolve, reforçam a sensação de imobilidade. Algo nos dirige para
um outro mundo, um outro tempo. No entanto, não nos instalamos nesse tempo, pois o próprio
filme se encarrega de nos trazer de volta, de exigir nossa atenção para o que está acontecendo
naquele momento em que a música irrompe mais violenta, os tiros ecoam, os movimentos dos
personagens se tornam mais rápidos
133
. Somos abruptamente retirados de um nível de fabulação e
inseridos em outro com códigos totalmente distintos. Nesse caso, estamos diante dos “códigos
culturais” que Metz distingue dos “códigos especializados”:
Os primeiros definem a cultura de cada grupo social, são a tal ponto onipresentes
e ‘assimilados’ que os usuários os consideram em geral como ‘naturais’ e como
constitutivos da própria humanidade (embora sejam evidentemente produtos, já
131
Christian Metz. A significação no cinema. São Paulo, Perspectiva, 1972, p 134.
132
O alcance da noção de analogia foi analisado por Christian Metz in Op.cit., p 132-136.
133
A propósito desse tipo de composição, « em que cada plano conserva uma ordem de construção independente,
estando ao mesmo tempo submetido a ordem geral de composição da seqüência », ver o comentário de Gaudreault e
Jost a respeito da concepção de Eisenstein de montagem polifônica. « Se estendemos esta concepção ao complexo
audiovisual, podemos considerar que as cinco matérias de expressão (imagens, barulhos, diálogos, menções escritas,
música) tocam como partes de uma orquestra, em uníssono, em contraponto, em um sistema de fuga etc. » (trad.
S.R.B.N.) in André Gaudreault e François Jost. Le récit cinématographique. Paris, Nathan, Collection Cinéma, 2000,
p 29-30.
81
que eles mudam no espaço e no tempo); a manipulação destes códigos não
requer nenhuma aprendizagem especial, quer dizer, nenhuma aprendizagem
além do simples fato de viver numa sociedade, de ter sido criado nela etc. Os
códigos que chamamos de ‘especializados’ se referem ao contrário a atividades
sociais mais específicas e mais restritas, apresentam-se mais explicitamente
como códigos e requerem uma aprendizagem especial...
134
Em nossa análise, caracterizamos as canções de Deus e o diabo como “códigos
especializados”, estes distintos dos “códigos culturais” entre os quais se destacam os próprios
códigos cinematográficos, ou melhor, os códigos mais comuns do cinema e que, por assim dizer,
não exigem um aprendizado prévio por parte do espectador (como os do cinema narrativo
clássico). Correspondendo aos tempos fortes de Deus e o diabo, esses códigos, que, baseados em
Christian Metz, chamamos de “culturais”, informam momentos do filme marcados por
construções relativamente convencionais. São momentos em que o espectador se sente dentro da
história do cinema e das formas cinematográficas. Entre estas, o western é uma presença
marcante nos dois filmes de Glauber Rocha que tratam da temática sertaneja. Em Deus e o diabo,
pode-se perceber sua influência na cena da perseguição de Manuel pelos jagunços do coronel
(que antecede a morte da mãe) e na do assalto à fazenda do coronel Calazans (que sela o
compromisso de Manuel com o cangaço), para ficarmos apenas nos casos já comentados. De um
código assimilado pelo espectador (código cultural) passamos bruscamente para outro que deverá
ser assimilado (código especializado). Muito mais do que pela canção, que remete a um universo
cultural de certa forma estranho ao espectador cinematográfico, é por meio desse jogo de
contrastes e rupturas, típico do cinema de Eisenstein, que o efeito de estranhamento se produz. E
é aí que se pode começar a pensar em transformação.
As duas situações (a da morte da mãe e a do encontro com o Corisco) representam, para
Manuel, momentos de ruptura, de transformação. O modo de construção das cenas, reforçado
pelas canções, que transmitem a idéia de sacrifício, de provação, é de certa forma análogo à
134
Christian Metz. Op.cit., p 133-134.
82
trajetória do personagem que se vê, nas duas ocasiões, diante da necessidade de abandonar o
passado para dar à sua vida um novo rumo.
Inerente à poesia de cordel, a idéia de risco, associada ao combate, à aventura, está
presente em praticamente todos os ciclos dessa literatura. Na modalidade do desafio, o risco faz
parte mesmo da prática dos desafiantes, obrigados, a cada entrada, a ajustar seus versos aos
últimos proferidos pelo oponente. No filme, a idéia de risco se repete. E, como no desafio, a sua
repetição vai além do enredo. Em Deus e o diabo, a estrutura narrativa refaz no nível formal o
conteúdo da narração: as experiências de Manuel, as mudanças que o personagem é obrigado a
vivenciar. Caracterizada pelas constantes passagens de um modo de narração a outro, tal
construção provoca no espectador uma atitude de recepção semelhante à do público que assiste
aos desafios, ou seja, uma atitude participante. Por outro lado, ao contrário do desafio, onde a
relação com a tradição provoca no público o estímulo à participação, o espectador de cinema está
condicionado a estímulos diferentes. Walter Benjamin descreveu estes estímulos em seus estudos
sobre a modernidade. “Experiência do choque”, diria ele, referindo-se à perda dos sinais de
reconhecimento, perda do que nos é familiar, passagem de um nível de sensações para outro e,
acompanhada da transformação do olhar, a transformação das formas de expressão. Baudelaire é
o nome que representa esse fenômeno
135
. Com ele ficamos sabendo que a perda da tradição não
significou o fim da capacidade de narrar ainda que esta tenha passado a se fazer em meio a uma
situação de ‘choque’.
135
Vários textos de Walter Benjamin se referem ao fenômeno da perda dos rastros. Típico da modernidade, esse
fenômeno foi analisado mais detidamente nos ensaios que tratam do flâneur. Elemento de passagem de um mundo ao
outro, o flâneur circula por uma cidade que vai rapidamente perdendo seus referenciais ao mesmo tempo em que
incorpora novos elementos à sua paisagem. A noção de passagem, ligada à flânerie, ao ato de transitar pela cidade, é
central na filosofia de Benjamin que dedica a esta um de seus principais escritos, o Livro das Passagens. A
experiência do flâneur é uma experiência de transformação do olhar. Sob a vertigem do novo ele vê a cidade surgir
como ruína, princípio a partir do qual uma nova história poderá ser construída. O tema foi tratado em Sylvia R. B.
Nemer. O flâneur e a poética da cidade : Baudelaire e João do Rio na filosofia de Walter Benjamin. Dissertação de
Mestrado em História Social da Cultura, PUC-RIO, 1996.
83
Expressão típica da modernidade, o cinema é uma arte na qual o ‘choque’ faz parte da
experiência do espectador. Nos primórdios do cinema, tal experiência prevaleceu. Depois, com o
desenvolvimento da indústria cinematográfica, o caráter de aventura, que marcou a atividade dos
pioneiros, se perdeu; nessas alturas, o cinema tinha se transformado em arte da hipnose. Ainda
hoje hegemônico, esse cinema, no qual o espectador se deixa absorver pela história passada na
tela, foi questionado por algumas correntes cinematográficas que, baseadas nas experiências de
Eisenstein, procuraram desenvolver estratégias narrativas que colocassem o espectador numa
atitude de recepção diferente da que costumava assumir no cinema convencional. Glauber Rocha
é um dos representantes dessa forma de fazer cinema que incorpora o ‘choque’ à linguagem
cinematográfica. Em Deus e o diabo na terra do sol, podemos considerar que o ‘choque’ provém
da mistura e sobreposição de elementos heterogêneos: os inspirados na tradição oral, que
atravessam o filme na voz off do cantador, e os ditados pela tradição cinematográfica (no caso,
tanto as experiências do cinema de vanguarda quanto os clichês do cinema convencional). Ao
contrário de um certo cinema experimental voltado para a ‘demolição’ da narrativa, Glauber
Rocha, em Deus e o diabo, coloca em questão as próprias vanguardas
136
, recuperando (de uma
forma totalmente inusitada) a atividade do narrador, o ato de narrar.
Deus e o diabo na terra do sol é um filme com princípio, meio e fim; é um filme linear;
enfim, é um filme que conta uma história. O que o torna diferente do cinema narrativo clássico,
por exemplo, é a organização da narrativa baseada num modo de lidar com o tempo que foge às
convenções estabelecidas.
136
Esse posicionamento quanto às vanguardas fica claro no texto de Glauber Rocha. « Tropicalismo, antropologia,
mito e ideograma – 1969 » in Sylvie Pierre. Op.cit., p. 145. Nesse texto Glauber se refere a Godard. « Um cineasta
europeu, francês, é lógico que se ponha o problema de destruir o cinema. Mas nós não podemos destruir aquilo que
não existe... »
84
2.3 - A dupla temporalidade
Narrar é se dirigir a alguém para contar-lhe os acontecimentos dos quais estivera ausente.
Comentado anteriormente, o filme dos irmãos Taviani começa com uma voz de mulher que se
dirige a alguém, no caso seu filho, para contar-lhe sobre uma outra noite de São Lourenço. A voz
evoca algo que aconteceu no passado, mas as imagens que a sucedem se situam no presente.
Diferentemente do relato oral ou escrito, que graças aos verbos pode distinguir diversos tempos e
modos de narração, a imagem em movimento possui apenas um registro temporal, o presente
137
.
Em Deus e o diabo na terra do sol a voz do cantador remete a uma história passada
(Manuel e Rosa viviam no sertão...). O emprego do verbo no imperfeito aponta para essa idéia ao
mesmo tempo em que sugere que a história deverá ser ‘lida’ como uma fábula. Tal dimensão,
aliás, é reforçada em dois outros momentos do filme. No início da segunda parte, quando o
cantador alerta que a história ainda não terminou (Mas a história continua, preste mais
atenção...) e na última cena quando o mesmo dá sua tarefa por encerrada (Tá contada minha
história...).
O objetivo das canções é contar uma história ocorrida num tempo impreciso. As imagens,
contudo, fixam o relato no presente. Normalmente, essa associação entre a imagem e a voz off,
devido ao efeito de redundância entre o que é visto e o que é ouvido, produz uma impressão de
realidade. Em Deus e o diabo, no entanto, a voz off foge ao seu papel tradicional e em vez de
ilustrar a imagem provocando o efeito de realidade esperado, ela rompe com esse padrão não se
deixando absorver pelo campo visual.
137
« ... a recepção-percepção das imagens e dos sons se inscreve em uma experiência fenomenológica do "aqui-e-
agora ". E a esta se acrescenta, para reforçá-la, a impressão de realidade que produz a semelhança fotográfica (e
sonora). Dessa forma, o que me será contado, se beneficiará de um primado de verdade. » (trad. S.R.B.N.) in André
Gardies, Op. cit., p 14.
85
Um estudo sobre o uso da voz off no filme Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard de
Billy Wilder, 1950) coloca em evidência os mecanismos de integração da voz à imagem no
cinema hollywoodiano:
A voz off do ficcional clássico hollywoodiano é uma voz integrada, isto é, é uma
voz que procura constantemente se integrar. Melhor, é uma voz que faz de tudo
para se fazer in, como por se fazer perdoar de suas fugas em off. É normalmente
a voz do personagem principal que os técnicos procuram fazer esquecer que é
assincrônica. O que é uma boa tática para um cinema cuja regra de ouro e a
marca de fábrica foram sempre as de dissimular seus códigos e de apagar os
traços de sua produção manufaturada, tendo em vista assegurar um melhor
sincronismo entre a tela luminosa e a sala escura.
138
O filme de Billy Wilder começa com a imagem de um corpo flutuando numa piscina
acompanhada por uma voz off (a do morto), que nos leva em flash-back a compreender as
circunstâncias que cercaram aquela morte. A história é marcada por um vai-e-vém constante
entre o off e o in, entre a voz que vem do passado e as imagens do personagem, presente e vivo.
Em Sunset Boulevard, “essa voz que pretende se colocar a uma distância de outro mundo em
relação a seu objeto acaba por esquecer seu distanciamento, por reintegrar o corpo da diegése
reencontrando o corpo do personagem”
139
.
Em Deus e o diabo, a voz off recusa a se integrar à imagem, a se tornar in, no sentido
comentado anteriormente. Poderíamos argumentar que no filme de Glauber Rocha a voz off não é
uma voz do além, como na maioria dos filmes onde esta se faz presente. No filme em questão, a
voz off é, na verdade, a voz do cantador off. De qualquer forma, não estamos no campo da
atividade musical, mas no da narração off. Pois a canção entoada não tem a função da trilha
sonora tradicional cujo objetivo é acentuar “aqui uma atmosfera de tensão dramática, ali de
emoção amorosa, lá de tristeza contida”
140
. Em vez do seu papel usual, a canção, em Deus e o
138
Paul Warren. « La voix off dans Sunset Boulevard » in Cinémas – Révue d’études cinématographiques. Cinélekta,
printemps, 1995, p 66 (trad. S.R.B.N.).
139
Ibid., p 68 (trad. S.R.B.N.).
140
André Gardies. Op.cit., p 22 (trad. S.R.B.N.).
86
diabo, “tem força de proposição narrativa e estrutural”
141
. Ela conta a história que estamos vendo
passar na tela, mas em nenhum momento se integra a esta. Sua função é articular o real e o
imaginário indicando que o que estamos vendo é uma história passada. Algo que poderia ser real
ou não ser; “verdade ou imaginação”, como aponta a canção que embala a corrida de Manuel em
direção ao mar. Estamos diante de uma construção que reforça a dimensão da ficção em sua
relação com a história e, acima de tudo, com o ato de contá-la.
***
Baseados nos estudos de narratologia de Gérard Gennete, autores como Christian Metz,
André Gardies, Francis Vanoye, Fançois Jost e André Gaudreault, procuraram desenvolver
análises sobre as formas de expressão por meio das quais a história é contada no cinema: “formas
de manifestação do narrador, matérias de expressão representadas por este ou aquele meio
narrativo (imagens, palavras, sons, etc.), níveis de narração, temporalidade do relato, ponto de
vista, entre outros”. Em nosso trabalho procuramos nos apoiar nas reflexões desses autores, bem
como na de Paul Ricouer em Tempo e narrativa que nos ajudará a pensar a questão da
temporalidade no filme que analisamos.
Deus e o diabo possui dois níveis narrativos que contam a mesma história de formas
diferentes: pelos versos do cantador e pelas imagens, pela representação dos personagens.
Introduzidas em alguns momentos do filme, as canções repetem em off o que vemos passar na
tela. De um lado temos uma história narrada cujo emprego dos tempos verbais remete à idéia de
passado, de outro uma história representada que se desenrola no presente, ou seja, uma instância
“narradora” e uma instância “mostradora”, segundo definição de Gaudreault:
ela consiste em privilegiar, por meio do narrador, associado ao processo de
comunicação, a reunião em uma mesma ‘arena’ (em uma mesma cena, para ser
mais preciso) dos diversos personagens do relato. Para isto, se faz apelo aos
141
Ibid., p 23 (trad. S.R.B.N.).
87
atores cuja tarefa será fazer reviver, ao vivo (aqui e agora), diante dos
espectadores, as diversas peripécias que se supõe tenham vivido (em outro lugar
e anteriormente) os personagens que personificam os atores. Este modo, cuja
principal manifestação é a representação teatral e que Platão denomina mímesis
(imitação), é o que podemos associar ao que recentemente sugerimos chamar de
mostração.
142
Referindo-se ao emprego dos verbos na narração, Paul Ricoeur aponta para duas atitudes
distintas de apropriação do tempo. Segundo ele, o emprego do verbo no passado (o passado
simples e o imperfeito) refere-se ao ato de “contar”, ao passo que o presente e o futuro seriam
tempos verbais compatíveis com o ato de “comentar”.
A atitude que corresponde à narrativa seria simplesmente a distensão, o
descompromisso, por oposição à tensão, ao compromisso da entrada no
comentário. Passado simples e passado imperfeito seriam, assim, tempos da
narrativa, não porque a narrativa se relacione de uma ou de outra maneira com
acontecimentos passados, reais ou fictícios, mas sim porque esses tempos
orientam para uma atitude de distensão.
143
Em Deus e o diabo, a narração desloca o espectador para uma experiência de tempo típica
das fábulas. As imagens, por sua vez, ‘mostram’ no presente. No entanto, por estarem
sobrepostas à fala do narrador, entendemos que se trata de uma história passada. A articulação
entre os dois níveis da narrativa nos leva a acompanhar os acontecimentos “mostrados” na tela
como se estes fossem uma espécie de “comentário” ao campo da narração.
A função do comentário é acrescentar algo à narração colocando diante dos olhos do
espectador as informações que a narração, pela sua necessária concisão, não pode fornecer. Além
disso, o comentário, como indica a citação anterior implica uma atitude de “compromisso” em
relação ao narrado. Esses dois aspectos do comentário (a abundância de informações e o
comprometimento do receptor em relação ao relato) trabalham no sentido de criar uma atmosfera
de realidade. No entanto, pela sobreposição entre a distensão e a tensão, produz-se um efeito de
142
Gaudreault e Jost. Op.cit., p 25 (trad. S.R.B.N.).
143
Paul Ricoeur. Op.cit., p 328.
88
recuo do contar em relação ao comentar e vice-versa. Contar seria, nesse caso, o contar algo
como se este se tivesse passado, ou melhor, algo que pertence ao passado da voz narrativa.
A narrativa de ficção é quase histórica, na medida em que os acontecimentos
irreais que ela relata são fatos passados para a voz narrativa que se dirige ao
leitor; é assim que eles se parecem com acontecimentos passados e a ficção se
parece com a história.
144
O comentário de Ricoeur nos coloca diante do problema da representação do real no
cinema de ficção. Para os integrantes do movimento do Cinema Novo essa era uma discussão
crucial. Por um lado havia a intenção de produzir filmes que retratassem a realidade brasileira.
Por outro o propósito de romper com o cinema convencional, este constituído de efeitos de
simulação do real. Para alguns setores da vanguarda cinematográfica, romper com o cinema
narrativo clássico significava romper com a própria narrativa. Em Deus e o diabo estamos muito
longe dessa proposição. Nesse filme, a idéia de encadeamento narrativo é absolutamente
evidente, ainda que a linearidade não seja, como acontece na narrativa clássica, praticada com a
intenção de reforçar o efeito de realidade do relato. Pela articulação da imagem com a narração,
pela possibilidade de instituir os “jogos com o tempo” no sentido comentado por Paul Ricoeur, o
filme de Glauber Rocha nos lembra, a todo momento, que estamos diante de uma fábula, de um
“quase passado”. A narração é o modo de construção desse “quase passado”.
Um dos mecanismos através dos quais o passado não se faz passar por um “em si” mas
por um “como se” é justamente o modo de utilização da voz off. Ao contrário da maioria dos
filmes onde a narração na primeira pessoa (caso de A noite de São Lourenço e de Sunset
Boulevard) reforça o efeito realista, em Deus e o diabo o relato se manifesta na terceira pessoa.
Aqui, o narrador não está implicado no mundo contado, ou melhor, ele está implicado, mas
apenas como testemunha dos acontecimentos relatados. A noção de distanciamento é central em
144
Ibid. p 329.
89
relação a isso, pois, enquanto a imagem tende à evocação do real, a voz em Deus e o diabo, opera
no sentido contrário não permitindo que o passado contado se coloque no lugar do passado
vivido.
A voz modela a recepção segundo os princípios do “Era uma vez...”. Em vez de negar os
fatos mostrados, ela apenas corta o vínculo que poderia se instalar entre eles dando-lhes uma
consistência de história (história factual). Em Nonook of the north, por exemplo, a construção
pretende enfocar o real apelando para técnicas próprias da narrativa de ficção. Trata-se de um
documentário mas sua elaboração, a forma ‘encenada’ de reconstituir seu objeto, o aproxima do
romance.
Colocar os acontecimentos em ordem, mesmo cronológica, se faz acompanhar
de todo um trabalho sobre a temporalidade (cortar, saltar, aproximar), que
introduz uma lógica outra que o simples passar do tempo referencial. O célebre
filme de Robert Flaherty, Nanouk (Nanoolk of the north, 1921), ao construir
certa seqüência sobre uma alternância de planos, transforma dois acontecimentos
sucessivos na banda fílmica em simultaneidade: vemos aí Nanouk, na caçada,
esperar que uma foca surgisse. Ao fazer isto, ele transforma também o a-fílmico
em um relato, que repousa sobre um suspense realista e não sobre um suspense
real.
145
Deus e o diabo, elaborado em condições tão próximas quanto possível da realidade, é um
filme que tem fortes relações com o cinema documentário. Por outro lado, a voz do cantador,
instaura uma ruptura com a lógica factual que representa, ao mesmo tempo, uma ruptura com a
lógica do documentário tradicional, principalmente do documentário militante. É claro que existe
em Glauber Rocha uma atitude de processo, uma vontade de apresentar certo número de
informações, de organizá-las segundo uma certa visão do real. O que não existe é o enfoque
doutrinário, o desejo de estabelecer uma determinada verdade sobre o mundo retratado, como no
documentário político, em geral elaborado segundo princípios da narrativa realista.
145
Gaudreault e Jost. Op.cit., p 35 (trad. S.R.B.N.).
90
Interferindo nas imagens, a canção quebra o contrato enunciativo segundo o qual o filme
deveria ser lido como um filme militante. Michel de Certeau e Jacques Revel
146
comentam sobre
isso em entrevista a respeito de dois cineastas engajados no que se costuma chamar de cinema
verdade: Chris Marker em seu filme A bientôt j’espère realizado durante a greve dos operários da
Rhodiaceta em Besançon em 1967 e Jean Louis Comolli em La Cecilia filme de 1975 sobre uma
colônia agrícola fundada em 1890 no sul do Brasil. O que está em jogo nas análises que os
entrevistados fazem dos dois filmes é a relação entre a fala, a voz e o discurso militante.
No filme de Marker, as falas dos operários se articulam segundo a retórica oficial da luta
política. Mas a linguagem utilizada é tão pobre que compromete, ela própria, as certezas da
linguagem militante. Além disso existem os silêncios, as lacunas e as vozes femininas que
introduzem alguma coisa outra no discurso ‘viril’ do militantismo. A fala dos entrevistados diz
algo além do que é dito, além daquilo que os faz falar. Por meio desta são introduzidas algumas
questões totalmente inusitadas na pauta do cinema militante. A despeito do próprio projeto do
filme, a fala faz brotar as relações humanas (relações sexuais, conjugais, familiares), que antes de
1968 não costumavam se misturar com problemas especificamente políticos. É mais ou menos o
que acontece em relação ao filme de Comolli onde o aspecto utópico da comunidade de Cecilia
se reflete menos no espaço, espaço circunscrito onde dez homens e uma mulher tentam construir
um mundo ideal, do que nos cantos anarquistas italianos que pontuam os acontecimentos
interferindo tanto nos momentos de dificuldade quanto nos momentos de alegria.
O canto anima o filme de uma força que ele não teria se tivesse se detido na
descrição do espaço. Comolli rompe com a tradição espacializante da utopia,
transferindo-a para outro lugar, para o canto. O espaço pode se deteriorar devido
a interferências do exterior que comprometem seu sucesso, porém algo
sobrevive, o canto.
147
146
Michel de Certeau e Jacques Revel. Entrevista dada a Philippe Blon, François Barat e Vincent Nordon.
« Rencontres avec Michel de Certeau et Jacques Revel » in Ça – Cinéma et Histoire (1), s/d
147
Ibid. p 43 (trad. S.R.B.N.).
91
Nos dois casos, a fala é portadora de qualidades poéticas. No entanto, os filmes são
absolutamente diferentes. No caso de Marker, trata-se do cinema direto, da apropriação da fala
como um meio de conhecimento do outro. Deve-se lembrar que Marker faz parte de um
movimento no qual os cineastas, agrupados em cooperativas, procuravam trabalhar fora do
sistema convencional de produção e distribuição, apresentando seus filmes em sindicatos,
cineclubes e casas de cultura. Outro objetivo desses profissionais era registrar fatos e
movimentos, rodá-los em pequenos filmes (Cine-tracks) que seriam mostrados logo após os
acontecimentos para provocar o debate. Para cineastas como Marker, fundador do Grupo Slon, o
cinema era uma espécie de laboratório para refletir sobre questões políticas e sociais do seu
tempo. Nessa perspectiva, a fala funciona como mecanismo de liberação de uma certa dimensão
do cotidiano operário abafada pela retórica militante. O filme de Comolli trabalha com o político
em outro nível, no nível da reconstrução do passado e não no do registro do presente como é o
caso de Marker. Por outro lado, La Cecilia é um filme que utiliza a história para falar de
problemas do seu tempo e nesse sentido é também um filme político.
La Cecilia é um discurso utópico que lança mão do passado para refletir sobre o presente.
Daí a necessidade de um outro espaço, de um distanciamento: Cecília, comunidade anárquica,
fundada em 1890 no sul do Brasil, representa um outro não apenas espacial e temporal mas
também no nível das manifestações culturais. O filme retrata a relação entre as pessoas, mas é a
canção que dá o tom das suas expectativas. Ela funciona como uma espécie de resíduo do que foi,
do que poderia ser. Michel de Certeau chamou a atenção para isso quando, comentando sobre La
Cecilia, mencionou que a canção ajuda a construir um vínculo entre o presente e o passado; ela é
um elemento de preservação
148
.
148
Ibid.
92
Como no filme de Comolli, a canção, em Deus e o diabo, estabelece um diálogo com o
passado que se atualiza por meio da voz do cantador. Mas o que se conserva por intermédio
dessas canções? Michel de Certeau fala em uma “perspectiva de verossimilhança”
149
. A canção
se coloca nessa perspectiva nos levando a ver a história de Manuel como a história de muitos
outros que, como ele, destituídos de todo o resto, se viram e se vêem diante da necessidade de
escolher entre a religião e a violência, quase sempre as duas únicas opções disponíveis em um
universo dominado pela pobreza e pelo abandono.
***
André Gardies chama de “modo iterativo”, o ato de contar uma vez algo que se produz n
vezes. Em Deus e o diabo, o ato de iteração se refere menos às imagens isoladas do que à
estrutura do filme que, como um todo, tem valor iterativo. A canção, em seu trabalho de articular
a história, é a base dessa iteração. Nela, “o recurso ao imperfeito permite a um só enunciado
descrever um número indefinido de acontecimentos dados como idênticos e repetitivos”
150
.
Relaciona-se a isso o tratamento dado, por Glauber Rocha, ao tema de Manuel. Sua história não é
um caso isolado, mas o índice de um fenômeno social que persiste, atravessa a história do país,
talvez se estenda para muito além dessa fronteira. Afinal, “o sertão é o mundo” e Glauber, em
Deus e o diabo, paga, por completo, sua dívida para com o mestre Guimarães Rosa.
A abordagem iterativa dá ao cineasta a oportunidade de falar do indivíduo sem entrar nas
artimanhas de sua vida privada como ocorre no drama burguês onde o que conta é a
individualidade de cada personagem, seus sentimentos, seus amores, suas dores, seus sucessos,
seus fracassos. Ao contrário do individualismo burguês, a experiência de Manuel, porta uma
alteridade que não nos permite uma identificação com o personagem. Por outro lado ela é
149
Ibid., p 34.
150
André Gardies. Op.cit., p 90 (trad. S.R.B.N.).
93
semelhante à de muitos outros, ou seja, Manuel é uma espécie de símbolo de uma história que se
repete
151
. Não se trata, contudo, de uma eterna repetição do passado no presente, pois há uma
abertura em direção ao futuro. A canção é o elemento de configuração dessa abertura.
Partindo da poesia popular sertaneja, a canção elabora um projeto utópico que desemboca
na história de Deus e o diabo. Atuando como uma espécie de banco de dados, a literatura de
cordel informa sobre o funcionamento do filme que deverá, entretanto, encontrar equivalentes
cinematográficos ao modelo que lhe serve de referência. No primeiro capítulo procuramos
analisar esse modelo considerando: em primeiro lugar, o seu processo de adaptação a novos
contextos, a mudança de temas que o poeta empreende visando, entre outras coisas, atender às
expectativas de um público cada vez mais influenciado pelas referências do mundo urbano
industrial; em segundo lugar, o tratamento dado ao mito, sua trajetória das novelas de cavalaria
aos folhetos de cordel. Nessa análise pudemos verificar que, ao mesmo tempo em que preserva
alguns traços da tradição, o cordel a modifica adaptando-a ao momento vivido. Essa é a marca do
cordel que será retida por Glauber Rocha. Resta-nos, no entanto, saber como ele opera com esse
duplo aspecto da tradição que é, no caso, a permanência acompanhada de um processo de
renovação. Em resumo, de que forma o cineasta promove a reinvenção da tradição?
Um dos procedimentos adotados por Glauber Rocha quanto à apropriação da tradição diz
respeito à canção que, por outro lado, não é o único canal de comunicação que o filme estabelece
com o universo do cordel. Ele também convoca o cordel em sua estrutura diegética colocando em
evidência a idéia de combate, de luta entre o bem e o mal, que está na raiz de praticamente todos
os folhetos. Mas também aí a canção será importante, pois a sua distribuição entre as cenas
151
A idéia de repetição costuma também ser tratada por meio da montagem paralela. « Quanto ao "sintagma
paralelo", que alterna planos que se opõem tematicamente (por exemplo, a vida dos ricos / a vida dos pobres, a calma
/ a agitação), ele se define, igualmente, pela noção de freqüência, uma vez que ele incita o espectador a continuar
mentalmente a série de imagens que os mostramos pela idéia de uma repetição sem fim. » (trad. S.R.B.N.) in
Gaudreault e Jost. Op.cit., p 124.
94
funciona como elemento de pontuação ajudando a marcar as etapas da luta de Manuel, as viradas
no destino do personagem.
Já nos referimos à canção em termos de tom, de ritmo, enfim, do seu uso como
contraponto à imagem. Comentamos também sobre a temporalidade, sobre a relação
passado/presente estabelecida por meio da sobreposição entre os dois níveis narrativos, o da
canção e o da imagem. Nesses dois casos a canção tem uma certa autonomia em relação ao
campo visual. Vamos, agora, pensar a canção como elemento interno à diegése procurando
verificar como esta atua no sentido de pontuar a história, criando condições para o
desenvolvimento do enredo.
2.4 - O efeito de pontuação da canção
Sobre o assunto podemos começar com a análise feita por Francis Vanoye que compara a
pontuação cinematográfica com a pontuação escrita
152
. Em termos da micro pontuação, ou seja,
em nível da frase no texto escrito e do plano no texto fílmico, as marcas de pontuação, ponto-e-
vírgula num caso, corte e montagem no outro, são praticamente imperceptíveis. Por sua vez, a
macro pontuação é mais evidente, ou seja, deixa marcas visíveis no texto. No escrito, as marcas
de macro pontuação são parágrafos, alíneas, variações de caracteres (itálico, negrito, caixa alta)
etc. No cinema, a separação entre seqüências e partes do filme costuma utilizar, como recurso, a
fusão, os efeitos de embaçamento, de abertura e fechamento do diafragma, a voz off, a música, os
sub-títulos, etc. A idéia, tanto num caso quanto no outro, é de reforçar a passagem de um ponto
ao outro. Em Deus e o diabo a canção é um dos principais elementos de pontuação. Ela não
apenas conta a história, mas a conta de determinada maneira indicando o modo como o
espectador deverá acompanhá-la.
95
A canção, em primeiro lugar, atua como elemento demarcativo estabelecendo a divisão
das partes da história e a sucessão dos acontecimentos e, em segundo lugar, como elemento
expressivo construindo significações, acentuando determinados efeitos estilísticos e, poderíamos
dizer, substituindo, em alguns momentos, a linguagem cinematográfica. O esquema a seguir
apresenta, nos quadros (A, B e C) e sub quadros (A1, A2, A3 e B1, B2, B3, B4), as canções na
ordem em que aparecem no filme:
A
Manuel e Rosa viviam no sertão, trabalhando a Terra com as próprias mão. Até que um dia pelo sim, pelo
não, entrou na vida deles o Santo Sebastião. Trazia bondade nos olhos, Jesus Cristo no coração.
A1 A2 A3
Sebastião nasceu no fogo, no mês
de fevereiro, anunciando que a
desgraça ia acabar com o mundo
inteiro, mas que ele podia salvar
quem estivesse ao lado dele, que
era, que era santo, era santo e
milagreiro.
Meu filho tua mãe morreu. Não foi
de morte de Deus, foi de briga no
sertão, de tiro que jagunço deu.
Jurando em dez igrejas sem santo
padroeiro Antonio das Mortes
matador de cangaceiro.
B
Da morte em Monte Santo, sobrou Manuel vaqueiro por piedade de Antonio matador de cangaceiro. Mas a
estória continua, preste mais atenção: andou Manuel e Rosa nas vereda do sertão até que um dia pelo sim,
pelo não, entrou na vida deles Corisco, diabo de Lampião.
B1 B2 B3 B4
Lampião e Maria Bonita
pensava que nunca
morria. Morreu na boca
da noite, Maria Bonita ao
romper do dia.
Andando com remorso,
volta Antonio das Mortes.
Vem procurando noite e
dia Corisco de São Jorge.
Procurando pelo sertão
todo mês de fevereiro o
Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro.
Procura Antonio das
Mortes!
Se entrega Corisco! Eu
não me entrego não, eu
não sou passarinho pra
viver lá na prisão! Se
entrega, Corisco! Eu não
me entrego não, não me
entrego ao tenente, não
me entrego ao capitão, eu
152
Francis Vanoye. Récit écrit, récit filmique. Paris, Nathan, Collection Cinéma, 2002.
96
me entrego só na morte,
de parabelo na mão!
C
O sertão vai virar mar e o mar virar sertão! Tá contada minha estória, verdade e imaginação. Espero que o
sinhô tenha tirado uma lição: que assim mal dividido esse mundo anda errado, que a terra é do Homem, não é
de Deus nem do Diabo.
A história se divide em duas partes, cada uma das quais, iniciada por uma canção, no
caso, A e B, como apresentado no esquema anterior. A estas duas partes se segue uma terceira
canção C que acompanha o epílogo do filme. Estas canções, que chamaremos de canções
demarcativas de partes do enredo, têm como papel, em primeiro lugar, apontar para o caráter
indefinido da história que poderia ser “verdade ou imaginação”; em segundo lugar, remeter ao
passado: “Manuel e Rosa viviam no sertão”. Aí o emprego do verbo no imperfeito marca a
entrada na narrativa. O “Era uma vez...” equivale ao início da canção A, assim como “O tempo
passou...” e o “Finalmente...” equivalem ao início das outras duas (B e C). A partir daí, tudo leva
a crer que estamos no campo da fábula.
Canções demarcativas de partes do enredo:
Marcando o início da primeira parte do filme, a canção A indica também a entrada de um
elemento novo, Sebastião. No campo das imagens o observamos atravessar o deserto seguido por
um grupo de beatos. Manuel, em seu cavalo, os segue com um olhar interrogativo, circunda-os e
depois se afasta. A esse prólogo, se seguem os episódios (A1, A2 e A3) que levam Manuel ao
grupo comandado por Sebastião, a experiência religiosa do vaqueiro até a chegada de Antonio
das Mortes que promove a destruição do arraial e obriga Manuel a buscar outra solução para sua
vida. Da mesma forma que em A, a canção B indica a entrada do segundo elemento novo,
Corisco, personagem que ocupará toda a segunda parte do filme (B1, B2, B3 e B4) iniciada pelo
encontro de Manuel e Rosa com Cego Júlio que levará o casal ao encontro do companheiro de
97
Lampião. Convertido em cangaceiro Manuel ingressa no mundo da violência até que o
reaparecimento de Antonio das Mortes colocará novamente um ponto final em suas aventuras.
