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CARME REGINA SCHONS
“ADORÁVEIS” REVOLUCIONÁRIOS
Produção e Circulação de Práticas Político-Discursivas no Brasil
da Primeira República
PORTO ALEGRE
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA ESTUDOS DA LINGUAGEM
TEORIA DO TEXTO E DO DISCURSO
“ADORÁVEIS” REVOLUCIONÁRIOS
Produção e Circulação de Práticas Político-Discursivas no Brasil
da Primeira República
CARME REGINA SCHONS
ORIENTADORA: DR
A.
ANA ZANDWAIS
PORTO ALEGRE
2006
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CIP – Catalogação na Publicação
__________________________________________________________________
S371a Schons, Carme Regina
“Adoráveis” revolucionários: produção e circulação de práticas político-
discursivas no Brasil da Primeira República / Carme Regina Schons. -- 2006.
282 f. ; 29 cm.
Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de
Pós-Graduação em Letras, 2006.
Orientadora: Dra. Ana Zandwais
1. Lingüística 2. Análise do discurso 3. Discurso político I. Zandwais, Ana
(orient.) II. Título.
CDU: 801.73
____________________________________________________________________
Bibliotecária Ana Paula Benetti Machado CRB 10/1641
4
Quem comanda a narração
não é a voz, é o ouvido.
Calvino
Àqueles que mostraram que eu também poderia ouvir.
5
É hora de agradecer...
Desde sempre esta página de “Adoráveis Revolucionários” estava destinada aos
agradecimentos. Ao iniciá-la, sinto a sensação de estar me despedindo de um tempo
solitário. Paradoxalmente, reconheço que vivi num espaço “povoado” de livros e que me
encheram de incertezas. Hoje, porém, sei que, ao final de um trabalho, sempre restam
questões sem respostas e que minha escolha teórico-metodológica e escolha do percurso
a ser seguido revelam também uma posição política.
As resistências, as lutas travadas durante o período da gestação desta tese
ensinaram-me que a minha escuta nem sempre se mobilizou na direção de onde emergia
a voz, e é nesse sentido que quero externar o primeiro agradecimento, seja através de
observações em relação às idéias aqui apresentadas, seja através de desafios:
A Ana Zandwais, em quem encontrei interesse pelo meu trabalho e
oportunidades. Agradeço sinceramente os conselhos, as indicações bibliográficas
preciosas, a leitura interessada, o estímulo e a paciência e também por sua
erudição e por aquelas palavras que continuarão produzindo efeitos em mim.
A Solange Mittmann e a Freda Indursky, cada uma a seu modo, que foram
preciosas no trabalho de qualificação.
Sou muito grata a Kitty, a Freda e a Ana, que desde minha chegada à UFRGS
realimentaram o interesse pela Análise do Discurso.
Ao Canísio, por também ter participação na minha história.
À UPF agradeço a imprescindível ajuda financeira, a liberação das atividades
docentes em 2005 e o espaço de trabalho.
Mas levando em conta que somos um todo (carne-mente-coração) e que sofremos
intervenção em outros espaços, reconheço que chegou também a hora de dizer a todos
que cruzaram o meu caminho e que me ajudam a encontrar sentido à minha vida. Um
sincero agradecimento:
Aos amigos Beth, rcia Dresch, Evandra, Daltro e Luiz, pela amorosa presença e
parceria; pelos sentidos que se inscreveram e atravessaram nossas vidas.
Agradeço por tudo!
Às amigas do Gepad, “vocês são demais!”.
6
E agradeço aos colegas da UPF que me incentivaram o tempo todo,
especialmente, a Márcia, Florence, Isléia, Lia e à irmã (de coração) Maria Emilse,
....Vocês sabem por quê.
Ao André, pelo teto e amor de irmão.
Aos meus pais, que me ensinaram a sonhar.
A karen e ao João, por me mostrarem que a linha do horizonte é sempre um possível.
7
Abreviaturas
AAD – Análise Automática do Discurso
AD – Análise do Discurso
CF – Condições de Formação
CGT – Confederação Geral do Trabalho
CLG – Curso de Lingüística Geral
COB – Confederação Operária Brasileira
CP – Condições de Produção
[E] Enunciado
FD – Formação Discursiva
FDAR – Formação Discursiva Anarquista Russa
FDAB – Formação Discursiva Anarcossincialista Brasileira
FDE – Formação Discursiva Estatal
FDP – Formação Discursiva Patronal
FDJ – Formação Discursiva Jurídica
FDT – Formação Trabalhista Brasileira
RR – Revolução Russa (Bolchevique)
SD – Seqüência Discursiva
SDR – Seqüência Discursiva de Referência
8
Lista de Textos
Bloco I – Formação Discursiva Russa (FDAR)
Texto 01: A inutilidade das Leis .............................................................................. 126
Texto 02: A violência das Leis ................................................................................. 142
Bloco II – Formação Discursiva Anarcossindicalista Brasileira (FDAB)
Seção A :
Texto 01: A política repressiva do Estado ................................................................ 166
Texto 02: Prisões. Deportações. Infâmias. ........................................................... 180
Seção B: Uma prática transformadora?
Texto 03: Sobre Organização – Tema 1 ................................................................... 206
Texto 04: Sobre Organização – Tema 4 ................................................................... 215
Texto 05: Sobre Organização – Tema 7 ................................................................... 220
Texto 06: Lei Marcial - Relações de Antagonismo Entre a Formação Discursiva
Anarcossindicalista Brasileira e a Formação Discursiva Jurídica.................................240
9
Resumo
A presente tese, filiada à Análise do Discurso (AD) de linha francesa, trata dos
processos de legitimação de práticas político-discursivas no Brasil no período histórico
compreendido na Primeira República (1889-1930). As análises deste trabalho estão
articuladas em dois blocos (I, II), de modo que cada bloco discursivo organiza-se em
torno de saberes identificados a FDs distintas: a) ao bloco I estão articulados saberes da
FD anarquista russa (FDAR); ao bloco II, seção A, articulam-se saberes da FD
anarcossindicalista brasileira (FDAB) e ao bloco II, seção B, saberes da FD
anarcossindicalista (FDAB) e FD jurídica. Para isso, faz-se a distinção entre conceitos
que em muitos momentos tornam possível observar as relações de antagonismo e
contradição. Assim, recorremos ao interdiscurso, lugar onde os enunciados se
articularam, descrevendo os diferentes modos como foram linearizados e, assim,
produziram sentidos, no embate tenso entre os jogos de aliança e antagonismo. O
trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro, fazemos uma reflexão em torno da
relação língua e história. No segundo, em “dispositivo teórico”, apresentamos a Análise
do Discurso perspectiva teórica adotada e algumas de suas noções centrais: discurso,
memória e sentido. No terceiro, retomamos as noções de condições de formação e de
produção, contradição, formação discursiva, processo de interpelação, relacionando-as
com nosso objeto de estudo. Apresentamos os pressupostos metodológicos da Análise do
Discurso e a análise de nosso corpus discursivo, de acordo com cada bloco discursivo.
Neste capítulo, ainda, completando um movimento teoria-análise-teoria, voltamos a
refletir sobre as noções teóricas trabalhadas, fazendo esboço de uma análise de textos
pertencentes aos blocos I e II, seção A. No bloco II, seção B, damos continuidade à
análise, trabalhando conceitos como lugar social, lugar político e posição-sujeito, todos
situados nas relações de antagonismo com os saberes da FDJ; analisando sdrs
pertencentes ao bloco de textos II, também trabalhamos o papel do porta-voz e do
articulador, estabelecendo relações com práticas políticas sindicais da Primeira
República. Por fim, na “Conclusão”, como não temos a pretensão de esgotar o recorte
cronológico, nem de abarcar a totalidade das enunciações que foram feitas em torno da
formação de um sujeito político nos movimentos da classe operária, fazemos algumas
considerações sobre as questões trazidas para discussão e tecidas a partir de três
formações discursivas diferentes, desdobradas em suas contradições, através: a) da
posição-sujeito dos operários-anarquistas, identificada à Formação Discursiva
Anarquista Russa (FDAR); b) da posição-sujeito das enunciações das propostas na
organização das associações operárias na Primeira República, identificada à Formação
Discursiva Anarcossindicalista Brasileira (FDAB); c) e, por último, enunciações da
posição sujeito situada no âmago das formulações jurídicas elaboradas no decorrer desse
recorte histórico, identificada à Formação Discursiva Jurídica (FDJ). Apontamos as
propriedades discursivas do discurso político analisado no período histórico recortado,
buscando, a partir de seu funcionamento discursivo, identificar os efeitos de sentido que
caracterizam tal discurso.
10
Résumé
Dans ce travail, qui s'inscrit dans la tradition méthologique de l'Ecole française
d'Analyse de Discours (AD), nous examinons certains processus de légitimation de
pratiques político-discursives au Brésil, au cours de la période comprise entre la Première
République, c'est-à-dire entre 1889 et 1930. Les analyses s'articulent en deux blocs (I, II A
et II B), chaque bloc discursif se constituant autour de savoirs identifiés à des formations
discursives (FD) distinctes: a) au bloc I se rattachent des savoirs propres à la FD
anarchiste russe (FDAR); le bloc II, section A, réunit des savoirs propres à la FD
anarchico-syndicaliste brésilienne (FDAB) et dans le bloc II, section B, s'articulent des
savoirs de la FD anarchico-syndicaliste (FDAB), et plus spécifiquement. Dans cette
optique, nous faisons la distinction entre divers concepts qui permettent d'observer des
relations d'antagonisme et de contradiction. Ainsi, nous avons recours au concept
d'interdiscours, lieu où les énoncés s'articulent entre eux, et décrivons les différentes
formes par lesquelles ils sont linéarisés et produisent du sens, au sein du conflit tendu
entre les jeux d'alliance et d'antagonisme. Le travail se compose de trois chapitres. Le
premier présente une flexion autour de la relation existant entre la langue et l'histoire.
Le second chapitre présente le "dispositif théorique”, c'est-à-dire l'Analyse de Discours,
perspective théorique adoptée dans ce travail, et certaines de ses notions essentielles,
comme discours, mémoire et sens. Dans le troisième chapitre, nous reprenons les notions de
conditions de formation et de production, de contradiction, de formation discursive et de processus
d'interpellation, que nous mettons en rapport avec notre objet d'étude. Les préssupposés
méthodologiques de l'Analyse de Discours ainsi que l'analyse proprement dite de notre
corpus discursif sont présentés pour chaque bloc discursif. Dans ce même chapitre, en
fonction d'un mouvement théorie-analyse-théorie, nous examinons à nouveau les notions
théoriques travaillées, afin d'esquisser les lignes générales d'une analyse de textes
appartenant aux blocs I et II, section A. Dans le bloc II, section B, l'analyse se poursuit
sous la forme d'un travail autour de concepts tels que le lieu social, le lieu politique et la
position-sujet, tous situés au sein des relations d'antagonisme par rapport aux savoirs
propres à la Formation Discursive Juridique (FDJ), où sont analysés des sdrs appartenant
au bloc de textes II. Nous examinons également le role du porte-parole et de
l'articulateur, par rapport aux pratiques politiques syndicales propres à la Première
République. Enfin, dans la Conclusion, n'ayant pas la prétention d'épuiser la coupure
chronologique ni d'appréhender la totalité des énonciations qui ont été faites autour de la
formation d'un sujet politique au sein des mouvements de la classe ouvrière, nous tissons
quelques considérations au sujet de questions relatives à trois différentes formations
discursives, déployées dans leurs contradictions, au travers: a) de la position-sujet des
ouvriers anarchistes, identifiée à la Formation Discursive Anarchiste Russe (FDAB); b)
de la position-sujet des énonciations des propositions de l'organisation des associations
ouvrières au cours de la Première République, identifiée à la Formation Discursive
Anarchico-syndicaliste Brésilienne (FDAB); et, finalement, c) des énonciations de la
position-sujet situées au coeur des formulations juridiques élaborées durant cette coupure
historique, identifiée à la FDJ. Nous mettons l'accent sur les propriétés discursives du
discours politique analysé au cours de cette période historique, tout en tentant
d'identifier, à partir de son fonctionnement discursif, les effets de sens qui le caractérisent.
11
Sumário
Da interdição ....................................................................................................... 12
1 Linguagem – o “eterno” (re)começar ......................................................... 26
1.1 Uma teoria de muitos “nós” ................................................................................. 27
1.1.1 Lingüística e Análise do Discurso ...................................................................... 32
1.2 Pontos de difração ............................................................................................... 46
1.2.1 Um “fio” de avanço .......................................................................................... 55
2 Discurso, memória e sentido ......................................................................... 64
2.1 O papel da memória sob os múltiplos olhares da Análise do Discurso ................... 60
2. 1. 1 O espaço do político na Análise do discurso.................................................... 78
2. 2 Da Contradição à heterogeneidade ...................................................................... 85
2.2.1 A relação contradição-heterogeneidade na Análise do Discurso ...................... 92
3 Condições de formação dos discursos e procedimentos metodológicos
.................................................................................................................................. 99
3.1 Condições gerais de formação das lutas operárias ............................................... 103
3.2 Bloco I – Condições de formação de FD anarquista russa (FDAR) ..................... 117
3.2.1 Processo de interpelação do proletariado russo via negação do aparelho jurídico
................................................................................................................................ 121
3.2.1.1 Domínios de saberes antagônicos e construção do imaginário propriedade
................................................................................................................................ 126
3.2. 2 Da propriedade a exploração .......................................................................... 132
3.3 A negação do aparelho jurídico............................................................................139
3.3.1 Formação discursiva anarquista russa (FDAR) e o coletivismo revolucionário
......................................................................................................................148
3.4 Bloco II – Condições de formação da FD anarcossindicalista brasileira .............. 157
3.4.1 Seção A - Condições de produção da formação do discurso de resistência no Brasil
da Primeira República ............................................................................................ 161
3.4.2 Formação discursiva jurídica e o aparelho policial: Relações de antagonismo com
a FDAB ...................................................................................................... 166
3.4.3 Resistência e Ação ....................................................................................... 175
3.4.4 Estrangeiro: alvo do aparelho jurídico e policial ............................................. 184
12
3. 5 Bloco II – Seção B - Uma prática transformadora? ............................................. 191
3. 5.1 – O lugar do sindicato: uma perspectiva coletivista.......................................... 201
3.5.2 Em dizer e silenciar: o atravessamento do político ............................................ 212
3.5.3 A imagem do sujeito “dedo-duro” no sindicato revolucionário.......................... 217
3.6 A inscrição do sagrado e do político na FD jurídica (FDJ) ...................................225
3.6.1 A armadura da lei .......................................................................................... 230
3.6.2 Lei Marcial: Relações de Antagonismos entre a Formação Discursiva
Anarcossindicalista Brasileira e a Formação Discursiva Jurídica ............................. 233
3.6.3 “ Adoráveis revolucionários” ........... .............................................................. 250
Considerações .................................................................................................... 262
Referências .......................................................................................................... 273
13
Da interdição
1. Estranha cicatriz
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva...
(Chico Buarque)
Em perfeita condição de insone, um olhar perdido na noite transcende a porta de
madeira maciça de um guarda-roupa. Em seu interior, uma caixa de documentos que
remontam uma história de vida. uma pasta de cor amarela e, nela, a prova infalível.
Uma certidão italiana de casamento
1
, datada em 1920: Sr. Rosso (Filippo, nascido em 29
de abril de 1897) e Senhora Bellinaso (Lia, nascida em 24 de março de 1896). “Dopo”,
uma foto do navio Giulio Cesare, identificando a passagem do casal e de dois filhos, em
terceira classe. Embarque em 1926. Chegada ao Brasil em 5 de março 1927.
Somente num momento raro de inspiração nos colocamos à procura de vestígios
de um passado do real vivido - que revelam a existência de uma falta: de um lado, a
marca daquilo que foi, que passou e que não volta mais; de outro, o indício de tudo
aquilo que não deixou lembranças, que foi silenciado e produziu desconforto de ter uma
língua apagada, mas que ainda hoje produz encontros de subjetividades e representa
possibilidades de reflexão sobre o modo pelo qual o silenciamento atua nos processos
histórico-discursivos; sobre o embate político com a imagem de outros sujeitos nacionais
a que outra(s) língua (s) nacional(ais) no território brasileiro remetia(m). Referimo-nos à
política que trabalha sobre o imaginário social e que intervém na memória nacional: a
detenção dos meios de produção, o cerceamento do sentido e do sujeito. Com a criação
de dispositivos das leis de segurança nacional, o controle destinava-se àqueles que eram
1
Para Rousso (1996, p. 86 - 87), os documentos escritos vindos de um fundo de arquivo produzidos por
uma instituição ou indivíduos singulares não têm a intenção de uma utilização ulterior, mas atendem a
objetivos imediatos, espontâneos.
14
estrangeiros, sobretudo àqueles que exerciam prática política dentro dos movimentos e
denunciavam as explorações dos governos e da patronal.
Discursos interligados e refletindo um sentido de proibido eram censurados,
silenciados. Mas “o silêncio é tão ambíguo quanto as palavras, pois se produz em
condições específicas que constituem seu modo de significar” (ORLANDI, 1995, p.105).
Nesse silêncio encontramos marcas do passado e, junto com elas, a abertura de um novo
horizonte. São os caminhos da memória articulação entre vivências e intenções.
2
Como
diz Rousso
3
(1996, p. 90), abre-se um abismo irremediável entre o documento e a
realidade que este documento exprime. “Do ponto de vista do homem, que vive sempre
no intervalo entre o passado e o futuro, o tempo não é contínuo, um fluxo de ininterrupta
sucessão; é partido ao meio, no ponto onde ‘ele’ está”
4
. O passado é a terra estrangeira
que assinala as distâncias que nos separam. Essa particular sensibilidade à alteridade, de
um olhar através das palavras alheias, mostra-nos que tornar alguma coisa transparente é
também torná-la invisível, já que nenhum documento fala por si só. Pois bem, este
trabalho talvez seja o sintoma de uma tentativa de suprimir uma falta, a tentativa de
reduzir, o máximo possível, a estranheza desse passado, marcado a ferro e a fogo, em
“carne-viva”!
2 A terra prometida
A terra é um elemento simbólico e ideológico. As escrituras não são apenas
documentos que provam a posse da terra, mas são matérias de constituição de sentidos,
os quais vão configurando uma nação, determinando práticas, definindo uma política e
construindo uma memória nacional, inscrevendo identidades, e a “terra prometida” pode
também ser entendida como oportunidade de trabalho. Tedesco (2000, p.16) afirma que
o fascínio da propriedade o sonho de ser proprietário - era quase irresistível para o
imigrante; a idéia de morar no que era seu significava segurança. Logo, fazer a América
2
Orlandi (1995) diz que o sentido não é um, são muitos. “O silêncio é necessário”, ou seja, “é preciso não
dizer para dizer”(p.174). O sujeito esquece que o discurso é heterogêneo no todo e, para o sujeito conservar
a identidade, deixa-se atravessar por múltiplos discursos. Essa diferença pode ser entendida como efeito da
contradição e da própria relação entre formações discursivas heterogêneas.
3
ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. Estudos Históricos. Historiografia. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, v. 09. n.17, 1995, p. 85 – 91.
4
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. [Trad. Mauro W. Barbosa]. São Paulo. Perspectiva, 2005.
15
não significou só a política de colonização da época, “a qual promovia a pequena
propriedade rural, mas seu significado interno no seio da família, no éthos tradicional na
construção de imaginários fundadores da cultura do ser colono familiar do
imigrante”(p.17). Na América (Brasil) iniciou-se um processo de imigração através de
ampla propaganda promovida pelos fazendeiros e autoridades brasileiras, chegando-se a
montar agências na Europa que prometiam a terra e, junto com ela, se fabricava “um
imaginário social envolto num sentido de família [...], encarnava a figura do patrão, do
dono do capital e da força de trabalho”(TEDESCO, 2000, p. 17). Esse sonho que
transportou muitos homens além-mar imprimiu uma especificidade de lugar e de
significação ao imigrante no Brasil. A esperança de se livrarem da exploração à qual
eram submetidos na Europa fez os imigrantes atenderem ao chamado da terra
prometida, ou seja, a oportunidade de trabalho veio romper algumas barreiras, mas
produziu silêncios, que hoje pedem que falemos sobre eles.
Mergulhar nesse “mar” é fazer a travessia para dizer que a terra prometida, para
alguns, também trouxe decepção, visto que o maior interesse de sua entrada no Brasil,
por parte do governo brasileiro, era substituir a mão-de-obra escrava, principalmente nos
cafezais paulistas, apesar de a política nacional brasileira alegar investimentos em
trabalhadores livres para atuar no país. Longe de seus sonhos e perto da impossibilidade
de fazer a América, os imigrantes europeus no Brasil fizeram parte de um jogo que, entre o
dizer e o silenciar, no papel do articulador
5
, faz falar a desigualdade. Pagaram alto preço
por serem estrangeiros, muitas vezes passaram por criminosos e indesejáveis; criou-se até
uma lei, chamada Adolfo Gordo, para regular suas ações nos movimentos operários.
O modo de circulação de seus discursos, buscando desmanchar/construir as
marcas de um lugar para o coletivo, na figura do articulador, deu um determinado tom à
voz dos trabalhadores brasileiros, especialmente àquelas falas que, na maioria das vezes,
eram impedidas de circular. A epígrafe escolhida para iniciar o que, tradicionalmente,
chamamos de “introdução” apresenta-se como um ponto de partida para a reflexão sobre
o interditado, sobre o imaginário que se criou em torno do imigrante no país,
especialmente sobre a construção da sua imagem nos movimentos operários, e sobre os
efeitos das práticas político-sociais e discursivas, de modo que o sonhado nos territórios
distantes (Brasil) vai aparecer projetado nos discursos a partir de um emaranhado de
vozes entrecruzadas, permitindo-nos recortar/discernir; reconstruir/ressignificar, via
5
Um dos principais conceitos que serão desenvolvidos na escrita de nosso trabalho.
16
linguagem, os lugares de falas presentes, interditadas e apagadas; são vozes que retornam
e que nos incomodam. Repetir, lembrar e esquecer são gestos que permitem ao sujeito a
função interdiscursiva e a inscrição de um conjunto de outros discursos. Dessa maneira,
pelo discurso vai-se atingindo o próprio cerne da constituição dos discursos, do sujeito e
de seus objetos de referência. Ao falarem, os anarquistas e anarcossindicalistas registram
certos impasses, definem a distribuição de lugares sociais e articulam novas práticas
políticas e que dizem respeito a posições ideológicas sobre a forma como foram
produzidas.
3 A constituição de um sujeito político
Sempre foi assim. Quando se fala sobre a inclusão do político na linguagem,
busca-se, de imediato, estabelecer relação com os princípios de igualdade de direitos.
Todavia, antes de tudo é preciso dizer que o político implica trabalho com dupla
materialidade a da língua e a da história. Para Pêcheux (1984), a perspectiva
materialista da lingüística põe em jogo o real da história tomado como contradição. Já,
para Guimarães (2002, p. 16), “o político é um conflito entre uma divisão normativa e
desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento”. No
discurso, vê-se emergir um sujeito heterogêneo e que se constrói na contradição. Logo, a
interdição, referida no título desta introdução, não incide somente sobre a ngua dos
estrangeiros, mas sobre o controle das práticas dos sujeitos operários, sobre os sentidos e
sobre a memória de brasileiro. Talvez fosse mais adequado falar aqui de um conjunto de
posições do sujeito
6
.
O presente trabalho analisa as principais formações discursivas da classe operária
brasileira no período da Primeira República. Para estabelecer relações com as práticas
sociais, estudamos também discursos da formação discursiva anarquista russa (FDAR), a
partir dos quais se fundaram no Brasil. Observando as relações de filiação da FDAR, em
nosso trabalho procuramos mostrar como os saberes anarquistas, sobretudo os
produzidos no contexto russo/soviético, vão sendo ressignificados no discurso
6
Reportamo-nos a Orlandi (1999, p. 17) que afirma que “o sujeito, na análise de discurso, é posição entre
outras, subjetivando-se na medida mesmo em que se projeta de sua situação (lugar) no mundo para sua
posição no discurso”, ou seja, a autora está se referindo aqui ao lugar social/empírico do sujeito que, ao se
subjetivar, ocupa uma determinada posição no discurso.
17
anarcossindicalista brasileiro e vão ocupando lugar em discursos e em práticas
trabalhistas. Consideramos, numa reflexão dialética da história, que os sentidos assumem
uma temporalidade própria na medida em que a história começa a ser organizada não
pela relação com o tempo, mas com o poder e a capacidade simbólica desses “efeitos de
memória”
7
.
Em relação a este estudo, buscamos saber um pouco mais sobre a importância
do papel do articulador
8
na produção e circulação de práticas político-discursivas durante
esse período e, também, sobre os seus efeitos de sentidos produzidos na imprensa de
resistência, tal como têm sido trabalhados por Orlandi (1993, p. 11). “Os sentidos
chegam e se transformam em outros, abrindo um lugar para a especificidade de uma
história particular, na sua forma plural: as histórias do Brasil”.
Como lembra Faletto (1977, p. 293), a migração de amplos setores da
população rural e a incorporação à vida urbana provocaram uma modificação radical da
situação da classe operária. As atividades e tarefas nas indústrias eram artesanais e
desenvolvidas por grupos de operários de origem européia, sobretudo espanhóis,
italianos, portugueses e alemães. A orientação ideológico-política dos movimentos
operários, a influência de doutrinas políticas, como o anarquismo e distintas formas de
socialismo, foram fortemente incorporados tanto por operários radicados em zonas rurais
como nos centros urbanos.
Evidentemente, a incorporação desses novos trabalhadores industriais
contribuiu para a formação da classe. Essa passagem de situação rural a uma situação
urbana é de importância crucial uma vez que, sem qualificação, os operários vão
desenvolvendo ocupações de tarefeiros e empregando-se em indústrias de marmoraria,
manufatura, tecelagem e similares. “Produz-se, portanto, uma separação nítida entre esta
massa não qualificada e o grupo de operários com maior experiência no desempenho de
suas tarefas e com uma relativa tradição industrial” (FALETTO, 1977, p. 294).
7
Reportamo-nos a Courtine (1981, p. 53), para o qual aos “efeitos de memória” de um discurso devem ser
articulados dois níveis de descrição de uma formação discursiva – o vel do enunciado e o nível da
formulação. Nos enunciados, Courtine identifica uma existência associada “ao tempo longo de uma
memória”, ao passo que as formulações são tomadas num “tempo curto da atualidade de uma
enunciação”. Conforme o autor, a relação entre o interdiscurso e intradiscurso, que atua quando uma
formulação primeira retorna na atualidade de uma conjuntura discursiva enquanto efeito de memória.
8
dissemos (na p. 14) que o articulador é um dos principais conceitos que serão trabalhados neste texto.
O papel do articulador está relacionado a um processo de interpelação ideológica pelo discurso, ou seja,
tem a ver com os modos de subjetivação e com a enunciação, pois, ao se identificar com uma dada
Formação Ideológica, dentro de determinada prática e formação social, o sujeito se ocupa uma posição.
18
Considerando ainda que todo modo jurídico impõe deveres para assegurar os
direitos aos cidadãos, nosso trabalho inscreve-se também no campo jurídico. A inscrição
no campo jurídico tem relação com a segunda parte do nosso estudo, na qual trazemos
passagens da Constituição, analisando as relações de antagonismo entre a classe
operária, as classes dominantes e o aparelho jurídico. Para tanto, queremos deixar claro
que a perspectiva da qual falamos é a de quem adota como corpus discursos heterogêneos
oriundos de ordens institucionais antagônicas - a ordem sindical e a ordem
constitucional. Portanto, a partir das condições de produção desses discursos, buscamos
compreender em que pontos se antagonizam, geram silêncios
9
, rompem-se entre si. O
período em que nos detemos para realizar nossas análises compreende os anos 1889–
1930 da Primeira República.
Assim, esse movimento de retomar discursos fundadores da organização
sindical, na enunciação do articulador feita na imprensa anarquista e anarcossindicalista,
que testemunham a “falta”
10
obrigou-nos a buscar reler o movimento da história de uma
ótica que irá privilegiar, certamente, as condições de
produção/reprodução/transformação da memória discursiva sindical.
Ora, referimo-nos às estruturas e aos elementos constitutivos das formações
discursivas que, pela falta, viabilizam contínua ressignificação dos discursos dispersos.
Estamos falando aqui dos silenciamentos decorrentes de práticas político-discursivas pela
não-correspondência entre a vigência de direitos nas constituições e a vigência de direitos
na vida real da classe trabalhadora, e, sobretudo, perante a constatação de que, no
período histórico estudado nesta tese, muitas ações dos movimentos operários foram
frustradas, impedidas, como as possibilidades de protesto e de reação por parte das
organizações populares e dos trabalhadores, por exemplo, que sofreram violência,
9
Pinheiro e M. Hall (1981, p. 10 - 14) ressaltam, em A Classe operária no Brasil 1889 – 1930, que o silêncio e a
deturpação da história são mecanismos caros ao poder no controle do passado e “ao invés de atribuir toda
a política repressiva do Estado em relação à classe operária, durante a Primeira República, a uma
perversão das classes dominantes da época, a uma espécie de anacronismo de um poder empolgado pela
‘oligarquia rural’, os documentos permitem outra interpretação”. Acrescente-se: no final dos anos 1920,
“apesar de não haver renunciado ao emprego sistemático da violência contra os operários e suas
organizações, os empresários, conforme apontam os documentos, começaram a desenvolver uma outra
estratégia complementar, em relação à classe operária. Ao lado da repressão física direta, utilizaram meios
mais sutis de controle das obras filantrópicas, da prática religiosa, da concentração da vida dos operários e
de suas famílias”. (PINHEIRO; M. HALL, 1981, p. 12)
10
De acordo com Gadet e Pêcheux (2004, p. 63), “a ausência de um conceito não produz seu simples
contrário” e, apoiados nos trabalhos de Milner (1978), os autores lembram que um impossível que se
assenta sobre o real da ngua (alíngua), ou seja, em toda língua consagra-se o equívoco, sendo, portanto,
impossível dizer tudo e impossível não dizer de uma certa maneira. E, se assim o é, “o equívoco aparece
exatamente como o ponto em que o impossível (lingüístico) vem aliar-se à contradição (histórica) o ponto
em que a língua atinge a história”(GADET; PÊCHEUX, 2004, p. 64).
19
sobretudo pela ordem constitucional. Por outro lado, constatamos que, no período
recortado para este estudo, os direitos democráticos não foram nem ao menos
ressalvados nas constituições e que as violações de direitos foram muito mais flagrantes.
Referimo-nos ao esmagamento do trabalhador, que teve amparo em leis de exceção
permissivas de abusos. É a esses silenciamentos que nos referimos e é em torno deles que
iremos desenvolver nossa análise.
Segundo Orlandi (1995, p.134), “o silenciado tem uma materialidade histórica
presente nos mecanismos de funcionamento dos discursos e em seus processos de
significação”. Quanto à interdição do dizer, os sentidos outros já estão instalados, não
reprodução e o trabalho do sentido se faz justamente no que não foi dito nas diferentes
formas que só a história poderá assentar. À medida que desenvolvemos estudos sobre a
luta da classe trabalhadora por seus direitos, buscamos compreender o outro lado da luta,
sem a pretensão de mudar a história oficial, mas na tentativa de mostrar que os
trabalhadores, por intermédio dos anarcossindicalistas, muito mais do que hoje, durante
a Primeira República tinham uma compreensão muito clara de sua condição, das causas
que mobilizavam suas lutas e, portanto, da necessidade de mudar suas condições de vida.
A escrita desta tese, as impressões, portanto, as possibilidades de esses discursos
resistirem ao tempo e acabarem voltando à memória não constroem, entretanto,
nenhuma verdade única, especialmente porque, tal como diz Rousso (1996, p. 89),
“uma verdade suplementar diante de todas as outras marcas do passado: existem
mentiras gravadas no mármore e verdades perdidas para sempre”. Nosso trabalho é uma
possibilidade de análise, um gesto de leitura entre muitos outros.
O anarcossindicalismo (organização dos trabalhadores em ligas, associações e
federações durante a Primeira República) constituiu-se uma corrente importante no
movimento operário no Brasil durante quase trinta anos, essa muito influenciada pela
doutrina e pela prática do sindicalismo francês. Nesse período, os sindicatos deveriam
liderar a luta contra o Estado e formar a base da nova sociedade a ser criada. A luta
política da classe operária deveu-se à crença de que as associações e os sindicatos
poderiam atender aos objetivos de: a) servir como entidades fundamentais para a luta
pela melhoria das condições de vida do operariado e para a emancipação social; b) servir
de base para a construção de uma nova organização econômica da sociedade; c)
organizar a luta direta contra o patronato, na qual a greve desempenha um papel
fundamental.
20
No contexto brasileiro, os anarcossindicalistas sentiam-se como parte de um
movimento internacional e procuravam desenvolver laços de solidariedade com os
movimentos operários da França, Espanha, Itália e Portugal. O esforço de
homogeneização do movimento operário ignorou a existência de uma corrente que, sem
colocar em questão a organização sindical, fazia reivindicações para a melhoria das
condições da classe operária, prática bem diferente da tendência varguista
11
, que, pela
estrutura paternalista imposta, de cima para baixo, determinou o modo de
funcionamento dos sindicatos. Como crer que, sem se considerar a existência no
movimento operário de uma corrente que fosse favorável a essa colaboração, a estrutura
do populismo
12
pudesse ter sido constituída?
A convivência da classe operária com o governo e os centros vitais do aparelho
parece ter conferido características especiais às relações entre o movimento operário e o
Estado, cuja especificidade é própria do contexto político brasileiro. Na realidade, os que
advogam por causas populares apontam dois fenômenos: a) a presença de setores sociais
propensos a algum tipo de aliança com o Estado; b) a existência, no interior do
movimento, de operários dispostos a aceitar a relação de dependência ao Estado.
Embora muitos estudos sobre a classe operária no Brasil privilegiem o
sindicalismo após 1930, tendo como referência a ascensão de Vargas ao poder,
várias pesuisas sobre o sindicalismo no Brasil anterior a 1930 e os princípios da formação
do movimento sindical, na Primeira República estão sedimentados, fundamentalmente,
nas bases da I Internacional Anarquista e na ruptura com alguns fundamentos
anarquistas. Na verdade, a diversidade da experiência da classe operária no Brasil
assume uma dimensão própria , uma vez que parte de seus militantes optou por
investimentos em ligas, associações e confederações, cuja atuação visava, de uma ou
outra forma, à politização dos trabalhadores. Mas será, mesmo, que, ao procurar
11
Designação do movimento sindical a partir de 1930. Referente à Segunda República, o varguismo
identifica o período em que a organização sindical passa a ser controlada pelo Estado. Vale destacar que o
funcionamento dos sindicatos, tanto dos patrões quanto dos empregados, deveria ter o reconhecimento do
Ministério do Trabalho, criado em novembro de 1930. Dentre as normas estabelecidas para a organização
da classe trabalhadora brasileira em sindicatos destaca-se a proibição de propagandas de caráter social,
religioso ou político, além de que só poderiam ser sócios os brasileiros natos ou naturalizados.
12
Referimo-nos às lideranças de massas como uma das principais formas de mobilização política no
período democrático, caracterizada como uma forma espontânea e popular de exaltação de uma pessoa na
qual aparece como imagem desejada para o Estado. A existência de uma relação direta “líder-povo-
partido” conforme Bodea (1992, p.190), é a característica dos “modelos populistas” latino-americanos na
fase transitória entre a “sociedade tradicional” e a “sociedade moderna”, identificada como sociedade
representativa e a vigência dos modernos partidos políticos. “[...] a formação discursiva populista instaura,
entre outros saberes, o saber de que a emancipação do proletariado deve advir de concessões promulgadas
pela classe dominante.” (ZANDWAIS, 2002).
21
conduzir o movimento operário ao enfrentamento do patronato, o movimento garantiu
sua legitimidade enquanto classe? A que objetivos políticos e sociais servem essas FDs?
Entendemos que podemos, por ora, responder à questão de dois modos.
Na primeira resposta, acreditamos que o exame desses discursos permitirá avaliar
os efeitos da militância do movimento anarcossindicalista, que foi articulada com suas
especificidades no Brasil por meio de discursos de aliança entre anarquistas e socialistas.
Com isso, abrem-se espaços de migração para outros domínios, assentando-se sob a
forma de “pré-construídos”
13
, como efeito de uma “memória coletiva”
14
, autorizando,
negando, ratificando, ou reformulando diferentes domínios de saberes. O pré-construído
é, portanto, isso que está em posição de anterioridade ou exterioridade em relação ao
enunciado. É efeito do que está “sempre-já-lá”, onde o sujeito sindical assume posições
de aliança ou de antagonismo perante a organização sindical. Então, pergunta-se: Até
que ponto a inserção do movimento proletariado no projeto político estatal permite a
manutenção de seus interesses?
Não resta dúvida de que o anarcossindicalismo fez movimentos dentro de outros
grupos e provocou uma atitude política até mesmo em outros segmentos sociais. Que
reação política viria a ocorrer no seio da burguesia e do Estado durante o mesmo
período? Embora os seus porta-vozes
15
buscassem alianças para desenvolver uma
educação diferente daquela da sociedade burguesa, terão sido os sujeitos
anarcossindicalistas apagados ou neutralizados, uma vez que desaparecem/reaparecem
em outros discursos e de heterogêneos efeitos de sentidos?
Uma segunda resposta mostra que nossa preocupação se concentra não apenas no
modo de “reorganização” de saberes, mas em trazer para a reflexão questões que nem
sempre se apresentam na história “oficial”, que atende a uns, mas a outros, não. Trata-se
de refletir sobre discursos (des)autorizados pelo Estado ou sobre aqueles discursos que
trazem “histórias” que não podem ser contadas, porque muitos registros de operários,
biografias e publicações considerados de interesse policial ou de Estado foram impedidos
13
Courtine (1981, p. 35) refere-se à designação de uma construção anterior, exterior e independente em
oposição ao que se constrói na enunciação. Pré-construído, conforme este autor, é aquilo que configura o
intervalo entre o interdiscurso, enquanto lugar de construção, e o intradiscurso, enquanto lugar de
enunciação.
14
Reportamo-nos a Courtine (1981, p. 53), segundo o qual à existência de uma memória coletiva” são
reenviadas desde questões familiares até a prática política, por exemplo, ou seja, a existência material de
uma formação discursiva como memória, conforme Courtine (p. 67), explica-se pela conservação e
reprodução dos rituais não-verbais que acompanham o discurso, a saber: a recordação, a repetição, a
refutação e o esquecimento de determinados elementos de saber representados pelos enunciados.
15
Referimo-nos ao lugar discursivo ocupado pelos líderes que passam a relatar e a negociar em nome
do/no grupo ao qual representam.
22
de circular. O monopólio da violência revela que os meios de coerção são geralmente
fornecidos pelo Estado, embora sejam revidados. Desse modo, os operários, nas
organizações institucionalizadas, raras vezes estão livres para escolher, para permanecer
“diferentes”, ou seja, o Estado, durante a Segunda República, “engole” todos esses
movimentos (anarquismo, anarcossindicalismo, comunismo).
Levando em consideração o que propõe cheux (1995) na obra Semântica e
discurso, na qual toma como fundamento para sua discussão domínios de saberes
marxista-leninistas, entendemos que a prática discursiva não se produz
independentemente de uma relação estreita com a prática política. Como lembra o autor,
quem trabalha numa perspectiva materialista do discurso, para não retroceder ao
sociologismo, ao historicismo ou ao psicologismo, sabe que não basta referir as
condições de produção sócio-históricas do discurso: “É preciso, ainda, poder explicitar o
conjunto complexo, desigual e contraditório das formações discursivas em jogo numa
situação dada, sob a dominação do conjunto das formações ideológicas, tal como a luta
ideológica das classes determina”(PÊCHEUX, 1995, p. 254).
Desse ponto de vista teórico-metodológico, Pêcheux (1995, p. 206) nos diz que “a
prática política é um espaço permanente de observação das relações contraditórias de
reprodução e de transformação, uma vez que a sua constituição ocorre no seio de
contradições e de relações desiguais dentro da luta de classes”.
Em vista disso, nossa pesquisa está dividida em duas partes. A primeira é
composta por dois capítulos e a segunda, por um, subdividido em seção A e B. No
primeiro capítulo, cujo título é “Linguagem o ‘eterno’ (re)começar”, desenvolvemos
uma reflexão em torno da linguagem tratada no plano simbólico, trazendo noções que
fazem parte do quadro de referência da Análise do Discurso e suas contribuições para os
estudos da linguagem. Dentro deste capítulo, procuramos mostrar até que ponto o estudo
da língua interessa aos estudos da Análise do Discurso, que o seu principal objeto de
estudo é o discurso. Para isso nos apoiamos nas reflexões desenvolvidas por Gadet (1980,
1987), Gadet e Pêcheux (1984)
16
, Pêcheux (1975, 1988), Courtine (1981, 1982) e outros
autores brasileiros, como Orlandi (1994, 1996, 2000), Leandro Ferreira(2000) e Indursky
(1997), buscando verificar em que pontos a AD diverge/converge dos estudos
desenvolvidos na lingüística. Ainda, no que se refere aos estudos político-discursivos,
16
A data referente à publicação brasileira é 2004.
23
reportamo-nos a Zandwais (1993, 1996, 2005), sobretudo aos realizados sobre as FDs da
classe operária brasileira.
Destacamos as relações de intersecção da memória e da política para a nossa
análise. Nessa primeira parte, no segundo capítulo, intercalamos as reflexões de ordem
teórica com reflexões sobre os procedimentos analíticos, trazendo ilustrações
preliminares de análises, com as quais procuramos mostrar como a pluralidade se realiza
na caracterização das condições de formação de uma FD, fazendo intervir saberes de
várias formações discursivas. A seguir, considerando que as condições de produção dos
saberes da Confederação Operária Brasileira (COB)
17
representam possibilidade de
análise de como tais saberes se articularam/desarticularam, procuramos apontar a
heterogeneidade de saberes que identificam e interpelam o sujeito proletário militante.
Devemos, assim, considerar a hipótese de que as condições de formação desses
saberes se produzem a partir dos saberes e práticas políticas, especialmente a partir das
principais resoluções tomadas e defendidas no primeiro Congresso Operário Brasileiro,
conforme atas reproduzidas por Rodrigues (1969) e Pinheiro (1985). Destacamos: a
resistência ao poder econômico, ação direta e a pressão contra o patronato, que, em suas
obras de beneficência, mutualismo ou cooperativismo, cria a dependência entre o
operariado, facilitando sua exploração.
Em trabalho recente, Zandwais (2005)
18
chama a atenção para o fato de que “as
estratégias de luta e resistência operária na Primeira República recrudescem e passam a
garantir, gradativamente, direitos reivindicados pelos trabalhadores, tais como redução
de oito horas de trabalho, direito à assistência médica e melhores salários. Também
recrudescem muitos mecanismos de coerção do Estado, da polícia e dos empregadores
contra os avanços das organizações sindicais”. Então, estrangeiros eram presos e
expulsos, o que provocou campanhas de repercussão popular. No período, os embates de
correntes políticas, quando não terminavam em farsas eleitorais, constituíam crises úteis
ao processo de desenvolvimento de uma “consciência política nacional”.
17
A Confederação Operária Brasileira (COB) foi instituída durante a realização do I Congresso Nacional
Operário em 1906. Conforme Pinheiro (1985, p. 153),“as resoluções formuladas pelo Congresso podem
servir como uma síntese do que seriam as posições dominantes no movimento operário, pelo menos a
1920”.
18
“Um dispositivo de luta política da classe operária brasileira na primeira república: processos de
interpelação do sujeito operário através da imprensa paralela”. In: SCHONS, C. R.; RÖSING, T. M. K.
Questões de escrita. Passo Fundo: Editora da UPF, 2005, p. 13-25.
24
É desse modo que damos continuidade ao terceiro capítulo, o qual desenhará o
percurso da segunda parte de nosso trabalho e se assentará em torno das condições de
formação da organização sindical no Brasil, ou seja, no que diz respeito ao resgate
histórico que trabalha as organizações sindicais em seu surgimento, faremos uma
reflexão em torno da especificidade dos movimentos operários da Primeira República,
logo depois da análise de discursos de anarquistas russos.
No contexto Russo, no período que antecede a Revolução de 1917, a prática
política do operário urbano e rural é analisada a partir dos princípios anarquistas, dentre
os quais se destacam a autogestão e a ação direta, saberes da FDAR difundidos tanto por
Kropotkin quanto por Tolstoi. Os discursos desses dois anarquistas, ao mesmo tempo em
que difundem os princípios anarquistas, buscam denunciar a violência do aparelho
estatal e jurídico, procurando mostrar as diferentes formas de exploração que eram
praticadas contra o proletariado por parte dos governos czaristas.
Para tanto, as análises deste terceiro capítulo partem de seqüências discursivas que
situam saberes que se identificam com a FD anarquista russa (FDAR) e
anarcossindicalista brasileira FDAB. Trabalharemos diferentes posições-sujeito e o modo
como os saberes anarcossindicalistas constituem a base da organização sindical
brasileira, dando ênfase ao papel do articulador, que é por meio deste que vão ser
caracterizadas as relações de contradição e de antagonismo entre saberes de diferentes
formações discursivas.
Para mostrar as relações de antagonismo trazemos algumas seqüências discursivas
que situam saberes que se opõem à formação discursiva jurídica (FDJ). No caso,
analisamos como o sujeito que pertence a uma dada associação, a uma determinada
organização sindical, é falado pela lei, observando os modos de constituição das relações
de poder pelo viés das formações imaginárias, pelo lugar do sujeito sindical na primeira
Constituição republicana. Temos em vista aqui que, a partir de 1906, os movimentos
sociais de natureza anarcossindicalista atuavam de forma significativa, estabelecendo-se,
com isso, uma reação antioperária por parte das elites, que estavam impressionadas com
o pronunciamento político dos militantes. Nesse sentido, no final terceiro capítulo, na
seção B, analisaremos a “lei dos indesejáveis”, formulada em 1921 para barrar a presença
dos estrangeiros no país, e que mostra que os imigrantes-operários eram vistos pela elite
como “inimigos”.
Vale lembrar que, quando se pensa Formação Discursiva com posições-sujeito
diferentes, é impossível ignorar o que está em jogo na luta de classes, ou seja, por trás do
25
jogo do outro temos um lugar para os estranhamentos, para dizeres e saberes
antagônicos. Nesse sentido, é dessa pluralidade contraditória de posições-sujeito e de
relações de antagonismo entre as Formações Discursivas que compõe o nosso corpus.
Para tanto, nossa pesquisa aprofunda a memória discursiva das práticas políticas no
interior dos movimentos operários.
É nesse ponto que o terceiro capítulo leva em consideração acontecimentos e
saberes que circularam no período de 1890 a 1930, que abrange anos de vigência de um
sistema político que vem caracterizar as relações de antagonismo como um traço
dominante à feição dos movimentos sindicais na Primeira República, dando ênfase ao
recurso à repressão, à supressão de mecanismos políticos que caracterizam os sistemas
“autoritários” do país.
Através da reconfiguração de saberes sobre a instituição sindical, mesmo que as
fronteiras entre um e outro domínio se desloquem e o “fechamento” de uma unidade seja
instável, a luta ideológica permanece, e o estudo da repressão aos movimentos
anarquistas e anarcossindicalistas não se esgota nas relações de poder, porque na sua
prática política, apesar da repressão, a composição heterogênea da classe operária e sua
relação com práticas específicas (o modo como respondia à hegemonia das classes
dominantes) buscaram desenvolver uma consciência de classe. Essas considerações nos
interessam na medida em que, quanto maior a oposição ao inimigo externo, mais o
Estado Nacional obrigou-se a levar a sério as exigências dos operários como forma de
controlar a divergência.
Em síntese, tomamos como centro de observação os discursos de lideranças
sindicais, entendendo que têm assegurado espaço dentro dos “aparelhos ideológicos de
Estado”. Segundo Courtine (1981, p.34), citando Fuchs e Pêcheux (1975, p.10), é “sob a
modalidade daquilo que se conhece sob a perspectiva das teses althusserianas sobre a
instância ideológica, como assujeitamento ou interpelação do sujeito como sujeito
ideológico, que a instância ideológica contribui para a reprodução das relações sociais”.
A partir dessas considerações, discutimos:
1. Para Pêcheux (1999, p. 26), “a memória compõe a materialidade discursiva de
um modo absolutamente particular, constitui a retomada direta, no espaço de um
acontecimento (...) o papel da memória é efetivar encontros entre temas, acontecimentos
e inscrições entre sujeitos”. Logo, em que medida o papel da memória e do interdiscurso
interfere na constituição, formulação e circulação dos saberes anarquistas e
anarcossindicalistas durante o período da Primeira República?
26
2. Para a análise do discurso, o discurso pertence ao gênero ideológico, o que
equivale a dizer que as formações ideológicas podem ser consideradas “um elemento
suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura
ideológica característica de uma formação social em dado momento” (PÊCHEUX e
FUCHS 1975, p. 167), e se “uma formação discursiva existe historicamente no interior
de determinadas relações de classe”, ou seja, a instância ideológica funciona pelo viés da
interpelação ou do assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico, o que leva os
indivíduos a ocuparem lugares específicos numa determinada formação social, sem se
darem conta de que são conduzidos, mas, ao contrário, tendo impressão de que são a
origem dos sentidos e de que controlam suas ações.
Então, pergunta-se: os saberes que migram da formação discursiva
anarcossindicalista brasileira (FDAB) passam a ser apagados, reformulados ou diluídos a
partir do momento em que as práticas do movimento operário passam a fazer
investimentos nos sindicatos, tomando como referência a prática política implementada
ao Estado?
3. Como os movimentos sindicais podem ser caracterizados no percurso de
condição de autonomia para condição de tutela?
4. Considerando que os militantes das facções anarquistas se manifestam como
inimigos do Estado por ser este uma organização coercitiva da sociedade, ou seja,
violenta, os anarcossindicalistas buscam estabelecer alianças com anarquistas e
socialistas, tendo em vista o preparo do proletariado para a revolução social, a qual viria
a extinguir o regime centralista do governo. No entanto, muitos mecanismos de coerção
do Estado, da polícia e dos empregadores contra os avanços das organizações sindicais
contribuíram para o esfacelamento da organização operária constituída na Primeira
República. Qual a importância do papel do articulador, então, nesse contexto de
interdições e proibições?
Com base nessas questões norteadoras e fundamentadas nos pressupostos teóricos
que entendemos como fundamentais para a presente investigação, pretendemos analisar
as condições de formação discursiva anarcossindicalista e as posições-sujeito.
Assim, veremos o modo como os saberes da formação discursiva
anarcossindicalista se inscrevem na história da classe operária brasileira pelas relações
estabelecidas com a formação discursiva jurídica. Desse modo, sintetizamos os objetivos
até aqui expostos, reiterando as indagações que temos como orientação para a realização
desta tese: verificar como determinados domínios de saberes de discursos outros, tais
27
como do movimento anarquista russo, se inscrevem na história da classe operária
brasileira da Primeira República, bem como as relações que se estabelecem em torno do
anarcossindicalismo.
28
1 Linguagem – o “eterno” (re)começar
uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
[...] Ferreira Gullar
Trabalhar a linguagem, mais exatamente a língua, na perspectiva da Análise do
Discurso constitui-se num desafio e, também, numa forma de resistência. Essa linha
teórica em que nos inscrevemos, como o próprio nome indica, trata do discurso, que, na
singularidade do gesto de interpretação, visa à multiplicidade, a movimentos e
deslizamentos dos sentidos. Nesse caso, para tratar do discurso é imperativo mudar de
lugar e estudar a linguagem em seu funcionamento. Trata-se de estudar, como diz
Orlandi (2000, p.15) apoiada em Pêcheux, “a língua fazendo sentido, enquanto trabalho
simbólico
19
, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e de sua história”.
Depreende-se daí a necessidade não de relacionar a linguagem à sua exterioridade,
mas de fazer deslocamentos de uma série de injunções teóricas que configuram um novo
campo do conhecimento e dentro de um processo em constante (des)construção.
O desafio está justamente em colocar para a lingüística uma relação de
interdependência, de confronto entre o político e o simbólico como uma nova forma de
conhecimento. Essa proposta, segundo Orlandi (2000, p.16), “visa a pensar o sentido
dimensionado no tempo e no espaço das práticas sociais do homem, descentrando a
noção de sujeito e relativizando a autonomia do objeto da lingüística”. Investir nessa
19
Reportamo-nos ao estudo sobre o “efeito de evidência”, desenvolvido por Pêcheux (1995, p. 159 – 163),
o qual diz que o caráter material do sentido é “mascarado” por sua evidência constitutiva daquilo que
chamamos “o todo complexo das formações ideológicas”.
29
perspectiva, portanto, significa produzir “desconfortos”, produzir crítica ao pensamento
da lingüística
20
, que vê na língua apenas um sistema fechado nela mesma.
Assim, os trabalhos na perspectiva da Análise do Discurso podem ser entendidos
como uma forma de resistência
21
. Nesse sentido, tomamos os trabalhos da AD
desenvolvidos no Brasil e que tomam as idéias de Michel Pêcheux como marco teórico,
que nosso objetivo consiste em mostrar como a ideologia está materializada na língua
e, por sua vez, manifesta no discurso. Referimo-nos às formulações feitas por Leandro
Ferreira (1996, p. 40-41), a qual nos lembra que o conceito de língua na perspectiva do
discurso não é o mesmo que dela tem o lingüista, ou seja, numa perspectiva em que o
social e o histórico são indissolúveis, língua é o “espaço para o aparecimento de fatos que
afetam a regularidade do sistema e que, no entanto, precisam ser formalizados e que,
paradoxalmente, entram em contradição com os princípios de consistência e
completude”.
Dessa forma, neste primeiro capítulo exploramos teoricamente as noções que
fundamentam esta pesquisa e que fazem parte do quadro de referência da Análise do
Discurso. Trazemos, inicialmente, a própria noção de Análise do Discurso, sua trajetória
e suas contribuições aos estudos da linguagem.
1.1 Uma teoria de muitos “nós”
A conjuntura política e intelectual francesa no final da década de sessenta
22
fortaleceu a proposta teórica de Michel Pêcheux, a Análise do Discurso. Nessa nova
20
Referimo-nos à lingüística estrutural, que tem por referência, inicialmente, os estudos de Saussure e que,
segundo o próprio autor, tem por “único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si
mesma”. Tal decisão teórica aconteceu em função de o estruturalismo lingüístico ter concentrado sua
atenção na descrição das relações entre as questões internas da língua, divorciadas de fatores ligados à
exterioridade histórico-social. A língua, na prática, apresenta-se como um conjunto não-fechado,
constantemente em constituição e que se reconstrói na própria atividade da linguagem, que é afetada pela
exterioridade. Na Análise do Discurso faz-se o deslocamento do objeto de análise, discutindo justamente a
relação do discurso com a sua exterioridade. Sobre esses deslocamentos, além da vasta bibliografia
produzida no Brasil por Orlandi, citamos estudos sobre sintaxe na perspectiva da Analise do Discurso,
desenvolvidos por Leandro Ferreira (2000), conforme consta nas referências bibliográficas deste trabalho.
21
Estamos nos apropriando aqui das palavras de Leandro Ferreira (1996, p.41), que diz que “a questão da
resistência é um modo de fazer emergir o aspecto ideológico nas discussões sobre a linguagem e reagir
assim à tendência do seu apagamento”.
22
Nessa época, as teorias enunciativas surgiram no bojo das questões políticas, reivindicando o lugar do
sujeito, teoricamente excluído pela lingüística. A disciplina surgida no final dos anos 60 na França - a AD -
contribuiu para promover o emprego, entre os lingüistas, do termo “discurso”. Mas, a partir dos anos de
1968 1970, a concepção de discurso passou a ser um objeto essencial à compreensão das realidades
históricas e políticas, um nível de intervenção teórica crucial para quem queria, ao mesmo tempo,
compreender a sociedade e trabalhar a sua transformação. Na definição relativamente precisa que era
então a sua, rompe-se com as nostalgias das montagens institucionais que convocavam as descrições
lingüísticas do discurso.
30
perspectiva, a linguagem passou a ser vista como interação social em que o outro
desempenha papel fundamental na constituição dos sentidos, não podendo, portanto, ser
estudada fora da sociedade nem sem se levar em conta o materialismo histórico, uma vez
que os processos
que a constituem são histórico-sociais. , nesse sentido, uma ruptura
teórica com o estruturalismo, que o domínio da semântica não pode mais ser
concebido apenas como estudo científico da língua, mas deve ser também entendido
como um estudo político, enquanto instrumento da luta de classes nos modos de
produção/reprodução/transformação
23
.
Vale lembrar que a expressão “interação verbal” pode ser empregada segundo
diferentes orientações teóricas e ter em cada uma delas implicações metodológicas
específicas. Aqui, a expressão não deve ser tomada como relação correlata e simétrica
entre sujeitos empíricos, mas como uma construção conjunta do social e do lingüístico.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, por exemplo, Bakhtin (1929) trata das relações entre
linguagem e sociedade segundo a dialética do signo ideológico, enquanto efeito das
estruturas sociais. Lembremos ainda que, para Bakhtin, a palavra nunca é neutra, não é
isenta das intervenções do outro, nem despovoada das vozes do outro. Embora Bakhtin
não chegue a formular uma teoria do sujeito, a noção de sujeito que nele emerge é
sustentada na/pela ordem simbólica do sentido, que só se dá no discurso do outro.
A premissa do dialogismo bakhtiniano promove o deslizamento teórico quanto
ao lugar do sujeito na linguagem. Referimo-nos às abordagens estruturalistas que
colocavam como objeto da lingüística apenas a língua, tendo-a como abstrata e ideal,
constituindo um sistema sincrônico e homogêneo. No confronto com essas abordagens,
os estudos de Bakhtin antecipam as orientações sociológicas e históricas da lingüística
estrutural e criticam duramente os princípios estruturalistas. Bakhtin parte da acepção de
que a língua é um fato social e histórico cuja existência se funda nas necessidades de
interação social entre as classes. Nessa perspectiva, a matéria lingüística é apenas uma
parte do enunciado e, por meio da enunciação concreta, a interlocução passa a ser um
elemento fundamental na constituição da significação. É nesse momento que o “outro”
vem exercer papel fundamental, já que, para Bakhtin, não processo de significação
independente da inscrição do signo numa ordem histórica e das relações intrínsecas entre
o sujeito, o lingüístico e o social.
23
Reportamo-nos a uma passagem de Pêcheux (1995, p. 283) em Semântica e discurso: A lógica intervém
como a modalidade de aplicação, na luta política e ideológica, dos conteúdos científicos do materialismo
histórico, de modo que essa luta toma em definitivo a forma do pedagogismo, uma vez que é no
reconhecimento do verdadeiro que a teoria – presume-se – se torna uma força material”.
31
Bakhtin (1997) foi o precursor da concepção de ideologia no campo dos estudos
da filosofia da linguagem. Para ele, “todo signo é ideológico”. E, sendo a ideologia um
reflexo das estruturas sociais, toda modificação da ideologia vai acarretar uma
modificação na língua.
Desse modo, partindo do pressuposto de que, dentro de uma visão marxista, os
limites de cada realidade podem ser apreendidos no “real histórico” e que os
fenômenos sociais são combinados aos econômicos e políticos, o trabalho de
interpretação reproduz parte dessa realidade, visto que apenas partes dela estão na/sob a
forma de representações, de acordo com a movimentação da luta de classes. Assim, toda
leitura introduz “estranhamento”, transforma os objetos de análise e intervém de modo
desigual na produção dos meios de produção
24
.
Fica, portanto, evidente que a concepção marxista de ideologia enquanto prática
social consciente marca um distanciamento em relação às questões sobre o sujeito
formuladas por Pêcheux em sua teoria do discurso. Se, para Bakhtin, o sujeito se
constitui na relação dialógica da linguagem, para Pêcheux, o sujeito é assujeitado
socialmente. A questão está no modo como esses assujeitamentos são explicados à luz da
filosofia da linguagem e da concepção materialista marxista-leninista.
A subjetividade, em Bakhtin, faz-se no coletivo, de tal modo que o signo
ideológico tem a ver com o lugar do sujeito dentro da luta de classes. A ideologia é uma
manifestação da consciência, mas não está no quadro da consciência individual, e, sim,
na coletividade. Por isso, língua é a realidade material específica da criação ideológica,
capaz de refletir e refratar uma outra realidade que lhe é exterior. Vale lembrar que, para
Bakhtin (1995, p. 25), sendo o signo a enunciação de natureza social, os fenômenos
ideológicos não podem ser reproduzidos às particularidades da consciência e do
psiquismo. “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de
si mesmo”. Assim, como “a verdadeira substância da língua não é constituída por um
sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem
pelo ato psicofísiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação”. (BAKHTIN, 1995, p. 123)
Quando, pois, se fala em dialógico, não se trata de uma corrente verbal face a face
entre locutor e interlocutor, mas de uma corrente verbal ininterrupta e que evolui em
24
Reportamo-nos a PÊCHEUX (1995), para o qual, a interlocução é estabelecida entre sujeitos sociais,
inscritos em diferentes lugares sociais.
32
todas as direções de um grupo social determinado. Como afirma Bakhtin (1995, p. 125),
“a enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o
discurso interior. As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da
enunciação e pelo seu auditório”. Ao situar o signo e a enunciação no social, Bakhtin
coloca a filosofia marxista da linguagem como base da enunciação e a estrutura
socioideológica como realidade da linguagem.
A “tomada de consciência”, como formula Bakhtin, ao introduzir a noção de
signo ideológico, mostra que o lugar do ideológico é o material social, ou seja, o sujeito
não só toma a palavra, mas torna-se função de uma voz coletiva dos outros. E a
consciência, enquanto efeito de uma representação do real histórico, contraditoriamente,
pode ser explicada a partir do meio ideológico e social, visto que não consciência
fora da ideologia. É desse modo que a palavra pode ser considerada a arena da luta de
classes, desde que tomada por um sujeito e corporificada numa determinada prática
discursiva. Isso mostra que o signo se materializa na palavra, a qual pode ser entendida
como efeito da palavra do outro.
A dificuldade nessa tese de Bakhtin está não nas reflexões sobre a importância do
materialismo histórico no trabalho da linguagem, mas no fato de que deixa lacunas sobre
determinadas questões concernentes à subjetividade numa ótica materialista. A
orientação de Pêcheux (1975, p. 255) vai justamente avançar sobre tais questões, isto é,
não se trata de identificar duas regiões visto que uma contém a outra e é difícil precisar
em que condições e em que espaço se podem tentar explicar as relações de filiação do
sujeito, porque o simbólico, o imaginário e o próprio real têm a ver com a ideologia.
Conforme Pêcheux (1975, p. 256), as modalidades histórico-materialistas sob as quais se
determina o real da história e da língua não são simétricas, e a produção dos
conhecimentos sempre será efeito da materialidade histórica dos fatos lingüísticos,
inscritos no conjunto complexo das formações ideológicas de uma formação social dada,
porém nem sempre correspondendo à estrutura da realidade.
Pêcheux (1975) propõe o estudo do discurso como um objeto lingüístico, desde
que entendido como um objeto histórico, ideológico e social. Assim, retomar as práticas
discursivas articuladas
25
tanto no domínio das ciências quanto no quadro da política
implica constatar as contribuições de outras áreas do conhecimento que devem ser
25
Como lembra o autor, esses domínios não estão justapostos ou opostos que “toda prática discursiva
está inscrita no complexo contraditório-desigual-sobredeterminado das formações discursivas que
caracteriza a instância ideológica em condições históricas dadas”. (PÊCHEUX, 1995, p. 213).
33
estudadas no entremeio da Análise do Discurso
26
, que não se situa, como diz Orlandi
(1996), entre a lingüística e as ciências sociais, mas se inscreve nessas disciplinas para
tratar de questões relacionadas à inscrição do sujeito na língua e na história.
O ideológico deve ser concebido como um dos aspectos da materialidade
discursiva. E, para ratificar tal afirmação, transcrevemos uma passagem que evidencia a
posição defendida por Pêcheux e Fuchs (1997, p. 16):
A modalidade particular do funcionamento da instância ideológica quanto à reprodução das
relações de produção consiste no que se convencionou chamar interpelação, ou
assujeitamento do sujeito como ideológico, de tal modo que cada um seja conduzido, sem se
dar conta, e tendo a impressão de estar exercendo sua livre vontade, a ocupar o seu lugar em
uma ou outra das duas classes sociais antagônicas do modo de produção.
Pois bem, seguindo a orientação da Análise do Discurso, mais especificamente a
de Pêcheux (1975), a interação entre os interlocutores tem a ver com as formações
imaginárias e com os lugares sociais dos interlocutores e sua posição relativa ao
discurso
27
. Para tanto, ao trabalhar com um discurso, não estamos tratando apenas de
um nível diferente de análise (fonético, sintático, semântico), mas de um ponto de vista
diferente. Além disso, o sentido não se refere apenas ao coro de vozes, à
intertextualidade, à relação que existe entre um e outro discurso, mas, efetivamente,
funciona como efeito, uma vez que são as condições de produção do discurso,
determinadas pelo contexto sócio-histórico, por práticas sociais e discursivas, que
movimentam os sentidos de modo desigual nas contingências históricas ou histórico-
discursivas.
Desse modo, o dialógico de Bakhtin privilegia a ideologia enquanto elemento
estruturador das práticas sociais/lingüísticas que, na sua plurivalência, mobiliza as
diferentes formas de significar a realidade, segundo vozes múltiplas que habitam o
26
As contribuições de outras áreas do conhecimento ocorreram da seguinte forma: a lingüística (Saussure),
relida por Pêcheux, veio assegurar outro tipo de concepção de língua; o marxismo, relido por Althusser,
veio garantir uma articulação entre o materialismo histórico e a linguagem. Por outro lado, Freud sendo
relido por Lacan, permitiu a inscrição de uma abordagem psicanalítica de conceito de subjetividade, pois,
com a transferência da noção de homem para sujeito, veio se redefinir na relação com o simbólico. A partir
desses três domínios de conhecimento e “atravessando” suas fronteiras, a Análise do Discurso construiu
seu objeto: o discurso como o lugar de observância da relação entre língua e ideologia e sujeito.
27
O sujeito é interpelado e conduzido a ocupar um lugar, ou seja, esse sujeito “livremente” inscreve-se
num lugar social relacionado a “posições de classe em conflito umas com as outras”. (PÊCHEUX;
GADET, 1975, p. 167). O sujeito, ao ser interpelado, identifica-se (ou não) com saberes de uma dada
formação discursiva. Tal “efeito ideológico” é designado por Pêcheux por formação ideológica. Há, nesse
sentido, o que se pode chamar de duplo afetamento que o sujeito, pela interpelação, se constitui e se
identifica com sentidos que lhe parecem evidentes.
34
mesmo discurso. Dialógicas por natureza, as palavras transformam-se em instrumento de
luta; são disputas de vozes que assumem diferentes posições e que não querem ser
ouvidas, como marcam o lugar de seus interlocutores dentro do espaço social, dentro da
luta de classes. O dialógico explorado em estudos da Análise do Discurso tem a ver com
esse embate de vozes, com as diferentes posições assumidas nas relações de antagonismo
entre as classes; enquanto efeito de uma memória que aciona as condições de produção
dos discursos a partir de pré-construídos a um “exterior, que se constitui de um conjunto
dos efeitos, na ‘esfera da ideologia’, da luta de classes sob suas diversas formas:
econômica, política e ideológica.” (PÊCHEUX, 1995, p. 258)
No intuito de estabelecer e fundamentar o lugar da Análise do Discurso como
“entremeio” que não se restringe às práticas políticas apenas, nem se volta tão-somente à
realização da língua em sua imanência, faremos, inicialmente, uma breve reflexão acerca
da linha de pensamento que fundamenta a concepção de língua em Saussure, a
concepção de linguagem e as conseqüências decorrentes de seus estudos. Logo a seguir,
explicitaremos a concepção de língua e de discurso como dois planos que se fundem e
que são intermediados pela sintaxe. A sintaxe que convém ao discurso é a que, em sua
estrutura, reserva um espaço para a história, no sentido de mostrar que sujeito e língua
têm um espaço para funcionar. É aquela que, em sua própria “armadura” e porosidade,
leva em conta a língua e o discurso, entrando aqui o real da língua, com o seu possível e
impossível de se dizer
28
.
1.1.1 Lingüística e Análise do Discurso
Para entender os deslocamentos acerca da constituição do sentido, tomaremos,
num primeiro momento, algumas passagens das obras Tricher la langue (1980) e Saussure:
uma ciência da língua (1987), de Françoise Gadet, nas quais a autora considera a língua
um jogo e, simultaneamente, traz passagens do texto em que Saussure se serviu da
comparação figura de linguagem para descrever o sistema de valores da língua e as
suas modificações.
28
Referência direta aos trabalhos desenvolvidos por Leandro Ferreira, bastante divulgados no Brasil.
Dentre esses, citamos a obra Da ambigüidade ao equívoco: a resistência da língua nos limites da sintaxe e do
discurso, editado pela Ed. da UFRGS, 2000.
35
Gadet (1980, p.117), ao falar de escrita, diz que a sintaxe é “o modo de acesso à
língua” e que a escrita sempre traz “idéia de que é preciso fazer qualquer coisa à língua”.
O “fazer qualquer coisa à língua” pode, no mínimo, ter duas leituras. A primeira leitura,
na especificidade das palavras de Gadet, tem relação com a idéia de jogo, o qual, através
do trabalho de interpretação, mostra a singularidade da própria essência da linguagem,
ou seja, a idéia de “jogo” reside no fato de se pensar a língua como condição de
existência, de falhas, de equívocos, de resistências e esquecimentos também. Nesse caso,
a previsibilidade é a transgressão. Pela segunda leitura sobre “o fazer qualquer coisa à
língua”, vai-se exatamente em direção oposta à primeira, o que é/comporta a idéia de
domesticação
29
. A respeito dessa possibilidade de leitura, coloquemos em destaque o
corte saussureano, “aquele gesto” que revelou o movimento paradoxal do lingüista ao
delimitar o objeto da lingüística e que: a) ressaltou a condição da língua como um
“sistema estabelecido”, b) produziu conhecimento que configurou um discurso
fundador
30
e alcançou uma grande amplitude de outros discursos e c) pela fala, revelou
“vestígios” de um sujeito apagado, de um sujeito excluído histórico e ideologicamente.
Pautado nos estudos lingüísticos no início do século XX, o corte saussureano
produziu um efeito de ruptura em relação às concepções anteriores dos comparatistas e
das gramáticas gerais do século XIX que ainda continua repercutindo, porém agora
servindo de “memória temporalizada” e que se apresenta como legítima dentro da
lingüística, enquanto disciplina e enquanto ciência. Mas o caráter científico dado à
lingüística e que deu um novo rumo aos estudos da linguagem, ao mesmo tempo em que
se concentra na observação dos fatos de linguagem, “faz existir a ilusão de que ‘sabemos
29
Reportamo-nos a CHOMSKY, Noam. Novos horizontes no estudo da linguagem. Delta, v.13, n.
Especial, p. 49 72, 1997, na qual o autor diz que as palavras são compreendidas de modos sutis e
intrincados, indo muito além do alcance de qualquer dicionário. “Quando vamos além das palavras
isoladas, a conclusão se torna ainda mais dramática, pois, em suas propriedades essenciais e mesmo até o
mínimo detalhe as línguas são moldadas na mesma fôrma”(p.54). Chomsky propõe um modelo que não se
destina a descrever, a ser aplicado sobre a fala, mas que é para que a “fala” opere sobre ele e se tornem
visíveis as operações mentais que a engendram e organizam. Não seria a lingüística o seu paradigma,
aquilo que dá suporte ao discurso, também o modelo que permite a um determinado sentido vir a ser
jogado como essas regras e sobre essas regras. Dessa maneira, para Chomsky, o sentido não está na
organização da língua, mas no jogo que se opera entre os elementos da organização de um sistema
abstrato.
30
O discurso fundador, tal como se concebe na Análise do Discurso, e conforme Orlandi, “é uma categoria
de análise a ser delimitada pelo próprio exercício de análise”; “são discursos que funcionam como
referência a outros discursos, a uma memória”; “vão-nos inventando um passado inequívoco e
empurrando um futuro pela frente e que nos dão de estarmos dentro de uma história de um mundo
conhecido”; são enunciados que ecoam e reverberam efeitos de uma história”; “não são enunciados
empíricos, são imagens enunciativas que nos apresentam uma versão do que ficou”. (ORLANDI, 1993,
p.7 – 12).
36
do que falamos’, temos o controle do que queremos dizer, negando assim o ato da
interpretação’ no momento em que se manifesta”(LEANDRO FERREIRA, 1996, p. 45).
Assim, embora se reconheça o valor da teoria saussureana para a lingüística,
sobretudo da dicotomia língua/fala, nela o sujeito e a significação são excluídos e a
questão do sentido aparece como resultado de uma segmentação, como um valor que
emana do sistema, como um fenômeno associativo. Portanto, enquanto para Saussure o
valor é uma potencialidade da língua e a significação é uma realização intrínseca do
sistema
31
, que um elemento vale no sistema por sua relação com os outros”, para
outros autores, essa concepção de língua não se sustenta.
Bakhtin contrapõe-se à concepção de sistema língua de Saussure, interessando-se
pelas relações sociais e interindividuais de que a língua deve dar conta. A natureza do
signo bakhtiniano remete para um exterior, para o ideológico, já que ele “reflete e
refrata” uma realidade, ou seja, a língua, para Bakhtin, é constituída de signos que
significam o mundo para os indivíduos que dela se utilizam em sua interlocução. Logo,
as relações interindividuais, por ocorrerem no social, são permeadas pelo ideológico, que
confere aos signos seu índice de valor. Pêcheux (1969), num outro horizonte teórico,
entende que a língua deveria dar conta do histórico, e o social sempre convoca a prática
discursiva entre sujeitos sociais, inscritos em diferentes lugares sociais. É, pois, a partir
desses lugares sociais que os sujeitos se relacionam na qualidade de sujeito. Como lembra
Indursky (2005, p. 104), “Pêcheux interessa-se pelos processos semânticos que se
instauram na materialidade lingüística do discurso social, sendo que a língua sistêmica
tampouco conta desses processos, pois dela estão excluídos o sujeito e a historicidade
na qual sua prática discursiva está imersa”.
No caso, o ideal de transparência da linguagem que subjaz aos pressupostos da
gramática tradicional inscreve-se no Curso de lingüística geral, que, por sua vez, revela um
sujeito que, ao mesmo tempo em que se empenha em garantir a ilusória “certeza” de que
31
Referimo-nos ao princípio da arbitrariedade do signo desenvolvido por Saussure para assinalar o lugar da
língua como efeito de expressão de uma sociedade. Aliás, uma concepção de língua nessa ótica redutora
revela completa ausência de sujeito, pois tira da língua a espessura semântica ao considerá-la como um
instrumento que reclama a objetividade, a literalidade do sentido no momento em que o valor do signo é
como resultante de convenções. Para Saussure, dentro dessa ótica, trabalhar com o domínio dos símbolos
seria extrapolar as dimensões de sua teoria. Essa é a razão pela qual ele define a condição do mbolo, mas
não justifica a exclusão deste de seus estudos. “O símbolo da balança não poderia ser substituído por um
objeto qualquer, um carro, por exemplo.” (SAUSSURE, 2000, p. 82).
37
controla o sentido das palavras que enuncia, rende-se à reprodução
32
de uma ordem e,
paradoxalmente, depara-se com o “turvo”, com o “nulo”
33
, ou seja,
o valor respectivo das peças depende da sua posição no tabuleiro, do mesmo modo que na
língua cada termo tem seu valor pela oposição aos outros termos.
[...] lugar, o sistema nunca é mais que momentâneo; varia de uma posição a outra. É bem
verdade que os valores dependem também, e, sobretudo, de uma convenção imutável: a regra
do jogo, que existe antes do início da partida e persiste após cada lance. Essa regra, admitida
de uma vez por todas, existe também em matéria de língua. (SAUSSURE, 2000, p.104)
34
Como podemos ver, o fato de a lingüística estrutural ter-se colocado no campo da
língua, enquanto sistema de signos, e tê-la divorciado do contexto histórico-social é que
levou a língua a ser, equivocadamente, associada à noção de código. Abre-se, porém,
uma “ferida” na lingüística de Saussure, que toca profundamente num ponto central para
a Análise do Discurso: a exclusão da historicidade e do sujeito. Uma análise que se
interesse apenas pelo estrutural e pelo sistema de regras ignora a exterioridade, e uma
língua abstraída da prática social apresenta-se desprovida de qualquer marca de
subjetividade, razão pela qual pode ser associada somente a um código. Sobre a
mutabilidade do signo, Saussure afirma que a “língua se transforma sem que os
indivíduos possam transformá-la”, ou seja, o tempo atua sobre a língua, garantindo sua
continuidade, e atua sobre a fala, alterando os signos. (SAUSSURE, 2000, p. 89).
Como podemos observar, o autor levanta questionamentos sobre as modificações
que ocorrem na língua: como um falante que não conhece as regras poderá modificá-las?
A língua, para o autor, ocupa um papel principal dentro da lingüística, de tal maneira
que não sofre interferências dos elementos externos. De acordo com Saussure (2000, p.
91-93), os processos de transformação da língua não poderiam estar alicerçados apenas
na distinção língua/fala; a imutabilidade lingüística é sustentada pela perspectiva da
sincronia, possui uma importância superior ao papel da diacronia. Dizendo de outro
modo, sequer se cogita qualquer espaço para a história, uma vez que é tratada tão-
somente como uma decorrência da temporalidade e de continuidades de estruturas
dentro de determinadas épocas.
32
Para Althusser (1999, p. 163), a reprodução das relações de produção é garantida pela superestrutura,
jurídico-política e ideológica; os aparelhos de Estado garantem, por um lado, o exercício do poder; por
outro, a repressão. Nessa perspectiva, a produção e reprodução são sustentadas pelas condições políticas
do funcionamento de um aparelho de Estado dominante.
33
Expressões empregadas por Saussure (2000, p. 152 153) para caracterizar a significação como
decorrência da relatividade da arbitrariedade do signo.
34
A data da primeira edição é 1916. Estamos utilizando a edição brasileira de 2000.
38
A disjunção entre estado e evolução é trabalhada por Saussure (2000, p. 104) por
meio da metáfora do jogo de xadrez: “O valor respectivo das peças depende de sua
posição sobre o tabuleiro”. Tal comparação tem sido satisfeita com a noção de diferença.
Quando o autor (p. 136-139) afirma que “um signo é o que o outro não é”, significa que
no sistema não espaço para a redundância, “existem diferenças”, e que as relações
mobilizadas para o signo são internas ao sistema. Nada que não pertença ao sistema
pode ser convocado para participar das relações das quais decorre o valor do signo
lingüístico.
Nessa perspectiva, a crítica é que “em um ponto a comparação é falha: o
jogador de xadrez desloca voluntariamente sua peça, enquanto que a língua jamais põe
em jogo a premeditação: o papel do jogador não é mantido/controlado pela
pessoa.”(GADET, 1987, p.56). Já, para Pêcheux (1988, p. 153), ao ser interpelado o
sujeito identifica-se com determinados sentidos que lhe parecem evidentes, não com
outros. Essa identificação com certos sentidos se pelo efeito da ideologia, ou seja, o
sujeito identifica-se com certos saberes de uma dada formação discursiva. Daí por que a
teoria pecheutiana do discurso faculta a mobilização de uma exterioridade constitutiva
do sujeito e do sentido.
Courtine
35
, entretanto, ensina que o poder totalitário interessa-se de tal maneira
pela língua que quer dominá-la, reduzi-la a um instrumento de normalização do
pensamento, porque a língua representa a memória viva dos homens e oferece-lhes
possibilidades infinitas de resistência interior. Ao entrar na obscuridade impenetrável dos
sentidos, a língua torna-se uma ameaça ao poder totalitário. Diante dessa ameaça, o
poder mobiliza-se para “curar os homens de sua língua, para fazer desaparecer usos
antigos e obscuros, apagando os pontos incompreensíveis e as zonas de indeterminação
a ambigüidade, a equivocidade, a polissemia. Purgar e purificar, esvaziar os signos de
seus sentidos e os corpos de sua substância para depois preenchê-los”.
A partir da constatação de que as condições de produção de um discurso são
sempre heterogêneas e instáveis, Courtine (1982, p. 244) afirma que o princípio
constitutivo de toda FD é a contradição, porque a formação discursiva é uma unidade
dividida e heterogênea. Tendo em vista que seu fechamento é instável, não configura um
limite definitivo entre exterior/interior, mas se inscreve entre diversas FDs como uma
fronteira que se movimenta em função dos mecanismos de luta ideológica.
35
Reportamo-nos ao artigo de COURTINE, Jean Jacques. La meilleure des langues. In: Linguistique
fantastique. Paris: Denoël, 1984, p. 2.
39
Por conta da noção de fronteira como um ponto de contato entre interdiscurso
(vertical) e intradiscurso (horizontal), esses dois níveis que os separam, mas que também
os unem, Courtine (1982, 246) propõe a descrição da FD no nível do enunciado [E], que
representa a descrição do interdiscurso da FD, e no nível da formulação [e], no qual
temos a descrição do intradiscurso da seqüência discursiva.
No intuito de sublinhar o que acabamos de abordar aqui, trazemos enunciados
explorados por Courtine (1981)
36
que mostram que todo enunciado [E] é “atravessado”,
vertical e horizontalmente, por outros enunciados [e]. Com tais exemplos, Courtine
procura mostrar que a existência do enunciado, de um lado, é da ordem do repetível,
interdiscursiva
37
de um sistema de formação e que assegura ao discurso a permanência
material no nível vertical; de outro, responde à existência horizontal, intradiscursiva, da
formulação, onde a enunciação pode produzir uma variação conjuntural. As formulações
utilizadas por Courtine para ilustrar o modo como figura um enunciado dentro de um
contexto interdiscursivo foram extraídos de uma entrevista concedida ao jornal La Croix
por George Marchais, secretário-geral adjunto do Partido Comunista Francês (PCF),
publicada em 19 de novembro de 1970. Transcrevemos duas delas em seqüência.
(1) Qual é, no fundo, a razão da política da mão estendida? Trata-se de uma tática destinada a ampliar
sua influência política (...) Vocês procuram por um reforço eleitoral (...)? Sobre o que ela repousa?
(2) Nossa política em relação aos cristãos nada tem de tática circunstancial, é uma política de
princípios.
Vale lembrar que, de acordo com Courtine (1981, p. 51), esse discurso retomava a
fala de Maurício Thorez em maio de 1936, durante o processo eleitoral francês, quando
os partidos Socialista e Comunista aliaram-se aos radicais vencendo por maioria absoluta
as eleições legislativas desse ano, acontecimento que originou um novo governo na
França, dirigido por Leon Blum. As discussões sindicais organizadas por esse governo
culminaram, em junho de 1936, na assinatura de acordos que promoveram, entre outras
36
Os enunciados pertencem à obra de COURTINE, Jean-Jacques. Analyse du discours politique. Langage
Française (62) Paris: Larouse, jun. 1981, p. 45 -47.
37
O chapéu de Clémentis. Observações sobre a memória e esquecimento na enunciação do discurso
político. In: INDURSKY, Freda; LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina (Org). Os múltiplos territórios da
análise do discurso. Porto Alegre; Sagra Luzzatto, 1999. (Coleção Ensaios, n.12). Para o autor, é nesse nível
do enunciado, enquanto rede de formulações, que os diferentes sentidos se armazenam sob forma de
citação, recitação ou pré-construído. “O interdiscurso fornece objetos do discurso em que a enunciação se
sustenta ao mesmo tempo em que organiza a identificação enunciativa (através do regramento das marcas
pessoais, dos tempos, dos aspectos, das modalidades...).” (COURTINE, 1999, p. 20).
40
medidas, o aumento de salários da classe operária e maior liberdade de ão para os
sindicatos.
Nas citações acima, o uso de interrogativas feito pelo jornalista, juntamente com o
emprego de recursos de adjetivos e pronomes, reforça a inscrição da posição-sujeito do
jornalista perante aos saberes que comporta a FD do Partido Comunista Francês, o qual
visa garantir um debate sobre as relações estabelecidas entre a Igreja Católica e o Partido
Comunista. Produz-se, portanto, um resgate histórico das relações de antagonismo entre
o Partido Comunista e a Igreja Católica, insinuando que a política dos comunistas seria
uma armadilha, na qual, os cristãos não deveriam cair.
De acordo com Courtine, estabelece-se a verticalidade entre discurso e ideologia
visto que esta última é caracterizada por uma materialidade específica, articulada sobre a
materialidade das formações sociais, de modo que o funcionamento da instância
ideológica é concebido pela determinação da instância econômica e, nessa ótica, as
condições de produção discursivas o são distintas das condições de produção das
práticas sociais das diferentes classes.
Há que se observar que o comunismo é condenado pela Igreja de Roma do
mesmo modo que o foi o socialismo desde Pio IX, nas encíclicas Qui Pluribus (1846) e
Notis et Nobiscum (1849). Na definição de Leão XIII, sucessor de Pio IX, o comunismo
recebe designações como “seita detestável”, “peste proveniente de miasmas”, na
encíclica Quond Apostolici Muneris (1878), e, na Diuturnum (1881), o papa condena os três
grandes perigos do culo - comunismo, socialismo e niilismo -, os quais seriam
“tremendos monstros da sociedade moderna”. Somente em 1891, Leão XIII, na encíclica
Rerum Novarum, definiria o comunismo como uma expressão do socialismo. Em 1931,
nas encíclicas Quadragésimo Anno e Divini Redemptoris, o comunismo foi totalmente
condenado por Pio XI, para o qual o comunismo é “herdeiro do socialismo”,
“intrinsecamente perverso”, “luta contra tudo o que é divino”, “doutrina de natureza
ímpia e injusta que pretende uma humanidade sem Deus”. Ao definir os tipos de
socialismo (religioso e cristão
38
), o papa alertava os católicos dizendo que “ninguém
38
O socialismo cristão foi difundido pelo padre francês Robert de Lamennais (1782 1854), que no século
XIX defendeu a religião cristã como instrumento de reforma e justiça social. Durante seus ensinamentos,
utilizava-se dos problemas criados pela indústria, desenvolvendo um trabalho de conscientização. A
encíclica Navarum Rerum (1891), lançada por Leão XIII, entretanto, reconheceu a propriedade privada
como um direito natural, repudiando a teoria marxista da luta de classes. Em contrapartida, o documento
recomendava que os empregadores respeitassem a dignidade de seus trabalhadores, a criação de uma
legislação trabalhista e a formação de sindicatos de trabalhadores. O documento contribuiu para a criação
de partidos cristãos que defenderam a legislação social.
41
pode, ao mesmo tempo, ser bom católico e socialista verdadeiro”, tendo em vista que os
socialistas criticam a Igreja e seus objetivos são não-cristãos. Pio XI não se limita a
apenas examinar e condenar a doutrina comunista, pois chama a atenção dos católicos
para as manobras das organizações internacionais do comunismo, referindo-as como
“uma propaganda verdadeiramente diabólica”.
Desse modo, como podemos observar na sd (2), é caracterizado não o que o
secretário responde às perguntas formuladas em (1), mas mantém-se o diálogo constante
com os saberes que circulam, igualmente, em outras FDs e em outros momentos
históricos. O que acabamos de descrever acima põe em circulação sds do tipo (3):
(3) O comunismo é intrinsecamente perverso e não se pode admitir, sob nenhuma hipótese, que o
católico colabore com ele.
Essas sds põem em movimentação saberes de FDs antagônicas (os saberes da FD
do Partido Comunista “católicos contribuem com o comunismo” e os saberes da FD da
Igreja Católica), visto que, em si, são empregados de modo desigual e contraditório e,
grosso modo, pertencem a doutrinas de orientações diferentes, ou seja, os objetivos da
Igreja Católica não são os mesmos do socialismo, o que passa a configurar a identidade
de movimentos altamente distintos e, por natureza, antagônicos.
Courtine (1981) afirma que a estabilização da referência dos elementos do saber se
dá pelo interdiscurso, ponto de articulação dos enunciados, sempre como pré-construído,
que é aquilo que já existe, sempre e antes; é uma construção anterior e exterior, mas não
independente. Assim, é a partir de CP heterogêneas das FDs acima referidas que
poderiam ser produzidas posições de classe, que podem ser de antagonismo ou de
aliança. Portanto, em nosso trabalho realizaremos uma análise no eixo da verticalidade
uma vez que os discursos dispersos formam uma rede interdiscursiva de formulações
contraditórias e antagônicas entre saberes de FDs em confronto.
Com tal afirmação, podemos constatar que a contradição não está na língua,
mas, sobretudo, no jogo de interesses que se encontra sob o efeito produzido na relação
da historicidade com a língua. Na era stalinista, por exemplo, a imposição de uma língua
universal que correspondia à etapa do comunismo obrigou a conjugar o político e
literário dentro das condições internas e criou a necessidade política do movimento
revolucionário de atender à reflexão marxista. E a tentativa de homogeneizar uma língua
como superestrutura resulta numa língua sem diferenças, padronizada. Esse tipo de
42
“jardinagem”, como dizem Gadet e Pêcheux (2004, p. 93), recria o mundo soviético, no
qual o “homem novo se prepara para acabar com as contradições da luta de classe”. E
prosseguem:
O fracasso estratégico da revolução com relação aos camponeses, que implicam um processo
de decomposição progressiva das contradições de base da sociedade soviética, repercutiu,
através da divisão social e política do trabalho. Essa divisão do processo revolucionário
contra si mesmo tomou a forma de uma vontade de unificar a sociedade, rechaçando tudo o
que podia retardar a realização imaginária dessa unidade. (GADET e PÊCHEUX, 2004, p.
94)
“Nesse ponto, se conjugam o impossível e a contradição, manifestando o real da
história”. Como lembram os autores, na língua a busca impossível da unidade imaginária
paga o alto preço da dupla linguagem da dominação.
Dentro das condições descritas, no caso das sds de Courtine, a repetição na
horizontalidade remeteria à negação de algo afirmado pela imprensa sobre as práticas
políticas do Partido Comunista, através de uma construção polifônica onde se acusa o
Partido Comunista de estrategista, ou seja, de acordo com Courtine, as condições das
práticas discursivas estão condicionadas às posições que os sujeitos ocupam numa dada
formação social, cujo papel consiste em fornecer possíveis previsões e efeitos de sentidos
que as falas produzem no espaço contraditório de atuação das classes. Logo, o
entrevistado estava sendo alvo de ataque por parte de jornalistas e da população por
ocupar o lugar de porta-voz do Partido Comunista Francês e buscar salvar a imagem do
partido, ao negar as acusações de utilizar-se de “tática circunstancial para ganhar a
adesão dos católicos como reforço eleitoral.
Segundo Courtine, esse tipo de análise pode ocorrer não pela repetição na sua
verticalidade, mas também pela horizontalidade, pois, no interior dessa seqüência
discursiva, a sua construção é feita pelo texto da entrevista num contexto intradiscursivo
de formulação com o qual mantém uma relação particular. No caso (2) é tomado como
efeito de diálogo. Nesse sentido, o autor lembra que (1) e (2) nutrem outros laços com
formulações assinaláveis no seio do processo discursivo inerente à FD que o domina, no
caso a FD comunista. Com isso, Courtine coloca como necessária a relação da
linguagem com as condições de produção. Há um compromisso da linguagem com o
processo histórico-social, e os efeitos de sentido aparecem fragmentados, divididos,
sedimentados, institucionalizados, porque refletem o jogo de interesses das FDs que se
confrontam. Encontraremos nos termos de Courtine (1982, p. 25) uma rede de
43
formulações, “um conjunto estratificado e desnivelado de formulações que constituem a
reformulação”.
Desse modo, percebemos a partir das sds referidas acima que a questão da
heterogeneidade discursiva coloca em aberto a questão da contradição, bem como
reforça o embate ideológico que se trava no interior de uma FD. E, tendo em vista que a
contradição trabalha os contrários, mas não possibilita que todos os pontos de
convergência se diluam, vamos encontrar trabalhando com essa contradição efeitos do
trabalho de memória, já que, de acordo com Courtine (1981, p. 52), toda produção
discursiva remete a formulações anteriores e enunciadas que se manifestam na
atualidade dos dizeres sob a forma de retorno da contradição sobre o dizer. Logo, pensar
interdiscurso, incluindo-se todas as categorias pensadas por Pêcheux e Courtine (pré-
construído, paráfrase, memória), significa deslocar tais conceitos para a instância da
prática política, que é o lugar por excelência da contradição. Daí por que “o interdiscurso
de uma FD, como instância de formulação/repetição/transformação dos elementos do
saber de uma FD, pode ser também aquilo que regula/regra o deslocamento de suas
fronteiras”. (COURTINE 1982, p. 250).
Assim, na visão de Courtine (1981, p. 11), a contradição é constitutiva de todo
discurso, levando-se em conta que esse objeto reveste a forma de uma relação
contraditória entre o objeto real e o objeto do conhecimento, como, por exemplo, “ao
mesmo tempo ser bom católico e socialista verdadeiro”. Na Análise do Discurso, a
contradição é tomada como uma condição necessária para a interpretação e
reconstituição da parte apagada na reformulação e serve de referência ao contexto inter e
intradiscursivo, sendo o segundo determinado pelo primeiro. Desse modo, a contradição
é tomada como condição inerente ao discurso desde uma perspectiva materialista
dialética.
De acordo com Pêcheux (1993, p. 50)
39
, as FDs enunciadas através da base
material da língua passam a configurar os efeitos dos processos de reconhecimento dos
sujeitos nas conjunturas socioeconômicas e institucionais, isto é, funcionam como efeitos
das condições de produção. Isso significa que os efeitos de sentido são constitutivos nos
enunciados, identificam-se com saberes das FDs e não se originam dentro da
materialidade da língua, mas na confluência com o real da história, de modo que, para
reconhecê-los, não basta examinar a materialidade lingüística, porque, como diz
39
A data e a página citadas são da edição brasileira, conforme consta nas referências no final deste
trabalho.
44
Courtine (1982, p. 253), é a caracterização das condições interdiscursivas específicas que
determina “processos discursivos de formação, reprodução e transformação dos
enunciados”.
Assim, tratar de ngua e linguagem na dimensão dos estudos discursivos é não
separar as sistematicidades da estrutura do campo da práxis; implica olhar para as
construções lingüísticas não como uma mera combinação de elementos, mas como um
corpo que se forma ao “ir-se (re)produzindo” e, paradoxalmente, se transformando pelas
condições históricas que permeiam o próprio dizer. Esse gesto busca, além das
correlações entre formas e significados da língua, romper com o sentido cristalizado de
que se pode “domesticar” a palavra e enquadrá-la em qualquer estrutura. Lembramos
aqui que estamos falando de um uso governado por regras, mas que constitui um espaço
intersubjetivo das relações humanas e, por conseqüência, das práticas sociais, onde
sujeito e sentido se constituem.
Pensemos, então, o interdiscurso como lugar onde o sujeito se relaciona com a
história e com a ideologia, pelo viés da memória discursiva, e identifica-se com
determinados saberes, opondo-se a outros. Inscrevemos, assim, o nosso corpus discursivo
num contingente de heterogeneidades em que os discursos da classe operária procuram
legitimar um lugar de sua prática política. É, pois, a esse espaço contraditório e,
conseqüentemente, como espaço onde também se exercem as resistências (equívocos e
subversões), que vamos voltar nosso olhar. Portanto, é essa a razão pela qual, na ótica de
Pêcheux e Courtine, levaremos em conta nas análises a instância ideológica, porque as
formas de construção trazem “os lugares em que os sujeitos estão representados nos
processos discursivos em que são colocados em jogo”(PÊCHEUX, 1993, p. 82).
A partir de uma releitura de Althusser feita por Pêcheux, é também por meio da
concepção de formação ideológica, enquanto condição pré-discursiva de identificação do
indivíduo com uma dada conjuntura, que se descrevem as condições de interpelação do
indivíduo em sujeito. Para Althusser (1983, p. 85)
40
, “a ideologia é uma representação da
relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”. A concepção
de que a ideologia existe para sujeitos concretos e “age” de tal forma que recruta sujeitos
entre os indivíduos, interpelando-os para livremente se submeterem às ordens do sujeito,
leva Althusser a afirmar que “toda ideologia interpela os indivíduos concretos enquanto
sujeitos concretos”. (ALTHUSSER, 1983, p. 90). No entanto, se o discurso deve ser
40
Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Aparelhos Ideológicos de Estado:
notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
45
concebido como um dos aspectos da materialidade ideológica, que, segundo Althusser
(1983), “essa existência material existe em um aparelho e nas suas práticas” e “através do
sujeito e para sujeitos” que são “interpelados pela ideologia”, de acordo com Pêcheux
(1993, p. 83), os indivíduos são interpelados em sujeitos, de acordo com as construções
imaginárias historicamente marcadas que representam o seu lugar nas relações
antagônicas entre as classes.
Courtine (1981, p. 34), citando Pêcheux e Fuchs (1975), diz que é sob a
modalidade daquilo que se conhece na perspectiva das teses althusserianas sobre a
instância ideológica - como assujeitamento ou interpelação do sujeito como sujeito
ideológico que a instância ideológica contribui para a reprodução das relações sociais,
“de tal maneira que cada um seja conduzido, sem o perceber e tendo a impressão de
exercer sua livre vontade, a tomar lugar em uma ou outra das duas classes sociais
antagonistas do modo de reprodução e transformação”.
Assim, é pela existência dos aparelhos ideológicos do Estado que a reprodução e
transformação são asseguradas materialmente. Trata-se de realidades complexas que
colocam em jogo práticas associadas a relações de lugares (determinados pelas relações
de classe). Trata-se, igualmente, de relações contraditórias, na medida em que, numa
dada conjuntura, as relações antagonistas de classes determinam o afrontamento, no
interior desses aparelhos, de posições políticas e ideológicas que não são produzidas
pelos indivíduos, mas que se organizam em formações que mantêm entre si relações de
antagonismo, de aliança ou de dominação.
Para Courtine (1981, p. 34), é nas posições de classes, umas em conflito com as
outras, que se pode “entrever” a relação das ideologias com o discurso. Se as ideologias
têm uma “existência material”, o discursivo será considerado como um desses espaços
materiais. O que pode e deve ser dito (dentro de suas variadas articulações) é feito a
partir de uma dada posição numa dada conjuntura, ou seja, numa dada relação de
lugares
41
, no interior de um aparelho ideológico e inscrita numa relação de classes. Logo,
o modo de conceber sintaxe provém de condições específicas, identificáveis a partir de
41
Vale lembrar que, a partir de Bakhtin (1929) e, posteriormente, com Foucault (1995), a materialidade da
língua e a materialidade do discurso são concebidas em ordens distintas. Para este último, as coisas, os
fatos, as palavras, extraordinariamente, exprimem uma história que se desenha à medida que se constroem
sentidos, isto é, não é a relação simétrica e transparente entre os termos da frase que caracteriza o discurso
de “fazer sentido”, “fazer falar”. É, pois, no jogo enunciativo que permite que “se diga” que o enunciado
supõe outros; que tem, em torno de si, “um campo de coexistências, efeitos de série e de sucessão, uma
distribuição de funções e de papéis”. (FOUCAULT, 1995, p. 114).
46
nossas concepções teóricas e, sobretudo, do lugar que ocupamos dentro dessa relação de
classes.
No caso do estudo da sintaxe, enquanto discurso, é possível dizer que há, de fato,
uma apropriação da língua, mas submetida ao “regramento” determinado pela formação
discursiva dominante, de modo que o corpo, ao atravessar a estrutura, atravessa também
outras estruturas e, por conseqüência, revela-se cheio de falhas. Perseguindo a questão da
falta na língua e das diferentes formas que toma a incompletude na gramática e na
lingüística, Milner (1987) é adepto da idéia de que há sempre um dizível. Para ele, “a
língua está ligada à operação do não-tudo e o possível e o impossível se explicam”. Mas,
como diz Milner (p. 27), a escrita que a lingüística estrutural se propõe deve ignorar o
não-todo e tudo que vem da alíngua
42
. É nesse sentido que lingüistas estruturalistas se
esforçam para tratar a língua, como se ninguém a falasse e como se ela fosse um idioma
estrangeiro. É, então, preciso que nos ocupemos com as formas e comecemos a
de(sen)formar as fôrmas que começaram a moldar uma língua homogênea, estável e não
ambígua, a qual insiste em “enformar” os sentidos. É preciso que coloquemos em
discussão o “acesso” (GADET, 1980, p.117), aquilo que determina o “espírito” da
língua, e esse caminho, talvez, venha ser trilhado com a ajuda dos conceitos
decorrentes das reflexões feitas na perspectiva da Análise do Discurso.
Segundo Gadet, o que se espera de uma teoria lingüística é que “explique o maior
número de fatos de língua”; que compreenda o que, no funcionamento da linguagem,
conduz à criação de novos enunciados, seja na fala ordinária, seja em usos particulares,
em conformidade com um sistema constitutivo de cada língua. É nessa dimensão que
Saussure definiu a especialidade do trabalho do lingüista entre diferentes disciplinas que
têm a linguagem como centro de suas discussões. Isso explica o contínuo interesse pelo
CLG, visto que nele se sugere uma concepção de língua em que cada um pode descobrir
em qual ponto ela é produtiva. Resta-nos, então, levar em conta em que ponto a língua
interessa ao analista de discurso e em qual ponta começará a dar os “nós”, que, como
nos ensina a própria Análise do Discurso, todo resultado de análise envolve uma questão
de método e depende do “olhar” que o analista lança sobre ela.
Demarcada a língua em oposição à fala como o objeto de análise da lingüística
saussureana, retornemos, então, a um dos deslocamentos feito por Pêcheux (1969): o
42
Milner (1987) critica o trabalho dos gramáticos, dizendo que estes esquecem que nem sempre é possível
eliminar a contradição. Para o autor, alíngua é a língua dos poetas, é o lugar de impressão das marcas de
um sujeito; “é onde se inscreve um impossível”.
47
estudo do discurso. Num estágio inicial, a noção de discurso conta com a intervenção de
conceitos exteriores ao domínio lingüístico, ou seja, como designa o termo francês au-delà
(para além), visto a partir das condições de produção, o discurso constitui-se no objeto
teórico da Análise do Discurso e é visto como o ponto de articulação dos processos
históricos/ideológicos com os lingüísticos.
Numa proposta da AD em que o político e o simbólico se confrontam, essa nova
forma de conhecimento coloca questões para a lingüística, interpelando-a pela
historicidade que é apagada pelos estudos lingüísticos; do mesmo modo que coloca
questões para as ciências sociais, interroga-se a transparência da linguagem sobre a qual
elas assentam seus todos, ou seja, a lingüística estrutural faz o estudo na ngua como
sistema de signos ou como sistema de regras formais. Por sua vez, a Análise do Discurso,
como o próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática estrutural,
embora todas essas coisas lhe interessem; trata do discurso, que, etimologicamente, tem
em si a idéia de curso, de percurso, de movimento exploratório incessante. O discurso é,
assim, palavra em movimento, prática de linguagem: “é a produção de sentidos,
enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da
sua história”(ORLANDI, 2000, 15). Aqui a linguagem é mediação necessária entre o
homem e a realidade natural e social.
Assim, a primeira coisa a se observar é que na Análise do Discurso, como dizem
Pêcheux e Fuchs (1993, 179), “o discursivo pode ser concebido como um processo
social cuja especificidade reside no tipo de materialidade de sua base, a saber, a
materialidade lingüística”. Dando corpo à idéia de deslocamentos o da teoria e o do
objeto - feitos pela Análise do Discurso, configura-se uma nova comunidade de pesquisa.
O fato de não trabalhar com a língua enquanto um sistema abstrato, mas levando em
conta a história, de considerar os processos e as condições de produção da linguagem,
pela análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que falam e as situações
em que se produz o dizer, fez a AD convocar para o discurso o lugar da o-
sistematicidade, da não-estabilidade e da multiplicidade dos sentidos
43
.
Por essa razão, para aqueles que trabalham com o discurso, poderá existir a
sensação de estarem sempre mergulhando num poço, guiados apenas pela luz de uma
43
Estamos nos referindo aqui à obra de Michel Pêcheux, conforme publicação no Brasil, intitulada
Semântica e discurso, onde o autor questiona as obviedades, designando o discurso como o lugar da não-
estabilidade, da multiplicidade dos sentidos. Para o autor, as palavras, as expressões, as proposições
mudam de sentido segundo as posições mantidas pelos que as empregam. Cabe lembrar aqui que “elas
tomam seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas nas quais
essas posições se inscrevem”. (PÊCHEUX, 1995, p. 160).
48
pequena lanterna e sob o risco de nem sempre encontrarem uma passagem para o
exterior. Isso porque o ir e vir por entre as desconhecidas fronteiras
44
do conhecimento
expõem-nos aos riscos da transformação no processo de interação simbólica, e a
passagem que o discurso propicia nem sempre deixa transparecer as fronteiras exatas que
separam um dizer do outro. Talvez isso, efetivamente, nos ajude a entender por que o
discurso é a possibilidade de encontro das diferenças; é um “entre-lugar”
45
onde se
formam sujeitos e sentidos.
1.2 Pontos de difração
Como acabamos de ver, o questionamento dos aparatos teóricos que davam
sustentação à lingüística até então dá um outro rumo aos estudos da linguagem e,
embora haja uma inter-relação entre essas duas disciplinas lingüística e Análise do
Discurso -, há pontos de oposição entre o estruturalismo, corrente lingüística
predominante na França na década de 60, e a teoria do discurso. O trabalho, na Análise
do Discurso, ocupa-se em colocar questões aos analistas do tipo evocar as exclusões
impostas pela lingüística e, junto delas, articular com o político, o ideológico, o histórico.
Tais teorias, quer seja estruturalista, quer seja funcionalista, apresentam zonas
obscuras, mas que reservam pontos de difrações dos quais a Análise do Discurso vai se
ocupar, ou seja, o seu objeto se inscreve no domínio dos objetos que se relacionam com o
materialismo histórico, por meio do qual os pontos de difração entre o lingüístico e o
histórico são compostos pela ideologia. Na obra Les vérités de la palice, especificamente no
primeiro capítulo, Pêcheux começa a levantar questões sobre as práticas teóricas e
políticas da esquerda da época, sobremodo nos países socialistas, e das evidências que
perpassam as análises semânticas propostas por autores como A. Schaff e Chomsky, por
44
É importante lembrar as três regiões do conhecimento científico sobre as quais se assenta a Análise do
Discurso. Segundo o quadro espistemológico formulado por Pêcheux e Fuchs (1975), como nos
referimos no interior deste trabalho, mais especificamente na nota de número 7, o discurso transcende esses
três domínios de conhecimento e, “atravessando” suas fronteiras, constitui o lugar de observância da
relação entre língua e ideologia e sujeito.
45
Reportamo-nos também à obra O local da cultura, escrita Homi K. Bhabha, na qual o autor analisa o
discurso colonial também a partir de um complexo conjunto de teorias “pós-estruturalistas”, entre elas a
semiótica e a psicanálise. Segundo o autor, o local da cultura é o “entre-lugar” deslizante, marginal e
estranho, que, por resultar do confronto de dois ou mais sistemas culturais que dialogam de modo
agonístico, é capaz de desestabilizar essencialismos e de estabelecer uma mediação entre teoria crítica e
prática política.
49
exemplo. Aqui, a questão do sentido, para cheux, está constitutivamente ligada ao
sujeito do discurso.
Sobre os pontos de difração, vale lembrar que esta questão também havia sido
levantada por Goethe, e Bakhtin baseou-se nela para explicar a condição de refração do
sentido; o mesmo fez Lênin com sua tese empiriocriticismo
46
, termo empregado para
definir decomposição por prisma. Para produzir a decomposição de uma luz composta
de várias cores (freqüências) Newton utilizou um prisma que desvia em diferentes
ângulos de emergência cada cor (comprimentos de onda) ao ser atravessado pelo feixe
composto. Neste texto, a expressão configura o trabalho da interpretação e os efeitos do
imaginário, que, dependendo dos ângulos de incidência do feixe de luz branca (a história
com seu real afetado pelo simbólico), produz os efeitos de sentido. Assim, a Análise do
Discurso pressupõe o legado do materialismo histórico, isto é, o real da história também
não lhe é transparente. O materialismo é questionado pelo simbólico e a ideologia é
materialmente relacionada à história, à dialética e ao inconsciente.
Cabe lembrar que, para Lênin, o termo empiriocriticismo empregado por Avenarius
(1843-1896) indica uma teoria da experiência pura que precede a distinção entre o físico e
o psíquico, não podendo ser explicado pelo materialismo nem pelo idealismo. Do mesmo
modo, segundo Lênin, as reflexões do físico Mach (1838-1916) têm proximidade com as
de Avenarius pelo fato de sua filosofia também se inscrever sob o nome de
empiriocriticismo.
De acordo com Lênin, Mach e Avenarius, baseados na compreensão de que as
sensações são os elementos primários, atestam a dissolução do sujeito e do objeto, da
coisa e da consciência, ou seja, segundo Lênin, na teoria do conhecimento de Mach a
representação do factual é baseada na idéia de que o mundo, as coisas, os corpos são só
um conjunto complexo de sensações. Somente as sensações podem ser concebidas como
existentes, elementos que Avenarius considerava experiência pura. “A coisa em si, que
46
A obra Materialismo e empiriocriticismo (1909), de nin, é uma critica ao ceticismo dos empiriocriticistas
russos. Nessa obra Lênin analisa quatro publicações de autores russos marxistas, propostos a tradição do
marxismo a partir de uma variante do positivismo o empiriocriticismo de Richard Avenarius e Ernst
Mach. A análise de Lênin dirige-se àqueles (Valentinov, Iuchkévitch, Bogdánov, Bazárov, Lunatchárski)
que se assumiam marxistas e buscavam defender a compatibilidade entre o empiriocriticismo e o
materialismo histórico e dialético: “nas presentes notas coloquei a mim próprio a tarefa de descobrir onde é
que se desencaminharam as pessoas que nos oferecem sob a aparência de marxismo, algo de incrivelmente
embrulhado, confuso e reacionário”. (LÊNIN, 1982, p. 14). Lênin (1982, p. 20) chama a atenção para o
fato de que os argumentos machistas não são novos, ou seja, “as ‘novasdescobertas dos machistas são o
resultado de sua ignorância assombrosa da história as principais correntes filosóficas”.
50
existe independente do sujeito, é impensável e incognoscível, pois está fora da
experiência”. (LÊNIN, 1982, p. 30).
Como afirma Lênin, na obra de Mach e de Avenarius, apesar de estes dois autores
fazerem concessões ao materialismo, prevalece o empiriocriticismo dum idealismo
subjetivista. “De fato, se não se reconhecer a realidade objetiva que nos é dada nas
sensações, onde iremos buscar o ‘princípio da economia’ senão ao sujeito?”(p. 130). Se o
mundo é apenas uma produção humana, a existência de outros seres humanos se coloca
como um problema. Se a admissão da realidade objetiva, existente independentemente
de nós, é oca, resta apenas o Eu nu.
Um dos aspectos mais desenvolvidos por Lenin em seu debate com os machistas
russos é o combate à idéia de representação como identificação, mas como reflexo da
realidade sempre infinita e inesgotável. Nesse ponto, “a teoria do reflexo”, formulada por
Lênin, passa a designar os estudos marxista-leninistas soviéticos a partir da imagem (e da
consciência humana) como reflexo da realidade: “O reflexo pode ser a cópia
aproximadamente fiel do refletido, mas é absurdo falar aqui de identidade”. Para Lênin
(1982, p. 86), a representação sensorial não é precisamente a realidade que existe fora de
nós, mas a sua imagem, ou seja, segundo o autor, nas palavras e nas representações, o ser
humano traduz as coisas da natureza, e a arbitraridade na escolha das palavras não
significa isenção de conteúdo objetivo, tendo em vista que o ser humano traduz para a
sua língua, de forma aproximada, a objetividade. É nesse sentido que a relatividade do
conhecimento pode ser explicada:
A “essência” das coisas ou a “substância” são também relativas; elas exprimem apenas o
aprofundamento do conhecimento humano dos objetos, e se ontem este aprofundamento não
ia além do átomo e hoje não vai além do elétron ou do éter, o materialismo dialético insiste
no caráter temporário, relativo, aproximativo, de todos estes marcos do conhecimento da
natureza pela ciência humana em progresso. O elétron é tão inesgotável como o átomo, a
natureza é infinita, mas ela existe infinitamente, e este reconhecimento, o único categórico, o
único incondicional, da sua existência fora da consciência e da sensação do homem é que
distingue o materialismo dialético do agnosticismo relativista e do idealismo. (LÊNIN, 1982,
p. 199).
Os limites de verdade, como diz Lênin, podem ser alargados ou restringidos com
o desenvolvimento do conhecimento, pois em cada verdade relativa encontra-se uma
verdade absoluta. “O relativismo, como base da teoria do conhecimento, é não somente
o reconhecimento da relatividade dos nossos conhecimentos, mas é também a negação
de qualquer medida ou modelo objetivo, existente independente da humanidade, do qual
se aproxima o nosso conhecimento relativo”. (LÉNIN, 1982, p. 103).
51
Tchougounnikov (2005, p. 20-23) diz que Lênin, na qualidade de revolucionário
prático, valoriza o “signo motivado”, um equivalente da imagem refletida no espelho ou
na fotografia. Segundo este autor, o signo motivado não tem acesso direto à realidade
sem intermediário semiótico. “A consciência reflexa que ‘fotografa a matéria’ não se
explica de forma mecanicista”, pois uma interação entre os objetos, as coisas e os
fenômenos. Nas palavras de Tchougounnikov,
O reflexo comunista reflete a realidade, enquanto tal, como sendo um conceito
conscientemente ideológico, uma conseqüência de tomada de consciência ideológica com
relação aos fenômenos do mundo. Ele não é objetivo e real senão em função de um
engajamento ideológico prévio. O paradoxo do reflexo comunista está fundado sobre esta
ambigüidade entre o engajamento consciente e a faculdade de refletir objetivamente o
mundo. (2005, p. 22)
No entendimento de Tchougounnikov, a capacidade humana de refletir a
realidade, em uma sociedade não-antagonista ou sem classes, seria a única maneira
possível de concretizá-la. Logo, o reflexo aparece como produto do trabalho consciente
prévio, e “a contração desta ótica objetiva” torna-se uma matriz modeladora de uma
realidade exterior, estabelecendo uma transparência entre a consciência e o fragmento da
realidade projetado na consciência. “Visto desta maneira, o reflexo de Lênin aparece
como um equivalente conceitual do conceito morfológico ‘forma interna’, esta unidade
primitiva que mostra ao interlocutor, situado no interior do sistema lingüístico, como ele
representa a sua própria consciência”. (TCHOUGOUNNIKOV, 2003, p. 23).
Segundo este autor, o conceito de signo ideológico de Bakhtin, posto em relação
dialógica com a noção de reflexo de Lênin, está engajado no mundo das percepções.
Através da metáfora da luz monocromática dissociada em espectro, Bakhtin descreve a
materialidade “opacidade” ou “palpável” do signo ideológico, opondo-se à transparência
do reflexo, postulada por Lênin. Como diz Tchougounnikov, “estes dois conceitos
restauram a oposição entre o raio luminoso refratado (policromático) e o raio branco
monocromático (reflexo)”.