No combate derradeiro Corisco é morto enquanto Manuel e Rosa, mais uma vez poupados por
Antonio, fogem atravessando o sertão. A canção C marca o final da história, acompanhando a
corrida de Manuel em direção ao mar.
--------------------------------------Æ --------------------------------------------------Æ ---------Æ
A
A1 A2 A3
B
B1 B2 B3 B4
C
Início da Início da Epílogo
primeira parte segunda parte
Å--------------------------------------- Å--------------------------------------------
Os relatos em A e B remetem a algo ocorrido no passado, apontando ao mesmo tempo,
para o futuro, para o desenrolar da história. Centrado em Sebastião, num caso, e em Corisco, no
outro, tal desenrolar será apresentado em A1, A2 e A3 e, em seguida, em B1, B2, B3 e B4.
Dialogando com aquilo que havia sido, em linhas gerais, anunciado em A e B, estas canções
(demarcativas dos acontecimentos) se reportam às etapas percorridas por Manuel durante sua
trajetória com o grupo de beatos e depois com o grupo de cangaceiros. Elas acompanham esses
momentos, marcam a sucessão dos acontecimentos e reforçam determinados significados
veiculados por meio das imagens.
Canções demarcativas dos acontecimentos
A1 continua a descrição do beato Sebastião iniciada em A. A canção é diegética (“música
de tela” segundo denominação de Michel Chion
153
), ou seja, faz parte da cena onde o cantador,
153
« Chamaremos música de tela a que emana de uma fonte situada diretamente ou indiretamente no espaço e tempo
da ação, mesmo que esta fonte seja um rádio ou um instrumentista fora de campo. » (trad. S.R.B.N.) in Michel
Chion. Op.cit., p 71.
98
em uma feira, narra ao povo do pequeno vilarejo a história de Sebastião
154
. Manuel, que ali estava
para negociar seu gado, escuta a canção que equivale a uma “pausa descritiva, onde o tempo do
relato tem um certo valor uma vez que a história não avança, que sua duração é igual a zero”
155
.
O papel da canção é informar sobre Sebastião, completando a descrição iniciada na canção
anterior. Mas, nesse caso, o Santo não aparece no campo visual centrado sobre o movimento da
feira. A cena coloca em evidência não apenas o beato, descrito nos versos da canção, mas a figura
do cantador que aparece no meio da feira dedilhando sua viola. Lembrando as cantorias
tradicionais, essa canção, único caso no filme, é bem semelhante, em termos de tom e ritmo, às
entoadas pelos cantadores nas feiras do interior do Nordeste. Inserida como uma ‘citação’ no
interior da história, tal canção tem como função indicar o papel do cantador na condição de
narrador. Sua voz é ouvida novamente por ocasião da morte da mãe de Manuel.
Como no resto do filme, nessa cena a canção também é não-diegética (ou “música de
fundo” para Michel Chion
156
). Proferida em off enquanto o vaqueiro desnorteado procura
entender os últimos acontecimentos, A2 lembra as ladainhas, os cantos de penitentes do Nordeste
(comentados no início deste capítulo). Seu ritmo lento, arrastado reforça a imagem de abandono,
de incerteza e desespero que toma conta do personagem naquele ponto da história onde ele
deverá decidir que rumo dar a sua vida. A conversão à religião dos beatos é o caminho natural
anunciado nas duas canções anteriores. Uma série de cenas nos colocará, a partir daí, diante da
experiência religiosa do vaqueiro até que a entrada da voz do cantador anuncia nova virada nos
rumos da história.
154
A única exceção de canção diegética no filme é esta, da cena da feira onde o tema de Sebastião é cantado no
espaço onde se desenvolvem os acontecimentos – a canção, nesse caso, tem o papel de introduzir o cantador como
condutor dos acontecimentos narrados, a partir daí, em off.
155
André Gardies. Op. cit., p 92 (trad. S.R.B.N.).
156
« Chamaremos música de fundo a que acompanha a imagem de uma posição off, fora do espaço e do tempo da
ação. Este termo faz referência ao fosso da orquestra da ópera clássica. » (trad. S.R.B.N.) in Michel Chion. Op.cit., p
71.
99
A3 acompanha essa virada. Trata-se da canção de Antonio das Mortes que vemos
atravessar o vilarejo, encaminhando-se com passos decididos à igreja onde receberá do padre e do
coronel a incumbência de acabar com os beatos de Monte Santo. O tom da canção ajuda a
envolver o personagem num certo mistério criando em torno deste um clima de suspense. A
canção sugere também uma idéia de simultaneidade. O emprego do gerúndio no verso inicial
(Jurando em dez igrejas...) reforça essa sensação, ou seja, a sensação de que a figura de Antonio
das Mortes já estava presente no enredo muito antes de sua aparição, o que, de certa forma, é
indicado pela introdução, antes da cena da entrada do personagem no vilarejo, de uma série de
quadros onde o jagunço aparece lutando contra cangaceiros. Como uma espécie de espectro que
atravessa o sertão, o aparecimento de Antonio das Mortes representa a entrada de um elemento
complicador no enredo que, a partir daí, vai detonar uma série de acontecimentos que
desembocam na matança de Monte Santo, episódio que encerra a primeira parte do filme.
O início da segunda parte é acompanhado pela voz do cantador cujos versos introduzem
Corisco, que aparecerá a seguir. Antes, porém, observamos a caminhada de Cego Júlio em
direção ao acampamento do cangaceiro. Enquanto isso, a canção (B) continua no ar
acompanhando o trajeto do grupo em direção a uma nova aventura.
Após a caminhada, Manuel e Rosa, acompanhados do cego, se aproximam de Corisco
que, diante dos recém-chegados, conta a Cego Júlio as circunstâncias da morte de Lampião. Mas
a câmera logo se desloca para Manuel que, ainda abalado pelo episódio de Monte Santo, escuta
hipnotizado o relato de Corisco. Em off, esse relato é ouvido junto com a voz do cantador que
entra nesse momento entoando a canção tema de Lampião, B1, que equivale a A2, em termos do
tom arrastado da canção e da construção da cena, que mostra a conversão de Manuel após certo
momento de indecisão. Reforçando a imagem estampada no rosto de Manuel, a canção, nesses
dois momentos relacionados à morte, se coloca no lugar das palavras para expressar a
100
perplexidade do personagem diante do ocorrido. A morte, no caso, funciona como abertura para o
novo na medida em que obriga o personagem a tomar uma decisão em relação à sua vida.
A mesma equivalência observada entre A2 e B1 se repete em B2 e B3 em relação a A3.
Essas canções, que correspondem aos momentos de entrada em cena de Antonio das Mortes,
trazem o mesmo ritmo e a mesma formação verbal, ou seja, o gerúndio indicando simultaneidade.
Substituindo a montagem alternada, “figura por excelência da expressão fílmica”
157
, a canção cria
uma homogeneidade temporal sem apelar para os recursos narrativos convencionais. Ela sugere,
ainda que este não apareça no campo visual, a permanência do matador no campo da ação. Sua
tarefa não foi encerrada com o extermínio dos beatos. Falta acabar com os últimos cangaceiros.
Corisco é o alvo do momento.
O encontro dos bandidos, cangaceiro e “matador de cangaceiro”, será acompanhado por
B4, canção que acompanha o desfecho da luta entre os dois oponentes. O ritmo simula o do
desafio, gênero de cantoria nordestina que promove entre dois adversários uma espécie de duelo
verbal. A canção, nesse caso, é uma recriação do desafio
158
, com as palavras de cada um dos
oponentes repetidas, pelo cantador, na forma de discurso direto: ( - Se entrega Corisco! / - Eu não
me entrego não....). B4 prepara o clima para o final do filme. Quem anuncia é o próprio cantador
que, antes de encerrar a canção, faz o seu comentário: (Farreia, farreia povo, farreia até o sol
raiar, mataram Corisco, balearam Dadá).
***
157
« trata-se do caso da figura por excelência da expressão fílmica ; ela é bastante conhecida para que se insista ;
basta dizer que as ações simultâneas são apresentadas sucessivamente, mas segmento por segmento (por duplas), por
um recurso de montagem que mostra alternativamente cada uma delas (A-B-A-B-A-,etc.). » (trad. S.R.B.N.) in
Gaudreault e Jost. Op.cit., p 115.
158
Peleja é a denominação do desafio recriado pelo poeta e transcrito para o folheto. Alguns desafios são totalmente
imaginários (Peleja do Cego Aderaldo com José Pretinho, Peleja de Manoel Riachão com o diabo etc.), outros são
transcrições de desafios efetivamente ocorridos como, por exemplo, o encontro célebre entre Inácio da Catingueira e
Romano doTeixeira, que se tornou um mito, objeto de múltiplas versões. Ver Idelette Muzart. Op.cit., 1997, p 36.
101
Pelo exposto, procuramos indicar a existência de uma correspondência entre a primeira
parte e a segunda do filme. Nos dois casos podemos falar de:
1) introdução de um elemento novo no enredo: Sebastião em primeiro lugar (A e A1)
e Corisco em segundo (B) – chamaremos (no quadro a seguir) de momentos 1;
2) momentos de crise de consciência de Manuel: conversão ao grupo de Sebastião
depois da morte da mãe (A2) e conversão ao cangaço depois da morte dos beatos (B1) –
momentos 2;
3) conflito: aparecimento de Antonio das Mortes (A3, B2 e B3) – momentos 3;
4) desfecho do conflito: assassinato de Corisco (B4) – momento 4.
1 2 3 1 2 3 3 4
A A1 A2 A3 B B1 B2 B3 B4 C
Prólogo + Descrição Crise Conflito Introdução Crise Conflito Conflito Conflito Final
introdução de Sebastião Antonio de elemento final
de elemento x novo (Corisco) Antonio
novo (Sebastião) beatos x
Corisco
Tanto numa parte quanto na outra, 1 e 2 representam momentos descritivos, ao passo que
3 e 4 correspondem a momentos de virada no rumo dos acontecimentos. Num caso temos os
“índices”, no outro as “funções”. André Gardies, baseado no estudo de Roland Barthes, analisou
o papel destes na narrativa cinematográfica
159
.
Com relação aos índices, Gardies nos fala do tempo de exposição da imagem em relação
às informações que ela contém. Segundo ele, quanto menos informações tiver a imagem, mais
159
André Gardies. Op.cit., p 94.
102
tempo de exposição ela necessitará
160
. Excedendo sempre o tempo necessário à sua leitura, estas
imagens, correspondentes em Deus e o diabo aos momentos 1 e 2, jogam com a impressão de um
tempo vazio, de lentidão, arrastamento, em suma, de impossibilidade.
Quanto às funções, estas servem para introduzir uma informação que gera um momento
de risco para o relato, suscetível, a partir de então, de se orientar tanto para um lado quanto para o
outro. Por esta razão, as funções produzem uma impressão de rapidez, sendo apropriadas aos
momentos de ação como, por exemplo, os momentos 3 e 4 do filme em questão, pautados por um
ritmo bem mais acelerado do que os dois primeiros. Estes momentos, ou seja, 3 e 4, introduzem a
idéia de clímax que precita a história rumo ao seu final.
Correspondendo ao epílogo, a parte C inicia-se com a voz do cantador que acompanha o
desfecho da história. Antes, porém, assiste-se a um outro momento de dúvida de Manuel que,
sem saber o que fazer de sua vida após a morte de Corisco, resolve, por fim, deixar a decisão por
conta de Rosa. A corrida do casal pelo sertão é a resposta. Depois disso a canção se interrompe e
junto com a música de Villa-Lobos vemos a imagem do mar que, representando a utopia
anunciada nos versos da canção, aponta para o novo, para o futuro.
***
A canção articula o enredo inserindo-o em uma sucessão cronológica na qual cada
momento da história contada corresponde a um ponto entre um antes e um depois no sentido dos
acontecimentos narrados e entre o passado e o futuro no sentido da narração. Gaudreault (baseado
nos estudos de Genette) chama de “analepse” e “prolepse” o movimento de retorno e antecipação
dos acontecimentos em relação ao momento da história onde nos encontramos
161
. Em Deus e o
160
Essa relação entre a imagem (vazia) e o tempo (longo) de sua exposição « corresponderia ao que Claudine de
France chama de "lei de encobrimento da imagem ". Com efeito, mais esta última será encoberta, mais tempo de
exposição ela precisará a fim de que possam ser tratadas as informações que ela contém... Um efeito de duração
poderá ser obtido jogando com a vacuidade da imagem . » (trad. S.R.B.N.) in André Gardies. Op.cit., p 94.
161
Gaudreault e Jost. Op.cit., p 106
103
diabo, tais movimentos são produzidos pela canção que remete o relato tanto ao “acontecido”
(Manuel e Rosa viviam no sertão...) quanto ao que “poderá acontecer” (O sertão vai virar mar e
o mar virar sertão...).
Como na literatura de cordel, a história de Deus e o diabo nos leva para o espaço do mito,
do imaginário, da fábula, ao mesmo tempo em que nos anuncia o futuro, espaço da possibilidade,
da utopia, da esperança. A novidade do filme é que passado e futuro se articulam ao presente em
cada um dos seus momentos
162
. Ao contrário, por exemplo, de Amuleto de Ogum ( Nelson Pereira
dos Santos – 1974) onde o cantador se situa num plano diferente do da história contada
163
(ele
aparece na primeira cena contando, para despistar um grupo de bandidos que o tentara assaltar, a
história de Gabriel; em imagens o filme nos fala de como ele teve o seu “corpo fechado”, da sua
vinda para o Rio de Janeiro onde se envolveu com a contravenção e finalmente da sua morte que
encerra a narração e nos leva de volta a imagem do cantador que aparece novamente apenas na
última cena do filme) em Deus e o diabo ele está inserido nos acontecimentos dos quais é
testemunha e, ao mesmo tempo, porta-voz.
2.5 - A canção e a construção dos personagens
Voz que ecoa entre o presente e a memória, o cantador transporta metaforicamente a
história para o campo da lenda, o personagem para o campo do mito. Deus e o diabo tem uma
construção complexa que não nos permite separar claramente o real da ficção. Corisco e Dadá
são personagens reais, Sebastião (representante do sebastianismo) é uma espécie de mistura de
162
Colocando em relevo uma nova relação com o tempo, com o passado, o filme deixa claro que a história é produto
de uma interpretação. « Toda história é contemporânea... é uma leitura contemporânea que se faz e, na compreensão
do passado, temos de integrar essa leitura renovada, sempre recomeçada ». A observação foi feita por Jacques Le
Goff. Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p 263.
163
Esse modo de contar a história é semelhante ao do filme A noite de São Lourenço (irmãos Taviani) onde a a voz
da narrativa remete a um passado mostrado por meio das imagens.
104
Antonio Conselheiro com o beato Zé Lourenço de Caldeirão
164
, Antonio das Mortes teria sido
inspirado no major José Rufino, autor do atentado contra Corisco, Manuel e Rosa, únicos
personagens de ficção, são os que costuram a história possibilitando a reprodução dos mitos que
circulam pelo sertão na voz dos cantadores.
Nesse filme, Glauber Rocha recorre a personagens de não ficção, fazendo sobre a
realidade uma mediação que passa pela percepção do poeta popular. Deus e o diabo deve seu
grande sucesso a essa mistura especificamente dialética entre ficção e não ficção
165
. Trata-se de
um filme de mediação pura onde o tema fornece a base de uma construção suscetível de tornar-se
forma ou mesmo estilo.
Recuperando do cordel a idéia de combate, de luta entre o bem e o mal, o filme recria essa
tradição emprestando-lhe novo significado. Presente em praticamente todos os ciclos da literatura
de cordel, a oposição Bem e Mal recebe dos poetas populares um tratamento moralista que será
recusado em Deus e o diabo voltado para uma proposta política da luta entre as duas forças.
Extremamente ambíguo, o filme não nos revela quais são os representantes do bem, quais são os
do mal. De qualquer forma, a sua estrutura é clássica no sentido da distribuição dos papéis, do
protagonista, ocupado por Manuel, do antagonista, por Antonio das Mortes, e dos adjuvantes por
Sebastião e Corisco. A partir daí se desenvolve a lógica do relato cuja construção remete à
literatura de cordel. A estrutura é simples: uma situação de equilíbrio inicial é perturbada pela
introdução de um elemento estranho que vai praticar inúmeros atos contra o herói antes que este
consiga finalmente se libertar voltando à condição de equilíbrio reinante no início da história.
164
A exemplo de Canudos, a comunidade cristã de Caldeirão, implantada no Crato, Ceará, no ano de 1936, foi
destruída pelas forças policiais que incendiaram o vilarejo.
165
Sobre a dialética ficção - não ficção, ver Noel Burch. « Réflexions sur le Sujet (2) – Sujets de non ficcion » in
Cahiers du Cinéma. n. 197, jan. 1968, p 82-85.
105
No folheto Juvenal e o dragão, citado no capítulo 1, a estrutura equilíbrio, desequilíbrio,
reequilíbrio, pode ser resumida da seguinte forma:
1
o
2
o
3
o
Equilíbrio desequilíbrio desequilíbrio desequilíbrio Reequilíbrio
Introdu-
ção do
protago-
nista:
Juvenal
Introdu-
ção dos
adjuvan-
tes: cães
Introdu-
ção do
primeiro
antagonis-
ta: dragão
Recurso
aos
adjuvan-
tes
Introdu-
ção do
segundo
antagonis-
ta:
cocheiro
Recurso
aos
adjuvan-
tes
Juvenal
vivia com
a irmã na
fazenda
do pai
Morte do
pai
Partida de
Juvenal
Encontro
com um
homem
que lhe
vende três
cachorros
Encontro
com a
princesa,
o cocheiro
e o dragão
Luta
contra o
dragão
ajudado
pelos
cães; a
princesa é
salva
Partida de
Juvenal
Traição
do
cocheiro
que, se
atribuindo
responsá-
vel pela
morte do
dragão,
deverá
casar com
a princesa
Luta de
Juvenal
contra o
cocheiro
ajudado
pelos cães
Para sal-
var a prin-
cesa do
casamen-
to indese-
jado
Casamen-
to de
Juvenal
com a
princesa
Em sua trajetória o herói vai passar por três provas, uma de ordem natural: a morte do pai,
que o leva a abandonar a casa e a irmã; e as outras duas surgidas ao longo do percurso: a luta
contra o dragão primeiro e, em seguida, a luta contra o cocheiro. Nesses dois casos, o objetivo é
salvar a princesa com quem o herói, como prêmio por sua extraordinária coragem, se casará no
final da história.
Típico relato de aventuras, a estrutura da história de Juvenal se repete em todos os
folhetos pertencentes ao ciclo heróico que, por sua vez, se subdivide em: 1) ciclo dos cangaceiros
– folhetos sobre Lampião e Antonio Silvino; 2) ciclos dos valentes – folhetos sobre corajosos,
tipos de capanga; 3) ciclo dos criminosos famosos – folhetos sobre Marreco e pistoleiros
conhecidos; 4) ciclo de outros heróis – folhetos sobre Roldão e Roberto do Diabo; 5) ciclo das
sátiras sociais e econômicas – folhetos sobre exploração econômica e carestia injustificada
166
.
166
Ronald Daus. Op.cit., p 22.
106
A construção, em Deus e o diabo, dos personagens de Manuel, Corisco, Antonio das
Mortes e Sebastião, é feita a partir de referências do mundo real às quais o filme incorpora
elementos de uma série de heróis dos sub ciclos já mencionados e de personagens de folhetos
pertencentes ao ciclo profético que ajudam, por sua vez, a delinear o perfil do beato. O filme trata
a matéria do cordel com ampla liberdade e independência. Mas a refundição é, já vimos, uma
característica da própria arte narrativa popular, e reencontraremos esta característica em Glauber
Rocha.
No filme, um dos elementos de definição do caráter dos personagens é a canção que, além
de envolvê-los em uma atmosfera de fábula, ajuda a orientar o olhar do espectador para esse ou
aquele ponto dos mesmos e a classificá-los de acordo com o momento de sua aparição no enredo.
1
a
prova 2
a
prova 3
a
prova
Introdução
do
protagonis-
ta: Manuel
Introdução
do primeiro
adjuvante:
Sebastião
Introdução
do antago-
nista:
Antonio
das Mortes
Introdução
do segundo
adjuvante:
Corisco
Retorno do
antagonista
Manuel e
Rosa
viviam no
sertão
Morte do
coronel,
seguida da
morte da
mãe
Partida de
Manuel e
Rosa
Conversão
de Manuel
ao grupo de
Sebastião
Extermínio
dos beatos
por
Antonio
das Mortes
Partida de
Manuel e
Rosa
Conversão
de Manuel
ao bando
de Corisco
Morte de
Corisco por
Antonio
das Mortes
Partida de
Manuel e
Rosa
Primeiro personagem a aparecer na tela, Manuel é comentado nos versos da canção que
deixam claro que ele é o personagem principal, objeto da narrativa que vai se desenrolar dali em
diante. O nome do personagem é central na definição da sua identidade: Manuel é nome de
vaqueiro, diz Corisco que, registrando sua entrada para o cangaço, o batiza como Satanaz. Na
primeira canção do filme seu nome é citado; além de lhe atribuir o papel de protagonista da
história, a canção também procura dar algumas pistas sobe a sua vida e o seu caráter. Por meio
107
dela ficamos sabendo que Manuel não é um vaqueiro acostumado a correr o mundo atrás de
aventura como os que povoam os folhetos de cordel. Sua vida, como, de modo geral, a de todo
sertanejo, é marcada pelo trabalho duro com a terra, à qual ele se sente preso pelo costume ou
talvez pela falta de opção (Manuel e Rosa viviam no sertão, trabalhando a terra com as próprias
mão...). O que a história de Manuel retém dos vaqueiros mitificados na literatura de cordel (o
ciclo do boi é bem expressivo a esse respeito) é a condição de mobilidade do personagem, o seu
perpétuo deslocamento.
A entrada de um segundo elemento na história vai precipitar esse processo apresentando
Sebastião como um dos responsáveis pela mudança que ocorrerá na vida do vaqueiro. O encontro
com Sebastião mexe com a sua percepção, dando-lhe a esperança de que algo poderia acontecer
para mudar sua miserável existência ( ...até que um dia, pelo sim, pelo não, entrou na vida deles
o Santo Sebastião. Trazia bondade nos olhos, Jesus Cristo no coração.). A descrição de
Sebastião (contradita pela imagem que mostra um olhar frio, distante
167
) continua mais adiante
quando o cantador, na feira, narra a sua história. Como informa a canção ele traz uma proposta de
salvação que condiz com as expectativas do vaqueiro naquele momento em que sua vida parece
não lhe oferecer outra saída (Sebastião nasceu no fogo no mês de fevereiro, anunciando que a
desgraça ia acabar com o mundo inteiro, mas que ele podia salvar quem estivesse ao lado dele
que era santo, que era santo, era santo e milagreiro.). A canção dá uma descrição de Sebastião
muito próxima das que circulam nos folhetos dedicados às profecias, normalmente voltados à
idéia de destruição, às ameaças de fim do mundo e às promessas de salvação. Sebastião encarna
perfeitamente essas idéias. Mas, ao contrário dos folhetos, onde a profecia, de um modo geral, se
apresenta como alternativa para um mundo ameaçado pelos costumes degenerados (devassidão,
protestantismo, corrupção etc.), no filme ela representa a promessa de um mundo livre da
108
injustiça e das privações, como resume o verso da canção (O sertão vai virar mar, e o mar virar
sertão).
O terceiro personagem a aparecer no filme é Antonio das Mortes acompanhado pela
canção que define seu papel como antagonista (Jurando em dez igrejas, sem santo padroeiro,
Antonio das Mortes, matador de cangaceiro...). Colocando-se contra os planos de Manuel, o
personagem do matador o impede de levar adiante, primeiro, sua experiência religiosa e, depois,
sua experiência no cangaço. Esta, porém, é apenas uma leitura superficial do personagem, que em
todos os aspectos, é o que menos semelhanças guarda com os anti-heróis dos folhetos. Na
literatura de cordel, o papel do anti-herói é o de instaurar um desequilíbrio na ordem inicial cujo
retorno ao equilíbrio dependerá da ação reformadora do herói. Percebe-se isso muito claramente
no folheto Juvenal e o dragão onde a paz só volta a reinar depois da intervenção de Juvenal que
vence o dragão e em seguida vence o cocheiro mentiroso. Esse não é absolutamente o caso de
Antonio das Mortes. Como antagonista, ele não será vencido pelo protagonista. Dando sua tarefa
por cumprida, após a eliminação de Corisco, ele simplesmente desaparecerá deixando para
Manuel a missão de encerrar a história. Por intermédio de Antonio das Mortes, a história de
Manuel toma um rumo inesperado, na medida em que sua ação elimina da vida do vaqueiro os
seus supostos salvadores, Sebastião e Corisco.
O personagem do cangaceiro ocupa a segunda parte do filme iniciada após o massacre de
Monte Santo. Perseguido implacavelmente por Antonio das Mortes, Corisco, o último
representante do cangaço depois da morte de Lampião, é definido, na canção, por sua coragem
em enfrentar o matador: (Se entrega, Corisco!), fala Antonio das Mortes. Corisco responde: (Eu
não me entrego não, eu não sou passarinho pra viver lá na prisão...). A canção, nesse aspecto,
incorpora um traço importante das histórias de cangaceiros que circulam nos folhetos: a idéia de
167
Comentário de Ismail Xavier no DVD citado.
109
liberdade, de autonomia face aos poderes vigentes. No primeiro capítulo esse ponto foi
mencionado quando nos referimos à construção do mito do cangaceiro na literatura de cordel e
como esse mito está relacionado com a realidade, na medida em que a liberdade que caracteriza o
cangaceiro face aos poderes instituídos o diferencia de todos os outros que vivem sob o poder de
mando. Em Deus e o diabo, essa dimensão é apropriada, fazendo de Manuel, protótipo do
indivíduo humilhado, o exato contraponto à figura de Corisco. Outra dimensão do cangaceiro
apropriada pelo filme dos personagens dos folhetos é a da violência enquanto demonstração de
coragem. Por outro lado, o filme trabalha a violência não apenas nesse nível, mas,
principalmente, enquanto potência de destruição. Tal como representada na cena da invasão da
fazenda durante a cerimônia de casamento, a violência comandada por Corisco, coloca em
evidência os símbolos do poder, da moral e da religião, promovendo uma inversão da ordem
dada. Em relação a Manuel, Corisco representa a última etapa da trajetória do personagem em sua
busca de salvação. Com a sua morte, Manuel torna-se um homem livre para decidir o seu destino.
***
Como a história de Juvenal, a de Manuel (tal como no esquema apresentado há pouco) é
constituída de três provas. A primeira, iniciada com a morte do coronel, atinge seu clímax com a
morte de sua mãe (Meu filho, tua mãe morreu. Não foi de morte de Deus, foi de briga no sertão,
de tiro que jagunço deu) e a decisão, tomada a partir desta, de seguir para Monte Santo para se
juntar ao grupo dos beatos de Sebastião. A segunda prova começa com o extermínio dos beatos
de Monte Santo (Da morte em Monte Santo sobrou Manuel vaqueiro por piedade de Antonio
matador de cangaceiro.) seguido de sua partida com Cego Júlio em direção ao acampamento de
Corisco onde ocorrerá sua conversão ao cangaço (Mas a estória continua, preste mais atenção,
andou Manuel e Rosa nas vereda do sertão, até que um dia pelo sim, pelo não, entrou na vida
110
deles Corisco, diabo de Lampião.). A terceira prova, decorrente da morte de Corisco, representa
o fim da sua experiência como cangaceiro acompanhada de um novo movimento de busca.
Ao contrário de Juvenal, Manuel não é movido pelo gosto da aventura. Ele é a encarnação
do homem simples cujo único objetivo é vender seu gado para comprar um pequeno pedaço de
terra. Mas os acontecimentos o impedem e ele deverá partir. Sua partida, contudo, não é motivada
pelo desejo de vingar a morte da mãe como acontece nas narrativas de cordel onde a morte de um
membro da família obriga o herói a seguir em seu encalço. No cordel, a honra do herói depende
de sua coragem para se vingar dos inimigos de sua família. É o que vemos, por exemplo, nos
folhetos dedicados a explicar como determinado cangaceiro entrou para o cangaço. Não é isso, no
entanto, que acontece com Manuel que abandona sua casa e seu pequeno mundo, simplesmente
porque não vê outra solução a não ser a de se juntar ao grupo liderado pelo beato. Sebastião
aparece como salvação e Manuel se agarra a essa possibilidade como a última que lhe resta. A
mesma sensação de abandono tomará conta do personagem quando o extermínio dos beatos o
obrigará a tomar outro rumo. Nesse ponto a solução é seguir os passos de Corisco, companheiro
de Lampião, morto dias antes pelos “macacos” do governo (Lampião e Maria Bonita, pensava
que nunca morria...). Nos dois casos estamos diante da idéia de conversão que corresponde, de
uma certa forma, à esperança de mudar de lado. Essa dimensão está presente nas narrativas
tradicionais, porém de uma forma diferente.
Nas novelas de cavalaria, a conversão estava ligada à vitória do fiel sobre o infiel que,
derrotado, era obrigado a assumir a religião do inimigo. Na literatura de cordel os termos
utilizados para caracterizar o mal permanecem vinculados ao ideário das Cruzadas, da
Reconquista, porém esvaziados do seu sentido religioso. O ‘turco’ ou o ‘mouro’ são
simplesmente os inimigos que, derrotados, permitem ao vencedor ocupar o lugar do herói. Mas,
111
apesar das diferenças quanto à motivação, tanto nas novelas de cavalaria quanto na literatura de
cordel, o mal ocupa um lugar definido e não resta ao herói outra alternativa a não ser combatê-lo.
Em Deus e o diabo, o mal é invisível. Sem condições de prevalecer, o bem assume um
caráter provisório encarnando ora em Sebastião, ora em Corisco que figuram como alternativa
naqueles momentos em que Manuel não vê outra saída a não ser a conversão. Esta, por outro
lado, representa não a vitória do bem mas, ao contrário, a do mal. Antonio das Mortes é um
instrumento a seu serviço. Rondando o sertão em sua obstinada procura (Procurando pelo sertão,
todo mês de fevereiro, o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro...), é ele quem vai
provocar, com a eliminação de Sebastião e Corisco, a segunda
reviravolta e a terceira na
trajetória de Manuel, obrigando-o, a partir de então, a seguir seu caminho sem a ajuda de Deus ou
do Diabo. A canção entra para selar seu compromisso com o novo: ( ... a terra é do Homem, não
é de Deus nem do Diabo). Nesse ponto o relato chega ao fim mas não a jornada de Manuel na
medida em que, a partir daí, o seu caminho está literalmente aberto.
***
Tomando como referência o contexto ideológico de Deus e o diabo, não poderíamos
supor que a literatura de cordel tivesse no filme uma transposição literal como, no caso, das
adaptações literárias (em geral caracterizadas por uma certa compatibilidade entre o ponto de
vista do escritor e o do cineasta). Como imaginar que a história de Manuel, caso adaptada
fielmente da literatura de cordel, tivesse a ressonância, entre o público cinéfilo, que teve a
adaptação digamos, quase fiel, do romance de Graciliano Ramos por Nelson Pereira dos Santos.
Tanto no romance quanto no filme prevalece o ponto de vista da arte culta que também informa o
desenvolvimento do enredo, ou seja, o modo de contar a história. Nesse caso, justifica-se a
proximidade do filme com o texto literário. O mesmo não acontece em relação a Deus e o diabo,
inspirado num universo literário a princípio estranho em sua proposta aos objetivos do filme.
112
Em Glauber Rocha, a tentativa de retratar o sertão (tanto em Deus e o diabo quanto em O
dragão da maldade) é marcada por um movimento de aproximação e ao mesmo tempo de
negação da tradição. Glauber incorporou da literatura popular alguns elementos da arte de contar,
mas o fez através de um procedimento não inteiramente compatível com o característico daquele
literatura. Um dos pontos de afastamento, diz respeito ao exagero, à tendência à fantasia
desmedida que predomina na literatura popular. O outro ponto que o filme rejeita do universo da
poesia popular é a idéia de final feliz. Quanto às diferenças e semelhanças existentes entre os
personagens do filme e os seus equivalentes no cordel (o vaqueiro, o beato, o matador e o
cangaceiro), estas estão ligadas ao tratamento dado pelo cineasta às idéias de bem e mal que no
filme não assumem características tão definidas quanto no cordel.
A ambigüidade é a tônica do filme que, por outro lado, é atravessado por uma grande
simplicidade no que diz respeito ao modo de contar a história, modo esse que determina a
caracterização dos personagens. No caso de Deus e o diabo, há uma incorporação da tradição do
cordel no nível de sua estrutura básica sendo o início da história, como em muitos folhetos,
marcado pela separação do protagonista do meio original, separação que instaura um
desequilíbrio gerador de diversas conseqüências. Ainda que estas conseqüências difiram de um
relato para o outro, o modo de introduzi-las, tanto no filme quanto nos folhetos, é praticamente
idêntico, ou seja, através da entrada em cena de um personagem que ocupará o papel de
antagonista e que vai aparecer n vezes no caminho do herói para atrapalhar seus planos, desviar-
lhe de seus caminhos, obrigando-o a persistir, a lutar por seus objetivos. Isso significa que o papel
do herói só se define a partir de sua atuação em relação ao anti-herói.
113
Baseado nos estudos de análise estrutural de Vladimir Propp, André Gardies
168
chamou a
atenção para o conjunto de operações que colocam em evidência a lógica do relato. Segundo ele,
todo relato breve como, por exemplo, o conto, comporta uma estrutura (equilíbrio, desequilíbrio,
reequilíbrio), que não se aplica a relatos mais complexos como o romance ou o filme de longa-
metragem. O que é interessante em Deus e o diabo é a adoção da estrutura de um relato breve em
uma obra de características complexas como é o caso do filme em questão.
No que se refere aos personagens, tal estrutura (baseada na estrutura da poesia popular)
permite a construção de tipos, cuja definição depende mais do lugar que ocupam em relação aos
outros do que de suas marcas individuais.
Isto se deve, segundo Mircea Eliade, ao fato de que a memória coletiva não
retém facilmente eventos ‘individuais’ e figuras ‘autênticas’, mas funciona
através de estruturas diferentes: retém categorias, ao invés de acontecimentos, e
arquétipos, em lugar de personagens históricas.
169
Como nas fábulas ou nas narrativas míticas, os personagens de Deus e o diabo,
representam entidades, ou melhor, representam forças em permanente confronto. Manuel é uma
espécie de vetor dessas forças conflitantes. A sua atuação vai determinar o sentido das demais
atuantes no relato, no caso, as relacionadas ao beato, ao matador e ao cangaceiro.