Pontos de difração, na perspectiva de Foucault (1995, p. 82-84), é a divisão do
sujeito nos enunciados; os discursos organizam-se em conceitos, objetos, enunciações,
segundo determinadas “estratégias”, bastante complexas. Sobre os pontos de difração, o
que devemos, então, reter na proposta de Foucault? Em primeiro lugar, a concepção de
discurso como uma prática que provém da formação dos saberes e a necessidade de sua
articulação com outras práticas não-discursivas, ou seja, devemos levar em conta que as
estratégicas (teorias) e as direções da pesquisa não seguem sempre as mesmas
52
orientações. Depreende-se que, para a formação discursiva na ótica de Foucault,
diferentes possibilidades estratégicas. Há, nesse sentido, segundo o autor, as seguintes
direções para a pesquisa: a) determinar os pontos de difração possíveis do discurso:
pontos de incompatibilidade, de equivalência, de função de uma sistematização; b)
estudar a economia da constelação discursiva, isto é, as regularidades discursivas, a
relação do discurso com aqueles que lhe são contemporâneos ou vizinhos, a fim de
estabelecer analogias, oposições, complementaridades, singularidades; c) estabelecer a
função que deve exercer o discurso, em relação a um campo de práticas não discursivas,
quanto a relações sociais (nas práticas, nas decisões políticas, nas práticas cotidianas), a
regimes e modos ou processos de apropriação do discurso em diferentes épocas e ordens
institucionais.
A partir da formulação de Foucault, entendemos que um ponto de difração nesta
tese é a questão da contradição, tratada, muitas vezes, por alguns teóricos como
ambigüidade, como uma questão de sintaxe. A ambigüidade, segundo Gadet e Pêcheux
(1984, p.145-151), constitui-se num ponto privilegiado da contradição chomskiana:
nunca terá uma melhor intuição da especificidade ineludível da língua, porém,
tampouco, estará tão perto da lógica. Como argumento da lógica, aborda o que poderia
lhe ter feito escapar dela, daí a paródia. Para Gadet e Pêcheux (1984, p. 152-156), a
ambigüidade apresenta um interesse duplo: primeiro, é definida como lugar de
recuperação a posteriori de alguns caracteres da tradição européia, de Aristóteles a Port-
Royal; segundo, como marca de oposição com respeito aos lógicos, pela designação de
pontos na língua que resistem ao tratamento lógico, é um elemento essencial da diferença
entre “língua natural” e “língua artificial”.
Eliminar a ambigüidade, entretanto, supõe aceitar a evidência segundo a qual ou
bem é um ou bem é o outro, mas jamais ambos, ou algo completamente distinto: a língua
não pode tolerar o vago, nem dizer duas coisas ao mesmo tempo. Ao contrário dos
princípios fundadores da Análise do Discurso, a noção de ambigüidade explorada nas
teorias lingüísticas mostra o esforço do lingüista para eliminar as multiplicidades de
sentido; a ngua é vista como sistema e conhece sua ordem própria, ou seja, apenas o
estudo da língua; por isso, é homogênea, de natureza estável e vista como um
instrumento de comunicação. A língua possui organização fechada, autônoma,
transparente, isenta de contribuições, apoiada nos princípios da consistência e da
completude.
53
A Análise do Discurso não trabalha com a noção de ambigüidade, mas com a de
equívoco, a qual permite elaborar um conceito de língua que, na sua própria
materialidade, admite contradições. Para a AD, não existe simetria entre o real da língua
e o real da história, mas existe uma exterioridade constitutiva envolvendo a relação
língua, discurso e sentido. A articulação desses três conceitos ganha corpo na medida em
que o lingüístico e o discursivo se estruturam no político (ideológico) e no social
(processos de formação social). Assim, não é mais possível trabalhar com a dicotomia
língua/fala; a língua, para a AD, deixa de ser apenas um instrumento de comunicação. A
ambigüidade, nessa perspectiva, constitui-se num dos pontos de difração, visto que tal
deslocamento nos leva a conceber a língua como constitutiva e historicamente
determinada entre o sistema relativamente autônomo e o processo historicamente
determinado.
Pêcheux (1995, p.162) diz que na evidência do “eu” há processo de
interpelação/identificação que produz o sujeito no lugar deixado vazio, ou seja, a
identificação do sujeito se pelas relações social-jurídico-ideológicas impostas.
Portanto, Pêcheux nos aponta um caminho: aceitar a contradição. Não se trata de
“resignar-se” à tirania de uma teoria, mas de pensar que, desde Marx, a contradição
passa a ser uma categoria filosófica constitutiva da linguagem, essencial ao trabalho de
interpretação por abrigar a diferença na estrutura de uma língua-espaço para saberes
diferenciados.
Conforme Gadet e Pêcheux (2004, p. 95), dentro do “espaço-língua”, a busca do
impossível da unidade imaginária, a busca da dominação pela língua. Conforme Rasia
(2004, p. 208), o caso da União Soviética assemelha-se à política adotada no Brasil
durante o Estado Novo, visto que ambas buscam a constituição de um determinado
imaginário de nação pela dominação de ngua. Segundo a autora, apoiada em Gadet e
Pêcheux, a tensão instalada no trabalho lingüístico de 17 de outubro na União Soviética
traduzia a sua realidade político-lingüística de ter de, ao mesmo tempo, alfabetizar e
instruir as massas e respeitar as particularidades nacionais e as diferentes línguas. Nesse
contexto a autora afirma:
Stálin, ao suceder Lênin, ao impor a revolução pela perspectiva do poder, institui uma ordem
de homogeneidade que apaga as diferenças, de modo que o “Grande Russo”, enquanto
língua ideal, também se vê higienizado de possíveis variações e inovações. A língua de
Estado insurge-se então como língua de sentido único, coerente com a idéia de
homogeneidade, produzindo, com isso uma deformação dos princípios marxistas. (RASIA,
2004, p. 209)
54
Nesse sentido, vale lembrar que o materialismo histórico, uma das categorias de
análise explorada na Análise do Discurso, parte do pressuposto de que todos os grandes
movimentos políticos, sociais e intelectuais da história têm sido explicados pela maneira
como os homens organizam e distribuem a produção de bens. Em outras palavras, o
modo de produção da vida material condiciona o conjunto dos processos da vida social,
política e cultural, enfim, o sistema de valores, a ideologia.
Pêcheux toma isso em todas as dimensões com base na infra e superestrutura.
Enquanto, para Marx, a infra-estrutura é a base material econômica de um Estado ou de
uma sociedade e, por isso, determinante da superestrutura, influenciando todas as esferas
das práticas sociais, Pêcheux e Fuchs (1975, p. 165) criticam o fato de se considerar
somente a base econômica como condição de sustentação para a superestrutura
ideológica. Segundo os autores, na perspectiva marxista de ideologia, o materialismo
histórico propõe-se explicar as formações de idéias a partir da práxis, excluindo o sujeito
da história, ou seja, a proposta de Pêcheux (1975) vai avançar em outra direção. Ao
considerar o sujeito interpelado socialmente e afetado pelo inconsciente, o autor entende
a ideologia numa relação com o social, com o simbólico e com o imaginário, e isso
marca um distanciamento com o modo marxista de pensar língua, sujeito e sentido de
outros autores.
A contradição, numa perspectiva marxista, é situada entre capital e trabalho e se
de forma concreta entre a "burguesia", que detém os meios de produção, e o
"proletariado", que padece o processo de alienação na medida em que não é dono
daquilo que produz. A superação dessa contradição está no fortalecimento das classes
trabalhadoras, as quais vivem num processo de alienação no sistema capitalista e que
deverão tomar o poder no acirramento da luta de classes, o qual tem por instrumento
privilegiado a luta em sindicatos combativos confederados numa central sindical de visão
política clara e a militância partidária num partido socialista.
Assim, a contradição gera um inevitável excedente de produção ao mesmo tempo
em que consome a "mais-valia" dos trabalhadores, a ponto de não ter mais de onde
extrair essa sua matéria-prima. A conexão universal entre o concreto e as transformações,
a unidade e a luta dos opostos e a negação geram a divergência entre seus opostos, que os
torna, reciprocamente, condicionados e excluídos. A ideologia e o pensamento filosófico
constituem um dos pólos dessa contradição; o outro pólo encontra-se na nação em sua
totalidade, porque é a partir dela que se estruturará esta ideologia, ou seja, o discurso não
55
está isento de contradição, a qual é constitutiva do político. Nos discursos dos
anarcossindicalistas, por exemplo, veremos que os trabalhadores, ao mesmo tempo em
que lutam pelo trabalho, reconhecem a possibilidade de desenvolverem o individualismo,
mas é no seio da prática política, por meio da luta sindical, que se tem o espaço para a
“mais-valia” operar.
Dessa forma, não podemos sustentar, de um ponto de vista marxista-leninista,
uma definição que se refira à desigualdade apenas nas diferenças das rendas, mas,
conforme Pêcheux (1975), nas relações que podem ser estabelecidas entre a base material
de produção e os conjuntos de representações simbólicas que determinam o seu lugar nas
relações antagônicas entre as classes.
A idéia de interface entre a sintaxe e o discurso, a que se refere Leandro Ferreira
(1999, p. 62), aponta para uma ruptura no sistema, ou seja, os fatos lingüísticos situam-se
no espaço de tensão entre o que escapa a uma sistematização e o que se encontra
estabelecido pelas regras, caracterizando uma zona tida como nebulosa, onde o não-
sentido faz sentido, o proibido e o impossível encontram lugar. São esses limites fugidios
e essas bordas da língua deixadas à margem que interessam à AD, porque são difíceis de
explicar, de enquadrar, e a visibilidade ocorre, tão-só, na observação de seu
funcionamento. Ao admitir as contradições, a língua perde seu caráter homogêneo e
estável, passando a ser entendida como elemento de base material, heterogêneo por
excelência, não estável, não previsível e não fechado, o qual, combinado à materialidade
do processo sócio-histórico, constitui o lugar da produção dos efeitos de sentido. Como
podemos ver, a autonomia absoluta da língua passa a ser relativa.
No discurso, o social e o histórico são indissolúveis. Nesse caso, a exterioridade
passa a exercer papel preponderante uma vez que fazem parte da atividade de linguagem
deslizamentos, lapsos, mal-entendidos, equívocos. Rompe-se, assim, o círculo da lógica
obsessiva do isto ou aquilo (univocidade do sentido)
Sobre a resistência, Leandro Ferreira diz que é inerente à língua e que a sua
constituição é compatível com a natureza do instável, do heterogêneo e do contraditório
de um sistema não fechado. Na verdade, é um modo de fazer emergir o aspecto
ideológico nas discussões sobre a linguagem. Como o sentido não nasce com a palavra,
mas da junção entre língua e história, é nessa condição que nasce a possibilidade de
análise do equívoco. Nessa concepção de língua, conforme diz a autora, os equívocos
constituem pontos de deriva dos enunciados e sua historicidade é apreendida através de
gestos de interpretação.
56
No terreno da lingüística, segundo Leandro Ferreira (1999, p.42-44), os equívocos
precisam ser resolvidos, explicados, desfeitos, até porque não se admite que o enunciado
tenha na sua construção léxico-sintática a possibilidade deliberada de confundir, de
camuflar, de não comunicar com eficácia e transparência. Para a AD, os fatos que se
situam na zona do equívoco carregam no seu funcionamento o traço não resolvível, visto
que representam a área de tensão que corresponde ao encontro entre materialidade
lingüística e materialidade histórica, as quais, juntas e de forma simultânea, constituem a
materialidade discursiva. Lembramos aqui que a incompletude é a própria condição de
existência da linguagem inscrita numa dada ordem sócio-histórica.
“O equívoco é uma característica constitutiva que é inerente à língua e precisa ser
considerada” entre os fatos lingüísticos difíceis de explicar. O equívoco estaria
demarcando aqueles pontos de fuga que representam modos de resistência próprios da
ordem da língua; assim, manifesta-se em cada língua como um fato estrutural
incontornável. Fundamentada em Pêcheux, Leandro Ferreira (p.47) afirma que o
equívoco passa, então, de fato lingüístico marginal a “fato estrutural implicado pela
ordem do simbólico”. Em síntese, para a autora, equívoco e ambigüidade correspondem a
duas vertentes da linguagem: a) ambigüidade, tendência “terapêutica” que busca fixar o
sentido legítimo das palavras; b) equívoco, tendência que admite “surpreender a
linguagem” e (des)construir os sentidos.
Como podemos ver, a sintaxe vai expor o olhar do analista à opacidade, à
resistência da língua, aos desvios. Daí a sintaxe como ordem, porque se torna reveladora
do sujeito. Orlandi (1996, p.49) mostra que ao analista do discurso interessa “a ordem da
língua enquanto sistema significante material (incidência da história)”. Não é a
organização sintática, por exemplo, que faz significar no discurso, mas é o
funcionamento enquanto materialidade discursiva. A ordem predeterminada dada pelas
normas gramaticais espara a organização da língua, ao passo que a ordem da língua
está para o funcionamento da linguagem, inscrita numa dada ordem sócio-histórica.
Leandro Ferreira (1999, p.63), citando Orlandi (1996, p.49), lembra-nos que a
passagem do plano da organização para o plano da ordem faz intervir em sua estrutura
também distinções conceituais outras, como forma empírica e forma material, onde “o
sentido não é conteúdo, a história não é contexto e o sujeito não é origem de si”. Nesse
sentido, a materialidade lingüística, ao se constituir sob duas ordens, a da língua e a da
história, depara-se com uma dupla limitação. Os sentidos da sintaxe, desse modo, vão ter
vinculação com a “conduta de linguagem” (p.64). Como nos diz Leandro Ferreira,
57
“pode-se tanto brincar com as regras (dentro do seu ordenamento estabelecido), quanto
se pode brincar sobre elas (buscando subvertê-las)”.
Concluindo, língua (objeto empírico com o impossível contido nela) e discurso
(objeto teórico com a história e a idéia de contradição que lhe são inerentes) são dois
planos que se fundem, e a sintaxe faz a mediação; ela “dá acesso ao acontecimento
discursivo, a partir da organização da língua”. (LEANDRO FERREIRA, 1999, p.65).
Diferentemente da lingüística de Saussure, que trabalha na oposição, a sintaxe discursiva
trabalha na tensão da língua, o que justifica o emprego do termo “observatório”, antes
referido, por se poder observar o equívoco que afeta todo o gesto de tomada da palavra.
1.2.1 Um “fio” de avanço
Buscando refletir sobre a constituição dos saberes
47
, sobre o discurso e sobre a
língua, quando se pensa em magnitude no campo da produção de conhecimento, dois
parâmetros devem ser levados em conta: as características fundadoras do saber
formulado e a amplitude do reconhecimento desse saber na comunidade em que é posto
em circulação. O percurso percorrido por nós neste estudo retomou algumas formulações
de Saussure e de Chomsky. Não restam dúvidas de que o conhecimento que formularam
criou novos paradigmas de concepção de língua, configurando-se, portanto, numa
prática que rejeita todo papel destinado ao exterior, em que a completude do sentido se
coloca como uma necessidade.
Dentre esses dois critérios especialmente no que se refere aos princípios
fundadores – é preciso pensar ao mesmo tempo no papel desempenhado por Pêcheux nas
reflexões sobre o discurso e, sobretudo, nos conceitos da AD. Se, de um lado, a sua
produção tem todas as características de um discurso fundador, de outro, sabemos que,
de início, ele não obteve uma boa amplitude de circulação, nem de aceitação geral, visto
que a sua produção teórica provocou uma relação tensa entre os analistas de discurso e
os lingüistas. Quando dizemos “circulação”, não significa, necessariamente, adesão, mas
a freqüência de citação e tematização na elaboração de programas institucionais. Assim,
47
Conforme Foucault (1995, p. 222), pode-se chamar “saberes” um conjunto de elementos formados de
maneira regular por uma prática discursiva e que são indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar
de não se destinarem, necessariamente, a lhe dar lugar.
58
a inclusão de Pêcheux ao lado de Saussure e Chomsky como grandes lingüistas do século
mais se deve aos deslocamentos teóricos, como, por exemplo, as noções de formação
discursiva, efeito-sujeito, efeitos de sentido, que propriamente à sua aceitação política.
Tal ocorre, sobretudo, porque Pêcheux se ocupou em trabalhar uma semântica aliada às
ciências humanas como possibilidade e negação e desordenança-reconfiguração dos
paradigmas que até então subordinavam a ciência da linguagem, permitindo que as
categorias do materialismo histórico e do materialismo dialético “tomassem posição”
junto às suas problemáticas.
A sintaxe, nas concepções lingüísticas, é entendida como modo de organização,
de estruturação da língua, que, por sua vez, é estudada de maneira interna e sem
princípio de explicação exterior a ela; a língua é uma estrutura/forma. A sintaxe, na
perspectiva discursiva, aproxima-se do que é próprio do real da língua e da história,
como o lugar de acesso à sua ordem, visto que não existe real da língua fora da relação
com a história.
Falar de constitutivo significa considerar a relação da língua com sua
exterioridade e vice-versa, mobilizando o conceito de discurso, que, por conseqüência,
prevê o imbricamento de língua-história-ideologia. É preciso lembrar que partes que
não se mostram por inteiro na língua, e isso é o mesmo que dizer que a língua não se
mostra como um todo homogêneo. Cada parte observada representa um ângulo e várias
possibilidades de interpretação. Daí se entender a noção de discurso elaborada por
Pêcheux como efeitos de relações estabelecidas entre materialidades, ou seja, não se trata
de excluir a estrutura, mas de observar nessa estrutura o funcionamento da história, da
língua e do sujeito e, por meio deles, a constituição de um acontecimento discursivo.
Gadet, em Tricher la langue (1980), através da “metáfora do corpo” diz que a
sintaxe representa uma barreira, ou seja, a sintaxe é uma “matéria, tecido ou papel, ou
objeto bem duro, quebrável”. E esse aspecto físico, em contato com a exterioridade,
torna-se suscetível de “ser rompido” no significante. Por mais que queira se proteger, a
língua não é íntegra e sempre vai ser um corpo atravessado por falhas, no qual tudo pode
ser destruído: os constructos ideológicos, as solidariedades intelectuais, a separação dos
idiomas e, mesmo, a armadura” de (sujeito/ predicado). Essa noção se assemelha à
série de corpos que i “expulsar” o que de residual, como acontece com o corpo,
onde tudo que lhe causa estranheza tem de ser eliminado.
Contudo, além de causarem estranheza, esses elementos atestam os movimentos
incessantes do organismo. O ato de expelir vai atestar que o corpo vivo está em constante
59
movimento de depuração e aproveitamento, ou seja, que ele não apenas assimila e
produz de acordo com suas necessidades, mas também reproduz e transforma. Assim, o
processo e o modo como evolui exigem trabalho.
48
Numa visão marxista, o progresso
histórico seria encarnado pelo proletariado não porque é a camada mais pobre da
sociedade, mas porque seria o verdadeiro produtor dos valores principais (sem dispor
deles) e porque suas conquistas representariam, ao mesmo tempo, as conquistas das
formas superiores de produção. Por isso, não sociedade em que o operário possa
recuperar a totalidade do valor que ele cria na produção, porque, no sentido marxista,
“não é a comunidade dos trabalhadores que decide sobre o que será feito do produto de
seu trabalho: o monopólio dessa decisão está nas os daqueles que dispõem dos meios
de produção” (KOLAKWSKI, 1985, p. 125).
Arendt (1997) entende todo o tipo de atividade (o labor) voltada às necessidades
naturais do homem, aquelas realizadas no convívio familiar, destinadas a saciar a fome,
a sede, enfim, toda a sorte de exigências da condição animal do ser humano é necessária.
Uma das principais características do labor é a produção num ciclo ininterrupto, já que se
encontra na incorporação do fruto da atividade ao próprio corpo do homem. Os
instrumentos de trabalho utilizados constituem-se de extensões do próprio corpo, como o
arado, a enxada etc., e da mesma forma apenas circundam o valor central da relação, que
é o próprio homem. O labor é privativo da liberdade de agir, por ser uma atividade
inerente à natureza de próprio animal. O animal, em razão das imposições da natureza,
não é totalmente livre. O trabalho é definido diferentemente do labor e da ação. De acordo
com a autora, o trabalho humano tem traço distintivo da relação meio-fim. Enquanto o
labor visa às necessidades fisiológicas do homem e a ação, aos anseios políticos, o
trabalho não visa objetivamente nada no próprio ser humano, a o ser produzir um
meio para se atingir outros fins, ou mesmo novos meios. A determinação objetiva do
trabalho é produzir o bem de uso ou consumo. Além disso, o produtor distingue-se do
resultado de seu trabalho. Se na ação e no labor seus produtos se incorporam à sociedade
e ao homem, respectivamente, no trabalho o produto destaca-se do produtor e, como
principal característica, passa a incorporar o mundo, dividindo-o com o próprio homem.
O trabalho torna-se violento na medida em que traz ao mundo do homem algo que a ele
não pertencia, transformando e violentando suas relações com a natureza.
48
Arendt (1997, p. 90 104), no capítulo intitulado “Labor de nosso corpo e o trabalho de nossas mãos”,
distingue labor de trabalho. A palavra labor, como substantivo, jamais designa o produto final, o resultado
da ação laborar.
60
Em relação à sintaxe da língua, o fato de alguns deterem os meios de produção
produz um imaginário de língua, a partir do qual se produz o apagamento das diferentes
práticas culturais e políticas, assentando-se sobre o “espaco-língua” uma política de
dominação.
Na perspectiva discursiva, a questão da produção assume função polêmica que
introduz a noção de prática e está ligada à idéia de processo, de movimentação dos
sentidos. Assinalamos que o discurso, tal como é concebido em Pêcheux (1969), é efeito
de sentido entre interlocutores e, conforme Pêcheux (1975), o lugar de manifestação da
ideologia é o modo de produção social, por isso mesmo, o pode ser concebido como
produto, mas como processo.
Para, então, pensar todas essas questões e acompanhar o trajeto dos sentidos que
foram se formando e que se (des)encontram no corpus que iremos analisar e no que toca à
língua em relação aos meios de produção, apoiamo-nos em Gadet e Pêcheux (2004), que,
ao tratarem das línguas nacionais, lembram que o materialismo histórico baseia-se na
contradição existente no real da história.
Assim, como dizem Gadet e Pêcheux (2004, p. 38), “a questão da língua é, pois,
uma questão de Estado, com uma política de invasão, de absorção e de anulação das
diferenças”, ou seja, como lembram os autores, na divisão do trabalho configura-se a
dualidade: pelo lado do direito, a ditadura logicista que institui a circulação forçada das
significações garantidas por uma autoridade central; pelo lado da vida, as múltiplas
práticas fragmentadas representadas na prática social dos usos lingüísticos.
A sintaxe, nesse plano do discurso, permite que se subverta a ordem estabelecida
da linguagem; a gramática é vista como uma forma de adestramento o rigorosa quanto
o corte de Saussure, que se encarregou de fazer as exclusões, colocando-as, assim, para
fora: o lapso, o trocadilho, o neologismo, a metáfora, o jogo da poesia. Lembramos que o
que é tido como equívoco é o que “fura” a regra. De um lado, o funcionamento da
língua; de outro, a regra. Sendo a sintaxe uma fôrma, torna-se um fator de rigidez, de
coerção, uma barreira que limita esse lado da subversão, visto que torna a ordem das
palavras “imperiosa”. A irrupção do equívoco afeta o real da história, o que se manifesta
pelo fato de que afeta também a língua.
Gadet (1980, p. 119), citando o trabalho de Milner (em particular, Milner 70 e
Milner 79), afirma que, à medida que entramos no jogo da sintaxe, é possível identificar
os lugares metafóricos presentes na linguagem do cotidiano, quer para observar um fato
comum, quer para indicar uma transformação. Conforme Gadet (1980, p.120-121), a
61
sintaxe permite, ainda, observar algumas figuras imaginárias de língua. A língua como
corpo pode também representar o lugar do interdito, da proibição e da matéria; pode
indicar a não-aceitação do papel de submissão, de preservação do “corpo intocado”.
O tratamento da língua como um corpo também pode se dar dentro de uma
relação dogmática: um corpo uno, não penetrável (mesmo por violar), não retornável,
não atravessado; um corpo de doutrina, um corpo de regras. O não-penetrável pode ser
descrito como aceitação do castigo, porque concorre com ele, porque acredita que merece
a punição; o corpo de doutrina é íntegro, não se dobra, não se fragmenta. Pode-se, da
mesma forma, destinar à língua um tratamento como corpo quando recupera o lugar da
legitimidade; a língua é o apelo à lei, na figura da proibição da violação, bem como do
que ela produz como prazer.
Embora a autonomia da língua seja uma ilusão, cabe ressaltar a observação de
Gadet de que é possível desmantelar os laços da linguagem, buscar obter um certo efeito
de ordem social, porque a língua como uma materialidade tem suas coerções; toda
intervenção de ordem social supõe uma ação sobre a língua e sobre a história. A própria
língua tem esse espaço de desmantelamento da sintaxe. É o furo, a falha, que nos permite
chegar à “armadura sagrada da sintaxe”. Trata-se de um espaço imaginário criado para
fazer uma intervenção social, talvez o maior, de subversão
49
.
É através dessas infiltrações na porosidade da sintaxe que poderemos entrar em
consenso com a norma ou estabelecer uma nova ordem, rompendo com os dogmas e
produzindo novos sentidos. A sintaxe representa, pois, “a possibilidade de intervir na
língua, a sistematização de um deslocamento dentro das regras que não pode mais ser
concebido como um desvio”, ou seja, “toca na regra, desacerta na vida”.
A violação da regra são os desacertos na vida, ou seja, o preço que se paga pela
violação. A língua existe e, junto dela, o “jogo”: de um lado, a regra, a posição da
gramática, a forma objetiva, o que está dentro, e a exclusão de todo o jogo interpretativo
do sujeito; de outro, o desmantelamento, a violação, a subversão, o que toca ao social, ao
sujeito, ao múltiplo e aos efeitos de sentido, a contradição.
Segundo Gadet (1986), a língua é um estranho objeto de desejo. “Sem sujeito e
discurso não haveria desvio nem violação; não haveria também linguagem literária ou
poética, mas simplesmente um funcionamento da língua dentro da escrita” (p. 123). A
língua como objeto de que nos servimos implica, em primeiro lugar, reconhecer um
49
A Análise do Discurso é sensível e está aberta às possíveis subversões, a mal-entendidos, equívocos.
62
corpo não o fechado, de autonomia relativa; implica reconhecer que o sujeito ocupa
um lugar na estrutura social, que, por sua vez, produz um imaginário de língua, produz
um imaginário de fala e de escrita também. A relação entre uma língua fascista, que nos
impõe seus esquemas e nos obriga a escolher, com uma língua, cujas regras nos mostram
que não se joga entre dois níveis lingüísticos, mas entre o sistema da língua e as questões
políticas que atravessam essa língua. Na busca de uma ngua onde a regra não ocupa
papel central ou estável sempre um espaço de jogo. Até onde o efeito de sentido pode
ser efeito de língua?
Efeito de língua, no nosso entendimento, difere dos fatos lingüísticos. Enquanto
os fatos lingüísticos sozinhos devem dar conta inclusive dos sentidos todos, como se um
enunciado pudesse ser completamente explorado sem referência às determinações
discursivas, o efeito de língua está condicionado à referência a essas determinações
histórico-discursivas, é confrontado com o real da história e implica posições-sujeito.
A Análise do Discurso percebe o discurso como um objeto sócio-histórico em que
o lingüístico intervém como uma materialidade. Também concebe que a definição de
língua no plano gramatical é apenas estrutura; no plano discursivo, essa estrutura não
perde seu valor, mas tem papel secundário.
Orlandi (1996, p.49) mostra que ao analista do discurso interessa a “ordem da
língua enquanto sistema significante material (incidência da história)”. Não é apenas a
organização sintática que assegura os sentidos de um discurso, mas o seu funcionamento.
Nessa concepção, voltemos, pois, à correspondência entre uma posição e um estado de
língua; sobretudo, voltemos a Saussure, que nos permite olhar o respectivo valor das
peças do jogo de xadrez atrelado ao da sua posição no tabuleiro. Como se trata de um
jogo, com regras, mesmo que os jogadores sigam regras mais ou menos rígidas, o
deslocamento da peça implica uma dada posição-sujeito.
Pensando, agora, a sintaxe como uma estrutura na qual, além da existência de
elementos sintáticos, existem também os jogadores distribuindo as peças, quais as
conseqüências para aquele que desrespeita essas regras? Saussure tinha razão quando
dizia que o desenvolvimento das línguas estava em constante modificação e que, mesmo
assim, os estados sucessivos de uma língua poderiam e deveriam ser descritos. Mas
convém que não nos esqueçamos de que, na sintaxe, não pode haver peças isoladas; elas
devem estar articuladas entre si e com aquilo que está “lá fora”, pois os termos que vão
compor a materialidade dessa estrutura adquirem o seu valor dentro dela, na sua
63
própria organização há articulação entre eles e com o que está “lá fora”
50
.
Nessa linha de raciocínio, tendo em mente ainda a metáfora do “jogo de xadrez”
de Saussure, esforçamo-nos para entender aonde a orientação da gramática de Chomsky
nos permitiu chegar. Ora, posto que Chomsky parece ignorar os dois elementos
importantes no estudo da língua, que são a historicidade e a figura do outro, por ser a
língua decorrente do esforço do indivíduo e por depender de um órgão mental, como o
coração ou outro órgão vital, temos de nos perguntar até que ponto vale a pena estudar a
sintaxe nesses moldes. Primeiro, porque a ignorância da existência de uma materialidade
histórica implica a exclusão do ideológico-social. Para ele, não importa também a
posição de um jogador no estudo da língua, ignorando-se que muitas vezes num “jogo”
há mudanças imprevisíveis de estratégias para as quais não estamos preparados.
Na Análise do Discurso, a língua é o espaço do jogo. A tese que defendemos,
sustentada por Pêcheux, é de que as palavras mudam de sentido de acordo com as
posições sustentadas por aqueles que as empregam, ou seja, adquirem sentido em
referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Dessas
formações fazem parte uma ou mais formações discursivas, que, a partir de uma posição
dada numa certa conjuntura, determina(m) o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX,
1995, p. 160).
O discurso, então, deve ser concebido como um dos aspectos da materialidade
ideológica. Como uma FD não é um espaço estrutural fechado e é constitutivamente
“invadida” por elementos que vêm de outro lugar, o que temos é o chamado “efeito de
evidência”(isto é, de outras FD) que se repetem nela. Assim, é pela ideologia que todo
mundo sabe que o enunciado é aquilo que se enuncia, ou seja, toda FD dissimula pela
transparência do sentido que nela se constitui, mantendo entre si relações de
determinação assimétrica de modo a constituir um trabalho de
configuração/desdobramento/reprodução contínua. É, pois, nesse trabalho que
encontraremos um espaço para tratar da relação da prática política nas/pelas práticas
discursivas que as formações ideológicas estão sujeitas à heterogeneidade dos campos
de saberes e os sujeitos desdobram-se em diferentes modos de subjetivação, de acordo
com os lugares sociais que ocupam nas relações de produção.
A metáfora do corpo, elaborada por Gadet (1980), permite-nos perceber a sintaxe
como uma materialidade de corpo quebradiço, em cuja armadura é possível perceber
50
A língua, na sua materialidade, impõe uma ordem que coloca na fronteira o que não se submete à
ordem.
64
certa porosidade, havendo espaços para que se subverta a ordem estabelecida da
linguagem e, também, para o que “fura” a regra. Entrar nesse jogo significa também,
segundo Milner, perceber a existência de um sujeito desejante. “A língua é um estranho
objeto de desejo” (GADET, 1980, p. 123). O servir-se de uma língua implica, em
primeiro lugar, reconhecer um corpo não tão fechado, de autonomia relativa; significa
conceber a regra como comportamento dentro de seu próprio princípio, um espaço de
jogo no qual se permitem certas liberdades, mas, também, certas regras.
O “efeito de evidência” é visto num espaço fechado, ao passo que a
heterogeneidade do sentido só pode ser concebida na confluência do real da história com
o real da língua, já que, segundo Pêcheux (1981, p. 7), é pelas “‘bordas discursivas da
língua’ que se poderão recuperar as contradições que produzem a história”.
A “ordem” de que trata Orlandi (1996) pressupõe esse jogo em sua totalidade
marcado pela historicidade, que, em contato com a materialidade lingüística, nos permite
ver o seu funcionamento. Assim, a “língua de madeira” (língua dos regimes totalitários),
ou seja, as superlínguas que caracterizam a hegemonia da imutabilidade dos regimes
totalitários, mesmo sendo inflexíveis, passam por determinações históricas.
O modo de interpretar e produzir sentidos depende desses afetamentos; depende,
sobretudo, dos modos de interpelação do próprio sujeito. O estudo da língua implica
muito mais que de uma relação do sujeito com o mundo, porque não para estudar a
língua sem a interpelação do sujeito pela ideologia. Em contrapartida, a inscrição no
mundo reduzido das fôrmas, que trata da falha como fonte de controle ou de eliminação,
deixa de existir para ceder lugar a um outro modo de contemplação: a língua é fosca,
cheia de pontos inatingíveis; possui seus lados obscuros e está sujeita, a todo instante, a
equívocos. Conforme Leandro Ferreira (2000, p.111), “o equívoco da língua é o lugar de
encontro privilegiado entre o sentido, a sintaxe e o discurso”, e a sintaxe, como
“ferramenta”, acesso à observação do múltiplo. “Por sua vez, a opção pelo múltiplo
abre brechas, para a existência do vago, do opaco, do ambivalente sem a necessidade de
expurgar da língua tais ‘desvios’, embora entrem em contradição com os princípios de
consistência e de completude que determinam as regras de formalização”. (LEANDRO
FERREIRA, 2000, p.121)
Na sintaxe da gramática tradicional, a tendência é prever o padrão, estabelecer as
marcas divisórias entre os termos sintáticos e “encaixar” o dizer nas fôrmas. Por outro
lado, na sintaxe discursiva buscam-se formas para sair das rmas; a ruptura, a subversão
na língua não ocorre apenas de dentro para fora e indiferente ao real da história. No
65
entanto, para se chegar a isso, é preciso observar o que está fora e ao mesmo tempo
dentro, o que não quer dizer transparência dos sentidos. É preciso estar atento às
perturbações, expondo a materialidade da língua à exterioridade que vai constituí-la,
visto que a trama da rede “perfeita” pode se desfazer à medida que a sintaxe deixa de ser
um “porto seguro” e pede que não mais separemos o que está “dentro” do que está
“fora”.
66
2 Discurso, memória e sentido
... apagar o apagamento, esquecer o esquecimento, aniquilar o
aniquilamento, mas não o lado positivo de construção de um discurso, de
formação de uma memória por um trabalho de escritura.
Patrick Sériot
Apresentada, no capítulo anterior, reflexão em torno da noção de língua, mais
especificamente na sua relação com a história, neste capítulo, vamos refletir sobre os
conceitos constantemente mobilizados em nossas análises. Nosso propósito inicial é
discutir a noção de memória, uma das categorias da Análise do Discurso. Para tanto,
iniciamos com a noção de discurso e, depois, tratamos, então, de memória.
Como o analista de discurso se posiciona frente ao discurso “construído” já que
nele se cria uma legitimação externa e anterior, servindo de memória a outros discursos?
Esse questionamento nos faz lembrar os compromissos dum pesquisador na articulação
de suas pesquisas com o político. Conforme Rancière (1996, p. 40), numa cena não
política porque os homens, pelo privilégio da palavra, põem seus interesses em comum.
Existe política porque aqueles que não têm direito de ser contados como falantes
conseguem ser contados e instituem uma comunidade por colocarem em comum o
enfrentamento, a contradição de dois mundos num : o mundo dos falantes e contáveis
e o mundo dos sem-parcelas.
Se o que está dito na formulação de Rancière corresponde ou não ao que de fato
foi proposto por Pêcheux (1990) em relação ao trabalho do pesquisador pode agora servir
de critério para pensar a pesquisa como uma prática política, seguramente, devemos
alicerçar toda essa reflexão nos efeitos de memória produzidos por esta prática política,
que é a de pôr em discussão realidades, ou seja, o político e o modo de produzir críticas
sobre essas realidades podem ser compreendidos pela posição que o sujeito ocupa num
determinado momento histórico, sobretudo no modo de produção. As propriedades e o
funcionamento dum discurso remontam uma memória e, portanto, a maneira como
sentidos e sujeito se constituem na relação entre língua e ideologia.
É nesse sentido que entendemos a noção de memória discursiva, mais
especificamente, o modo como Courtine (1981, p. 52) apresenta essa noção,
67
distinguindo-a de qualquer noção de memorização psicológica. O autor refere-se à
existência histórica do enunciado no interior das práticas discursivas reguladas pelos
aparelhos ideológicos levando em consideração aquilo que lhes fixa os limites e cria uma
legitimação do que “se pode e se deve dizer”. Nesse sentido, iniciaremos nossa reflexão
por um teórico na área da filosofia – Michel Foucault - que contribuiu para os estudos da
Análise do Discurso. Vamos trazer alguns conceitos que se desenvolveram nos trabalhos
posteriores de Pêcheux e de Courtine e que compõem o quadro teórico da Análise do
Discurso: interdiscurso e memória discursiva.
Assim, de um lado, o papel da memória enquanto materialidade histórica
possibilita à Análise do Discurso um dispositivo analítico, caracteriza as relações de
intersecção do acontecimento com a anterioridade e a exterioridade, com o interdiscurso;
de outro lado, a memória, não apenas como conexão e mediação entre
passado/presente/futuro de um fato histórico, mas como uma categoria essencial no
trabalho de interpretação, solicita um olhar sobre as condições de produção, sobre o
lugar que o sujeito ocupa, ratificando que o discurso sem sujeito, nem sujeito sem
ideologia.
A noção de memória discursiva foi repensada no campo da AD por Courtine
(1981, p. 52), para o qual toda produção discursiva remete a formulações anteriores e
analisadas que se manifestam na atualidade dos dizeres sob a forma de retorno da
contradição. Em relação ao funcionamento do discurso político, Courtine afirma que não
se pode trabalhar o discurso político através de uma concepção ingênua e negativa da
ideologia, que o apresenta como uma mensagem qualquer, pois a análise do discurso
político tem relação com a prática política.
Tomando como ponto de partida as idéias de Foucault, que conduzem a reflexões
sobre o modo como os saberes se produzem no discurso e como produzem efeito de
unidade, vale lembrar que as unidades discursivas, segundo Foucault (1995, p. 26), são
responsáveis pela continuidade. O emprego de conceitos como descontinuidade, ruptura,
limiar, série, transformação coloca a qualquer análise histórica não somente questões de
procedimento, mas também problemas teóricos.
Para Foucault, mesmo em enunciados repetidos, a unidade material não é a
mesma, pois sofre variação conforme os recortes que se fazem de discurso para discurso,
mesmo que esses versem sobre o mesmo tema. Portanto, os conceitos não são
uniformemente aplicáveis, visto que as margens de um discurso não são nítidas nem tão
rigorosamente determinadas. Além da estrutura da combinação dos signos, além da sua
68
configuração interna e da forma que lhe autonomia, um discurso apresenta-se preso a
outros discursos, sistema a que Foucault denomina de “um nó em uma rede” (p.26).
As unidades do discurso são os heterogêneos saberes cristalizados que determinam
que um dado conteúdo pertence a um e não a outro domínio de saber. Nessa perspectiva,
a unidade discursiva é formada por um conjunto de enunciados diferentes, dispersos no
tempo e que se referem a um único e mesmo objeto, o qual não se pode individualizar,
nem descrever como pronto, como estático. Desse modo, a unidade discursiva apresenta-
se de forma variável e relativa e se constrói a partir de um campo complexo de
relações com outros discursos. Daí por que uma unidade discursiva é constituída por
conjuntos de enunciados verticalmente recortados que se entrecruzam na sua dispersão,
dialogando entre si.
Em Foucault, tratar um recorte, quer se trate dos que admitimos, quer se trate de
contemporâneos dos discursos estudados, significa tratar de categorias reflexivas, de
princípios de classificação, regras normativas, tipos institucionalizados, senão pelo modo
como elas funcionam. São, por sua vez, fatos do discurso que merecem ser analisados, ao
lado dos outros que com eles mantêm, certamente, relações complexas, mas que não
constituem seus caracteres intrínsecos, autóctones e universalmente reconhecíveis.
Para o autor, os diversos conjuntos de relação vão, então, construir uma unidade
discursiva, que, por sua vez, será determinada pelo conjunto de categorias que se
encontram nas seqüências de acontecimentos, as quais substituem o eixo da
temporalidade pelo eixo da causalidade, ocasionando uma dispersão temporal. Dessa
maneira, não existe unidade ou recorte que sejam apriorísticos, visto que são constituídos
a partir de um conjunto de relações dispersas e que, ao mesmo tempo, são constitutivas
do objeto pelo viés histórico.
Como dissemos, a Análise do Discurso trabalha considerando o lingüístico, o
histórico, o simbólico. Nessa perspectiva, o limite do que dizemos não está no dito ou no
que se deixa de dizer, mas na convergência do não-um no um.
Reportamo-nos ao que Pêcheux (1990, p. 245 260) diz sobre a ideologia em
Remontemos de Foucault a Spinoza
51
. Para Pêcheux, a ideologia só pode ser entendida como
a existência “de dois mundos em um só”; para Marx o novo nasce do velho” e, para
Lênin, “o um se divide em dois”. Desse modo, a crítica de Pêcheux constrói-se no
51
O título da primeira publicação é Remontémonos de Foucault a Spinoza. In: TOLEDO, M. M.(Org). El
discurso político. México: Nueva Imagem, 1980.
69
sentido de que a maior parte dos estudos desenvolvidos na academia assemelha-se a uma
dialética universal, e as questões constantemente abordadas sobre língua, ideologia e
discurso não foram objeto de estudos, politicamente organizados pelos clássicos do
marxismo-leninismo, mas se constituíram como estudos gerais. Para cheux, o político
interroga ‘técnicas e práticas”, as quais são permeadas pelos efeitos de contradição, visto
que não podemos pretender falar de discursos políticos sem tomar, simultaneamente,
posição na luta de classes. A queixa do autor é de que os estudos lingüísticos têm se dado
com certa dissociação da história, enquanto historicidade. A relação, no entanto, existe
de modo implícito ou explícito através da luta de classes.
O grande número de textos converge para constituir o “um”, que traz em si
fragmentos de toda uma realidade não datada obrigatoriamente, mas reunificada numa
unidade “rara”, a partir de determinada regularidade. Para Foucault (1995), não se trata
de traçar limites entre um e outro enunciado, nem de definir-lhes a identidade, mas de
situar posições subjetivas num espaço considerado num certo domínio de coordenação e
de coexistência. Reportamo-nos à obra Arqueologia do saber, onde o autor define e
descreve os enunciados, trabalhando três traços da análise enunciativa: raridade,
exterioridade e acúmulo. Foucault trabalha a definição do enunciado por sua função e
pelo modo como se relaciona com um campo dos objetos, ou seja, o enunciado não pode
ser definido apenas como uma unidade lingüística, mas por sua função, a qual e em
jogo diversas unidades e, em vez de conferir aos enunciados um sujeito, abre-lhes um
conjunto de posições subjetivas possíveis. Assim, entram em jogo a memória e o
esquecimento. Sob esse efeito, o discurso é, ao mesmo tempo “plenitude e riqueza
indefinida” (FOUCAULT, 1995, p. 137), visto que os enunciados não se anulam, nem se
excluem, mas se entrecruzam, privilegiam lembranças, promovem esquecimentos,
autorizando a circulação do que convém a uma FD.
Para Foucault (1995, p. 124), o discurso é o conjunto de enunciados que se apóia
num mesmo sistema de formação. Por isso, a descrição dos enunciados é, ao mesmo
tempo, “não visível e não oculta”. (FOUCAULT, 1995, p. 126). É nesse sentido que o
autor nos mostra que nenhum tipo de análise se faz no isolamento de um segmento
horizontal, visto que a forma vertical não caracteriza modalidades de existências
próprias de um conjunto de signos efetivamente produzidos, como também remete a
uma análise histórica. Como nem tudo sempre é dito, sempre há ainda o que dizer. O
novo e raro sempre apontarão para a forma lacunar, para a abertura de novos sentidos,
sobretudo porque “as coisas ditas dizem bem mais que elas mesmas”(p. 127).
70
O enunciado o é, então, o resultado acumulativo ou a cristalização de vários
enunciados flutuantes, apenas articulados, ou que se rejeitam entre si. A diversidade, a
proliferação e a superabundância são substituídas por uma espécie de unidade ainda
jamais articulada e, pela primeira vez, “esse sentido primeiro e último brota através das
formulações manifestas, que se esconde, sob o que aparece, o que desdobra, o que
cada discurso encobria, o poder de dizer algo diferente do que ele dizia e de englobar,
assim, uma pluralidade de sentidos”. (138 – 139). As leis que buscam a raridade
52
,
condição a que toda unidade discursiva está sujeita, apresentadas por Foucault, podem
assim ser sintetizadas: 1. nem tudo é sempre dito; 2. o enunciado é o lugar em que se
define um sistema limitado de presenças, onde ocorrem distribuições de lacunas, de
vazios, de ausências, de limites, de recortes; 3. cada enunciado ocupa um lugar que a
ele pertence, como se estivesse sempre aí, em seu próprio lugar; 4. a
unificação/multiplicação dos sentidos que habitam cada um deles produz o efeito de
raridade, o que se deve ao trabalho da interpretação.
Além da raridade, outro princípio de análise do enunciado estabelecido por
Foucault é o efeito de exterioridade. A descrição histórica dos enunciados “é
inteiramente atravessada pela oposição do interior e do exterior, e inteiramente
comandada pela tarefa de voltar dessa exterioridade”, uma vez que não é a descrição do
aparecimento sucessivo dos enunciados no tempo e no espaço, mas a reunificação do
disperso sob e na direção da liberação de “uma exterioridade”, ou seja, é efeito do
trabalho de interpretação. Foucault (1995, p. 141) diz que a análise de enunciados supõe
que o seu campo seja o local de acontecimentos, de transformações sistemáticas dos
saberes e dos sentidos, cuja configuração defina o lugar possível dos sujeitos na ordem
superestrutural ou no jogo das relações de poder. Como lembra o autor, “não importa
quem fala, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar”, e este dito somente produz
sentidos na exterioridade.
52
Reportamo-nos à perspectiva de Foucault (1995, p. 136-137) que considera a unidade discursiva rara, na
medida em que os enunciados dispersos convergem para constituir “o um” e trazem em si fragmentos de
toda uma realidade. Trata-se de um soberano que se instala independentemente da manipulação de outras
forças, a não ser a própria ordem estabelecida pela convergência, acionada por uma regularidade. Para
tratar das unidades do discurso, Foucault diz que é preciso levar em conta quatro noções que se opõem à
continuidade: tradição, influência, desenvolvimento e evolução e mentalidade ou espírito. O autor critica as
concepções formalistas que costumam definir continuidade sob o princípio de sucessividade, como critério
delineador de uma história sabida, pronta e documentada, que trata de objetos acabados. É nesse ponto
que o autor discute a formação dos objetos, propõe o tratamento da história como dispersão, como
conseqüência das relações de causalidade e de transferência, não mais como unidades que se impõem de
maneira imediata. Em síntese, raridade, no espírito de Foucault, pode ser entendido como o que a AD
chama de o “trabalho da interpretação”, o qual se produz e imprime no objeto de análise um efeito de
memória.
71
Somado aos princípios da raridade e da exterioridade, que incidem no trabalho da
memória, Foucault (1995, p. 142) propõe um terceiro princípio de análise enunciativa, o
acúmulo, que diz não ser nem interiorização, nem lembrança, nem uma forma de
totalização indiferente dos enunciados. A análise enunciativa não se ocupa de “despertar
enunciados adormecidos”, mas de escutá-los, de interpretá-los, de compreender as razões
de tal adormecimento e, até mesmo, de despertar num determinado tempo. Nesse caso, o
trabalho da memória, em Foucault, supõe a remanência, a aditividade e a recorrência.
Remanência é dita no sentido da conservação dos enunciados através do registro
feito com recurso a técnicas materiais. A existência da materialidade lingüística com
recurso à cnica e às instituições permite que se desenrolem “os jogos da memória e da
lembrança”. O retorno possível ao acontecimento do passado da formulação não
significa encontrá-los permanentemente depositados na memória. Ao serem evocados, os
enunciados não possuem mais o mesmo modo de existência, nem obedecem ao mesmo
sistema, aos mesmos esquemas de uso, nem atingem as mesmas possibilidades de
transformações.
Como os enunciados não são sempre dispersos de forma igual nem os
agrupamentos ocorrem de modo sucessivo, jamais sua aditividade vai ocorrer por simples
“amontoamento” ou justaposição. O arquivo é constituído de propriedades singulares;
daí por que o acúmulo produz uma memória que não ocorre sempre nos mesmos
modelos. Contudo, à medida que os discursos são tomados e inscritos para encontrar
forma específica de um, sob a forma de um retorno e associado a uma exterioridade, não
só se suscitam o trabalho de um arquivo, como também de uma memória.
Os fenômenos de recorrência indicam que um campo de elementos
antecedentes, mas que se reorganizam e se redistribuem segundo novas relações. A
reconstituição do passado define-se naquilo que o precede, em suas filiações, o que torna
necessária a exclusão daquilo que não pode ser compatível com os saberes de uma
determinada formação discursiva. A verdade adquirida é um acontecimento que se
produziu sobre o passado, uma forma que se pode modificar, matéria transformável ou,
ainda, uma referência daquilo de que se pode falar. Em Foucault, memória é, então, a
forma específica do acúmulo, o conjunto de enunciados dispersos, como figura lacunar e
retalhada, mas que, ininterruptamente, suscita sempre uma verdade e uma interdição.
Por isso, os enunciados na densidade do acúmulo são tomados na memória, “não
deixam de inquietar, de agitar e, às vezes, de arruinar” (FOUCAULT, 1995, p. 144).
72
Em síntese, o que podemos concluir é que, para Foucault (1995), a memória
discursiva traça seus limites no interior de uma Formação Discursiva e na dispersão dos
discursos e do sujeito. Ao limitar presenças e conferir aos enunciados efeitos singulares,
como o efeito de raridade, no sentido de oposição ao efeito da totalidade, excluem-se uns
e privilegiam-se outros, ou seja, algo precisa ser esquecido para que outra coisa seja
lembrada. O segundo efeito é o da exterioridade, a qual contesta a idéia de fundamento
transcendental, isto é, a história é imprescindível nos estudos da linguagem; as
regularidades, os agrupamentos em série tornam-se necessários na medida em que
organizam e estruturam os enunciados dispersos dentro de um determinado espaço-
tempo. Nesse caso, a memória discursiva é construída no plano da descontinuidade
dentro daquilo que o autor caracteriza como dispersão, tornando-se passível de receber
diferentes orientações, de acordo com as diferentes inscrições de enunciados na história.
Por isso, a memória está fora do enunciado, em sua exterioridade, mas, paradoxalmente,
pode ser suscitada a partir do enunciado, habitando, de certa forma, o espaço lacunar
entre o nível empírico e a sua história. Por fim, o terceiro efeito é o de acúmulo, o inverso
de origem fundadora. Diferentemente de um arquivo de metal, ou de apenas um
conjunto de documentos guardados num depósito, a memória constrói-se no fato de, a
partir de uma recorrência àquilo que se procura, produzir o retorno concomitante sobre si
próprio, reconstruindo o percurso de suas filiações; é o lugar da atualidade e da
novidade.
2.1 O papel da memória sob múltiplos olhares da AD
Conforme foi assinalado, Foucault (1995) conduz o estudo sobre memória na
ocorrência da repetição, da dispersão e da descontinuidade, enquanto efeito de raridade,
exterioridade e acúmulo. Do ponto de vista de Pêcheux (1995, p. 192), uma formação
discursiva coloca “sempre-já” ideologias e práticas; ganha distinção por sua identidade,
constituída por domínios de saberes próprios. Como ele entende, a reprodução-
subordinação-transformação das relações de produção, como determinação do real e de
um exterior, repercute nos processos discursivos, produzindo deslizamentos,
deslocamentos no todo complexo das ideologias e das FDs e, tanto numa como noutra, o
73
trabalho da memória é fundante. Assim, o trabalho da interpretação afetado por uma
exterioridade torna-se inevitável.
Em outros termos, o acúmulo, conforme cheux, constitui as condições de
possibilidade de corte, de estruturação da materialidade discursiva, do pré-construído,
nos quais são produzidos conceitos, elementos, diferenças, contradições, discrepâncias,
autonomizações variáveis. O que espor trás desses enunciados é uma memória sob a
história que rasga sulcos no arquivo não-escrito dos discursos subterrâneos, sob múltiplas
formas”
53
. Todavia, entende Pêcheux (1995, p. 192) que a descontinuidade de uma
seqüência discursiva só pode ser explicada a partir da introdução da forma-sujeito, já que
os acontecimentos que separam os campos epistemológicos permanecem inscritos na
forma-sujeito e existem sob a forma de um sentido “evidente” para os sujeitos, através
das transformações históricas que afetam o sentido. Dessa maneira, é esse efeito aparente
de objetividade produzido pelas relações de desigualdade-subordinação-transformação
que incide sobre o trabalho da memória.
Para Pêcheux (1997, p. 17), a memória é um espaço que gera sentido, que
constitui um ponto de encontro entre um acontecimento e uma atualidade. Como afirma
o autor, “é a repetição sem fim de um enunciado como um eco inesgotável apegado a um
acontecimento” (p. 21). A memória compõe a materialidade discursiva de um modo
absolutamente particular e constitui a retomada direta no espaço de um acontecimento,
ou seja, a memória e a atualidade são constitutivas do acontecimento, da ruptura, da
novidade. “É o prolongamento de um acontecimento” (p. 26).
Pêcheux (1999) diz que o papel da memória é efetivar o encontro entre temas a
princípio bastante diferentes, conduzir a abordagens das condições (mecanismos,
processos...), nas quais um acontecimento histórico (descontínuo e exterior) é suscetível
de vir a se inscrever. Em face de um texto, como afirma o autor (1999, p, 52),
restabelecem-se os implícitos (os pré-construídos, os elementos citados e relatados, os
discursos-transversos, etc) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação
ao próprio legível. Mas esse legível “é sempre suscetível de ruir sob o peso do
acontecimento novo, que vem perturbar a memória”(p. 52). E o acontecimento
discursivo pode desmantelar a regularização, deslocar, desregular e produzir,
retrospectivamente, outra série sobre a anterior. Pode também, escreve Pêcheux apoiado
53
Tradução nossa. O grifo é do autor. A passagem citada encontra-se na obra: PÊCHEUX, Michel.
L’étrange miroir de l’analyse de discours. Langages, (62): 5 – 8, Paris, juin 1981.
74
em Marandin, abrir no jogo da metáfora “outra possibilidade de articulação discursiva...
uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se
antes de desdobrar-se em paráfrase.”(PÊCHEUX, (1999, p. 53).
Tal “efeito de evidência” entre o que já circulou em algum lugar e o que se
encontra disperso (no sentido de Foucault), como efeito de um sentido inscrito no
funcionamento de uma formação discursiva no sistema de reformulação, de paráfrases e
de sinonímias, que se produzem no interdiscurso, como (re)ocorrência do pré-construído,
do discurso-transverso (no sentido de cheux), é uma marca do real histórico. A
memória é, então, “efeito de representação e de reconhecimento”. (PÊCHEUX, 1999, p.
51).
Vale lembrar que a noção de pré-construído foi cunhada por Henry (1992) como
algo que fala antes em outro lugar. Pêcheux (1988, p. 99), com base na lógica fregeana,
define o pré-construído como ponto de “discrepância entre dois domínios de
pensamento”. Com essa formulação, o pré-construído é definido por Pêcheux como
efeito discursivo ligado ao encaixe sintático no qual um elemento de um domínio
irrompe num elemento de outro domínio, sob a forma de pré-construído, como se
estivesse aí. E, de fato, estão. Se levarmos em conta o que é pensado antes e o que está
contido no discurso, essa anterioridade ao sujeito e às formulações, para Courtine (1981,
p. 35), configura o intervalo entre o interdiscurso enquanto lugar de construção do pré-
construído e o intradiscurso enquanto lugar de enunciação. O que acontece é que os
elementos do interdiscurso nominalizam-se e incidem no intradiscurso, como se sempre
já estivessem aí localizados.
Na verdade, Courtine (1982, p. 250) não altera a noção elaborada por Pêcheux,
mas difere na aplicação do conceito no vel do interdiscurso, ou seja, o interdiscurso de
uma FD, enquanto lugar de articulação contraditória entre a FD e as FIs, é também o
lugar de formação dos pré-construídos enquanto elementos do saber dessa FD. O fato de
os pré-construídos serem incorporados do exterior da FD para o seu interior possibilita a
organização do repetível, do deslocamento, do esquecimento e até mesmo da denegação,
operando, com isso, o deslocamento de fronteiras da FD. Daí por que os pré-construídos
formam-se nas redes de formulações (conjunto estratificado e desnivelado), operando a
75
estabilidade referencial dos elementos do saber da FD, enquanto [E]
54
que se
articulam.
Assim, o opaco e a não-transparência do acontecimento, apesar de estarem
sempre “já-lá” e de (re)estruturarem o retorno do acontecimento, como observa Pêcheux,
comprovam que os pré-construídos são o efeito do que está sempre-já-lá, mesmo nos
casos em que o sujeito mostra um tipo de heterogeneidade.
Uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam
transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo
de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos, de regularização... Um espaço de
desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos. (PÊCHEUX, 1999, p. 56).
O paradoxo está na articulação do real histórico com a determinação do efeito-
sujeito, que, a um tempo, exibe um “corpo” interior articulado com o exterior e deixa
suspensa em sua estrutura uma tomada de posição, produzindo, pois, esse “efeito de
evidência”. Assim, jamais haverá equivalência entre sentido e realidade visto que não se
pode reconhecer no discurso o sujeito concreto e, sim, posições-sujeito que estabelecem
uma relação com o sujeito “universal”. Nessa perspectiva, Pêcheux (1999, p. 56) nos
mostra que “nenhuma memória pode ser um frasco sem exterior”.
Portanto, segundo Pêcheux, a memória discursiva remete tanto aos pré-
construídos, ou seja, ao reconhecimento de algo “já-lá”, como ao materialismo histórico,
como teoria das formações sociais e suas transformações. Acrescente-se aqui a ideologia
como constitutiva da prática discursiva estando articulada ao funcionamento das
formações sociais, onde se colocam em “jogo práticas associadas a lugares ou a relações
de lugares que remetem às relações de classes [...]que se organizam em formações que
mantêm entre si relações de antagonismo, de aliança ou de dominação.” (PÊCHEUX,
1993, p. 166).
Assim, é através da concepção de formação ideológica, como uma condição pré-
discursiva de identificação do indivíduo com uma dada conjuntura, e de acordo com as
construções imaginárias que representam o seu lugar nas relações antagônicas entre as
classes, que os indivíduos são interpelados em sujeitos. Observemos que, para Pêcheux
(1975), as formações imaginárias o resultantes de processos discursivos anteriores e
54
Conforme vimos no interior deste texto, na p. 38, apoiados nos estudos de Courtine (1982, 246), o
símbolo [E] é empregado para designar o nível do enunciado, que representa a região de descrição do
interdiscurso da FD, e o mbolo [e] designa o nível da formulação, da descrição do intradiscurso da
seqüência discursiva.
76
funcionam, por antecipação, como memória das relações de força e de sentido, já que
um jogo de imagens dos sujeitos entre si, dos sujeitos com os lugares que ocupam na
formação social e dos discursos ditos com os possíveis e imaginados. Para Leandro
Ferreira (2005, p. 73), a noção de real, proposta por Lacan, encontra-se entrelaçada com
o simbólico e o imaginário. Segundo a autora,
o real é apresentado como corte na estrutura do sujeito, a falta originária da estrutura. É
precisamente em torno dessa falta que o inconsciente se estrutura. O real é, portanto, o núcleo
do inconsciente. Tudo começa a partir dele. Lacan tematiza o real de dois modos: (i) o real é
o impossível de ser simbolizado e (ii) o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar.
(LEANDRO FERREIRA, 2005, p. 73)
“A questão do materialismo histórico, excede, portanto, o puro terreno da
epistemologia: ela engaja uma aposta política baseada na existência de um real da
história. O materialismo histórico pretende basear-se em uma percepção desse real como
contradição”(GADET e PÊCHEUX, 2004, p. 35), isto é, tomando como base a categoria
do materialismo dialético. Assim, a política atravessa a história porque,
contraditoriamente, uma possibilidade de encontrar no real da história a
materialidade de uma língua que suporta as diferenças e que transforma as diferentes
ordens num terreno de contradição e de confronto. Se, por um lado, a língua é uma
questão de Estado, o lugar do instituído, do oficial, das significações autorizadas, por
outro, na relação entre língua, ideologia e discurso funda-se o gesto interpretativo. A
prática discursiva do sujeito operário, por exemplo, é um processo heterogêneo de
produção de sentidos inscrita num processo contínuo de (re)elaboração; mostra-se aberta
à negociação dos efeitos de sentido, na medida em que se apóia nas classes dominadas
para lutar contra as ordens institucionais antagônicas (a ordem constitucional e as
instituições patronais, por exemplo), de tal modo que escapa a qualquer lei de
“racionalidade cartesiana da literalidade dos sentidos”.
A memória, em Pêcheux, funciona como um elemento pré-discursivo e atrelado
ao materialismo histórico, porque ocorre como efeito simbólico e, nesse caso, para os
analistas de discurso, não existe estudo apenas em sua materialidade lingüística. O
trabalho de análise acessa duas vias: a via que acesso à materialidade da língua e a via
que acesso à materialidade da história, é claro, ambas definidas por práticas político-
sociais. Como a Análise do Discurso tem como especificidade o estudo do
funcionamento do discurso e dos efeitos de sentido, podemos dizer que, ao analisar o
funcionamento destes, já estamos estudando o político, ao passo que, se analisamos
77
apenas a materialidade da língua, corremos o risco de deixá-lo de lado. O político na AD
justifica-se pela investigação das relações desiguais no modo de produção das classes
sociais, na luta de classes, nas relações de antagonismo entre as classes
55
.
Seguindo os passos de Foucault, a partir de uma releitura da noção de “domínio
de memória”, Courtine (1999, p. 18) observa que, se essa noção constitui a
“exterioridade do enunciável para o sujeito-enunciador”, contrariamente, essa
exterioridade, designada interdiscurso, não possui um “lugar fixo”, estável, mas ressoa
na memória como uma “voz sem nome”, como um espaço desnivelado que atravessa a
espessura das formulações discursivas, determinando seus sentidos. Esse funcionamento
é observado pelo autor no acontecimento de um discurso de aliança entre comunistas e
cristãos diante do processo de sufrágio na França em 1976. No discurso comunista
dirigido aos cristãos (em 1936), lembra Courtine (1981, p. 19), “podem-se encontrar,
entre as formulações-origem do domínio de memória, os efeitos imaginários dos
discursos que retornam e se interpõem entre o texto primeiro e o texto que o cita”.
Assim, enunciados do tipo “a religião é o ópio do povo” e “a crítica da religião é a
condição preliminar de toda crítica”, pela retomada no interdiscurso, podem ser
transformados na fala dirigida aos cristãos: “as lutas de classe são o motor da história”;
“as lutas de classe são o motor do progresso”.
As transformações ocorrem porque, ao serem retomados os enunciados, as falas
apagam-se, desaparecem, mas deixam vestígios de todo desnivelamento interdiscursivo.
As falas truncam-se, escondem-se, para reaparecer mais à frente, atenuam-se ou
desaparecem, misturando, inextricavelmente, memória e esquecimento. Assim, a religião
como “ópio do “povo”, formulação do domínio de saberes da FD comunista, cedeu
lugar às formulações de domínio de saberes da FD cristã, concebendo a religião como
“suspiro da criatura oprimida”(COURTINE, 1999, p. 19), para que sejam apagadas as
relações de antagonismo religioso entre comunistas e cristãos.
Ainda conforme se lê em Courtine (1999), no estudo dessas formas lingüísticas (as
substituições do tipo “ópio” por “suspiro” e “povo” por “criatura oprimida”) inscreve-se
o pré-construído, pois uma formulação já-dita, por exemplo, encaixa-se na forma de pré-
construído sob a forma de nominalização: “o materialismo dos comunistas”, em vez de
“os comunistas são materialistas em filosofia”; “nós podemos perfeitamente trabalhar
55
Veremos mais adiante esse conceito, tão importante nos trabalhos desenvolvidos na Análise do Discurso,
que os discursos são tomados como objeto de investigação a partir das relações sócio-históricas e dos
lugares sociais a partir dos quais se produzem.
78
todos juntos apesar de nossas divergências filosóficas”. O que acontece aqui é a
materialização de apagamentos, pois os discursos de aliança entre FDs antagônicas, ao
serem retomados num discurso de aliança entre comunistas e cristãos, por exemplo,
tornam indispensável a “presença de esquecimentos”, “faz por desaparecer aos olhos de
quem enuncia, garantindo, na aparição de um ‘eu’, ‘aqui’ e ‘agora’, a eficácia do
assujeitamento”. (COURTINE, 1999, p. 20)
Nesse caso, o interdiscurso é o lugar onde funcionam posições de sujeito que
regulam o ato da enunciação. Vale lembrar que, segundo Courtine (1981, p 35 - 50), a
caracterização do interdiscurso de uma FD constitui um ponto crucial da perspectiva
desenvolvida por Pêcheux, pois é a partir da noção de interdiscurso que as modalidades do
assujeitamento poderão ser analisadas. O interdiscurso é o lugar no qual se constituem os
objetos dos quais o sujeito enunciador se apropria para deles fazer seu discurso e onde se
encontram as articulações entre esses objetos, por meio das quais o sujeito enunciador
conferirá coerência a seus propósitos. É, portanto, na relação entre o interdiscurso de
uma FD e o intradiscurso de uma seqüência discursiva produzida por um sujeito
enunciador, a partir de um lugar inscrito numa relação de lugares no interior de uma FD,
que é preciso situar os processos por meio dos quais o sujeito falante é interpelado-
assujeitado em sujeito de seu discurso. É, igualmente, nessa relação que surge a
articulação do discurso com a língua, onde residem o pré-construído e a articulação dos
enunciados.
Segundo Courtine, o interdiscurso fornece, na forma de citação, recitação ou pré-
construído, os objetos do discurso. A enunciação sustenta e organiza a identificação
enunciativa (marcas pessoais, tempo, aspecto, modalidade) na produção da formulação
por um sujeito enunciador. Dessa forma, na enunciação são colocados certos objetos sob
a responsabilidade do sujeito enunciador, que adquirem estabilidade referencial no
domínio da memória como espaço de recorrências às formulações (p. 20-23); só podem
ocorrer através da memória discursiva, porque na enunciação se estabelece uma relação
imaginária entre o momento da enunciação e o domínio da memória. Courtine chama
esse processo de “rituais discursivos da continuidade”, que, ao produzirem um corte
temporal, ligam o passado à atualidade e ao futuro, podendo promover, desse modo,
uma retomada imaginária do processo histórico. O autor exemplifica com a expressão de
tempo (“ainda”, “uma vez”) no discurso do Partido Comunista. Para mostrar que as
79
substituições produzem apagamentos e que esses produzem efeito de memória, Courtine
(1999, p. 21) escreve:
“Mas, como sempre, a idéia lançada pelos comunistas seguiu seu caminho. Ela se impôs.
Impôs-se e impor-se-á mais e mais”...“Uma vez mais, nós tínhamos razão”... Nosso partido
comunista, amanhã como ontem, tem a intenção de...” “E amanhã? Amanhã como hoje, nós
nos esforçaremos... “O futuro será como nós o fizermos juntos hoje”.
Em conformidade com a política da “mão estendida” aos cristãos, no discurso
explorado Courtine apresenta a seguinte formulação: “não podemos escolher no lugar
dos cristãos como eles devem ser cristãos”; “ao contrário, nós não escolhemos uma parte
dos cristãos em detrimento dos outros”.
Analisando o discurso acima, Courtine afirma que o discurso comunista é um
produto da história real, mas também é produto de uma ficção. Mas em que medida a
história pode ser entendida como ficção? Os efeitos de memória por ele suscitados
constroem essa imagem da história imóvel, eterna. O assujeitamento na ordem do
discurso político permite, segundo o autor, pensar numa repetição de uma série de
formulações que formam um enunciado, mas que se repetem a partir disso – uma
repetição, ao mesmo tempo, presente e ausente na série de formulações (cf. COURTINE,
1999, p. 21): ausente, porque desconhecida; presente em seu efeito, porque na repetição
de uma memória sempre encontraremos saberes, discursos, pré-construídos que ressoam
e outros que serão esquecidos, apagados..., enfim, a memória revela-se sempre lacunar
ou apresenta-se com falhas.
A partir dessa formulação temos a repetição e a reformulação em “São os próprios
cristãos que têm que decidir como eles devem ser cristãos”. (p. 22) Courtine conclui
dizendo que memória e esquecimento são, assim, indissociáveis na enunciação do
político, visto que não há como produzir discursos de aliança entre FDs constituídas por
saberes antagônicos sem promover “esquecimentos”.
O político é a materialidade, é a possibilidade não dos modos de subjetivação,
mas das posições-sujeito, as quais nos permitem identificar o modo de sua relação com a
exterioridade, com o interdiscurso, no “fio do discurso”. A inscrição do lugar que o
sujeito ocupa marca posição, mas também se constitui num modo de acionar a memória,
não apenas como conexão e mediação entre passado/presente/futuro, mas como um
trabalho de interpretação, por excelência.
Pois bem, tendo trabalhado o conceito de memória e a sua importância de seu
funcionamento para a inscrição do sujeito no discurso, a seguir, abordaremos alguns
80
aspectos que configuram a presença do político no estudo da linguagem e que definem o
trabalho em Análise do Discurso (AD), mais especificamente, no que diz respeito ao
estudo do discurso, que tem materialidade distinta da materialidade da língua e que se
realiza na ordem do histórico-ideológico.
2.1.1 O espaço do político na Análise do Discurso
Gadet e Pêcheux, no capítulo introdutório da obra La langue introuvable, lembram
que a lingüística traz inscrita em seu destino o desejo irrealizável de aprofundar a ferida
narcísica aberta por Saussure e de descrever um estranho “ensurdecimento” provocado
por certos debates científicos que excluem o político. Segundo os autores, é “como se a
lingüística não quisesse saber nada sobre suas próprias raízes, sobre sua
história”(GADET; PÊCHEUX, 2004, p.20). Certamente, essa forma de ver a lingüística
configura um trabalho muito específico em torno do estudo das questões de linguagem, e
o retorno constante à ferida aberta revela as diferentes tentativas de entrada à teoria da
enunciação. Se, para os autores, nessa prática se revela uma tendência inelutável de fazer
entender que em toda a língua falada as “marcas” lingüísticas não se estruturam segundo
uma ordem matemática, é porque acreditam que toda língua é capaz de transgressões.
Essa é uma das razões pelas quais as línguas são suscetíveis do político.
Pêcheux (1980, p. 182) entende que a maneira de tratar os textos é ligada à
maneira de fazer política, pois acredita que não se pode pretender falar de discurso
político sem, simultaneamente, tomar posição na luta de classes. Nesse caso, toda
reflexão em torno da ngua, feita por nós no primeiro capítulo, justifica-se pelo modo
como concebemos nosso objeto de estudo e pelo modo como entramos em luta na
história. Portanto, pensar o discurso na sua própria ordem, realizando-se na língua, na
ordem do enunciável
56
, implica trabalhar as fronteiras, os espaços flutuantes e as
transgressões da língua, que, conforme Gadet e Pêcheux, “o real da língua se inscreve
dentro da disjuntiva principal entre a noção de uma ordem própria, imanente à estrutura
de seus efeitos, e a de uma ordem exterior que se revele a uma dominação que de se
56
Ao enunciável corresponde a materialidade lingüística e à historicidade, a materialidade histórica.
81
conservar, restabelecer ou demolir ou aniquilar”, ou seja, conforme afirma Milner, “a
língua conhece o impossível que lhe é próprio”.
Todavia, como lembram Gadet e Pêcheux (1981), é nesse ponto que a lingüística,
na tentativa de abstrair a linguagem da ordem do social, se trai. A contradição reside no
fato de a lingüística estrutural parecer manter uma relação estreita com o desejo político
de terminar de uma vez por todas com os obstáculos que entravam a “comunicação”
entre os homens, ou seja, um incessante desejo de “acabar” com o político. E essa é
uma prática que não interessa à AD.
Por outro lado, “admitir” a entrada do político nas questões da linguagem supõe
admitir a sua dimensão material e a sua dimensão simbólica. Então, o desafio para o
lingüista está justamente em pensar as línguas nacionais o apenas considerando o seu
“real”
57
, mas também “o real da história”
58
, ou seja, como lembra Dias (2003)
59
, apoiado
em Pêcheux, “o desafio está justamente em pensar a língua como condição de existência
de universos nos quais a ‘ambigüidade e o equívoco constituem um fato estrutural
incontornável’”.
Pensando sobre essas relações “conflitosas” da análise do discurso com outros
campos, trazemos Rancière (1996, p. 11 - 13), para o qual a política pode ser pensada
a partir da noção de desentendimento colocado em “situação de palavra”, quando um
dos interlocutores ao mesmo tempo entende e não entende o que diz o outro. “O
desentendimento não é conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É
conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco, mas o entende a mesma
coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome de
brancura”. Esse conflito, segundo autor, não revela nenhum desconhecimento, nem que
os interlocutores não saibam o que um diz ou o que diz o outro, tampouco será o mal-
entendido pela imprecisão das palavras. Conforme Rancière,
o desentendimento não diz respeito à questão da heterogeneidade dos regimes de frases e da
presença ou ausência de uma regra para julgar gêneros de discursos heterogêneos. Diz
57
J-C Milner, retomando algumas das formulações de Lacan, define o real da língua como o impossível.
Para ele, o real está relacionado com aquilo que a língua tem de impossível, isto é, o impossível está ligado
a alguma proibição, ao foracluído” (expressão empregada por Pêcheux). Impossível é a língua em si, que
não pode ser recorrida totalmente a não ser a respeito de um ponto que, como totalidade, a desfaz.
58
Conforme Gadet e Pêcheux (1981), o materialismo histórico é o real contraditório. Reportando-nos à
noção de real trabalhada por Pêcheux em Estrutura ou acontecimento, não se trata de um real logicamente
estável, mas de “um real constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber que não se transmite,
não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos” (PÊCHEUX, 1990, p. 43).
59
Referimo-nos ao trabalho de Dias apresentado no I Seminário de Estudos em Análise do Discurso
“Michel Pêcheux e Análise de Discurso: uma relação de nunca acabar”. Porto Alegre, 10 a 13 de
novembro 2003 – UFRGS.
82
respeito menos à argumentação que ao argumentável, à presença ou ausência de um objeto
comum entre um x e um Y. Diz respeito à apresentação sensível desse comum, à própria
qualidade dos interlocutores em apresentá-lo. As estruturas de desentendimento são aquelas
em que a discussão de um argumento remete ao litígio acerca do objeto da discussão e sobre a
condição daqueles que o constituem como objeto. (RANCIÈRE, 1996, p. 13).
Assim, a razão do político é a contradição. O acobertamento da falha ou a simples
oposição entre os animais lógicos e os animais fônicos não é, de forma alguma, atividade
política. “A política é uma aposta do jogo do próprio litígio que institui a política”.
Segundo Rancière (p. 39 - 40), o “litígio refere-se à existência das partes como partes, a
existência de uma relação que as constitui como tais. E o duplo sentido do logos, como
palavra e como contagem, é o lugar onde se trava o conflito”, a cena da interlocução
sobre a contagem das partes entre os que têm direito e aqueles que não têm direito de
serem contados como seres falantes. O político assenta-se no fato de colocarem em
comum o dano, que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois
mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não estão, o mundo
onde há algo “entre” eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis
e o mundo onde não há nada.
É nesse espaço que emerge o papel do articulador, tendo em vista que qualquer
um poderá assumir a cena e tomar posições, pela mobilidade e imprevisibilidade do
lugar. No caso de nosso corpus, a organização sindical não é reconhecida socialmente e,
bem por isso, preciso lutar para mudar a lógica, ou seja, precisa da existência de um
sujeito que assuma esse lugar social não instituído para que a voz de excluído seja
lembrada e passe a existir. Essa é a lógica de estar-junto humano de que trata Rancière.
E, nesse processo em que operam a agregação e o consentimento das coletividades, a
organização e a distribuição dos lugares e das funções de cada operário vão legitimar
uma nova distrituição. Por outro lado, o controle dessa distribuição pelo sistema
legitima práticas de desigualdades e de proibições, impedindo a ocupação de certos
lugares. A essa prática de controle Rancière chama de polícia.
Conforme lembra o autor (p. 41), a polícia revivifica os golpes de cassetete das
forças da ordem e as inquisições das polícias secretas. Apoiado em Foucault, o autor diz
que a polícia é apenas uma forma particular de dar uma ordem mais geral de distribuir os
corpos em comunidade, ou seja, é uma ordem que, ao mesmo tempo, apaga as diferenças
e, assim, mantém a distribuição desigual e injusta dos corpos. É a fraqueza, não a força
dessa ordem, que incha em certos estados a baixa polícia, até encarregá-la do conjunto
83
das funções de polícia. Exemplo disso é a evolução das sociedades ocidentais que faz do
policial um elemento de um dispositivo social, ou seja, um dispositivo de controle e que
regula pela força. O policial está fadado, nesse contexto, a tornar-se um agente da ordem
pública.
Em contrapartida, o político é constitutivo de um lugar discursivo (simbólico), a
partir do qual o sujeito inconsciente e ideológico estrutura-se como linguagem. Nesse
espaço, situamos o nosso corpus de análise no campo dos “universos logicamente não-
estabilizados”, já que os discursos anarquistas e anarcossindicalistas vêm justamente
reivindicar um lugar para aqueles que não são reconhecidos socialmente. É nesse espaço
discursivo que a língua deverá ser tomada como um espaço privilegiado de inscrição de
traços linguageiros, que formam uma memória sócio-histórica e inscrevem posicões. É
desses corpos heterogêneos e estratificados, que estão em configuração permanente, que
vamos nos ocupar.
Pêcheux (1969) trata das representações que o sujeito e o destinatário constroem a
partir de imagens que um configura a outro, ou seja, os “lugares ocupados por sujeito e
destinatário, dentro de uma dada estrutura da formação social, estão representados nos
processos discursivos, a partir de uma série de formações imaginárias, que designam o
lugar que A e B se atribuem mutuamente, ou seja, é a imagem que fazem de seu próprio
lugar e do lugar do outro”.
Para Corten (1998, p.82), o discurso pertence ao domínio da representação, pois é
o modo pelo qual estamos no discurso, haja vista que a representação deve ser entendida
como encenação
60
. Assim, falar do político não é a mesma coisa que falar de poder, pois
o político possui estatuto específico e é a representação da realidade. As categorias
políticas, como diz Corten (p.90), não estão somente articuladas numa série de
enunciados constituídos em discurso; elas o estão na circulação entre vários discursos.
Nos discursos definem-se os traços de uma memória, local onde se aplicam as categorias
políticas, as quais parecem circular sozinhas, independentes, ou nas predicações simples
(a democracia é boa, a tirania é má). Desse modo, toda representação parece redobrar o
60
Por cena de representação toma-se o discurso em sua circulação, que constrói a montagem e delimita o
fechamento da cena. Trata-se de um relato coerente das ações do “príncipe real”, embora não seja o
espelho da ação do príncipe, nem feche o seu campo de ação. O político como cena das forças políticas
cena construída pelo discurso não corresponde ao discurso político, tampouco ao discurso compreendido
no sentido amplo do termo; com sua carga correspondente de poder, não se confunde com o fenômeno
que Corten, ao remeter a Foucault, observa: é preciso dominar, “de um lado, o político não se limita ao
campo do discurso político, mas, de outro, não se estende a toda tela discursiva como multiplicidade
imanente de relações de poder.” (CORTEN, 1999, p.38).
84
caráter indefinido entre o político e a política, a menos que associemos a representação
política ao sentido de superestrutural. “O político é a realidade das forças que perpassam
a sociedade e o modo como se destacam, à vista de todos, através dos processos de
circulação discursiva”(CORTEN, 1999, p.37).
Nesse caso, a representação do político, segundo Corten, é constituída porque
no discurso perpassam forças políticas (ou seja, ideologias), que reivindicam um lugar
para o sujeito entrar em cena, o qual pode ser comparado a uma tomada de posição
(modo de subjetivação), uma vez que o discurso recupera, pelo interdiscurso, uma parte
da realidade que vai delimitar o espaço da representação. De acordo com Corten (1999,
p. 40), “o poder vai se arranjar e se legitimar na cena de tais forças”.
Dito diferentemente, poder-se-ia caracterizar certo distanciamento entre as
formulações de Corten em relação ao que Pêcheux chama de “gesto de interpretação”,
visto que na teoria de Pêcheux o sujeito inscreve-se num lugar da formação social,
identifica-se com saberes de uma ou de outra FD e tem uma tomada de posição em e sob
determinados efeitos.
Para Bobbio (2004, p. 164), a análise do fenômeno político, em sentido estrito e
técnico, é tratada com base na metodologia das ciências. Conforme o autor, a pesquisa
vem voltada não mais para a descrição daquilo que deve ser e, mesmo que se trate de
uma ciência empírica como empreendimento coletivo e cumulativo, como ocorre na
ciência política
61
, algumas obras clássicas, como as de Aristóteles, Maquiavel,
Montesquieu, Tocqueville, na medida em que tendem à formulação de tipologias, de
generalizações, de teorias gerais, de leis, relativas aos fenômenos políticos,
fundamentam-se no estudo da história, ou seja, apóiam-se em bases distintas. A
propósito de nossa análise, neste estudo, torna-se necessário dar destaque ao
entrelaçamento entre os discursos da classe operária e sobre a ciência política, uma vez
que toda problemática da classe operária não pode ser pensada fora da relação com o
político, porque envolve a luta de classes.
A ciência política, segundo Bobbio (2004, p. 167), “em seu desenvolvimento em
si, pode estar bem longe de poder formular previsões científicas”. Isso se deve ao fato de
61
Reportamo-nos a BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
Política. 12. ed., Brasília: 2004. A ciência política como disciplina e como instituição nasceu na metade do
século passado e representou momento de uma determinação específica do desenvolvimento das ciências
sociais, que caracterizou justamente o progresso científico do século XIX e teve suas expressões mais
relevantes e influentes no positivismo de Saint-Simon e Comte, no marxismo e no darwinismo social. Hoje
o desenvolvimento da ciência política, acompanhada de perto das ciências sociais, sofre influência seja da
análise do fenômeno político (approach), seja no que se refere ao uso de certas técnicas de pesquisa.
85
ser uma disciplina histórica e, portanto, o seu objeto de estudo sofre contínua
transformação. “Não se pode reproduzir uma revolta de camponeses em laboratório por
óbvias razões, entre outras, aquela que uma revolta reproduzida não seria mais uma
revolta (note-se a relação entre uma ação cênica, que se pode repetir indefinidamente e a
realidade representada pelos acontecimentos)”. (BOBBIO, 2004, p. 168).
Tanto a ciência política quanto as outras ciências da humanidade possuem suas
dificuldades específicas, as quais derivam de algumas características da maneira de agir
do homem. Transcrevemos abaixo duas dessas, consideradas pelo autor como relevantes:
a) O homem é um animal simbólico, que se comunica com seus semelhantes através de
símbolos (dos quais o mais importante é a linguagem): o conhecimento da ação humana
exige a decifração e a interpretação destes símbolos, cuja significação é quase sempre incerta,
às vezes desconhecida, e apenas passível de ser reconstituída por conjecturas (línguas mortas
ou primitivas)
b) O homem é um animal ideológico, que utiliza valores vigentes no sistema cultural no qual
está inserido, a fim de racionalizar seu comportamento, alegando motivações diferentes das
reais, com o fim de justificar-se ou de obter o consenso dos demais; por isso, a importância
que assume na pesquisa social e política a revelação daquilo que está escondido, assim como
a análise e a crítica das ideologias. (BOBBIO, 2004, p. 168)
Esse ponto de vista, para nós, é relevante por nos permitir estabelecer “pontos de
encontro” com as formulações de Pêcheux. Para Pêcheux (1990, p. 245–260), o trabalho
político com os textos põe questões que parecem estar desprovidas do político, mas o
interrogações “técnicas e práticas” permeadas pelos efeitos do político, visto que não
podemos pretender falar de discursos políticos sem tomar, simultaneamente, posição na
luta de classes. Segundo cheux, não se pode desenvolver estudos sobre língua e sobre
discurso como se houvesse apenas uma ordem para a produção do científico. Em outros
termos, ao confrontar a produção acadêmica de Spinoza (1670) com a de Foucault
(1969), Pêcheux (1980, p. 256) sublinha que, para trabalhar o político, é preciso pensar e
avaliar a categoria da contradição, pois, como lembra, “ninguém pode manter
impunemente um discurso paralelo ao do materialismo histórico sem sofrer em
contrapartida o contragolpe”.
Pêcheux (1990) compara Spinoza com Foucault para caracterizar os modos como
os dois filósofos produzem, através de seus arcabouços teóricos, rupturas com as ciências
em suas épocas: Spinoza, como primeiro materialista da história no século XVII;
Foucault, como o precursor de uma concepção genealógica de história, que desloca todos
os conceitos estabilizados nessa área de conhecimento. O político, nessa relação, coloca-
86
se como um movimento duplo de ruptura nos campos da filosofia e das ciências sociais e
humanas.
É importante destacar a valorização que Pêcheux dá a Espinoza, pois é a partir do
“Traité des autorités théologique e politique”, que Pêcheux revisa e reformula os
conceitos de “ideologias dominantes” e “ideologias dominadas”. Ao confrontar os
modos de interpretação da Sagrada Escritura com a instituição teológica, Espinosa
denuncia as tramas que impedem o leitor de ascender ao sentido da Bíblia, sobremodo ao
seu modo de produção, o que confirma a existência da categoria da contradição como
um componente de sua teoria do sentido. Conforme diz Pêcheux, o “’axioma da
identidade’ não se aplica ao objeto ideologia; e toda a prática da luta de classes sobre o
terreno da ideologia vem confirmar que uma ideologia não é idêntica a si mesma, ela
existe sob a modalidade da divisão, ela se realiza na contradição que organiza nela a
unidade e a luta dos contrários.” (PÊCHEUX, 1990, p. 255). O que Pêcheux remonta de
Espinosa é uma prática que se submete ao político, à ideologia e, portanto, ao trabalho
de uma memória que não vai sustentar o modo como o sujeito habita a língua, como
também vai regionalizá-la na sua produtividade semântica, traduzindo práticas
heterogêneas.
Courtine (1999, p. 17) propõe o trabalho do discurso no campo político “como
uma das modalidades da memória histórica”, ressalvando que não é da língua que está
falando, mas do discurso
62
, reafirmando, com isso, as diferenças entre a lingüística e a
Análise do Discurso. A crítica de Courtine recai sobre aqueles que consideram o sujeito
falante como sujeito-origem, pleno e sem memória. Por outro lado, a sua teoria sobre a
memória discursiva resulta da existência histórica no seio de práticas discursivas regradas
pelos aparelhos ideológicos. Trata também do paradoxo com o qual se defronta o
lingüista: “Para trabalhar com a categoria de discurso, é necessário ser lingüista e deixar
de sê-lo ao mesmo tempo” (p.18). É nesse sentido que a passagem pelas teses
althusserianas sobre a ideologia, trabalhadas em AD por Pêcheux e retomadas em
Courtine, lembra aos lingüistas que “há sempre já um discurso”.
No campo político, os esquecimentos e as lembranças podem estar ligados a
vários motivos: a um sentimento de nacionalismo, ao temor de uma reedição de erros no
passado, a silêncios produzidos em virtude de coerções políticas, à fundação de uma
62
O autor traz a distinção entre ordem da língua de ordem do discurso, fruto do corte saussuriano e
prolongada no trabalho de Chomsky: “O discurso não figura mais senão como resíduo, objeto
rebaixado, cuja perda foi o preço a pagar para se construir a consistência das teorias lingüísticas”.
(COURTINE, 1999, p. 17).
87
nova prática política, a “amnésias”, por exemplo. A recorrência à memória é sempre
“repetição lacunar ou com falhas”, ou seja, o trabalho da memória é feito a partir do
presente, onde o passado instala referências daquilo que se pode falar a partir do lugar do
qual se fala.
2. 2 Da contradição à heterogeneidade
Repetidas vezes explicitamos a preocupação em conduzir nosso estudo numa
perspectiva em que pudéssemos pensar o político na linguagem e como constitutivo do
trabalho de interpretação. É por essa razão que nosso trabalho busca fazer uma leitura do
conceito de contradição na lingüística do texto, nas ciências sociais e na Análise do
Discurso, representando uma série de possibilidades. Temos como objetivo verificar de
que forma o articuladas as práticas discursivas a concepções teóricas e, por
conseguinte, caracterizar como a contradição passa a tornar-se objeto de investigações;
como o materialismo histórico e o pensamento dialético determinam o trabalho de
interpretação. Em passo posterior, no sentido de compreender a configuração e a
representação do ideológico e do político, submetemos à análise alguns recortes, os quais
vêm configurar não um olhar sobre a história, mas caracterizar saberes sobre práticas
políticas produzidas no contexto russo e no contexto brasileiro durante a Primeira
República, configurando a presença da contradição nos discursos.
Como, então, pensar a contradição na sua própria condição heterogênea?
Na teoria do texto, a contradição aparece como problema de coerência no
desenvolvimento de um tema. Uma visão relativamente detalhada dessa perspectiva es
em “Introdução aos problemas da coerência dos textos (abordagem teórica e estudo das
práticas pedagógicas)”, escrito por Charolles (1978, p. 61). A coerência textual, segundo
o autor, é garantida por quatro requisitos: a repetição, a progressão, a relação e a não-
contradição
63
. Desse modo, na perspectiva de Charolles (1997), a contradição sanciona
63
De acordo com a metarregra de repetição, um texto deve conter em seu desenvolvimento linear, para ser
coerentes, elementos de recorrência estrita, ou seja, a coerência de um texto seria garantida na retomada de
elementos já enunciados; em relação à metarregra da progressão, o autor diz que um texto para ser
coerente deve apresentar em seu desenvolvimento “uma contribuição constantemente renovada”. Segundo
Charolles, essas duas metarregras garantem a textualidade por meio de mecanismos de coesão,
estritamente lingüísticos e que permitem ligar frases ou seqüências de frases, ao passo que as metarregras,
“relação’ e “não-contradição”, são consideradas pelo autor natureza pragmática.
88
uma falta às regras constitutivas sobre as quais repousa o consenso lingüístico. Para o
autor, a desobediência a princípios lógicos, tanto no âmbito das relações do texto quanto
no âmbito do mundo a que se refere, torna o texto incoerente. Assim, nessa lógica de
raciocínio, o “bom” texto exige compatibilidade nas ocorrências e que não seja
introduzido nenhum elemento semântico que contradiga um conteúdo já posto.
No entanto, definindo a contradição dessa maneira, é possível dizer que o autor
estaria assumindo pressupostos semânticos formalistas e microestruturais que asseguram
tão-somente as relações internas do texto. O trabalho nesse campo diz respeito ao plano
da gramática do texto, que assegura a leitura no contexto, termo comumente utilizado
para designar uma unidade em conformidade com as condições que asseguram a
transparência dos sentidos.
Segundo Charolles (1997), toda manifestação transfrástica ou textual fixa seu
próprio quadro enunciativo pelo menos de duas maneiras: de um lado, produzindo seu
sistema de referência temporal e, de outro, instaurando um modo de funcionamento
discursivo determinado. Comporta um certo mero de marcas lingüisticamente
identificáveis, que fazem com que uma seqüência seja percebida globalmente, como
fazendo referência a um certo momento temporal anterior ao ato de comunicação; como
transparente do ponto de vista modal, isto é, livre de paradoxos, estabelecendo a
ingerência do sujeito da enunciação no enunciado. Inversamente, as contradições do
modo enunciativo são, geralmente, avaliadas como aberrações de coerência; são
designadas, em termos teóricos, como contradições inferenciais, pressuposicionais ou
contradições de mundo (s) e de representações do (s) mundo (s) ordinário, nas quais se
assentam o reconhecimento subjetivo de informações descritivas, que poderá se fixar
como contraditório: “Minha tia é viúva. Seu marido coleciona máquinas de costura”
64
ou
“bater numa árvore nos corredores do metrô”
65
, por exemplo.
Pensando em termos de prática discursiva, os princípios lógicos estabelecidos por
Charolles para garantir a não-contradição (no sentido de eliminar paradoxos) supõem a
homogeneização, o emprego de dispositivos lingüísticos ou metarregras, não podendo,
pois, circular enunciados nem saberes que não sejam institucionalizados, ou que escapem
ao conhecimento dos interlocutores. Trata-se, portanto, de uma dimensão situacional,
64
Exemplo (36), retirado da obra de Charolles (1997, p. 64) para ilustrar a presença de contradições
inferenciais e pressuposicionais. Conforme o autor, a contradição inferencial ocorre quando, a partir de
uma proposição, pode-se deduzir outra que contradiz um conteúdo semântico posto ou pressuposto numa
proposição.
65
Referimo-nos ao exemplo (p. 54) também explorado por Charolles (1997, p. 71) para analisar as
contradições de natureza pragmática.
89
mas normatizada, um protótipo da interação verbal baseado na relação de prescrições,
por meio das quais o texto funciona com base numa igualdade de princípios entre os
participantes. Logo, a coerência, na visão de Charolles, não se concretizaria pela
intervenção de macro e microestruturas no texto, mas porque a análise evoca uma
memória que vai muito além das estruturas sintático-semânticas. No entanto, essa
memória é regulada por regras, que restringem as condições, o trabalho dos sentidos na
linguagem.
Ao contrário de Charolles, o que propõe a Análise do Discurso de Pêcheux é que
a posição relativa ao sentido não se fixa na “intertextualidade” e que os efeitos
discursivos ocorrem de modo desigual e contraditório. Não se trata de apagar as
diferenças, mas de aceitar, de uma vez por todas, que a história se “repete” através das
memórias e que os sentidos se deslocam, porque na língua é possível estabelecer um jogo
passível de subversão. Pêcheux (1995), em Semântica e discurso, toma domínios de saberes
marxista-leninistas para mostrar que a prática discursiva é a forma como a prática
política se materializa no domínio simbólico da linguagem. É, pois, no processo
discursivo que se encontram inseridas as condições de observação da prática política.
Desse ponto de vista teórico-metodológico, cheux (1995, p. 206) nos mostra que a
prática política é um espaço permanente de observação das relações contraditórias de
reprodução e de transformação, uma vez que a sua constituição ocorre no seio de
contradições e de relações desiguais dentro da luta de classes.
Em vista disso, Pêcheux procura não o lugar (lugares) do sujeito, excluído da
lingüística estrutural, mas também mostra que o trabalho de interpretação é um contínuo
processo de construção/desconstrução. É preciso tomar tais pressupostos como objetivos
de uma filosofia marxista. Para ele (p. 207), a presença da forma-sujeito e a sua condição
de desdobramento em posições-sujeito heterogêneas nos permitem, ao mesmo tempo,
tratar das relações de contradição e antagonismo no interior das formações discursivas e,
entre elas, respectivamente, dos conjuntos de interesses conflitantes no interior de uma
mesma formação discursiva, isto é, tendo em vista a interlocução que nela se estabelece,
marcando embate permanente entre o ideológico e o lingüístico
66
.
66
Reportamo-nos ao pensamento marxista de que a autotransformação existe na história, num processo
global de transformação continuada. Em nosso trabalho, a proposta é pensar o discurso na sua ordem
própria, distinta da materialidade da língua. Segundo orientação de Gadet e Pêcheux (2000), “a língua está
ligada à existência de uma ordem própria, imanente à estrutura de seus efeitos e a de uma ordem exterior
que se remete a uma denominação que há que se observar, restabelecer ou demolir/aniquilar”.
90
No intuito de estabelecer relações entre as áreas do conhecimento e de
fundamentar essas questões relativas à prática política, implicada a noção de processo
discursivo, vale lembrar que, na perspectiva das ciências sociais, o princípio de
contradição fundamenta os estudos do materialismo histórico e do materialismo
dialético.
Pressupondo que tratar de contradição implica posturas teóricas diferentes por
parte de teorias que são sustentadas em pressupostos teóricos diferentes, o analista de
discurso trata da contradição como heterogeneidade discursiva, porque a
heterogeneidade
assinala as condições concretas da existência das contradições através das quais a história se
produz sob a repetição das memórias ‘estratégicas’. Esta referenciacão implica também
construir os meios de análise lingüística e discursiva, e supõe uma reflexão sobre o que se
trabalha na e sob a gramática, nas bordas discursivas da língua. Não é o caso, portanto, de re-
inventar o mito antilingüístico da palavra livre, bela e selvagem, que não se submete às
‘regras’.
67
(PECHEUX, 1981).
A articulação entre a lingüística e a história pode ser vista como uma tendência de
plausibilidade científica pela Análise do Discurso, não em sentido de
interdisciplinaridade, mas porque “toca” nas questões de linguagem pelo viés da política.
Contudo, tocar nesse ponto conduz-nos a outros “continentes” e torna-nos errantes de
nossas buscas, de modo que o não-dito, o esquecido, o silenciado não se tornem barreiras
nem fronteiras ao trabalho da interpretação.
Vimos que, na perspectiva da lingüística do texto, a contradição gera um
desconforto insuportável, visto que a fuga à regra pode ser entendida como uma falta
gravíssima (num ideal de completude), embora não pretendêssemos questionar essa visão
de Charolles sobre a contradição, porque o objeto de nosso estudo é o discurso, não o
texto. Fica evidente, desse modo, que, na perspectiva da lingüística do texto, o trabalho
da linguagem com algo que não seja - ou não se torne – presente ao universo estabilizado
deve ser eliminado. Contudo, o fugir à regra pode ser entendido com ênfase no caráter
ideológico, não tão-somente fugir da institucionalização de um padrão do uso lingüístico,
mas também pensar sobre o papel da exclusão do político. Isso porque, na perspectiva da
Análise do Discurso, a língua nunca pode ser concebida como transparente e os sentidos
não estão postos aprioristicamente, mas são historicamente constituídos, ou seja, de
acordo com Gadet e Pêcheux (2000, p. 63 -64), “os acontecimentos históricos afetam o
67
PÊCHEUX. “prefácio”. In: COURTINE, J-J. Analyse du discours politique. Langages, Jun. 1981.
91
espaço da língua”, e as datas que o marcam correspondem a momentos privilegiados
para a linguagem.”
Posto isso, na perspectiva das ciências sociais, a contradição é base do
materialismo dialético, que, aliado ao materialismo histórico, orienta o trabalho de
interpretação, tanto no sentido de permitir o debate, a polemização sobre as questões da
luta de classe, quanto no sentido de fornecer base para a análise das condições de
produção/reprodução/transformação no desenvolvimento das classes e de sua ação
como força histórica e política, visto que é preciso transformar, não simplesmente
reproduzir.
Embora não se possa “precisar” a totalização de uma teoria, os limites de cada
realidade só podem ser apreendidos no/pelo “real” histórico; a realidade deve estar
efetivamente articulada às contradições concretas e às mediações específicas que
constituem o “tecido” de cada totalidade. Como lembra Ianni (1984, p7), apoiado em
Marx, os fenômenos sociais, dos quais se sobressaem o econômico e o político, são
manifestações combinadas e antagônicas, visto que o trabalho das relações de produção
e do modo de interpretação dessas relações de produção desenvolve suas contradições.
Assim, conjuga-se o processo teórico-prático de análise e interpretação do capitalismo
como um modo fundamentalmente antagônico de desenvolvimento histórico. O
princípio da contradição governa o modo de pensar e o modo de ser e, “apesar de em
cada época as determinações econômicas políticas, religiosas ou outras organizarem-se e
determinarem reciprocamente de modos diferentes, as relações antagônicas ocorrem em
todas as épocas históricas, aparecem em todos os modos de produção”. (IANNI, 1984,
p.8)
Assim, o interesse no processo político por meio do qual se a metamorfose da
classe operária de classe, conforme lembra Ianni (1984, p. 21), é um movimento crucial
no processo de desenvolvimento de contradição de classes no capitalismo. Segundo o
autor, é desse modo que se constitui a autoconsciência no “espelho do outro”. As
condições de operário e de capitalista somente se revelam nas relações que um e outro
estabelecem entre si. Por isso, para Marx (apud Ianni), a economia política é a
“anatomia” da sociedade e a materialidade de análise para entender as relações de
produção. “Todo esse trabalho intelectual está orientado pela convicção de que não se
pode compreender a sociedade se não se examinam os encadeamentos, desdobramentos
e determinações recíprocas das forças produtivas, relações de produção, estruturas
políticas e modalidades de consciência”.(IANNI, 1984, p.23). O autor acrescenta: “Em
92
todas essas lutas, a sociedade capitalista vê-se forçada a apelar para o proletariado, usar
seu concurso e arrastá-lo no movimento político, de modo que a burguesia fornece aos
proletários os elementos de sua própria educação política, isto é, armas contra ela
própria”. (p. 29)
Nesse sentido, para Marx, a força individual de trabalho do operário permanece
inativa, estéril, se não se vende ao capital; ela somente pode funcionar, criar valor,
quando se articula, depois de vendida, às outras forças produtivas, nos quadros da
divisão social do trabalho, organizada também como força produtiva
, segundo
exigências da produção de mais-valia, isto é, a força individual de trabalho somente pode
funcionar em benefício do trabalhador se funcionar também em benefício do capitalista.
Esse é mais um exemplo das contradições trabalhadas neste texto.
Marx preocupa-se com as condições e as conseqüências dos antagonismos e lutas
na sociedade capitalista. Para ele, em última instância, a historicidade e a transitoriedade
do capitalismo dependem do desenvolvimento desses antagonismos e lutas. Marx
delineia a sua visão do capitalismo como uma sociedade na qual a burguesia e o
proletariado são classes sociais revolucionárias e antagônicas porque, enquanto uma
instaura o capitalismo, a outra começa a lutar pela destruição do regime no próprio
instante em que aparece. Por aparecer alienado no produto do seu trabalho
68
ao produzir
mais-valia, o proletariado lutará para suplantar essa situação; por aparecer, desde o
princípio, como a classe que se apropria da mais-valia, a burguesia começa a deixar de
ser revolucionária na ocasião em que se constitui. Nesse instante, por dentro da
revolução burguesa começa a formar-se a revolução proletária.
Na análise dialética, categorias como sistema de relações antagônicas
transformam-se em componente da consciência de classe do proletariado, que é o pólo
68
Com a entrada do trabalho como objeto de reflexão, Hegel propõe os três níveis de superação dialética.
Para ele, a superação dialética é, simultaneamente, a negação de uma determinada realidade, a conservação
de algo essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior, a matéria-prima é
negada (destruída em sua forma natural), mas, ao mesmo tempo, é “conservada”(aproveitada) e assume
uma forma nova, modificada, correspondente aos objetivos humanos (elevada em seu valor). No caso do
pão, o trigo é triturado, transformado em pasta, porém desaparece de todo, passa a fazer parte do pão, que
vai ao forno e depois de assado se torna humanamente comestível. Para Marx (1818 1883), a teoria
de Hegel estava de “cabeça para baixo”, ou seja, apesar de concordar com Hegel em que o trabalho era a
mola que impulsionava o desenvolvimento humano, não se podia ignorar a alienação produzida pelo
trabalho. As deformações são decorrentes da divisão social do trabalho e da exploração e constituem um
novo tipo de contradição na medida em que as condições criadas pela divisão do trabalho e pela
propriedade privada introduziram um estranhamento entre trabalhador e o trabalho, em que o produto de
trabalho, antes mesmo de o trabalho se realizar, pertence à outra pessoa, não ao trabalhador. Ao invés de
realizar-se no seu trabalho, o ser humano aliena-se nele; ao invés de reconhecer-se em suas próprias
criações, sente-se ameaçado por elas; ao invés de libertar-se, acaba “enrolado” em novas opressões.
93
negativo do antagonismo. “As representações sobre o real são parte necessária do real”.
Segundo Ianni, para Marx, o ideal não é senão o material traduzido e transposto na
mente do homem. (IANNI, 1984, p. 11) A interpretação, ao mesmo tempo em que
constitui, transforma o objeto, os movimentos de suas contradições; mostra que, ao
tornar transparente o encadeamento dos homens e dos produtos da sua atividade, entre
si e reciprocamente, a interpretação pode desvendar o caráter e as tendências dos
antagonismos que governam o andamento revolucionário e histórico do capitalismo.
A localização desses pontos de difração representa, pois, as zonas de abertura,
tanto nos discursos como nas práticas, para o novo que ameaça desfazer, a todo
momento, o que o sujeito e discurso dão por feitos, ou seja, no que constitui e em quem
se constitui como um efeito de unidade escapa ao sujeito, justamente porque a ilusão de
único, que se manifesta no discurso, não apaga radicalmente o que, na aparente
homogeneidade, se reprime.
Na perspectiva de Foucault (1995), o próprio conceito de unidade discursiva
assenta-se no conceito de heterogeneidade, uma vez que a unidade discursiva sofre
variação conforme os recortes que se fazem de discurso para discurso, ou seja, em
enunciados repetidos a unidade material não é a mesma. Por quê? Segundo o autor, as
margens de um discurso não são nítidas, nem rigorosamente determinadas. O discurso é
“um em rede” (p. 26). A irrupção de um acontecimento, além de qualquer começo
aparente, tem sempre uma origem secreta, e todo começo não deixa de ser um recomeço.
Em outras palavras, heterogêneos saberes cristalizados determinam quais efeitos
de sentido pertencem a um e não a outro domínio de saber, ou seja, a unidade discursiva
é formada por enunciados dispersos no tempo e que se referem a um único e mesmo
objeto, o qual não se pode individualizar, estabelecer as relações, nem descrever como
pronto, como lugar estático. Em síntese, a heterogeneidade se constrói a partir de um
campo complexo de relações com outros discursos, quer seja nas relações contraditórias,
quer seja nas antagônicas.
94
2.2.1 A relação contradição-heterogeneidade na AD
O estudo da contradição é bastante complexo, o que praticamente sustenta toda a
teoria estudada na Análise do Discurso, uma vez que esta disciplina se dedica ao estudo
do objeto chamado “discursivo”. Com o objetivo de criticar as bases da ciência
positivista e fazer ciência marxista, a contradição aponta o trabalho com os universos
logicamente não-estabilizados, ou seja, heterogêneos. Isso porque, se se considera o real
da história e o real da língua um objeto de múltiplas interpretações, não se pode tomar o
discurso como uma “ferramenta” lógica; para trabalhar com o discursivo é preciso
desconstruir a homogeneidade. A relação contraditória entre o campo da teoria e o
campo da prática é que permite pensar o político. Para a Análise do Discurso todo
discurso fundamenta-se como político e é também atravessado pela contradição. Desse
modo, apoiados em Pêcheux, podemos estudar categorias de análise, desde paráfrase e
polissemia a os modos de subjetivação (identificação, contra-identificação e
desidentificação)
69
.
Courtine (1982), apoiado nas reflexões de M. Pêcheux (1975), lembra-nos que o
discursivo materializa o contato entre o ideológico e o lingüístico e que a representação,
no interior da língua, produz efeitos das contradições ideológicas que, inversamente,
manifestam a existência da materialidade lingüística no interior da ideologia. Assim,
quando se fala em discursivo, deve-se evitar a redução do discurso à análise da língua,
ou sua dissolução no trabalho histórico sobre a ideologia como "representação";
demanda uma outra relação com o campo teórico, a qual não é a mesma que a língua
estabelece. Logo, a contradição é o trabalho teórico-prático do discurso, isto é, intervém
na representação do real histórico na medida em que as formações ideológicas
constituem-se de modo desigual e contraditório. É nesse sentido que Courtine diz que
uma FD não é "um só discurso para todos", tampouco "cada um com seu discurso", mas
deve ser pensada como "dois (ou mais) discursos em um único", ou seja, a contradição
se entre as diferentes posições-sujeito de mesma FD. No caso dos discursos que
estudamos, examinamos a contradição articulada ao trabalho de memória e do
interdiscurso.
69
As noções “paráfrase”, “polissemia” e “modos de subjetivação” encontram-se atreladasàs relações de
contradição e de antagonismo.
95
O autor propõe uma redefinição da noção de FD no sentido de estabelecer
relações do contato entre FD com as formações ideológicas, cuja contradição desigual as
une e as divide ao mesmo tempo. Qual é a condição de contradição que se pode pensar
no funcionamento de uma Formação Discursiva se o modo de reprodução não ocorre
de forma igual? Os efeitos discursivos da hegemonia ideológica evidenciam as formas
heterogêneas, segundo as quais no interior de uma FD dominada, elementos pré-
construídos produzidos são "interiorizados"? De que modo os saberes heterogêneos são
acolhidos, absorvidos, reconfigurados, ou, ao contrário, denegados ou, mesmo,
ignorados?
Zandwais (2005, p. 145), apoiada em Pêcheux (1988), “trata do modo como o
sujeito se desdobra como efeito complexo de relações desiguais, contraditórias e
sobredeterminadas que permitem sua condição de sujeito interpelado e, ao mesmo
tempo, como enunciador, tornando-se sujeito à/de sua palavra”. A autora nos lembra da
importância de tomarmos como base “o fato de que as FDs mantêm entre si relações de
determinação dissimétrica, de modo a construir um trabalho incessante de
reconfiguração, o qual pode desdobrar-se como modalidades de recobrimento-
reprodução-reinscrição”(ZANDWAIS, 2005, p. 145), uma vez que o sujeito interpelado
se encontra falado por determinações históricas e pela ordem do simbólico numa forma-
sujeito e transforma-se num sujeito-enunciador que toma posições a partir do lugar em
que se reconhece como sujeito, colocando-se sob diferentes formas de “captura” ao
longo de sua história.
É, pois, sublinhando essas passagens que, com base em Pêcheux, nos interessa
trazer aqui o modo como o sujeito se desdobra como efeito do complexo de relações
desiguais, contraditórias e sobredeterminadas que permeiam sua condição de sujeito
interpelado.
Pêcheux (1969) refere-se ao sujeito como um lugar determinado na estrutura
social, dizendo que este funciona nos processos discursivos como uma série de formações
imaginárias; por isso, é um sujeito social e ideológico e, portanto, deixa de ser individual.
Em momento posterior, Pêcheux e Fuchs (1975) apresentam uma teoria da subjetividade
de natureza psicanalítica, dizendo que esse sujeito social é dotado de inconsciente,
passando, portanto, a ser caracterizado como um sujeito social, ideológico e
inconsciente.
É também em Pêcheux (1975) que esse sujeito histórico do discurso é
caracterizado como um efeito e é chamado de forma-sujeito, ou seja, o indivíduo, ao ser
96
interpelado ideologicamente em sujeito, identifica-se imaginariamente com a “forma-
sujeito” de uma “formação discursiva”, entendida como o domínio de saber constituído
de enunciados discursivos que representam um modo de relacionar-se com a ideologia
vigente, controlando o que pode e deve ser dito, mas também o que não pode nem deve
ser dito. Indursky, apoiada em Pêcheux (1975), lembra que esse sujeito atua sob duas
ilusões
70
: pensa ser a fonte de seu dizer e responsável pelo que diz. “O sujeito pensa
assumir posições pessoais, quando, de fato, assume posições afetadas ideologicamente”
(INDURSKY, 1998, p. 115).
Conforme Indursky (1998), embasada em estudos de Pêcheux (1988) sobre os
processos de imposição/dissimulação que constituem o sujeito, esse sujeito se fragmenta,
se divide, pois, ao se identificar com a forma-sujeito, é duplamente afetado: em seu
funcionamento individualizado, pelo inconsciente (Freud), e em seu funcionamento
social, pela ideologia (Marx e Althusser): “O sujeito, ao se relacionar com a forma-
sujeito, assume diferentes posições de sujeito, as quais vão desde a plena identificação
com a forma-sujeito, refletindo o saber de sua formação discursiva, até divergir desse
domínio de saber, instaurando a contradição. O dizer do outro é constitutivo do seu
dizer”. É, pois, desse modo que o sujeito, na função de dissimular sua própria existência,
produz uma série de evidências subjetivas, de tal modo a assumir diferentes formas de
representação; torna-se, igualmente, heterogêneo.
Em Semântica e discurso Pêcheux (1988) aborda as relações entre forma-sujeito e
modalidades de subjetivação, tratadas como categorias analíticas, passíveis de
observação e de questionamento em face de suas intersecções com acontecimentos
históricos que se discursivizam na linguagem. Para o autor, a prática discursiva é uma
forma de materialização da prática política no domínio simbólico da linguagem, porque
se “inscreve no complexo contraditório-desigual-sobredeterminado das formações
discursivas” (PÊCHEUX, 1988, p. 213). Ainda conforme citação de Pêcheux, feita por
Zandwais (2005, p. 145), a materialidade da instância ideológica dá-se pelas condições
históricas reflexas nas práticas discursivas, vindo subtrair dessa relação a
70
Lembramos que a inscrição do sujeito numa determinada formação discursiva pelo viés da ilusão é
desenvolvida por Pêcheux (1975) como esquecimento n. 1 e n.2. Em relação ao primeiro modo de
inscrição esquecimento n.1 – o sujeito (inconsciente) acredita ser a fonte do sentido, ignorando a
existência de um discurso socialmente preexistente por trás da aparência de livre enunciação de um
indivíduo. no segundo modo de inscrição do sujeito em uma dada formação discursiva esquecimento
n. 2 – o sujeito (da enunciação) supõe controlar plenamente o seu dizer, mostrando-se capaz de reformular,
produzir paráfrases.
97
homogeneidade, a transparência e a circularidade dos efeitos da prática política no
campo discursivo”.
Para tratar das diferentes formas de representação do sujeito enunciador no
discurso, Pêcheux trabalha com a noção de formação discursiva, que compreende
determinados domínios de saberes. Sobre o modo de relacionar-se com a ideologia
vigente numa dada formação discursiva, Pêcheux diz que as “tomadas de posição”
representam os desdobramentos, as formas de identificação com a forma-sujeito. Essas
“tomadas de posição”, portanto, representam o modo como o sujeito enunciador se
identifica e se relaciona com saberes da formação discursiva em que se inscreve.
Na primeira modalidade, segundo Pêcheux, há a identificação plena entre os
saberes que identificam o sujeito-universal e sujeito do discurso (enunciador). O modo
como o sujeito retorna ao dizer do outro é realizado pelo livre assujeitamento do sujeito e
sem resistências. Para Zandwais (2005),
um exemplo pico dessa modalidade de subjetivação seria o do militante que reproduz, por
exemplo, ‘as palavras de ordem’ do seu Partido, para sustentá-las como argumentos em seu
discurso, sem desconfiar de que as palavras que toma como suas não são propriamente suas,
ou ainda das possíveis brechas a que tais argumentos possam remeter. (p. 146)
A segunda modalidade, ao contrário, caracteriza uma relação tensa entre o sujeito
enunciador e o sujeito universal. O retorno ao dizer do outro emerge sob a forma de
dúvidas, questionamentos, contestações e resistências. É travada uma polêmica através
do sujeito enunciador com o sujeito do universal, o que Pêcheux denomina de processo
de contra-identificação entre o sujeito-enunciador e o sujeito universal, ou seja, a sua
“captura”, nos termos de Pêcheux, não é plena. Ficam assinaladas a diferença e a
contradição, tanto em relação à forma-sujeito quanto em relação aos saberes da formação
discursiva. Quanto a essa modalidade, Zandwais chama atenção para o exemplo de
Pêcheux em relação às práticas políticas reformistas e revisionistas, o conhecidas no
seio dos partidos populistas, dizendo que, “ciclicamente, se produzem no interior de uma
ou outra FD, como que para reordená-la, reorientá-la, em face das lacunas que o sujeito
diz reconhecer, de forma mais ou menos consciente, com base nas relações conflitantes
que mantém com os saberes próprios desta FD”. (ZANDWAIS, 2005, p. 147).