Ainda que inspirados em personagens históricos, Sebastião, Antonio das Mortes e
Corisco, não são representados segundo o que seria a sua suposta identidade, mas como
personagens míticos, emblemas de uma tradição que não cessa de inventar outros significados.
Glauber Rocha apenas acrescenta um elo nessa interminável cadeia, criando, a partir de
personagens reais ou fictícios, a sua própria tradição.
170
168
André Gardies. Op.cit., p 32.
169
Lêda Tâmega Ribeiro. Mito e poesia popular. Rio de Janeiro, FUNARTE / Instituto Nacional do Folclore, 1986, p
82.
170
Sobre o tema há uma análise interessante sobre o personagem de Cleópatra no filme Les carabiniers de J. L.
Godard. No filme de Godard, Cleópatra, interpretada por Catherine Ribeiro, olha uma foto de Liz Taylor no filme
Cleópatra de Mankiewicz. Ao contrário da personagem de Godard (que não possui as propriedades de Cleópatra –
114
Ao contrário do cordel, onde a vitória do herói representa o desfecho da história, em Deus
e o diabo, a luta permanece mesmo depois de encerrado o relato. No folheto de João Martins
Athaíde, Juvenal, depois de vencer o cocheiro, casa-se com a princesa tornando-se o único
herdeiro do reino. No filme, Manuel, depois da terceira prova a que é submetido, parte em busca
de uma nova oportunidade. No primeiro caso o bem vence o mal. No segundo ele aparece como
esperança, como um ponto no fim de um caminho que o herói ainda não acabou de percorrer.
O final que Glauber Rocha deu ao seu herói é marcado por um movimento duplo em
relação à tradição: de negação, na medida em que este carrega uma proposta, ausente na poesia
popular, de transformação do vivido, e de aproximação no que diz respeito à idéia de busca
contínua. Apropriada do universo cavalheiresco, o mecanismo da busca, presente na literatura de
cordel tanto no ciclo heróico quanto no profético, sintetiza-se em Deus e o diabo na imagem da
corrida de Manuel pelo sertão. Não há, contudo, um ponto de chegada, nenhuma princesa à sua
espera, nenhum reino ao seu dispor. Da busca, empreendida por Manuel desde os primeiros
momentos da história, o filme não nos permite concluir senão que ele continuará buscando.
171
Apesar de não render homenagem a Sebastião, o filme acaba por se colocar na perspectiva
do personagem, no que diz respeito ao discurso por este proferido. Baseado na esperança, na
idéia de um porvir utópico, esse discurso, que atravessa todo o filme na imagem da busca de
Manuel, assume no final a sua completa configuração. Assim, a figura profética, apresentada no
início do filme atinge, no final, a sua realização.
Tônica de Deus e o diabo, o sebastianismo, encontra seu lugar ao lado dos ideais políticos
em voga na época da realização do filme. Combinando profecia e revolução Glauber Rocha dá ao
personagem histórico) a Cleópatra de Mankiewicz, possui as propriedades do personagem histórico. Dessa forma
Godard faz alusão ao mito da imagem cinematográfica ao mesmo tempo em que continua a reproduzi-lo. A análise
foi feita por Nicole Mourgues. « Le nom du personnage filmique » in Iris (Cinéma & Narration), n. 8, 2
o
semestre
1988, p 55-69.
171
Ponto de vista defendido por Ismail Xavier in Op.cit., 1983.
115
seu enredo uma solução que representa uma submissão aos ideais do cordel e ao mesmo tempo
uma traição em relação a estes.
2.6- Elaboração do ponto de vista narrativo
Ponto de partida de Deus e o diabo, a idéia de revolução recebe, no filme, um novo
sentido e deixando de representar o objetivo (como no discurso ortodoxo) passa a significar o
percurso, a trajetória, o caminho. A idéia de caminho é, na verdade, muito forte no filme.
Primeiro Sebastião cruza o caminho de Manuel. Mais tarde, é Cego Júlio quem aparece para levá-
lo até Corisco. No final um outro caminho se abre à sua frente. Em todos os casos, o personagem
caminha em direção à etapa seguinte, abrindo novos rumos para o desenvolvimento da intriga.
Pontuada pelo imprevisível, pelas possibilidades que se descortinam em cada uma de suas
etapas, a trajetória percorrida pelo personagem representa um aprendizado incompleto, uma
experiência inacabada. O que vai acontecer depois? O filme não se propõe a explicar. É como a
história narrada por Heródoto cuja apreensão depende da atitude do receptor. Conta o historiador
grego que o rei egípcio Psammenit, ao ser levado para o cativeiro, foi obrigado a presenciar o
cortejo triunfal dos persas onde viu sua filha reduzida à condição de criada, seu filho caminhando
para ser executado e, por fim, um de seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos. O
rei, que até então tinha se mantido impassível, diante dessa última visão, golpeou a cabeça com
os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.
Montaigne alude à história do rei egípcio e pergunta: porque ele só lamenta
quando reconhece o seu servidor? Sua resposta é que ele ‘já estava tão cheio de
tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas’. É a
explicação de Montaigne. Mas poderíamos também dizer: ‘O destino da família
real não afeta o rei porque é o seu próprio destino’. Ou: ‘muitas coisas que não
nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um
ator’. Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos.
172
172
Walter Benjamin. Obras Escolhidas I : Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1993, p 204.
116
Traço da narrativa tradicional e condição de sua durabilidade, a ausência de explicações é
o que faz com que, depois de milênios, ela continue a suscitar espanto e reflexão.
Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que
as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador
renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na
memória do ouvinte, mais completamente ele a assimilará à sua própria
experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um
dia.
173
A narrativa, em geral, rejeita a finalização. Incompleta por natureza, seu interesse é
despertar no ouvinte o desejo de ouvir contar de novo.
***
Ao contrário do romance, cuja prática remete ao indivíduo isolado, a experiência
transmitida pelo narrador, inscrita numa temporalidade comum a várias gerações, implica a
existência de uma comunidade narrativa. Fonte da narração tradicional, a continuidade entre o
passado e o presente, que tornava possível o intercâmbio de experiências (base da
inteligibilidade), já não existe mais. Autor preocupado com o fenômeno, Walter Benjamin dedica
sua obra à problemática do declínio da experiência, analisada mais detidamente nos ensaios
Experiência e pobreza (1933), O narrador (1935/1936) e A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica (1936)
174
.
Se a problemática da perda da experiência preocupa tanto a Benjamin não é porque ele
está interessado em nos chamar de volta para uma continuidade perdida. Apesar do tom
nostálgico do pensador, seus escritos se voltavam para os processos de fragmentação crescente
com o objetivo de tirar dali algo que não pudesse ser apoderado pelos novos meios de dominação.
No centro dessa reflexão está a preocupação de Benjamin com o uso do cinema como
173
Ibid.
174
Os três ensaios estão incluídos em ibid.
117
instrumento de propaganda nazista. Mas a “estética da guerra” não era, para ele, a única
possibilidade da arte condicionada pela técnica.
O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais
intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo [grifos do autor].
Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que
experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico, e
como as experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem
social vigente.
175
Negando a idéia de aura, a atitude contemplativa que caracterizava a arte do passado,
Benjamin vê o cinema como a arte própria da modernidade. Escrito quase que simultaneamente
ao ensaio sobre O narrador, o texto sobre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
trata, a exemplo daquele, do fenônemo da perda de tradição. Pois o mesmo processo que resultou
na crise da narrativa, elevou o cinema, cujo fundamento é a própria reprodução, à condição de
arte da modernidade. Relacionado ao desenvolvimento da sociedade de massa, esse processo,
contudo, se caracteriza não pelo fim da tradição, mas por uma nova forma de lidar com o legado
cultural. Benjamin fala em “liquidação do valor tradicional do patrimônio da cultura”.
Esse fenômeno é especialmente tangível nos grandes filmes históricos, de
Cleópatra e Ben Hur até Frederico, o Grande e Napoleão. E quando Abel Gance,
em 1927, proclamou com entusiasmo: “Shakespeare, Rembrant, Beethoven,
farão cinema.... Todas as lendas, todas as mitologias e todos os mitos, todos os
fundadores de novas religiões, sim, todas as religiões... aguardam sua
ressurreição luminosa, e os heróis se acotovelam às nossas portas”, ele nos
convida, sem o saber talvez, para essa grande liquidação.
176
A citação anterior revela o descrédito do pensador em relação a certos filmes históricos e
o uso que estes fazem das tradições, dos mitos. Para Benjamin o cinema não retoma, exatamente,
a tradição mas a reinventa realizando um processo, a um só tempo, destrutivo e criativo. Em
resumo, o cinema produz suas imagens a partir das ruínas da tradição. E o faz recuperando
inclusive a arte de narrar, segundo Benjamin, ameaçada de extinção devido à perda da
175
Ibid. p 192.
176
Ibid. p 169.
118
experiência. É claro que a narrativa cinematográfica não prescinde da experiência; ela, na
verdade, conta com uma experiência de outro tipo: a chamada “experiência do choque”.
O interesse em trazer Benjamin para nossa discussão foi mostrar que o declínio da
experiência, que marcou a entrada na modernidade
177
, não significou o fim da prática narrativa
como indica o autor nos ensaios dedicados a Kafka e Proust
178
.
Referindo-se a Kafka, Benjamin fala em “doença da tradição”
179
para indicar que é
justamente em cima de uma ‘tradição agonizante’
180
que a obra do escritor tcheco se constitui. O
mesmo em relação a Proust para quem a narrativa estava condicionada não à lembrança do
passado, mas ao esquecimento deste. Na narrativa proustiana, o passado é objeto de uma
memória ‘involuntária’ que recupera não a totalidade do vivido, mas os seus fragmentos.
A noção de fragmento nos coloca diante de uma nova prática narrativa; uma narrativa que
pressupõe um modo de contar diferente, mas que, da mesma forma que a narração tradicional,
evita as explicações, o acabamento. Sua característica básica é a idéia (resumida nos títulos de
Kafka e Proust) de processo, de busca.
Benjamin não deixa muito claro, mas podemos deduzir do conjunto de seus escritos que o
cinema é a arte que recupera para a modernidade a prática da narração. Glauber, que
provavelmente desconhecia as idéias de Benjamin, parece seguir as reflexões do pensador.
Quanto ao problema da narração cinematográfica, alguns teóricos têm se dedicado ao assunto,
discutindo o ponto de vista dominante segundo o qual a narração se restringe “à expressão oral ou
escrita de um acontecimento real ou imaginário”
181
. Contrariando esse pressuposto, os estudos de
177
No sentido benjaminiano, a modernidade é associada ao progresso técnico e ao desenvolvimento de novas
relações sociais e novos modos de percepção
178
Walter Benjamin. « A imagem de Proust » e « Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte » in
Op.cit., 1993.
179
Conforme comentário de Jeanne Marie Gagnegin. Op.cit., p 76.
180
Ibid.
181
Gaudreault e Jost. Op.cit., p 17 (trad. S.R.B.N.).
119
narratologia cinematográfica incluem o cinema na esfera da narração observando, evidentemente,
a especificidade desta em relação à forma escrita ou oral.
182
Apesar do seu caráter eminentemente narrativo, o cinema, de um modo geral, recusa a se
revelar como narração, fazendo supor que o que existe na tela independe de alguém que o faça
existir como tal. Essa instância que, embora normalmente invisível, nos dá a ver o que está sendo
mostrado, é o narrador, que em cinema é, de fato, um “mostrador”. Isso significa, em última
análise, que o cinema conta mostrando. Mas como ele conta? Como as imagens em movimento
produzem significado?
Através do narrador, a imagem nos mostra alguma coisa. Mas o faz a partir de um
trabalho de composição que pressupõe, além da imagem filmada, a montagem e a sincronização
do som (música, barulhos, diálogos e a voz off do narrador). O que me parece central em relação
ao filme de Glauber Rocha que analisamos é que neste assiste-se ao esforço do cineasta em
associar a narração, no caso, à voz do narrador, à experiência da “mostração”. Deus e o diabo na
terra do sol faz questão de colocar o espectador diante de um relato. Mais do que isso, de colocá-
lo diante da figura do narrador que aparece como elemento de construção do relato.
Em certos filmes o narrador, ocupando o papel de um personagem, é identificado no
interior do relato. Em Deus e o diabo isso também ocorre. A diferença é que, nesse caso, o
narrador não apenas aparece no campo visual mas aparece para contar (por meio da canção) o
que está sendo mostrado (por meio das imagens). Nesse filme, a voz off do cantador não se
encontra separada das imagens como acontece, por exemplo, em Sunset Boulevard, A noite de
182
« Como copreender, por exemplo, a maneira pela qual os filmes se endereçam ao espectador ? Posso traduzí-lo
pela fórmula "alguém me fala "? Ao contrário, tenho, frequentemente, a sensação de que os objetos que vejo na tela
estão ali por eles mesmos, como se eles próprios se dessem a ver. Eu os vejo porque eles estão ali, mas dizendo isto
eu esqueço que se eles estão ali é porque alguém os mostra. » (trad. S.R.B.N.) André Gardies. Op.cit., p 119-120.
120
São Lourenço e Amuleto de Ogum, que, conforme apontado mais atrás, também fazem uso da voz
off comentadora.
Lembrando que a imagem é produto de um agenciamento narrativo, o papel dos
narradores nesses filmes é o de mediação entre a fala e a imagem. Neles se observa a tentativa de
colocar em relevo a questão da narração mas, apesar do tratamento de certo modo inovador, a
dicotomia entre o contar e o mostrar permanece. Na análise que fizemos anteriormente, tivemos
oportunidade de observar como em cada um dos referidos filmes o contar se dissocia do mostrar.
Em outras palavras, a narração se interrompe num determinado ponto do enredo, sendo
substituída pelas imagens que, a partir de então, assumem a tarefa de continuar a história iniciada
pelo narrador, ou melhor, pelo suposto narrador uma vez que, nos três casos citados, o
personagem que interpreta o narrador, não é o verdadeiro responsável pela narração. No caso de
Deus e o diabo, o personagem do cantador não só ocupa o papel de narrador como também o de
mostrador. Não é, no entanto, o seu ponto de vista (devemos lembrar que ele é cego) que orienta
o nosso olhar, mas a sua voz que guia o nosso percurso. Repetindo a história, conduzindo o
espectador pelos caminhos percorridos por Manuel e Rosa, sua presença é central na condução do
enredo.
A presença de uma instância narradora no campo diegético nos é informada numa das
primeiras cenas do filme quando ouvimos a voz de um cantador anunciando a história que será
objeto do enredo que se inicia. Trata-se da voz off que acompanha Manuel enquanto este se
depara pela primeira vez com o grupo guiado por Sebastião em sua peregrinação pelo sertão. O
cantador não aparece no campo visual, mas sabemos, de antemão, que ele é detentor de um saber
que será revelado mais adiante. Sua condição de narrador nos é, de fato, informada na cena da
feira quando vemos um cantador dedilhando sua viola. Ele ainda não se dá a ver ao espectador
que observa apenas sua imagem parcial misturada no meio do povo que ouve a sua história sobre
121
o beato Sebastião. Incluída no filme a título de informação, a cena nos revela que a voz que
tínhamos ouvido antes, na ocasião da apresentação de Manuel, não é uma voz do além; é uma voz
que pertence a alguém que conhece a história que está sendo contada. Pouco a pouco, por meio
da sucessão de imagens, aquele universo anunciado pelo cantador vai tomando forma e a história
de Manuel, personagem apresentado na primeira canção, vai se encontrar com a de Sebastião,
comentado na segunda.
Durante toda a primeira parte do filme a presença do narrador é mais sugerida do que
visível. Sabemos que é ele quem conduz a história. Com a canção, sua voz interfere nos
momentos decisivos informando ao espectador o modo de compreender os personagens, a sua
atuação na trama. A recepção do filme depende, portanto, em grande parte da canção. E não
apenas das informações de ela contém, mas, também, do seu tom, do seu ritmo que criam uma
certa ambiência
183
ao campo visual. Os efeitos produzidos pelo ritmo mais lento ou mais
acelerado da canção imprimem na imagem um nível de informações altamente subjetivo mas
certamente eficaz no sentido de conduzir a compreensão. E nesse aspecto, a canção, que funciona
como uma narração, diferencia-se desta em termos do modo de orientar a percepção do
espectador. Muito menos determinada que a narração convencional, a canção imprime um certo
nível de sensações, sugere determinados estados de espírito, mas não nos convence de nada,
deixando-nos livre para decidir sobre o sentido do narrado.
***
183
Em entrevista, Jacques Le Goff (Op.cit. p 265) comenta sobre a importância do romance Ivanhoé de Walter Scott
em seus escritos sobre a Idade Média. Essa obra, diz Le Goff, « não só me levou a amar a Idade Média do ponto de
vista da "cor local", mas me reforçou a opinião que há um certo número de fenômenos essenciais que em grande
parte explicam como viveram os homens, como funcionaram as sociedades ». Da mesma forma que ‘cor local’ da
Idade Média de Le Goff provém, entre outros elementos, do romance de Walter Scott, a ‘cor local’ (ambiência) do
sertão de Glauber Rocha é dada, em grande medida, pela canção que criou um determinado clima para o
desenvolvimento do enredo.
122
Tentamos, ao longo deste capítulo, mostrar como a canção (em termos do ritmo, da
construção da temporalidade, da definição dos personagens) é fundamental para a compreensão
do filme. É através dela que Manuel, personagem desprovido de atos que o identifiquem com o
papel do herói, tem a oportunidade de ter sua história contada
184
. E mais, de ter sua história
lançada em direção ao futuro como, por exemplo, na cena final onde a canção é fundamental para
transformar a sua corrida pelo sertão em um movimento em direção ao novo (Tá contada minha
estória, verdade e imaginação. Espero que o sinhô tenha tirado uma lição: que assim mal
dividido esse mundo anda errado, que a terra é do Homem, não é de Deus nem do Diabo).
Enfim, a canção, tal como tentamos argumentar, pontua o filme narrando com palavras e sons a
história contada por meio das imagens. Os dois processos se resumem no personagem do
narrador que, nesse caso, é também o mostrador (contrariando as convenções cinematográficas
que fazem deste uma instância invisível)
185
. Pois, se na primeira parte do filme, ele participa
como uma espécie de comentador anônimo, na segunda ele entra na condição de personagem. E é
a partir daí que se inicia sua atuação como mostrador. Atravessando o sertão junto com Manuel e
Rosa, Cego Júlio não apenas funciona como guia do casal em direção a Corisco, mas, também,
como guia do espectador que, a partir de então, passa a acompanhar seus passos ao longo do
percurso que faz entre os personagens que compõem a trama. O aprendizado de Cego Júlio é
também o nosso. Ele representa, apesar de referir-se a acontecimentos passados, o aqui-e-agora
dos acontecimentos mostrados. Quando Corisco o chama para lhe contar sobre as circunstâncias
184
Colocar no centro do relato histórico um personagem ‘insignificante’ é característico da chamada história das
mentalidades. Tal procedimento é exemplar em Carlo Guinzburg. O queijo e os vermes. São Paulo, Companhia das
Letras, 1987. Nesse livro o historiador se dedica à história do moleiro Menocchio, acusado de heresia pelo Tribunal
do Santo Ofício. No prefácio à edição italiana, o autor comenta sobre sua opção : « No passado, podiam-se acusar os
historiadores de querer conhecer somente as "gestas dos reis". Hoje, é claro, não é mais assim. Cada vez mais se
interessam pelo que seus predecessores haviam ocultado, deixado de lado ou simplesmente ignorado. "Quem
construiu Tebas das sete portas ?" – perguntava o "leitor operário"de Brecht. As fontes não nos contam nada
daqueles predreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo seu peso. »
185
A respeito da relação narração / mostração no cinema ver a citação correspondente a nota 182.
123
da morte de Lampião nós, que assistimos ao filme, aprendemos junto com ele sobre o ocorrido.
Também o relato feito por Antonio das Mortes ao Cego, não se endereça a nós, mas usufruímos
as informações passadas que nos ajudam a compreender melhor o perfil do personagem. E assim,
ao longo de toda a segunda parte do filme, a presença do personagem costura a história
indicando, ou melhor, selecionando o que devemos conhecer.
Outro ponto que merece atenção nessa segunda parte do filme é a voz off do personagem
que soa fora de campo no mesmo momento em que sua imagem aparece no campo
186
. Tal
dualidade, na qual o narrador está dentro e ao mesmo tempo fora da história contada, remete à
noção de impessoalidade da fala. Isso significa que o narrador fala pelos outros a partir dos dados
da sua própria experiência, no caso, a experiência de quem presenciou os acontecimentos que
estão sendo narrados. Esse, aliás, é um traço da narrativa tradicional. Como forma de
comunicação artesanal “ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada
como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida
retirá-la dele”
187
. É o caso de Cego Júlio que conta/canta aquilo que testemunhou. A história
seria, nesse caso, a repetição no presente de algo vivido no passado. Já falamos disso quando
comentamos sobre a dupla temporalidade. Apoiada na defasagem temporal entre o contar
(referido ao passado) e o mostrar (situado no presente das imagens em movimento), a duplicidade
do filme, em termos de níveis narrativos, coloca em evidência um procedimento típico da poesia
oral: a repetição do passado no presente a partir da prática de transmissão.
Em Deus e o diabo, Glauber Rocha fez da narração a matéria do filme que é em todos os
sentidos uma apologia ao ato de contar. Em Glauber, assim como em Kafka e Proust, o contar,
186
Levando em conta a ambigüidade do personagem, deve-se também considerar que a voz que entoa as canções
(supostamente cantadas pelo personagem de Cego Júlio) não é a mesma voz que profere as falas do personagem que
representa o cantador. Num caso trata-se da voz de Sergio Ricardo. No outro da voz de Marrom, ator que interpreta
Cego Júlio.
187
Walter Benjamin. Op.cit., 1993, p 205.
124
“nasce justamente desta contradição essencial entre o perecer da memória e o desejo de
conservar, de resguardar, de salvar o passado do esquecimento”
188
. Próximo da profecia, em seu
impulso utópico de salvação, o contar indica, “paradoxalmente, o caminho de uma esperança
possível – mesmo se ela não existir para nós.”
189
188
Jeanne Marie Gagnebin. Op.cit., p 81.
189
Ibid. p 78.
125
Capítulo 3
O dragão da maldade contra o santo guerreiro: a encenação do desafio
“Todos os fatos e personagens de grande importância
na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes:
a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”
190
O segundo filme de Glauber Rocha dedicado à temática sertaneja, não é apenas um
retorno às questões apresentadas anteriormente, em Deus e o diabo na terra do sol, mas aos
mesmos personagens que reaparecem como efeito de encenação ou na imaginação do herói que
surge como que por encanto para retomar a luta de seus predecessores.
O monólogo de Coirana, proferido em uma das primeiras cenas de O dragão da maldade
contra o santo guerreiro quando o personagem, junto com um bando de cangaceiros e beatos,
invade a cidade de Jardim das Piranhas, lembra uma representação teatral: Eu vim aparecido.
Não tenho família nem nome. Eu vim tangendo o vento pra espantar os últimos dias da fome. Eu
trago comigo o povo desse sertão brasileiro e boto de novo na testa um chapéu de cangaceiro.
Quero ver aparecer os homens dessa cidade, o orgulho e a riqueza do Dragão da Maldade. Hoje
eu vou embora mas um dia eu vou voltar. E nesse dia, sem piedade, nenhuma pedra vai restar.
Porque a vingança tem duas cruz. A cruz do ódio e a cruz do amor. Três vez reze padre-nosso,
Lampião Nosso Senhor !
Como espaço da dúvida, do impasse, do encontro catastrófico entre o antigo e o novo, o
sertão, na representação de 1964, pode ter alguma relação com o modelo da tragédia. Mas, o
filme de 1969, é uma forma de expressão diferente. Marcado pelo descompasso entre uma
126
aspiração e uma realidade desencantada, O dragão da maldade contra o santo guerreiro se situa
numa encruzilhada entre os ideais estéticos do Cinema Novo e alguma coisa outra.
3.1 - Desafio e performance popular (a participação do público)
Presentes em Deus e o diabo na terra do sol, a esperança, a utopia, a mistura de mito, de
conto, de fábula e de história, desaparecem em O dragão da maldade contra o santo guerreiro
onde a ilusão, como observou Walter Benjamin a respeito do drama barroco, “deixa o mundo
para se refugiar no palco”
191
. Caracterizado pela retomada crítica de certos mitos do cinema, esse
filme é uma espécie de continuação do primeiro grande sucesso de Glauber Rocha, voltado, nesse
caso, para a figura de Antonio das Mortes que reaparece para cumprir sua clássica tarefa de
matador de cangaceiro.
Retirado de seu antigo ofício, o ex-jagunço é procurado por Matos, delegado de Jardim
das Piranhas, que o informa sobre a existência de cangaceiros em sua jurisdição. Antonio, fiel à
sua vocação, decide ir até a localidade para verificar o que lhe dissera o delegado, mas a sua
presença contraria o dono do poder local. Velho e cego, coronel Horácio é o aliado de Matos em
sua pretensão ao cargo de prefeito, pretensão essa que ele considera ameaçada pelos beatos e
cangaceiros instalados nas redondezas. Da encosta do morro, o grupo, liderado por Coirana, pela
Santa e pelo Negro Antão, observa a cidade esperando para invadi-la. Quando eles entram
cantando e dançando, Antonio das Mortes aparece na praça. Em silêncio, o coronel observa,
acompanhado por seu guia Batista, sua mulher Laura e seu aliado Matos. Beatos, cangaceiros e o
povo da vila, sentados no chão, formam um grande círculo. No centro, Antonio das Mortes e
Coirana andam também em círculos. Eles se encaram e depois de alguns instantes, Coirana
190
Karl Marx. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, p 17.
191
Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão. São Paulo, Brasiliense, 1982.
127
resolve falar: Tenho mais de mil cobrança pra fazer, mas se eu falar de todas a terra vai
estremecer. Quero só cobrar as preferida do testamento de Lampião. Quem é homem vira
mulher, quem é mulher pede perdão. Prisioneiro vai ficar livre, carcereiro vai pra cadeia.
Mulher dama casa na igreja com véu de noiva na Lua cheia. Quero dinheiro pra minha miséria,
quero comida pro meu povo, se não atenderem meu pedido vou vortar aqui de novo.
Antonio responde ao desafio, lançando ao adversário uma pergunta provocativa : Tu é
verdade ou é assombração? Diga logo, cabra da peste! Eu de minha parte não acredito nessa
roupa que tu veste.
Coirana responde com uma nova pergunta e uma nova ameaça: Primeiro diga você seu
nome, fantasiado. Quem abre assim a boca fica logo condenado.
Antonio diz o seu nome e, em seguida, desfecha o golpe final às ameaças do oponente :
Pois aprepare seus ouvido e ouça. Meu nome é Antonio das Morte, pra espanto da covardia e
desgraça da sua sorte. Mas uma coisa eu digo: no território brasileiro, nem no Céu nem no
Inferno, tem lugar pra cangaceiro.
Realizado antes da luta na qual o cangaceiro sairá mortalmente ferido, o duelo verbal
entre Coirana e Antonio das Mortes lembra a prática do desafio, comum em algumas regiões do
Nordeste. Também conhecido como cantoria, repente ou peleja, o desafio é uma performance
oral normalmente cantada que tem como base a improvisação. Idelette Muzart o caracteriza como
“poesia do instante” já que aí a criação se faz no momento da realização do embate entre os dois
poetas
192
. Ao contrário do romance de cordel no qual a criação é anterior à sua reprodução pelo
folheto, o desafio, embora algumas vezes recriado por escrito e impresso nos meios tradicionais,
é uma espécie de jogo verbal onde dois oponentes se enfrentam em falas alternadas, durante
horas, às vezes durante dias, até que um, ao deixar o outro sem resposta, é considerado vencedor.
128
É o que acontece com Zé Pretinho que, num trava línguas especialmente difícil, se vê
impossibilitado de retrucar à charada de Cego Aderaldo.
Cego Aderaldo: Amigo José Pretinho / eu não sei o que será / de você no fim da luta, /
porque vencido já está. / Quem a paca cara compra, / paca cara pagará.
Zé Pretinho: Cego, estou apertado / que só um pinto no ovo, / estás cantando aprumado /
e satisfazendo o povo / este teu tema de paca / por favor, diga de novo.
A peleja entre os dois cantadores, reproduzida por José Bernardo da Silva no folheto
Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho, toca em um ponto importante do desafio: a presença
de um público que interfere na evolução da cantoria. Seja torcendo por um dos cantadores (o que
intimida o adversário e precipita sua derrota), seja sugerindo glosas
193
(cujo objetivo é testar a
perícia dos dois poetas), a participação do público é fundamental para a completa realização da
performance.
No filme que ora estudamos, o diálogo com a cantoria, se manifesta no início da narrativa
quando Coirana se apresenta ao povo de Jardim das Piranhas nos termos da tradição popular
sertaneja. Trata-se de um verso rimado (citado no começo deste capítulo) por meio do qual o
personagem entra na história, falando sobre sua origem e o motivo de sua aparição: Eu vim
aparecido / não tenho família nem nome. / Eu vim tangendo o vento / pra espantar os últimos
dias da fome....
Muito comum nas cantorias nordestinas, essa fala que antece o desafio serve para
introduzir o tema e para que cada um dos participantes tenha oportunidade de exaltar sua
192
Idelette Muzart. Op.cit., 1997, p 27.
193
A glosa (ou mote) é um verso ditado pelo público que deverá ser retomado pelo cantador no último verso da
estrofe cantada in Idelette Muzart. Op.cit., 1999, p 121.
129
reputação como cantador: Eu sou Claudino Roseira, / aquele cantor eleito ; / conversa de
Presidente, / barba de Juiz de Direito, / honra de mulher casada ; / só faço verso bem feito.
194
À apresentação dos cantadores, segue-se o desafio propriamente dito. Neste, as ameaças e
insultos são acompanhadas das provas de conhecimento dos cantadores e da capacidade dos
mesmos em lidar com as modalidades e convenções do gênero. “Aqui, a noção de originalidade,
tal como a veicula a cultura letrada, é quase totalmente ausente, sendo a criação não inovação
mas variação a partir de um modelo dado”
195
. O importante, nesse caso, é a habilidade do
cantador em aliar a criatividade ao já conhecido pelo público que assim participa mais ativamente
da performance.
***
Em O dragão da maldade, a ênfase na participação do público é um aspecto que deve ser
ressaltado. Consideremos, por exemplo, duas cenas já comentadas: a de Coirana em sua entrada
em Jardim das Piranhas e a do duelo entre este e Antonio das Mortes; nessas cenas, a presença do
povo, entoando cânticos e batendo palmas, nos lembra que estamos diante de uma representação,
de uma performance.
Quais são as características desse tipo de performance? Paul Zumthor
196
as analisa
ressaltando a importância da voz e dos gestos dos participantes por um lado e a situação de escuta
por outro. Ação dupla entre emissor e receptor, a performance oral se processa a partir de uma
série de meios (o modo de recitação de certos cantos impostos pelo costume, o ritmo lento ou
rápido de uma melodia, as repetições e os gestos que a acompanham) que formam um contexto,
uma situação de comunicação “culturalmente motivada”. Isso significa que o tempo e o lugar
onde ocorre a performance não são indiferentes. Ela acontece, normalmente, em lugares e datas
194
Citado por Idelette Muzart. Op.cit., 1997, p 31.
195
Ibid., p 33 (trad. S.R.B.N.)
130
fixas determinadas pela tradição, em circunstâncias da vida privada ou pública, importantes de
alguma maneira ao destino comum (nascimento, casamento, morte...). Outras circunstâncias em
que as performances orais costumam ocorrer são as ligadas aos acontecimentos históricos
(combates, vitórias...) e aos ciclos da natureza (festa da Primavera, de são João etc.). O que aí se
observa é a ação repetitiva, o caráter ritual da cerimônia, seja ela sagrada ou profana. Mas a
performance oral não se limita às circunstâncias “culturalmente motivadas”. Ela pode se
manifestar em ocasiões outras, aleatoriamente situadas na linha cronológica. São ocasiões onde o
canto ou a recitação surgem sem razão aparente, de forma mais ou menos espontânea.
Em nossas cidades, durante séculos, a rua foi o lugar favorito dos recitantes de
poesia, dos músicos, dos sátiros. Ela recupera seu prestígio em nossos dias,
fugitivamente, aqui e ali, por conta de movimentos de renovação, como em
Londres em 1976, no início do grupo Jam. A rua: não fortuitamente nem devido
à falta de lugar apropriado, mas em função de algo integrado a uma forma de
arte.
197
Em relação a O dragão da maldade, a chegada de Coirana a Jardim das Piranhas dá lugar
a uma manifestação espontânea do povo que sai às ruas para a acompanhar o cortejo liderado
pelo cangaceiro e pela Santa. Ao som de cânticos que lembram os ritmos africanos, os líderes
seguem à frente, dançando e balançando estandartes com as imagens de são Jorge e do Dragão.
Logo em seguida vem o povo cantando e batendo palmas. A perfomance segue seu curso até o
centro da cidade onde, acompanhado pela Santa e por Antão, Coirana se apresenta ao povo e aos
poderosos do local. O monólogo proferido pelo cangaceiro reporta-se a Lampião, citado nos
versos da música entoada durante a procissão e na aula do professor que, na praça da cidade,
pouco antes da entrada do cortejo, lembrava a seus alunos as datas importantes da história do
Brasil.
196
Paul Zumthor. Op.cit.
197
Ibid., p 154 (trad. S.R.B.N.)
131
Repetido inúmeras vezes durante as primeiras cenas do filme, o nome de Lampião reforça
o sentido não oficial da manifestação dirigida por Coirana. E mais, estreita os laços de
pertencimento do povo com o seu passado. Dedicada à memória do cangaceiro morto em 1938
(como lembrou o professor) a performance (para usarmos o termo de Zumthor) liderada pelo
cangaceiro, aparece como um momento de comunhão coletiva. Ao contrário das que o autor
caracteriza como “culturalmente motivadas” – que ocorrem em datas e locais determinados sendo
normalmente mais regradas – a performance mostrada no filme é absolutamente livre
198
. Sem
data ou local programados, ela surge de repente, espontaneamente, no meio do povo como
resposta às vozes e aos gestos que a lideram. Neste sentido, o povo que faz parte da performance
contribui tanto quanto o intérprete à sua realização. “A poesia é assim aquilo que é recebido: mas
sua recepção é um ato único, fugitivo, irreverssível... e individual, pois duvidamos que uma
mesma performance seja experimentada de maneira idêntica por dois ouvintes.”
199
Colocando em relevo procedimentos correntes nas sociedades tradicionais o filme procura
destacar a relação entre os protagonistas da performance e os que nela estão envolvidos. Nesse
sentido, o povo que participa cantando, dançando, batendo palmas, não é apenas objeto da
representação mas o sujeito de uma performance que remete ao universo das tradições orais, onde
a base da participação do indivíduo é o pertencimento a uma coletividade, a um passado comum.