A terceira modalidade inviabiliza qualquer tipo de “captura” visto que o sujeito
enunciador rompe com os saberes da formação discursiva em que se inscreve e, por
conseqüência, com a forma-sujeito, passando a identificar-se com outra formação
98
discursiva e sua respectiva forma-sujeito. Esse processo, segundo Zandwais (2005),
requer trabalho de transformação-deslocamento da forma-sujeito, não de sua pura e
simples anulação, produzindo o efeito de desidentificação. Em contrapartida, ao se
instaurar essa nova ordem na produção de conhecimento, os conceitos que devem
circular “devem ser do tipo novo” e o retorno ao dizer do outro aparece marcado em
posições-sujeito antagônicas e em FDs também antagônicas.
Nas palavras de Zandwais,
Pêcheux caracteriza o processo de desidentificação, ancorado no próprio campo da prática
política, como um trabalho de desarranjo-rearranjo da forma-sujeito, onde a ideologia, em
uma perspectiva metafórica, funciona contra e sobre si mesma, para dar sustentação a uma
prática nova, em virtude de os saberes que compreende uma determinada forma-sujeito não
responderem mais à necessidade de constituição dos interesses, dos objetivos antagônicos que
permeiam o modo de produção/reprodução/transformação das relações de produção.
(ZANDWAIS, 2005, p. 148).
Tais considerações a respeito das relações entre a forma-sujeito e modalidades de
subjetivação serão entrelaçadas com questões vinculadas ao campo da prática política
proletária no Brasil da Primeira República, mais especificamente, na segunda parte deste
trabalho, com o intuito de mostrar, nas formas de desdobramento do sujeito, as
contradições que se solidificam no seio das práticas político-dicursivas da classe
proletária, quando em defesa de objetivos e métodos da organização sindical brasileira.
Assim, tomaremos como ponto de partida para nossa reflexão domínios de saberes da
prática política revolucionária russa, considerando a importância de tais domínios de
saberes inscritos em práticas político-sindicais no Brasil da Primeira República.
Teoricamente, do objeto discurso, inscrito na relação da língua com a história,
constrói-se, por um lado, o conceito de formação discursiva e, por outro, a distinção entre
processos discursivos e base lingüística. Quanto à formação ideológica, de acordo com Pêcheux
(1975), pode ser caracterizada como um elemento suscetível de intervir como uma força
confrontada a outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação
social num dado momento; cada formação ideológica constitui, assim, um conjunto complexo de
atitudes e de representações que não são individuais nem universais, mas se relacionam mais ou
menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras. E nesse sentido,
apoiado em P.Henry (1975, 94), Courtine define os processos discursivos como a origem
da produção dos efeitos de sentido no discurso, onde a língua pensada como uma
instância relativamente autônoma é o lugar material onde se realizam os efeitos de
sentido.
99
Em outros termos, conforme Courtine (1982), todo discurso "concreto" é
duplamente determinado: de um lado, pelas formações ideológicas que relacionam esse
discurso a formações discursivas definidas; de outro, pela autonomia relativa da língua,
que somente significa em relação a uma exterioridade histórico-social. Assim, somente
pela materialidade do discursivo é que se podem apreender as relações de antagonismo,
aliança, recobrimento, absorção, visto que, numa dada conjuntura da história de uma
formação social, caracterizada por um certo estado das relações sociais, sujeitos falantes,
tomados na história.
Desse modo, a definição do político passa, obrigatoriamente, pela análise de uma
formação discursiva, pelas relações que se estabelecem entre uma formação ideológica e
formações discursivas. A contradição é o trabalho teórico-prático do discurso, isto é, o
trabalho da contradição intervém na representação do real histórico na medida em que as
formações se constituem de modo desigual da contradição entre elas. É nesse sentido que
Courtine encontra na Arqueologia do saber um eco do lugar central à questão da
contradição, no sentido de que o discurso mantém relação de confluência com os
processos discursivos, sob a forma de descontinuidade, como diz o autor, sem que se
possa contorná-la”.
Courtine (1981) mostra que a formação discursiva não pode ser vista como um
bloco fixo, repetido, um conjunto de discursos isolado e fechado sobre ele mesmo, nem
como um conjunto puramente contrastivo, conforme vimos na análise do discurso do
Partido Comunista Francês, mais precisamente, do discurso comunista endereçado aos
cristãos.
Convém lembrar que, para Pêcheux e Fuchs (1975), as formações ideológicas
comportam como um de seus componentes uma ou várias formações discursivas interligadas
que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de
um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc...), a partir de uma posição dada em uma
conjuntura[...] Courtine (1981) considera uma FD como uma unidade dividida, uma
heterogeneidade em relação a si mesma: a delimitação de uma FD é fundamentalmente
instável; não consiste num limite traçado definitivamente, separando um interior e um
exterior de seu saber, mas inscrito entre diversas FD como uma fronteira que se desloca em
função da problemática da luta ideológica.
É nessa perspectiva que o autor propõe uma redefinição da noção de FD no
sentido de estabelecer relações com as formações ideológicas. Antes se preciso
100
caracterizar os efeitos discursivos da hegemonia ideológica, evidenciando as formas
segundo as quais no interior de uma FD dominada elementos pré-construídos no
interdiscurso são "interiorizados" no interior da FD, isto é, acolhidos, absorvidos,
reconfigurados, ou, ao contrário, denegados, ou mesmo, ignorados.
No intuito de sublinhar o que acabamos de abordar nesta seção, que visou ao
estudo da relação de contradição e de heterogeneidade como categorias analíticas, em
face do materialismo histórico e dialético, o capítulo que segue irá tomar as sds que serão
objetos de análise desta tese em três momentos históricos distintos. Traremos seqüências
discursivas para ilustrar como os saberes se organizam e se reorganizam em torno das
Formações Discursivas de Referência, isto é:
a) a formação discursiva anarquista russa (FDAR) durante o período 1880 a 1917,
antes da Revolução Russa, período em que o proletariado começou a receber orientação
para uma prática revolucionária e para lutar contra as explorações do governo tzarista;
b) a formação discursiva anarcossindicalista brasileira (FDAB) durante a Primeira
República, período de formação do movimento sindical no país e de grande manifestação
política do proletariado, como conseqüência das condições históricas e da vinda de
estrangeiros para o país;
c) a formação discursiva anarcossindicalista brasileira (FDAB) na Primeira
República, período em que a classe operária, em virtude do aparelho jurídico e policial,
começa a silenciar.
Após tais reflexões de ordem teórica, propomo-nos a intercalá-las com reflexões
sobre procedimentos analíticos e ilustrações preliminares de análises.
101
3 Condições de Formação dos Discursos e
Procedimentos Metodológicos
...apareceu uma vontade de saber (...) que impunha ao
sujeito conhecedor (e, de algum modo, antes de toda
experiência) uma certa posição, um certo olhar e uma
certa função....
Michel Foucault
Tendo em vista as reflexões já produzidas neste estudo e levando em conta que os
sentidos enunciados através da materialidade lingüística emergem das condições
histórico-sociais que determinam as posições que os sujeitos devem ocupar nas relações
de classe, a partir daqui passamos a explicitar as condições de formação das formações
discursivas que serão objeto de análise desta tese.
Na Análise do Discurso, uma formação discursiva representa um espaço de
produção de saberes, o qual funciona como um princípio de organização metodológica
que orienta o trabalho do analista, de tal modo que o corpus, no qual reside a
materialidade da análise, é uma instância provisória e em constante construção. Essa
construção decorre de movimentos do analista, aos quais Pêcheux denominou de gestos
de leitura subjacentes à construção do arquivo. Nas palavras de Pêcheux (1994, p. 57),
seria do maior interesse reconstruir a história deste sistema diferencial dos gestos de leitura
subjacentes, na construção do arquivo, no acesso aos documentos e a maneira de apreendê-los
nas práticas silenciosas da leitura “espontânea” reconstituíveis a partir de seus efeitos na escritura:
consistiria em marcar e reconhecer as evidências práticas que organizam estas leituras,
mergulhando a “leitura literal” (enquanto apreensão-do-documento) numa “leitura”
interpretativa – que já é uma escritura. Assim começaria a se constituir um espaço polêmico das
maneiras de ler, uma descrição do trabalho do arquivo enquanto relação do arquivo com ele-
mesmo, em uma série de conjunturas, trabalho da memória histórica em perpétuo confronto
consigo mesma”.
Assim, a organização do arquivo, segundo Pêcheux, constitui-se num gesto de
interpretação, sendo entendida como um efeito, ou seja, o trabalho do analista é efeito de
um ato simbólico. O gesto do analista estabelece uma relação de conflito entre o campo
teórico e o campo da prática. Essa relação entre o dispositivo teórico e o campo da
102
prática permite que o analista trabalhe as fronteiras das formações discursivas. Daí por
que o papel da AD é desconstruir a suposta evidência dos sentidos para que sejam vistos
fora do emaranhado em que foram constituídos e de sua textualização enquanto
produtos acabados, cabendo ao analista a reconstituição do caminho inverso pelo qual se
configurou essa ilusão do “sentido lá, de sua evidência” (ORLANDI, 1996, p. 84).
Courtine (1981, p. 24) afirma que, na constituição de um corpus
(independentemente de seu grau de complexidade), parte-se dum universal discursivo,
entendido como um conjunto de discursos que podem ser objeto de análise e podem
servir de referência, constituindo um tipo específico de materialidade. Neste estudo, os
tipos de discursos que focalizamos foram os discursos de cunho político e jurídico que
circularam em espaços discursivos heterogêneos: a) no contexto russo (antes de 1917), o
discurso anarquista; b) no contexto brasileiro da Primeira República (1889 1930), o
discurso anarcossindicalista; c) ainda no contexto brasileiro, durante a Primeira
República, o discurso jurídico. Este é o nosso espaço discursivo.
Uma vez delimitado o espaço discursivo, o próximo passo da pesquisa foi dividir
a análise em blocos discursivos, cada um correspondendo à ocorrência de saberes que
circulam nas FDs em exame, as quais são contraditórias e antagônicas. Assim, cada
bloco discursivo é constituído por seqüências discursivas em que o sujeito-enunciador se
contra-identifica ou se desidentifica com o sujeito do saber de FDs que toma como
antagônico, a partir de seu lugar de filiação histórica. Salientamos, no entanto, que não
pretendemos dar conta de todos os efeitos de sentido, que o nosso trabalho também é
um “gesto de interpretação”, e o analista é interpelado em sujeito pelas ideologias.
Portanto, seja no exame de seqüências discursivas oriundas de condições de produção do
contexto russo (sujeito anarquista), seja no exame de seqüências discursivas que
identificam saberes inerentes às práticas discursivas de sujeitos engajados na luta pela
emancipação do operariado brasileiro (sujeitos anarquistas e anarcossindicalistas),
restringimos o alcance de nossas análises a determinadas temáticas: a validade social da
lei para o proletariado, a repressão às organizações e aos movimentos sindicais.
Procuramos analisar o sujeito dividido através do modo como ele é falado pela lei e, a
partir daí, fala sobre ela, tendo em vista que as forças proletárias encontram-se em
posições conflitantes diante das coerções a que são submetidas pelo aparelho jurídico.
103
Cabe ressaltar ainda que nosso trabalho cumpre a seguinte exigência: análise de
determinadas formações discursivas
71
da classe operária brasileira no período da Primeira
República e dos efeitos de sentidos a partir dos dispositivos jurídicos selecionados. Pela
desigualdade na representatividade política dentro do movimento operário, esse
procedimento nos conduziu a discursos heterogêneos na crença de que pudessem nos
ajudar a fazer um percurso a partir de suas condições de produção, a fim de podermos
perceber em que pontos os saberes próprios das FDs - anarquista russa,
anarcossindicalista brasileira - convergem, antagonizam-se, geram silêncios, reiteram o
mesmo, rompem entre si e constituem um lugar de negação da relevância social da lei.
Ainda, o critério para a organização dos recortes
72
foram as posições-sujeito que
os sujeitos enunciadores de FDs em análise colocam em perspectiva a partir dos
discursos. Lembramos que uma posição-sujeito designa, segundo Courtine (1981), a
relação de identificação entre o sujeito enunciador e o sujeito universal de uma FD.
Considerando que trabalharemos com FDs antagônicas, neste estudo cada bloco toma
como objeto de investigação FDs que se produzem em momentos históricos e espaços
diferentes, a saber:
a) no Bloco I - saberes da formação discursiva anarquista russa (FDAR) no
período de transição do século XIX para o século XX, tendo em vista que as FDs
anarquista e anarcossindicalista brasileiras tomaram como referência a FD anarquista
russa a fim de constituir sua prática política revolucionária;
b) no Bloco II – Seção A - saberes da formação anarcossindicalista brasileira
(FDAB) no período da Primeira República, oriundos dos saberes de movimentos
operários russo e francês, que constituíram a base para a organização sindical
revolucionária, cuja interpelação do grupo dá-se via saberes da FD jurídica;
c) no Bloco II – Seção B - saberes da formação discursiva anarcossindicalista
brasileira (FDAB) durante a Primeira República, que constituíram a base para a
fundação da COB e as relações de antagonismo com saberes da formação discursiva
jurídica.
71
Vale lembrar que não tomaremos como objeto de investigação os saberes da FD comunista brasileira,
instituída a partir da década de 1930 e decorrente de uma ruptura no seio da FD anarquista.
72
Reportamo-nos a Orlandi (1996, p. 139), que define o recorte como uma unidade discursiva: “fragmento
correlacionado de linguagem e situação”. O recorte remete à idéia de incompletude, que é a condição da
linguagem.
104
Desse modo, optamos, na realização deste estudo, por uma seleção de sds
pertencentes às FDs, tanto no contexto russo como no contexto brasileiro, bem como os
saberes produzidos na formação discursiva jurídica (FDJ), que permitem identificar as
relações de antagonismo existentes entre essas FDs e a FD jurídica. As FDs selecionadas
compreendem as posições de confrontação dos interesses do proletariado e os interesses
da lei nos períodos que antecederam a Revolução Russa (bolchevique)
73
e a Primeira
República no Brasil e que põem em circulação e ressignificam ou apagam saberes
próprios da formação discursiva anarquista russa, tais como o princípio de liberdade da
autocracia, a resistência contra forças coercitivas das classes dominantes, a liberação das
forças hegemônicas das estatais.
A partir de tais sds selecionadas, portanto, faz-se necessário observar saberes que
circularam na formação discursiva jurídica (FDJ) e que permitem estabelecer relações
comparativas que possibilitam identificar os tipos de percursos realizados pelas FDs,
determinando-se, em última instância, não contradições, antagonismos, nas suas
trajetórias históricas, mas a representação do lugar do outro, tendo em vista a circulação
de vozes e de posições contrárias à coerção institucional.
Importa salientar que nas condições de formação emerge o que faz parte do
interdiscurso. De acordo com Courtine (1982, p. 253), as condições de formação podem
ser entendidas como a caracterização das condições interdiscursivas que determinam os
processos discursivos de formação, reprodução e transformação dos enunciados no seio
de uma formação discursiva de referência (FDR).
Se as condições de formação das FDs apontam para as características
interdiscursivas que dominam os processos discursivos, é, então, no nível do
interdiscurso que localizamos os pré-construídos, a memória e o esquecimento, os
conjuntos de enunciados que constituem os saberes próprios de uma FD. Acrescente-se: é
também a partir interdiscurso que as formulações feitas em algum lugar e esquecidas
voltam a circular, não só dando uma nova configuração aos sentidos, mas também
colocando em evidência as relações estabelecidas entre o sujeito enunciador e o sujeito
universal. Portanto, é a partir das relações contraditórias estabelecidas entre os sujeitos
enunciadores e o sujeito universal das FDs e a partir das diferentes posições-sujeito
ocupadas por esses sujeitos e que definem efeitos discursivos, que tomaremos como
objeto de análise.
73
Como não havia liberdade política, segundo os bolcheviques, defendia-se a revolução proletária,
centralizada e submetida à rigorosa disciplina.
105
Dessa maneira, na tentativa de resgatar, de uma perspectiva discursiva, os
processos discursivos fundadores dos saberes que identificam as FDs da classe operária
brasileira, passaremos, a seguir, às condições de formação das formações discursivas
envolvidas neste estudo, ou seja, FDAR, FDAB, FDJ.
3.1 Condições gerais de formação das lutas operárias
A idéia de que a classe operária é uma classe em formação materializa-se, no
mundo inteiro, na própria história dos movimentos operários, enquanto classe que
organiza e constrói um percurso de expressão política e social.
O crescimento do número de trabalhadores em proporção superior ao aumento da
oferta de trabalho provocou, no contexto europeu, o surgimento de doutrinas e teorias
que buscavam justificar e regular a ordem capitalista burguesa. Desde a época da
libertação dos servos, havia começado a surgir na Rússia urbana uma nova classe de
trabalhadores. Semelhante ao sistema francês (1889), o sindicalismo revolucionário, na
Rússia, herdou de Proudhon e de Bakunin, iniciadores da tradição anarquista, um ódio
irreprimível à centralização do Estado czarista. Desse modo, a formação discursiva
operária na Rússia, no período que antecede a Revolução de 1917 constrói uma realidade
simbólica sobre o Estado, a Igreja, as instituições e define o papel dessas instituições na
sociedade como corrosivo.
No caso do nosso trabalho, para a análise de discursos da formação discursiva
anarquista russa (FDAR), deslocam-se saberes:
a) O primeiro saber a que fazemos referência é a negação de política partidária - o
apartidarismo - com vistas a legitimar condições de transformação dos meios de
sobrevivência da classe proletária. Nessa perspectiva, o indivíduo deveria ser educado
para agir livremente em sociedade, sem ferir os direitos do outro. Qualquer autoridade
era rejeitada sob a prerrogativa de constituir-se em fonte de corrupção e de violência.
106
b) O segundo saber, ao qual queremos dar ênfase, como um saber próprio da
formação discursiva anarquista, formado a partir da Primeira Internacional
74
, consiste na
solidariedade na organização dos operários em ligas, em associações e em confederações.
Nesse espaço, os anarquistas debateriam propostas e estratégias de luta e, dessa maneira,
criariam base para a sustentação de formação de uma sociedade livre. Entretanto, para
chegar a esse estágio, o proletário deveria receber educação política. A união dos
trabalhadores na luta contra o capitalismo e todas as suas formas de exploração seria
uma forma de pressão e sustentação para a criação de estratégias como: a) a ação de luta
direta como forma de auto-representação, pela classe proletária, de seus próprios
interesses; b) a execução de práticas políticas não-pacíficas; c) a excelência da unidade na
diversidade em defesa dos interesses proletários. É essa herança trazida do anarquismo
russo para o Brasil, no interior da FDAB, que será analisado no segundo bloco.
Em relação aos saberes anarcossindicalistas, Zandwais (2005a, p.16), apoiada em
Loppreato (2000), destaca Ferdinand Pelloutier como uma figura mais expressiva do
sindicato francês durante os anos de sua formação, no início da década de 1890, devido ao grande
número de trabalhadores que se filiaram aos sindicatos. Em contrapartida, os anarquistas
buscavam destruir o sistema capitalista para inaugurar uma sociedade sem Estado, cuja
economia seria dirigida por uma Confederação Geral dos Sindicatos e com ramificações
no mundo todo. De acordo com Zandwais (2005a), Pelloutier, juntamente com Girard,
em Qu'est-ce que c'est la grève générale, propõe ao proletariado francês a greve geral como
estratégia política de luta direta e com caráter revolucionário, tendo esta prática política
influenciado na adoção, pela Confederacion Génèrale du Travail (CGT), que se estende
para outros países e que, no Brasil,
passa também a ser objeto de debate, entre militantes anarquistas, anarcossindicalistas,
socialistas e o operariado, por ocasião da fundação da Confederação Operária
Brasileira(COB) em 1906, que se institui através da realização do I Congresso Nacional
Operário do país, tendo sido este logrado a partir de um discurso de aliança entre militantes
anarcossindicalistas, socialistas e anarcocomunistas. (ZANDWAIS, 2005 a, p. 16)
Vale lembrar que, no Brasil da Primeira República, os anarquistas e
anarcossindicalistas concentram sua atuação na educação do proletário, feita por meio
74
A Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) Primeira Internacional ocorreu em Londres em
1864, como federação das organizações de resistência dos trabalhadores, em busca do fortalecimento das
lutas contra o capitalismo. Segundo Sferra (1987, p. 14), “a associação de todas as tendências durou
pouco”. Sob a liderança de Bakunin, os anarquistas expressaram suas divergências em relação à tendência
centralista (ou comunista), adepta da política partidária, durante o congresso da Primeira Internacional
ainda, em 1872, e passam a defender uma sociedade livre, igualitária, fundada não no princípio de
autoridade, mas no princípio da livre federação.
107
da propaganda escrita e oral dentro e fora dos sindicatos. Apesar da forte repressão
policial, circulavam no país jornais, livros, revistas, faziam-se conferências, comícios, no
sentido de esclarecer o trabalhador sobre a sua condição de explorado e também para
orientá-lo sobre os meios de que poderia dispor para lutar contra todo tipo de exploração.
c) O terceiro saber, que consiste no autogerenciamento, delimita saberes que
compõem as condições de organização das Internacionais Socialista e Anarquista e
determinam a identidade do Sujeito anarquista em relação à do Sujeito socialista (de
tendência marxista), envolvendo as relações entre domínios de saberes contraditórios e
até mesmo antagônicos entre as FDs anarquista e marxista. Esse saber o
autogerenciamento identifica-se com os saberes das FDs anarquista russa,
anarcossindicalista brasileira e diferencia-se da proposta do marxismo e do socialismo
russo após a Revolução Russa (Bolchevique) de 1917. Os sindicalistas marxistas, que
concebiam a luta de classes como a autêntica essência do marxismo, pregavam “a
ditadura do proletariado” e a chegada destes, através do aparelho, partidário ao poder
para combater o capitalismo. os anarquistas russos pregavam a luta de classes, cuja
força residia na solidariedade cultivada dentro da própria classe, através da ação direta
(boicotes, sabotagens, resistência, desobediência civil, desrespeito às leis e extinção do
poder, sobretudo as greves), sem qualquer vínculo com partidos políticos. Logo, a
divergência entre os marxistas e anarquistas está no modo como a luta de classes é vista
no campo da prática.
A autogestão, um dos princípios anarquistas, significa o controle da produção e da
distribuição de mercadorias pelos trabalhadores sem a intervenção do Estado. Nesse
sentido, a gestão social do trabalho no interior de uma determinada atividade produtiva
que buscava equilibrar a sua natureza coletiva com a reprodução dos mecanismos
econômicos capitalistas não se encontrava na tomada do poder, como defendiam os
marxistas.
Para Kropotkin, o trabalho dos anarquistas era instruir, orientar e alertar sobre a
exploração dos governos e sobre os perigos das leis, sobretudo da repressão exercida
pelos aparelhos ideológicos de Estado. Para os anarquistas, a solidariedade existe à
medida que os trabalhadores, num amplo espaço educativo e formativo, promovem um
processo de conscientização da importância do papel do indivíduo no coletivo e passam
a questionar a realidade atual na direção de uma sociedade baseada na autogestão.
108
Por outro lado, as práticas coletivas e as reflexões produzidas pelo anarquismo
mundo afora revelam o esforço, por parte dos setores dirigentes e pretendentes à direção
da sociedade, que sempre trabalharam para apagar e silenciar todo o conhecimento sobre
as idéias e contribuições anarquistas, como também toda a memória de experiências
contrárias ao princípio de autoridade.
Neste contexto, alguns segmentos sociais empreenderam luta intensa e crítica das
novas instituições aristocráticas e sacras, colocando em voga as diferenças. Uma delas
diz respeito ao campo do imaginário em geral e, neste domínio, do conhecimento em
particular. O esforço para derrubar a figura suprema de poder na Rússia (leia-se tzar)
lançou bases para a elaboração de um conhecimento humano avesso aos dogmas
mencheviques, evidenciando grande tendência pela desconstrução do social.
Para Malatesta, por exemplo, para que a Revolução libertária fosse concretizada,
não existia outro lugar melhor do que as associações operárias, em especial os sindicatos.
Nos sindicatos, o trabalhador encontraria seus companheiros, aprenderia a cooperar com
os outros. As lutas por reformas e melhorias imediatas, realizadas por meio de greves,
tanto as parciais quanto as gerais, fariam com que os trabalhadores adquirissem,
gradativamente, a consciência do papel revolucionário a ser desempenhado na sociedade
capitalista. Essa prática prepararia e concederia a experiência necessária de que o
proletariado precisava para realizar a revolução, iniciada por amplas greves, que se
generalizariam por toda a sociedade e seriam precedidas por atos insurrecionais, a
burguesia seria expropriada, os meios de produção socializados e diretamente
administrados pelos trabalhadores através de órgãos e associações voluntárias, como os
comitês de fábrica e os conselhos operários. Esses, livremente federados, articular-se-iam
com a finalidade de substituir o Estado, que, depois da revolução, seria destituído da
tarefa de gerir o corpo social.
Tal como lembra George Woodcock, o movimento sindical, sobretudo na França,
começou a se modificar a partir de 1884, quando o governo francês adotou uma cláusula
na nova constituição que permitia ao movimento operário criar organizações para
defender seus interesses econômicos. O sindicato acabou ganhando um caráter
revolucionário. Segundo Woodcock, “o sindicalismo difundiu-se para além França e em
grande parte substitui o comunismo anarquista na posição libertária dominante, não
apenas nos países latinos, mas também na Alemanha, Holanda, Escandinávia”
(WOODCOCK, 2.002., p.150).
109
As lutas sociais em que os anarquistas se envolveram tiveram seu registro feito por
militantes diretamente envolvidos e por outros interessados em arquivar e organizar
documentos e informações até então dispersas. Nesse sentido, vale lembrar que
Proudhon, Bakunin, Stirner, Reclus e Kropotkin desenvolveram reflexões que
orientaram os trabalhadores do mundo inteiro. As discussões e programas de incentivo à
educação integral marcaram a história das lutas sociais no mundo, servindo de
referencial para os movimentos sociais em diversos países. No Brasil, rica e diversa foi a
experimentação nesta área. Figuras como Edgard Leuenroth (1881-1968) e Edgar
Rodrigues (1921) representam essa militância envolta em cuidados de colher, organizar,
compilar e preservar uma imensidão de informações contidas em cartas, livros, panfletos,
documentos de congressos e encontros de anarquistas, boletins, depoimentos pessoais
dos militantes que participaram efetivamente de movimentos anarquistas
75
.
Da herança anarquista russa, Woodcock (1983, p. 196 208) diz que Tolstoi foi o
mais exaltado. Tolstoi leu Proudhon, Bakunin e Kropotkin, dedicando-se a um projeto
de reforma agrária na Rússia. O princípio de ajuda mútua de Kropotkin era muito
semelhante à doutrina do “amor” de Tolstoi. Do contato com tribos montanhesas e com
os cossacos aprendera muitas virtudes. A simplicidade próxima da natureza e longe da
corrupção urbana é lição que se assemelha à experiência de Kropotkin na Sibéria. A
eficiência fria e desumana de uma execução pública numa guilhotina em Paris (1957)
levou Tolstoi a repensar a simbolização do governo, definindo-o como uma conspiração
contra o cidadão.
Posso entender as leis morais e religiosas, não obrigatórias para todos, mas que conduzem ao
progresso e prometem um futuro mais harmonioso [...] Mas as leis políticas parecem-me
mentiras tão terríveis, que não consigo entender como uma delas possa ser melhor ou pior
do que qualquer das outras... Daqui em diante, jamais voltarei a servir qualquer governo,
em nenhum lugar. (TOLSTOI apud WOODCOCK, 1983, p. 198) - Grifo nosso.
Para ele, as instituições de modo geral, pelo uso da força e da impunidade,
cometem os mais revoltantes crimes. Seu trabalho revelou o interesse pela literatura e era
baseado nas relações tradicionais entre o aristocrata e o camponês. “Um dos aspectos
75
Edgard Leuenroth colheu material referente ao movimento anarquista no Brasil nas primeiras décadas
do século 20, estando atualmente no Arquivo Edgard Leuenroth – AEL – na UNICAMP. Edgar Rodrigues
tem arquivo particular sobre movimento anarquista em Portugal e no Brasil, continuando ainda hoje a
publicar obras de conteúdo histórico e revolucionário.
110
principais da doutrina social de Tolstoi é sua rejeição ao estado, mas igualmente
importante é seu repúdio à propriedade.”(WOODCOCK, 1983, p. 205)
Lembramos que, para os anarquistas, a ditadura do proletariado era tão absurda
quanto às “torturas” e forças “esmagadoras” do Estado, ideário que forçou uma ruptura
social e política inédita durante o século XIX. A passagem por esses discursos, sobretudo
pelo anarquismo russo, tem o propósito de criar condições, pela materialidade da história
e pela materialidade da língua, para observar o modo como esses saberes migram e vão
circular com os saberes da FD anarcossindicalista no Brasil da Primeira República,
produzindo efeitos discursivos, tais como a constituição do movimento de criação de
uma Confederação Operária no Brasil.
Diferentemente da Revolução Francesa, que deu origem às teorias socialistas, a
Revolução Russa representa a união da classe proletária e, ao mesmo tempo, um dos
motivos do silenciamento do movimento anarquista russo, uma vez que os anarquistas
não aceitavam serem comandados por uma classe de partidos políticos. De acordo com
Guérin (1968, p. 89), “o anarquismo, depois de haver descoberto uma segunda fonte de
inspiração no sindicalismo revolucionário, encontrou uma terceira na Revolução Russa”.
Na avaliação de Guérin, a Revolução de 1917 foi a concretização dum projeto que se
iniciou com a Revolução de 1905 junto aos sovietes
76
e às fábricas de São Petersburgo.
As massas operárias e campesinas constituíam a força dos bolchevistas. “Todavia, o
aparelho do Partido [...] encarava os sovietes com certa desconfiança, pela concorrência
que lhe faziam”. (GUÉRIN, 1968, p. 91).
Mas este audacioso alinhamento com o instinto e a disposição revolucionários das massas, se
logrou colocar os bolchevistas na direção da Revolução, não correspondia nem à sua
ideologia tradicional nem às suas verdadeiras intenções. Desde sempre, foram “autoritários”,
entusiastas das idéias de Estado, de ditadura, de centralização, de partido dirigente, de gestão da
economia a partir de cima, e uma série de coisas em contradição com a concepção realmente libertária da
democracia soviética. (GUÉRIN, 1968, p. 93) – grifo nosso.
A citação acima nos mostra que um retorno aos pontos de resistência e de
revolta, que se desenvolve sob a dominação ideológica. A transgressão de fronteiras, o
questionamento de uma ordem ressoa o tempo todo no corpus que analisamos. O
discurso revolucionário nunca cessa de se revoltar. Trata-se de um coletivo das injustiças
sociais; por isso, precisa tornar visível a sua revolta. É para esse lugar ocupado pelo
76
A atividade do soviete, conforme Guérin, significa a organização da anarquia.
111
sujeito anarcossindicalista que chamamos a atenção, através do qual sedesempenhado
o papel de articulador, cujo objetivo é organizar, política e internamente, as massas para
a ação direta.
Na perspectiva do discurso, Pêcheux e Fuchs (1975, p. 166) remetem para o que
havia dito Althusser sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado, dizendo que “as lutas
de classe são dissimuladas nos próprios aparelhos, mas que, num determinado momento
histórico, irrompem as contradições na forma de alianças ou de antagonismos”.
Conforme Althusser (1969, p. 139), os AIES reproduzem a ideologia dominante num
processo em que a classe dominada defende a sua própria ideologia. É nesse sentido que
as lutas de classes têm nos AIES o espaço para trabalhar as contradições que ganham
visibilidade nos lugares que cada sujeito ocupa em diferentes AIES. Logo, é sob essas
condições que a resistência e a violência geradas no contexto russo, diante da Revolução
Bolchevique, das dissidências entre anarquistas e os marxistas, ocasionam o
esvaziamento do pensamento anarquista no contexto russo. Assim, o confronto com o
aparelho estatal compõe a materialidade histórica como materialidade constitutiva do
gesto de interpretação, ou seja, durante a análise das seqüências discursivas, buscamos
observar nas posições-sujeito e no papel do articulador como essas relações de
contradição ou de antagonismo aparecem no discurso.
Queremos, ainda, mostrar como esses domínios de saberes produzidos no
contexto russo são retomados no anarcossindicalismo brasileiro; eles tendem a ser
absorvidos e/ou incorporados em discursos sindicalistas, “alimentando” a posição
antagônica entre o operariado e as patronais, entre cidadãos e Estado, já que os interesses
desses são antagônicos aos dos trabalhadores, tanto na Rússia como no Brasil ou em
qualquer país.
Da mesma forma que o militante anarquista busca a liberdade individual,
privilegia o bem-estar, a justiça, a igualdade entre os homens, quando ocupa o lugar de
porta-voz e ou de articulador, e fala no/do lugar do proletariado, dos fracos, dos
oprimidos e dos dominados, não expressa condição de revolta contra a hegemonia
estatal, contra a representatividade política, como também legitima um lugar no interior
do grupo ou na esfera pública, na/pela prática política revolucionária. Isso porque
procura não apenas falar pela coletividade dos operários, mas também legitimar-se no
poder, fabricando um efeito de consenso ou de dissenso a respeito de ações políticas suas
ou do grupo.
112
Para Rémond (1981), o político e o social interferem na história do movimento
operário europeu. O autor lembra, no entanto, que é preciso fazer distinção entre a
expressão “movimento operário” e “socialismo”, por se tratar de duas realidades. Nas
palavras do autor, o uso indistinto de socialismo” para o “movimento de classes” é
decorrente do encontro entre essas duas realidades de naturezas diferentes no século
XIX, ou seja,
entre o socialismo, de um lado, doutrina de vida política e social, que cria escolas,
organizações, partidos, visando a uma transformação política que decorre da chamada
história política e, de outro, o fenômeno da formação de uma categoria social, a classe
operária, que se organiza em movimento para a defesa de seus interesses e satisfação de suas
reivindicações profissionais. (RÉMOND, 1981, p. 100).
O erro desse autor, talvez, foi não ter dito que a classe operária pode ser
associada, pelas vias do partido político, às atividades práticas que este desenvolve no
seio do movimento operário. Segundo Coggiola (1991, p. 39-41), o termo socialismo
começou a ser utilizado com freqüência no século XVIII para designar contrato de uma
sociedade de homens livres e como sinônimo de cooperativismo. “A perspectiva de
mudar o mundo pelo avesso não podia ser considerada utópica num mundo que estava,
ele próprio, sendo virado pelo avesso.”(COGGIOLA, 1991, p. 41). Logo, o coletivismo
não é exclusivismo do socialismo, visto que já existia com o anarquismo e antes ainda de
1848, com Saint-Simon, Fourier e Owen e, depois, com Proudhon, Blanc, Bakunin e
Kropotkin. O coletivismo é um saber importante que migra de uma FD para outra, que
poderá aparecer nas seqüências discursivas que iremos analisar.
De acordo com o que se em Woodcock (1983, p. 194), citando Kropotkin, todo
trabalho construtivo não pode ser realizado por um governo central e, sim, com a
colaboração de todos. “Desprezar essa colaboração e confiar no gênio dos ditadores do
partido é destruir todos os núcleos independentes, tais como sindicatos e organizações
cooperativas”. E acrescenta: “Essa é uma maneira de não fazer a Revolução, a maneira
de tornar impossível a sua realização”. (KROPOTKIN, apud WOODCOCK, 1983, p.
194).
A negação da Ditadura do Proletariado e a negação dogmática à participação
eleitoral e à tática parlamentar presentes em Bakunin, Malatesta e Kropotkin - são
saberes que distanciam os anarquistas dos bolchevistas. Kropotkin, ao analisar a
113
Revolução Russa, em 1917, confirma sua aversão ao partidarismo e, conseqüentemente,
aos bolcheviques, conforme lemos na citação abaixo:
a revolução que nós atravessamos é a soma total, não de esforços de indivíduos separados,
mas um fenômeno natural, independente da vontade humana, um fenômeno natural similar a
um tufão como os que surgem repentinamente nas costas orientais da Ásia. Milhares de
causas atuam [no processo revolucionário] tornando o trabalho de indivíduos separados e
até de partidos em nada mais que grãos de areia.
77
Da citação podemos concluir que, para Kropotkin, a participação do partido
bolchevique na Revolução foi simplesmente pequena, um grão de areia. E isso se deve ao
fato de, como diz Woodcock (1983, p. 193), “os camponeses terem tomado as terras e os
operários as fábricas, de modo que os decretos criados pelos bolcheviques serviram
apenas para reconhecer a situação de fato”. Kropotkin criticou várias vezes a orientação
política de Lênin, escreveu-lhe uma carta apontando os defeitos da Revolução, mas
também reconheceu o avanço em termos de igualdade econômica e a institucionalização
dos sovietes, que levaria à participação direta dos produtores na administração no
mundo do trabalho. Observou, ainda, que, depois de passarem ao controle da ditadura
política, os sovietes foram reduzidos a meros instrumentos de autoridade.
Na Rússia, as associações operárias tinham como determinações a desigualdade
social e a consciência de classe. Como resultado dessas mobilizações houve as greves dos
operários têxteis, de Petesburgo, desde 1885 e 1896 até a greve geral de outubro de 1905.
Rémond enfatiza que, a partir da fundação da CGT em 1908, o movimento operário liga-
se ao coletivismo. Para combater a sociedade instituída e preparar uma nova, o
movimento operário deveria apresentar: a) ação profissional (ligação ao sindicato); b)
ação política (ligação ao partido). Em relação ao sindicalismo é preciso observar que, a
partir da Revolução Russa, tudo está no sindicato, e isso desencadeia uma ruptura entre
os anarquistas russos e os bolcheviques, uma vez que os anarquistas não entendem a
organização sindical pela política partidária.
Paralelamente, na última década do século XIX as condições de trabalho eram
cada vez mais duras e não havia limitação de tempo de trabalho, com o que o operário
ainda cumpria uma jornada de até 15 ou 16 horas por dia. Essa prática, por sua vez,
produz outro saber, que se identifica ao mesmo tempo com as FDs anarquista russa
77
Reportamo-nos ao artigo de Kropotkin "The russian revolution and the soviet government" In:
http://www.marxists.org/reference/archive/Kropotkin-peter/1910s/19_04_28.htm.
114
(FDAR) e anarcossindicalista brasileira (FDAB): é a luta pela redução da carga excessiva
de trabalho e, no contexto brasileiro, a exploração de mulheres e crianças, criando nos
patrões muita resistência, buscando conseguir a dependência dos trabalhadores. (RÉMOND,
1981, p. 105).
Apesar da convicção da necessidade da redução das horas de trabalho, no Brasil,
Jorge Street
78
, de um lado, propõe cinqüenta e seis horas de trabalho por semana como
regime ideal, de outro, defende o trabalho a partir de onze anos, alegando a precocidade
das crianças brasileiras. É difícil, no entanto, compactuar com idéias de um industrial
esperto que sabia avaliar a conjuntura desfavorável e que naquele momento é uma
espécie de voz dissonante entre industriais. Até porque, no apelo das federações operárias
e associações vamos encontrar uma mostra de que a exploração do trabalhador não era
pouca e a luta pela redução de carga excessiva de trabalho para as 8 horas revela isso.
Vale lembrar que sempre que utilizarmos o termo articulador, estaremos
tomando-o no sentido discursivo. Ou seja, não é o jornalista sujeito empírico, mas o
lugar discursivo em que este sujeito está inscrito no discurso em análise, cujo papel
desempenhado pelo articulador é dar sustentação ao grupo para agir, para definir suas
práticas, já que uma de suas funções é encaminhar as questões políticas do grupo.
Nesse sentido, a citação abaixo representa a posição-sujeito do coletivo em torno
da redução das horas de trabalho, a partir do dia 1
0
. maio de 1907, ocasião em que o
articulador fala ao grupo, analisando a repercussão, os resultados das greves ocorridas
em São Paulo, Rio de Janeiro, Santos e Recife. O desempenho do articulador está em
mostrar ao grupo que, apesar das inúmeras prisões e expulsões de trabalhadores, o
movimento foi bem sucedido que o horário de trabalho foi reduzido em diversas
categorias e pedreiros e carpinteiros, por algum tempo conquistaram as oito horas.
TRABALHADORES!
Agora que vossos companheiros abrem resolutamente o caminho das reivindicações, imitai
o forte exemplo, procurai melhor a vossa situação menos horas de fadiga, mais descanso,
isto é, menos necessidade de álcool para chicotear os nervos num trabalho brutal, mais alegria
no lar, mais pão para a boca, mais instrução para vós, mais bem-estar para a educação para
os filhos!
Não deis força aos vossos inimigos de classe que tão hipocritamente falam em “liberdade
de trabalho”- traindo os vossos companheiros em luta, rompendo a sua solidariedade,
forçando-os com a vossa traição a voltar ao mesmo jugo.
TRABALHADORES!
78
Jorge Street foi presidente do Centro Industrial do Brasil e diretor de fábricas de tecidos de algodão no
Rio de Janeiro e em São Paulo. Em 1930, integra o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, como
primeiro diretor do Departamento Nacional do Trabalho.
115
Os patrões e a polícia empregam contra vós a violência, a arbitrariedade, o engano, a
mentira na imprensa, os sofismas, os manejos jesuíticos que desconcentram e intimidam,
mas não desanimeis. Além do direito, tendes também a força que é a força do vosso braço
indispensável, e da vossa união.
A união dá a confiança mútua e a coragem: associai-vos e agi!
(Federação Operária do Estado de São Paulo. “A luta pelas oito horas de trabalho (1907). In:
PINHEIRO, P. S.; HALL, M.M. A classe operária no Brasil (1889 1930): documentos. São
Paulo: Alfa-Omega, 1979. v. I, p. 64 – 66.) – grifo nosso.
Nessa perspectiva, o articulador, ao mesmo tempo em que aponta os resultados
positivos a partir das reivindicações dos grevistas, busca convencer os operários a adotar
a ação direta, apontando as contradições no interior do grupo, já que, assim como há um
grupo de operários associados que protestou, desobedeceu às ordens do patrão e
conquistou a redução das horas de trabalho pela pressão política, aqueles submissos
aos patrões e expostos à violência da polícia, porque ainda não estão conscientes de suas
necessidades e direitos.
A convicção de que a associação, a organização da classe era uma necessidade,
não um crime, é uma das questões que enfatizamos neste trabalho, como um saber
próprio da FD anarquista russa e FD anarcossindicalista brasileira e que se conflitua com
os saberes da formação discursiva jurídica (FDJ), tanto na Rússia como no Brasil. De
modo geral, as leis decretam a dissolução de todas as associações, corporações, criando
dispositivos contra sua eventual restituição. No que toca aos códigos civis, francês
79
e
brasileiro, a ação da organização passou a ser um delito, passível de penas de prisão,
impedindo de participar de assembléias e sindicatos, de acordo com o que lemos na
citação a seguir, também recortada do texto “A luta pelas oito horas de trabalho”, escrito
pela Federação Operária do Estado de São Paulo, documento destinado aos
trabalhadores brasileiros, avaliando os efeitos da grande greve geral de 1907.
Cumprir a lei é impedir o livre e blico exercício do direito de reunião, ou pela violência
direta ou pela pressão exercida sobre os proprietários de salões.
[...]
A polícia só conseguiu derramar o fel amargo do ódio no coração dos oprimidos – ao passo
que nós pedimos para todos justiça.
E conseguiu ao menos que nos calássemos? – Não.
“Em vez de dizermos aos nossos companheiros: aceitai as imposições dos patrões e as
arbitrariedades da polícia; abdicai dos vossos direitos; submetei-vos a um jugo sempre
mais pesado sem protesto; afogai na vossa passividade o nosso próprio sentimento de
revolta”.
79
Referimo-nos ao Código Civil napoleônico, de 1804 que regulamentou, a partir da perspectiva dos
interesses da burguesia, a autoridade do patrão sobre os empregados, inspirando diversos Estados europeus
e da América Latina, que adotaram seus princípios e reproduziram algumas de suas disposições.
116
(Federação Operária do Estado de São Paulo. “A luta pelas oito horas de trabalho (1907). In:
PINHEIRO, P. S.; HALL, M.M. A classe operária no Brasil (1889 1930): documentos. São
Paulo: Alfa-Omega, 1979. v. I, p. 64 – 66.) – grifo nosso.
A deflagração da primeira greve geral, para a conquista das 8 horas de trabalho no
dia 1
0
. de maio é uma das ações políticas encaminhadas no Primeiro Congresso
Brasileiro (1906). Conforme podemos observar, o articulador instiga as organizações à
propaganda direta, seguindo o exemplo de algumas categorias. As relações de
antagonismo entre operário e o aparelho judiciário e policial tornam-se bastante
evidentes, recaindo grande parte da violência sobre os chamados “cabeças” do
movimento, sobre as federações operárias, que são fechadas e jornais assaltados,
recaindo grande parte da culpa das greves no país sobre operários estrangeiros, que eram
considerados agitadores e perigosos pela justiça brasileira.
Na citação acima vamos encontrar sentido no que Rémond (1981, p. 114) enfatiza
sobre a importância dos sindicatos. Para ele, a função do sindicato não é apenas a de
lutar e de combater, mas a de preparar as estruturas da sociedade com o objetivo de
combater os regimes antagônicos e todos os mecanismos engendrados pelo modo
capitalista de produção. Conforme o autor, o sindicato constitui o embrião da sociedade
em torno da qual se ergueria uma nova. Esse papel, segundo o autor, relaciona-se com o
anarcossindicalismo, prática política que inspira o movimento operário na passagem do
século, o qual “foi um misto de confiança nas virtudes da organização operária e de
rejeição a qualquer ordem política partidária”. Em síntese, buscamos observar como
esses saberes o novamente aparecer ou não no Brasil entre os saberes do
anarcossindicalismo. Dentre os saberes do anarcossindicalismo destacam-se: a)
organização voluntária dos trabalhadores através de movimentos da classe operária; b)
emancipação política através dos sindicatos; c) comando geral dos sindicatos (CGT)
80
; d)
ação direta a fim de chegar à greve geral; e) combate ao poder público; f) ação
revolucionária não se faz por meios pacíficos; g) combate às oligarquias.
Para entender a identidade construída e inscrita na história da classe operária, a
partir do que se em Rémond, é preciso levar em conta que o combate ao capitalismo e
à burguesia é saber comum ao marxismo e ao anarquismo, ao passo que a defesa do
sindicalismo, o combate ao poder, às leis e ao Estado não se constituíam numa prática
comum entre marxistas e militantes de facções anarquistas, visto que os socialistas,
80
Segundo a orientação da Confederação Nacional do Trabalho, “o sindicalismo é antes de tudo um
método de luta para liquidar o capitalismo e o Estado, que tão-somente pode ser definido como um órgão
de opressão, de corrupção e de privilégios”. (RODRIGUES, 1969, p. 137).
117
adeptos do marxismo, defendiam o controle do Estado, através da ascensão da classe
proletária ao poder, ao passo que os adeptos do anarquismo defendiam a autonomia da
classe, sem representatividade partidária e via organização direta das massas.
Referimo-nos à heterogeneidade proletária estabelecida desde a I Internacional,
em Londres (1864), onde se reuniram representantes marxistas e representantes das
dissidências anarquistas (como anarcocomunistas e anarcossindicalistas). Conforme
afirmamos em outro texto (SCHONS, 2000, p. 158), a primeira conseqüência desse
discurso de aliança construído entre marxistas e anarquistas no Brasil “consiste em
dissidências internas no que se refere ao papel da instituição partidária, que enquanto
os adeptos do marxismo preconizam a formação de um partido do operariado, os
adeptos do anarquismo negam a instituição partidária e a condição de representatividade
política delegada à instituição partidária”, conforme podemos observar no quadro
elaborado, a seguir:
SABERES MARXISTAS (socialistas) SABERES ANARQUISTAS
1. Adesão à instituição partidária 1. Negação da instituição partidária
2. Formação de um único bloco
partidário representativo das forças
proletárias
2. As forças de resistência são
organizadas pelas massas
3. Adesão ao princípio de
representatividade partidária
3.Adesão ao princípio de auto-
representatividade
4. Hierarquização: relação de
subordinação pela extinção da burguesia
4. Igualdade entre as classes
5. Centralização do poder 5. Criação de federações, associações...
Quadro-síntese 1
No quadro acima, conforme observamos em Schons (p. 159), o movimento
anarquista tem abrigado tendências cujas posições se mostram contraditórias entre si e
sustentam nas relações de antagonismo entre saberes da FD anarquista e FD marxista.
Tais práticas políticas se apresentam contraditórias em relação aos domínios de saberes
que cultivam: na tendência marxista a mobilização dos operários somente poderia ser
efetuada por coerção e ditadura do proletariado e por adesões à instituição partidária,
formando um bloco único dos trabalhadores e centralização do poder para combater a
burguesia, ao passo que, na tendência anarquista, os movimentos proletários somente
podem ser entendidos na perspectiva da livre participação em federações, associações e
organizações sindicais como força de resistência, a fim de combater o Estado, as
oligarquias estatais, a propriedade, denegando qualquer instituição partidária.
118
Por outro lado, se tomarmos exemplos como a instituição da carteira de trabalho
assinada e a vigilância dentro das empresas durante a Segunda República, iremos
observar que essas práticas constituem um conjunto de dispositivos legais que não
retardam a organização, como também criam uma estrutura de esvaziamento de greves
81
.
Isso porque os saberes da FD jurídica, ora desconhecendo direitos dos trabalhadores, ora
reprimindo-os, produzem efeitos, intensificam-se as posições antagônicas frente ao
movimento anarcossindicalista brasileiro.
No Brasil, por exemplo, o movimento sindical efetivou-se basicamente no século
XX, em conseqüência do processo de industrialização, e esteve ligado ao anarquismo, ao
anarcossindicalismo, ao comunismo, no período de 1891 a 1930, e ao corporativismo, no
período de 1930 – 1945. Este último constituía a peculiaridade do regime totalitário
italiano, manifesto no Brasil através das leis regulamentadas no Estado Novo (1937), tais
como a proibição de entrada de estrangeiros que tivessem ligação com organizações
políticas, como o anarquismo, a restrição de empregos e de acesso aos bens materiais aos
estrangeiros e manifestação política, fortalecidos pela Lei Adolfo Gordo.
A elucidação do modo como os movimentos operários representam os
interesses da classe e como se sustentam e reproduzem essas correlações de forças em
momentos históricos e espaços diferentes evidencia uma prática heterogênea, visto que as
relações de antagonismo entre proletariado e Estado não ocorrem de forma simétrica e os
seus efeitos se reproduzem de modo desigual.
Desse modo, optamos por trabalhar com as condições de formação da classe
operária - configurada nas FDs FDAR (FD anarquista russa), FDAB (FD
anarcossindicalista brasileira) –, tendo em vista a circulação de saberes em momentos
históricos e espaços diferentes e que tomaram formas heterogêneas. Por ora, trataremos
das condições de formação das FDs, que fazem parte do corpus deste trabalho,
subdivididas em:
a) condições de formação das FDAR;
b) condições de formação da FDAB (Primeira República)
81
Vale lembrar que os primeiros movimentos sindicais surgiram na Grã-Bretanha, em decorrência da
Revolução Industrial, entre o século XVIII e XIX. Essa idéia de organizar os trabalhadores foi seguida
pelos franceses, mas em ambos os países o sindicato foi considerado criminoso e, portanto, proibido.
Mesmo assim, os operários se organizavam clandestinamente, pelo menos até o final do culo XIX,
quando novas legislações permitiram o seu funcionamento. Na perspectiva discursiva, essa prática
produziu efeitos de reiteração, contradição, antagonismo, silenciamentos.
119
3.2 Bloco I - Condições de formação da FD anarquista russa (FDAR)
Neste bloco discursivo, analisamos dois textos. O primeiro é de autoria de
kropotkin e o segundo foi escrito por Tolstoi. Ambos se referem ao mesmo domínio
temático e colocam em circulação saberes da formação discursiva russa (FDAR), os
quais se antagonizam aos saberes da formação jurídica russa (FDJ). Lembramos que o
fato de trazer para o interior deste estudo saberes que identificam a FD anarquista russa
(FDAR) justifica-se:
a) pela correspondência do mesmo período histórico em que investigaremos a
efervescência dos movimentos operários no Brasil nos anos da Primeira República
(1889 – 1930);
b) pela semelhança na conjuntura histórica russa e brasileira naquele momento
trabalhadores rurais o-qualificados migram para as cidades a fim de integrar o grupo
operário fabril, formando uma nova classe de trabalhadores;
c) pela caracterização das lutas na Rússia, centro de difusão do anarquismo antes
de 1917 os diferentes pré-construídos que articulam o sujeito anarquista russo e
colocam como sujeito enunciador em posições de antagonismo diante do aparelho
jurídico do Estado, questionando a validade social das leis daquele país.
Por apresentar essa conjuntura, consideramos que, de acordo com Courtine (1982,
p. 246), os saberes que circulam na FD anarquista russa constituem um “nóque marca
o início
82
de uma grande rede discursiva que começa a se produzir na FD da classe
operária, visto que “os enunciados [E] já inscritos no interdiscurso colocam-se como uma
grande exterioridade já ‘flagrada’ pelas redes discursivas”, que emergem no nível da
formulação [e] das seqüências discursivas. Seguindo a orientação de Courtine (1982, p.
251), portanto, é na análise das seqüências discursivas, representadas na materialidade
lingüística que vamos encontrar o lugar onde se realiza a seqüencialização dos elementos
do saber. É a partir de sua linearização que vamos poder observar como esses saberes se
configuram, em que medida migram, se repetem, divergem, produzem efeitos de
silenciamentos.
Para tanto, buscando compreender como os domínios de saberes da FDAR são
apropriados pela FDAB na Primeira República, abordaremos, a seguir, as condições de
formação dos saberes da FDAR.
82
Vale lembrar que, embora em AD não se possa precisar limites entre uma e outra FD, de acordo com o
autor, sempre há um início e um fim provisórios, instáveis e heterogêneos.
120
Conforme Avrich (1974, p. 43 - 44), o movimento anarquista surgiu no império de
Románov, no início do século XX, com antecedentes em todo o seu passado russo.
Durante séculos a Rússia tornou-se cenário de violentas manifestações populares.
Bakunin e Kropotkin e seus discípulos constituíram uma forte influência para a prática
política do operário urbano e rural russo. De acordo com Avrich (1974), Bakunin e
Kropotkin inspiraram-se nas idéias desenvolvidas no círculo anarquista Petraschevski, de
São Petersburgo, dedicado a divulgar na Rússia o socialismo utópico de Fourier durante
a década de 1840. Dentre os princípios cultivados no rculo anarquista destacam-se as
comunidades voluntárias
83
, a harmonia entre os homens e a rejeição ao governo delegado
a terceiros, por considerar o Estado um grande mal, um verdadeiro escravizador de
homens. Dentro desse panorama de lutas, a partir de 1880, Tolstoi e seus seguidores
começaram a formar grupos de anarquistas nas províncias de Tula, Oriol, Sâmara e
Moscou, formando colônias. Ao mesmo tempo em que condenavam o Estado como
instrumento de opressão, os tolstoianos pregavam a atividade revolucionária, mas não
como manifestação de ódio e violência.
Cabe ressaltar também que o camponês russo desempenhou papel importante na
história da coletividade da Rússia. Conforme Mett (1975, p.9), a Revolução Russa de
1917 ocorreu somente 56 anos depois da abolição da servidão e, mesmo assim, os
camponeses continuavam regidos pelo decreto governamental de 19 de fevereiro de
1861
84
, ou seja, essa realidade mostra que o Império Russo apresentava particularidades
políticas, econômicas e sociais que se tornariam fatores de sua própria destruição.
Ainda, toda essa situação, no século XIX, inspirou muitos intelectuais e
estudantes a se deslocarem para o campo com o objetivo de difundir idéias
revolucionárias e socialistas entre os camponeses, dando origem ao movimento chamado
“populismo”. Os populistas, apesar da dura repressão pela polícia tzarista, procuraram
organizar grupos políticos inteiramente devotados à causa social e à luta armada para
libertação da sociedade. Dentre as principais ações dos revolucionários russos
83
Os chamados falanstérios, que eram pequenas fazendas coletivas agroindustriais como solução para as
crises capitalistas, uma vez que haveria a divisão do trabalho e do papel exercido pelo comércio.
84
Os camponeses eram servos que, por não terem salários, viviam em um regime servil durante o domínio
do Tzar. Segundo determinava a lei russa, como lembra Mett, “o camponês não podia dispor livremente o
seu lote, nem sequer da parte onde tinha a casa e a cerca. Também não podia deixar a sua casa, abandonar
a comunidade sem autorização do chefe da família e da comunidade inteira que lhe passava um
passaporte, ou seja, a possibilidade de se deslocar pelo país”. Em algumas regiões, o déficit em relação às
disposições da própria lei chegou a patamares elevados, cujas desigualdades gritantes subsistiram: de um
lado, os nobres mantendo o controle de extensões desproporcionais das melhores terras; de outro, os
camponeses obrigavam-se a pagar muito mais do que o valor de mercado por terras.