Nesse contexto, ou seja, no contexto das tradições compartilhadas, Zumthor chama a
atenção para o caráter impessoal da voz que profere o canto e para a relação de reciprocidade
198
É importante lembrarmos que para o autor o sentido do termo livre (performance à temps ‘libre’) não está
condicionado ao caráter libertário da manifestação de tipo espontâneo. Pois, tanto as performances espontâneas
quanto as mais ‘regradas’, mais sujeitas aos usos e costumes sociais, podem, ou não, assumir uma dimensão
libertadora (no sentido de individualizada). A ênfase de Zumthor é sobre a relação entre o intérprete e o público,
sobre a participação do público na performance. Nesse caso, o público não é apenas um receptor, ele é também o co-
autor da manifestação ; sua participação é, portanto, mais individualizada. « Nada é mais enganador (mesmo em se
tratando de sociedades arcaicas) que a idéia de que, na boca de um contador, de um cantor, fala a voz da
comunidade, a consciência do povo. » (trad. S.R.B.N.) in ibid. p 232.
199
Ibid. p 229 (trad.S.R.B.N.)
132
existente entre o intérprete e o público. Essa é a característica da performance protagonizada por
Coirana que tem como contraponto o desfile de Sete de Setembro mostrado na seqüência
seguinte, na cena do encontro entre Matos e Antonio das Mortes. Robert Stam comenta sobre
esse contraste lembrando que:
Em Rabelais and his world, Mikhail Bakhtin demonstra que a utopia do povo
comum, viva em suas tradições orais, festas e carnavais, opõe-se às hierarquias
oficiais da classe dirigente. Concentrando-se na vida corpórea – cópula,
nascimentos, comer, beber, defecar – os seres humanos conquistam a suspensão
temporária de toda hierarquia e proibição e ingressam, embora por um curto
período de tempo, na esfera da liberdade utópica.
200
Extremamente formal do ponto de vista da música, dos gestos, das vestimentas dos
participantes, na comemoração do Sete de Setembro o que chama atenção é o comportamento
automatizado dos que executam a marcha e a passividade dos que a assistem. Em contraste com a
manifestação de Jardim das Piranhas, focada sobre a liberdade dos corpos, dos gestos, o desfile
da Independência expõe os símbolos do poder, o mundo da ordem representado pelos alunos
uniformizados, empunhando bandeiras e marchando em movimentos rigidamente coordenados ao
som de uma banda militar. Tudo ali é marcado, controlado, ordenado segundo regras
estabelecidas. Nesse jogo de posições definidas, o delegado Matos, representante do interior em
visita à capital, acompanha o desfile entre as autoridades do alto de uma sacada enquanto
Antonio das Mortes, do outro lado da rua, assiste à marcha misturado no meio do povo. Logo os
dois estarão juntos para dar continuidade ao duelo entre os poderosos de Jardim das Piranhas e os
seguidores do cangaceiro e da Santa. Mas o fora-da-lei, contratado pelo delegado para colocar
fim às desordens provocadas pelo bando de Coirana, acaba mudando de lado. Antes, porém,
assistiremos a um longo processo de transformação.
200
Robert Stam. O Espetáculo interrompido : literatura e cinema de desmistificação. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1981, p 113. Sobre a tradução brasileira do livro citado pelo autor ver Mikhail Bakhtin. Op.cit.
133
Ponto de virada da história do personagem, o duelo contra Coirana levará Antonio das
Mortes à revisão de seu papel de matador. Mas a idéia de luta, de luta encenada como a que
caracteriza o desafio, continuará informando a estrutura do filme, cujas imagens fortemente
estilizadas nos lembram que seu objeto é a própria representação.
3.2 – O espectador e o espetáculo cinematográfico
No espetáculo de falas e gestos representado pelo filme, não só o povo de Jardim das
Piranhas participa; o espectador também, de certa forma, é envolvido. Trata-se, no entanto, de um
envolvimento diferente do habitual. No que se refere ao posicionamento do espectador diante da
ação encenada, a problemática deve ser estudada considerando a apropriação da estética de cordel
no filme em questão. Pois nesse, da mesma forma que anteriormente, em Deus e o diabo, a
poética do cordel não entra como dado isolado ou como mera forma de identificação da obra com
o universo cultural sertanejo. Partindo, no primeiro filme, da estrutura do folheto (romanceiro
tradicional ou romance de cordel) e, no segundo, da prática do desafio (perfomance oral
envolvendo dois cantadores), o cordel funciona, em um caso, como elemento de construção
narrativa e, no outro, como citação.
Organizadas de acordo com as tradições que as informam (a do romance de cordel num
caso, a do desafio no outro), as narrativas de Deus e o diabo e de O dragão da maldade têm suas
especificidades, suas próprias regras de composição, seus próprios modos de lidar com o tempo.
Em relação a esse ponto, vimos, no estudo realizado no capítulo anterior sobre Deus e o diabo,
que o filme remete ao passado. A canção/narração que o entrecorta, inspirada na estrutura do
romance de cordel, ajuda a construir a idéia de que a história contada se situa em um momento
outro ao do que nos é mostrada na tela. Na verdade, como assinala André Gaudreault, todo filme
conta uma história passada por meio de imagens que mostram no presente. No cinema (apesar
134
da “mostração” lhe ser inerente) o que sobressai, diz o autor, é o mundo contado, a diegésis, ao
contrário do teatro onde o que prevalece é o ato de mostrar, a idéia de que alguém está
representando alguma coisa, em suma, a mímesis.
A distinção feita por Platão entre mímesis e diegésis, foi levada para o campo dos estudos
cinematográficos que têm procurado entender a construção da narrativa fílmica a partir desses
dois processos. Argumentando que o cinema (ainda que leve em conta a representação dos atores
e o texto que serve de base à história contada) é uma forma de expressão diferente do teatro e da
literatura, os autores ligados a esses estudos propõem que a análise do filme seja feita a partir da
associação entre mostração e narração, termos equivalentes aos definidos por Platão para o teatro
e para a epopéia
201
.
Ao contrário do que normalmente ocorre na narrativa cinematográfica (que, em geral,
tenta esconder sua fonte geradora), os dois filmes aqui analisados, embora de formas diferentes,
procuram associar os processos de mímesis e diegésis (mostração e narração), revelando ao
espectador a sua instância mostradora. Em Deus e o diabo, por exemplo, procura-se mostrar que
a história passada na tela não se desenrola por si só mas por intermédio de uma instância
encarregada de contá-la. Colocando em cena o cantador, personagem responsável pela
narração/mostração, o filme remete ao passado que, por meio da canção, é revivido no
presente
202
. O que a estrutura de O dragão da maldade tem de diferente é a ênfase no ato de
representação, no aqui-e-agora da ação processada pelos personagens cuja atuação indica que o
que estamos vendo na tela corresponde a algo que está se constituindo naquele exato momento
em que câmera capta os movimentos dos atores. E, nesse caso, a apropriação do desafio faz
realmente sentido. Pois, como já tivemos a oportunidade de comentar, no desafio (como no
201
Gaudreault e Jost. Op.cit., p 24-26.
202
Essa questão foi abordada no capítulo anterior a propósito da discussão sobre o ponto de vista narrativo.
135
teatro) o ato de criação poética acontece simultaneamente à apresentação. Isso pressupõe não
apenas um processo de criação diferente do exigido na produção dos folhetos mas também um
tipo diferente de público.
Ao contrário do público que ouve as histórias narradas pelos poetas populares
203
, o que
assiste a uma cantoria participa ativamente da performance, interferindo inclusive na atuação dos
poetas. Algo aproximado, talvez possa ser dito em relação a O dragão da maldade. Não estamos
com isto querendo dizer que este deixe espaço à participação do espectador. Na verdade nenhum
filme, efetivamente, o faz. No entanto, podemos supor que no filme em questão, a atitude do
espectador é menos previsível, menos programada do que a do espectador convencional de
cinema.
Diferentemente do público retratado em O dragão da maldade, o público que assiste ao
filme encontra-se separado da performance encenada, ou seja, não há da parte deste a mesma
comunhão de sentidos que se observa entre os intérpretes da encenação e seu respectivo público
em Jardim das Piranhas. Trata-se de dois tipos de público: o representado no filme e o que o
assiste.
***
Transformada pelo veículo de sua transmissão, a performance, ou melhor, o filme como
encenação coreografada, estabelece com seu público uma relação de distanciamento. Separado da
ação encenada, o espectador não se aliena, não se deixa absorver pelo narrado, estabelecendo
com as imagens um diálogo mais aberto, isto é, menos determinado pelas convenções de
203
Com relação ao tipo de participação do público que ouve as histórias narradas pelos poetas populares, essa
participação é possível pelo fato de as narrativas populares não terem um sentido muito fechado permitindo ao poeta
sua adaptação ao gosto do público. De qualquer forma a relação intérprete ouvinte é diferente da cantoria onde o
público participa interferindo na atuação dos poetas no momento em que estes estão produzindo seus versos.
136
gênero
204
. Porém, isso não significa que haja uma ruptura com as convenções. Na verdade, o que
o filme procura fazer é apropriar-se das convenções criando para estas novos usos.
Christian Metz toca nesse ponto em um de seus ensaios. Opondo o “possível” ao
“verossímil”, o crítico associa este último às convenções cinematográficas que funcionam como
uma forma de censura por parte do espectador:
O Verossímil é logo de início uma redução do possível, ele representa uma
restrição cultural e arbitrária entre os possíveis reais, ele é de chofre uma
censura: só se aceitarão, entre todos os possíveis da ficção figurativa, aqueles
autorizados pelos discursos anteriores.
205
É verossímil, segundo Metz, tudo o que está de acordo com as regras de um gênero
estabelecido. Considerando que o filme é uma forma de dizer alguma coisa, enquadrá-lo em um
gênero significa uma restrição do dito, uma restrição que visa não ao conteúdo, a “substância do
conteúdo”, como assinala Metz, mas a “forma do conteúdo”. Seguindo esse raciocínio, qualquer
assunto pode ser ousado ou acomodado; tudo depende da maneira do filme falar do que fala.
No que diz respeito ao cinema brasileiro, um dos assuntos de destaque é o sertão que, no
início dos anos 1960, pelo número de filmes produzidos, tendia a se constituir em gênero
cinematográfico. Sobre o tema, o enfoque pioneiro foi o dos cineastas ligados ao ciclo de Recife
na década de 1920. O movimento, que produziu 13 filmes rodados em cenários regionais, foi,
apesar do seu limitado sucesso fora de Pernambuco, bastante importante para a produção
cinematográfica nacional na medida em que permitiu a divulgação no Rio de Janeiro e em São
Paulo, centros da atividade cinematográfica brasileira, de uma imagem do Nordeste praticamente
desconhecida em outras regiões do país. Não se pode falar, considerando a estética criada pelos
cineastas pernambucanos, do cinema do Nordeste como um gênero cinematográfico. Mas
204
Em Deus e o diabo verifica-se a mesma ambigüidade em relação às convenções cinematográficas, ou seja, o filme
desenvolve um processo que varia entre a adoção das convenções e o posicionamento crítico em relação a estas. Ver
a respeito os comentários no Capítulo 2 e o parágrafo referente à nota 131.
205
Christian Metz. Op.cit., p 229.
137
também não se pode negar a importância do movimento em termos da constituição de um acervo
de imagens que passará a constar como referência em trabalhos de futuros cineastas. Como
observou Christian Metz, “as leis de um gênero provêm das obras anteriores a este gênero, vale
dizer, de uma série de discursos”
206
. Assim, na década de 1950, surge, a partir dessas « obras
anteriores », uma séria de filmes voltados à temática sertaneja.
Classificado por Glauber Rocha como nordesthern, esse cinema tem como marco o filme
de Lima Barreto, O Cangaceiro (1952), considerado ponto de partida na criação de um possível
gênero cinematográfico. O filme, que teria influenciado, por um lado o Cinema Novo e, por
outro, uma produção mais comercial, mais voltada para o público de massa, tem como
característica a mistura do exótico local com as aventuras típicas do western norte-americano.
Extremamente bem-sucedido junto ao público e a crítica nacional e internacional, o filme deixou
sua marca na cinematografia posterior
207
, como observa Glauber Rocha em seu texto sobre o
cinema brasileiro.
A Morte comanda o cangaço, medíocre e imitativa de O Cangaceiro, bateria
recordes de bilheteria. Isto animou outros produtores e um ciclo de "cangaço"
começou a surgir, ainda que nenhum destes filmes, até agora, tenha
correspondido à veracidade e à força do tema, nem alcançado uma expressão
que as elevasse aos melhores momentos de nossa literatura específica. O
Cangaceiro, apesar de tudo, para o próprio Nordesthern, deixou até hoje a
herança convencional e falsa de Milton Ribeiro e criou certos princípios de
violência desenvolvidos com a mais vulgar das intenções comerciais.
208
A principal crítica de Glauber Rocha em relação a O Cangaceiro diz respeito ao
tratamento dado no filme à temática sertaneja. O mesmo pode ser dito em relação aos trabalhos
cinematográficos por ele inspirados. Focados em um tipo de herói ajustado à sensibilidade
burguesa, esses trabalhos exploram o lado pitoresco do cangaço e o exotismo da paisagem rural
206
Ibid.
207
Somente no início da década de 1960 foram produzidos quatro filmes de ficção sobre a temática do cangaço : A
morte comanda o cangaço (1960) e Lampião, o rei do cangaço (1965) de Carlos Coimbra, Três cabras de Lampião
(1962) de Aurélio Teixeira e a sátira O Lamparina (1964) de Glauco Laurelli com Mazzaropi no papel de Lampião.
138
brasileira. Hernani Heffner, em seu comentário sobre o “cinema sertanejo”, toca nessa questão.
Referindo-se ao público urbano de classe média, o pesquisador observa a falta de familiaridade
deste “para com o universo interiorano e seus fenômenos histórico-culturais, a ponto de
necessitar de molduras de gênero como o western para compreender e assimilar o cangaço”
209
.
Contudo, observa Heffner, essa adaptação da temática sertaneja às expectativas do público
urbano é bem anterior ao filme de Lima Barreto. Ela já está presente nas « emboladas filmadas e
gravadas pioneiramente por Paulo Benedetti no final dos anos 1920, e passando pela presença de
inúmeras duplas ‘caipiras’ em números musicais isolados de filmes como Coisas nossas,
Fazendo fitas, Abacaxi azul, Berlim na batucada e No trampolim da vida, entre outros, nos anos
1930 e 1940
210
. A representação do universo sertanejo na cinematografia das décadas de 1920,
1930 e 1940, passa, de acordo com o pesquisador, pela mediação da música, dos ritmos do
interior veiculados pelos programas radiofônicos.
A apropriação feita pela indústria cultural do estilo sertanejo se desdobra em outras
matrizes sendo que a mais significativa no campo cinematográfico é a do filme sobre o cangaço,
objeto das considerações de Glauber Rocha bem como de outros representantes do movimento do
Cinema Novo. Para estes a questão de fundo não é a influência do western sobre o filme do
cangaço mas a dependência destes de uma linguagem ajustada aos esquemas da indústria cultural.
Rompendo com as regras do cinema comercial, os cineastas do Cinema Novo procuraram
penetrar no universo sertanejo utilizando uma estética própria voltada mais para os conflitos
sociais do que para os conflitos individuais como, por exemplo, os vividos pelos personagens de
Carlos Coimbra, diretor de A Morte comanda o cangaço (1960). Realizado segundo os princípios
208
Glauber Rocha. Op.cit., 1965, p 57 (trad.S.R.B.N.).
209
Hernani Heffner. « Miragens do Sertão » in Miragens do sertão. Programa da mostra cinematográfica em cartaz
no CCBB em 2003, p 9.
210
Ibid.
139
do cinema comercial esse filme, seguindo a linha de O Cangaceiro de Lima Barreto, passava uma
visão despolitizada da violência existente no espaço rural brasileiro. Contrariando essa linha de
representação, cujo objetivo era atender às expectativas do público urbano de massa, o Nordeste,
nos filmes dos diretores do Cinema Novo, era mostrado como um espaço marcado pela seca, pela
miséria, pelo abandono do poder central, pela crise social e, acima de tudo, pela exploração da
mão-de-obra sertaneja pelo proprietário de terras, dono não apenas dos meios de produção mas
também do poder político local. Fonte da injustiça gerada pelo coronelismo e pelo latifúndio, a
violência não se apresenta nesses filmes como manifestação isolada mas como resultado de uma
situação estrutural do país.
Na visão dominante entre os intelectuais da época, o Brasil era um país dependente onde
as desigualdades internas reproduziam as existentes em nível internacional entre países ricos e
pobres. A miséria do Terceiro Mundo era, de acordo com esse diagnóstico, pensada como
resultado das práticas imperialistas entre as quais as que vigoravam no campo cinematográfico,
dominado pela indústria norte-americana. Contra a situação de colonialismo cultural à que estava
submetido o cinema nacional, Glauber Rocha lança Estética da fome, texto manifesto que
defendia a realização de filmes compatíveis com a nossa situação econômica. Essa posição
expressava o repúdio do cineasta não apenas ao produto importado de Hollywood mas à estética
hollywoodiana como um todo, que dominava a maior parte da cinematografia nacional.
Produzida por meios técnicos extremamente modestos, a imagem do Nordeste na
expressão do Cinema Novo, distancia-se das convenções impostas pelo cinema norte-americano.
Mas, ao mesmo tempo em que abria para outras formas possíveis de representação do Nordeste, o
grupo do Cinema Novo, começava a criar o seu próprio gênero/estilo. Isso significa que, a partir
de um certo número de filmes vanguardistas, o cinema brasileiro da década de 1960 vê surgir um
140
novo verossímil cinematográfico. A crise que se instala no Cinema Novo é um sintoma desse
fenômeno de desgaste do ‘novo’, que Christian Metz explicita com clareza:
Há duas maneiras, e apenas duas, de escapar ao Verossímil, que é o momento
penoso da arte (deveríamos falar o seu momento "burguês"?). Escapa-se pelo
antes ou pelo depois: os verdadeiros filmes de gênero escapam, os filmes
verdadeiramente novos escapam também: o momento em que se escapa é
sempre um momento de verdade: no primeiro caso, verdade de um código
livremente assumido (no interior do qual torna-se possível dizer corretamente as
coisas); no segundo caso, ascensão ao discurso de um possível novo, que toma
de assalto o ponto correspondente de uma convenção vergonhosa.
211
Considerando o comentário anterior, diríamos que os filmes do Cinema Novo foram
“verdadeiramente novos” no início do movimento. Glauber Rocha, talvez sem que tenha tido
disso uma clara consciência, realizou em 1969 o seu réquiem. Em 1971, em carta enviada de
Munique a Cacá Diegues, o cineasta comenta sobre “os três últimos filmes do Cinema Novo:
Herdeiros, Macunaíma, Dragão... ”
212
Seguindo a linha de Deus e o diabo na terra do sol, O dragão da maldade contra o santo
guerreiro é mais uma tentativa do cineasta retratar o sertão a partir de um diálogo com os filmes
produzidos nos moldes do western. Mas, ao contrário de seu primeiro filme sobre o tema, onde o
western aparece como referência, em O dragão da maldade Glauber recorre à paródia a fim de
expor os clichês do gênero.
213
O clichê cinematográfico é uma convenção interiorizada, uma forma de dizer alguma
coisa que, incorporada pelo senso comum, se faz passar por verdadeira. No caso de O dragão da
maldade o clichê do western é empregado no sentido de desconstrução da noção de verdade
veiculada pelo gênero. Isso significa, por exemplo, que já não se pode confiar cegamente na
infalibilidade do herói. Ele não é mais o cavaleiro solitário que chega à cidade para livrar a
211
Christian Metz. Op.cit., p 242.
212
Ivana Bentes. Op.cit., 1997, p 416.
141
população assustada das garras do bandido cruel. O mito perdeu sua importância. Contudo, não
podemos reduzir o filme a uma simples paródia do western adaptada à temática sertaneja pois a
técnica de desconstrução é aí bem mais elaborada e complexa.
***
A paródia em O dragão da maldade, inscreve-se na perspectiva global de mistura de
gêneros que informam o esquema narrativo do filme onde os personagens atuam como se
estivessem participando de um jogo, de uma luta onde a violência é tão simulada quanto a dos
participantes da cantoria.
O tratamento dado à violência em O dragão da maldade, uma violência encenada,
teatralizada, quebra o efeito de verossimilhança da representação tal como buscado no cinema
tradicional onde o convencimento do público depende da naturalidade dos atores na interpretação
de seus papéis. Como dissemos há pouco, a propósito da relação entre mímesis e diegésis na
narração cinematográfica, a cumplicidade do espectador para com o universo ficcional exige que
a mostração, isto é, a mímesis, seja o menos marcada possível. Contrariando esse tipo de
enunciação (caracterizado por André Gardies como enunciação dissimulada
214
), no filme que
estamos analisando, o elemento mimético sobressai tanto na composição dos quadros quanto na
atuação dos personagens cujo tratamento dramatúrgico lembra uma montagem teatral. Não
estamos, contudo, nos referindo ao teatro naturalista, dedicado à ilusão do real
215
, mas ao teatro
de Brecht e à prática do desafio (entendida como performance, como jogo), expressões que
informam a estrutura de representação do filme, como observa Glauber Rocha: “Aquilo que as
213
Em entrevista a João Lopes, Glauber Rocha comenta sobre John Ford e Eisenstein, influências que marcaram,
respectivamente, Deus e o diabo e O dragão da maldade em Glauber Rocha « Passagem das Mitologias » . Op.cit.,
1985, p 251.
214
A enunciação dissimulada é o regime de visão mais comum na narrativa cinematográfica. A esse respeito ver
André Gardies. Op.cit., p 105.
142
pessoas chamam em meu filme de folclore não é extamente o folclore... Mais uma vez voltamos a
Eisenstein e a Brecht.”
216
A relação sugerida, entre performance popular e espetáculo épico é observada por Ingrid
Koudela em sua análise do teatro de Brecht:
A peça didática, constituída em “modelo de ação”, visa completar o
procedimento de "estranhamento" tal qual é definido por Brecht, sendo
"superobjetivo" do processo educacional a conquista da consciência do homem
como ser social e histórico. Se o jogo cumpre funções didático-pedagógicas, ele
se concentra também na origem do ritual, sendo a diferença entre ambos apenas
de grau. Muitos jogos e folguedos guardam ainda resquícios ritualísticos, como
as cirandas em torno de um mastro enfeitado ou o hábito de pular fogueiras.
217
O que interessa na observação anterior, é a idéia de jogo, a conquista da consciência a
partir dos processos vividos pelos jogadores, ou seja, os atores e o público (considerando a
aplicação no teatro das técnicas do jogo popular).
Negando a aplicação precisa das teorias de Brecht (é preciso esquecer Brecht, diz
Glauber, para fazer um trabalho realmente brechtniano
218
) e a transposição direta das formas
populares de representação (como é o caso das manifestações do folclore), o que prevalece em
Glauber é a apropriação das tradições no sentido “de fazer um cinema musical, mas não pelo som
e sim por toda uma estrutura de representação... que poderíamos chamar de cinema-opéra.”
219
Em relação aos atores, por exemplo, se eu aplico uma técnica de interpretação,
de representação épica, é apenas para os personagens populares que estão
envolvidos em tal processo. Por exemplo, em Antonio das Mortes (O dragão da
maldade contra o santo guerreiro), havia atores que trabalhavam com um texto
escrito e outros que trabalhavam ‘em direto’, para evitar toda sistematização.
220
215
« O palco naturalista, longe de ser tribuna, é totalmente ilusionístico. Sua consciência de ser teatro não pode
frutificar, ela deve ser reprimida, como é inevitável em todo palco dinâmico, para que ele possa dedicar-se, sem
qualquer desvio, a seu objetivo central : retratar a realidade. » in Walter Benjamin. Op.cit., 1993, p 81.
216
Michel Delahaye, Pierre Kast e Jean Narboni. « Entretien avec Glauber Rocha » in Cahiers du Cinéma, n. 214,
jui/aout, 1969, p 33 (trad. S.R.B.N.)
217
Ingrid Dormien Koudela. Brecht : um jogo de aprendizagem. São Paulo, Perspectiva, 1991, p 168.
218
Michel Delahaye, Pierre Kast e Jean Narboni. Op.cit., p 29.
219
Ibid., p 33 (trad. S.R.B.N.)
220
Ibid. (trad. S.R.B.N.)
143
Há efetivamente no filme, uma atenção sobre a fala, os movimentos e os gestos dos atores
que lembram as técnicas de representação do teatro e da ópera, “entendidos aqui como efeito de
cinema e não como teatro ou óperas filmadas ou realizadas pelo cinema.”
221
***
Rompendo com a estrutura narrativa do cinema espetáculo, O dragão da maldade coloca
o espectador diante do artifício da representação e, ameaçando a ilusão de verdade em relação às
imagens mostradas na tela, elabora outros possíveis cinematográficos. Trata-se efetivamente de
uma crítica ao modelo clássico de representação que o cineasta questiona recorrendo à
mediação do cordel (e de outras tantas manifestações da cultura oral do interior do Brasil) e ao
teatro de Brecht.
O dragão da maldade lida com o que Walter Benjamin, referindo-se ao teatro épico,
chama de palco tribuna. O palco brechtiano é o lugar, segundo Benjamin, do julgamento das
antigas formas de representação: “Tragédias e óperas continuam sendo escritas, à primeira vista
para um sólido aparelho teatral, quando na verdade nada mais fazem que abastecer um aparelho
que se tornou extremamente frágil.”
222
Desenvolvendo processos análogos aos do palco tribuna, O dragão da maldade coloca em
questão os modos de representação típicos do western e do cinema sertanejo, considerado uma
cópia do gênero norte-americando. Através do distanciamento, o filme nega a romantização da
figura do sertanejo e a idealização da cultura do oprimido (associada à pureza, à verdade). O
posicionamento crítico, a ruptura com essas formas de representação, dependem, portanto, da não
identificação com o outro:
221
Youssef Ishaghpour. Opéra et théâtre dans le cinéma d’aujourd’hui. Paris, La Différence, 1995, p 74 (trad.
S.R.B.N.)
222
Walter Benjamin. Op.cit., 1993. p 79.
144
Aquele que se identifica sem reservas com o outro abandona, de fato, toda
crítica a seu respeito tanto quanto a respeito de si próprio. Ao invés de estar
atento ele é um sonâmbulo. Ao invés de fazer alguma coisa, ele permite que
façam alguma coisa dele. É alguém com quem os outros vivem e de quem os
outros vivem, é alguém que não vive realmente. Ele tem somente a ilusão de
viver, na realidade ele vegeta. Ele é, por assim dizer, vivido.
223
A noção de distanciamento nos permite compreender a função das mediações em O
dragão da maldade. Por meio de um tratamento fortemente mediatizado, que leva em conta as
técnicas do jogo popular (as regras do desafio) e as teorias de interpretação do teatro de Brecht, o
filme de Glauber Rocha transforma, por exemplo, o western, de objeto de referência em objeto de
crítica. No que diz respeito ao espectador, a identificação com certos clichês do gênero é
substituída, como no teatro épico, por uma atitude de estranhamento
224
. E é nesse nível, ou seja,
no nível da negação da convenção, que a imagem do Nordeste é politizada.
Mas não se trata apenas disso, “de destruir o cinema”, como observou Glauber em
resposta a um comentário de Godard: “ ‘No Brasil (comentou o cineasta francês) vocês devem
destruir o cinema’. Eu não estou de acordo. Vocês, na França, na Itália, podem destruir. Mas nós,
nós estamos ainda construindo, em todos os níveis, linguagem, estética, técnica...”
225
. Percebe-
se nesse comentário uma grande preocupação com a forma. “A revolução é uma eztetyka”, diz o
cineasta. “Os valores da cultura monárquica e burguesa do mundo desenvolvido devem ser
criticados em seu próprio contexto e em seguida transportar em instrumentos de aplicação úteis à
compreensão do subdesenvolvimento.”
226
223
Youssef Ishaghpour. D’une image a l’autre – La représentation dans le cinéma d’aujourd’hui. Paris,
Denoel/Gonthier, 1982, p 23 (trad. S.R.B.N.)
224
« Em contraste (com o teatro naturalista), o teatro épico conserva do fato de ser teatro uma consciência incessante,
viva e produtiva. Essa consciência permite-lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e é no fim
desse processo, e não no começo, que aparecem as "condições". Elas não são trazidas para perto do espectador, mas
afastadas dele. Ele as reconhece como condições reais, não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com
assombro. » in Walter Benjamin. Op.cit., 1993, p 81.
225
Michel Delahaye, Pierre Kast e Jean Narboni. Op.cit., p 29 (trad. S.R.B.N.)
226
Glauber Rocha. Op.cit., 1985, p 66.
145
Criticar a cultura burguesa em seu próprio contexto significa lançar mão de seus
modelos visando à destruição dos mesmos. Porém, o ato de destruição deve vir acompanhado de
um movimento de reconstrução. O novo, nesse caso, deve surgir das ruínas do antigo.
3.3 – O western visto por Glauber Rocha
O processo apropriação do western no filme O dragão da maldade contra o santo
guerreiro caracteriza-se pela extração das imagens do discurso cinematográfico habitualmente
aceito e sua transformação, a partir de elementos da cultura popular, em outras tantas
interrogações fundadoras.
Tomemos, por exemplo, a imagem clássica do duelo representada no referido filme pela
seqüência do combate entre Coirana e Antonio das Mortes. Tal seqüência, construída a partir de
um envolvimento intenso entre os atores e as pessoas da comunidade que participaram dos
trabalhos, é comentada por Glauber que recorda um episódio ocorrido no dia da filmagem:
Ah! essa. Essa não foi uma representação que eu inventei. Eu devia rodar às
quatro horas da tarde, mas não havia mais sol. Eu disse: "Nós não vamos rodar
agora, estamos muito cansados..." No dia seguinte, às sete da manhã eu disse à
equipe: "Bom, vamos filmar agora o combate entre são Jorge e o dragão."
Depois que eu falei com eles uma senhora disse: "Ah! o combate, eu me lembro,
eu conheço uma canção". Quando ela começou a cantar, nós estavamos
arrumados para ver o combate. Ao mesmo tempo alguns atores começaram a se
mexer ao som da música, e eu vi surgir a representação. Eu introduzi os atores,
os personagens do filme. Esta foi minha única intervenção. Eu estava ali como
espectador e participante. Todos encontraram seus lugares naturalmente. Nós
filmamos todo o plano, não houve necessidades de cortar, foi tudo muito
verdadeiro mesmo no momento em que Antonio das Mortes feriu o cangaceiro:
foram eles que deciram assim... Para mim estava tudo bem, porque nós
reencontramos assim toda uma tradição do western.
227
Estabelecendo um diálogo com o gênero imortalizado por Kirk Douglas e Jonh Wayne no
papel do herói destemido, o filme de Glauber Rocha aponta, no entanto, para outros horizontes
estéticos.
146
Em relação a O dragão da maldade, eu queria fazer um western bastante
objetivo, mesmo se a ação física... Eu escolhi quatro ou cinco westerns que eu vi
e revi para chegar a certas conclusões. Eu vi Red River, El Dorado e Rio Bravo.
Eu me disse: é necessário reencontrar esse espírito, esses gestos que faz um
Hawks com completa intimidade. É verdadeiramente um épico anti
expressionista. Mas no momento de filmar, tudo mudou, e eu não pude mais me
ater ao projeto inicial. Foi um bom resultado: se reencontramos certas
referências , é necessário que elas sejam dissolvidas durante o movimento.
228
Esse tratamento (de “dissolução de referências”) fica evidente na cena do duelo
protagonizado por Coirana e Antonio das Mortes onde o comportamento dos atores diante da
câmera nega o modo de representação característico do western tradicional. Louis Simonci,
referindo-se ao duelo do western, descreve o seu cenário típico:
Passo a passo, cada um dos adversários vai ocupando parte do terreno que
conduz ao outro e, em um ponto preciso do espaço, ao sinal fugitivamente
percebido de um gesto manifestado, ou melhor, de uma intenção que ilumina os
olhos de um brilho diferente, o tiro explode, fatal para um dos dois.
229
Ao contrário dessa forma de representação voltada para a criação de um clima de
suspense, no duelo filmado por Glauber Rocha predomina uma atmosfera lúdica. No western
tradicional os adversários se vêem diante da possibilidade única de matar ou morrer. Em O
dragão da maldade esse dilema também se manifesta. Porém, à medida que a ação é substituída
pela encenação, o efeito dramático se dilui impedindo a identificação do espectador com o
espetáculo:
O espectador do teatro dramático diz: "Sim, eu também já senti isso". "É uma
coisa natural". "Choro com os que choram e rio com os que riem". O espectador
do teatro épico diz: "Eu nunca pensaria nisso". "Não é assim que se deve fazer".
"Rio de quem chora e choro com os que riem".
230
O modo como, em O dragão da maldade, a cena do duelo ‘se manifesta’ provoca no
espectador uma reação de estranhamento, uma mudança de atitude em relação à substância
original do western e seus postulados morais imediatos. Baseados nas noções de justiça, direito e
227
Michel Delahaye, Pierre Kast et Jean Narboni. Op.cit., p 33 (trad. S.R.B.N.)
228
Ibid., p 37 (trad. S.R.B.N.)
229
Louis Simonci. « Duel » in Raymond Bellour (dir.). Le western. Paris, Gallimard, 1993, p 138 (trad.S.R.B.N.)
147
bem, esses postulados são apresentados como expressão de uma verdade inquestionável (verdade
de um gênero, verdade de um povo) que os filmes do gênero têm como objetivo veicular. Tal
objetivo se resume, em geral, na cena do duelo que, envolvendo uma carga emocional acentuada,
facilita a comunicação com o público.
No filme de Glauber Rocha, onde a luta aparece como simulação e o herói como homem
comum, o western (simbolizado pela coragem do herói para enfrentar o inimigo) é
desmistificado, destituído de sua aparente universalidade. Não se trata, na perspectiva de
Glauber, apenas de negar os valores do western mas de negar os seus canônes de representação
dando destaque ao próprio ato de representação.
Tomando consciência de que mudar a forma da representação implica ao mesmo
tempo uma mudança de forma, de tema e de público, Brecht procurará distanciar
não apenas a representação em relação ao conteúdo, mas igualmente o conteúdo
e o motivo em relação à representação – mostrar a crítica, o jogo e sobretudo a
coisa – e isto na medida em que, precisamente, a crítica puramente negativa da
representação é ultrapassada pela descoberta de que a atividade e a mediação são
os momentos essenciais da constituição da coisa em si .
231
Colocando entre parênteses o verossímil do western, o duelo entre Coirana e Antonio,
representado por uma luta dançada (que lembra os passos da capoeira), com gestos
excessivamente marcados, quebra os códigos habituais de reconhecimento da violência nos
filmes de faroeste; trata-se aí de uma violência simulada. Esse tratamento irônico está presente
também na cena que antecede o duelo onde a identidade dos dois adversários é colocada sob
suspeita: (Antonio: Tu é verdade ou assombração? Diga logo, cabra da peste! Eu de minha parte
não acredito nessa roupa que tu veste; Coirana: Primeiro diga você seu nome, fantasiado. Quem
abre assim a boca fica logo condenado).
O diálogo em versos, declamado e pontuado por rimas constitui um desafio ao espectador
que se vê obrigado a tomar uma decisão: entrar ou não no jogo. A palavra aí é o elemento central.
230
Ingrid Dormien Koudela. Op.cit., p 25.
148
Trata-se, como observou Glauber, “de um filme verbal”
232
. Lembrando o desafio de cordel, a fala
dos personagens, exageradamente articulada, nos chama a atenção para o ato de representação:
representação da representação. Glauber refere-se a isso em seu comentário sobre a cena do
duelo. Filmada pela técnica do cinema direto, essa cena (como, de resto, quase todo o filme), foi
marcada pelo envolvimento dos atores, “por um certo clima”, como indicou o cineasta:
Nesse filme eu consegui fazer uma coisa que eu não pude fazer nos outros filmes
por conta de problemas de produção. Os atores foram confinados na cidade. Eles
não tinham texto para ler, mas nós conversávamos, e foi um trabalho muito
natural. De fato, os atores deviam se desembaraçar de sua educação. Eu filmei
alguns planos com atores que se encontravam atrás da câmera e que podiam
entrar em ação a qualquer momento. Além disso, nada estava previsto, mas já
estava inscrito no clima que se instalou. Foi por isso que eu filmei os planos em
ordem: o segundo depois do primeiro, etc. Mesmo não havendo continuidade,
nós podíamos retomar no final do clima. Nós filmamos apenas uma tomada de
cada vez, não havia possibilidade de repetição já que a seqüência nascia de um
certo estado dos atores. Não foi algo previsto. Eu achei mesmo que isto
ultrapassou um pouco o clima geral do filme, mas depois, durante a
montagem...
233
O comentário de Glauber, preciso quanto ao emprego da técnica do cinema direto em O
dragão da maldade, nos informa sobre sua metodologia em relação aos atores que deviam dar
uma existência aos personagens, criar suas próprias representações. Esse filme rejeita a forma
tradicional de representação cinematográfica na qual a atuação dos atores deve ser o mais natural
possível a fim de passar ao público a impressão de veracidade. Obviamente, o espectador comum
não leva em conta que essa naturalidade é acompanhada de um trabalho prévio (roteiro, direção)
que informa ao ator o modo como o personagem deve ser interpretado. A suposta naturalidade do
ator depende, portanto, do domínio das técnicas de arte dramática.
Negando essa forma de interpretação, onde o artificial se faz passar por natural, em O
dragão da maldade os atores (livres dos códigos da representação clássica) atuavam
231
Youssef Ishaghpour. Op.cit., 1982, p 19 (trad. S.R.B.N.)
232
Michel Delahaye, Pierre Kast e Jean Narboni. Op.cit., p 34.
233
Ibid. (trad. S.R.B.N.)
149
espontaneamente diante da câmera que se limitava a reproduzir seus movimentos. “Interpretação
da representação, ou melhor, esta atitude nevrótica, esta procura por catarse. Brecht e
Stanislavsky ao mesmo tempo.”
234
Como o próprio Glauber fez questão de ressaltar, O dragão da maldade é resultado de um
trabalho entre a equipe e os atores que deviam “se desembaraçar de sua educação”, ou seja, de
sua educação dramática. Negando a dramaturgia tradicional, o papel de Glauber era criar um
envolvimento entre os atores e as pessoas da comunidade (da vila de Milagres, onde o filme foi
rodado) que representavam os beatos. Dentro do espírito da tradição eles entoavam cânticos
populares que após algum tempo acabava provocando um certo clima entre os participantes. Em
relação a isso é esclarecedor o comentário do cineasta à cena do ataque de Mata Vaca ao povo
instalado na encosta da montanha:
Quando eu vi as pessoas sentadas eu me perguntei: "Como eu vou filmar o
massacre?" Então eu lhes disse: "Vocês vão morrer, eles vão matá-los". E eles se
puseram a cantar. Cantaram durante quarenta e cinco minutos, uma hora. No
Brasil, existe uma dança bastante violenta, o xaxado. Eu disse aos outros:
"Vocês devem matá-los mas antes devem zombar deles". Eles cantaram um
xaxado e Mata Vaca que é ator de teatro, de uma família burguesa, entrou
também no clima. Eu fiz então dois grandes planos de quarenta minutos sobre
isso. Mas no final de um minuto eu podia parar. Eles já estavam tão dentro do
clima que tiraram as facas e começaram a roçar os pés das pessoas. Se eu os
tivesse deixado continuar eles as teriam ferido. Eles estavam muito satisfeitos
com isso. As pessoas chegaram a uma verdade completa porque aquilo era a
tradição. Depois eu filmei o fuzilamento, mas eu não queria filmar a morte.
Preferi filmar as pessoas mortas.
235
A Glauber não interessava mostrar a violência explícita. Negando o clima de suspense
típico do espetáculo hollywoodiano (onde o ataque, a estratégia e a surpresa, são sentidos como
necessidade dramática) o cineasta voltava sua atenção para o estado alterado dos participantes da
cena, para a violência enquanto estado de espírito.
234
Ibid. (trad. S.R.B.N.)
235
Ibid. p 37 (trad. S.R.B.N.)
150
Mas o filme não se resume, obviamente a isso: a uma experiência com os atores. Na
verdade, apesar de os planos serem muitos longos e do cineasta ter evitado repetir as tomadas
para não quebrar o clima criado entre os atores e os figurantes, há o trabalho de montagem que
implica a utilização de uma técnica visando à organização da narrativa. Referindo-se a isso, ou
seja, à relação entre o trabalho de criação desenvolvido pelos atores e o específico
cinematográfico (processo de montagem, cortes no material filmado, etc.) Glauber comenta:
Eu deixei toda liberdade à nível dos diálogos, mas na montagem, em
compensação, eu adotei uma disciplina muito rigorosa. Eu escolhi os planos
carregados do ponto de vista informativo. Alguns eram talvez muito carregados,
mas eu não queria suprimir suas informações, eu queria fazer o contrário de
Terra em transe, estabelecer outras relações dialéticas entre a montagem e o
monólogo.
236
Caracteriza-se, assim, o filme por um duplo processo de improviso e obediência aos
códigos cinematográficos. Nesse aspecto, O dragão da maldade lembra a técnica de composição
dos poetas populares. Recordando o que comentamos anteriormente a propósito do desafio de
cordel, verifica-se, no trabalho em questão, a mesma relação entre criação de improviso e
subordinação à tradição. O poeta popular cria obedecendo à tradição e essa é efetivamente a
condição para a participação do público na performance. Isso também procede para o cinema.
“Se nós montássemos os filmes como eles foram filmados, isso se tornaria insuportável”, diz
Glauber
237
. O que está em jogo nessa observação é o ponto de vista do público. O cineasta tem
isso em conta, principalmente nesse filme onde a novidade (a ruptura) não está, como em Deus e
o diabo, por exemplo, condicionada ao uso revolucionário da técnica de montagem.
Em O dragão da maldade a ênfase é sobre o ato de representação, sobre a teatralidade.
Tendo como pano de fundo a tradição oral (os cantos rememorados pelas pessoas da comunidade
que participaram das filmagens), o que aqui se destaca são os gestos, a voz, a sensorialidade,
236
Ibid. p 26 (trad. S.R.B.N.)
237
Ibid. p 34 (trad. S.R.B.N.)
151
aspectos relacionados a formas improvisadas de representação. Contudo, para além do improviso,
da experimentação (com o som direto, por exemplo) observa-se, da parte do cineasta, a
preocupação com as convenções cinematográficas. Procurando dialogar com um gênero popular
como o western e evitando, tanto quanto possível, as extravagâncias formais, o cineasta, tenta,
nesse filme, chegar ao público, ao espectador. “O cinema é uma comunicação de massas no
sentido mais aberto possível, não é a história das sociedades secretas”
238
. Porém, não se trata, de
fazer concessões. O filme tem uma estrutura linear e personagens que representam arquétipos do
cinema tradicional. Tais aspectos, que o tornam acessível ao público geral, não comprometem,
por outro lado, sua proposta experimental. Um ponto que deve ser ressaltado no que se refere à
questão da experimentação é o trabalho desenvolvido com os atores e com os figurantes. O outro
é o uso das tradições populares, assim como o da arte culta, caso, por exemplo, da música de
Marlos Nobre que acompanha várias cenas do filme. O compositor, que alia a tradição às
experiências de vanguarda, critica o costume de se produzir cópias da tradição. Nesse sentido,
suas criações para O dragão da maldade não estão preocupadas em seguir “ao pé da letra” a
história contada pelo filme mas em traduzir musicalmente o sentimento que dela brota fazendo
surgir, como ele mesmo diz, o terror: “O terror não tem Deus, não tem espírito, não tem saída, e
será que o mundo tem saída?”
239
3.4 – O teatro da violência e o novo espectador
No espírito do western Glauber reencontrou o sertão brasileiro, inaugurando um cinema
agônico onde a violência é sentida como um processo. Mas a violência em O dragão da maldade,
não diz respeito (pelo menos de forma determinante), como em outros trabalhos do cineasta, à
238
Ibid. p 38 (trad. S.R.B.N.)
152
dialética da montagem. Nesse filme, ao contrário, por exemplo, de Deus e o diabo, fortemente
influenciado pelo princípio eisensteiniano do choque
240
, a violência se concentra no plano, na
mise-en-scène. Ivana Bentes chama a atenção para esse aspecto comentando sobre a teatralidade
de Terra em transe e do Dragão e sua radicalização nos filmes posteriores, feitos fora do Brasil,
O leão de sete cabeças e Cabeças cortadas
241
. Quanto a Glauber, a questão da teatralidade em
seus filmes é definida da seguinte maneira:
... como o teatro moderno está levando o cinema às massas, assim o cinema deve
levar muito teatro dentro de si; esse é o meu ponto de vista, não pretendo que
seja uma teoria. É uma experiência minha, utilizo o teatro por trás dos meus
filmes deliberadamente; por isso jamais dirigiria teatro; já o tenho nos meus
filmes e me agrada. Do mesmo modo que utilizo o teatro, emprego também a
ópera: creio que tudo isso funcione para aquilo que quero exprimir. O que não
quer dizer que amanhã não possa fazer algo diferente. Não me agrada o cinema
barroco, eu o faço, mas agradam-me cinemas diferentes do meu...
242
No último trabalho realizado pelo cineasta antes de sua partida para o exílio, o teatro de
Brecht aparece como referência. Admirável adaptação das teorias do dramaturgo alemão ao
contexto brasileiro, O dragão da maldade transpõe para a realidade do Nordeste o efeito de
distanciamento brechtiano, provocando, por meio do impacto visual e auditivo das cenas, uma
ruptura com aquilo que se admite como regra dos filmes de suspense e ação. Se o cinema
convencional visa a um efeito de realidade onde o espectador é pego pelo seu desejo de ver, de
saber e de desfrutar da ação, o ‘distanciamento’ consiste em frustrar esse desejo pela redução do
movimento, pela apresentação de um texto e de atores em uma paisagem, pela total exterioridade
das figuras e do lugar.
239
João Marcos Coelho. « Santo e Dragão ». (Entrevista com Marlos Nobre). Revista Bravo. São Paulo, Ed. Abril,
julho de 2004, ano 7, n. 82, p 28
240
Ver a respeito a análise de Jacques Aumont. « Eisenstein chez les autres » in Pour un cinéma comparé –
influences et répétitions, sous la direction de Jacques Aumont, Conférences du Collège d’histoire de l’art
cinematographique, Cinémathèque Française, 1996. p 111-129.
241
Ivana Bentes. « Introdução ». Op.cit., 1997, p 43.
242
Glauber Rocha in A. M.Torres. Glauber Rocha y « Cabezas Cortadas ». Barcelona, Anagrama, p 35 citado por
Cláudio M. Valentinetti. Glauber Rocha : um olhar europeu. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, Prefeitura
do Rio, 2002, p 146-147.
153
A ocupação do espaço, a entrada e apresentação dos protagonistas, sua participação na
ação, a figura do coletivo, a sonoridade, transgridem as convenções do gênero a que, a princípio,
o filme de Glauber parecia se vincular.
A violência no western clássico surge como um dado natural da ação, não do
pensamento, nesses filmes se age de forma violenta contra a lei, na defesa da lei
e os personagens sofrem a violência ou agem violentamente sem que o
espectador sofra qualquer sobressalto moral por isso. Pois quem é bom, mata em
nome da lei, e quem é mau mata em nome da sua ‘maldade’ ou sentimento de
vingança individual.
243
Glauber transcende essas convenções porém, as transcende ao mesmo tempo em que as
enriquece com uma mitologia própria. É isso, por exemplo, que está em jogo em relação ao
personagem de Antonio das Mortes:
... ele está ligado à sua própria tradição cultural que é a de um matador, e ele se
reporta também a toda uma tradição do western... Em um western americano
existe já uma convenção estabelecida. Quando o herói aparece nós já sabemos
quem ele é por seu cavalo, por sua roupa: ele já porta todas as informações.
Aqui, o herói não pode portar informações porque nós não temos tradição
cinematográfica ou literária que fale disso. E isso talvez seja um limite para o
cinema.
244
Nesse comentário, Glauber se refere a um herói estereotipado cujo modelo está sujeito a
infinitas repetições. O herói de seu filme não pertence a essa linhagem, embora se reporte a duas
tradições enraizadas na memória popular: a do western e a dos heróis imortalizados nas narrativas
que circulam pelo sertão. O dragão da maldade retoma a história interrompida em Deus e o
diabo mas sem recorrer à figura do narrador. Nesse caso, quem exerce o papel do narrador é um
enunciador, um organizador invisível do relato
245
.
243
Ivana Bentes. « Estéticas da Violência no Cinema ». Revista Semiosfera, dez.2003. Disponível em
http://www.eco.ufrj.br/semiosfera/anteriores/especial2003/conteudo_ibentes.htm
244
Michel Delahaye, Pierre Kast e Jean Narboni. Op.cit., p 34.
245
« Como caracterizar o modo do filme endereçar-se a mim ? Posso traduzi-lo pela fórmula "alguém me fala" ? Ao
contrário disso, normalmente, eu tenho a sensação de que os objetos que vejo na tela estão lá por eles mesmos, como
se eles próprios se dessem a ver. Eu os vejo porque eles eso lá, mas dizendo isto eu esqueço que se eles estão lá é
porque existe alguém que os mostra (é a diferença entre ocularização e mostração). Sublinhamos "alguém" os
mostra ; o recurso ao pronome indefinido traduz bem o embaraço que há ao designar a fonte do ato de enunciação.
Este é mesmo um dos pontos de divergência atual dos pesquisadores. » (trad. S.R.B.N.) in André Gardies. Op.cit., p
119-120.
154
***
O enunciador é uma instância que fala ao espectador tentando envolvê-lo de um certo
modo na história. Daniel Dayan
246
, em sua análise de O tempo das diligências (Stagecoach de
John Ford, 1939) comenta sobre esse envolvimento informando-nos sobre vários procedimentos
de enunciação voltados para tal objetivo, ou seja, programar o espectador, que ele denomina
“destinador imanente”. Sobre o filme de Ford, Dayan analisa algumas situações onde o
espectador é levado a avaliar positivamente o comportamento, a princípio, considerado negativo
de algum personagem, ou vice-versa. O filme, por intermédio do que o autor chama de
“intervenções enunciadoras”, provoca no espectador a necessidade de suspender seu veredicto.
Ele não pode simplesmente aprovar ou condenar o personagem. Por outro lado não pode abster-se
de julgá-lo. Inerente à problemática judiciária que constitui a ossatura narrativa do filme, o
julgamento deve ser preservado e a sua prerrogativa reservada ao espectador.
Se em Stagecoach a desorientação do espectador (quanto ao verdadeiro caráter do
personagem) é uma estratégia para mantê-lo interessado no desenrolar da história, em O dragão
da maldade o que está em jogo, em relação ao espectador, é menos o suspense que o envolve do
que a sua posição crítica face às imagens. Trata-se na verdade de uma recusa da imagem em
cativar o espectador. Diríamos que nesse filme a enunciação se faz mais a favor da exposição do
que do julgamento. Embora a narrativa se concentre no processo de transformação de Antonio
das Mortes, que passa da condição de mercenário do governo e dos latifundiários para o lado do
povo, não nos sentimos diante de um julgamento. De fato, as imagens visam menos à construção
de um clima de suspense (voltado para o pocionamento favorável ou desfavorável do espectador
diante do personagem) do que um efeito de sobressalto. A violência aqui não diz respeito à trama.
246
Daniel Dayan. « Le spectateur performé » in Hors Cadre-2 – Cinénarrable-2, Presses et publications de
l’Université Paris VIII, Vincennes-St.Denis, 1984, p 137-149.
155
Ela se endereça ao espectador que, diante do inusitado concerto de formas, cores e sons, reage de
modo diferente do espectador convencional. Quanto ao enunciador, seu papel não é o de afetar
emocionalmente o espectador, levá-lo a se envolver com a história, com os personagens, mas de
provocá-lo em suas convicções.
Daniel Dayan comenta sobre isso (sobre os procedimentos de ruptura das convicções do
espectador) mencionando algumas cenas do filme de John Ford onde se observa o conflito, no
interior de um mesmo enunciado, de dois significados contrários; o primeiro visível, que o autor
chama de “performativo do filme”, é anulado pelo segundo invisível que invalida as regras do
primeiro: « um “performativo pelo filme que, maliciosamente, se propõe a invalidar estas regras,
a privá-las de suas condições mínimas de definição ou a lhes substituir, a lhes impor um outro
conjunto de regras constitutivas.”
247
Em Stagecoach a cena do desafio de Luke Plummer no bar
de Eldorado Saloon explicita o comentário:
Quanto ao desafio de Luke Plummer, ele é vazio de toda significação; ele deixa
de ser um desafio na medida em que uma das regras constitutivas do ato de
desafiar não é cumprida : não há ninguém para se opor ao desafio e tampouco
para recebê-lo. O olhar provocador de Luke Plummer varre o espaço mas
encontra olhares submissos. O "comissivo" que constitui o desafio, onde a
vitória representa a derrota da outra parte, não se processa. O comportamento de
Luke Plummer não é aprovado nem reprovado já que não são preenchidas as
condições que lhe permitiriam aceder ao estatuto de definição requerido.
248
A invasão de Jardim das Piranhas pelo bando de cangaceiros e beatos seguida pelo desafio
de Coirana aos poderosos locais remete ao mencionado anteriormente. Citada no começo do
presente capítulo, tal cena (a do desafio de Coirana) lembra em vários aspectos a seqüência do
desafio de Luke Plummer. Como o personagem de Stagecoach, Coirana se coloca na condição de
desafiante porém, sua atuação não lhe permite cumprir os protocolos do desafio.
247
Ibid., p 147 (trad. S.R.B.N.)
248
Ibid., p 146 (trad. S.R.B.N.)
156
Ocorrido na praça central da cidade, o desafio protagonizado pelo cangaceiro é precedido
por um cortejo onde os movimentos dos participantes lembram experiências rituais. Entre estes,
destacam-se a Santa, o Negro Antão e Coirana a quem caberá a tarefa de falar aos habitantes do
vilarejo. A introdução de elementos da esfera ritual na cena do desafio, rompe, antes mesmo do
seu início, com o efeito de violência que caracteriza esse tipo de representação.
A cena é montada como uma espécie de teatro ao ar livre. Como se estivessem em um
palco, os personagens principais (a Santa, o negro, o professor, o delegado) entram e saem do
campo, caminhando silenciosamente de um lado para o outro ao redor de Coirana que no centro
da praça aguarda o momento de falar. A câmera fixa, posicionada frontalmente para os
personagens, por um breve momento se desloca em panorâmica sobre a praça mostrando o povo,
que assiste calado ao episódio, e o coronel que, apoiado em seu capanga, procura entender o que
se passa. O plano é interrompido dando lugar a um quadro fixo onde Coirana, entre a Santa e o
negro, fala ao povo proclamando vingança aos seus inimigos.
As palavras do cangaceiro são endereçadas aos representantes do mal. Mas não há
oponente direto. Não há violência explícita. Não há ação nem suspense. Não há vitória nem
derrota. Marcado pela ausência de movimento, pelo excesso de gestos, pela ênfase na palavra
declamada, o desafio de Coirana aparece como uma recusa às regras do desafio, ou melhor, da
representação cinematográfica do desafio.
O modo como a cena é montada sugere uma aproximação com a técnica desenvolvida
pelos poetas populares durante suas disputas poéticas. Uma das práticas correntes no desafio de
cordel é a apresentação dos dois participantes antes de iniciada a disputa. Dirigida ao público
mais do que ao próprio adversário, a apresentação é o momento da performance em que os poetas
falam de suas proezas ao mesmo tempo em que insultam o oponente chamando-o de fraco,
covarde, corno e por aí vai. Dependendo da capacidade de improviso dos poetas, os insultos se
157
estendem, o público se envolve, dá risadas, apóia um dos cantadores, enfim, entra no jogo. Na
verdade, tudo se passa mesmo nesse nível, do jogo, do duelo verbal, da violência simulada o que
nos remete ao desafio de Coirana.
Voltando ao comentário feito anteriormente sobre o “performativo no filme” e o
“performativo pelo filme”, diríamos que existe, na cena há pouco comentada, um conflito entre
performativos; um conflito entre o que é mostrado (o desafio que Coirana dirige às autoridades de
Jardim das Piranhas) e o que não é mostrado, ou seja, uma segunda escritura que de uma certa
forma anula a primeira. Em relação a isso, Daniel Dayan reporta-se a Bakhtin, ao conceito
bakhtiniano de “dialogismo”:
... o dialogismo bakhtiniano se caracteriza pela recusa desta conformidade em
relação ao já escrito, que denominamos "realismo" (ou "verossimilhança"); ele
se caracteriza tecnicamente pela manutenção de uma distância entre os textos
citados e aquele que se elabora citando-os ; distância da qual depende
precisamente a possibilidade do diálogo.
249
Essa distância entre os dois textos, o texto representado e o que perpassa tal
representação, é o que, em O dragão da maldade, provoca no espectador o efeito estranhamento,
a ruptura de suas convicções em relação à história contada. Trata-se de um western? Trata-se da
história de um vilão que vai se transformar em herói? O filme é isso? O filme é só isso? O que é
o filme?
Tentar descrever uma obra tão rica em referências quanto a que estamos analisando é
tarefa quase impossível. Um ponto, entretanto, nos parece muito claro (praticamente todos os
autores que escreveram sobre o filme o comentaram embora sem uma análise específica à
questão) que é o uso do cordel como elemento articulador da narrativa. Isso tanto em relação a O
dragão da maldade quanto em relação a Deus e o diabo, onde a história narrada visa à repetição
da história mostrada por meio das imagens. Aqui, no entanto, não é isso que está em jogo, mas de
158
um recurso à tradição popular do cordel, no caso, ao desafio de cordel, visando modificar o
sentido do desafio representado. Ponto alto dos filmes de faroeste, o desafio constitui um
elemento de referência para Glauber Rocha que o representa, representando outra tradição: a do
desafio popular. Não se trata, portanto, de representação, mas de representação da representação;
uma espécie de teatralização do desafio.
Por meio do cordel Glauber Rocha coloca em destaque o artifício da representação
provocando a desmontagem do espetáculo convencional e as convicções do espectador em
relação ao seu conteúdo. É nesse sentido que Brecht é apropriado pelo cineasta; uma apropriação
que passando ao largo do próprio Brecht (em certos filmes, critica Glauber, os atores ficam
imóveis por vários minutos a fim de provocar um incômodo no espectador
250
) se dirige para
nossas tradições que, por sua vez, são também desmontadas e apropriadas com novo significado.
O dragão da maldade não é, exatamente, um filme fragmentado mas ele trabalha com
fragmentos de várias tradições, ou melhor, com seus destroços. A imagem é a do Angelus Novus.
“Uma tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas enquanto o
amontoado de ruínas cresce até o céu
251
. O quadro de Paul Klee citado por Benjamin em suas
teses Sobre o conceito da história nos lembra que a violência nasce do espanto. Voltando ao
comentário de Ivana Bentes sobre o tratamento da violência no western, o mal, no filme de
Glauber Rocha, não é individualizado, associado à figura do vilão. Ele é, como diz Ivana, um
dado do pensamento. A violência, nesse caso, diz respeito ao ato de recepção.
249
Ibid., p 147 (trad. S.R.B.N.)
250
« Nós dizemos : pois é, Brecht ; e todas as peças são montadas segundo os princípios da mise-en-scène, do
distanciamento, de Euripe a Ionesco... Os atores imóveis, a mise en scène é pobre. Ainda que Brecht mesmo tenha
dito que às vezes a teoria... » (trad. S.R.B.N.) in Michel Delayae, Pierre Kast e Jean Narboni. Op.cit., p 29
251
Walter Benjamin. Op.cit., 1993, p 226.
159
O modo como o espectador é implicado na performance deve ser levado em conta. Como
diz Daniel Dayan, “o espetáculo é inseparável do modo de participação que o implica”
252
.
Referindo-se a Stagecoach, Dayan comenta que: “o cinema clássico, como outros textos de
ficção, simula a recepção do texto, simula a participação do espectador”
253
. Em Stagecoach o
jogo de contrários, o conflito entre performativos, visa ao envolvimento do espectador na trama.
Pensando que tem o poder de julgar, o espectador está, na verdade, sendo programado para
receber determinado tipo de informação. “Aparentemente aberto às variações individuais, o
domínio das atitudes, dos afetos do espectador poderá, de fato, ser objeto de uma programação
bastante estrita”
254
. Diferente, por exemplo, de O dragão da maldade, onde o diálogo entre
performativos obriga o espectador a tomar uma certa distância em relação ao narrado, a
questioná-lo, a adotar uma posição crítica. Nesse filme, ao contrário da recepção individualizada
(que é na verdade uma recepção programada) do cinema narrativo clássico, o espectador participa
como membro de um público
255
: um público entre o retratado no filme e o visado pelo espetáculo
brechtiano.
Comentamos no início do presente capítulo sobre a relação de troca, existente na
performance popular, entre o intérprete e o público. É também nesse tipo de relação que se baseia
o teatro de Brecht onde a platéia, provocada pelos atores, torna-se parte integrante do espetáculo.
Em Glauber, no filme que analisamos, verifica-se a presença desses dois processos. A
experiência do improviso, comentada na entrevista ao Cahiers du Cinéma, coloca em relevo a
tentativa do cineasta envolver os atores em um clima de êxtase coletivo, de violência. Os cantos
lembrados pela população local detonariam o processo de criação que a filmagem, por sua vez, se
252
Daniel Dayan. Op.cit., p 149 (trad. S.R.B.N.)
253
Ibid. (trad. S.R.B.N.)
254
Ibid. p 138 (trad. S.R.B.N.)
255
Sobre a questão do público (a relação entre esfera pública e privada) ver Junger Habermas. L’espace publique.
Paris, Payot, 1978.
160
encarregaria de revelar. Estamos aí muito próximos aos procedimentos do teatro experimental.
Porém, deve-se levar em consideração, que se trata de um filme e que esse filme, apesar de
incorporar certas experiências teatrais, não é, como fizemos questão de ressaltar anteriormente,
teatro (teatro filmado).
Não há no filme, como no teatro, a mesma possibilidade, o mesmo nível de interação
entre o público e o ator. Porém, apesar de negada a participação do espectador, algum tipo de
reação dele se espera. O dragão da maldade lida com essa expectativa. Filme de “enunciação
marcada”, ele estabelece com o espectador uma relação equivalente a que se estabelece entre o
jogador e o jogo: o jogador, quando joga, sabe que está jogando. No caso de O dragão da
maldade, o espectador em nenhum momento deixa de reconhecer o ato de enunciação: ele sabe
que está assistindo ao desenrolar de uma história mas que aquela história não se desenrola por si
só. Há uma instância que a conta, ou melhor, que a representa e que é colocada em evidência a
fim de, como diz Roger Odin, “bloquear parcialmente certas operações constitutivas do processo
de ficcionalização”
256
. Ao contrário do espectador ficcionalizante, o novo espectador aceita, ou
melhor, exige que a ficção seja mostrada como ficção. O autor comenta sobre isso na análise que
realiza de Metrópolis,
um filme que havia sido concebido originalmente para funcionar sobre o modo
ficcionalizante (que construía um espectador implícito ficcionalizante) e que, na
ocasião de sua recente reedição, viu seu modo de funcionamento mudar
radicalmente para se conformar precisamente à demanda dos novos
espectadores.
257
Entre as modificações introduzidas na versão de Metrópolis de 1984 de Giorgio Moroder,
Odin cita o uso da cor e da música. “O lugar do filme se desloca, assim, da história para as
256
Roger Odin. « Du spectateur fictionnalisant au nouveau spectateur : approche sémio-pragmatique » in Iris
(Cinéma & Narration 2), n. 8, 2 semestre, 1988, p 131 (trad. S.R.B.N.)
257
Ibid., p 130 (trad. S.R.B.N.)
161
vibrações difundidas na sala pelo complexo plástico-musical”
258
. Em termos dos efeitos
provocados pelo filme, a posição desse novo espectador citado por Roger Odin pode ser
comparada à do espectador de O dragão da maldade. Porém, “em Rocha a provocação é pré-
fílmica”, comenta Pasolini referindo-se ao filme em questão:
a câmera opera regularmente, eu diria, classicamente; e mesmo a realidade
manipulada face à câmera se comporta regularmente (certas danças
carnavalescas dos negros, a paisagem, o duelo, etc.): mas eis que aparece,
repentinamente, um sopro de liberdade "como afirmação sadomasoquista da
consciência metalinguística": ela se manifesta de modo pré-fílmico, em cenas
precisamente... sadomasoquistas (uma espécie de coito sobre um corpo
ensangüentado) ou em epifanias voluntaristas (a mulher liberdade vestida de
roxo) que procuram e obtêm o martírio. Eu repito o mesmo refrão: os
espectadores são feridos pelo diretor "consciente de sua linguagem" e ferem, por
sua vez, o diretor (com exceção dos espectadores privilegiados que
compartilham com ele a idéia de que o escândalo radical é necessário).
259
Caracterizadas por um tipo de estímulo sensorial diferente do que costuma ser consumido
no cinema, as cenas de O dragão da maldade desferem sobre o espectador um impacto
imprevisto. Nesse “cinema impopular”, como denomina Pasolini, o espectador se sente ferido,
fustigado pelas imagens. Aqui a preocupação com a verossimilhança inexiste. Não se trata de
uma representação ‘naturalista’ da violência, de um discurso sobre a violência, mas de uma
comunicação através da violência
260
.
3.5 – Cultura popular e carnavalização
Ao longo do presente trabalho temos, algumas vezes, comentado sobre o tema da
violência na literatura de cordel. Falamos sobre o legado épico da violência, sobre a violência nas
novelas de cavalaria e sobre o processo de transmissão da tradição cavalheiresca; como ela foi
incorporada pelos poetas sertanejos que foram, por sua vez, incorporados pela tradição letrada.
258
Ibid., p 134 (trad. S.R.B.N.)
259
Pier Paolo Pasolini. L’expérience hérétique. Paris, Payot, 1976, p 131 (trad. S.R.B.N.)
260
Sobre essa questão ver Ivana Bentes. Op.cit., 2003.
162
Representada por artistas como Ariano Suassuna, Glauber Rocha, entre outros, essa herança
épico-sertaneja está presente na obra do cineasta particularmente em Deus e o diabo na terra do
sol. Já em O dragão da maldade contra o santo guerreiro Glauber lida com outras referências da
literatura popular, recorrendo, por exemplo, ao riso, ao grotesco, instâncias associadas à noção de
inversão da ordem, conforme o conceito bakhtiniano de carnavalização
261
.
Na primeira parte de O dragão da maldade o desafio (uma paródia, a partir do desafio de
cordel, dos duelos do western) constitui o principal elemento de inversão da ordem narrativa. Ele
é citado (já o destacamos ao longo da presente análise) em dois momentos importantes: durante a
invasão de Coirana e seu bando à cidade de Jardim das Piranhas e depois, quando Antonio das
Mortes, até então decidido a eliminar os invasores a pedido das autoridades locais, entra em
confronto com o cangaceiro. O desfecho do duelo vai provocar uma reviravolta no rumo da
história. Antonio vai iniciar um processo de conscientização ao mesmo tempo que em o coronel,
traído pelo matador (que passa para o lado dos beatos) e por Laura (cujo romance com o delegado
é delatado por Batista), começa a organizar a batalha final contra seus inimigos.
As cenas, em montagem paralela, indicam que ação se divide em dois espaços opostos e
complementares: a encosta do morro, onde o povo se reúne para assistir a agonia de Coirana, e o
centro do vilarejo, local onde a ação se desenrola, os acontecimentos se desencadeiam: o bando
de Mata Vaca chega à cidade, o delegado é executado pela amante, os jagunços se preparam para
exterminar o povo aglomerado no alto do morro.
Há também, acompanhando essa divisão do espaço, uma diferença em termos de ritmo:
num caso, a quase ausência de movimento, os planos fixos, a paisagem, a força da palavra; no
outro, a representação do movimento, os cortes freqüentes, o fluxo dos acontecimentos, a
precipitação do riso e do grotesco.
261
Mikhail Bakhtin. Op.cit.
163
Associado ao espaço dominado pelo coronel, ou seja, ao mundo da ordem, o riso sugere,
ao mesmo tempo, uma inversão à essa ordem. Na cena em que Laura e Matos são desmascarados,
o povo às risadas assiste à humilhação do marido e à covardia do delegado. Já a cena do massacre
dos beatos é marcada pelas gargalhadas do bando enviado pelo coronel que antes de iniciar a
matança debocha do povo indefeso cantando à espera da morte. Após a carnificina, entre os
corpos espalhados pelo chão, Mata-Vaca continua sua risada histérica diante dos dois
sobreviventes: o negro, que, humilhado, suporta as provocações do assassino e a Santa que o
encara impassivamente. O riso aqui, contrastando com a seriedade do momento, expõe a
violência das práticas de poder e o lado vulnerável dos poderosos.
A idéia de inversão é caracterizada, de um modo mais mórbido, na cena (citada por
Pasolini) em que Laura e o professor rolam sobre o corpo do delegado Matos, assassinado pouco
antes pela amante. A ligação da vida com a morte, de Eros com Tânatos, por meio do ritual
orgiástico é outro aspecto do processo de carnavalização. Na concepção dominante a morte não
pode ter qualquer contato com a vida. Típica da cultura oficial, que considera um tabu a
aproximação entre os dois pólos, tal separação é anulada pela cultura popular que reúne o que
estava separado. A degradação, o grotesco, têm, portanto, um sentido de quebra de tabu, de
insubordinação; no caso do filme, de inversão da ordem representada pelo coronel.
No realismo grotesco, o riso está associado à morte, ao corpo, à ruptura com o sublime,
com a estética clássica. Uma das imagens recorrentes (nisso que Bakhtin chama de “gêneros
baixos”) é a do inferno que, negando a versão da cultura dominante, mantém uma relação
essencial com a verdade popular não oficial. No folheto Chegada de Lampião ao inferno de José
Pacheco, tal imagem se destaca. Aqui a morte é tratada pelo viés do cômico, do jocoso. Bakhtin
afirma que essa seria uma forma de vencer o medo. “De forma geral é impossível compreender a
164
imagem grotesca sem levar em conta esse medo vencido. Brinca-se com o que é temível, faz-se
pouco dele: o terrível transforma-se num "alegre espantalho".”