121
(anarquistas e socialistas) destaca-se a articulação feita entre os camponeses, ocupando-
se, não em buscar um lugar social para os excluídos da sociedade, mas em mostrar a
importância da organização interna do grupo e apontando que uma das causas de sua
exploração reside na própria fragilidade e desorganização da classe excluída. Por outro
lado, graças ao grande fluxo de capital estrangeiro (inglês, francês, belga e alemão),
iniciou-se na Rússia o processo de industrialização, com as empresas concentrando um
grande contingente de operários. As jornadas excessivas de trabalho, entre 12 a 16 horas,
a que os trabalhadores estavam submetidos, os baixos salários, a falta de segurança e a
inexistência de uma legislação trabalhista, além da proibição de organização dos
sindicatos, contribuíram para a manutenção dos constantes confrontos com o czarismo.
Surgiu, então, o primeiro partido político de caráter marxista do país, em 1898, o Partido
Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Esse partido era composto, de um lado,
por alguns mencheviques, que significa minoria,
85
e, de outro, por bolcheviques, que
significa a maioria do povo. No entanto, enquanto os mencheviques e os bolcheviques
disputavam a hegemonia no seio do POSDR, a Rússia sofria as conseqüências da derrota
na guerra russo-japonesa, cujas perdas eram cada vez mais irreparáveis, gerando
descontentamento popular e dando origem a uma série de manifestações e confrontos
internos.
Em termos discursivos, tais acontecimentos históricos são explicados por Rancière
(1996) da seguinte forma:
A distribuição dos lugares e funções que define uma ordem policial depende tanto da suposta
espontaneidade das relações sociais quanto da rigidez das funções de Estado. A polícia é na
sua essência, a lei, geralmente implícita, que define a parcela ou a ausência de parcela das
partes. [...] A polícia é, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões
entre os modos de fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam
designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do vivel e do dizível que
faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida
como discurso e outra como ruído. É, por exemplo, uma lei de polícia que faz
tradicionalmente do lugar de trabalho um espaço privado não regido pelos modos do ver e do
dizer próprios do que se chama o espaço público, onde o ter parcela do trabalhador é
estritamente definido pela remuneração do seu trabalho. A polícia não é tanto uma
disciplinarização dos corpos quanto uma regra de seu aparecer, uma configuração das
ocupações e das propriedades dos espaços em que essas ocupações são distribuídas.
(RANCIÉRE, 1996, p. 42) – grifo nosso.
O que Rancière diz é que a atividade política desfaz as divisões sensíveis da ordem
policial e, por princípio, movimenta uma parcela da sem-parcela que, em última
85
Os mencheviques entendiam que a luta contra o Czar deveria passar por uma etapa democrático-
burguesa. A burguesia deveria tomar o poder e instaurar uma república que promovesse reformas
econômicas e sociais visando ao desenvolvimento do capitalismo.
122
instância, busca a ordem nos meios de produção e na luta de classes, legitimando, nesses
espaços modos de fazer, de ser e de dizer. “Existe política quando existe um lugar e
formas para o encontro entre dois processos heterogêneos” (p. 43).
Nessa nova ordem dos corpos, some-se a isso o empobrecimento do povo russo no
campo, a fome, as injustiças sociais, a entrada da Rússia na Guerra Mundial e as
sucessivas derrotas que levaram a Rússia a ser conhecida por suas contradições, por sua
opacidade social e pelo profundo nível de pobreza e servidão, o que levou os operários
pobres e camponeses a se submeterem às leis tzaristas. Com efeito, se houve libertação
do estado de servidão, nem por isso os mujiques
86
adquiriram a condição de cidadãos
livres, como os demais, que permaneceram vinculados à comuna, submetidos e julgados,
em eventuais querelas, conforme as normas do direito costumeiro. Torna-se contraditório
o mesmo órgão que cria dispositivos para organizar e regular as sociedades fiscalizar o
seu funcionamento, a sua eficácia e aplicar penas aos que infringem as normas, pois se
corre o risco de advogar sempre em causa própria.
A queda do tzar em oito de março de 1917 levou ao poder um governo provisório
comandado pela burguesia russa. Por conseqüência, aboliram-se a censura à imprensa e a
pena de morte aos que praticassem crimes políticos, dando a todos os partidos o direito
de manifestação. Porém, em julho, o governo provisório, então liderado por Lvov, tentou
reprimir manifestações bolcheviques e foi derrubado. Seu substituto foi Alexander
Kerenski
87
. Em outubro, Lênin
88
, apoiado por Trotsky e pelas forças bolcheviques,
constituídas por soldados e operários armados, tomou o poder. Lênin logo tirou a Rússia
da guerra, eliminou os latifúndios, decretou o controle operário sobre as fábricas,
86
Uma das manifestações do movimento operário na Rússia foi consolidada através dos mujiques
(designação dada aos camponeses russos que eram muito pobres), em janeiro de 1905, operários e
proletariado, em São Petersburgo, liderados pelo padre Gapon, da Igreja Ortodoxa Russa, na qual foram
massacrados pelos cossacos (nome dado à tropa de soldados imperial). Nessa passeata, levariam ao czar
Nicolau II um documento clamando por alguns direitos sociais, políticos, religiosos, trabalhistas, além da
convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Mas czar reagiu e ordenou o seu massacre, que
ficou conhecido como o Domingo Sangrento. Numa reação ao Domingo Sangrento, houve greves,
manifestações estendendo-se às unidades militares, a greve dos marinheiros do encouraçado Potemkim, o
maior navio de guerra do império, e o surgimento dos sovietes e os partidos liberais russos. As passeatas
contra Nicolau II multiplicavam-se e suas tropas, cansadas da guerra provocada pela aristocracia, em
número cada vez maior, tomavam o partido do povo.
87
Kerensky chega ao poder pela revolução burguesa, que é chamada de Revolução Menchevique
(minoria), em março de 1917. Tudo que os burgueses prometeram (terras, comida, tirar a Rússia da guerra)
não foi cumprido, intensificando ainda mais a revolta do povo russo.
88
Em outubro de 1917, ocorre a segunda revolução, a Revolução Bolchevique (maioria), cujo lema era:
"Paz, Terra e Pão". Paz (saída da Rússia da Guerra), Terra (Reforma Agrária) e Pão (comida para todo
mundo), tendo um amplo sucesso de adesão aos seus princípios. Outro lema promovido por Lênin é:
"Todo poder aos sovietes". Sovietes são assembléias populares formadas por soldados, camponeses e
proletariado.
123
declarou o monopólio estatal do sistema financeiro, do sistema de crédito e das
exportações, formando o primeiro Estado socialista; a ditadura do proletariado passou a
ser instalada e, a partir daí, a organização dos sindicatos passou a ser legal e articulada
por um partido, prática totalmente contrária à adotada pelos anarquistas.
É, pois, a partir da Revolução Bolchevique (1917), a partir do controle partidário,
que a classe operária russa passa a ser organizada e pensada, o que vai contra a prática
dos anarquistas, que defendiam a mobilização das massas, que, para eles, nenhuma
transformação econômica e social poderia ocorrer dentro de um sistema de sociedade em
que o povo é oprimido e aniquilado por um governo. Desse modo, o antagonismo
estabelece-se em relação aos diferentes saberes, inscritos nos movimentos da classe
operária e em torno de diferentes formações ideológicas, tais como o partido operário, o
sindicato, as esferas estatais e os aparelhos ideológicos de Estado, o que justifica a
divisão, neste trabalho, de tantas FDs.
3.2.1 Processo de interpelação do proletariado russo via negação do
aparelho jurídico
A reflexão desenvolvida nesta seção, inicialmente, busca compreender como os
domínios de saberes da FDAR são apropriados pela FDAB na Primeira República. O
texto de Kropotkin
89
“A inutilidade das leis”, escolhido para a realização desta análise
inicial do bloco I, integra um dos capítulos da obra traduzida, no Brasil, Os grandes escritos
anarquistas, de George Woodcock
90
, o qual foi escrito, em 1889 por Kropotkin no exílio
91
,
onde o autor viveu boa parte de sua vida.
Acontecimentos como a destruição da Comuna de Paris em 1871, o fechamento
da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1876 e a sistemática perseguição
aos movimentos operários por parte da burguesia, reprimindo (por meio de prisões,
89
Quanto ao autor do texto que iremos analisar, Kropotkin foi para a Sibéria como oficial onde realizou
importantes levantamentos geográficos e pode conhecer de perto miséria dos povos sujeitos ao Tzarismo.
Em 1872, realizou uma viagem à Bélgica e à Suíça, onde entrou em contato com os anarquistas da
Federação do Jura, tendo-se filiado na AIT. Seus livros faziam parte da biblioteca dos camponeses e
operários em quase todos os países. Palavras de um Revoltado, Aos Jovens, Ética, O Estado e seu Papel na História
foram traduzidos em inúmeras línguas. Morreu em 8 de fevereiro de 1921. A última grande manifestação
pública do anarquismo russo foi o seu funeral.
90
Edição da L&PM Editores de Porto Alegre (1985).
91
A militância em grupos clandestinos na Rússia levou Kropotkin aos cárceres czaristas e,
conseqüentemente, ao exílio no Ocidente, tendo fundando e editando em Genebra, em 1879, o jornal Le
Révolté, até ser novamente preso na França, em 1882.
124
fechamento de organizações operárias e a proibição de circulação de jornais anarquistas)
qualquer tipo de manifestação contra os poderes instituídos, levaram Kropotkin a
engajar-se na luta russa pela libertação e a organizar os operários em círculos intelectuais
cada vez mais vinculados com a prática anarcocomunista.
Para ele, a abolição dos monopólios econômicos, a propriedade coletiva e os
meios de produção à disposição de todos sem distinção de classes sociais garantem a
liberdade. No texto em análise, perceberemos que a negação das leis significa também a
negação da autoridade nas organizações sociais. Ainda, ao apontar a inutilidade das leis,
Kropotkin compara a propriedade individual ao privilegio da lei. Para os anarquistas, a
participação ativa e direta dos trabalhadores torna-se essencial ao combate desses
privilégios e para a conquista da liberdade, uma vez que cada indivíduo deve forjar sua
própria liberdade e compartilhá-la com seus companheiros. (WOODCOCK, 1981, p.16).
Quanto à igualdade, poderia existir se todos, sem distinção de classes, organizassem o
trabalho de modo que todos recebessem de acordo com o dispêndio de suas atividades,
necessitando, para isso, um grau de solidariedade e autonomia entre os trabalhadores e
os diversos setores da sociedade e ramos da produção e do consumo.
A teia de saberes vai sendo tramada no interdiscurso e funciona como memória
discursiva. No discurso de Kropotkin são mobilizados saberes que se identificam com a
FDAR e que se antagonizam com os saberes da FDJ; o que este discurso nos propõe é
um balanço em torno da validade e formas de atuação da lei.
Pensando o discurso como uma trama de vários fios que vão se articulando,
percebemos que Kropotkin possibilita conexões, movimentações da história e das
condições de produção, ou seja, o discurso que transcrevemos encaminha reflexões em
torno dos princípios anarquistas, tais como a solidariedade, a autogestão e a ação direta.
Configura-se, antes de qualquer coisa, uma prática política junto ao proletariado russo.
Kropotkin tornou-se um dos principais críticos anarquistas e um dos maiores
defensores do coletivismo. Foi um intelectual a considerar necessária a soma das forças
das rias facções revolucionárias na luta russa pela libertação da autocracia czarista.
Graças ao seu contato com servos e camponeses russos desde a infância, Kropotkin
aprendeu sobre o sofrimento da tirania imposta pelo país, desenvolvendo seu espírito
solidário. Para ele, a revolução deveria garantir, no mínimo, duas coisas: a criação de um
“governo revolucionário” e a necessidade de uma igualdade social, visto que todos os
125
aspectos da vida econômica e social estão interligados, que nada menos que uma
completa e imediata transformação da sociedade poderá garantir a sua evolução.
Conforme Woodcock (1983, p. 163 - 167), “Kropotkin preferiu o debate aberto à
obscuridade romântica da conspiração”, pois as imagens destruidoras de fogo e sangue
construídas por Bakunin não o atraíam. Ainda conforme Woodcock (1983, p. 170 - 175),
a partir de 1871, Kropotkin começou a dedicar-se às famílias de pequena propriedade
rural em Tambov para elevar o nível intelectual e o bem-estar dos camponeses, mas,
como descobriu que alguns militantes foram atacados e até mesmo entregues à polícia
pelos próprios camponeses que se propunham a ajudar, acabou voltando à Europa. Foi
para a Suíça, Zurique e depois Genebra, onde percebeu, com maior nitidez, a distância
entre os marxistas e os seguidores do anarquismo bakuniniano.
Nessa época, Kropotkin publicou o seu primeiro ensaio, em 1873, “Devemos nos
ocupar da realização futura do Ideal?”, o qual foi apreendido pela polícia czarista,
voltando a circular quase um século depois, em 1964. Seus escritos eram constantes
apelos à revolta dos oprimidos e deserdados. A revolução, para ele, era o único meio de
destruição da velha sociedade, a fim de evitar o nascimento de novos mecanismos de
poder que pudessem vir cercear a liberdade e o desenvolvimento natural da sociedade. A
base dessa revolução é a Comuna e, em conseqüência, a federação.
Para reverter essa situação, uma Revolução que abolisse tais quadros poderia
restabelecer o equilíbrio social em sua direção natural. Foi em torno dessa idéia que um
pequeno número de intelectuais anarquistas começou a levar, por meio de jornais e
outros meios alternativos de informação, a propaganda do ideal libertário aos
trabalhadores, fazendo-os acreditar que por meio da ação revolucionária poderiam
mudar a sociedade. Estes, guiados pelo sentimento de solidariedade e apoio mútuo, iriam
espontaneamente destruir o capitalismo e o Estado, inaugurando, assim, uma nova
sociedade.
Por volta de 1890, Kropotkin foi um dos primeiros a reconhecer que a propaganda
isolada não funcionava e propôs, conforme Guérin (1968, p. 84), o retorno ao
sindicalismo como tática de contato com as massas. No entanto, os chamados “puristas” do
anarquismo nutriam, a respeito do movimento sindical, uma irreprimível desconfiança.
126
(GUÉRIN, 1968, p. 85). Dentre os princípios cultivados nos círculos anarquistas
destacam-se as comunidades voluntárias
92
, onde eram defendidas:
1. Abolição do Estado
2. Eliminação de qualquer forma de autoridade, censura ou coerção (religião, lei, polícia,
família, casamento, moral, etc.);
3. Defesa da Liberdade total do indivíduo;
4. Eliminação da propriedade, do mercado e do dinheiro, uma vez que também o
instrumentos de dominação;
5. Eliminação dos setores parasitários da sociedade: polícia, exército, clero, juízes;
6. Abolição do comércio, devendo apenas ocorrer troca natural;
7. Organização do mundo em micro comunidades cujas regras de convivência individual
eram elaboradas pelos próprios membros;
8. Substituição do dinheiro por bônus-trabalho, levando-se em conta a quantidade de
horas gasta no processo de produção de um determinado produto ou serviço.
É nesse sentido que o texto de Kropotkin toca em algo que é estimável para o
dispositivo teórico-prático na AD: “as relações” de produção-reprodução-transformação.
Nele, Kropotkin discute a coletividade a partir da evolução em nível de todos os ramos
do saber e a construção de uma nova sociedade crítica das instituições autoritárias.
Vejamos, então, o texto.
Texto 1
A inutilidade das leis
Peter Kropotkin
A um exame atento, as milhares de leis que existem para regular a humanidade parecem estar
dividas em três categorias principais: proteção da propriedade, proteção dos indivíduos,
proteção do governo. E analisando cada uma destas categorias, chegamos a uma única e
inevitável conclusão lógica e necessária: a inutilidade e perniciosidade das leis. [...]
A metade de nossas leis o código civil de cada país não serve a qualquer outro propósito
senão o de manter esta apropriação, este monopólio em benefício de determinados indivíduos
em detrimento de toda a humanidade. Três quartos das causas julgadas pelos tribunais o
são nada mais do que disputas entre monopolistas – dois ladrões lutando pela posse do
produto de seus roubos. E muitas das nossas leis criminais têm o mesmo objetivo em vista,
92
Os chamados falanstérios, que eram pequenas fazendas coletivas agroindustriais como solução para as
crises capitalistas, uma vez que haveria a divisão do trabalho e do papel exercido pelo comércio.
127
tendo sido criadas para manter o trabalhador numa posição de subordinação em relação ao
patrão, proporcionando a segurança necessária para que a exploração continue. [...]
Como todas as leis sobre propriedade, quer enchem grossos volumes de Códigos de Direito e
fazem as delícias de nossos advogados, não têm qualquer outro objetivo senão proteger a
apropriação injusta, garantir que certos indivíduos se apropriem indevidamente do trabalhado
de outros seres humanos, não nenhuma razão que justifique a sua existência. No dia da
Revolução, os revolucionários sociais estão firmemente decididos a acabar com todas elas. E
na verdade, nada mais justo do que fazer-se uma grande fogueira ao ar livre lançando nela
todas as leis que tratassem dos assim chamados direitos de propriedade”, todos os títulos de
propriedade, todos os registros e escrituras: em uma palavra, tudo aquilo que tivesse qualquer
ligação com uma instituição que logo será vista como uma nódoa na história da humanidade,
tão humilhante quanto à escravidão ou o servilismo de outras épocas.
As observações que acabamos de fazer a respeito das leis sobre a propriedade poderiam ser
aplicadas também à segunda categoria de leis: aquelas destinadas a manter os governos, ou
seja, as leis constitucionais. É outra vez um arsenal de leis, decretos, disposições, decisões de
conselhos e o que mais houver criados como o fim de proteger as diversas formas de governo,
seja ele representativo, delegado ou usurpado, sob cujo tacão a humanidade se contorce.
Sabemos bem e os anarquistas não cansam de demonstrá-lo em suas eternas críticas contra
as várias formas de governo que a missão de todos os governos, monárquicos,
constitucionais ou republicanos, é proteger e manter através da força, os privilégios das
classes dominantes a aristocracia, o clero e os comerciantes. Mais de um terço de todas as
leis que existem – e cada país tem milhares delas que regulam os impostos, as taxas, a
organização dos departamentos ministeriais e suas repartições, as Forças Armadas, a Polícia,
a Igreja não têm qualquer outro objetivo senão manter, remendar e desenvolver a máquina
administrativa. [...]
Resta considerar a terceira categoria, aquela que diz respeito à proteção dos indivíduos e ao
combate e prevenção do “crime”, a mais importante delas, que a maior parte dos
preconceitos a ela está vinculados: porque, se desfruta de uma certa consideração especial, é
em conseqüência da crença de que este tipo de lei é absolutamente indispensável à
manutenção da segurança em nossas sociedades. [...]
Entretanto, um fato relacionado a este assunto que hoje foi suficientemente provado: a
severidade da pena não diminui a quantidade dos crimes. Enforque e esquarteje os criminosos
se quiser, e o número de crimes permanecerá igual. Elimine a pena de morte e não terá um
crime a mais, eles diminuirão até. As estatísticas o provam. Mas se a colheita for boa, o pão
barato e fizer bom tempo, o número de crimes cairá imediatamente. [...]
Os principais incentivadores do crime são a ociosidade, a lei – leis que regem a propriedade, o
governo, as punições e os delitos – e a autoridade que torna a seu cargo a criação e a
aplicação dessas leis. (In: WOODCOCK, G. Os grandes escritos anarquistas. Porto Alegre:
1985, p. 101 – 106)
Como podemos observar no texto transcrito, é, pois em face desses princípios e
acontecimentos históricos que será proferido um discurso que promova, ao mesmo
tempo, o consenso do grupo sobre a importância de questionar a lei e o modo de atuação
do aparelho jurídico. A interpelação do proletariado russo para negar o aparelho jurídico
é bastante incisiva. As relações de antagonismos entre os saberes com os quais se
identifica o sujeito mutualista e as práticas jurídicas instauradas pelo regime tzarista
russo tornam-se evidentes.
128
3.2.1.1 Domínios de saberes antagônicos e a construção do imaginário
propriedade
O discurso produzido pelo militante anarquista Kropotkin toma como
destinatário, em primeira instância, leitores de modo geral, no intento de mostrar: a) as
contradições existentes no aparelho jurídico; b) o perigo de obedecer a leis e a exploração
decorrente do direito de propriedade individual e do Estado de direito; c) a desigualdade
no que diz respeito ao combate e prevenção do crime.
Em segunda instância, o discurso de Kropotkin toma como destinatários os
anarquistas. Desse modo, o sujeito anarquista constrói, para os interlocutores, dois perfis
do aparelho jurídico em torno do direito à propriedade, à proteção individual e à
autoridade: o primeiro garante o direito à propriedade apenas a uma minoria,
caracterizando o aparelho jurídico como o lugar da consagração de privilégios para uma
minoria, e o segundo perfil do aparelho jurídico é, pela sua estrutura, o domínio e o
limite da lei, ou seja, aquele que integra o aparelho jurídico possui o respaldo para fazer
qualquer coisa em nome dessa lei, até cometer crimes que na instituição jurídica deve-
se manter o controle, a dominação, nem que para isso se cometam crimes.
Segundo os saberes da FDAR, o Estado cria as leis que fornecem grandes
possibilidades de intervenção deliberada nos arranjos sociais e é responsável pelos
destinos do cidadão, na medida em que as condições sob as quais ele vive estão sujeitas à
avaliação moral e são suscetíveis de controle por meio da ação ilegal, restringindo,
portanto, a iniciativa da sociedade civil, já que os conflitos surgem a partir de sua
distribuição desigual e injusta.
O aparelho jurídico, portanto, funciona como um mecanismo de desmobilização
social, constituindo-se mais como uma estratégia de sobrevivência e proteção da
propriedade e autoridade ao Estado, que dos direitos do cidadão. O bem-estar social seria
seguramente se garantisse que certos interesses ficassem imunes à intervenção estatal, e
fossem resguardados do sistema do aparelho jurídico. O fim legal deveria ser o de
assegurar o direito das relações jurídicas e de cooperação social, quando, na verdade,
asseguram o privilégio de uma minoria e atendem a interesses pessoais. E nesse sentido,
a ilimitada ação da autoridade e do Estado.
129
A fim de observar esse antagonismo, trabalharemos, a seguir, com algumas
seqüências recortadas do discurso de Kropotkin. Inicialmente, selecionamos cinco sdrs,
as quais permitem observar que esse antagonismo se estabelece entre os saberes da FDR
e a FD jurídica. A identificação das posições do sujeito anarquista das sdrs é recortada do
texto 1 “A inutilidade das leis”, escrito por Kropotkin.
sdr 1 - A um exame atento, as milhares de leis que existem para regular a humanidade parecem
estar dividas em três categorias principais: proteção da propriedade, proteção dos indivíduos,
proteção do governo. E analisando cada uma destas categorias, chegamos a uma única e
inevitável conclusão lógica e necessária: a inutilidade e perniciosidade das leis. [...]
A sdr1 permite que identifiquemos posições antagônicas do sujeito da FDAR em
relação aos saberes da FD jurídica. São colocadas em evidência as instâncias que
motivam a criação de leis e os verdadeiros objetivos daqueles que acreditam ser possível
proteger a propriedade e o Estado pela lei. A resistência dos anarquistas contra qualquer
hierarquia legitimada, de cima para baixo, torna-se visível que quem cria as leis, o faz
em benefício próprio; por isso, essas leis não passam de imposições, são autoritárias e
parciais, ou seja, a lei é o lugar dos falsos moralismos, das exclusões e das injustiças e,
portanto, são inúteis e perniciosas.
Tal relação contrária e de negação ao que prega o código e suas leis intensifica-se
a partir da sdr2. O interessante a destacar, inicialmente, nesta sdr2 é a presença de um
enunciador que se esforça para mostrar as contradições existentes na sociedade e sua
distribuição desigual dos lugares e funções sociais por causa da lei, que é individualista e
impede uma vida coletiva. O combate à propriedade privada é um saber da formação
anarquista russa, muito presente nos discursos proudhonianos
93
, o qual considera a
propriedade um “monopólio”, um roubo.
sdr 2 - A metade de nossas leis – o código civil de cada país não serve a qualquer outro propósito
senão o de manter esta apropriação, este monopólio em benefício de determinados indivíduos
em detrimento de toda a humanidade.
93
O autor defende a coletividade como condição básica para a vida em sociedade. Para Proudhon, uma
sociedade livre é resultado da formação, do trabalho para se chegar à revolução. Nesse caso, a propriedade
privada destrói o principio de igualdade e é incompatível com a justiça.
130
Tanto a sdr 1, quanto a sdr 2 e sdr3, concorrem, em seu conjunto, para a
formulação de um repetível em torno da perniciosidade da lei, em face da distribuição
desigual e injusta. No entanto, na sdr 3 o articulador retoma esse saber, caracterizado
pela centralização de poder exarcebada, a fim de mostrar que o direito à propriedade
causa subordinação e encobre o crime da exploração praticada pelo patronato. Tanto é
que as condições para essa prática são criadas no interior do aparelho jurídico e por meio
das leis. A sdr 3 enuncia em torno de um saber próprio do anarquismo russo: “a
propriedade é um roubo”.
sdr 3 - Três quartos das causas julgadas pelos tribunais não são nada mais do que disputas entre
monopolistas dois ladrões lutando pela posse do produto de seus roubos. E muitas das nossas
leis criminais têm o mesmo objetivo em vista, tendo sido criadas para manter o trabalhador
numa posição de subordinação em relação ao patrão, proporcionando a segurança necessária
para que a exploração continue. [...]
No âmbito da formação discursiva jurídica discursiviza-se sobre a segurança
individual. Observamos, no entanto, na sdr3 que a finalidade das leis, de acordo com os
saberes anarquistas, é manter a subordinação do trabalhador em relação ao patrão, a
perpetuação dos direitos de uma minoria, ou seja, o direito à propriedade é garantido
àqueles que têm maiores condições materiais e intelectuais, que possuem o controle os
meios de produção. Disso, se pode concluir que a única utilidade das leis é a manutenção
de direitos a quem os tem; no caso dos modos de produção, reprodução, a lei trabalha
mais em benefício de uma minoria privilegiada que por interesses coletivos. Esse
processo confirma a distribuição desigual dos lugares sociais e de suas funções, visto que
a propriedade passa a ser, também, um instrumento de dominação, de subordinação do
trabalhador pelo patrão.
Nesse sentido, vale lembrar que, partindo da distinção entre duas modalidades de
propriedade, Proudhon elabora seu pensamento econômico. À propriedade-domínio
opôs a propriedade-posse. A primeira significa, simultaneamente, o direito absoluto
sobre os produtos, a possibilidade de acumulação individual, instrumento de exploração
do homem pelo homem, entre outros elementos. De forma diferente, a propriedade-posse
é por ele entendida apenas como usufruto, isto é, pertence ao trabalhador aquilo que ele
conseguir produzir. A posse apresenta-se como garantia individual diante da
coletividade. Sua obra “o que é a propriedade?”, de 1840, apresenta os fundamentos de
131
sua concepção econômica. Proudhon aponta as contradições existentes nas sociedades,
como também a recusa do capitalismo, por parte dos anarquistas, por acreditarem que
gera exploração. O roubo é o que o autor chamou de “mais-valia” e também de “erro de
conta”, uma vez que o trabalhador, individualmente, não recebe sua parte no trabalho
coletivo do qual participou. Em síntese, o roubo nada mais é do que a subtração de um
bem alheio mediante violência.
Na perspectiva da Análise do Discurso, Pêcheux (1995) caracteriza esse modo de
subjetivação como processo de identificação, ou seja, há uma identificação entre os
saberes sujeito universal e o indivíduo se reconhece como sujeito no interior da FD
anarquista, de tal modo que, ao ser interpelado, ao reconhecer-se pela forma-sujeito,
identifica-se plenamente com saberes circunscritos dessa forma-sujeito. Na concepção
anarquista, a proteção à propriedade é injusta e indevida e o respeito à lei é a condição de
existência da exploração do trabalho.
sdr 4 - Como todas as leis sobre propriedade, quer enchem grossos volumes de Códigos de Direito
e fazem as delícias de nossos advogados, não têm qualquer outro objetivo senão proteger a
apropriação injusta, garantir que certos indivíduos se apropriem indevidamente do trabalhado
de outros seres humanos, não há nenhuma razão que justifique a sua existência.
Conforme se pode ler na sdr4, as leis sobre propriedade configuram a prática dos
legisladores e dos advogados, cujo objetivo é proteger a apropriação e garantir que certos
indivíduos se apropriem indevidamente do produto de outros. Contraditoriamente, alega-
se que quem legisla pode exercer uma fiscalização que não seja em favor de todos. Tal
prática é considerada injusta pelo sujeito-enunciador, o qual, nas análises sociais,
considera defesa de interesses próprios e, concomitantemente, uma das causas da
criminalidade pela desigualdade nas relações indivíduo/sociedade que se estabelece. O
Estado, por ser centralizador e absorvente de todas as forças e relações de poder, torna-se
a causa do desequilíbrio das relações indivíduo/sociedade, digamos, a razão do conflito.
Dentro dos fundamentos de uma teoria materialista do discurso, Pêcheux (1995)
vai dizer que a ideologia tem como função principal produzir uma idéia de evidência
“subjetiva”, ou seja, evidências nas quais se constitui o sujeito. A análise das sdrs acima
mostra que a evidência dos sentidos nos faz perceber como transparente aquilo que
retorna no interdiscurso, ou seja, o que retorna são os saberes da FD anarquista nos
discursos de Proudhon e, agora, no de Kropotkin. Tal efeito do interdiscurso funciona
como memória do dizer, que as palavras recebem seus sentidos de formações
132
discursivas postas em relação a um conjunto de ações diretas e que estão articuladas aos
projetos dos anarquistas, tai
s como a negação das leis.
Na análise de nosso corpus, o que retorna do discurso de Proudhon no discurso de
Kropotkin sobre a propriedade é que a sociedade deveria ser constituída, ao mesmo
tempo, de forma natural. O produtor, nesse contexto, seria livre para entrar ou sair da
associação e formar outras novas. Conforme podemos depreender na sdr 5, somente
uma “Revolução” poderá extinguir todas essas leis (leia-se injustiças, direito de
propriedade a uma minoria) e tornar possível um mundo novo e, conseqüentemente,
acabar com a escravidão ou o servilismo de todas as épocas.
sdr 5 - No dia da Revolução, os revolucionários sociais estão firmemente decididos a acabar com
todas elas. E na verdade, nada mais justo do que fazer-se uma grande fogueira ao ar livre lançando
nela todas as leis que tratassem dos assim chamados “direitos de propriedade”, todos os títulos de
propriedade, todos os registros e escrituras: em uma palavra, tudo aquilo que tivesse qualquer
ligação com uma instituição que logo será vista como uma nódoa na história da humanidade,
tão humilhante quanto à escravidão ou o servilismo de outras épocas.
O que podemos perceber, através das sdrs acima, é que no combate à propriedade
o discurso de Kropotkin identifica-se aos saberes dominantes no interior do movimento
anarquista, o que caracteriza uma prática política que rejeita o Estado, o governo e se
mostra contrária à delegação de poder a terceiros. Nos domínios de saberes antagônicos
que constroem o imaginário do aparelho jurídico, a lei não representa nenhuma resposta
ao anseio da coletividade, por isso possui caráter mercantilista e antidemocrático. A lei,
segundo Kropotkin, tem grande potencial para o mal e pode também ser um instrumento
de opressão, porque protege fraudes, inibe a liberdade e promove a escravidão. Nesse
caso, a quantidade das leis é a prova de um mau governo e da decadência de uma nação,
porque são os maus costumes que colocam os homens na contingência de fazer leis.
Em outras palavras, temos o sujeito do discurso constituindo uma posição
antagônica, um lugar nas relações de dominação, e segundo o qual não há mundo novo
sem “Revolução”, sem a extinção de todas as leis, pois nenhum estado revolucionário se
concretiza senão por práticas que venham desarranjar as condições em que se produzem
os saberes estatais (jurídicos). Desse modo, as relações de poder são atravessadas pelo
coletivismo, conforme podemos observar nas sdrs a seguir, também recortadas do texto
1, de autoria de Kropotkin (p. 124 e 125), integrado ao bloco discursivo I desta tese.
Vejamos.
133
sdr 6 – [...] aquelas destinadas a manter os governos, ou seja, as leis constitucionais.
sdr 7 [...] criados como o fim de proteger as diversas formas de governo, seja ele
representativo, delegado ou usurpado, sob cujo tacão a humanidade se contorce.
sdr 8 [...] é proteger e manter através da força, os privilégios das classes dominantes a
aristocracia, o clero e os comerciantes.
sdr 9 [...] o têm qualquer outro objetivo senão manter, remendar e desenvolver a máquina
administrativa. [...]
Assim, se a prática do coletivismo fundamenta-se no federalismo, no
antiautoritarismo e na autonomia do socialismo do século XIX, a crítica ao
individualismo burguês evidencia o caráter do centralismo estatal e a remuneração do
trabalho individual como grandes usurpadores do homem. As sdrs de 6 a 9 comprovam
isso. A proteção da propriedade não representa apenas posse, mas indica a regularidade
da prática jurídica, que é a premência de trazer para o interior do Código Civil russo
questões relativas à política e ao poder. Dessa maneira, o combatente contra toda e
qualquer propriedade privada propõe a coletivização como forma de garantir a liberdade
do produtor e o estabelecimento de uma sociedade dos produtores livres no complexo
fenômeno do trabalho: as desigualdades sociais.
Por outro lado, na concepção do anarquista, a coletivização ou a socialização de
instrumentos de produção não deve ser estatizada ou nacionalizada. Vale lembrar que
tanto o Estado, como o princípio de nacionalidade, foram intensamente combatidos por
Kropotkin, Bakunin e Proudhon, por traduzirem ação violenta contra as liberdades
individuais e coletivas, já que o absolutismo se manifesta: a) na política, com os governos
centrais estabelecendo a dominação do homem sobre o homem; b) na economia, com o
capitalismo favorecendo a exploração do homem pelo homem e c) no campo do
imaginário, com a religião e todo o pensamento dogmático instaurando a adoração do
homem pelo homem.
A rejeição aos elementos centralizadores e absorventes da dinâmica social
atravessa todo o discurso de Kropotkin. Na idéia de destruição das instituições
aristocráticas e mistificadoras, conforme as sdrs acima (de 6 a 9), temos a afirmação do
pré-construído sobre a necessidade da negação do outro, seja com desobediência às leis
de proteção à propriedade, seja com negação da autoridade, como governo delegado ou
usurpado, tendo em vista que esses impõem sobre a humanidade o seu controle.
134
Sabemos bem que as críticas contra as várias formas de governo ocorrem porque estes
buscam proteger e manter através da força os privilégios das classes dominantes – a
aristocracia, o clero e os comerciantes -, enfim, proteger a máquina administrativa.
Dessa maneira, se existem forças tendentes à liquidação das instituições
hierárquicas e aristocráticas, é porque há outras propensas a manter o antigo regime, mas
de que maneira estabelecer novas instituições sem a centralização? Nesse contexto, temos
o combate, de forma explícita, de um “deus-todo-poderoso”, lançado nas bases do
discurso jurídico e avesso aos dogmas do Estado, objetivando a transcendência dessa
soberania: o campo da prática revolucionária. Se a Religião, o Estado, a Ciência e Deus
eram vetor da moral e da verdade, agora este papel, certamente, cabe à Revolução,
sobremodo aos anarquistas. Esse papel se desdobra facilmente na extinção das leis,
códigos e fórmulas fechadas que, estranhamente, regulam as sociedades.
3.2. 2 Da propriedade à exploração do trabalho
No conjunto das contribuições anarquistas, no que diz respeito aos direitos do
cidadão, encontramos como pauta de discussões o direito à educação, a garantia das
condições materiais para a sua sobrevivência (o trabalho) e os direitos fundamentais à
formação da cidadania. Como falar de direitos civis sem voltar à ética e à moral?
Impossível, uma vez que os direitos do cidadão estão atrelados a todos os compromissos
que fornecem sustentação ao exercício da cidadania, sobretudo no que se refere ao
comportamento civilizado do homem. Voltando ao texto, o que se remonta nas sdrs
abaixo (10, 11 e 12) é um retorno insistente no discurso de Kropotkin, no sentido de
mostrar falhas e abusos na aplicação das leis, e é exatamente por isso que elas se tornam
inúteis e perniciosas.
Na sdr 10, um dos argumentos utilizados pelo sujeito-enunciador para mostrar a
inutilidade das leis diz respeito à prevenção do crime. A garantia do direito à segurança
deveria assegurar ao indivíduo a liberdade de ir e vir, sem qualquer tipo de exposição à
violência. No entanto, para salientar que as leis são uma farsa e para dar sustentação ao
seu dizer, o sujeito-enunciador mobiliza saberes da formação discursiva jurídica, os quais
se antagonizam aos saberes da formação discursiva anarquista. Ao mesmo tempo em que
reconhece a eficácia da lei na preventiva do crime, fica explicitado que nenhuma
135
terapêutica da criminalidade é possível quando se concedem direitos especiais a alguns,
conforme demonstra a sdr 10 que analisamos:
sdr 10 - Resta considerar a terceira categoria, aquela que diz respeito à proteção dos indivíduos e
ao combate e prevenção do “crime”, a mais importante delas, já que a maior parte dos preconceitos
a ela estão vinculados: porque, se desfruta de uma certa consideração especial, é em
conseqüência da crença de que este tipo de lei é absolutamente indispensável à manutenção da
segurança em nossas sociedades. [...]
Como os discursos e o sujeito são constituídos pela opacidade e incompletude, o
que está posto na língua a respeito das leis abre espaço para o real da história também
operar e, nesse caso, tudo que está “fora da língua” está dentro dela, ou seja, dentro das
condições de produção, no contexto russo, as leis tzaristas não reconheciam nenhum
direito ao cidadão, pelo contrário, sempre visaram à manutenção da hegemonia estatal e,
como a maioria dos cidadãos eram camponeses analfabetos, o aparelho estatal mantinha
controle sobre eles, que sequer sabiam de seus direitos e, fora dos movimentos operários,
sequer reagiam contra a forte repressão do aparelho jurídico. Logo, a posse desse direito,
que seria protegida pela lei, torna-se apenas um pretexto, a partir do momento em que as
leis se revelam preconceituosas ao conceder direitos especiais a alguns e excluir aqueles
que questionam essa forma de estruturação da sociedade.
Nesse sentido, podemos pensar a educação do indivíduo no convívio em
sociedade, já que existem regras de convivência, as quais vão garantir a sua organização.
Vale lembrar que a preocupação com a educação foi constante no pensamento
anarquista. Proudhon, Bakunin, Stirner, Reclus e Kropotkin desenvolveram reflexões
que orientaram os trabalhadores do mundo inteiro. As discussões e programas de
incentivo à educação integral marcaram a história das lutas sociais no mundo, servindo
de referencial para os movimentos sociais em diversos países. No Brasil, a
experimentação nesta área foi bastante intensificada.
A educação, como um processo, objetiva a aquisição de conhecimentos técnicos,
ou a formação de um saber de erudição, e representa um meio de libertação individual e
social. A prática educativa deve comportar a observação direta, o livre exame, o debate
franco e a experimentação constante por parte do aluno. Essa totalidade na formação do
ser humano constitui objeto constante numa educação anarquista: desenvolvimento
intelectual, físico e da maneira de convivência social. É neste último campo que se
trabalha, por um lado, a crítica à sociedade capitalista, estatista e religiosa e, por outro, a
136
prática de uma sociabilidade libertária e igualitária enfrentando e negando os
preconceitos sexuais, de classe e religiosos.
A educação como ponto de partida na vida em sociedade põe à prova a vivência
social humana. Foi com base nesses postulados que as primeiras experiências
educacionais anarquistas praticaram a co-educação sexual nas escolas, problematizando
e até abolindo programas, avaliações e títulos e enfrentando os preconceitos religiosos.
Vale salientar nesse último aspecto que um dos postulados da educação gerou debate, o
qual se deu num período em que o poder da Igreja na sociedade era muito forte,
exercendo um domínio e controle muito estreito da vida social. Tanto que as escolas
anarquistas foram perseguidas, chegando a ponto de o Estado e a Igreja Católica
assassinarem os militantes como se fossem criminosos. No Brasil, as escolas foram
fechadas pelo governo, sem esquecer da violência e intensa repressão estatal ao
movimento operário.
O revolucionário russo Mikhail Alexandrovitch Bakunin (1814-1876)
94
, por
exemplo, elaborou reflexões críticas à idéia de ciência como novo vetor de produção da
verdade absoluta. Em muitas de suas discussões demonstrou o grau de proximidade e
semelhança entre o sacerdócio cristão, como veículo da verdade revelada, com os
políticos que impõem uma vontade soberana do monarca ou da maioria, e dos cientistas
descobrindo a verdade dos fenômenos naturais e sociais. Segundo Kropotkin, a política e
a ciência moderna operam com referenciais transcendentais e instauram novas ordens,
novos absolutismos. À Providência divina corresponde uma Providência política. No
texto que analisamos, vemos que o dispositivo “propriedade” estabelece e mantém as
hierarquias; nutre a relação dominação/submissão, desenha a autoridade do não-
criminoso, a quem indivíduos e agrupamentos sociais deveriam estrita obediência.
O Estado aparece como aquele que institucionalmente vai operar sobre o cidadão.
Vê-se, desse modo, que as formações discursivas se acham sempre inscritas numa
formação ideológica e mantêm relação com o exterior discursivo (interdiscurso). A sdr 11
faz referência à memória da severidade das penas e aos crimes resultantes da falta de
condições materiais para a sobrevivência. Nesse quadro há uma mesma memória que se
apresenta sob a forma de pré-construído: é preciso ter trabalho para garantir a
sobrevivência, quando não tem o mínimo que precisa para viver como humano, o
94
Reportamo-nos a Avrich , Paul. Os anarquistas russos. Madrid: Alianza Editorial, 1974.
137
comportamento do cidadão será de um criminoso, conforme se pode observar na sdr a
seguir:
sdr 11 - Entretanto, há um fato relacionado a este assunto que hoje já foi suficientemente
provado: a severidade da pena não diminui a quantidade dos crimes. Enforque e esquarteje os
criminosos se quiser, e o número de crimes permanecerá igual. Elimine a pena de morte e não terá um
crime a mais, eles diminuirão até. As estatísticas o provam. Mas se a colheita for boa, o pão
barato e fizer bom tempo, o número de crimes cairá imediatamente. [...]
Pode-se ainda constatar na sdr acima que a educação é um requisito básico na
prevenção do crime. Segundo a concepção anarquista, além da educação, as condições
materiais são indispensáveis para uma vida sem crimes. A teoria das forças coletivas
inicia com Proudhon (1864), o qual elaborou uma das contribuições fundamentais à
formação e estabelecimento da sociologia enquanto ramo autônomo e específico da
ciência. Ele chamou a atenção para a realidade existencial desta sociedade como uma
ordem superior à mera soma de indivíduos. Se a realidade individual se apresenta a
nossos olhos como obviedade, a consciência como manifestação de uma realidade social
necessita de um maior esforço nos estudos dos fenômenos humanos.
Nesse sentido, a ação comum é sustentada pelas forças coletivas. Quando algumas
pessoas se solidarizam e convergem esforços num objetivo comum, não existe razão para
o crime, que cada um livremente coopera dentro de seu grupo de convívio. O
capitalismo, por sua vez, retribui apenas para o trabalho individual, acirrando ainda mais
a disputa entre os indivíduos. Proudhon chamou esse processo de mais-valia. Por outro
lado, se os indivíduos possuem uma consciência de sua condição de vida, a união de
diversos indivíduos na consecução de uma atividade específica se desdobra na elaboração
de um modo específico de visão de mundo, e a conjugação dos esforços individuais não
implica apenas o favorecimento e a potencialização da produção, pois se produz,
simultaneamente aos bens e serviços, um caldeamento das experiências de vida de
maneira a produzir-se uma outra percepção da existência. Por conseqüência, a
redução do crime.
Kropotkin
95
, em seu pensamento social, encontra na “ajuda mútua o fator do
progresso”, a cooperação, não a luta ou a competição, consiste a condição para o
progresso humano como também de todas as espécies animais. Essa tese de Kropotkin
95
Reportamo-nos ao artigo intitulado “O crime do mundo livre”, escrito em 1887 , In: Woodcock (1981).
Os grandes escritos anarquistas.
138
contrapunha-se às diversas escolas filosóficas e sociológicas influenciadas por Charles
Darwin, que tratou da evolução das espécies. Nos estudos de Kropotkin encontramos um
constante esforço em problematizar os pilares da sociedade moderna, enfatizando o
sentido irracional de costumes e das instituições basilares do modo de vida da chamada
“civilização”. As comunas livres medievais são exemplos a que se pode recorrer para
demonstrar na história aproximar de uma sociedade sem governo central. Também no
campo da prática Kropotkin foi diretamente ao campo, verificando no local o modo de
vida das populações, quando esse procedimento se apresentava dispensável para o
conjunto dos evolucionistas em seu tempo. Para ele, o método especificamente científico
era o motivo que o levara a se dirigir às localidades, para ele próprio, e muitas vezes
junto com Reclus, colher os dados para seus estudos. Foi dessa maneira que percorreu a
Sibéria e outros locais da Europa. Reclus, com o objetivo de recolher informações a
partir de uma ação direta, investiu em diversas viagens pelo mundo, inclusive passando
pelo sul do Brasil, onde os trabalhadores o homenagearam fundando uma escola e
dando-lhe seu nome.
Assim, se a produção de alimentos e as condições de trabalho são a solução
possível para a criminalidade, conforme se na sdr 11, de nada adianta a criação de leis
e aplicação de penas severas se a fome e a falta de oportunidade de trabalho voltam. Em
decorrência disso, a reincidência ao crime irá acontecer. Da sdr 11 é possível depreender,
então, que o discurso de Kropotkin não se produz senão para desarranjar a ordem social
e fazer uma nova distribuição dos corpos, que põe em questionamento a eficácia da lei
e de seus métodos punitivos, sobremodo, pela negligência por parte de seus legisladores e
aparelho repressivo do Estado, conforme a sdr 12, a qual permite observar algumas
particularidades no modo de desarranjar/rearranjar as relações de dominação.
sdr 12 - Os principais incentivadores do crime são a ociosidade, a lei leis que regem a
propriedade, o governo, as punições e os delitos – e a autoridade que torna a seu cargo a criação e
a aplicação dessas leis.
Conforme se pode observar na sdr acima, a ociosidade e a impunidade, somadas
aos maus exemplos dos governantes, geram indivíduos propensos ao crime. A posse dos
direitos a uma minoria, e o privilégio de alguns incentivam a exploração do trabalho
humano. Essa posição de conflito entre saberes antagônicos e posições de sujeito
contraditórias possui um encaminhamento de autogerenciamento, a partir do qual os
139
direitos da população russa passariam a ser incluídos nas decisões tzaristas, conforme
mostra a sdr 11: “Mas se a colheita for boa, o pão barato e fizer bom tempo, o número de
crimes cairá imediatamente”, porém de um modo novo, através da autogestão, que
significa o controle da produção e da distribuição de mercadorias pelos trabalhadores
sem a intervenção do Estado.
Em face do discurso de Kropotkin, entende-se a necessidade de os anarquistas
trabalharem para instruir e orientar a população russa. O discurso proferido aos últimos
não vem senão para alertar sobre a exploração dos governos e sobre os perigos das leis,
sobretudo da repressão exercida pelos aparelhos ideológicos de Estado, o que define a
relação de conflito entre saberes das FDs jurídica (estatal) e da FD anarquista. Para toda
ação individual há como premissa a autogestão social, ou seja, a gestão da sociedade como
fruto da participação direta, o que significa que a democracia participativa é necessária e
prevalente à democracia representativa. Ação individual, aqui traduzida por ação direta,
realiza-se por meio da propaganda, da educação e da cultura com o objetivo de refletir e
colocar em questão a autoridade do Estado sobre os indivíduos, buscando a formação de
um novo tipo de sociedade alternativa à atual, uma sociedade que essencialmente
reproduzirá a liberdade.
Nesse discurso de Kropotkin também está posto que, enquanto a maior parte da
população produz, uma minoria, por ter posse de bens materiais e por controlar os meios
de produção, tem o direito de ficar sem produzir e explorar. Por outro lado, a falta de
oferta de trabalho e o despreparo podem gerar a ociosidade e, conseqüentemente, levar
ao mundo do crime. Nesse caso, a Revolução, o mundo novo, vão rearranjar a
sociedade
96
. A reorganização social, de acordo com os postulados libertários, “de cada
um conforme suas possibilidades e a cada um conforme suas necessidades”, ao lado da
rejeição à propriedade privada e estatizada, defende a socialização dos meios de
produção, a qual interfere na prática política. As trocas deveriam ocorrer de forma direta
e a partir das necessidades dos produtores, devendo, portanto, ser fruto do entendimento
livre dos produtores em suas associações e comunas produtivas.
As sdrs analisadas permitem concluir que, para Kropotkin, ao contrário das
críticas feitas ao seu pensamento, qualquer sociedade atingida pelo profundo processo de
industrialização sofre a divisão social do trabalho, da internacionalização das relações
96
Vale lembrar que o russo Piotr Kropotkin (1842-1921) e o italiano Errico Malatesta (1853-1932) são os
nomes mais representativos da proposta anarcocomunista.
140
econômicas na sociedade moderna e da crescente complexificação das relações entre os
povos, tornando impossível o estabelecimento de cálculos aproximados, acerca da
contribuição individual no processo produtivo, estabelecido de uma maneira cada vez
mais coletivizada.
Quanto ao papel do sujeito enunciador, a sua relação com o grupo corresponde às
posições-sujeito, no interior da FD anarquista russa (FDAR), confirma a necessidade de
resistir a diversas formas de coerção e interpelação da lei. A esse respeito, é possível
surpreender que o papel do orador político dissolva radicalmente a fala do dominado,
dos necessitados. Suprime e torna impossíveis as falas repentinas e paralelas que
pudessem vir a se tornarem públicas, evocando-as apenas como reminiscências. É como
se, em virtude dos acasos e dos perigos de se auto-representar, necessitasse apagar as
diferenças para um outro discurso emergir.
Courtine (2006, p. 82-83), questiona a orientação dos trabalhos na análise do
discurso político, dizendo que um dos objetos de análise têm sido os enunciados pelos
porta-vozes legítimos de máquinas políticas. Segundo o autor, por que não nos interessar
pelo funcionamento oral, comum, ordinário do discurso político ou pelos efeitos de
recepção de uma máquina?
É, pois, nesse lugar que queremos situar o papel do articulador, ou seja, é nessa
função vazia deixada pelo papel do porta-voz
97
que tem assunção a função do
articulador. Em vez de o povo ser falado, como ocorre com a presença do porta-voz que
o representa ao falar publicamente para/sobre os seus com o adversário, ou seja, com o
outro com quem negocia, fazendo demandas em nome do / falando pelo povo, o
articulador se identifica com grupo, mas não fala a partir da coletividade, ou seja, do
lugar social ocupado pelo grupo que representa, mas sim de seu lugar social. No caso do
nosso corpus, as análises mostraram que esse lugar social geralmente é ocupado por um
intelectual, um militante ou um trabalhador e, de acordo com esse lugar social, passa a
enunciar-se e a interpelar o grupo, trazendo para o interior de sua fala as necessidades
97
Para trabalhar a noção de articulador, entretanto, precisamos da noção de porta-voz, elaborada por
Pêcheux no artigo de Conein intitulado “Delimitações, inversões, deslocamentos” (1982), no qual o autor
busca sustentação em “Décrire un événement politique” (1981). Segundo Pêcheux, Conein trabalha a
posição do porta-voz no acontecimento histórico da Revolução Francesa, desempenhando o papel de
“agentes políticos”, ou seja, esses agentes políticos, em nome do coletivo fazem discursos públicos para e
sobre o povo, enunciam demandas de ação em nome do povo” (1981, p. 55).
Conforme Pêcheux (1981, p. 59), a posição de porta-voz revela no discurso um lugar reconhecido e
institucionalizado. O que é falado publicamente por x no enunciado faz-se sempre nome de um grupo e,
portanto, não se trata de uma escolha do locutor em nome da pessoa que fala, que o enunciador inclui-
se como membro do grupo em nome do qual fala.
141
dos seus representados, do grupo com o qual ele se identifica. O sentido dessa ação pode
ser compreendido do seguinte modo: o lugar do enunciador e posições-sujeito, no
interior de uma mesma FD, em vez de apagamentos, emergem lembranças, que o
articulador passa a falar como se fosse um dos membros do grupo, embora não seja um
mediador autorizado, institucionalizado, a sua ação torna-se legítima pelo fato de trazer
à tona o que está silenciado, mais especificamente, por não fazer calar as diferenças e
tornar, ainda mais evidentes, as relações de antagonismos. A importância de seu papel
não está mais na mediação, mas disputa ideológica e na qualificação de saberes que
pertencem a uma e outra FD, nos deslocamentos produzidos no interior do discurso e
orientação das práticas políticas.
Nesse sentido, no nosso trabalho, a função ocupada pelo articulador é dar
sustentação ao grupo para agir, para definir suas práticas, já que ele, o articulador (ou o
orador político), encaminha as questões políticas do grupo no interior do próprio
anarquismo.
3. 3 Negação do aparelho jurídico
Tolstoi revelou-se defensor da “luta camponesa", e isso o fez um dos
inspiradores de Gandhi, por exemplo. As idéias de Tolstoi possuíam um senso de justiça
muito crítico em relação à sociedade russa do século XIX, com suas imensas
desigualdades, e a autocracia czarista retomou justamente este espírito rebelde, muito
consciente e muito contrário às injustiças de sua época e lugar; crítica social contra todo
tipo de opressão, desigualdade e violência. Enfim, um dos mais contumazes críticos do
czarismo, não sendo preso ou extraditado para a Sibéria por ser nobre (tinha o título
de conde, do qual abdicou) e ter um grande renome internacional.
Apesar de todas as suas denúncias contra as injustiças e a opressão, recusou-se
a um comprometimento com um partido ou um programa político partidário, pois o
acreditava que sem uma revolução se pudesse solucionar os problemas da sociedade.
Para ele, a única sociedade capaz de trazer harmonia era a anarquista, na qual não
Estado, propriedade, classes, e onde todos vivem de seu próprio trabalho, não da
exploração do trabalho alheio, como vínhamos, pouco, mostrando no texto acima.
Dessa maneira, o primeiro bloco de seqüências discursivas a serem analisadas e que
142
movimentam saberes da FDAR é tomado como sendo de referência neste trabalho.
Passemos, pois, para o texto 2.
Texto 2
A violência das leis
Leon Tolstoi
98
Muitas constituições foram criadas - a começar pela inglesa e a americana,
terminando com a japonesa e a turca - de modo a fazer com que as pessoas acreditassem que
todas as leis estabelecidas atendiam a desejos expressos pelo povo. Mas a verdade é que não
nos países autocráticos, como naqueles supostamente mais livres - como a Inglaterra, a
América, a França e outros as leis não foram feitas para atender a vontade da maioria, mas
sim a vontade daqueles que mais vantagens possam trazer à classe dominante e aos
poderosos. Em toda a parte e sempre, as leis são impostas utilizando os únicos meios capazes
de fazer com que algumas pessoas se submetem à vontade de outras, isto é, pancadas, perda
da liberdade e assassinato. Não há outro meio.
Nem poderia ser de outro modo, que as leis são uma forma de exigir que
determinadas regras sejam cumpridas e de obrigar determinadas pessoas a cumpri-las (ou
seja, fazer o que outras pessoas querem que elas façam) e isso pode ser obtido com
pancadas, com a perda da liberdade e com a morte. Se as leis existem, é necessário que haja
uma força capaz de obrigar as pessoas a respeitá-las. E uma força capaz de fazer com
que alguns seres se submetam à vontade de outros e esta força é a violência. Não a violência
simples, que alguns homens usam contra seus semelhantes em momento de paixão, mas uma
violência organizada, usada por aqueles que têm o poder nas mãos para fazer com que os
outros obedeçam à sua vontade.
Assim, a essência da legislação não está no sujeito, no objeto, no direito, na idéia do
domínio da vontade coletiva do povo ou em qualquer outra condição tão confusa e
indefinida, mas sim no fato de que aqueles que controlam a violência organizada dispõem de
poderes para forçar os outros a obedecê-los, fazendo aquilo que eles querem que seja feito.
Assim, uma definição exata e irrefutável para a legislação, que pode ser entendida
por todos, é esta: "as leis o regras feitas por pessoas que governam por meio da violência
organizada que, quando não acatamos, podem fazer com que aqueles que se recusam a
obedecê-las sofram pancadas, a perda da liberdade e até mesmo a morte."(A escravidão de
nosso tempo, 1900. In: Os grandes escritos anarquistas, p. 106-107)
O discurso de Tolstoi trabalha no sentido de colocar em evidência saberes
próprios da FDAR, negando as práticas político-discursivas de instituições como o
Estado, a Igreja, a Constituição, o Código Civil, por exemplo. Podemos observar, além
disso, que Tolstoi (1828-1910) estabelece interlocução com uma camada social com a
qual se identifica, estabelecendo uma relação de identidade.
98
O russo Liev Tolstói, também conhecido como on Tolstói ou Leão Tolstoi, Lev Nikoláievich
Tolstói (1828 1910) foi muito influente na literatura e política de seu país do século XIX. Dentre várias
obras que escreveu, citamos Guerra e Paz e Anna Karenina. Tolstoi, considerado cristão libertário, exerceu
importante influência no desenvolvimento do pensamento anarquista e desenvolveu críticas às instituições
eclesiásticas, o que provocou sua excomunhão da Igreja Ortodoxa. Ele propunha que do cristianismo todo
ritualismo e todo misticismo (muito importantes na ortodoxia e no catolicismo) fossem abolidos, para
transformá-los numa doutrina puramente moral, o ritual da eucaristia, para ele, era uma "bruxaria
sacrilégica”.