262
O folheto de José Pacheco marca a terceira parte do filme iniciada pela imagem do corpo
de Coirana preso a uma árvore lembrando a figura de um Cristo crucificado. Mas a idéia de
sacrifício religioso é, de certa forma, relativizada nos versos do poema: Morreu cem negro velho /
que não trabalhava mais / e um cão chamado Traz-Cá / Vira-Volta e Capataz / Tromba-Suja e
Bigodeira / um por nome de goteira / cunhado de Satanás / Vamo tratar da chegada / quando
Lampião bateu / um moleque ainda moço / no portão apareceu / Quem é você cavalheiro? /
Moleque, sou cangaceiro / Lampião lhe respondeu...
Cantado em off durante o epílogo do filme, ele acompanha a cena em que o coronel
Horácio e Laura, transportados em uma marquesa por Mata-Vaca e seus jagunços, cruzam em
cortejo uma região agreste em direção à cidade. Servindo como elemento de ligação entre os dois
espaços até então separados, o dos oprimidos e o dos opressores, a narração do folheto continua
enquanto a imagem se fixa na igreja, diante da qual ocorrerá o duelo final.
Partindo de Antonio das Mortes, a convocação para o duelo se faz também nos termos da
tradição do cordel: Quero que apareça o chamado Mata-Vaca! É covarde, corredor, é filho duma
macaca! Na ponta da peixeira se prepara pra rezar! Na ponta da peixeira que venha seis para
começar!
Após o desafio de Antonio, Mata-Vaca puxa o facão e avança sobre o adversário. O duelo
é acompanhado pela voz off de uma mulher que entoa uma incelença dando ao episódio um ar de
solenidade : Misericórdia, meu Deus! Misericórdia, meu Deu ! Antonio das Mortes chegou /
Mata-Vaca correu / com medo de seu facão / Misericórdia, meu Deus...
262
Ibid., p 79.
165
A cantilena é interrompida por uma explosão de tiros que marca o início efetivo da
batalha entre os representantes do bem e os do mal. Os jagunços se jogam no chão para atacar
enquanto o professor e Antonio das Mortes defendem suas respectivas posições: Antonio luta
“com a sua valentia” e o professor “com a força das suas idéias”. Durante o tiroteio Laura é
atingida, Mata-Vaca e seus jagunços são baleados e o oronel, abatido pela lança do negro Antão,
cai morto ao som dos últimos versos do folheto: Houve grande prejuízo / no Inferno nesse dia,
queimou-se todo dinheiro / que Satanás possuía, / queimou-se o livro de ponto, / perderam
seiscentos conto / somente em mercadoria...
O tom de zombaria do cordel de José Pacheco contradiz a seriedade do momento. A
violência é relativizada, colocada entre parênteses. Aqui a arma mais poderosa contra o inimigo é
a ironia, o riso que derruba as hierarquias, desmoraliza o poder, vira do avesso os símbolos da
violência e da cultura oficial. Subvertendo-a, O dragão da maldade recorre ao desafio de cordel,
ao folheto, aos cantos lembrados pela população local, às explosões de energia criativa que
surgiam em determinados momentos da filmagem, ao improviso, ao riso, ao carnaval, em última
análise. “Não se trata de espontaneísmo, mas de um trabalho ligado às raízes profundas da
representação”
263
, diz Glauber.
***
O carnaval como espetáculo participante, onde não existem barreiras entre a platéia e o
palco, entre o público e a performance, é recuperado por Glauber Rocha nesse filme que refaz
cinematograficamente o caminho percorrido “pelas vanguardas históricas dos anos 1920 e pelo
teatro alternativo dos anos 1960, por exemplo, pelo Living Theatre ou, no Brasil, pelo Teatro
Oficina.”
264
263
Michel Delayae, Pierre Kast e Jean Narboni. Op.cit., p 33 (trad. S.R.B.N.)
264
Robert Stam. Bakhtin : Da teoria literária à cultura de massa. São Paulo, Ática, 1992, p 47.
166
Poderíamos dizer que O dragão da maldade é um filme que trabalha quase no nível da
instantaneidade, da criação simultânea à captação da imagem
265
. Estamos aí muito próximos do
cinema documentário, inclusive em relação ao uso do som direto que até então não havia sido
empregado por Glauber Rocha
266
. A preocupação com a sincronização, com a captação do som
no momento de sua emissão é um ponto que deve ser ressaltado na medida em que o referido
filme se apresenta como uma performance, como um ato de criação coletiva, como em Brecht, no
teatro de vanguarda e na própria cultura popular (na tradição oral, de um modo geral).
Como mencionou o cineasta em sua entrevista ao Cahiers du Cinéma
267
, houve, nesse
filme, a preocupação da equipe em promover o entrosamento dos habitantes da cidade onde
aconteceram as filmagens com os atores cuja atuação espontânea, livre dos procedimentos
dramáticos convencionais, se fez em meio ao clima criado pelos cantos lembrados pelo povo e
seus movimentos ritmados. O filme, nesse ponto, é quase um documentário sobre as práticas
populares. Mas sem o objetivo de retratá-las, documentá-las, como no chamado cinema-verdade.
Pois o que está em jogo em relação à tradição (a sua verdade) é a sua dimensão transformadora.
***
Atravessado pelas imagens do carnaval popular, O dragão da maldade, além da
carnavalização da ordem social (da inversão simbólica das práticas de poder por meio do
carnaval como lugar de sentimentos de união com a comunidade) propõe a carnavalização das
convenções cinematográficas através de experiências no campo da expressão.
265
Em Câncer, Glauber coloca em prática algumas experiências com o plano seqüência e com o som direto,
importantes para o filme que iria realizar em seguida. O dragão da maldade é resultado de muitas dessas
experiências técnicas e de improviso com os atores realizadas em Câncer, rodado pouco antes da equipe partir para o
interior da Bahia. Ver a esse respeito Claudio M. Valentinetti. Op.cit., p 145-150.
266
A propósito da introdução da técnica do som direto, é interessante a comparação entre Joli mai, documentário
poético de Chris Marker, e o chamado cinema-verdade reputado como instrumento de investigação sociológica in
Guy Gauthier. Chris Marker, écrivain multimédia ou Voyage à travers les médias. Paris L’Harmattan, 2001.
267
Ver nota 233.
167
A preocupação com a forma, é uma constante na obra do cineasta. Já em 1964, em
Estética da fome, a questão era evidenciada. O texto deixava claro que não bastava retratar a
fome; o importante era mudar o modo de retratá-la. Nos filmes anteriores a O dragão da
maldade, o problema também era apresentado. Neste, no entanto, a discussão se radicaliza
tornando-se mesmo o foco do trabalho ou pelo menos da sua primeira parte quando a idéia de
artifício se destaca colocando em discussão a forma clássica de representação. É bastante
sintomática a esse respeito a apropriação do desafio de cordel nas cenas relacionadas à luta.
Estabelecendo um paralelo com o duelo, o desafio de cordel coloca em confronto dois
oponentes. As estrofes do desafio descrevem:
como os adversários saltam ao mesmo tempo, como perdem boas oportunidades,
como vêem cair sobre si uma rajada de balas, como parecem ser igualmente
fortes e como finalmente o cangaceiro se torna vencedor, como consegue matar
o adversário. Estas descrições são inteiramente irreais; tais cenas só deviam
acontecer muito raramente na vida cotidiana.
268
A citação enfatiza a idéia de irrealidade, de luta simulada. O seu propósito é unicamente a
diversão da platéia que participa do confronto como se estivesse participando de um jogo. Esse
lado lúdico da tradição popular deixa de ser dominante na segunda parte do filme. Comentamos
anteriormente sobre a atitude de Antonio das Mortes depois do golpe que este desfecha contra o
adversário. Durante a agonia de Coirana, o matador torna-se mais reflexivo, mais vulnerável. O
tom de brincadeira vai sendo substituído por uma atmosfera de culpa. As lembranças da Santa, de
Antonio e do cangaceiro reforçam essa impressão ao mesmo tempo em que a participação dos
beatos se torna mais carregada, mais séria.
Comentando sobre o filme, Ismail Xavier chama a atenção para a dignidade atribuída ao
dado arcaico, à religião popular, às práticas rituais. Coirana, a princípio percebido como uma
farsa, se transforma em um mártir; um Cristo guerreiro cujo sacrifício anuncia a salvação
168
transferindo a revolução para o plano da realização da profecia
269
. Percebe-se nesse enfoque uma
mudança em relação à idéia, presente nas cenas iniciais, de artifício, de jogo. Mesmo no duelo
entre Antonio das Mortes e Mata Vaca, os versos e as rimas, acompanhados pelo tom monótono e
triste da incelença, não conseguem recriar o clima dos desafios anteriores. No que se refere à luta,
o que antes dizia respeito à forma passa para o plano do conteúdo, da mensagem (apresentada de
maneira quase didática).
Polissêmico, O dragão da maldade oscila entre o tom de brincadeira (a discussão do
problema da representação) e tom sério, o didatismo, o compromisso com a luta revolucionária.
Essa complexidade não costuma ser levada em conta pelos críticos que, normalmente, se atêm à
questão do discurso pedagógico. Negando tal posicionamento, o que aqui pretendemos
argumentar é que além da perspectiva didática, o filme lida com outros parâmetros discursivos.
Em relação à oscilação da forma do discurso, também deve ser considerada a implicação
da equipe (diretor, atores e figurantes) com o filme que foi, segundo seu diretor, sendo composto
à medida em que transcorriam as filmagens
270
. Invertendo as regras do espetáculo
cinematográfico, onde a atuação corresponde a um esquema preestabelecido, essa forma
espontânea de representação significa uma mudança do ponto de vista do ator e do espectador,
uma transformação no modo de olhar. E é nesse sentido que a apropriação de Brecht se justifica.
Resultado da experiência, do envolvimento, da violência nascida da participação, esse
trabalho polêmico
271
, repleto de referências a princípio contraditórias, encerra uma etapa da
produção de Glauber Rocha que, a partir de então, tomará outro rumo.
268
Ronald Daus. Op.cit., p 122.
269
Ismail Xavier. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1993.
270
Ver a esse respeito o comentário de Glauber Rocha na citação referente à nota 233.
271
Sobre a polêmica gerada pelo filme um exemplo é a carta enviada de Londres em outubro de 1970 por Caetano
Veloso à Glauber Rocha in Ivana Bentes. Op.cit., 1997, p 373-379.
169
3.6 – A revolução não pode prosseguir sem revolucionar-se a si mesma,
constantemente, incessantemente...
Essa frase, refletindo a preocupação de certos pensadores do final do século XVIII e
início do século XIX com os rumos da Revolução Francesa
272
, deixa claro que a revolução não é
um alvo mas um processo que pode ter um início mas não tem um fim. Glauber era disso muito
consciente. Em Deus e o diabo ele o expressa por meio da metáfora da busca representada pela
corrida de Manuel em direção ao mar. Já O dragão da maldade é um filme que aponta para o
esgotamento das utopias: não há um sentido, um caminho a seguir, mas um sentimento
melancólico, uma certa desorientação. Contraditório como a própria realidade que tenta retratar, o
filme gerou uma série de mal-entendidos.
Caetano Veloso, em carta a Glauber, teria dito “gozando o Dragão: é uma mistura de
museu da imagem e do som com museu de arte popular”
273
. A posição do compositor, mais tarde
revista pelo mesmo, dá uma idéia da primeira impressão causada pelo filme. Percebido, segundo
observação de Caetano Veloso, como um trabalho de coleta de material folclórico
274
, tal posição
não dá conta da complexidade do mesmo no que diz respeito à questão da intertextualidade.
Recorrendo ao improviso (aos cantos tradicionais, às experiências envolvendo os atores e a
comunidade) e à citação (o desafio de cordel na composição das cenas de duelo e o folheto de
cordel Chegada de Lampião ao inferno acompanhando/zombando do cortejo fúnebre) O dragão
da maldade se apropria das tradições populares negando toda e qualquer suposta representação
272
Entre estes destacam-se o pensador e político inglês do século XVIII Edmund Burke e o francês Alexis de
Tocqueville. Ver Edmund Burke. Reflections on the revolution in France. New York, Delphin Books, Doubleday &
Co., 1961 e Alexis de Tocqueville. O Antigo regime e a revolução. São Paulo, Hucitec, 1989.
273
Ivana Bentes, Op.cit., 1997, p 373.
274
A preocupação com a coleta de cantigas, contos, expressões, jogos, etc. era comum entre os folcloristas do final
do século XIX e início do século XX (Silvio Romero e Celso Magalhães entre outros), cuja prática se voltava para a
preservação da matéria tradicional popular. Negando essa posição, os modernistas procuraram se valer das tradições
dando-lhes um novo tratamento. Um exemplo disso é Villa-Lobos, compositor cuja obra se baseia na mistura do
popular com o erudito.
170
em espelho das mesmas tal como se observava, entre as décadas de 1950 e 1960, nos filmes
documentários e nos filmes de ficção dedicados a retratar o Nordeste e suas manifestações
culturais.
No que se refere a O dragão da maldade, a questão da representação pode ser pensada
nos termos da antropofagia: o popular como alimento para uma nova criação artística. Trata-se de
um diálogo que envolve não só o popular tradicional mas também o popular de massa que no
filme se rebatem e se modificam no sentido de romper com as formas cinematográficas
tradicionais e, de certo modo, com a própria produção do Cinema Novo, nessas alturas já em vias
de se transformar em uma outra tradição.
Ao longo dessa revisão dos códigos de representação também o mito passa por um
processo de retomada crítica. É assim que o filme se utiliza das fontes do imaginário coletivo,
presentes tanto nas narrativas populares do Nordeste quanto nos filmes que se apropriam de seus
arquétipos, dando-lhes uma nova configuração. O dragão da maldade é um trabalho onde
Glauber parodia diversos gêneros mas, sobretudo, sua própria obra, mais especificamente seu
filme anterior sobre o sertão.
A trajetória de Antonio das Mortes, de Deus e o diabo ao O dragão da maldade, coloca
em evidência o processo de desconstrução do mito. Na primeira parte do filme, o personagem do
matador, ainda como em Deus e o diabo, aparece como o vilão decidido a eliminar o cangaceiro,
que surge como herói, e os beatos que o acompanham. Na segunda parte, por intermédio das
palavras da Santa e de Coirana, manifesta-se seu arrependimento e sua disposição a mudar de
lado voltando-se, a partir de então, contra o verdadeiro inimigo do povo, o coronel Horácio.
Percebe-se no personagem uma passagem da dúvida à crise de consciência e, por fim, ao
sentimento de impotência. Já não se trata mais de matar cangaceiro para acabar com o mal. Mas
será que ainda há salvação? No final de sua trajetória, vemos Antonio das Mortes caminhando
171
solitário por uma estrada movimentada entre automóveis e caminhões. Em sua direção desponta o
símbolo da Shell enquanto ouvimos, quem sabe pela última vez, a música que o acompanha desde
o filme anterior: Jurando em dez igrejas, sem santo padroeiro, Antonio das Mortes, matador de
cangaceiro... O monstro talvez esteja fora do alcance da lança protetora de são Jorge mas a
imagem que fecha o filme é a do tríptico do santo guerreiro em sua luta incansável contra o
dragão da maldade.
172
Capítulo 4
Os sertões de Glauber Rocha: 1964 e 1969
Esse capítulo tem como objetivo relacionar os dois filmes de Glauber Rocha sobre o
sertão ao contexto cultural e ideológico de suas respectivas produções. Considerando que houve
uma significativa mudança na forma de ver o mundo e conceber a idéia de revolução no período
que separa os dois filmes, tentamos analisar o quadro de referências culturais que poderiam
justificar as diferentes formas de apropriação da literatura de cordel nos mesmos: em um caso,
lembrando as histórias que circulam nos folhetos, tal apropriação tem como base a idéia de
narração; no outro, inspirada nos desafios repentistas, ela tem como referência a idéia de
performance, de improviso, de que o ato de criação é simultâneo ao da realização.
É importante não esquecermos que O dragão da maldade costuma ser pensado como uma
continuação de Deus e o diabo. Não se trata de uma avaliação equivocada, mas de uma posição
que deve ser problematizada levando em conta que, nesse segundo filme “de aventuras
sertanejas” o cineasta não apenas retomou as questões apresentadas anteriormente; ele as retomou
transformando-as, reinventando não só a tradição do cordel mas a tradição de representação do
sertão no cinema e, para além disso, a sua própria tradição cinematográfica.
Representando um marco entre o antes e o depois no conjunto da obra do cineasta, O
dragão da maldade, como certos folhetos de cunho moralista
275
, trata da metamorfose de Antonio
das Mortes que, de representante do mal, passa à condição de santo guerreiro. No início do filme
o vemos retirado de seu antigo ofício, aposentado, vivendo na cidade grande. Voltando ao sertão
para verificar a veracidade da informação dada pelo delegado, que lhe falara sobre a existência de
275
No capítulo 1 comentamos sobre a temática da metamorfose na literatura de cordel onde o elemento perverso,
normalmente transformado em animal, deverá após o castigo cumprido, retornar a forma humana.
173
cangaceiros na região, o matador se depara com uma realidade estranha: uma espécie de
arremedo de cangaceiro se faz passar por herói falando em nome do povo e colocando-se como
seu defensor. A luta de Antonio das Mortes contra o farsante vai provocar a transformação do
personagem. Porém não se trata apenas disso, pois a metamorfose de Antonio das Mortes será
acompanhada pela metamorfose do próprio filme que vai se distanciar de seu foco inicial, voltado
para a representação das performances populares (como o desafio de cordel e os cortejos de
cangaceiros e beatos), para transformar-se a si mesmo em uma performance, em um ato de
criação coletiva
276
.
Realizado em 1969, época em que a televisão, já implantada em quase todo o território
nacional, transformava o país numa aldeia global, O dragão da maldade é um filme que remete
ao ato de representação, ao papel da imagem na sociedade. Godard, nome central nesse tipo de
reflexão, foi uma influência importante no período para Glauber que inclusive participou de uma
cena de Vento do leste (1969), filme do cineasta francês onde ele aparece de pé com os braços
estendidos em uma encruzilhada de três estradas, indicando o caminho do cinema político:
Por aqui, é o cinema de aventura estética e do questionamento filosófico, e, por
lá, é o cinema do Terceiro Mundo, um cinema perigoso, divino, maravilhoso,
onde as questões são questões práticas, como as da produção, da distribuição, da
formação de 300 cineastas para fazer 600 filmes por ano, só no Brasil, para
alimentar um dos maiores mercados do mundo.
277
A fala de Glauber em Vento do leste (citada em “O último escândalo de Godard”
278
)
retoma algumas questões apresentadas em O dragão da maldade. Colocando em discussão a
posição de Godard em relação à idéia de destruição do cinema, essa fala indica, além da rejeição
de Glauber a tal posicionamento, um possível caminho para o cinema do Terceiro Mundo.
276
A esse respeito ver nota 233.
277
Glauber Rocha. Op.cit., 1985, p 241.
278
Ibid., p 237-242.
174
Voltados a uma crítica radical ao mundo das imagens os filmes de Godard eram, na
verdade, colagens, composições feitas a partir de fragmentos de outros filmes, notícias, músicas,
cartazes etc. O dragão da maldade, como já vimos no capítulo anterior, recorre a um
procedimento semelhante utilizando referências internas ao campo cinematográfico, como é o
caso do western, e externas, como o desafio de cordel. Mas não se trata aqui, exatamente, de
discutir, como nos filmes de Godard, a questão da imagem e sim o problema, mais geral, da
representação. Isso fica claro, por exemplo, nas cenas de combate que misturam referências dos
duelos do western com os desafios repentistas. As duas manifestações, tal como apresentadas no
filme, ou seja, fora de seu contexto original e associadas uma a outra por meio do diálogo que
entre elas se estabelece, provocam no espectador um efeito de estranhamento, um distanciamento
em relação ao modelo de representação dominante no cinema comercial.
No que se refere à desconstrução de um certo modo de fazer cinema, é muito claro o
vínculo entre Glauber e Godard. Porém, a questão que interessava a Glauber era outra, assim
como outra a realidade em que vivia o cineasta. Negando a idéia de destruir o cinema, Glauber
dizia: “É preciso continuar a fazer cinema no Brasil!”
279
. Não se trata, portanto, de simplesmente
“destruir o cinema”, mas de uma destruição acompanhada de um processo de reconstrução.
A citação da poesia popular sertaneja se inscreve nessa proposta de realizar, por intemédio
do procedimento intertextual, um novo tipo de criação cinematográfica. Na verdade isso não é
uma novidade na cinematografia de Glauber Rocha: em Deus e o diabo o cineasta já fazia uso do
cordel para criar um contraponto narrativo às imagens; em Terra em transe é a poesia de Mário
Faustino que faz esse papel. Porém, em O dragão da maldade o uso da citação não apenas serve
para criar um contraponto entre a narração e a imagem, mas principalmente para promover uma
inversão no sentido original da imagem que assume, assim, sua condição de espetáculo, de
175
performance. Inclusive, o uso da citação em off, predominante em Deus e o diabo, não é comum
nesse filme que adota, preferencialmente, a fala declamada, mecanismo que aprofunda ainda mais
a idéia de artifício da representação.
Deve-se lembrar que, na época da realização do filme, várias experiências teatrais
estavam se desenvolvendo e que havia da parte de Glauber um interesse muito grande em relação
às manifestações de vanguarda. Na já citada entrevista ao Cahiers du Cinéma
280
, ele comenta
sobre a montagem de O rei da vela de José Celso Martinez.
No Brasil há um diretor chamado Martinez que montou uma peça a partir de
Oswald de Andrade, O rei da vela. Ele estudou o teatro de boulevard, esqueceu
Brecht e a peça é fantástica, muito brechtiana. Ele encontrou tudo ao se livrar de
todo brechtismo e fez, no entanto, um espetáculo surpreendente, fantástico.
281
O problema que Glauber coloca é o das influências que, em vez de enriquecerem a obra,
acabavam muitas vezes funcionando como uma camisa-de-força. Não é esse, contudo, o caso de
Martinez cujo encontro com Brecht se deu, como observou Glauber, por meio do teatro de
boulevard. O mesmo pode ser dito em relação ao cineasta para quem a influência de Brecht,
assim como a de Godard, passava pela mediação das formas populares, da música, das danças
etc. O que, no entanto, é importante reter é a nota de esperança que Brecht, ao contrário de
Godard, ajudava a introduzir na obra. E isso, nos países do chamado Terceiro Mundo, tinha de
fato um peso
282
. No Brasil, no entanto, o momento era extremamente difícil e Glauber, artista
profundamente ligado às questões do seu tempo, não podia manter-se imune ao sentimento de
desesperança que, então, se abateu sobre as cabeças pensantes do país.
Mistura insólita de ironia, didatismo e delírio, O dragão da maldade expressa muito bem
as tensões de Glauber quanto a se manter fiel aos ideais de transformação social propagados pelo
279
Ibid., p 242.
280
Michel Delahaye, Pierre Kast e Jean Narboni. Op.cit.
281
Ibid. p 29.
176
Cinema Novo ou seguir outro caminho (adotando, por exemplo, a linha do Cinema Marginal
voltado para um discurso completamente sarcástico e demolidor). Em suas cartas, o cineasta
manifesta sua dificuldade em adotar uma posição: o Cinema Novo, segundo ele, estava esgotado;
o Cinema Marginal ele desconsiderava
283
. Não há, contudo, nessa recusa de Glauber em aceitar o
Cinema Marginal
284
, qualquer sinal de nostalgia em relação às formas de cinema político do
passado. Na verdade, se há um traço que nele se destaca é a ligação intensa com o momento
vivido e a necessidade constante de reinventar o seu cinema, como se vê inclusive em O dragão
da maldade onde sua volta ao sertão se faz acompanhar da necessidade de discutir novas
questões, introduzir uma nota de diferença àquele sertão fechado de Deus e o diabo. Nesse
sentido, o sertão de 1969, paralelamente o que fazia um dos principais movimentos de vanguarda
da época (o Tropicalismo, que juntava “margarina” e “Amaralina”, “bossa” e “palhoça”), está
repleto, de elementos da cultura urbano-industrial: o posto de gasolina, os veículos, o rádio, as
músicas (Carinhoso e Cheiro de Carolina), as latas vazias servindo como vasos de planta e os
próprios personagens de Laura, Matos e o professor que fazem penetrar no sertão não apenas os
figurinos mas também a moral da cidade grande.
O filme, em sua profusão de sentidos, expressa, na verdade, uma ausência de sentido.
Marcado pelo enrijecimento da ditadura, pelo fim das utopias e dos ideais revolucionários, pela
presença, considerada alienante, da televisão no cotidiano da sociedade brasileira, pelo
surgimento dos movimentos de contracultura, O dragão da maldade é fruto de um momento
histórico distinto do de Deus e o diabo. Apesar de apenas cinco anos separarem a realização dos
282
« Brecht guarda toda importância nos países pobre que não pdem viver a não ser de esperança. E são muitos os
filmes militantes que continuam no mesmo caminho » (trad. S.R.B.N.) in Youssef Ishaghpour. Op.cit., 1982, p 78.
283
Em uma dessas cartas (enviada de Santiago em maio de 1971 para Alfredo Guevara), Glauber comenta sobre a
situação do cinema brasileiro após o golpe de 1964 fazendo um balanço do Cinema Novo e uma crítica à chamada
‘segunda geração’ in Ivana Bentes. Op.cit., 1997, p 400-412.
177
dois filmes, esses foram anos de intensas mudanças sociais, culturais, ideológicas, em suma, de
uma profunda mudança de mentalidade. O que não significa que o sertão tenha mudado nesse
período; o que efetivamente mudou foi a forma de olhá-lo.
Até 1964 ainda era predominante a crença na possibilidade de se mudar o país, ou melhor,
de se mudar o mundo. Deus e o diabo, como basicamente toda a arte política então produzida, se
inscreve nesse contexto ideológico cuja referência é a arte como agente da revolução. Bastante
homogêneo em suas referências, o filme de 1964, ao contrário de O dragão da maldade onde a
busca carece inteiramente de sentido
285
, trata de uma busca concreta, ainda que tal concretização
se dê mais no plano da idéia, da imaginação, do que da realidade (já que a revolução, como
objetivo dessa busca, permanece, no final, em aberto).
O que tentamos argumentar no capítulo em que analisamos o filme é que as canções,
estabelecendo uma ligação entre o início, o meio e o fim da história, ajudam a construir o sentido
dessa história no qual o final já estava, de certa forma, previsto no começo. Característico do
discurso profético, esse modo de contar a história assume, em Deus e o diabo, uma versão
politizada que mesmo diferente da pregação do beato Sebastião (personagem que representa o
messianismo stricto sensu), não deixa de estar, de certa forma, a ela relacionada. Resumindo: a
idéia de revolução é atravessada pelo ideal profético, sintetizado, no filme, pela imagem da busca
utópica da salvação. Embora secularizada, essa interpretação ‘teológica’ do sentido da história,
segundo palavras de Karl Lowith
286
, era comum entre segmentos da esquerda nas décadas de
284
A posição de Glauber contraria a proposta do Cinema Marginal que rompeu com o tom engajado do Cinema
Novo mas não representou uma ruptura em relação à este como observou Luiz Carlos Borges. O cinema à margem :
1960 – 1980. Campinas, Papirus, 1983, p 43-44.
285
No final do filme Antonio das Mortes caminha sem rumo entre caminhões por uma auto-estrada ; o professor
permance parado diante da igreja agarrado ao corpo de Laura ; o padre, a Santa e o Negro Antão aparecem pela
última vez estáticos na cena do combate da qual ensaiam uma retirada. Qual, portanto, o destino dos sobreviventes da
batalha entre o Dragão e o Santo Guerreiro ?
286
« ... a história secreta do Manifesto Comunista não é o seu materialismo consciente e a opinião pessoal de Marx a
seu respeito, mas o espírito religioso do profetismo. » in Karl Lowith. O sentido da história. Rio de Janeiro, Edições
178
1950 e 1960 voltados para os movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo. Nesses
movimentos, o sentimento de revolta contra as injustiças representou muito mais em termos de
mobilização das massas (nos países onde tais movimentos ocorreram) do que a racionalidade do
partido comunista.
Os deserdados da Terra, escrito por um psicólogo caribenho que tomou parte da
guerra de libertação da Argélia, tornou-se um texto de enorme influência entre
ativistas intelectuais, que ficaram emocionados com seu elogio da violência
como uma forma de libertação espiritual para os oprimidos.
287
Coerente com o ambiente cultural da época de sua realização, Deus e o diabo, na sua
forma de pensar o tempo, a história e a revolução, reafirmava a crença na existência de um
processo que caminhava inevitavelmente para sua futura realização.
No final da década de 1960, com a renovação do marxismo, com o interesse por autores
como Marcuse, Walter Benjamin e Althusser, por exemplo, começou a se manifestar, entre
intelectuais e artistas, uma forma menos determinista de pensar o mundo e a revolução.
Recusando a política tradicional, o predomínio do Estado, do partido, da burocracia, enfim, a
fusão do indivíduo na totalidade, surge como lema a verdade triunfante dos desejos, a rebeldia, a
contestação, a crítica ao establishment. Característico desse momento, o slogan do movimento de
Maio de 68, “sejamos realistas, exijamos o impossível”, espalhou-se rapidamente da França para
outros países: Itália, Alemanha, Inglaterra, Tchecoslováquia etc
288
. No Brasil o ano de 1968 foi
de grande agitação política e cultural. Em vários estados organizaram-se movimentos estudantis,
passeatas de protesto e greves operárias. A contestação, que também explodiu no teatro e na
música, foi acompanhada por violentos atos de repressão. As filmagens de O dragão da maldade
70, p 51. Nesse livro o autor deixa claro, tomando como referência determinada linha historiográfica, que « sentido »
não não se refere apenas a significado mas também a direção.
287
Eric Hobsbawn. Era dos extremos : O breve século XX – 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p
430.
288
Sobre o movimento de ‘Maio de 68’ ver Olgaria C. F. Matos. Paris 1968 : as barricadas do desejo. São Paulo,
Brasiliense, 1989.
179
foram feitas em meio a esse clima de rebeldia generalizada, por um lado, e de radicalização da
ditadura, por outro.
***
Uma das preocupações de Glauber, naquele momento, era fazer o seu filme chegar ao
público. Desde Terra em transe já se percebia a inquietação do cineasta com a distância existente
entre o intelectual e o povo. Mas apesar de tematizar a questão, o filme, era dirigido a um público
de iniciados, como, aliás, toda a produção do Cinema Novo. E essa era inegavelmente a grande
contradição do movimento cujos filmes falavam do povo, mas não chegavam ao povo; um dos
obstáculos era a distribuição, o outro, a linguagem utilizada pelos cineastas. Glauber comenta
sobre sua intenção de realizar com O dragão da maldade um cinema popular:
Fiz Antonio das Mortes (O dragão da maldade contra o santo guerreiro)
procurando simplificar para o ‘grande público’ uma série de problemas
complexos, que lhes oferecia nos termos mais simples possíveis; apresentar um
panorama mais aberto, espontâneo, sem romantismos, suprimindo os
personagens intelectuais dos meus outros filmes.
289
Considerando que nessa época a televisão brasileira começava a se expandir, a
preocupação que Glauber manifesta com o ‘grande público’ parece demonstrar o seu interesse
pelo meio
290
. E, de fato, apesar das críticas do cineasta à submissão da televisão brasileira ao que
ele costumava chamar de modelo colonizador, havia de sua parte um grande interesse em
produzir filmes para a TV
291
. Ao contrário dos artistas que negavam qualquer aproximação de
suas obras com os meios televisivos, Glauber entendia que a televisão (como na Europa e nos
Estados Unidos) era fundamental para a consolidação do cinema nacional. O problema é que a
partir de meados dos anos 1960 a hegemonia da Rede Globo passou a dificultar a realização de
289
Cláudio M. Valentinetti. Op.cit., p 96.
290
Mais tarde, em 1979, Glauber participará do programa Abertura na extinta TV Tupi no qual ele « destrói
sistematicamente todas as normas do bom gosto televisivo » (trad. S.R.B.N.) Paulo Antonio Paranaguá. « Le cinéma
face au défi de la television » in Paulo Antonio Paranaguá (org). Le cinéma brésilien. Paris, Centre Georges
Pompidou, 1987, p 248.
180
qualquer projeto no âmbito da televisão brasileira que não estivesse enquadrado no modelo de
Brasil concebido pela ditadura militar. Apesar de se tratar de um canal privado, é público e
notório o envolvimento do governo na criação da emissora e sua posterior expansão pelo
território brasileiro
292
. Em resumo, a programação ‘global’ estava atrelada, senão, diretamente,
pelo menos, indiretamente, ao Estado militar. E como a produção cinematográfica nacional não
correspondia à imagem de Brasil idealizada por nossos dirigentes o projeto de Glauber, de fazer o
cinema brasileiro chegar ao público pela televisão, foi inviabilizado. Além disso, “o ‘padrão
Globo de qualidade’, exemplo de modernização capitalista, não seria incompatível com a estética
da fome, esta estética da violência e do subdesenvolvimento brandida ferozmente por Glauber
Rocha e o Cinema Novo?”
293
Com a criação da Rede Globo, a televisão transformou-se repentinamente em principal
veículo de massa e divertimento popular. Essa situação, que representou para a população
brasileira uma profunda revolução de costumes, fez crescer, entre artistas e formadores de
opinião, um movimento de crítica aos produtos midiáticos e à chamada massificação cultural.
Para os jovens realizadores a crítica aos ‘enlatados’, à alienação, se dava em um tom de ironia, às
vezes debochada, mas para os cineastas comprometidos com o Cinema Novo a percepção da
imobilidade do povo, ou melhor, da incapacidade deste se mobilizar (principalmente no sentido
de evitar o golpe militar), foi motivo de desencanto, frustração e, num certo sentido, os desviou
do rumo inicialmente adotado.
Assim sendo, e ao mesmo tempo em que o cenário dos filmes se deslocará
predominantemente do campo para a cidade, significando talvez o abandono da
crença de que a revolução começaria no campo, os personagens centrais passam
a ser o poeta de Terra em transe (1967), de Glauber, os jornalistas de O desafio
(1965), de Paulo Cesar Saraceni,...
294
291
Comentário de Glauber Rocha em Op.cit. 1981, citado em ibid., p 245.
292
Sobre o tema ver Renato Ortiz. Op.cit., 1991.
293
Paulo Antonio Paranaguá. Op.cit., p 245 (trad. S.R.B.N.)
294
Luiz Carlos Borges. Op.cit., p 39.
181
Nesse clima de perplexidade, Glauber Rocha (que em 1966, com Terra em transe, havia
manifestado sua decepção em relação à ausência de ação do povo) lança em 1969 O dragão da
maldade contra o santo guerreiro estabelecendo um novo ponto de vista acerca da noção de
participação popular. Para Luiz Carlos Borges, no entanto, o filme mostra o povo “inerte,
indiferente, inofensivo, à margem dos acontecimentos, só tendo voz para cantar e pés para
dançar”
295
. Essa interpretação, que pressupõe um certo tipo de racionalidade política, contraria a
proposta do filme no que se refere ao trabalho conjunto entre os atores e os habitantes da cidade
onde as filmagens foram realizadas.
Comentando sobre a população de Milagres e sua participação no filme, Glauber Rocha,
na entrevista dada ao Cahiers du Cinéma
296
, deixa claro que, naquela situação, o que estava em
jogo em relação ao povo eram os seus cantos, suas danças, suas expressões que constituíam a
força viva do espetáculo. Em outro texto Glauber explicita sua opção pelas manifestações
populares:
Atualmente investigamos estas formas populares muito ligadas ao público por
intermédio do teatro, da música popular, das danças populares, e até da
literatura, e daí extraindo algumas estruturas que podem ser empregadas hoje,
procuramos uma comunicação com o público servindo-nos de uma linguagem a
ele familiar...
297
A cultura popular, no caso, a poesia de cordel, que articulava a narrativa de Deus e o
diabo, se inscrevia em um universo relativamente fechado de experiências. O filme conta a
história de Manuel e Rosa, uma história ocorrida no passado (Manuel e Rosa viviam no sertão...),
mas que se repete no presente. A canção final dá a moral da história indicando que o homem
pode transformar o seu destino (Tá contada minha história, verdade e imaginação, espero que
295
Ibid.
296
Ver notas 227, 233 e 235.
297
Glauber Rocha em A. M. Torres. Op.cit., p 70 citado por Cláudio M. Valentinetti. Op.cit., p 97.
182
senhor tenha tirado uma lição, que assim mal dividido esse mundo anda errado, que a terra é do
homem, não é de Deus nem do diabo.).
A idéia de que o futuro da sociedade depende da ação coletiva, distancia Deus e o diabo
da poesia de cordel (onde a mudança se circunscreve à experiência individual) e o inscreve em
sua própria historicidade. Na época da realização do filme os principais projetos culturais
298
se
desenvolviam nos meios rurais e tinham como meta a conscientização do camponês tendo em
vista a Reforma Agrária.
O dragão da maldade se inscreve em um contexto distinto no qual a experiência não é
mais transmitida, ela é a própria razão de ser da obra. Não é à toa a vinculação do filme a uma
expressão poética onde a criação é simultânea à transmissão e à participação do público vital na
evolução do espetáculo. Ao
contrário do folheto, cuja narração remete a algo ocorrido no passado,
o desafio é uma poesia do presente, do instante, do improviso. Em um caso, trata-se de contar
uma história. No outro, de provocar uma experiência:
não mais narrar uma estória, transmitir uma determinada experiência existencial,
pessoal ou histórica, para cujo fim o filme não passaria de mero suporte, de
simples veículo. Mas sim considerar o cinema como essa própria
experiência/vivência. Conceber o filme não como o meio para emitir conceitos e
conteúdos, mas como o espaço para a experimentação de processos novos...
299
A opção pelo experimentalismo faz parte do contexto da contracultura que envolveu as
mais diferentes manifestações culturais. Em comum entre elas havia a idéia de que o público
ajudava a fazer o espetáculo: os happenings de arte plásticas, os Festivais da Canção, o Teatro de
Arena, o Oficina, os shows do Opinião e, acima de tudo, as passeatas de protesto que reuniam nas
ruas milhares de pessoas em atitude de contestação à ordem
300
. Essa insubordinação generalizada,
essa rebeldia, essa energia espontânea que brotava nos palcos e nas ruas difere completamente da
298
Entre os principais projetos culturais do período destacam-se o Movimento de Educação de Base orientado pelo
método de alfabetização de Paulo Freire e os CPCs (Centros Populares de Cultura).
299
Luiz Carlos Borges. Op.cit., p 48-49.
183
noção de participação do início dos anos 1960 quando o fazer político estava atrelado aos
partidos, sindicatos e organizações de classe.
Nesse ambiente, onde a arte era uma militância, a massa estava absorvida na mensagem
do seu líder. Esse é o retrato mostrado no filme de 1964 em que a câmera fixa, à maneira do
cinema político da época
301
, denuncia a imobilidade da população sertaneja, a sua incapacidade
para a ação. Totalmente diferentes são as imagens do filme de 1969 onde o povo, repetindo
velhos rituais, não apenas participa como faz acontecer o espetáculo.
A própria idéia de espetáculo merece ser reconsiderada pois, nesse filme, o que está em
jogo, no que se refere à apropriação das tradições populares, é a carnavalização do mundo da
ordem e seus espetáculos tradicionais: a parada de Sete de Setembro, por um lado, e, por outro, o
espetáculo cinematográfico, o cinema de aventura, de violência, normalmente fundado sobre uma
perspectiva de arte burguesa. O filme também carnavaliza a noção de popular como folclore
desenvolvida por intelectuais da cultura que se dirigiam ao povo com um olhar de especialista.
Em seu aspecto livre, lúdico e desordenado as manifestações da cultura popular, tais como
apresentadas em O dragão da maldade, invertem a rigidez e os códigos da cultura oficial e da
arte burguesa estabelecendo um contraponto à sua hegemonia. Ao contrário de Deus e o diabo,
voltado para a narração, para a repetição da história, aqui o que interessa é a sua teatralização, a
sua carnavalização.
Outro ponto que deve ser considerado, quando se trata das diferenças entre o filme de
1964 e o de 1969, é a introdução do som direto
302
e do equipamento leve que permitiu a O
300
Sobre os movimentos de contracultura ver Heloisa B. de Hollanda e Marcos A Gonçalves. Op.cit.
301
Em Vidas secas de Nelson Pereira dos Santos e Os fuzis de Ruy Guerra, realizados na mesma época que Deus e o
diabo, observa-se o mesmo tratamento da imagem do povo.
302
A respeito do som direto em O dragão da maldade ver comentário de Glauber em Michel Delahaye, Pierre Kast e
Jean Narboni. Op.cit., p 34. Na nota 265 há uma referência às experiências com som direto em Câncer que seriam
depois aproveitadas em O dragão da maldade.
184
dragão da maldade registrar, à maneira das reportagens televisivas
303
, os cantos improvisados
dos habitantes da vila de Milagres. Deve-se, portanto, levar em conta, quando se observa a forma
do povo ser representado em cada um dos filmes, por um lado, as mudanças ideológicas, que
repercutiram no modo do artista dirigir seu olhar às manifestações populares, e, por outro, as
mudanças tecnológicas, que deram nova configuração a tais manifestações. Em suas duas visões
do sertão, Glauber Rocha, extremamente atento ao que ocorria à sua volta, revela algumas das
principais mudanças ocorridas no país naquele período em que tudo desabava e tudo ainda
parecia possível.
303
O cinema de Eduardo Coutinho, na fala dos entrevistados, se vale dessa mesma instataneidade que marcou as
filmagens de O dragão da maldade. Coutinho, que trabalhou no programa Globo Repórter, concluiu em 1984 o
filme Cabra marcado para morrer, iniciado em 1962 e interrompido pelo golpe militar em 1964. Vale ressaltar que a
segunda versão do filme traz a marca da experiência de Coutinho com as reportagens televisivas (ver nota 97). A
185
Capítulo 5
O sertão e outros sertões
O cinema de Glauber Rocha é metafórico. Sua riqueza provém da pluralidade de vozes
que o atravessam e que fazem convergir a vivência do cineasta com as imagens de sua memória.
Nascido no interior da Bahia, na cidade de Vitória da Conquista onde viveu até os dez anos de
idade, o seu sertão é povoado por vaqueiros de chapéu de couro, pelas manadas de bois magros,
pela terra seca sob o sol pino, pelas romarias e, é claro, pelos cantadores que nos dias de feira da
cidade cantavam as profecias dos beatos e as proezas dos cangaceiros. O ambiente visual e
sonoro da infância é o pano de fundo da criação glauberiana: Vou contar uma estória, verdade e
imaginação, abra bem os seus olhos, pra escutar com atenção, é coisa de Deus e o diabo, lá nos
confins do sertão.
A afinidade do cineasta com o universo do cordel, com suas imagens, suas cores, seus
sons e suas histórias, se resume na poética de Deus e o diabo na terra do sol e de O dragão da
maldade contra o santo guerreiro, filmes que retratam a realidade sertaneja pelo viés do
imaginário, das suas representações. Porém, o sertão em sua obra ultrapassa não só a temática
elaborada nos mencionados filmes como também os limites territoriais do chamado Polígono da
Seca. Profundo admirador de Guimarães Rosa, Glauber Rocha reproduz em seu cinema a máxima
do autor de Grande sertão, veredas: “O sertão é o mundo”. Seja a aldeia de pescadores de
Barravento (1961), o arraial de beatos de Deus e o diabo (1964), o Eldorado (uma alegoria do
Brasil) de Terra em transe (1967), a comunidade sertaneja de O dragão da maldade (1969) ou o
Terceiro Mundo, retratado em O leão de sete cabeças, filmado na África em 1969, o sertão, na
diferença entre Glauber e Coutinho corresponde, em linhas gerais, a diferença dos estilos de Chris Marker e de Jean
Rouch no cinema verdade. A esse respeito ver nota 266.
186
obra do cineasta, está em toda parte. Ele representa a alteridade, a solidão, a condição de
marginalidade em relação ao todo. Mas, para além disso, o sertão de Glauber Rocha deixa claro
seu vínculo com Os sertões de Euclides da Cunha na medida em que esse espaço, marcado pelo
esquecimento e pelo abandono, simboliza também a luta, a busca, o desejo utópico de
transformação.
Tema que atravessa a literatura de cordel tal como discutimos no primeiro capítulo do
presente trabalho, o sertão como metáfora da busca contínua está presente em todos os filmes de
Glauber Rocha. Nos primeiros, a ênfase é sobre a esperança, sobre a perspectiva futura de
transformação. Tendo como foco a realidade do nosso país, esses filmes procuram desenvolver
um ponto de vista crítico a cerca da sociedade brasileira dirigindo-se para suas manifestações
culturais, especialmente as do imaginário popular. Os filmes feitos no exterior, por outro lado,
talvez refletindo a condição de exilado do cineasta, se afastam dessas premissas iniciais.
Trabalhando com as alegorias da degradação, da passagem do tempo, das ruínas, tais filmes
traduzem um sentimento de desencanto onde a busca, voltando-se para uma reflexão filosófica,
conceitual, deixa de ter como meta os ideais de transformação social para, cada vez mais,
concentrar-se na forma de representação do real. Tal como sintetizada em História do Brasil, essa
preocupação, expressa na questão da busca do significado, apesar de tornar-se mais visível a
partir dos filmes realizados no exterior, está presente desde os primeiros trabalhos de Glauber
Rocha como tentaremos agora verificar ampliando a discussão a rigor encerrada no capítulo
anterior.
5. 1 – O sertão dos primeiros filmes
Uma das principais preocupações de Glauber Rocha em seus primeiros filmes de ficção –
Barravento (1961), Deus e o diabo (1964), Terra em transe (1966) e O dragão da maldade
187
(1969) – é a questão da revolução que, relacionada ao tema da busca, ao ideal de transformação,
assume perspectivas diferenciadas em cada um dos referidos trabalhos. Voltada inicialmente para
as formas de alienação do povo, para a conscientização do oprimido, a tendência do cinema de
Glauber a partir de Terra em transe, que reflete o desencanto do cineasta em face da
possibilidade de uma revolução social no Terceiro Mundo, será cada vez mais a busca da
transformação por meio da arte, da expressão. Nesse filme, a imagem alegórica torna-se
instrumento de crítica não apenas estética mas também histórica e política. Em O dragão da
maldade, feito em meio às agitações políticas e culturais de 1968, as referências, além da
alegoria, da ironia e da paródia, são provenientes do próprio universo do oprimido, seus cantos,
suas danças, sua poesia, seus rituais religiosos, que, nesse filme, já não são mais tratados como
manifestações da alienação popular. Nos dois últimos filmes dessa primeira fase da carreira de
Glauber Rocha o elemento utópico dá lugar à ironia e a possibilidade de transformação passa a
referir-se ao campo da expressão.
***
Barravento, primeiro longa-metragem de ficção realizado por Glauber Rocha, é o sertão
mar resumido na problemática de uma comunidade de pescadores situada no litoral baiano, a
praia de Buraquinho onde as filmagens foram realizadas. Com sua exuberância natural, a
paisagem, à maneira do neo-realismo italiano, contrasta com a pobreza dos habitantes locais
reforçando o sentido da exploração e da miséria que os envolve.
A trama, constituída em torno do cotidiano da pesca e dos rituais afro-brasileiros, se
desenvolve a partir da chegada de Firmino que, vindo de fora, da cidade grande, vai tentar
introduzir entre os pescadores o sentimento de revolta contra a situação de exploração imposta
pelo proprietário das redes. O alvo de Firmino é Aruan, uma espécie de líder comunitário, que
representa a submissão às tradições e aos mitos do Candomblé. Exposto à fúria do mar (o
188
barravento) Aruan, possuidor, segundo a comunidade, do dom de proteção, revela-se incapaz de
evitar a morte de Chico que, acreditando em seus poderes, entrara no mar revolto à procura de
seu Vicente (“Chico foi pro mar pensando que tava protegido e acabou morrendo... É preciso
mudar a vida de Aruan! Ele é homem igual aos outros, gosta de mulher e não domina o mar!... O
Mestre também é culpado! Feitiço é negócio de gente atrasada, é preciso acabar com isso! É
preciso acabar com isso!”
304
). As palavras de Firmino desmascaram os falsos poderes de Aruan
que, no final, consciente de sua condição de homem comum, decide ir para a cidade grande para
trabalhar e comprar sua própria rede.
Barravento define, em linhas gerais, o tema que será aprofundado em Deus e o diabo na
terra do sol: o misticismo popular em oposição à razão revolucionária. Aqui, quem representa a
alienação, a submissão incondicional ao misticismo, é um vaqueiro, um homem simples que
sobrevive lutando em meio à exploração do fazendeiro e à adversidade da natureza.
Deus e o diabo lida com dois fatores de alienação (o messianismo e o cangaço) que
deviam ser destituídos antes da explosão de uma guerra maior no sertão. “Uma guerra grande,
sem a cegueira de Deus e do Diabo”
305
. A ação de Antonio das Mortes, obrigando Manuel a abrir
mão da proteção do Santo e do cangaceiro, visa antecipá-la. O mesmo objetivo se aplica à atitude
de Firmino quando este convence Cota a seduzir Aruan, eliminando o artifício do corpo fechado
que o impedia de se dar conta da alienação de que era vítima.
Em Barravento, tanto quanto em Deus e o diabo, o misticismo, como fonte da miséria do
povo, ajuda a perpetuar as injustiças, impedindo a luta contra a exploração. Símbolos da situação
de opressão em que vivem milhões de brasileiros, Aruan e Manuel, se transformam a partir da
304
Orlando Senna (org). Op.cit., p 258.
305
Ibid., p 279.
189
ação de um elemento externo: Firmino, em um caso, Antonio das Mortes, no outro. Eles não
terão, no entanto, poder para fazer acontecer a “guerra do sem fim”.
Em sua última aparição “Aruan sai da aldeia, ultrapassa o farol. Olha para trás, olha em
direção à cidade, segue em frente”
306
. Como Manuel, cuja corrida em direção ao mar tem como
pano de fundo os versos do cantador, a partida de Aruan é também acompanhada por uma cantiga
que complementa o sentido da imagem e reforça o vínculo entre a história contada e o universo
das tradições que a envolve: Vou pra Bahia / pra ver se dinheiro corre / se dinheiro não correr /
ai meu pai / de fome ninguém morre. No último plano a câmera se fixa no farol e a cantiga diz: Ê
ê barravento ô lê lê / Ê ê barravento ô lá lá. No fim a solução, tanto para o pescador quanto para
o vaqueiro, é a partida, a procura do novo em outro lugar.
Nos dois filmes, o final, em aberto, deixa no ar uma esperança futura de transformação.
Porém é interessante notar que, sendo a violência, em ambos os casos, o motor da transformação
(a violência do mar, em um caso, a violência do matador, no outro), não se percebe em Deus e o
diabo (como se podia perceber no filme anterior) qualquer indício que revele uma tomada de
consciência por parte do personagem que representa o oprimido. Ao contrário de Aruan, para
quem a crise provocara a percepção da sua condição de alienado (“peixe se pesca é com rede, é
com tarrafa! Peixe se pesca é no mar, não é com reza não!”
307
), Manuel é tomado por uma
espécie de impulso cego que o empurra para frente, em direção ao mar.
Muito mais ambíguo que o filme anterior, Deus e o diabo pensa a revolução como um
ponto que se descortina no horizonte. Porém, que esta viesse a acontecer, como acreditavam os
movimentos sociais e culturais da época, por meio da conscientização do povo, era, no filme em
questão, uma possibilidade remota. Em 1966, quando Glauber filma Terra em transe, tal
306
Ibid., p 260.
307
Ibid., p 259.
190
possibilidade já não existia. O filme, lançado em 1967, revela a decepção do artista quanto à
ausência de reação política e popular ao golpe de 1964 confirmando sua descrença no discurso da
‘tomada de consciência do oprimido’.
Retomando o problema do latifúndio e da violência no meio rural brasileiro, Terra em
transe denuncia, de um lado, a demagogia e as promessas não cumpridas, de outro, a articulação
entre o populismo e os intelectuais, a aliança entre a esquerda e a burguesia nacional, os
compromissos dos políticos e empresários com os monopólios internacionais. Eldorado, país
fictício muito parecido com o Brasil da época do golpe militar, é o cenário onde tais forças se
enfrentam. O filme trata do tema da mistificação, não do ponto de vista religioso, como nos
anteriores, mas do ponto de vista político. No entanto, os problemas do pescador de Barravento e
do vaqueiro de Deus e o diabo se repetem, em linhas gerais, no personagem de Felício, que, aqui,
representa o homem pobre, explorado, que luta para conquistar um pedaço de terra e crê que
poderá alcançá-lo por meio do seu voto. Nesse filme, Glauber não apenas mostra a exploração da
fé popular por demagogos, mas procura desvendar o modo como os interesses políticos e
econômicos, nacionais e internacionais, se articulam em detrimento dos direitos do povo.
A primeira imagem do filme lembra o final de Deus e o diabo onde o mar, metáfora da
esperança, era uma miragem vista a partir do sertão. Aqui, no entanto, a perspectiva se inverte e o
mar, lembrando a chegada dos conquistadores portugueses, torna-se o ponto a partir do qual se
chega ao interior. “Eldorado, país interior, Atlântico”, como diz a legenda, é o sertão como
metáfora do país e seus conquistadores: uma totalidade onde se inscrevem os outros sertões.
Visto do alto, a câmera o explora, penetrando em seu território, transpondo suas montanhas, nos
levando, finalmente, à província de Alecrim onde um golpe se articula contra o governador.
Referência explícita ao presidente deposto pelo golpe militar, Vieira, governador da
província de Alecrim, é um político demagogo e populista que conta com o apoio de Paulo, o
191
poeta que colocou seu talento literário a serviço de um projeto político que ele acreditava capaz
de trazer o progresso ao país. A renúncia de Vieira, deixando o caminho aberto à Explint
(Companhia de Explotationes Internationales) e seus aliados (o senador Porfírio Diaz e o
magnata da imprensa Júlio Fuentes) coloca em evidência a difícil cumplicidade entre o intelectual
e o poder. Com efeito, os militantes que apóiam Vieira representam o lado teórico da luta de
classes e, segundo observação de Paulo, não se identificam verdadeiramente com a classe que
imaginam defender. Quando o homem do povo levanta a palavra e morre em conseqüência de sua
fala considerada como extremista, os intelectuais o acusam de irresponsabilidade. Paulo, por sua
vez, manifesta sua revolta dirigindo a Vieira um dos comentários mais significativos do filme: “...
Já lhe disse várias vezes que dentro da massa existe o homem e o homem é difícil de se
dominar... mais difícil do que a massa...”
308
Esta frase de Paulo permite identificar Glauber Rocha com o personagem de seu filme.
Em Estética da fome (escrito um anos antes da realização do mesmo), ele comenta sobre o papel
da arte em um país colonizado:
uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto
inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente
conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode
compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora.
309
Ato de violência, a arte revolucionária, ao contrário da arte burguesa, é uma arte que porta
uma potência revolucionária. Paulo Martins, apesar de todas as suas contradições ou justamente
por causa delas, seria o seu representante. Mas ainda era, provavelmente muito cedo, para que tal
possibilidade se concretizasse. Colonizado pela arte burguesa, o povo, segundo Glauber Rocha,
não existia como povo. No entanto, havia a esperança de que o contato com uma nova arte o
308
Ibid., p 314.
309
Glauber Rocha. Estética da fome in Glauber Rocha. Op.cit., 1981, p 31.
192
fizesse tomar consciência de sua própria existência
310
. Por isso, para que a arte pudesse esperar
por tal transformação, é que, no contexto de Terra em transe, o artista teve que morrer. Na última
cena, ferido em uma praia deserta, ele cai apontando sua arma para o céu.
Eu sabia apenas que não aguentava mais o mundo em que vivia, que por isto
mesmo eu tinha de começar a abrir caminhos, começar de qualquer jeito, mesmo
que deixasse os caminhos pela metade, à espera de que outros, mais lúcidos que
eu pudessem chegar ao fim...
311
Terra em transe é uma crítica aberta à chamada arte engajada. Paulo Martins, por meio
dos militantes que apoiavam Vieira e, principalmente, de Sara, com quem teve uma complicada
relação amorosa, aproxima-se do poder fazendo de sua arte um instrumento das mudanças que, se
acreditava, poderiam ocorrer. Pouco a pouco, no entanto, ele se dá conta de que tudo aquilo não
passava de uma ilusão. A possibilidade de o país tomar outro rumo não existia: Eldorado
continuaria nas mãos de ditadores.
Relacionado ao fracasso de um projeto político pensado como renovador, o filme, apesar
do tom de desilusão que o perpassa, é, como um todo, uma aposta na transformação futura. A arte
como caminho dessa transformação é a sua proposta final, como indica o poeta quando diz que
sua morte representa o triunfo da Beleza e da Justiça.
312
A morte, nesse caso, associa-se ao novo,
ao surgimento de uma nova arte no futuro.
Ao contrário de Barravento e de Deus e o diabo, cujas imagens lembravam, em alguns
aspectos, as do cinema documentário (por exemplo, as cenas de trabalho e de rituais religiosos
que, como no cinema documentário da época, funcionavam como uma espécie de denúncia da
alienação), o que posteriormente se destaca no trabalho de Glauber Rocha é o tratamento
alegórico. Deve-se, a propósito, lembrar, que os seus primeiros filmes, preocupados com as
310
« Não é um só filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, enfim, ao público, a consciência de sua
própria existência » in ibid., p 33.
311
Orlando Senna (org). Op.cit., p 308.
312
Ibid., p 324.
193
questões sociais, em geral, e do Nordeste, em particular, correspondem a uma fase do Cinema
Novo inspirada pela “literatura regionalista: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, os primeiros
Jorge Amado”
313
. Mais voltada para a temática urbana, a segunda fase do movimento, que se
manifesta no final dos anos 1960, é visivelmente ligada ao tropicalismo e à antropofagia
314
.
Revelada em Terra em transe, essa tendência (antropofágica) se acentua em O dragão da
maldade onde a representação, como foi discutido no terceiro capítulo, se volta não para o real,
mas para as suas representações. Como Memória do cangaço (1965) de Paulo Gil Soares
315
,
concebido a partir das sequências do filme feito por Benjamin Abraão sobre o bando de Lampião,
O dragão da maldade é um filme construído a partir de um encontro com as imagens passadas.
No entanto, não se trata, nesse caso, de produzir uma “memória do cangaço”. Em vez disso, o
filme ‘devora’ as antigas representações e as devolve com outro significado.
Tropicalismo é aceitação, ascensão do subdesenvolvimento; por isto existe um
cinema antes e depois do tropicalismo. Agora nós não temos mais medo de
afrontar a realidade brasileira, a nossa realidade, em todos os sentidos e a todas
as profundidades. Eis por que em Antonio das Mortes (O dragão da maldade
contra o santo guerreiro) existe uma relação antropofágica entre os personagens:
o professor come Antonio, Antonio come o cangaceiro, Laura come o
comissário, o professor come Cláudia, os assassinos comem o povo, o professor
come o cangaceiro. Esta relação antropofágica é de liberdade.
316
Nos filmes anteriores de Glauber Rocha a crítica ao discurso cinematográfico se fazia de
modo implícito. Agora, no entanto, ela é o centro das atenções do cineasta. Lembrando O homem
e a câmera de Dziga Vertov (cujo tema é o processo de fabricação do filme, revelado como um
produto e não como um espelho da realidade
317
) O dragão da maldade desconstrói a idéia de
representação como reflexo do real mostrando-a como ação encenada e improvisada.
313
Cláudio M. Valentinetti. Op.cit., p 38.
314
Ibid., p 89-94.
315
Paulo Gil Soares faz parte da geração de cineastas que, como Glauber Rocha, se transferiram de Salvador para o
Rio de Janeiro onde deram início ao movimento do Cinema Novo. Paulo Gil foi, inclusive, um dos integrantes da
equipe de Deus e o diabo na terra do sol.
316
Glauber Rocha. Tropicalismo, antropologia, mito, ideograma – 1969 in Sylvie Pierre. Op.cit., p 141-147.
317
Nesse filme Vertov mostra o cineasta, não como um artista (nos moldes tradicionais), mas como um operário.
194
O filme coloca em questão a veracidade dos personagens
318
, das imagens, dos mitos, das
representações e, por último, o significado dos símbolos como, por exemplo, o símbolo da Shell,
que aparece em sua cena final. No horizonte, e cada vez mais próxima à medida que Antonio se
afasta de Jardim das Piranhas, a concha, além da presença do imperialismo no país (em Terra em
transe representado pela Explint), simboliza o progresso e toda a mística que envolveu, durante a
ditadura, as idéias de crescimento, desenvolvimento e integração nacional. Denunciando, a seu
modo, as ambigüidades do projeto de modernização pregado pela ditadura, a concha da Shell,
junto com a figura melancólica de Antonio das Mortes, transforma em ruínas um dos carros-
chefes da propaganda do governo na época.
O dragão da maldade, feito em 1968 em meio a condições políticas bastante adversas,
tem na expressão alegórica um mecanismo para escapar à censura. Porém, com a assinatura do
AI-5, em dezembro daquele ano, os instrumentos de controle da opinião pública (que já vinham
criando sérios obstáculos à liberdade de expressão) e de repressão aos suspeitos se tornaram
muito mais rigorosos. O clima de perseguição e absoluta falta de confiança em relação ao futuro
repercutiu sobre a atividade artística interrompendo processos criativos extremamente
importantes como foi o caso do Cinema Novo. Quem ficou no Brasil teve que inventar um jeito
de lidar com a situação. Quem partiu, como Glauber, teve que inventar também.
Movimento interessado no desenvolvimento de um verdadeiro cinema brasileiro, o
Cinema Novo produziu suas próprias contradições. Seus filmes, de um modo geral, preocupados
em expor a consciência do oprimido à sua alienação (sem, é claro, o paternalismo que
318
Por meio da idéia de continuação da história, O dragão da maldade (uma pseudo continuação de Deus e o diabo
na terra do sol) estabelece uma espécie de ‘diálogo’ com os seriados americanos produzidos para a televisão, os
chamados ‘enlatados’ (Bat Masterson, Lassie, Rin-Tin-Tin, Papai sabe tudo, etc.) cujo momento de explosão na
televisão brasileira coincidiu com o da realização do referido filme. Com relação à figura de Bat Masterson (um
herói ‘em série’ do faoreste americano que na época fez um grande sucesso no Brasil), pode-se, inclusive, associá-lo
ao personagem de Antonio das Mortes que Glauber pretendia transformar em um herói de folhetim nacional
(conforme projeto arquivado no Tempo Glauber).
195
caracterizava a maior parte das produções voltadas à representação do povo), deixavam de
considerar o potencial explosivo e transformador de suas manifestações, alvo da segunda fase do
movimento influenciada pelo tropicalismo e pelas novidades estéticas e ideológicas que se
espalharam pelo mundo com os ventos de “Maio de 68”. No que se refere a Glauber Rocha, O
dragão da maldade é o primeiro filme que toca nessa clave, mostrando os rituais populares não
como comportamentos alienados, mas como possíveis atitudes de subversão à ordem:
O ‘povo’ de Coirana não carrega uma intencionalidade mas é presença estranha,
fora de controle. Pela sua performance – alguns dirão dionisíaca – encarna um
fantasma de desordem que atinge em cheio a segurança dos poderosos. Não por
acaso, na cena de agitação em plena praça, quando Antonio fere Coirana, o
coronel se põe a reclamar precisamente da ‘cantoria do demônio’; fica
exasperado com o aspecto ruidoso da massa, sinal constante de uma dissonância
no seu mundo...
319
Expressão que atinge em cheio a figura do opressor, a performance executada pelo “povo
de Coirana” expõe, em sua total subversão ao mundo da ordem, a passagem “da ‘razão’ à
‘desrazão’, do impulso sociológico explicativo da fome como falta e debilidade à sua
produtividade delirante e construtiva...”
320
. A idéia de performance presente nesse filme
pressupõe um tipo de envolvimento do público que não havia nos anteriores nem haverá nos
posteriores voltados mais para o campo da reflexão do que para o da experiência participativa.
5.2 – O sertão do exílio e depois
Marcado pelo sentimento de exílio e pela incompreensão crescente, o cinema de Glauber
Rocha, depois de O dragão da maldade e da partida do cineasta para o exterior, vai se distanciar
cada vez mais daquele sertão dos seus primeiros filmes. Em Barravento, Deus e o diabo, Terra
em transe e O dragão da maldade, o sertão, lembrando Canudos, é o mundo dos inadaptados, dos
319
Ismail Xavier. Op.cit., 1993, p 167.
320
Ivana Bentes. « Apocalipsis estético : América de fome, de sonho e de transe » in Carlos Bosualdo |(org.) Eztetyka
del Sueño, Madri, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, 2001.
196
“deserdados da terra”, mas é, também, o lugar da luta para mudar o destino. A partir de 1969 essa
idéia torna-se cada vez mais duvidosa.
Ano da premiação de O dragão da maldade em Cannes, 1969 confirma a notoriedade de
Glauber no plano internacional abrindo-lhe perspectivas para produzir fora do Brasil
321
. Naquele
ano ele realiza O leão de sete cabeças, ou melhor, “Der leone have sept cabeças, título original
do filme formado por cinco (ou seis) línguas como os capitais de diversas nacionalidades
empregados em sua realização”
322
. Mas, apesar de se tratar de uma produção internacional
(franco-italiana), Glauber fez questão de afirmar que se tratava de um filme brasileiro: “Deus e o
diabo é o meu único filme português. Terra em transe meu único filme europeu, Barravento e
Antonio são filmes africanos e, insisto, O leão é um filme brasileiro.”
323
O leão de sete cabeças marca a abertura de Glauber para um horizonte mais amplo:
Tricontinental, como ele indica no título do texto escrito na ocasião da morte de Che Guevara.
Tricontinental – o importante é o filme? O que é um filme tricontinental? Um
produtor, aqui, é como um general. Os instrutores estão em Hollywood como no
Pentágono. Nenhum cineasta tricontinental é livre. Não digo livre da prisão, ou
da censura, ou dos compromissos financeiros. Livre, digo, deste se descobrir
homem de três continentes; mas a este conceito não se faz preso; antes, nele, se
faz livre: a perspectiva do fracasso individual se dilui na História. Palavras de
Che: - Notre sacrifice est conscient, c’est le prix de la liberté.
324
Rodado na África, O leão de sete cabeças aborda a questão do colonialismo tomando
como referência a luta dos povos oprimidos do Terceiro Mundo e, de uma certa forma, a luta do
próprio artista que buscava, em outras terras, reconquistar sua unidade cultural.
321
Entre 1969 e 1970 Glauber realiza dois filmes no exterior : O leão de sete cabeças e Cabeças cortadas. Apesar
dos esforços do cineasta, os filmes não foram lançados no Brasil (ver cartas trocadas entre Glauber e Ricardo Cravo
Albin, então diretor do INC, entre fevereiro de 1970 e abril de 1970 in Ivana Bentes. Op.cit., 1997, p 360-363). Em
1971, com a intensificação das perseguições às obras e aos artistas, Glauber deixa o país, vive em Cuba, na França e
na Itália e realiza mais dois filmes : História do Brasil (1974) e Claro (1975). Em 1976 retorna ao Brasil e filma
Idade da Terra, seu último trabalho lançado em 1980, um ano antes de sua morte ocorrida em agosto de 1981.
322
René Gardies. « Le lion à setp têtes ». Image et son – La revue du cinéma, n. 249, avril, 1971, p 124 (trad.
S.R.B.N.)
323
Glauber Rocha. « Document de presse » citado em ibid. (trad. S.R.B.N.)
324
Glauber Rocha. « Tricontinental 67 » in Glauber Rocha. Op.cit., 1981, p 72.
197
Trata-se de uma tentativa de Glauber de ir ao encontro das suas origens, das origens da
colonização, da exploração, da opressão. Porém, apesar dessa busca por raízes, o que sobressai do
filme, como um todo, é o seu ‘desenraizamento’. Dando início ao que viria a ser, a partir de
então, o cinema de Glauber Rocha, O leão de sete cabeças caracteriza-se pela destruição da
narrativa, que se torna ensaio, e dos personagens que se transformam em conceitos:
A começar por Marlene que seria o Imperialismo (a Europa e sua antropofagia
político-cultural); passando pelas figuras brancas do Padre, que seria o
espiritualismo europeu, parte integrante do colonialismo; do Alemão, meio
mercenário, meio governador colonial, que representa os mandatários dos
interesses da gestão colonial (ou neocolonial) do Primeiro Mundo sobre o
Terceiro Mundo; do Português que, nesse contexto, é o portador dos interesses
comerciais e de exploração mercantil; do Americano (quer dizer o agente da
CIA) que figura como o tutor dos interesses políticos; até as figuras
contrastantes de Zumbi, a África consciente que, na luta, conseguirá se libertar;
do Doutor Xobu, o ‘governador fantoche’, cúmplice (semiconsciente) do poder
colonial; e de Pablo que talvez seja a intelectualidade ‘branca’ consciente de seu
lugar na luta.
325
Retomando procedimentos adotados anteriormente, no que se refere à teatralidade, à
duração do plano, à carnavalização, O leão de sete cabeças caracteriza-se, contudo, por um certo
esquematismo na aplicação desses recursos, como observa Amengual que parte de O dragão da
maldade para chegar a afirmação de que o filme é uma representação teatral:
...aquela ligação muito sutil e muito forte que, em Antonio das Mortes, une e
confunde teatro e realidade em uma mesma evocação cinematográfica do
mundo, desaparece em Der Leone..., que não é mais do que manifestação,
representação teatral. E não representação meio-contada, meio-sonhada, mas
representação efetiva. (...) Der Leone restaura a ribalta, reencontra a cena frontal
à italiana, a relação acadêmica cena-público. Os espectadores do Leone já não
estão no filme, mas diante dele, na sala. É em função da sala que a representação
é organizada.
326
A encenação, a quebra da narrativa, o desaparecimento do enredo, a diluição dos
personagens, são aspectos que caracterizam não apenas O leão de sete cabeças mas toda a
325
Lino Micciché. « Notes pour une étude sur le "Cinema Novo" et Glauber Rocha » in Études cinématographiques
– Le Cinéma Novo brésilien 2 – Glauber Rocha, n 97-99, Paris, 1973, p 31 (trad.S.R.B.N.)