143
O discurso produzido pelo militante anarquista Tolstoi toma como destinatário,
em primeira instância, o povo russo, no intento de mostrar: a) as contradições existentes
no aparelho jurídico; b) a suposta validade das leis, que a sua existência justifica-se
somente pela proteção da autocracia, da classe dominante; c) a utilização de métodos
coercitivos e violentos para garantir a sua eficácia.
Em segunda instância, o discurso de Tolstoi coloca em evidência a presença de
um sujeito articulador que, ao negar a lei, trabalha para mostrar as contradições
existentes no aparelho jurídico e na sociedade russa, tomando como destinatários o
operariado russo. Desse modo, o sujeito anarquista constrói, para os interlocutores, um
imaginário do aparelho jurídico em torno dos direitos, ou seja, interpela-os, chamando
atenção para a importância de sua união no combate da violência, que, para uns, a lei
é a garantia do direito e para a maioria, a imposição do dever, da obrigação.
Courtine (1981) diferencia condições de formação das condições de produção.
Conforme trabalhamos no início deste capítulo, as condições de formação possuem
características interdiscursivas que dominam os processos discursivos, onde se encontram
os pré-construídos, a memória e o esquecimento, os conjuntos de enunciados que
constituem os saberes próprios de uma FD. É pelas condições de formação que
percebemos as relações estabelecidas entre o sujeito enunciador e o sujeito universal.
Dessa maneira, o sujeito articulador precisa lembrar os saberes da formação jurídica para
interpelar o operariado russo e levá-lo a reagir contra os abusos do aparelho jurídico e
combater o mal praticado por ele.
Quanto às condições de produção do discurso, na perspectiva de Courtine (1981,
p. 21-22), é o modo como são trazidas as condições históricas para o interior do discurso,
as relações sociais, que as condições de produção são um efeito da historicidade.
Segundo Courtine (1982), constituem uma das operações de organização de um corpus discursivo
porque regulam a relação da materialidade lingüística de uma seqüência discursiva com
as condições históricas que determinam sua produção; funda-se, assim, nos
procedimentos de análise de um corpus um conjunto de seqüências discursivas dominadas
por um determinado processo histórico, por um conjunto de saberes e práticas
representativos de determinados domínios de saber.
Nesse caso, de acordo com Courtine (1981), é “pelo interdiscurso que a memória
intervém”. Os saberes que circulam nessas FDs constituem a base do discurso anarquista
e constituem seus pré-construídos, pois trazem “verdades” que são reinscritas nos
acontecimentos histórico-discursivos, ou que, às vezes, nem precisam mais ser repetidas,
144
porque “todos sabem”, sobre a repressão e sobre outros atos de violência praticados
contra os anarquistas e anarcossindicalistas. É por essa razão que podem ser
identificadas como “sempre-já-aí”.
Podemos reconhecer domínios de saberes do anarquismo, tais como o profundo
sentimento de rejeição à violência das instituições, ao mesmo tempo em que,
contraditoriamente, destina ataques à disciplina estatal e aos métodos coercitivos
legalizados. Tolstoi procura mostrar a importância de lutar contra as coerções, limitações
e imposições do aparelho jurídico, pois a permissividade e a submissão constituem a
porta para o abuso de poder, a repressão, a corrupção e o aniquilamento da sociedade
russa. Desse modo, ao estabelecer relações de antagonismo contra o aparelho jurídico da
sociedade russa do século XIX, com suas imensas desigualdades, e contra o regime
tzarista, os anarquistas colocam-se numa posição antagônica, a partir da qual defendem
que a lei não beneficia o povo, somente as classes detentoras do poder.
Para transformar a sociedade, Tolstoi, por outro lado, faz uma importantíssima
crítica social contra todo tipo de opressão, desigualdade e violência existente na
sociedade russa e que, infelizmente, possuem o respaldo da Constituição tzarista faz
perceber que todas as injustiças eram praticadas pelo Estado e que a igualdade pregada
pelo código jurídico não existia. Aqui vale lembrar que Tolstoi se recusou a um
comprometimento com um partido ou um programa político-partidário, o que justifica
sua posição de anarquista e seus esforços, por meio da literatura, para “derrubar” a classe
dominante e substituí-la por outra através de uma revolução social, já que seus textos
denunciam o estado de exploração dos bolcheviques. Como anarquista apregoa o
coletivo; a única sociedade que se harmoniza é aquela onde não há Estado, propriedade,
classes, onde todos vivem de seu próprio trabalho, não da exploração do trabalho alheio.
Como cada analista produz seus gestos de interpretação, a opção por trabalhar
com mais de uma FD nos leva a observar que enunciados migram desses momentos
históricos, que falas constituem a região do interdiscurso, próprias a cada FD em estudo.
Desse modo, através das relações de antagonismo entre anarquistas e o Estado (lei), o
quadro-síntese a seguir mostra como Tolstoi constrói uma imagem do aparelho jurídico
para o seu interlocutor (o povo), tomando como referente a simbolização do
acontecimento histórico, que é a greve russa de 1905.
Assim, a fim de caracterizar as relações de antagonismo entre o que o Estado
promove e os efeitos nocivos da lei sobre o cidadão russo, tomamos como objeto de
145
análise as sdrs recortadas do texto “a violência das leis”, de Tolstoi, o qual retoma
saberes da FD jurídica da forma como segue:
sdr 13 - Muitas Constituições foram criadas [...] de modo a fazer com que as pessoas
acreditassem que todas as leis estabelecidas atendiam a desejos expressos pelo povo.
sdr 14 – Mas a verdade é que só nos países autocráticos, como naqueles supostamente mais livres
[...] as leis o foram feitas para atender a vontade da maioria, mas sim a vontade daqueles
que mais vantagens possam trazer à classe dominante e aos poderosos.
sdr 15 Não a violência simples, que alguns homens usam contra seus semelhantes em
momentos de paixão, mas uma violência organizada, usada por aqueles que têm o poder nas
mãos para fazer com que os outros obedeçam a sua vontade.
sdr 16 – “Assim, a essência da legislação não está no sujeito, no objeto, na idéia do domínio da
vontade coletiva do povo ...”
Observamos, inicialmente, na sdr 13 que a lei é considerada uma mentira, uma
grande farsa, e a proteção dos direitos do cidadão não passa de uma ilusão, devido ao
caráter autoritário das constituições. Na mesma medida em que as posições antagônicas
se revelam, o articulador procura mostrar a contradição existente no aparelho jurídico,
interpelando o povo russo a negar a sua existência, tendo em vista a promessa de algo
que não ocorre na prática. Por outro lado, essa interpelação está respaldada em saberes
que se identificam com a FDAR e se antagonizam com a FDJ, ou seja, através do
encontro de uma memória histórica com uma atualidade, na região do interdiscurso, são
lembrados saberes como antiautoritarismo. No entanto, o articulador faz o seu
interpelado ver que quem sustenta a dominação é o próprio dominado, que não diz
não e não sabe se autogerir.
Assim, o papel do articulador está no trabalho investido para a formação de um
sujeito político, dentro dos grupos de operários, já que a sua interpelação põe em
evidência os lugares sociais que cada um ocupa na luta de classes, fazendo os
trabalhadores perceberem que não são iguais e, justamente por isso, não razão para
concordarem com o seu opositor, nem mesmo quando coagidos ou violentados. Essa
contradição existente no interior da luta de classes retoma um saber do anarquismo, que
é a autogestão.
Do mesmo modo, na sdr 14 a autocracia mantém relações de alianças com a
classe dominante, com o corpo de legisladores e aparelho jurídico. Na verdade, o que o
sujeito articulador faz é mostrar que as leis são feitas para proteger esse grupo dominante,
146
o que o deixa de ser uma hipocrisia, um aviltamento aos direitos fundamentais do
homem. Conforme orientação anarquista, a autonomia é a condição indispensável para a
liberdade individual/coletiva, ou seja, o respeito às decisões, vontades e opiniões do
indivíduo em relação ao grupo e vice-versa. Só que, para isso, não deve haver relações de
dependência que impeçam as pessoas de se posicionarem livremente.
Quando não se tem autonomia, a violência torna-se muito maior, que favorece
todo tipo de exploração, conforme podemos observar em sdr 15, porque se trata de uma
violência planejada, praticada de forma intencional por parte daqueles que têm o poder
nas mãos. Ora, posto isso, subentende-se que os métodos utilizados para que a lei seja
obedecida o coerção, manipulação, ameaça, ou seja, a violência praticada pelo abuso
de poder, ações fundamentadas no princípio irracional de superioridade e que são
destrutivas para o convívio em sociedade, ou seja, ao contrário de proteger e organizar a
sociedade, o aparelho jurídico gera mais violência. Nesse sentido, o proletário russo, ao
ser interpelado pelo articulador, via negação das leis e do aparelho jurídico, é convidado
a somar esforços para alcançar uma melhor qualidade de vida para todos. Nesse caso, em
oposição aos saberes da FDJ, é mobilizado outro saber anarquista, ou seja, o apoio
mútuo.
Desse modo, a ação direta passa a ser estratégia de defesa, que a essência da
legislação está nos interesses daquele que legisla, ou de quem governa, e a revolta, as
greves e os boicotes passam a funcionar como força política e de pressão contra o Estado
e toda a sua máquina administrativa e jurídica. A ação direta, nesse sentido, opõe-se à
idéia de representação delegada a terceiros, ou seja, quando os movimentos sociais
passam a agir, não somente reagir em relação ao sistema, pacífica ou violentamente,
concretiza-se a ação direta. Essa reação é a essência da atuação libertária; é condição
necessária para chegar à revolução social.
Segundo esses saberes, o Estado cria as leis que conduzem à intervenção
deliberada contra a sociedade e, ao ser responsável pelos destinos do cidadão, na medida
em que as condições sob as quais vivemos estão sujeitas à avaliação moral e são
suscetíveis de controle por meio da ação legal, impede, portanto, a iniciativa da
sociedade civil, que os conflitos são resultantes da distribuição desigual e injusta. A
iniciativa do aparelho jurídico, portanto, funciona como um mecanismo de
desmobilização social, mais uma estratégia de proteção do Estado, ou seja, de
apagamento do sujeito político.
147
A lei é apenas uma entre várias instituições básicas de controle social, exercendo
papel limitador e complementar. O fim legal deveria ser o de assegurar a segurança
pessoal para o desenvolvimento espontâneo das relações jurídicas e de cooperação social.
O princípio da autogestão implica ampla liberdade de organização, sem leis coercitivas e
hierarquias; logo, legisladores tornam-se desnecessários. As pessoas tomam para si as
responsabilidades de gerenciamento de suas vidas, os representantes profissionais e
demais poderes são completamente inúteis. Já, o Estado e o governo são opressores,
impõem comportamentos e padrões morais. As leis refletem a imperfeição do aparelho
jurídico, que tem servido para justificar muitos desatinos políticos e opressões. A lei,
nesse sentido, é puro instrumento de dominação. Uma de suas interfaces, sem dúvida, é
a corrupção, já que respalda o abuso de poder.
A falta de controle, o desenfreado arbítrio é a marca mais saliente que caracteriza
o Estado e seus diversos aparelhos. Falar em Estado de direito, pelo controle jurídico,
quando a lei é criada e aplicada pelo próprio Estado, põe em dúvida a sua própria
função, ou seja, parece contraditório controlar juridicamente, quando é o próprio sistema
que cria as normas jurídicas e as aplica. O controle jurídico pode até funcionar em
muitos ângulos do aparelho estatal, mas, no geral, o Estado sempre impõe a sua vontade,
seja contrariando o direito (que ele mesmo cria), seja compondo os conflitos (através de
seus agentes). O papel das leis, portanto, é fazer com que a dominação não seja
considerada como legal e, por ser legal, evidentemente, não é violenta e, portanto, é
aceita. A lei é o direito para o dominante e o dever para o dominado. Ora, as leis e o
aparelho jurídico são instrumentos para o exercício consentido da violência.
A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal
apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia
substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado, ou seja, a dominação de uma classe
é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade
do direito pela idéia do direito ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é
substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas
para todos.
A existência da lei como forma de legalização da violência organizada e de
proteção aos que estão no poder e de imposição da obrigação para muitos é usada por
Tolstoi para interpelar o povo russo. Observemos o quadro a seguir.
148
Processo de Interpelação – quem são os interpelados por Leon Tolstoi?
Bloco 1 Sdrs Modalidades da interlocução
FDAR saberes
anarquistas no
contexto russo
sdr13
sdr14
sdr15
sdr16
as pessoas
pelo povo
a vontade da maioria
outros
vontade coletiva do povo
Quadro-síntese 2
Como podemos observar no quadro acima, esses modos de se reconhecer com o
coletivo, característica bastante presente em textos anarquistas, mostra o que Tolstoi
entende por lei e de que forma busca interpelar seus interlocutores. Cabe ainda salientar
que o saber dominante da FD anarquista é o coletivismo, intitulado libertário
99
e
introduzido por Bakunin, por influência de Proudhon, diferenciando-se do saber
dominante do socialismo leninista, que pregava a ditadura do proletariado via organismo
partidário, engendrada por uma revolução e calcada em decretos posteriores que não se
coadunam com o pensamento anarquista.
O movimento anarquista iniciado por Bakunin, como uma associação
internacional de coletivistas e federalistas revolucionários, consagrou um grande
movimento social de trabalhadores após a sua morte em 1876. Kropotkin
100
, seu sucessor
a partir de 1877, tornou-se um dos principais difusores das idéias de Bakunin. Apesar das
divergências teóricas e práticas, as rias correntes anarquistas vislumbravam ainda um
mundo novo, onde o ser humano poderia atingir a sua perfeição e liberdade máxima
101
.
99
Dentre as inúmeras experiências revolucionárias e organizativas, o anarquismo configurou-se como um
movimento que tinha como objetivo a destruição do poder central do Estado e a instituição da livre
organização da sociedade através da autogestão.
100
Segundo Woodcock (1983, p. 162 - 177), Kropotkin passou grande parte de seu tempo entre os
refugiados russos ouvindo argumentos das várias facções revolucionárias; acreditou durante toda a sua
vida que a revolução era algo desejável e inevitável, mas jamais foi revolucionário atuante. Em contraste
com o espírito violento de Bakunin, Kropotkin buscava a conciliação. Para muitos, representava tudo que
havia de bom na luta russa pela libertação da autocracia czarista e, na medida em que o anarquismo
passou a ser uma teoria séria e idealista de transformação, Kropotkin foi o principal responsável pela
mudança. Graças ao seu contato com servos e camponeses russos mantidos desde a infância, Kropotkin
aprendeu sobre o sofrimento da tirania imposta pelo país, desenvolvendo seu espírito solidário. Para ele, a
revolução deveria garantir, no mínimo, duas coisas: a frustração de qualquer tentativa de que seja criada a
anomalia de “governo revolucionário” e a criação da necessidade de uma igualdade social, visto que todos
os aspectos da vida econômica e social estão interligados, que nada menos do que uma completa e
imediata transformação da sociedade poderá garantir a sua evolução.
101
A esse tipo de pensamento atribui-se o nome de comunismo revolucionário.
149
No entanto, para os trabalhadores do século XIX parecia ser possível transformar o
mundo se todos estivessem unidos, em constante colaboração e cooperação entre as
várias correntes, principalmente no mundo do trabalho, em torno de objetivos de luta
anticapitalista. Por isso, era preciso sair às ruas, fazer enfrentamento a qualquer poder,
através da luta direta.
Isso, no entanto, implicava que essas facções viessem a se sentir corroídas pela
burocratização das suas estruturas partidárias e pela lógica de integração da contestação
social ao sistema que pretendiam, inicialmente, transformar radicalmente. Foi em
conseqüência dessas contradições entre os comunistas e coletivistas que iriam ocorrer
muitos dos debates no seio das Internacionais, mas especialmente entre os marxistas e
anarquistas. Desses debates emergiu com toda força uma concepção revolucionária de
marxismo delineada por Lênin, oposta à prática do coletivismo. Lênin era defensor de
um partido centralizado, disciplinado e militarizado, capaz de desencadear a revolução
social na URSS.
Dentro da mesma materialidade lingüística, uma interlocução discursiva nos
possibilita observar também como o anarquista nomeia o seu interlocutor opositor e a
partir de que lugar político passa a promover a chamada da lei. Para tratar da
interlocução entre o jurídico e o político, voltemos novamente ao texto de Tolstoi “A
violência das leis”, observando o quadro abaixo.
Domínios de saberes inerentes das FDs anarquista russa e jurídica
FDAR FDJ
X justifica a anulação de y
Abolição da lei sob a justificativa de:
Y é sustentado por x
Criação e conservação da lei sob a
justificativa de:
1. Privação da liberdade
2. Uso de meios coercitivos, força
física, castigo.
3. Manutenção do servilismo, da
subordinação, da escravidão
4.
Privilégios à classe dominante
(aristocracia, clero, comerciantes)
5. Sustentação da quina estatal
(Forças Armadas, Polícia, Igreja...)
1. Garantia da liberdade
2. Dispositivo moral, meio legal de
prevenção e contenção da violência
(= harmonia da sociedade)
3. Seguridade de lugares sociais e
hierarquia como forma de
organização
4. Direito à propriedade
5. Igualdade de direitos (proteção da
instituição = governo, Estado, lei)
Quadro-síntese 3
150
Dessa forma, a organização das sds agrupadas neste bloco busca observar como a
formação discursiva anarquista russa (FDAR) dentro do texto de Tolstoi mobiliza
saberes da FD jurídica para denegá-los. O uso de recursos de oposição e da comparação
do tipo "não só", “mas”, "mas também", "mas sim", se, por um lado, efetiva uma prática
que nega a lei e enfatiza os saberes da FDJ que são antagônicos aos da FDAR, por outro,
aponta para a existência de um sujeito dividido, pois, ao mesmo tempo em que
reconhece a existência da lei, questiona o modo de produção e os efeitos jurídicos que
essa lei produz para a vida dos cidadãos proletários, tal como representamos no quadro
acima.
Assim, passaremos, a seguir, a partir das sds, a explicitar a FD anarquista russa
(FDAR) em posição de antagonismo em relação à FD jurídica (FDJ), mostrando como o
aparelho jurídico é falado pelo anarquista, bem como as condições de negatividade da
lei.
3.3.1 Formação discursiva anarquista russa (FDAR) e o coletivismo
revolucionário no combate à violência das leis
Conforme vimos na análise das sdrs acima, a retomada de saberes que identificam
a fala do aparelho jurídico é bastante significativa, na medida em que nos permite
resgatar os seus contrários, ou seja, produz-se um encontro entre uma atualidade e uma
memória. A inscrição dos saberes anarquistas, como autogestão, ação direta,
antipartidarismo, combate a qualquer hierarquia de governo e Estado, retoma um sujeito
esquecido no interior dos movimentos operários: o sujeito coletivo. A inscrição de um
sujeito político que ascenda, no cenário russo, a um lugar em que nele passe a lutar
contra as práticas de coerção e de violência do aparelho jurídico.
A mobilização desse sujeito coletivo fortalece as relações de antagonismos e a
posição-sujeito antagônica em relação aos saberes da FD jurídica. Tal posição aponta
para a necessidade de uma produção que não danifique a sociedade, que não mine mais
as suas bases com ódio e violência e que busca um novo lugar no cenário russo para os
excluídos, referindo-se aos excluídos pelo aparelho jurídico e pelas leis tzaristas. O
surgimento desse sujeito coletivo leva os militantes anarquistas a incentivarem os
operários à ação direta e a sustentar a luta contra o aparelho jurídico, de tal modo que a
sua prática não esteja em contradição com as suas próprias finalidades, ou seja, ao dispor
151
de seus meios de luta - a greve, o boicote, a sabotagem - sua prática, sua ação direta,
devem ser, ao mesmo tempo, a base do anarcossindicalismo e o prelúdio da revolução
social.
Inimigo de toda a violência organizada por toda e qualquer classe no governo, o
anarquismo revolucionário reconhece a violência que se possa empregar como meio de
defesa contra os métodos violentos que utilizam as classes dominantes durante as lutas
que alimentam os revolucionários pela expropriação dos direitos de cidadão e dos meios
de produção. Como essa expropriação poderá ser iniciada pela intervenção direta das
organizações operárias, a defesa da revolução deve encontrar-se também em mãos dos
operários, não em mãos de uma organização qualquer, como a militar ou parecida, que
se desenvolva à margem delas e que ponha em risco os direitos de cidadão, uma vez que
as leis são feitas para atender à vontade da classe dominante. A revolução de classes é a
força capaz de realizar a sua libertação e de reorganizar a sociedade; por isso, a
necessidade de um sujeito coletivo. Desse modo, enquanto se construía a imagem
perigosa dos inimigos do país, via aparelho jurídico, a imagem do sujeito coletivo se
efetivava no campo das representações políticas dentro das organizações e movimentos
operários, despertando esperanças.
Foucault (1979) mostra que uma das especificidades das análises dos discursos é
não buscar compreender o grau de verdade que os discursos revelariam, mas como se
produzem na sociedade, os efeitos de sentido de que podem estar constituídos os vários
discursos. No caso das sdrs recortadas do texto de Tolstoi “A violência das leis”,
encontramos na FDAR a reprodução do discurso que visa ao combate da desordem, com
base na utilização de métodos violentos. De acordo com Foucault, os delinqüentes são
de grande utilidade para os discursos de legalidade da ação do aparelho jurídico e
policial. O que torna a presença policial e do aparelho jurídico tolerável justificável pela
população russa é o medo do delinqüente.
Assim, passamos, a seguir, a partir das sdrs, a explicitar a FD anarquista russa
(FDAR) em posição de antagonismo em relação à FD jurídica (FDJ), mostrando como o
aparelho jurídico é falado pelo anarquista, bem como as condições de negatividade da
lei, ou seja, as sdrs recortadas ainda do texto 2, escrito por Tolstoi, repetem saberes
anarquistas e mostram, a partir de um sujeito coletivo, a interpelação do sujeito pela
ideologia na confluência do funcionamento do interdiscurso e de uma memória histórica,
busca-se o fim do Estado e das relações de poder, fortificando saberes como a defesa da
liberdade e o combate à delegação de poder a terceiros.
152
sdr 17 - Em toda a parte e sempre, as leis são impostas utilizando os únicos meios capazes de
fazer com que algumas pessoas se submetam à vontade de outras, isto é, pancadas perda da
liberdade e assassinato. Não há outro meio."
sdr 18 - Nem poderia ser de outro modo, já que as leis são uma forma de exigir que
determinadas regras sejam cumpridas e de obrigar determinadas pessoas a cumpri-las (ou seja,
fazer o que outras pessoas querem que elas façam) e isso pode ser obtido com pancadas,
com a perda da liberdade e com a morte.
sdr 19 Se as leis existem, é necessário que haja uma força capaz de obrigar as pessoas a
respeitá-las. E só há uma força capaz de fazer com que alguns seres se submetam à vontade de
outros e esta força é a violência.
sdr 20 Assim, [...] mas sim no fato de que aqueles que controlam a violência organizada
dispõem de poderes para forçar os outros a obedecê-los, fazendo aquilo que eles querem que
seja feito.
Assim, uma definição exata e irrefutável para a legislação, que pode ser entendida por todos, é
esta: "as leis são regras feitas por pessoas que governam por meio da violência organizada que,
quando o acatamos, podem fazer com que aqueles que se recusam a obedecê-las sofram
pancadas, a perda da liberdade e até mesmo a morte”.
A partir desses exemplos de sdrs, observamos domínios de saberes antagônicos,
implicadas marcas lingüísticas que também atestam essa presença: a lei (em sua
abstração, o sujeito da FDJ). O modo como os domínios de saberes da FDJ são
retomados pela formação discursiva anarquista russa mostra como a lei priva o sujeito da
liberdade privilegia a aristocracia, o clero e os comerciantes; mantém o servilismo, a
subordinação, a escravidão, de tal modo que a lei existe apenas para dar sustentação à
máquina estatal e aos atributos do aparelho jurídico, por meios como a coerção, a força
física, o castigo; passa a legitimar práticas de violência, que acabam contradizendo os
próprios saberes da FDJ. que se observar também que o lugar ocupado pelo sujeito
enunciador, ao incorporar em seu discurso os saberes de outrem, identifica-se com a classe
dominada, pois, enquanto esse lugar é mostrado dessa forma antagônica e os saberes da
FDJ são denegados, o sujeito enunciador passa a denunciar os fins para os quais as leis
existem.
Considerando que os militantes das facções anarquistas se manifestam como
inimigos das leis, os elementos pré-construídos incorporados às FDs, que se representam
através das sds do texto 2, podem ser resgatados de forma parcial através do texto de
Tolstoi, que denuncia a função da lei. A discordância do sujeito enunciador quanto à
153
existência da lei se em termos de que ela deveria representar a proteção do cidadão,
não a proteção das classes dominantes.
De forma antagônica, a lei é falada no interior da FDAR. Logo, os saberes da
FDJ vão se apresentar da forma que segue:
Saberes da FDAR Saberes da FDJ
A lei não é:
a) o livre-acordo
b) a garantia da igualdade
c) a proteção dos direitos individuais, mas
do Estado
A lei é:
a) a hierarquia
b) o direito a propriedade privada
c) a igualdade social
Quadro-síntese 4
Dos textos analisados e que integram o bloco I, pode-se depreender que ambos
tocam nos mesmos pontos: nas vantagens, nos privilégios dados à classe dominante,
devendo-se isso tudo à imposição feita por um grupo de legisladores e governantes que
legislam e governam em causa própria e, em ambos os textos, o sujeito-enunciador
encontra-se afetado pelas relações de poder e opõe-se aos saberes da FDJ.
Conforme se nas sdrs de 17 a 20, ao mesmo tempo em que a lei visa manter a
ordem e organizar a sociedade, o aparelho jurídico imprime violência física e moral, por
gerar submissão, abuso de poder, ao passo que a essência da legislação deveria estar na
vontade coletiva, no livre-acordo entre os membros de uma sociedade. As leis, quando
são uma forma de legitimar o crime organizado do colarinho-branco e sob a proteção do
Estado, tornam-se inúteis.
As mesmas sds, porém, de uma perspectiva “generalista”, possibilitam a descrição
de suas condições de produção, visto que a generalização “da lei” chama a atenção, em
primeiro lugar, por indeterminar seus destinatários e, desse modo, cria a ilusão de
atender aos interesses de todos.
Desse modo, domínios de saberes antagônicos e a construção do imaginário do
aparelho jurídico vêm construídos pelo papel de um articulador. Como dissemos
anteriormente, a ideologia é a possibilidade do “visível/invisível” nos discursos e
interfere nas formas de subjetivação do sujeito. Conforme vimos anteriormente, para
que alguns sentidos se tornem “visíveis” é necessário que outros (sentidos) permaneçam
silenciados. A oscilação entre o dito e o não-dito, portanto, vai constituir a rede de
154
memória. Por isso, a noção de posição-sujeito deve vir amarrada à de efeitos (do sujeito
ideológico e inconsciente e dos sentidos). Desse modo, a relação entre o lugar assumido
pelo sujeito-enunciador no discurso e o lugar desse sujeito numa dada formação social
apresenta-se como constitutiva dos processos discursivos e incide sobre o papel do
articulador, que difere do papel de porta-voz.
No caso do papel do articulador, o que se deve observar é a relação entre os
lugares de enunciação e posição de sujeito. Para o nosso estudo, vamos tomar, de um
lado, o que Pêcheux formulou sobre discurso-transverso, dizendo que a determinação do
discurso-transverso sobre o sujeito evoca pré-construídos, produzindo efeito de
“‘interioridade’ inteiramente determinada como tal ‘do exterior’”. De outro lado, o
funcionamento do discurso transverso permite que se efetue o encadeamento entre o
discurso relatado e outros discursos, produzindo esquecimentos e lembranças, tendo em
vista que os efeitos de determinação do discurso-transverso sobre o sujeito levam à
relação do sujeito do discurso com o sujeito universal de uma formação discursiva. Os
diferentes atravessamentos do discurso outro definem os papéis do sujeito enunciador,
demarcam sítios, constituem identidade do porta-voz ou do articulador, ou seja, os
efeitos de determinação desses papéis não ocorrem da mesma maneira.
O atravessamento de outros discursos durante a atuação do porta-voz e do
articulador lineariza-se num espaço de resistência, onde esses dois “atores” ressaltam as
diferenças entre os saberes que identificam FDs antagônicas e, sob as formas de “todo
mundo sabe que”, “é claro que” , não trazem o discurso outro mostrando as
diferenças, mas também contestando, interditando, lembrando e/ou apagando.
Em outras palavras, desde “o frágil questionamento de uma ordem, a partir da
qual o lapso pode tornar-se discurso de rebelião, o ato falho, de motim e de insurreição: o
momento imprevisível em que uma série heterogênea de efeitos individuais entra em
ressonância e produz um acontecimento histórico, rompendo o círculo da repetição”,
segundo Pêcheux (1982, p. 17), são pontos de resistências que tornam visível o lugar do
sujeito no discurso e expõem ao outro sua posição de antagonismo em relação aos
saberes de uma dada formação discursiva.
A visibilidade do lugar do sujeito opera sobre o trabalho de memória de duas
maneiras. A primeira produz efeitos de apagamento e, pela segunda, é permitida ao
sujeito enunciador uma operação que produz efeitos de lembranças, fazendo ressoar nos
espaços públicos uma fala em prol dos necessitados. A operação efeito-apagamento é
decisiva na definição do papel do porta-voz e do articulador. Quando o sujeito
155
enunciador trabalha de modo a produzir efeitos de simetria em discursos completamente
antagônicos, atenuando as diferenças, temos a atuação do porta-voz. O porta-voz assume
lugar institucionalizado no grupo - o de líder, de dirigente -, enfim, concentra-se nele a
função de negociação; ele serve de ponto de contato, por meio do qual o diálogo entre
duas classes antagônicas torna-se possível.
Na operação efeito-lembrança, o lugar do sujeito enunciador permite movimentos
de lateralidade (confronto de lugares opostos) e anterioridade, possibilita uma espécie de
modelagem sobre a movimentação dum grupo, fazendo desfilar saberes de FDs
antagônicas que, sob o efeito de memória, ao ressaltar ainda mais as diferenças, dão
trânsito ao dizer de seus representados (do povo). No papel de assessor de imprensa, faz
uma espécie de seleção do que se identifica com o grupo que representa, determina quem
é quem e põe em circulação identidades opostas, sem, no entanto, apagá-las.
O articulador, por ocupar lugar nem sempre institucionalizado, possui autonomia
e autoridade para posicionar-se de modo diferente de seu grupo, sem, no entanto, deixar
de conduzir esse grupo ao desempenho político, já que a sua articulação não se concentra
apenas em apontar as relações de antagonismos, mas também as relações de contradição
no interior desse grupo para o qual parlamenta. Por sua vez, o porta-voz, possui esse
desempenho político, fala em nome de um grupo e para esse grupo, mas, ao representar a
fala do grupo para o qual é nomeado líder, não apaga as contradições existentes no
interior desse grupo, como também apaga a sua voz, que passa a falar em nome do
grupo para os seus oponentes.
O materialismo histórico, definido na infraestrutura ideológica em consonância
com o modo de produção, ou seja, a instância ideológica determinada pela instância
econômica, na medida em que a interpelação reproduz as relações de produção, produz
o efeito do assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico, sob o modo de ocupação
inconsciente de uma das classes que se relacionam de forma antagônica dentro do modo
de produção. Tal antagonismo supõe o reconhecimento desses pontos de resistências
perante o discurso da dominação, quebras de rituais e transgressões de fronteiras; coloca
o sujeito do discurso em posição de negociador e, ao retomar saberes do sujeito
universal, não só parlamenta em nome de uma classe como se “expõe ao olhar do poder
que ele afronta”.
Ainda, para fazer distinção entre o modo de operar na fala de um grupo, que
define o papel do porta-voz e do articulador, queremos trazer algumas das contribuições
do pensamento de Bakhtin (1997) acerca da consciência social. Nesse sentido, vale
156
lembrar o que Bakhtin formula sobre os signos, colocando-os na confluência da
consciência interindividual, que passam a atuar nas formas como a consciência social,
operando suas representações, revela a refração ideológica da própria consciência. De
acordo com este autor, a consciência social alimenta-se e retroalimenta-se nos signos; ela
não adquire forma neles, como também lhes forma, não estando por isso o signo
limitado nem à infra nem à superestrutura, mas pensado a partir da contradição existente
entre ambas. Desde Bakhtin, a língua é lugar do simbólico e “o domínio ideológico
coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo
se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor
semiótico”. E, ainda, “cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da
realidade, mas também um fragmento material dessa realidade” (BAKHTIN, 1997, p.
32-3).
Assim, voltando à questão da ideologia, tanto o lugar do sujeito da enunciação
em Bakhtin quanto a posição-sujeito e o lugar ocupado numa dada formação social em
Pêcheux são efeitos que incidem nas formas de representação e ocupação de lugares
desses sujeitos e, evidentemente, no papel do porta-voz e do articulador de um discurso.
No nosso entendimento, é a partir desse lugar que podemos fazer distinção entre o
porta-voz e o articulador de um discurso, já que ambos ocupam um lugar na esfera social
e desempenham certos papéis ao falar por/para um grupo. Já dissemos, logo mais acima,
que uma das diferenças entre o papel desempenhado pelo porta-voz e o articulador reside
no fato de o primeiro ocupar lugar instituído no grupo, como o de um líder, por exemplo.
E o segundo, embora também ocupe o lugar líder, ocupa o lugar da enunciação e fala aos
seus sobre seus opositores, apontando as diferenças, as contradições; promove a
lembrança e cria o espaço para a voz do grupo circular.
Lemos, em Guimarães (2002), na perspectiva da semântica enunciativa, que o ato
de enunciar é uma prática política. Esse “acontecimento é sempre uma nova
temporalização, um novo espaço de convivibilidade de tempos, sem a qual não há
sentido, não acontecimento de linguagem, não há enunciação”(p. 12). Entendendo o
interdiscurso como memória de sentidos, Guimarães (2002, p. 14), apoiado em Orlandi
(1999), diz que o locutor é sujeito porque, afetado pelo interdiscurso, memória de
sentidos, estruturada pelo esquecimento, faz a língua funcionar”. Estar nesta memória,
portanto, de acordo com Guimarães, “não é estar no tempo (dimensão empírica)”, mas é
assumir um lugar político ao assumir a palavra, por mais que esta lhe seja negada. E o
político não é o que se fala sobre a igualdade, sobre os direitos, mas é “um conflito entre
157
uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam
seu pertencimento. O político está sempre dividido pela desmontagem da contradição
que o constitui”. O esforço que o sujeito do discurso emprega para fazer esta
desmontagem, a que se refere Guimarães, e que silencia ou ressalta a contradição, ao
nosso ver, pode definir o papel do articulador que produz efeitos sobre o sujeito do
discurso e, evidentemente, sobre o modo de operar falando no grupo, pelo grupo e para o
grupo com o qual ele se identifica ou representa..
Nesse sentido, para o lugar da enunciação, de acordo com que Guimarães (2002,
p.18) formula, devemos lembrar de um “sujeito determinado pela língua que fala”, ou
seja, conforme diz o autor, “o falante não é uma figura empírica, mas uma figura política
constituída pelos espaços da enunciação” e um sujeito sob o efeito do real da história, é
determinado por certa ideologia. O sujeito é uma pessoa no mundo que se representa no
discurso e “no modo que a própria enunciação recorta no conjunto das relações
sociais”
102
.
É, portanto, a partir dos modos como esse sujeito se representa que os espaços
políticos são definidos e definem o sujeito político, ou seja, o funcionamento da língua
no acontecimento constitui o espaço de subjetivação do sujeito. E é em torno desses
modos de subjetivação dentro de um certo espaço de enunciação que poderemos
distinguir o que define o papel do porta-voz e do articulador. assim “os espaços de
enunciação são espaços políticos, que se dividem, redividem, se misturam, desfazem,
transformam por uma disputa incessante”.(GUIMARÃES, 2002, p. 18). E, enquanto tal,
o lugar de convivência e de disputa passa ser o lugar da divisão do trabalho e da
distribuição de papéis, assim como o lugar da organização das vozes dentro de certas
perspectivas, representando a voz de uma instituição, de uma dada comunidade, ou
representando a voz individual ou do senso comum.
O modo como se faz uma nomeação, por exemplo, ou uma disputa pela palavra
regulada pelo Estado, não caracteriza o espaço da enunciação como espaço
desigualmente dividido, de disputa de palavra, como é o próprio de um lugar dividido e
interditado, já que, de acordo com Guimarães, a língua funciona no acontecimento, pelo
acontecimento, o pela assunção de um indivíduo e o coletivo de um grupo, afetada
politicamente, se dentro de um determinado espaço de enunciação e em cenas
enunciativas. Nesse caso, o acesso à palavra, a distribuição dos lugares e o agenciamento
102
Reportamo-nos à obra Vozes e Contrastes (Orlandi, Guimarães e Tarallo, 1989, p. 47)
158
enunciativo para aquele que fala e aquele para quem fala se no acontecimento. O
próprio modo de constituição desses lugares, pelo funcionamento da língua, define a
cena e os papéis enunciativos do sujeito no discurso, ou seja, falar para o grupo promover
as lembranças, apontar as divergências, sem apagar as contradições, é, portanto, o papel
do articulador.
159
3.4 Bloco II Condições de Formação da FD
Anarcossindicalista Brasileira
O tratamento das condições de formação das FD anarcossindicalista (FDAB)
requer que trabalhemos, em princípio, saberes anarquistas como a autogestão, a ação
direta, o fim do Estado e das relações de poder e o combate da exploração da pessoa pelo
Estado, pelo patrão, os quais fazem parte da memória da FD em exame, para, depois,
tentar compreender como esses saberes foram reformulados pela classe operária brasileira
e quais saberes são ressignificados nas seqüências e marcam as relações contraditórias no
interior de uma FD, legitimando práticas discursivas e políticas dentro dos movimentos
operários.
Desse modo, o corpus que vamos analisar, tomado em dois momentos históricos e
contextos diferentes, passa a se organizar a partir de movimentos políticos e sindicais que
tiveram como mentores intelectuais os operários estrangeiros, os quais, juntamente com
os brasileiros, formaram grupos de resistência da classe operária contra as forças
coercitivas das classes dominantes. Considerando que as condições de memória da FD
anarcossindicalista caracterizam saberes que se antagonizam aos saberes da FDJ, os
discursos anarcossindicalistas passam a clarificar práticas de coerção do Estado a partir
dos aparelhos jurídico e policial.
A fim de ilustrar o que tecemos sobre memória discursiva e sobre o discurso
político, trazemos também exemplos da migração de saberes com base nos processos
discursivos produzidos no Brasil, caracterizando as trajetórias das FDs da classe operária
e suas lideranças políticas como constitutivos de sentidos e mostrando o modo como os
discursos do aparelho jurídico inscrevem o sujeito anarquista e anarcossindicalista.
O movimento da classe operária, durante a Primeira República, que precedeu o
sindicalismo estatal, era composto por “núcleos anarquistas de diferentes orientações, a
partir de pelo menos 1890, compostos em sua maioria de imigrantes e seus
descendentes”. (PINHEIRO, 1985, p. 149). De acordo com Pinheiro, no Brasil, o
anarcossindicalismo constituiu a corrente mais importante do movimento operário
porque orientou a organização da classe operária em associações ou sindicatos, como
entidades fundamentais pela melhoria de vida econômica dos operários e pela
organização da luta proletária. Como estratégia de suas lutas, os anarcossindicalistas
adotavam a ação direta, tomando a greve como estratégia fundamental. Ao mesmo
160
tempo em que se dava ênfase ao internacionalismo, um domínio de saber leninista, o
nacionalismo e o processo de sufrágio eram recusados, que os anarquistas denegavam
a instituição partidária como órgão de representatividade política do coletivo, ou seja, o
internacionalismo anarquista é uma ruptura do internacionalismo socialista. A luta pela
liberdade e luta contra a exploração deveriam, portanto, estender-se por todas as
fronteiras, nacionalidades; a ação revolucionária deveria acontecer em todos os lugares
do planeta. E os riscos de se ter um Estado marxista, segundo Bakunin (1910), era
justamente destruir a solidariedade, ou seja, segundo Bakunin,
Isso leva, inevitavelmente, ao aparecimento de uma moral e de razões “de Estado”, a um
rompimento com a moral e a razão humana em suas manifestações universais. O conceito de
moral política do Estado é muito simples: sendo o Estado o objetivo supremo, tudo o que
possa contribuir para o aumento dos seus poderes é bom e tudo o que se opuser a este
objetivo, mesmo que seja a melhor das causas, é mau. A isto se o nome de patriotismo. A
Internacional é a negação do patriotismo e, consequentemente, é a negação do Estado. Segue-se que, se
Marx e seus amigos do Partido Alemão Democrático conseguirem introduzir o conceito de Estado em
nosso programa, acabariam com a internacional.( In: WOODCOCK, 1986). Grifo nosso.
Assim, por força do sindicalismo revolucionário, a partir do que lemos em
Rodrigues (1969, p. 11), podemos entender a feição reformista desvinculada de
organismos partidários do movimento operário brasileiro, antes de 1930 também
chamado de anarcossindicalismo.
Nesse período, conforme lembra Zandwais (2005 a), a imprensa responsável pela
circulação da propaganda sindical era também realizada através da tribuna livre, que
possibilitou a inserção de diferentes modalidades produzidas tanto por militantes
socialistas, anarquistas, como por membros dos segmentos operários, mas que
colocavam em destaque relações de antagonismo entre classes e instituições e,
predominantemente, relações de contradição entre posições do sujeito operário no
interior do movimento.
No entanto, “os sindicatos raramente publicavam os números totais de seus
membros e, por causa da repressão, não conservavam arquivos” (PINHEIRO, 1985, p.
152). Cria-se em torno da gráfica anarquista e anarcossindicalista um movimento
imaginário que se materializa discursivamente e que possibilita a instauração de práticas
antagônicas, cujo papel político do militante é denunciar os abusos cometidos contra a
classe operária. A forte repressão policial comprova que é possível controlar o arquivo
estatal, o documento, mas não o arquivo enquanto monumento (no sentido de Foucault)
e enquanto efeito interdiscursivo (no sentido de Pêcheux). Se a lógica policial busca
161
exatamente aniquilar o “corpo”, por exemplo, incendiando os jornais, fechando,
saqueando e prendendo os seus militantes, é porque, no fundo, não consegue manter
controle sobre aquilo que desestabiliza a ordem, que é o discurso da imprensa da
resistência.
Em relação ao fato de São Paulo ter se tornado o principal centro da
industrialização brasileira na República Velha, cabe ressaltar que a maior parte dos
investimentos vinha dos produtores de café. Também em o Paulo havia um grande
número de imigrantes que trabalhavam na agricultura e, em decorrência da
superprodução e da baixa no preço do produto, muitos deixaram o trabalho no campo e
foram para as cidades, fornecendo mão-de-obra barata para o setor industrial que se
iniciava. Além disso, a passagem do regime imperial no país, em 1889, para o regime
republicano possibilitou um contingente maior de imigração para o país, gerando a
proliferação da mão-de-obra operária.
Tudo isso provocou inúmeros protestos dos operários contra seus patrões. Com a
articulação entre operários europeus (militantes comunistas e socialistas) e operários
brasileiros foram instituídos os primeiros sindicatos e organizações operárias em defesa
dos direitos trabalhistas, melhores condições de trabalho, melhores salários, redução do
número de horas de trabalho, pois os operários ganhavam pouco e trabalhavam até 15
horas por dia.
Vale lembrar nesse sentido que, ao mesmo tempo em que os imigrantes não
possuíam capital ou bens de produção, trouxeram ao país outras referências históricas,
socioculturais, difundindo entre os operários brasileiros novos comportamentos de classe,
cuja identidade enquanto classe ainda estava por definir, o que veio constituir um “fio”
na ordem das relações da FD anarcossindicalista brasileira.
Muitos dos princípios adotados foram definidos em resoluções dos Congressos
Operários de 1906 e 1913. No primeiro Congresso (1906)
103
, no Rio de Janeiro, criou-se a
Confederação Operária Brasileira (COB). Dentre as resoluções formuladas, o I
Congresso defendeu a federalização do movimento, a centralização e a ação direta de
pressão e resistência, orientando a união da organização sindical no sentido de adotar
medidas comuns, como a ão direta, para combater a exploração por parte dos
103
O primeiro Congresso Operário no Brasil realizou-se de 15 a 22 de abril de 1906, no Centro Galego, na
cidade de Rio de Janeiro, contou com várias federações, ligas, associações e centros operários. Dentre as
teses defendidas estavam orientações sobre: a) o modo de comemoração do 1º. de Maio; b) os meios de
ação como forma de resistência e de propaganda; c) o direito de reunião; d) fundação de escolas laicas para
os sócios e filhos; e) reivindicações trabalhistas.
162
empregadores e do governo, bem como defender seus interesses econômicos e
profissionais e políticos dos trabalhadores. Isso vai aparecer como saberes próprios à FD
anarcossindicalista.
Durante a Primeira República, o anarcossindicalismo ou o sindicalismo
revolucionário brasileiro definiu seus métodos de luta tendo como lema “a emancipação
dos trabalhadores deve ser conquista dos próprios trabalhadores”. Esse saber iria retomar
a autonomia, a autogestão, saberes que configuraram a FD anarquista russa antes de
1917. Conforme lemos em Rodrigues (1969, p. 139) sobre a orientação da Confederação
Geral do Trabalho (CGT), “a organização sindicalista é essencialmente revolucionária,
rejeita os princípios de ação política partidária”; é contra o poder do Estado e dos
partidos burgueses; é essencialmente pedagógica, pois “cria em cada indivíduo uma
consciência social, uma capacidade reflexiva [...] como organização social futura, [...]
suas associações não são agrupações autoritárias, de coação, mas órgãos de educação
[...]”. (RODRIGUES, 1969, p. 139).
Ainda, em julho de 1917 ocorreu a primeira greve geral da história do Brasil, com
a participação de mais de cinqüenta mil operários. O governo e os industriais, assustados
com o movimento, prometeram melhores salários e novas condições de trabalho. Mas as
concessões provisórias demonstram que não havia interesse das classes dominantes em
melhorar a vida do trabalhador, o que desencadeou a resistência por parte da classe
operária
104
, conforme buscaremos situar, logo a seguir, nas análises.
Os espaços discursivos que provocam uma reconfiguração de saberes, instaurando
rupturas internas e, por conseguinte, novas posições-sujeito, atestando a
apropriação/elaboração/desarranjo de saberes no interior da posição-sujeito em que o
104
Situação bem diferente se encontrada na Segunda República (1930 1945), com a instalação do
Estado Novo (1937), podemos perceber mudanças quanto à organização sindical, uma vez que o sindicato
passa a ser articulado pelo Estado e o anarcossindicalismo é esfacelado pelo Estado e pelas leis. Ao longo
das três primeiras décadas desse século, o anarcossindicalismo mostrou todo o seu potencial articulador de
estratégias para lutar contra o poder do Estado e do capital. Por outro lado, na Segunda República, foi
confrontado com a integração gradual do sindicalismo à gica do Estado e do capital, através da
institucionalização dos conflitos operários e da sua resolução dentro do quadro da aparente legalidade
dominante. Essa mudança decisiva no caráter do sindicalismo realizou-se por duas vias distintas, mas
convergentes nos seus objetivos: a do corporativismo fascizante na Itália e em Portugal, exemplo seguido
na América Latina por Vargas e Perón, e a do Estado de direito social, que, retirando do sindicalismo sua
autonomia, condição do seu potencial revolucionário, tornou-o um mero instrumento de reivindicação
corporativo de melhorias econômicas, que eram, em último caso, indutoras de uma maior eficácia e
produtividade do capitalismo. Em vista disso, pergunta-se: de que forma, então, os movimentos sindicais
podem ser caracterizados no percurso da luta por condições de autonomia para condição de tutela? No
nosso entendimento, é exatamente isso que vai estabelecer o antagonismo entre anarcossindicalismo e
trabalhismo. Essa questão não será desenvolvida no decorrer deste trabalho, mas torna-se necessária, na
medida em que encaminha a reflexão no sentido de encontrar razão para a necessidade de criação de um
partido dos trabalhadores, por exemplo.
163
discurso anarcossindicalista está inscrito, afetam, portanto, a reconfiguração histórica e
discursiva do movimento operário brasileiro. Para tanto, agrupamos neste trabalho as
seqüências discursivas de referências em duas seções. Na seção A: Condições de
Produção do discurso de resistência no Brasil da Primeira República; na seção B: Uma
prática transformadora?
3.4.1 Seção A - Condições de Produção da Formação do Discurso de
Resistência no Brasil da Primeira República
Quanto às condições de produção no Brasil da Primeira República, foi no
anarcossindicalismo, uma concepção de organização autônoma, apartidária e baseada na
ação direta dos trabalhadores, que a luta proletária se tornou uma das melhores
alternativas. Nesse período, o anarcossindicalismo constituiu-se em referência à corrente
mais importante do movimento operário. Esta corrente, muito influenciada pela doutrina
e pela prática do sindicalismo francês, sublinhava a importância dos sindicatos, que
deveriam liderar a luta contra o Estado e formar a base da nova sociedade; enfatizava a
luta econômica sobredeterminando a luta política da classe operária, por acreditar que as
associações e os sindicatos pudessem atender a esses objetivos.
O surgimento de movimentos políticos de formação e resistência da classe
operária contra as forças coercitivas das classes dominantes constitui-se numa ação de
combate e denúncia do não-reconhecimento do direito de reunião e assembléia, do
procedimento da polícia que utilizava a violência como forma de punição dos operários.
Assim, temos, de um lado, a classe operária em busca do reconhecimento de direitos
trabalhistas e de um lugar político no cenário brasileiro, denunciando as práticas de
exploração de mão-de-obra operária
105
; de outro, a aliança entre proprietários de fábricas,
indústrias e latifúndios com o Estado, o Exército, a polícia, a imprensa e a Igreja, na
tentativa de impedir expansões de movimentos operários no país.
Em vista disso, os trabalhadores da época passam a se mobilizar, por meio de
organizações, de associações e ligas operárias para combater as ões de seus opositores,
105
Referimo-nos ao cumprimento de jornadas de trabalho superiores a dez horas diárias, incluindo-se
mulheres e crianças, às péssimas condições de trabalho, à falta de assistência médica, à não-assistência à
acidentes de trabalho, à irregularidade no pagamento de salários e outros.
164
bem como para desmoralizar as ações da Igreja e responder às fortes acusações e
difamações dos movimentos operários, por parte da imprensa do governo e, sobretudo,
da polícia, que possuía respaldo legal para intervir nos movimentos.
Tomaremos, aqui, como objeto de análise conjuntos de textos caracterizando
temas como a ação direta
106
, as condições de formação e de organização do movimento
sindical e os abusos do aparelho policial, por exemplo. Nossas investigações servem-se de
discursos que foram veiculados em periódicos anarquistas, os quais são destinados a
leitores que se identificam com saberes anarquistas e anarcossindicalistas, geralmente
trabalhadores, e que, ao tratar de sua relação com as leis, produzem discursos de aliança
entre si.
Quanto às condições de produção das sds da FDAB que compõem este bloco, os
textos fazem parte de publicações anarquistas produzidas no Brasil
107
. Vale lembrar que,
desde a implantação do movimento anarquista no país, não havia consenso entre seus
militantes em relação ao campo da prática política. A contradição sempre esteve presente
entre os anarquistas sindicalistas e os anarquistas, que não defendiam o sindicato,
diferenciando-se, portanto, quanto aos meios de ação.
Embora, na prática, essas duas correntes defendessem a emancipação do
proletariado, entre elas diferenças quanto à forma que essa ação direta irá tomar. De
um lado, os anarquistas defendiam a ação livre por meio da qual o proletariado,
livremente, engajar-se-ia aos pequenos grupos para fazer a “revolução”, ou seja, as
condições de transformação da ordem social vigente aconteceriam pela apropriação de
saberes coletivistas de cooperação social e de ajuda mútua e a emancipação intelectual do
proletariado seria desenvolvida dentro das associações defendidas pelos anarquistas,
sendo incorporadas mais tarde na ação prática revolucionária sindical dos
anarcossindicalistas. De outro lado, para os anarcossindicalistas, a ação direta, de acordo
com Sferra (1987, p. 17), também “passa pela educação e organização, experimentando,
preparando, medindo forças”, mas esse saber comum diferencia-se na prática política, ou
106
Ação Direta é um instrumento de luta legítimo dos anarquistas e anarcossindicalista, não no que lhe
diz respeito à negação da representação política, mas também quando o movimento social passa a agir
contra o sistema, pacífica ou violentamente, para traçar um caminho contínuo para a transformação social.
107
De acordo com Sferra (1987, p. 21), anarquistas e anarcossindicalistas concentram sua atuação na
educação feita através dos jornais, como La Battaglia e A Terra Livre, no sentido de estarem comprometidos
com a emancipação social do trabalhador e também por contribuírem com reflexões acerca dos efeitos da
exploração capitalista, orientando os trabalhadores dos meios de ão para lutarem contra essa exploração.
Em Rodrigues (1972, p. 425 460), encontramos uma relação aproximadamente de 300 títulos da
imprensa de resistência no Brasil até 1922, dentre os quais, estão títulos de periódicos como ão Proletária,
A Lanterna, A Guerra Social, A Terra Livre, A Voz do Trabalhador, Jornal Operário, O Amigo do Povo, A Plebe.
165
seja, para que os trabalhadores cheguem à revolução e expropriem a burguesia, é preciso
chegar à greve geral. A coletividade constrói-se na base da cooperação e, sobretudo, da
ação política dos sindicatos. A greve passa a ser um instrumento legítimo de luta dos
movimentos operários. “Qualquer greve econômica transforma-se numa greve política”.
(TRAGTENBERG, 1989, p. XIX).
Como sdrs, para este segundo bloco, o qual está dividido em seção A e B, foram
selecionados cinco textos produzidos pelo movimento anarcossindicalista durante a
Primeira República no Brasil, nos quais observamos as relações de antagonismo entre a
classe operária e a classe dominante. Na seção A, trabalhamos os textos 1 e 2. Na seção
B, trabalhamos com os textos 3,4,5, todos identificando saberes da FDR e o texto 6 que
identifica saberes da FDJ.
Os dois primeiros textos, que integram a seção A, foram selecionados na imprensa
anarcossindicalista e tratam dos seguintes temas: a) as relações de antagonismo entre os
saberes anarcossindicalistas e os saberes do aparelho jurídico; b) estratégias de luta contra
os aparelhos institucionais de repressão da classe operária; c) a importância da greve
geral de 1917, a ação política contra os aparelhos repressores, ou seja, a ação direta
torna-se instrumento legítimo da luta dos movimentos operários contra a violência dos
aparelhos jurídicos e exploração do patronato e do governo.
Os textos, que compõem as sdrs desta seção A, foram publicados na imprensa
operária (jornais e revistas) com o objetivo de conscientizar, orientar e mobilizar a classe
operária, no sentido de produzir respostas contra aos abusos que ocorreriam contra os
trabalhadores por parte da classe dominante, o que lhes impunha a necessidade de
construir um plano de ação comum.
Inicialmente, transcrevemos o texto a “A política repressiva do Estado (1909)”,
publicado inicialmente no jornal A Voz do Trabalhador
108
, e mais tarde recuperado e
arquivado no acervo histórico da Unicamp Edgar Leuenroth
109
. O texto 1 é um relato,
publicado na coluna intitulada “Movimento Operário em São Paulo em 1909”, o qual
faz uma avaliação da influência que o Estado exercia sobre o movimento operário
108
“Movimento operário em São Paulo”, A Voz do Trabalhador, n. 19, 30 out. 1909 (AEL).
109
Edgard Leuenroth nasceu em Mojimirim (SP) em 1881. O jornalista foi um dos principais militantes
anarquistas do Brasil durante a República Velha. Em 1905, esteve presente na fundação da Federação
Operária de São Paulo, órgão que congregava os sindicatos dirigidos por anarquistas na capital paulista.
Nesse mesmo ano, fundou com Neno Vasco o jornal anarquista Terra Livre. Foi diretor, entre 1909 e 1916,
do jornal anticlerical A Lanterna, cuja circulação retomaria a partir de 1933. Em 1917, fundou outro
importante órgão da imprensa anarquista A Plebe. Ainda, durante o ano de 1917, Leuenroth foi preso e
processado sob a acusação de ser um dos principais promotores da greve então deflagrada em São Paulo.
Durante toda a sua vida manteve a sua militância anarquista. Morreu em São Paulo, em 1968.
166
através da repressão policial, sobretudo sobre o modo como a polícia perseguia os
grevistas, os que exerciam qualquer tipo de militância ou eram vinculados a algum
sindicato. O artigo é parte integrante de uma série de textos descrevendo o movimento
operário em vários estados e publicados, vez por outra, no jornal Voz do Trabalhador.
Este jornal, conforme resoluções do Primeiro Congresso Operário Brasileiro,
passou a ser um órgão de imprensa da Confederação Operária Brasileira. O periódico
sindicalista revolucionário de ação direta publicou 21 números, a contar de 1
0
. de julho
de 1907 a 9 de dezembro de 1909, sob a direção do administrador José Romero e do
redator Manoel Moscoso. Posteriormente, passou a integrar a coletânea de documentos
selecionados por Pinheiro e Hall (1980), volume II, e editada pela Brasiliense, com o
objetivo de avaliar a política em relação às classes subalternas e aos movimentos
operários no Brasil. No documento discutem-se a legislação social e os limites de sua
aplicação.
Texto 1
A política repressiva do Estado (1909)
[...]
é a terceira vez que na capital paulista a polícia civilista assalta a sede da Federação
Operária e rouba os móveis e livros que possuía; em Santos uma vez.