198
produção subseqüente de Glauber Rocha cujo cinema tende cada vez mais para mistura entre
teatro e poesia, para o universo onírico, surrealista. Em 1971, o texto Estética do sonho, escrito
para ser apresentado na Universidade de Columbia, explicita alguns desses pontos dando
destaque à diferença entre a ‘razão burguesa’ e a ‘anti-razão revolucionária’.
A razão dominadora classifica o misticismo de irracionalista e o reprime à bala.
Para ela tudo que é irracional deve ser destruído, seja a mística religiosa, seja a
mística política. A revolução, como possessão do homem que lança sua vida
rumo a uma idéia, é o mais alto astral do misticismo. As revoluções fracassam
quando esta possessão não é total, quando o homem rebelde não se libera
completamente da razão repressiva, quando os signos da luta não se produzem a
um nível de emoção estimulante e reveladora, quando, ainda acionado pela
razão burguesa, método e ideologia se confundem a tal ponto que paralisam as
transações da luta.
327
Nesse texto torna-se evidente a mudança de posição de Glauber em relação à chamada
‘mística religiosa’ tratada como fator de alienação em seus primeiros filmes, sobretudo em
Barravento e Deus e o diabo na terra do sol. Em Terra em transe e O dragão da maldade, as
manifestações do povo já recebem um tratamento diferenciado aparecendo como contraponto às
instâncias do poder estabelecido e assim, adquirindo uma dimensão crítica, política. Mas é
somente a partir dos filmes realizados no exterior que a ‘desrazão’, mais do que tematizada, se
institui como forma, tradução cinematográfica do sonho, do delírio do oprimido. “Em vez de
tentar explicar a miséria e a escravidão de uma forma puramente política e racional, Glauber
lança mão da experiência mítica e religiosa e mergulha no inconsciente explodido e no transe
latino-americano. Fé, Transe e Celebração são a base da sua nova política.”
328
Os textos de Glauber representam a trajetória de seu cinema, as diferentes etapas de seu
pensamento. Marcado pela passagem da Estética da fome (1965) para a Estética do sonho (1971)
326
B. Amengual. « Glauber Rocha ou les chemins de la liberté » in Études Cinématographiques – Le Cinéma Novo
brésilien 2 – Glauber Rocha, n 97-99, Paris, 1973, p 80-81 citado por Cláudio M. Valentinetti. Op.cit., p 125 (trad.
S.R.B.N.)
327
Glauber Rocha. Estética do sonho in Sylvie Pierre. Op.cit., p 136.
328
Ivana Bentes. « Terra de Fome e Sonho : o paraíso material de Glauber Rocha » Disponível em
http://www.bocc.ubi.pt
199
o posicionamento do cineasta contra a razão dominante, voltado inicialmente a uma crítica aos
filmes hollywoodianos, se estende ao cinema engajado do tipo de La hora de los hornos de
Fernando Solanas.
Ao contrário do cinema realizado por Glauber Rocha principalmente a partir da década de
1970, o filme do cineasta argentino, considerado pela esquerda européia um ícone do cinema
político do Terceiro Mundo, seria, segundo Glauber, uma espécie de subproduto da lógica
dominante. “É um típico panfleto de informação, agitação e polêmica, utilizado atualmente em
várias partes do mundo por ativistas políticos”
329
.
Em Estética do sonho, a luta revolucionária se define a partir da negação do caráter
instrumental da arte de esquerda, normalmente fundada sobre os princípios da razão dominante.
Ampliando as questões apresentadas no texto de 1965, no de 1971 a revolução é vista como uma
força mágica, mística, política e a desrazão como centro da criação artístico-revolucionária.
Nesse processo de negação da razão dominante, os filmes de Glauber Rocha realizados a
partir de 1969, caracterizam-se (em ruptura com a lógica narrativa tradicional) pela
descontinuidade. Neles, o desenvolvimento da história (em analogia com os processos típicos dos
ritos populares como o transe e o delírio profético), opera-se fora dos padrões convencionais de
espaço-tempo. A expressão livre, nesse caso, é a expressão do inconsciente, livre da razão
dominadora. O que importa é o simbólico, a comunicação do mito, enriquecida, como observa
Lino Micciché, “de conotações quase ancestrais”
330
.
Em Cabeças cortadas a evocação do passado revela-se na semelhança entre a cultura
ibérica e a latino-americana ligando, dentro da linha do cinema Tricontinental, a Espanha de
Franco à problemática do Terceiro Mundo. Caracterizado por uma narrativa fragmentada, voltada
329
Glauber Rocha. Estética do sonho in Sylvie Pierre. Op.cit., p 135.
330
Lino Micciché. Op.cit., p 33 (trad. S.R.B.N.)
200
para a cena muito mais do que para o enredo, o filme remete a temporalidade do mito, no caso, ao
plano extra temporal do mito político cultural ibero-americano.
Personagem central de Cabeças cortadas, Diaz II é uma espécie de resumo de vários
personagens que compõem o universo glauberiano. O filme rodado na Espanha trata do
desmesurado do poder, buscando no Velho Mundo as raízes do autoritarismo latino-americano. A
imagem de Diaz II, com o ovo nas mãos, remete a Colombo, à descoberta da América, e a toda a
gama de ditadores enviados pela metrópole para garantir a exploração das riquezas do território
recém conquistado. Lembrando a colonização, a luta do europeu contra os nativos, Diaz II
representa a opressão não só do Primeiro Mundo em relação ao Terceiro. Ele é símbolo da
dialética opressor / oprimido; uma retomada, por exemplo, da figura de Diaz, o ditador de Terra
em transe que, coroado pelo conquistador português, faz ressurgir no presente toda a carga de
violência do nosso passado colonial.
O que está em jogo em Cabeças cortadas é a idéia, já observada nos filmes anteriores, de
repetição do passado no presente, de reencenação do mito. A diferença aqui, reside no tratamento
dado ao mito que aparece mais como uma força, uma expressão do pensamento do que como um
elo na cadeia narrativa. Com isso entende-se, que a produção de significado não está mais
atrelada à necessidade de se contar uma história. Aqui, o objetivo da imagem é a construção de
conceitos. Por exemplo, a imagem de Diaz II; a senilidade, a loucura que envolvem o
personagem, apontam, para além da idéia de colonização, para a degradação do poder e
principalmente para a passagem do tempo que transforma em ruínas os sonhos de grandeza de
outrora.
É nesse sentido, que Claro, último filme de ficção realizado por Glauber antes de seu
retorno ao Brasil, é revelador, ou melhor, ‘claro’. Lançando uma luz sobre os anteriores,
voltados, quase todos, para a questão da passagem do tempo, para a idéia de transformação, de
201
fim e de recomeço, o filme rodado em Roma em 1975, faz o personagem da Moça, representado
por Juliet Berto, circular entre as ruínas da antiga civilização.
Nesse filme, as imagens do Império Romano esfacelado, parecem se misturar ao
desencanto do cineasta com a experiência do exílio. O sertão, antes refletido na tela, se torna
interior, o sertão do abandono, da solidão, da saudade e do delírio que se expressa na forma cada
vez mais fragmentada de seus filmes. Em suas cartas, o sentimento de desajuste se revela. Sua
situação econômica é ruim, seus novos projetos encontram dificuldades de financiamento, e pior,
a crítica européia não aceita bem seus últimos filmes, sobretudo Claro, fortemente atacado pela
imprensa especializada francesa. Em uma de suas cartas o cineasta cita um trecho do artigo,
publicado no Le Monde por M. Jacques Siclier, a respeito do referido filme: “Infelizmente o
desprezo do autor pela linguagem ‘burguesa’ e seu gosto pela imprecação o conduzem dessa vez
para além do suportável”
331
. Essas palavras do crítico francês detonam reações explosivas de
Glauber que parte para o ataque indiscriminado à crítica, à Nouvelle Vague e aos cineastas de um
modo geral: “o filme mais reacionário da nouvelle vague, Adele H... e ainda, exceção Vadim,
nenhum cineasta nouvelle vague trepa.”
332
Glauber, que desde seu primeiro filme no exterior resolvera romper com a narrativa
linear, tradicional, se sente, nesse quinto ano de vida no exílio, profundamente incompreendido.
E para piorar o quadro, sua situação pessoal, após o fim do relacionamento com a atriz Juliet
Berto, torna-se bastante confusa. Na Europa, ele, definitivamente, não se sente em casa. “Fomos
felizes fora de Paris. Em Paris, a crise! Gosta da tua casa, acho bela, mas me sinto prisioneiro –
331
Comentário de Jacques Siclier ao filme Claro, mencionado por Glauber em sua carta resposta de 25/11/75 ao
crítico in Ivana Bentes. Op.cit., 1997, p 540-541.
332
Ibid., p 541.
202
me chateio, tenho vontade de partir... gosto da tua família, mas sinto que sou “demais” na tua
casa, fico deprimido, parto.”
333
Nessa época, na virada de 1975 para 1976, Glauber estava refugiado no Convento de
Saint-Jacques em Paris “temeroso que as perseguições ao terrorista Chacal levassem a polícia
francesa aos guerrilheiros latino-americanos sediados em Paris”
334
. Sua inadequação era
crescente. Ele mais uma vez pensava em partir. Seu plano imediato era transferir-se para os EUA
onde considerava que teria melhores chances de produzir. Mas depois de sua viagem a Moscou
ele escreve a Paulo Emílio comentando sobre sua intenção de voltar imediatamente ao Brasil:
Uma notícia que lhe parecerá talvez contraditória. Estou disposto a voltar ao
Brasil mesmo que seja para enfrentar um processo. O que poderão fazem além
de me prender uns dias e me dar umas porradas? Não quero continuar nesta
ambígua situação de exílio, minha experiência foi rica durante esse tempo, mas
tremendamente sofrida. Acabou o ciclo com está última viagem. Não quero ir
para a ÁSIA? VOLTA PARA CASA. Não quero repetir o destino de Cavalcanti,
chega de sofrimento. Não encontrei nem uma solidariedade profissional,
sobretudo na França vi de perto a sordidez destas sociedades pequeno-burguesas
e decadentes e conheci o profundo reacionarismo dos colonizadores. O exílio foi
o exílio: isto é, para me desconsolar até o fundo, inclusive com sofrimentos
sentimentais e sexuais. A crise econômica foi resultado de minha resistência ao
cinema comercial. Mas seu Vigo (Jean Vigo) me ajudou a não morrer.
335
Em junho de 1976 Glauber Rocha, finalmente, voltou ao Brasil. Mas, mesmo
considerando que o seu afastamento nunca tenha representado um desligamento do país, sua
reintegração (se é que houve) foi muito difícil. Sempre polêmico e provocador, o cineasta,
durante todo o período em que esteve no exílio, envolveu-se nos problemas nacionais atraindo
sobre si reações nem sempre favoráveis da opinião pública nacional e internacional, como, por
333
Trecho da carta enviada por Glauber Rocha a Juliet Berto do Convento de Saint Jacques em Paris na virada de
1975 para 1976 in ibid, p 559.
334
Nota explicativa da organizadora in ibid., p 558.
335
Trecho da carta enviada de Paris em 26/01/1976 por Glauber Rocha ao crítico Paulo Emílio Salles Gomes in ibid.,
p 581.
203
exemplo, no caso da declaração publicada pela revista Visão
336
na qual seu posicionamento a
favor dos militares colocou sob suspeita sua imagem de artista revolucionário.
Polêmicas como essa, apesar de preservarem sua ligação com o Brasil evitando que sua
figura caísse no esquecimento, vão pesar muito em sua volta dificultando sua reintegração aos
meios artísticos e conseqüentemente seus planos em relação a novos filmes. De resto, em seu
retorno, Glauber encontra um país muito diferente daquele que deixara em 1971:
... o Rio acabou, não tem mais aquele ouriço de antes, o centro do país é São
Paulo, Brasília. No norte, a Bahia. O Rio é um balneário, escroto... não existe
mais motivação coletiva... jornais ruins, vida cultural pobre etc. Acho que você
não suportaria viver aqui, e não se tem o que fazer, e o dinheiro é pouco e o
desinteresse geral é grande. Miséria espantosa nas ruas... Logo que possa
voltarei...
337
No campo cinematográfico, Glauber realiza mais três filmes após sua volta ao Brasil: o
curta-metragem Di Cavalcanti, filmado durante o enterro do pintor no Rio de Janeiro, Jorjamado
no cinema, documentário de 50 minutos encomendado para ser exibido na televisão e, por último,
A idade da terra no qual o cineasta se vale das experiências realizadas durante as filmagens de Di
Cavalcanti:
Penso que esse filme é uma revolução na história do cinema. Há uma montagem
nuclear (você viu Di Cavalcanti meu curta-metragem que ganhou o prêmio do
Júri de Cannes em 1977?) – que produz uma nova mise-en-scène... O segredo
dos meus filmes é a prática da montagem dialética. Um método científico. Mas
336
« Acho que Geisel tem a possibilidade de fazer do Brasil um país forte, justo e livre. Estou certo de que os
militares são os legítimos representantes do povo. Chegou a hora de reconhecer a evidência, sem recorrer a
mistificações e a estúpidos moralismos : Cosa [e Silva – NdA] era quente, frias eram as consciências em transe que
não desejaram pintar as contradições sobre o espelho da História. [...] Veja-se como estão as coisas : neste momento
a História recomeça. O fato de que Geisel seja um luterano e que meu aniversário seja a cada 14 de março, quando
completarei meus 35 anos, deixa-me absolutamente certo de que caiba a ele responder às reivindicações do Brasil,
falando por todos. Não existe arte revolucionária sem poder revolucionário. Não me interessa discutir estilo : quero ir
às raízes. Comecemos pela economia política e vejamos como se articula o desenvolvimento da superestrutura sobre
o subdesenvolvimento da infra-estrutura etc. [...]. Entre a burguesia internacional-imperialista e o militarismo
nacionalista, eu estou, sem qualquer outra possibilidade de escolha, com o segundo. E a propósito do Cinema Novo ?
O novo é sempre vivo e perene, e São Bernardo ainda surpreendeu os incrédulos da geração dos anos 50. Não tenho
nada de pessoal contra os tropicanalistas : detesto a sutileza refinada dos machadianos, a revisão time-life da
juventude "bem". Sou um homem do povo, seu intermediário e ao seu serviço. Força total para a Embrafilme. Ordem
e Progresso » em Glauber Rocha. « Abaixo a mistificação » in Revista Visão. São Paulo, 11 de março de 1974, p
154-155 trecho citado por Cláudio M. Valentinetti. Op.cit., p 170.
337
Trecho da carta enviada do Rio de Janeiro em setembro de 1976 por Glauber Rocha a Marcos Medeiros in Ivana
Bentes. Op.cit., 1997, p 615.
204
as pessoas dizem que sou louco. É muito fácil. Sobre A idade da terra, acho que
o filme vai provocar uma grande polêmica, não no nível pornô, mas no nível
filosófico-formal.
338
Lançado em setembro de 1980 em meio a polêmicas e críticas negativas, como já previa
Glauber, o filme, composto de entrevistas
339
e cenas rodadas no Rio de Janeiro, em Salvador e em
Brasília, mistura processos do cinema documentário com outros típicos do cinema de ficção
formando um grande painel de imagens que relacionam a pré-história dos povos ao futuro das
civilizações.
Diferente, por exemplo, de O leão de sete cabeças, Cabeças cortadas e Claro, onde a
força provinha das imagens (das cenas isoladas cujo sentido era independente das demais) e das
falas dos personagens (mais diretas em uns casos, mais metafóricas em outros), em A idade da
terra tanto a palavra se perde em meio aos ruídos quanto a imagem diante da potência da cor e da
luz. Completando, possivelmente, o projeto de Terra em transe (onde a morte do poeta apontava
para o triunfo de uma arte inteiramente nova em um futuro porvir), percebe-se, nessa linha de
filmes iniciada com O leão, um movimento crescente no sentido da dissolução da narrativa,
movimento esse que culmina em A idade da terra onde a busca do significado dá lugar à busca
da sensação pura. Extremamente complexo, esse último trabalho de Glauber Rocha, como ele
descreve em carta enviada de Sintra pouco antes de sua morte, “é o Verdadeiro Espelho do
Brazyl”
340
: um Brasil que é uma parte, um fragmento no interior de um todo que se estilhaça em
sua derradeira tentativa de definição.
338
Trecho da carta enviada do Rio de janeiro em agosto de 1978 por Glauber Rocha a Daniel Talbot in ibid., p 636.
339
A entrevista de Carlos Castello Branco é um capítulo à parte no filme. Em carta enviada à Glauber Rocha de
Brasília em janeiro de 1978 o jornalista comenta sobre a entrevista : « ... desde os primeiro takes percebi que só iria
dizer, do que poderia dizer, o que o Glauber queria. Ele interrompia meu discurso no momento em que ele percebia
que dali por diante iam seguir por rumos que fugiam ao seu objetivo. Reiniciava a tomada, mudava a câmera, o
cenário etc., mas sempre com o objetivo de juntar ao efeito cênico o controle da autonomia do ator improvisado. O
que eu disse era, em parte, o que queria dizer, mas Glauber só me deixou dizer o que ele também queria que eu
dissesse. Não mais. » in ibid., p 632.
340
Citado na carta enviada por Glauber Rocha de Sintra em julho de 1981 para Tom Luddy comentando sobre seus
planos para um novo roteiro in ibid., p 697.
205
5.3 – O problema da busca do significado em História do Brasil
A estrutura da obra de Glauber Rocha não é definida por nenhuma ordenação dos filmes
individualmente. Ela se caracteriza pela linha que os atravessa formando um todo marcado pela
repetição de alguns temas nos quais se destaca a tensão entre a expectativa de representar o real e
a impossibilidade de fazê-lo. Ismail Xavier, em um dos seus estudos dedicados a Glauber Rocha,
fala em “desejo de história”
341
.
História do Brasil, um dos filmes realizados durante a permanência de Glauber no exílio,
revela esse “desejo” funcionando como uma espécie de resumo metodológico da obra do
cineasta. Feito em parceria com Marcos Medeiros, o filme (na verdade, um meta-filme) é uma
composição de fragmentos iconográficos os quais, em sua maioria, não pertencem a filmes
brasileiros nem retratam diretamente a realidade do nosso país. Esses ‘pedaços’ de história de
procedências distintas e naturezas diferentes, recolhidos em arquivos das cidades de Havana e
Roma (fotografias, gravuras, mapas, pinturas e, sobretudo, extratos de imagens cinematográficas)
formam um painel dos 500 anos da história do Brasil, da chegada dos portugueses à ditadura
militar. Fragmentos extraídos de uma totalidade original, as imagens contam cada uma a sua
própria história: uma espécie de micro-récit
342
dentro do todo maior formado pelo texto que as
acompanha
343
.
341
Ismail Xavier. « Glauber Rocha : le désir de l`histoire » in Paulo Antonio Paranaguá (org). Op.cit., p 145.
342
Para uma definição de micro-récit ver Robert Stam. Op.cit., 1981, p 40. « Nós sabemos a respeito do nouveau
roman que romances-denro-de-romances funcionam muitas vezes como micro-récits que resumem o romance como
um todo. »
343
Convencional do ponto de vista de sua construção, o texto, informado pela visão determinista característica do
marximo ortodoxo em voga na época em que o filme foi realizado, lida com a noção de história total recusada pelo
plano das imagens. Para uma discussão mais aprofundada a respeito da relação entre o plano das imagens e o plano
da narração no filme em questão ver Sylvia R. B. Nemer. « História do Brasil : o desafio do cinema espetáculo » in
Cd-Rom da VI Jornada de Pesquisadores do CFCH. Rio de Janeiro, UFRJ, 2004.
206
Apesar da intenção de Glauber, em relação à História do Brasil, ter sido didática,
informativa
344
, o material que o filme nos apresenta, composto não simplesmente de imagens mas
de imagens das imagens, aponta, para além do seu objetivo manifesto, para a questão teórica,
estética (e, na perspectiva de Glauber, política), da representação.
O procedimento da citação, adotado em relação aos fragmentos iconográficos que formam
o todo do filme, é inteiramente transgressor em relação ao normatizado pela tradição acadêmica,
onde citar significa mencionar um texto ou transcrevê-lo a fim de ilustrar determinado ponto de
vista (que passa a ser representado pela citação). Contrariando esse pressuposto, a citação aqui
(considerando que a imagem nesse filme funciona como uma espécie de citação) reforça a
ruptura com o conceito clássico de representação na medida em que apropriada, retirada de seu
contexto original, a imagem, rompe com a noção costumeira que a caracteriza como um reflexo
direto da coisa representada. Abandonando a função ilustrativa que normalmente lhe é atribuída,
a imagem, em História do Brasil, deixa de referir-se a algo exterior para ter seu significado
referido a si própria.
345
A noção de representação em História do Brasil (onde um significado remete a outro e
assim indefinidamente) se repete ao longo de toda a obra de Glauber Rocha. No que diz respeito
a Deus e o diabo e O dragão da maldade, a referência à literatura de cordel segue esse
pressuposto colocando em questão o modo convencional de representação cinematográfica. Nos
filmes em pauta, a fala poética não visa, como de costume, ilustrar a narrativa, mas articulá-la de
outra maneira abrindo a imagem para novas possibilidades semânticas.
344
« Com essa experiência [...] espero dar uma função prática e didática ao cinema que fizer de agora em diante. O
cinema deixa de ser para mim apenas arte. É muito mais do que isso». Trecho citado por Claudio M. Valentinetti.
Op.cit., p 160 de « La historia del Brasil segun Glauber Rocha » in Cine Cubano, n. 86/88, Havana, 1974, p 97.
345
O conceito de representação pode ser avaliado de dois diferentes modos. O primeiro, « comanda o pensamento
clássico e encontra sua elaboração mais complexa com os lógicos de Port Royal ». O segundo, familiar ao filme em
questão, « tem em vista fazer com que a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da representação,
207
Glauber não foi apenas um artista, um produtor e realizador de filmes. Mais do que isso,
ele desenvolveu, em diálogo direto com sua obra cinematográfica, uma obra crítica, teórica, um
pensamento sobre cinema resumido, entre outros textos, em Estética da fome e Estética do sonho.
Nessas reflexões fica muito clara a recusa do cineasta ao cinema tradicional, à chamada estética
burguesa fundada sobre o modelo clássico de representação.
Considerada por Glauber um dos principais instrumentos do imperialismo, a estética
burguesa não poderia, segundo o cineasta, ser combatida, como costumava fazer um certo tipo de
cinema político da época, com as mesmas armas do adversário. Pensando a revolução em termos
estéticos, a preocupação de Glauber com o social, com a realidade do oprimido se desdobrava em
uma preocupação com a forma de representação dessa realidade. A transformação do real, nessa
perspectiva, estava inteiramente vinculada à transformação na forma de retratá-lo. Assim sendo,
não bastava focalizar o universo da fome, da injustiça, da exploração ou mesmo dar a palavra ao
oprimido como era comum entre os representantes da arte de esquerda dos anos 1960
346
.
Na perspectiva de Glauber a representação da realidade social devia passar pela mediação
das formas populares de comunicação, como, por exemplo, os cânticos afro-brasileiros em
Barravento e a poesia de cordel em Deus e o diabo e O dragão da maldade. Deve-se, contudo,
ressaltar que o objetivo da inclusão dessas manifestações nos referidos filmes não era, como se
poderia à primeira vista pensar, ‘dar voz ao povo’ da região retratada. Na verdade, o que estava
em jogo nessa proposta era colocar em cena as estruturas comunicativas próprias às
manifestações ‘marginais’ da nossa cultura, estas informadas por uma lógica, uma ‘razão’,
desligada dos padrões da estética burguesa.
isto é, que a coisa não exista a não ser no signo que a exibe. » in Roger Chartier. A história cultural entre práticas e
representações. Lisboa, Bertrand/Difel, 1988, p 21.
346
A respeito da fala do povo no cinema documentário dos anos 60 ver notas 88, 89 e 90.
208
Contra a razão dominante, alienadora, que permeava tanto o cinema comercial,
hollywoodiano, quanto um certo tipo de cinema engajado, Glauber propunha um cinema regido
pelos princípios dos ritos populares, marcados, como observou Mikhail Bakhtin
347
, por uma
concepção de tempo diferente da convencional. Em seu estudo sobre a cultura popular na Idade
Média e no Renascimento, Bakhtin verifica que nas manifestações daquelas sociedades
predominava a noção de tempo cíclico, a idéia de que o fim (diferente das sociedades modernas,
capitalistas, pautadas pela idéia de progresso, pela concepção evolucionista do tempo) era
marcado por um eterno recomeço.
O tempo, na perspectiva da cultura popular, é uma espécie de passado que retoma
continuamente o seu curso. A história, nesse sentido, não é o relato sobre um passado acabado
mas a narrativa de algo que se repete, ou, como em História do Brasil, de algo que se repete,
porém com um novo significado.
Incompleta, aberta, a história, segundo a concepção de Glauber Rocha, orienta-se segundo
a noção de tempo da cultura popular fundada sobre a esperança no novo, sobre a expectativa de
transformação futura, sobre, em última análise, a idéia de busca contínua que rege as
manifestações tradicionais marcadas pela repetição do mito como é o caso da literatura de cordel.
347
Mikhail Bakhtin. Op.cit.
209
Conclusão
Essa pesquisa procurou verificar como a literatura de cordel foi apropriada em Deus e o
diabo e O dragão da maldade, filmes cuja relação com o cordel foi objeto da análise
desenvolvida nos capítulos 2 e 3, respectivamente. Em relação a Deus e o diabo, o estudo teve
como ponto de partida o depoimento do compositor Sergio Ricardo a respeito do poema escrito
por Glauber Rocha, base do conjunto de canções que compõem o filme. Esse poema, à maneira
da tradição popular do cordel, conta a mesma história narrada pelo filme estabelecendo uma
ponte entre o passado da voz off narradora e o presente das imagens mostradas na tela. Partindo
dessa hipótese, procuramos, em primeiro lugar, verificar, recorrendo aos estudos de narratologia
fílmica (André Gardies, André Gaudreault, François Jost e Francis Vanoye) como se processou a
interação entre os dois planos (o da narração e o da “mostração”) e, em seguida, compreender,
considerando a proposta revolucionária do filme e o caráter conservador da poesia sertaneja, o
sentido dessa apropriação em Deus e o diabo.
Nesse filme, que reproduz, como tentamos mostrar no capítulo no qual o estudamos, a
estrutura básica do folheto, o cordel é uma referência homogênea, articuladora da narrativa. O
mesmo não acontece em O dragão da maldade, onde a poesia sertaneja, na modalidade do
desafio repentista, encontra-se associada a outras formas de manifestação popular (como os
cantos, as danças, os rituais populares que perpassam o enredo) e expressão artística (como, por
exemplo, o teatro de Brecht, uma influência importante na composição do filme). Com base
nisso, e levando em conta os estudos de Paul Zumthor sobre as formas de participação do público
nas manifestações populares, bem como os comentários de Glauber Rocha na entrevista ao
Cahiers du Cinéma (quanto ao improviso dos atores e a atuação livre dos figurantes), nossa
análise do filme se concentrou na idéia de performance pressupondo um envolvimento do
210
espectador diferente do envolvimento do filme anterior quando, acompanhados por Cego Júlio,
éramos conduzidos pelos caminhos da história.
Talvez por força de seus respectivos momentos históricos, os dois filmes (como
salientamos no capítulo 4) lidam com o cordel de formas completamente diferentes. Ao contrário
de Deus e o diabo, onda há uma direção, um caminho a seguir, em O dragão da maldade o fim
não nos leva a lugar algum. Em um caso, lembrando a lógica do folheto, a vitória do bem contra
o mal representa a moral da história cuja repetição tem como princípio evitar que, um dia, os
males do passado se reproduzam no presente. No outro, como nos desafios repentistas, a vitória
significa apenas o fim da peleja que deverá ser recomeçada, outro dia, em outro lugar, com um
tema inteiramente novo e lidando diretamente com a participação do público que intervém como
elemento de surpresa no processo de criação. É, portanto, nesse nível, ou seja, no nível das suas
respectivas estruturas de comunicação, que se processa a relação intertextual do cordel nos dois
filmes analisados. E é isso que os distingue tanto dos filmes interessados em retratar o sertão, sua
realidade política e social, quanto dos que se voltam para as suas tradições. O que está em jogo
no cinema de Glauber Rocha (como discutimos no capítulo 5 onde procedemos a uma análise
conjunta da obra do cineasta) é a ruptura com a razão dominante baseada em um modo de
representação que se convencionou chamar de clássico. Em contrapartida, Glauber propõe uma
forma de representação construída segundo a lógica dos rituais tradicionais (tal como analisamos
no primeiro capítulo, na parte relacionada aos mitos da literatura de cordel) onde prevalecem as
idéias de recomeço, de combate, de luta por um mundo melhor, sintetizadas nas imagens do beato
e do cangaceiro, do delírio místico e do duelo.
É esse sentimento, presente nas expressões da cultura popular, de que é necessário
recomeçar sempre, acionar permanentemente o mito como potência transformadora, que
diferencia o trabalho de Glauber Rocha do discurso revolucionário tradicional. Fundada na
211
esperança, no desejo eterno de transformação, a revolução, para ele, significa luta e, como o mito
evocado no cordel de José Pacheco, continua vagando indefinidamente através das histórias
contadas por nossos poetas (cineastas ou cantadores):
Vou terminar essa história
tratando de Lampião
muito embora que não posso
vos dar a resolução:
no inferno não ficou,
no céu também não chegou,
por certo está no sertão.
212
Relação dos filmes citados
Abacaxi azul (1944), Ruy Costa e Wallace Downey
A bientôt j’espère (1967), Chris Marker
A cruz na praça (inacabado), Glauber Rocha
A idade da terra (1981), Glauber Rocha
A morte comanda o cangaço (1960), Carlos Coimbra
Amuleto de Ogum (1974), Nelson Pereira dos Santos
Aruanda (1960), Linduarte Noronha
Baile perfurmado (1997), Paulo Caldas e Lírio Ferreira
Barravento (1961), Glauber Rocha
Berlim na batucada (1944), Luiz de Barros
Cabeças cortadas (1970), Glauber Rocha
Cabra marcado para morrer (1984), Eduardo Coutinho
Câncer (1968/1972), Glauber Rocha
Central do Brasil (1998), Walter Salles
Claro (1975), Glauber Rocha
Cleopatra (1963), Joseph L. Maniewicz
Coisas nossas (1931), Wallace Downey
Corisco e Dadá (1996), Rosemberg Cariry
Dadá a musa do cangaço (1981), José Umberto
Der leone has sept cabezas – O leão de sete cabeças (1970) – Glauber Rocha
Deus e o diabo na terra do sol (1964), Glauber Rocha
Di Cavalcanti (1977), Glauber Rocha
El Dorado (1966), Howard Hawks
Fazendo fitas (1935), Vittorio Capellaro
História do Brasil (1974), Glauber Rocha
Jorjamado no cinema (1977), Glauber Rocha
La Cecilia (1975), Jean-Louis Comolli
La notte di san Lorenzo – A noite de são Lourenço (1981), Paolo e Vittorio Taviani
Lampião, rei do cangaço (1936), Benjamin Abraão
213
Lampião, o rei do cangaço (1965), Carlos Coimbra
Les Carabiniers (1963), Jean-Luc Godard
Macunaíma (1969), Joaquim Pedro de Andrade
Maioria absoluta (1964), Leon Hirszman
Memória do cangaço (1965), Paulo Gil Soares
Metrópolis (1927), Fritz Lang
Metrópolis (1984), Giorgio Moroder
Nanook of the north (1921), Robert Flaherty
No trampolim da vida (1945), Franz Eichhorn
O cangaceiro (1952), Lima Barreto
O desafio (1965), Paulo Cesar Sarraceni
O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), Glauber Rocha
O homem da câmera (1929), Dziga Vertov
O Lamparina (1964), Glauco Laurelli
O pátio (1959), Glauber Rocha
Opinião pública (1967), Arnaldo Jabor
O sertão das memórias (1996), José Araújo
Os fuzis (1963), Ruy Guerra
Os herdeiros (1970), Carlos Diegues
Red river (1948), Howard Hawks
Rio bravo (1959), Howard Hawks
Stagecoach – No tempo das diligências (1939), John Ford
Sunset boulevard – Crepúsculo dos deuses (1950), Billy Wilder
Três cabras de Lampião (1962), Aurélio Teixeira
Vent d’est – Vento do leste (1969), Jean-Luc Godard
Vidas secas (1963), Nelson Pereira dos Santos
Viramundo (1965), Geraldo Sarno
214
Bibliografia
Folhetos de cordel citados
AIRES, José (Jota Sata). História da guerra de Canudos: 1893 – 1898. Biografia de Antonio
Conselheiro (CANTEL, 1993)
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_____________________ A donzela Theodora (FERREIRA, 1979)
_____________________ O monstro do rio Negro (TAVARES JÚNIOR, 1980)
BARROS, Leandro Gomes de. A batalha de Oliveiros com Ferrabrás (FERREIRA, 1979)
_________________________ O boi misterioso (GOUDEMAND, 1982)
_________________________ As lágrimas de Antonio Silvino por Tempestade (SANTOS, 1997)
BATISTA, Abraão. Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro do Norte (BATISTA, 1982)
CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. A moça que bateu na mãe e virou cavalo (TAVARES
JÚNIOR, 1982)
____________________________ A moça que bateu na mãe e virou cachorra (TAVARES
JÚNIOR, 1982)
LAUREANO, Cícero. História do filho que botou a sela na mãe e amigou-se com a irmã
(TAVARES JÚNIOR, 1982)
PACHECO, José. Chegada de Lampião ao inferno (SANTOS, 1997)
ROMEU, H. A moça que virou cobra (TAVARES JÚNIOR, 1992)
______________ A batalha de Carlos Magno e os doze pares de França contra Malaco rei de
Fez (FERREIRA, 1979)
SANTOS, Manoel Camilo dos. Conselho aos brasileiros (SANTOS, 1987)
_________________________ Viagem à São Saruê (SANTOS, 1997)
SANTOS, José João dos. (Azulão). O trem da madrugada, s.e., s.d., 8 p.
____________________________ Brasil desgovernado, s.e., s.d., 10 p.
____________________________ Meninos de rua, s.e., 1993, 8 p.
215
____________________________ Brasil de ontem e de hoje, s.e., s.d., 8 p.
SILVA, José Bernardo da. A prisão de Oliveiros (FERREIRA, 1979)
_____________________ Roldão no Leão de Ouro (FERREIRA, 1979)
_____________________ A história do boi Mandingueiro e o cavalo misterioso
(GOUDEMAND, 1982)
SILVA, João José da. O vaqueiro nordestino (GOUDEMAND, 1982)
As referências dos folhetos citados encontram-se nos livros onde foram mencionados.
Livros e artigos citados
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ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo. Ática, 1990.
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comparé – influences et répetitions. Conférences du Collège d’histoire de l’art
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BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e o Renascimento: o contexto de
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BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo, Perspectiva, 1999.
BARROS, Luitegarde Oliveira Cavalcante. Entrevista a Manoel Neto e Roberto Dantas in Os
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_________________Origem do drama barroco alemão. São Paulo, Brasiliense, 1982.
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