A burguesia está no firme propósito de matar o movimento de emancipação proletária, e para
isso emprega toda a classe de violência. Para ela nada vale a Constituição e a lei quando se
trata dos seus interesses; e se são encarregados de a fazer respeitar é mesma coisa, se não
escutar o que disse Bias Bueno a um preso: - “aqui sou eu a constituição e a lei e nem hábeas
corpus, nem nada, vos valerá.”
Pois bem, os sindicalistas revolucionários sabem há muito que toda essa mixórdia de leis para
nada serve; eis a causa por que se aconselha o proletariado a pôr em prática a ação direta.
A polícia paulistana, tendo à frente os Washington Luís, os Batistinhas, e os Bias Bueno,
representa bem o papel de lacaio da burguesia espoliadora.
Repetir-se-ão essas arbitrariedades enquanto o proletário brasileiro não responder a esses
abusos praticados de uma maneira enérgica e eficaz.
Aos assaltos e roubos praticados pela polícia nas sedes das organizações operárias, é
necessário responder com os ...
110
Acho que é de grande necessidade a realização do 2º. Congresso Operário Brasileiro, e creio
que a Comissão Confederal devia fazer um esforço para levá-lo a efeito.
Todos devem compreender que há ainda no movimento uma grande lacuna no que se
relaciona com as relações interestaduais entre as organizações operárias.
Por conseguinte façamos mais esforços todos os que acham útil esse ato, porque pode
trazer benefícios para a causa da emancipação.
São Paulo, 5 de outubro de 1909.
Esoj Oremor
(Movimento operário em São Paulo. A voz do trabalhador, n. 19, 30 de out. 1909 – AEL. In:
PINHEIRO, P.S; HALL, M.M. A classe operária no Brasil (1889 1930): documentos. São
Paulo: v.II, Brasiliense; Funcamp, 1981, p. 252-253)
110
O texto está reproduzido em sua forma original.
167
No texto, há de se observar que, embora as greves não fossem proibidas por lei, os
grevistas estavam expostos a todo tipo de violência, à violência policial sistemática. Os
sindicatos que mostravam algum tipo de militância eram perseguidos regularmente, as
gráficas eram saqueadas e os jornais, destruídos, o que significa que, caso esses
documentos não tivessem sido recuperados, talvez não pudéssemos apresentar essa
possibilidade de leitura.
Inicialmente, observamos no texto 1 desse segundo bloco, seção A, conforme
Pêcheux (1975, p. 167), que o modo como se realiza a incorporação-dissimulação dos elementos
do interdiscurso e a identificação do sujeito anarcossindicalista com a forma-sujeito não
corresponde à mesma formação social de FDJ. A mobilização da materialidade
lingüística e da materialidade histórica mostra-nos que o aparelho jurídico pratica a
coerção, mas “lava as mãos” por aparecer “escondido” na ão policial. Os pré-
construídos, elementos que oferecem materialidade ao interdiscurso, apontam para
lugares que ocupam os anarcossindicalistas e os que aplicam a lei dentro das formações
sociais. O modo como o sujeito anarcossindicalista se relaciona com esse lugar
discursivizado na formação social, com a qual se identifica, possibilita a identificação das
relações de antagonismo, já que há um confronto entre saberes de formações discursivas
diferentes: os saberes da FDAB e os saberes da FDJ apropriados pelo aparelho policial,
que se coloca como representante da lei.
Assim, a fim de caracterizar, nas relações de antagonismo, os interesses da classe
operária e o modo como se produz a negação dos saberes da formação jurídica (FDJ) e
do aparelho ideológico, os anarcossindicalistas passam a combater, no interior dos
movimentos operários, toda e qualquer prática do aparelho jurídico, fazendo da ação
direta um instrumento de defesa contra a ação da polícia, que se coloca como a grande
executora das leis. Antes, porém, de realizarmos a análise das sdrs recortadas do texto 1
(bloco II – seção A), trazemos alguns comentários junto às análises.
168
3. 4. 2 - Formação discursiva jurídica e o aparelho policial: relações de
antagonismo com a FDAB
Fausto (1983, p. 196) diz que o vertiginoso crescimento e a transplantação maciça
de imigrantes estrangeiros em curto espaço de tempo conduziram a que São Paulo fosse
um campo fértil para serem discutidas questões sobre criminalidade. Conforme o autor,
os estudos sobre a delinqüência contêm um distanciamento entre a “criminalidade real” e
a “criminalidade apurada”
111
, que no aparelho policial encontram-se registros de duas
modalidades de infrações: os crimes e as contravenções penais. Para discutir essas duas
modalidades, o autor utilizou-se de dados de prisões efetuadas na cidade e os inquéritos
dos anos de 1890 a 1924, abertos pelas autoridades policiais, constantes dos relatórios
dos secretários de Justiça e dos chefes de polícia da capital. Em sua análise fica provado
que a atividade policial vai muito além dos marcos da criminalidade, de um lado,
destacando-se o seu papel de agente de controle social e, de outro, a sua aproximação
com a delinqüência pela quebra dos preceitos do Código Penal. Nas palavras do autor,
as figuras contravencionais, bem como as prisões para “averiguações” revelam uma estrita
preocupação com a ordem pública, aparentemente ameaçada por infratores das normas do
trabalho, do bem viver, ou simplesmente pela indefinida figura dos “suspeitos” (FAUSTO,
1983, p. 197)
O que se pode depreender da citação acima é que, se os operários eram
identificados em qualquer movimento de classe, mesmo que não fossem, o aparelho
policial daria um jeito de fazê-los criminosos, pois só assim os aparelhos jurídico e
policial estariam, aos olhos da sociedade, justificando suas ações violentas contra os
trabalhadores.
Em 1905, sob a orientação de anarquistas e anarcossindicalistas, os trabalhadores
organizaram várias associações, ligas e sociedades, fundaram jornais de resistência,
realizaram comícios públicos. Invadidas pelo sentimento de solidadariedade um saber
próprio das FDs anarquista e anarcossindicalista -, as lideranças dos movimentos
operários começaram a trabalhar em busca de melhores condições de vida, salários e
direitos e, sobretudo, para combater a forte onda de violência praticada pela polícia
111
O autor lembra que entre 1892 a 1916 as informações eram bastante imprecisas, visto que as acusações
de crimes e o número de prisões “revelam uma intensa preocupação policial com a ordem pública.”
(FAUSTO, 1983, p. 198).
169
brasileira. Acrescente-se ainda o esforço do governo Rodrigues Alves para aprovar a Lei
Adolfo Gordo
112
, que tramitava desde 1903. Nas palavras do anarcossindicalista e
historiador Edgar Rodrigues,
os mandatários esforçavam-se para que o proletariado vivesse como inerme e amorfa massa,
chegando ao cúmulo de apanhar assassinos portugueses refugiados no Brasil, para fazê-los
policiais. Em Santos principalmente, alguns se destacaram como sádicos e sanguinários
espancadores de operários grevistas, ao serviço das autoridades daquela cidade.
(RODRIGUES, 1969, p. 96 – grifo nosso).
De acordo com o que relata Rodrigues, conforme observamos nas sdrs (de 1 a 4),
a lei passa por um processo de personificação, pois a lei corporificada na imagem e na
ação de “Bias Bueno”, da “polícia paulistana”, de “Washington Luís” e da “burguesia”
transforma-se em prática da violência. Conforme podemos constatar nas sdrs (2 e 3), o
indivíduo investido do poder policial é a lei. Por outro lado, na sdr4 introduzem-se
posições-sujeito que configuram saberes de formações discursivas antagônicas, usando,
desse modo, saberes da FDJ e valendo-se da imagem daquele que aplica a lei para
interpelar o sujeito operário. Na avaliação do sujeito enunciador observamos também a
contradição existente no aparelho jurídico, pois o policial, na medida em que “representa
bem o papel do lacaio da burguesia espoliadora”, na avaliação do anarcossindicalista,
ocupa o lugar da submissão, apesar da ilusão de ter o poder, quando, na verdade, não o
tem. A polícia apenas está a serviço do algoz.
sdr 1 é a terceira vez que na capital paulista a polícia civilista assalta a sede da Federação
Operária e rouba os móveis e livros que possuía; em Santos uma vez.
sdr 2 A burguesia está no firme propósito de matar o movimento de emancipação proletária,
e para isso emprega toda a classe de violência. Para ela nada vale a Constituição e a lei quando
se trata dos seus interesses.
sdr 3se não escutar o que disse Bias Bueno a um preso: - “aqui sou eu a Constituição e a lei e
nem hábeas corpus, nem nada, vos valerá.
112
A Lei Adolfo Gordo leva o nome do deputado que a criou. Aprovada em 1904, respaldava a polícia
para vigiar, cercear a liberdade de pensamento e, sobretudo, impedir a formação de organizações operárias
e movimentos grevistas. Ainda, premiam-se delatores e incentiva-se a espionagem dos operários, tanto por
parte de patrões, quanto por parte de “fura-greves”, para que os trabalhadores fossem expulsos como
malfeitores ou atirados nos seringais do Acre ou pelos sertões do Nordeste brasileiro.
170
sdr 4 - A polícia paulistana, tendo à frente os Washington Luís, os Batistinhas, e os Bias Bueno,
representa bem o papel de lacaio da burguesia espoliadora.
Como podemos observar nas sdrs (1, 2, 3 e 4), no modo como as coerções são
vistas, é convocada uma memória, através das designações e dos implícitos, que aponta
para o retorno a acontecimentos histórico-discursivos, ou seja, a violência contra os
movimentos organizados, como contra o anarcossindicalismo no Brasil, denuncia o
abuso, a violência que é praticada pelos aparelho jurídico e policial. A repetição (tomada
na temporalidade à violência) - “já é a terceira vez” e “...em Santos uma vez”- convoca
acontecimentos que são do conhecimento de todos no seio do movimento operário. Na
ótica discursiva, à luz da memória discursiva que atua no nível do interdiscurso,
constatamos a configuração de pré-construídos da FDAR (FD anarquista russa), os quais
se antagonizam aos saberes da esfera institucional, especificamente aos ligados à esfera
jurídica, a saber: governo, leis, poderes, polícia, classe dominante.
Observamos, inicialmente, na sdr 1 que o aparelho policial ataca as instalações
físicas da sede da Federação Operária, assaltando e roubando, fazendo da lei uma farsa,
que não a proteção dos direitos do cidadão, devido ao caráter autoritário e
criminoso dos aparelhos jurídico e policial. Na mesma medida em que as posições
antagônicas se revelam, o articulador procura mostrar a contradição existente nos
aparelhos jurídico e policial, conforme podemos ler na sdr 2, onde o crime passa a ser
qualificado como moral e político, tendo em vista a perseguição aos movimentos e,
sobretudo, o emprego da violência contra os programas de emancipação, aplicando a lei
do talião olho por olho, dente por dente”, ou seja, para o aparelho policial não
interessam as leis, nem a constituição, mas a submissão do operariado. Na região do
interdiscurso, são lembrados saberes como antiautoritarismo, principio anarquista, e que
se identificam com os saberes da FDAR, consideram o governo como qualquer
dominação um mal. Nesse caso, o articulador faz o seu interpelado ver que quem
sustenta a dominação é o próprio operário, que não tem autonomia.
Assim, o papel do articulador trabalha para mostrar a importância dos
mecanismos de defesa, entre os quais, a formação política do operário, uma que a sua
autonomia depende do lugar que este ocupa na luta de classes e dos meios que dispor
171
para transformar os meios de produção. O articulador mostra também que não razão
para as coerções e violências, o que coloca, no interior do grupo, em evidência a
importância de se adotar a autogestão, conforme observamos nas sdrs 3 e 4.
Quanto aos saberes da FDAR que migram para a FDAB, encontramos o combate
ao poder público, propaganda pela ação mediante trabalho político para a
descentralização de qualquer tipo de propriedade e autonomia, especialmente sobre os
meios de produção e reprodução. Desse modo, a estratégia de defesa é a ação direta,
princípio anarquista e base do anarcossindicalismo brasileiro, que passa a funcionar
como força política e de pressão contra o Estado e toda a sua máquina administrativa e
jurídica.
Em termos discursivos, o retorno a esses acontecimentos históricos revela a luta
ideológica de classes, na qual os anarcossindicalistas colocam à mostra o processo de
reprodução/transformação das relações de produção, de maneira a constituir-se “como
lugar dos antagonismos”, pois os saberes da FDAR, retomados no anarcossindicalismo,
vêm clarificar práticas de coerção do Estado e saberes do aparelho jurídico. Conforme
assinalamos nas sdrs recortadas, o sujeito anarcossindicalista, em seu discurso, constrói
um imaginário acerca da lei. As forças proletárias, alvo de violência, constroem no
discurso da resistência e na prática política sua proposta de emancipação.
O antagonismo não pára por aí. Conforme constatamos nas sdrs (1 e 2), a
correlação de forças aponta, ainda, para uma avaliação do papel do aparelho de
repressão. Se, por um lado, ele se torna vítima do aparelho repressor de um sistema
falho, é o “lacaio”, o subserviente, de outro, esse mesmo repressor assume uma posição
antagônica aos interesses dos trabalhadores por considerar o movimento operário um
crime e, bem por isso, precisa combatê-lo. No entanto, pratica atos de violênica e é
acusado pelas seguintes práticas: “assalta”, “roubar”, “matar”, violentar de todas as
formas; torna-se o próprio infrator da lei, ou seja, o repressor passa a ocupar o lugar do
criminoso, revelando a contradição no interior do aparelho jurídico.
Assim, as relações de contradição e de antagonismo presentes nas sdrs
possibilitam observar a inscrição de saberes de diferentes FDs através das designações do
dos aparelhos jurídico e policial.
172
O aparelho jurídico e às formas de coerção
Sdrs
Designação do
instrumento do
aparelho jurídico
Formas de coerção
Alvo de violência
Sdr 1
A polícia civilista assalta ...
rouba
... a sede da Federação Operária
... os móveis e livros
Sdr 2
a burguesia
matar ...
... emprega toda a classe
de violência
... o movimento de emancipação
proletária
... interesses do proletariado
Sdr 3
Bias Bueno
disse ....aqui sou eu a
Constituição e a lei e
nem hábeas corpus, nem
nada, vos valerá.
... a um preso
Sdr 4 A burguesia
espoliada
Waschington Luís
Bias Bueno
Os batistinhas
Polícia paulistana
representa bem o papel de
lacaio
Quadro-síntese 5
Nesse movimento de interlocução com os seus e sobre o adversário, o sujeito
anarcossindicalista também passa a exercer o papel de divulgador do movimento e
emerge como articulador, ora interpelando, chamando os operários para a luta, ora
denunciando as práticas antagônicas aos interesses do proletário e assumindo lugar de
lideranças e dos que comandavam as ligas de sindicato.
O papel do articulador diferencia-se do papel de porta-voz, embora, às vezes,
possam se confundir. De acordo com Pêcheux (1982, p. 17), “o porta-voz se expõe ao
olhar do poder que ele afronta, falando em nome daqueles que ele representa, e sob seu
olhar”. Ele fala diante dos seus e parlamenta com o adversário, ao passo que o
articulador opera de um outro modo. No caso das sdrs acima, ele não fala pelo grupo,
mas para o grupo e intervém no espaço da contradição, já que sua representação é
interna e seu papel é justamente costurar as contradições, usando-as como argumento
para convencer o operariado a adotar a ão direta, ou seja, procurando convencê-los da
importância de agirem e reagirem contra as explorações e violências praticadas pela
classe dominante.
Nesse sentido, com base nas representações expostas no texto em análise,
passaremos a analisar mais sdrs recortadas do texto 1 “A política repressiva do Estado
(1909” e pertencentes ao bloco II, seção A, que se organizam em torno dos saberes da
173
FDAB (formação discursiva anarcossindicalista brasileira), tais como ação direta, saberes
esses que migram da FDAR . Voltemos ao texto 1, através das sdrs a seguir.
sdr 5 - Pois bem, os sindicalistas revolucionários sabem há muito que toda essa mixórdia de leis
para nada serve; eis a causa por que se aconselha o proletariado a pôr em prática a ação direta.
sdr 6 - Repetir-se-ão essas arbitrariedades enquanto o proletário brasileiro não responder a esses
abusos praticados de uma maneira enérgica e eficaz.
sdr 7 - Aos assaltos e roubos praticados pela polícia nas sedes das organizações operárias, é
necessário responder com os ...
Observamos que as sdrs 5, 6 e 7 revestem a enunciação do caráter político, pois o
enunciador tem legitimidade para ocupar o lugar de articulador, dirige-se aos seus e
aborda de modo direto a questão da coerção e da violência contra os movimentos
organizados no Brasil. Ao mobilizar saberes da FDJ apropriados pelo aparelho policial,
que se coloca como representante da lei, o articulador chama atenção do grupo para os
pontos de convergência e retoma saberes das FDs anarquista russa e anarcossindicalista -
a ação direta -, lembrando o lugar que o operariado deve ocupar dentro do movimento
operário, conforme ilustram as sdrs acima. Dessa forma, as sdrs 5, 6 e 7 colocam em
evidência que o impulso para a ação do movimento proletário contra os abusos do
aparelho jurídico e policial está fundamentado na ação direta.
Por outro lado, na negação das práticas do aparelho jurídico e no modo de
interpelação da classe operária pelo sujeito enunciador, destaca-se a fragilização do
movimento operário. A contradição existente nas relações internas do movimento pode
ser explicada pela divergência da forma de engajamento na luta política e que passa a ser
questionada pelo sujeito articulador, o que muitas vezes pode resultar em cisões no
interior do movimento, conforme podemos observar nas sdrs a seguir.
sdr 8 - Acho que é de grande necessidade a realização do . Congresso Operário Brasileiro, e
creio que a Comissão Confederal devia fazer um esforço para levá-lo a efeito.
sdr 9 - Todos devem compreender que há ainda no movimento uma grande lacuna no que se
relaciona com as relações interestaduais entre as organizações operárias.
174
sdr 10 - Por conseguinte façamos mais esforços todos os que acham útil esse ato, porque só pode
trazer benefícios para a causa da emancipação.
Como vimos no capítulo 2, a contradição, na perspectiva da AD, fundamenta-se
no político e, portanto, na construção dos efeitos ideológicos. A contradição intervém na
representação do real histórico, na medida em que as formações ideológicas constituem-
se de modo desigual. Nesse caso, as seqüências acima evidenciam essa desigualdade na
aplicação das leis e das penas.
A contradição emerge nas práticas sociais, ou seja, a própria articulação feita pelo
sujeito enunciador, que põe em relação os saberes da FDAB com o social, com o
simbólico e com o imaginário, é que enfatiza os pontos de convergência. No caso das
sdrs, a contradição é situada não em relação ao que é dito, mas em relação à prática
política dos militantes no interior do movimento operário, os quais, segundo o apontado
pelo articulador, não se mostram fortes o suficiente para transformar os meios de
produção/reprodução, que não respondem aos abusos praticados pelo aparelho
policial de maneira enérgica e eficaz, conforme constatamos nas sdrs 9 e 10, por
exemplo. Todos devem compreender que ainda no movimento uma grande lacuna
...”; “Por conseguinte façamos mais esforços”.
Assim, a superação dessa contradição estaria no fortalecimento da classe
trabalhadora, no seio da organização sindical e no uso de instrumentos eficazes: a ação
direta. Sua prática política, portanto, não é somente impedir que o trabalhador sofra
violência durante greves e manifestações, mas deixar de ser vítima das ações do aparelho
jurídico e policial em todos os momentos de sua vida, sempre; para isso, será preciso
desarranjar a própria ordem do movimento, ou seja, emancipar-se.
Isso porque a ideologia coloca em contato as contradições, que abrem, no interior
da própria ordem vigente, espaço para que as fronteiras sejam movimentadas e ou
transpostas. Na perspectiva em que vimos tratando as sdrs, podemos dizer que, de
acordo com Rancière (1996, p. 42), a lógica policial, na tentativa da “manutenção da
ordem”, acoberta a “existência dos sem-parcela, da não distribuição igualitária dos
lucros e perdas”, pois o sujeito policial, revestido de poder e protegido pela lei e pelo
Estado, esconde justamente o que deveria ser combatido: a violência, conforme podemos
constatar no trecho recortado da sdr 7 “aos assaltos e roubos praticados pela polícia nas
sedes das organizações operárias ...”.
175
Da mesma forma que na sdr 6, na sdr 7 , em “... ainda no movimento uma
grande lacuna ...”, é possível depreender, na avaliação do articulador, o reconhecimento
de falhas na estrutura do movimento, uma vez que, para ele, falta consonância entre as
instâncias estaduais e locais, o que revela a falta de união e empenho dos operários para
se engajarem à luta. Essa falta de engajamento, entretanto, pode ser entendida como o
espaço, a lacuna para a lei agir e criminalizar os movimentos por seus atos, por suas
ações. Por outro lado, a criminalização do movimento pelo aparelho jurídico aponta
para os efeitos perversos da ação policial, sobretudo se os operários não se encontrarem
em consonância com as ações do próprio movimento.
Percebemos, então, que o articulador não faz sua enunciação em nível
individualizado; mesmo assumindo a liderança em determinado momento. Suas
estratégias de encaminhamento e estratégias de ação constroem não uma posição-sujeito,
mas várias e, falando para os membros do movimento, retoma saberes da FDAR e da
FDAB para levar os trabalhadores a se mobilizarem, a adotarem a ação direta como
método de ação e prática política, ou seja, trabalha para lembrar as diferenças, os pontos
convergentes no interior da própria organização operária.
Na análise das sdrs, de modo geral, encontramos que, de um lado, através da
repressão policial, a elite do Estado e do poder jurídico busca sustentar a ilegitimidade
dos movimentos e, de outro, os movimentos operários, na convicção de seus direitos,
resistem em busca de um lugar de legitimidade. Entretanto, na sdr 8, o sujeito
enunciador ocupa o lugar de líder do movimento, pois, ao retomar saberes do
movimento da organização sindical, fala para seus membros que é preciso adotar a ação
direta. Conforme orientação de Pêcheux, essa “lembrança” torna-se necessária para a
posição-sujeito marcar o antagonismo entre saberes da FDAB e FDJ.
Na sdr 9, sobretudo, fica claro que, embora o sujeito enunciador mobilize saberes
da FDJ e a diferença entre um e outro seja tensa e com sobreposição de saberes da FD, a
crítica não recai somente sobre a lei e seu aparelho jurídico, mas também sobre o
movimento operário, pois no interior do mesmo discurso existe uma relação de
antagonismo e uma relação de contradição, ou seja, a presença de um sujeito dividido,
construindo, assim, no processo de interpelação, lugar para a adesão ao movimento de
resistência. E o aconselhamento feito na sdr 5 confirma a existência desse sujeito
dividido, a existência de contradição. Analisemos, pois, o quadro-síntese que segue:
176
Formas de interpelação no interior do mesmo discurso
Sdrs
Identificação do sujeito
anarcossindicalista
Antagonismo Estratégias de luta
contra à ação da
FDJ
sdr 5 Os sindicalistas revolucionários Toda essa mixórdia de
leis
... eis a causa por que
se aconselha o
proletariado a pôr em
prática a ação direta.
sdr 6 O proletariado brasileiro Essas arbitrariedades
Abusos praticados
... enquanto o
proletário brasileiro não
responder a esses
abusos praticados de
uma maneira enérgica e
eficaz
sdr 7 Sedes da Organização do
Movimento
assaltos e roubos
praticados pela polícia
... é necessário
responder com os ...
sdr 8 Esse ato de violência ... devia fazer um
esforço para levá-lo a
efeito.
Quadro-síntese 6
A análise das sdrs acima mostrou que as relações de antagonismo se projetam
sobre a FD. Desse modo, as críticas ao movimento, feitas pelo articulista, fundem-se com
as divergências, porque, para apontar os saberes com os quais o grupo se antagoniza em
relação às práticas do aparelho jurídico, acaba também trabalhando sobre os contrários,
as posições-sujeito antagônicas, sem, no entanto, permitir que todos os pontos de
convergência sejam dissolvidos. Em outras palavras, a polícia comete abusos e reprime
porque não se adota a ação direta, pois existe submissão. A eficácia do movimento está
na união de seus membros para responder aos ataques e às ações de violência da polícia e
do aparelho jurídico. Nenhum movimento poderá sobreviver se não se organizar, se o
se mobilizar e se não buscar a sua própria emancipação política. A resistência, desse
modo, não surtirá efeito se, no interior das próprias organizações, houver lacunas,
brechas para o aparelho jurídico e policial agir. Portanto, o sujeito anarcossindicalista
reconhece-se dentro do movimento, mas também procura interpretar o próprio lugar que
ocupa dentro dele; o articulador consuma, no seu próprio dizer, que o modo como se
identifica com o coletivo é que vai determinar a sua política de defesa. Portanto, a crítica
feita pelo articulista ao movimento não se refere ao fato de seus membros concordarem,
nem discordarem, mas retomarem saberes do sujeito Universal, já que, ao adotarem
determinadas práticas, correm o risco de sofrer apagamentos e, conseqüentemente, de
serem esfacelados, esmagados, silenciados pelos aparelho policial e jurídico.
177
O que vemos nos discursos dos anarcossindicalistas é que os trabalhadores, ao
mesmo tempo em que devem lutar pelo espaço de trabalho, devem também aprender a
reconhecer a importância de se desenvolverem politicamente no seio do movimento para
poderem libertar-se de todas as formas de opressão e de violência. O lugar político pode
ser estabelecido nas relações antagônicas que servem de base material aos modos de
produção e os conjuntos de representações simbólicas. Assim, a razão do político
assenta-se no enfrentamento, na contradição de dois mundos alojados num só: o mundo
em que estão os que operam as leis, que controlam a ação do aparelho jurídico, e o
mundo em que estão os que precisam lutar contra o sistema de um aparelho jurídico
repressor e deixar de levar os golpes de cassetete daquele a desempenhar o papel de
algoz e que, justamente, apóia-se na violência e nas leis para justificar seus crimes.
Cabe salientar ainda que no quadro-síntese 5, ao negar os saberes da FDJ e
reprovar totalmente a violência empregada pela polícia que executa a lei -, o sujeito
enunciador reporta-se a um campo de heterogeneidade que atesta, de um lado, a
identidade própria da FDAB e, de outro, as relações de antagonismo com as formas de
intervenção da FDJ (jurídica). Esse campo de interdiscursividades nos permite observar
as condições de incorporação, perfilamento e transformação dos elementos pré-
construídos que configuram domínios de saberes das FDs nas seqüências discursivas aqui
selecionadas, constituindo um universo de ressonâncias interdiscursivas aos saberes da
FDAR, conforme vimos nos saberes que compõem as sdrs recortadas do texto (1), de
Kropotkin, e do texto (2), de Tolstoi, no bloco discursivo I.
3. 4. 3 Resistência e Ação
Vimos que tanto o porta-voz quanto o articulador trabalham no espaço da
resistência, e ambos se expõem ao olhar do poder. Porém, conforme o constatado nas
sdrs acima, a presença de um articulador no discurso aponta mais de uma posição-sujeito
e enfatiza a existência do sujeito dividido. Caso contrário, não haveria razão para a sua
existência. Embora esses papéis se fundem, porque, às vezes, o articulador também pode
ser um misto de assessor de imprensa, um líder, e ocupar uma ou outra vez um lugar
discursivo instituído nas relações públicas, o lugar de articulador pode ser ocupado por
178
qualquer um, não necessariamente por um líder, que a importância de seu papel está
mais na função de inventariar os problemas, de apontar as contradições existentes no
interior do grupo, ou seja, o articulador tem o papel de não levar para o rol das
discussões as posições-sujeito antagônicas, as diferenças, mas também garantir o lugar
daquele que representa, lembrar aquilo que está apagado, dando voz e trânsito ao dizer
dos operários.
Percebemos que o desempenho do grupo está vinculado a sua fala, tendo em vista
que, pelo lugar que ocupa no interior do movimento, de autonomia e autoridade,
desempenha papel maior que o de um líder, pois assume um lugar de coordenador e
mostra a importância de seus membros participem do movimento, a sua articulação é
decisiva na defesa dos interesses políticos. A sua representação no discurso é simultânea
ao lugar do enunciador, que ambos permitem movimentos de lateralidade e
anterioridade no momento da enunciação, de modo que, num outro momento, poderá
deixar de sê-lo. Esse é um ponto em que o papel do articulador se diferencia do papel do
porta-voz e do líder, que já possuem lugar discursivo institucionalizado, produzindo
simetria e apagamento das falas do grupo que representam, ao passo que o lugar
discursivo do articulador é móvel.
Assim, falar do articulador não é mesmo que falar do porta-voz, pois este trabalha
para amenizar, apagar as diferenças, ao passo que o outro trabalha para fazer vir à tona
os pontos de convergência, para chamar atenção do grupo sobre a importância do seu
papel político. O político desses dois, portanto, é específico de cada um, que suas
práticas também se diferenciam. Quando o porta-voz fala em nome dos seus, acaba
apagando a voz do grupo, ao passo que o articulador, ao falar para o grupo faz emergir a
voz destes, faz desfilar aos olhos do outro, a força do grupo que é articulada na voz do
articulador. O político, desse modo, não está somente articulado numa série de
enunciados constituídos em discurso, mas define também o papel da memória, determina
o que vai ser lembrado e o que vai ser esquecido. A representação do articulador ou do
porta-voz caracteriza as forças que se atravessam numa prática política, ou seja, se são
antagônicas ou contraditórias.
Nesse caso, o articulador reivindica um lugar para o sujeito entrar em cena;
recupera, pelo interdiscurso, o assimétrico, o silenciado; delimita o espaço da
representação da classe, do grupo, especialmente o que vai se desarranjar e se legitimar
nas forças de antagonismo: a própria contradição. Tal como visto na teoria de Pêcheux,
podemos dizer que o sujeito articulador inscreve-se num lugar da formação social,
179
identifica-se com saberes de uma ou de outra FD e tem uma tomada de posição em e sob
determinados efeitos. Se o articulador pode ajudar na seleção de critérios para a
organização do movimento, encaminhar compromissos de prática política, viabilizar o
uso da palavra de seu grupo dentro do próprio movimento, difundir e multiplicar o
controle do que pode e deve fazer, podemos entender o papel de articulador como um
efeito, um “gesto de interpretação”.
Ao fazermos a análise das sdrs recortadas do texto 1 deste bloco discursivo, foi-
nos possível observar, no discurso anarcossindicalista sobre o discurso do código
jurídico, posições-sujeito e a incorporação do discurso jurídico para denegá-lo. Da
mesma forma, foi-nos possível observar na avaliação do articulador do texto, conforme
análise que realizamos, a migração de saberes anarquistas da FDAR para a formação da
FDAB, a interpelação do sujeito operário na busca pelo coletivismo, ação direta e
transformação dos meios de reprodução pela emancipação política dos operários -
saberes que, como dissemos, vão emergir durante o tempo todo neste trabalho –, visto
que, pela materialidade discursiva, as estratégias de luta não cessam de produzir espaços
para a política atuar e concentram-se na denúncia, na resistência e na ão contra o
inimigo
113
.
Nesse sentido, reportamo-nos a Rancière (1996, p. 42), que diz ser a atividade
política a responsável pelo deslocamento do corpo ou pela mudança da designação de
um lugar. A atividade política, segundo ele, “faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir
um discurso ali onde só tinha lugar o barulho”, ou seja, a contradição.
O surgimento de movimentos políticos de formação e resistência da classe
operária contra as forças coercitivas das classes dominantes constitui-se numa ação de
combate e denúncia pela qual o sujeito operário encontra um espaço vital para a sua
sobrevivência. Assim, a perseguição aos movimentos e a punição dos militantes
acentuam ainda mais a diferença de classes, levando os trabalhadores a se mobilizarem
nas organizações sindicais para combater as ações de seus opositores, bem como a
lutarem por seus direitos.
Pois bem, tomaremos aqui como objeto de análise, dentro do conjunto de textos
que se agrupam no bloco II, um tema relativo às leis brasileiras. Nas que passaremos a
analisar, faremos recortes do texto 2. Assim como o texto 1, o texto 2 faz parte de
publicações anarquistas produzidas no Brasil da Primeira República, nas quais
113
Referimo-nos aos sujeitos que, segundo Rancière (1996, p. 42-46), simbolizam a ordem social vigente,
contra os quais o sujeito anarcossindicalista luta.
180
observamos relações de antagonismo entre a classe operária e a classe dominante. Cabe,
ainda, salientar que o texto selecionado encaminha as seguintes questões: a) a greve geral
de 1917 e seus efeitos; b) a organização sindical do proletariado; c) as arbitrariedades do
aparelho jurídico.
Assim, para dar continuidade à nossa análise, transcrevemos o texto 2, “Prisões,
deportações, infâmias”, publicado inicialmente no O Debate
114
, em 1917, e mais tarde
recuperado e arquivado no acervo histórico Edgar Leuenroth. O texto que ora
analisamos também integra a coletânea de documentos selecionados por Pinheiro e Hall
(1980), volume II, editado pela Brasiliense, com o objetivo de avaliar a política em
relação às classes subalternas e aos movimentos operários no Brasil. No documento, o
Comitê de Defesa dos Direitos do Homem avalia a represália das autoridades durante a
greve de 1917, a ão extensiva da polícia contra o movimento operário e a quebra do
acordo estabelecido com os grevistas, o que passa a ressignificar as práticas repressivas.
No texto que segue, a militância de intelectuais responsáveis pela mobilização da
classe operária realiza discursos de denúncia das arbitrariedades do aparelho jurídico
contra a classe trabalhadora.
Texto 2
Prisões. Deportações. Infâmias
Todos os componentes do Comitê de Defesa Proletária e os membros mais ativos dos
sindicatos, das ligas, como dos centros e dos periódicos libertários, foram agarrados e
encarcerados traiçoeiramente.
Lares foram invadidos, altas horas da noite, famílias foram insultadas, mulheres e
crianças foram maltratadas. Os presos, tresmalhados pelas diversas masmorras da cidade,
postos incomunicáveis, foram sonegados à defesa. Aos pedidos de “hábeas-corpus” em favor
deles impetrados, respondia a polícia, aos juizes, com um cinismo inacreditável, que as
pessoas referidas na impetração não se achavam absolutamente detidas...
As oficinas em que se fazia o semanário A Plebe foram assaltadas, tendo sido o seu
diretor preso à ordem de um juiz mancomunado com a polícia, e processado como
“mandante do saque” levado a efeito pela multidão durante a greve de julho, no moinho
Santista.
Para outros presos foi preparada sorrateiramente a expulsão do território nacional.
Alguns deles seguiram pelo Curvello tendo-se retardado propositalmente o julgamento do
“hábeas-corpus” impetrado ao Supremo tribunal Federal. Sabemos mesmo que os decretos de
expulsão se achavam prontos no Ministério do Interior “desde o dia 11”, antes, portanto,
114
Conforme Rodrigues (1972, p. 456), o Debate foi fundado em Maceió em 1915.
181
de serem efetuadas, em São Paulo, as prisões. “Isto é a prova material do infame conluio
travado entre o governo paulista e o governo federal.”
Mas a polícia, não contente com a covarde repressão preparada e em vias de
execução, e para justificar-se aos olhos do blico, assoalha pelas colunas da sua indigna e
miserável imprensa de aluguel, as maiores calúnias contra as vítimas da sua sanha
perseguidora. Assim são eles apontados, como indivíduos perigosíssimos, estes como ladrões
e “cáftens”, aqueles como vagabundo e exploradores das classes operárias, fomentadores de
desordens, inimigos da sociedade, da pátria, da família, de Deus, e do Diabo!
(Comitê de Defesa dos Direitos do Homem. “Pela justiça!” O debate, ano 1, num. 13, 6 de
out. 1917. In: PINHEIRO, P.S. ; HALL, M.M. A classe operária no Brasil (1889 1930):
documentos. São Paulo: v.II, Brasiliense; Funcamp, 1981, p 265 - 266)
No texto 2, os sujeitos que organizam o movimento o interpelados a resistir a
qualquer forma de pressão, sobretudo, a resistir a qualquer método de coerção, como é o
caso da forte repressão policial ocorrida em São Paulo e em outros estados, tema de
discussão no texto acima. É em função dos interesses do Comitê de Defesa dos Direitos
do Homem que o sujeito enunciador retoma os saberes da FDJ para denegá-los. É, pois,
em nome dos operários, do anarcossindicalismo e do Comitê que o discurso explicita a
violência praticada contra os militantes do movimento operário. A greve de 1917 em São
Paulo, segundo a imprensa anarquista e anarcossindicalista, pode ser caracterizada como
um movimento espontâneo do proletariado, uma convulsão popular de choque entre a
multidão e a polícia: é conseqüência de um longo processo de vida tormentosa que levava a classe
trabalhadora no Brasil.
Sobre as condições que contribuíram para deflagrar a greve, o Comitê aponta as
seguintes causas. a) a dificuldade de subsistência aliada aos baixos salários; b) a
impossibilidade de reivindicações de indispensáveis melhorias à situação pela reação
policial; c) os constantes assaltos às organizações dos trabalhadores, as invasões a
residências dos operários; d) a intervenção brutal da polícia diante de qualquer tentativa
de reunião de trabalhadores; e) a insuportável situação em que vivia o operário, cujo
ambiente era permeado de incertezas, sobressaltos e angústias.
Com relação ao registro histórico de movimentos operários no país, vale lembrar
que estrangeiros eram presos e expulsos, provocando campanhas de repercussão popular,
tendo em vista que a violência sempre partia do governo e da polícia; a organização dos
movimentos operários e sindicais dava fôlego aos operários para combaterem e
denunciarem o não-reconhecimento de direitos trabalhistas, as jornadas excessivas de
trabalho e as péssimas condições de trabalho em locais insalubres. Assim, trabalharemos
182
a partir de seqüências discursivas produzidas do lugar do sujeito anarcossindicalista em
torno da lei.
Ao mesmo tempo em que as relações de antagonismo apontam o jogo de forças, o
locutor fala de lugares sociais e de enunciação do lugar de “povo”, de “operário”, de
“trabalhador”, “de líder”, de anarcossindicalista - e, como tal, representa associações,
sindicatos; apresenta-se falando como operário, pelo operário e contra a lei. Dessa forma,
quando são apontados esses antagonismos, aparece o sujeito dividido. Nas sdrs
recortadas dos textos (1 e 2), podemos falar ainda na recorrência a uma memória que se
lineariza no intradiscurso, no sentido de apropriação de saberes vividos e da
ressiginificação das práticas repressivas.
Para tanto, observamos a violência praticada pelo aparelho policial e legitimada
pela justiça trazendo as sdrs recortadas do texto 2, da forma que segue.
sdr 11 - Todos os componentes do Comitê de Defesa Proletária e os membros mais ativos dos
sindicatos, das ligas, como dos centros e dos periódicos libertários, foram agarrados e
encarcerados traiçoeiramente.
sdr 12 - Lares foram invadidos, altas horas da noite, famílias foram insultadas, mulheres e
crianças foram maltratadas.
sdr 13 - Os presos, tresmalhados pelas diversas masmorras da cidade, postos incomunicáveis,
foram sonegados à defesa. Aos pedidos de “hábeas-corpus”em favor deles impetrados, respondia
a polícia, aos juizes, com um cinismo inacreditável, que as pessoas referidas na impetração não
se achavam absolutamente detidas...
sdr 14- As oficinas em que se fazia o semanário A Plebe foram assaltadas, tendo sido o seu
diretor preso à ordem de um juiz mancomunado com a polícia, e processado como “mandante
do saque” levado a efeito pela multidão durante a greve de julho, no moinho Santista.
Tomando as sdrs 11, 12, 13, 14, que tematizam a violência praticada pelo
aparelho policial e legitimada pela justiça, observamos que essas práticas constroem o
imaginário da organização operária brasileira sobre a lei durante a Primeira República,
colocando em evidência elementos que simbolizam as práticas de abuso da lei contra o
proletariado. A análise, inicialmente, refere-se ao modo como a lei vai gerando a
resistência, já que, nesse embate, é a própria violência da lei que fortalece a resistência do
183
movimento operário. Além disso, a mobilização do outro, aqui configurado pela lei -
representada pelo aparelho jurídico e policial -, leva o militante anarcossindicalista a
chamar o operário para a luta. É preciso unir para resistir e é preciso resistir para agir. A
análise visa demonstrar como as relações de antagonismo presentes no nível das
formulações remetem ao interdiscurso e, pela interpelação, onde os saberes
anarcossindicalistas são revigorados, oferece lugar para a resistência.
Foucault (2001)
115
, em Vigiar e punir, no capítulo “A punição generalizada”,
mostra o controle que se exerce sobre os corpos desde o sistema escolar até o
encarceramento. Segundo ele, uma punição exercida a partir da vigilância, do controle
dos indivíduos, chegando à tortura física, produz o saber da prevenção e faz com que “o
malfeitor não possa ter vontade de recomeçar, nem possibilidade de ter imitadores. Punir
será então uma arte dos efeitos” (FOUCAULT, 2001, p. 78). Nessa perspectiva, nossa
leitura mostra que, se, de um lado, o exemplo pode criar obstáculos aos movimentos
operários, de outro, a resistência manifesta na imprensa operária e suas ações produzem
poder, reforçam os objetivos de luta, “minam” o controle jurídico, expõem-no perante a
opinião pública, debilitam sua estrutura. Como ficou comprovado nas sdrs (de 11 a 14)
acima, pela representação das práticas jurídicas e policiais, “invadir”, “insultar”,
“tresmalhar”, “assaltar”, “saquear” não constituem formas de punição, mas
representam sofrimento, desvantagem para o movimento operário; produzem “uma
proximidade da pena e do crime”, que o repressor ocupa o lugar de criminoso. E
diante do juiz, o trabalhador é criminoso, o que merece ir para prisão.
Dessa forma, a organização das sds agrupadas neste bloco permite observar como
a prática da coerção e os abusos configuram as práticas jurídicas, que, mais uma vez,
escondidas no aparelho policial, reproduzem as legitimações do Estado. A busca pelo
“controle” dos movimentos e a manutenção da ordem dos corpos dentro dessas
legitimações representa o controle político; por isso, o alvo dos aparelhos jurídico e
policial são “cabeças” do movimento, as sedes, os familiares e os jornais de resistência.
Enfim, essa distribuição simbólica dos corpos se pela inquisição, pelo uso da força,
pela coação, tal como representamos no quadro a seguir.
115
A data da primeira edição é 1975 e o título original francês é Surveiller et punir. Reportamo-nos à edição
de 2001 (p. 78-79).
184
Relações de antagonismo
Sdrs
O alvo dos aparelhos jurídico e policial: os interpelados
A representação das práticas
jurídicas e policiais: os abusos
contra o estrangeiro
sdrdr11 “todos os componentes do Comitê de Defesa
Proletária e membros mais ativos dos sindicatos, das
ligas dos centros e dos periódicos libertários”
... foram agarrados e
encarcerados
sdr 12 “lares”
“famílias”
“mulheres e crianças”
... foram invadidos
... foram insultadas
... foram maltratadas.
sdr 13 “Presos”
Aos pedidos de “hábeas-corpus”
as pessoas referidas na impetração
.... tresmalhados, postos
incomunicáveis, foram
sonegados à defesa.
... impetrados não se achavam
absolutamente detidas...
sdr 14 “as oficinas, o semanário a Plebe”
“o seu diretor
... foram assaltadas
... preso à ordem de um juiz
mancomunado com a polícia, e
processado como “mandante do
saque” levado a efeito pela
multidão durante a greve de
julho, no moinho Santista.
Quadro-síntese 7
Conforme o quadro acima, a legitimação da violência passa pela instituição para
chegar ao lugar de maior fragilidade, que é a do próprio corpo humano. Nessa
progressão, o modo como a lei opera permite reforçar um saber inscrito na FDAR,
identificado anteriormente no texto (2) de Tolstoi, que é a confirmação de quanto a lei é
perversa: nas sdrs 11, 2 e 13, é possível depreender que a lei aniquila o corpo para
silenciar a voz, pois ocorre o fechamento das oficinas, dos jornais, que são instrumentos
de divulgação dos saberes anarcossindicalistas e, portanto, de orientação e educação da
classe proletária para a luta. Tudo isso porque a imprensa constitui a “arma” mais
poderosa no combate ao inimigo. O lugar onde se trava o confronto entre a classe
operária e a classe dominante são os jornais, e a palavra passa a ser o maior instrumento
de defesa do operário, não as armas de fogo.
É possível depreender, também, o modo como os saberes anarcossindicalistas
intervêm nos lugares “logicamente estabilizados”, sobre a estrutura paternalista vigente
na sociedade sob o controle de um aparelho jurídico, que se serve do aparelho policial
para cometer abusos. O articulador parte, então, para a denúncia da violência, visto que
o lugar da ordem é o lugar da desordem; o que é tido como desordem na concepção da
lei, para o anarcossindicalista, não o é, pois, para ele, é a organização de uma sociedade
menos desigual.
185
No nível do interdiscurso é que se podem perceber o efeito de apagamento, a
dissolução do(s) outro(s) no um, pois o que vai se refletir no intradiscurso é uma voz
consensual entre os anarquistas, anarcossindicalistas e povo, é a revolta contra as práticas
arbitrárias do aparelho jurídico. Assim, o imaginário sobre o aparelho jurídico é
construído pelo viés da denúncia; ao mesmo tempo em que abre espaço para o
heterogêneo, busca um consenso de vozes na tentativa de caracterizar o perfil do
inimigo. Por outro lado, o sujeito de direito
116
é visto aqui através dos saberes da FDs
anarquista e anarcossindicalista, colocando em jogo, portanto, o modo através do qual a
FD jurídica produz credibilidade.
Como para a AD o sentido não está dado a priori e é produzido dentro de
determinadas condições sócio-históricas, levam-se em conta as posições ideológicas com
as quais o sujeito enunciador se identifica, a partir de sua inscrição no interior de uma
FD, bem como saberes que circulam em mais de uma formação discursiva e a relação
com outros discursos, com o interdiscurso. A identificação do sujeito enunciador com
saberes de uma formação discursiva viabiliza a produção de determinados sentidos, não
de outros, e dá-se no interior de uma formação discursiva e a partir da “lei”. Nessa
contingência histórica, as práticas reais concretizam-se nas denúncias sobre as práticas de
violência, exercidas de modo mais direto ou menos direto pelo aparelho jurídico, cuja
força é legitimada pela força concreta das ações do aparelho policial.
116
Para Rabenhorst (2001, p. 55), na área jurídica, a existência do direito é sempre em função de alguém,
de um agente chamado sujeito de direito. Para a teoria jurídica, este atender a certos requisitos fundados na
moral, na prerrogativa de contrair obrigações. Segundo o autor, depois da humanização do direito, a noção
de sujeito de direito passou a ser uma prerrogativa de todos os seres racionais, aptos a fundar
responsabilidades dos seus atos, o que implica a existência de uma pessoa de capacidade própria de
raciocínio, linguagem, consciência, vontade, interesse, capacidade de deliberar, de perseguir metas e
elaborar planos de vida. “Essas qualidades, no entanto, são estendidas às entidades coletivas, como o
Estado, as associações, as fundações, considerando-os personalidades jurídicas.”(RABENHORST 2001, p.
70). Na verdade, “sujeito de direito” representa o duplo sentido: agir no lugar e agir no interesse de
alguém, o que implica submissão ao lugar social.
Já, para Haroche (1992), a emergência do sujeito de direito indica submissão ao social e ao liberal, já que é
um efeito da ideologia religiosa e jurídica. Ambos eram totalmente subordinados ao dogma, submissos à
ideologia cristã e assujeitados às práticas rituais religiosas do século XII. Segundo a autora (p. 157), “o
sistema jurídico, persiste e interfere em certos mecanismos lingüísticos que influem assim sobre a
subjetividade”. No século XII, o sujeito era submetido à autoridade soberana; noculo XV, são derivadas
as palavras “assujeitar” e assujeitamento”, noções usadas numa perspectiva um pouco diferente pela
Análise do Discurso.
186
3.4.4 Estrangeiro: alvo do aparelho jurídico e policial
A fim de identificarmos as posições do sujeito anarcossindicalista, tomamos como
objeto de análise as sdrs de números de15 a 18, recortadas ainda do texto 2 do bloco
discursivo II seção A, “Prisões. Deportações. Infâmias”, escrito pelo Comide Defesa
dos Direitos do Homem, onde o articulador mobiliza saberes da FD jurídica, ao trazer
saberes do sujeito universal, para fortalecer no grupo as relações de antagonismo.
Considerando que na posição-sujeito uma interpelação ideológica do sujeito
que é afetado pelas relações de poder, mais especificamente pelo imaginário do aparelho
jurídico e policial, as práticas discursivas caracterizam as relações de antagonismo entre a
FDAB e FDJ, a partir de práticas políticas que configuram a diferença entre o preso
comum e o preso anarcossindicalista estrangeiro, ou seja, as posições-sujeito são
determinadas pela construção do imaginário do aparelho jurídico. A interpelação do
sujeito pela ideologia, a lembrança das diferenças fazem emergir as vozes da traição do
aparelho jurídico e policial, mais especificamente, a partir do momento em que o
articulador mostra que os aparelhos jurídico e policial agem traiçoeiramente,
organizando conluios e tocaias, retardando julgamentos, fazendo difamações, enfim,
criando decretos para expulsar o estrangeiro do país. Vejamos as sdrs, a seguir.
sdr 15 - Para outros presos foi preparada sorrateiramente a expulsão do território nacional.
Alguns deles seguiram pelo Curvello tendo-se retardado propositalmente o julgamento do
“hábeas-corpus” impetrado ao Supremo tribunal Federal.
sdr 16 - Sabemos mesmo que os decretos de expulsão se achavam prontos no Ministério do
Interior “desde o dia 11”, antes, portanto, de serem efetuadas, em São Paulo, as prisões. “Isto
é a prova material do infame conluo travado entre o governo paulista e o governo federal.
sdr 17 - Mas a polícia, não contente com a covarde repressão preparada e em vias de execução,
e para justificar-se aos olhos do público, assoalha pelas colunas da sua indigna e miserável
imprensa de aluguel, as maiores calúnias contra as vítimas da sua sanha perseguidora.
sdr 18 - Assim são eles apontados, como indivíduos perigosíssimos, estes como ladrões e
“cáftens”, aqueles como vagabundos e exploradores das classes operárias, fomentadores de
desordens, inimigos da sociedade, da pátria, da família, de Deus, e do Diabo!
Considerando o que diz Pêcheux (1995, p 172), a “formação discursiva é o espaço
de reformulação-paráfrase”; nela se constitui também a ilusão necessária de uma
187
“intersubjetividade falante” que cada um sabe, de antemão, o que o outro vai dizer.
Nas sdrs acima reproduz-se o discurso do outro. Assim, as prisões, chamadas por
Foucault de casas de correção e penitenciárias, para os que “ameaçam a ordem pública”,
destinam-se a acolher os que perturbarem o sossego público com provocações. Por outro lado, a
prática do aparelho policial nominada nas sdrs revela o grau da intolerância em relação
ao fantasma do estrangeiro. A instância policial passa a registrar comportamentos que
fogem da norma prescrita e revela, na noção de infrator, uma preocupação com a suposta
ordem moral e política, que, na verdade, mostra que as classes dirigentes brasileiras
continuamente buscaram estratégias de bloqueios das forças de resistência. Nesse
sentido, sabe-se que, primeiramente o aparelho jurídico cultivou a existência de um
imaginário de estrangeiro como indivíduos perigosíssimos (estrangeiros anarquistas e
anarcossindicalistas), depois, a existência do perigo comunista. Isso levou os
governantes, através do aparelho jurídico e policial, a esfacelar qualquer projeto de
representação, de emancipação operária.
Logo, a presença de trabalhadores em organizações e movimentos operários, ou
manifestações na imprensa de resistência, ou em qualquer outro setor, passou a ser vista
como um mal a ser combatido, ou seja, o trabalhador estrangeiro era percebido como
indivíduo perigoso, violento e destruidor da estrutura da sociedade “ordenada”.
Assim como nas sds da FDAR, na FDAB a paráfrase funciona a partir da FD
jurídica, pois o que é determinado para dizer na FD anarquista continua, de outro modo,
a integrar os saberes da FD anarcossindicalista.
As condições sob as quais se produzem relações de antagonismo entre o
movimento operário e o aparelho jurídico apontam para a dominância de uns saberes
sobre outros, e a forma-sujeito realiza aquilo que Pêcheux (1995, p. 167) entende como
“incorporação-dissimulação dos elementos do interdiscurso: a unidade (imaginária) do
sujeito, sua identidade presente-passada-futura encontra aqui um de seus fundamentos. É
nessa forma que o ‘sujeito do discurso’ se identifica com a formação discursiva que o
constitui, pois simultaneamente absorve-esquece o interdiscurso no intradiscurso”. Vale
lembrar que a essa forma de identificação Pêcheux dá o nome de “efeito-sujeito” e
“efeito de intersubjetividade”, por serem contemporâneos e, ao mesmo tempo, co-
extensivos já que o discurso do sujeito se desenvolve.
188
Representação do estrangeiro no discurso jurídico e da lei
Sdrs
Designação do estrangeiro, a
partir da FDJ
Imaginário sobre o
instrumento jurídico
Caracterização da ação
policial sobre o
estrangeiro, a partir da
FDAB
sdrs 15 outros presos....alguns deles ... foi preparada
sorrateiramente a
expulsão do território
nacional
... tendo retardado
propositalmente o
julgamento do hábeas-
corpus”
Traiçoeiro
sdrs 16 Os decretos de
expulsão se achavam
prontos... antes de
serem efetuadas as
prisòes
infame conluio
sdrs 17
as vítimas
a polícia... assoalha
pelas colunas da sua ...
imprensa de aluguel, as
maiores calúnias
covarde repressão
preparada
indigna e miserável
sanha perseguidora
sdrs 18
Eles
indivíduos perigosíssimos
vagabundos e exploradores
fomentadores de desordens,
inimigos da sociedade, da pátria,
da familia, do Deus e do diabo
ladrões e cáftens
Quadro-síntese 8
Observamos, no quadro acima, a construção imaginária da questão do sujeito
estrangeiro, como eles são vistos, representados, nos discursos da polícia
Nas sdrs até aqui analisadas, vimos que os saberes acerca dos abusos das práticas
jurídica e policial repetem-se e que se produzem a partir das relações de antagonismo
entre o movimento operário e o aparelho jurídico. Nas sdrs (de 15 a 18), continua
produzindo-se o efeito de paráfrase e de reformulação, visto que a crítica continua
recaindo sobre o inimigo, que se utiliza da violência e da coerção contra os movimentos
organizados para assegurar o lugar das “legitimidades” e da ordem pública. O “tom” de
denúncia passa a ter presença mais acentuada diante dos casos de repressão e de
expulsão de estrangeiros, o que caracteriza muito mais o abuso de poder que o confronto
entre policiais e os movimentos organizados. Além da “vigia”, da inquisição, exercidas
pelo aparelho jurídico, a repressão policial pode ser entendida como uma ação criminosa
189
que, sob pretexto da ordem, da “caça-às-bruxas”, institucionaliza-se no país, que os
crimes eram predeterminados e o sujeito policial passava a ser revestido de poder para
punir esses crimes.
Toda essa violência desmedida, então, era “fabricada” pelas/nas práticas jurídicas
e policiais, conforme podemos observar no quadro acima.
Legendre (1983, p.15–16), ao introduzir a obra O amor do censor, mobiliza
conceitos da antiga retórica para dizer que “o pensamento clássico não cessa de falar dos
fundamentos do político” e que não se entra na casa dos legistas” (outro nome para
identificar os juristas aos técnicos da lei) “sem ser apanhado pela regra”, mas que o
estudo da tradição jurídica não pode atingir o núcleo das coisas sem transitar pela
psicanálise, a qual diz respeito ao que constitui problema para a ciência e para o poder,
mais precisamente, ao que diz respeito aos dogmas juristas sob a matéria institucional. A
função de esclarecer, ou, pelo menos, de justificar aquilo que se impõe pela instituição,
sob a forma de censura e representação de lugares, é construída pelo discurso.
Ao discorrer sobre o modo como o discurso canônico está presente para instaurar
a ordem de uma censura, Legendre (1983, p. 34) diz que “o censurado é o sujeito que cai
em uma falta, segundo as formas definidas [...] e a lei, recitada num texto [...] enuncia as
suas regras, todas as suas regras, referindo-se à ordem”. Assim, aquele que aplica a lei
tem legitimidade para agir e, como tal, para punir, o que significa que toda violência
praticada pelo aparelho jurídico e policial o seria entendida como violência. Nesse
sentido, vale lembrar a existência da Lei Adolfo Gordo, que se destinava a expulsar os
operários estrangeiros que participassem de greves, mas que também punia os nacionais.
Desde 1904 a lei vinha sendo aplicada e, sempre que havia manifestações, aparecia um
legislador a sugerir e a impor-lhe enxertos que tornavam mais severa sua aplicação.
A articulação dos movimentos operários não era apenas em torno das conquistas
materiais, mas também contra esses abusos, pois, conforme comprovam as sdrs aqui
analisadas, a prática do aparelho jurídico intensificou a revolta do proletariado, instigou-
o a protestar e a denunciar, por meio da imprensa local e também da imprensa
internacional (sobretudo em Portugal, Espanha, Itália), as atrocidades de que estavam
sendo vítimas os trabalhadores daqueles países que haviam imigrado para o Brasil. De
acordo com Rodrigues (1972, p. 39), “antes mesmo de ter sido sancionada, muitos
haviam sido vítimas da Lei Adolfo Gordo. Trabalhadores de rara conduta moral foram
expulsos, depois de taxados como ladrões e malfeitores, porque defenderam idéias
libertárias e quantos deles estavam acima da ‘honestidade e da conduta’de Adolfo Gordo
190
e de seus sequases”. Para o autor, esse acontecimento incentivou os anarquistas e
anarcossindicalistas a intensificarem a campanha contra o Estado e suas práticas
coercitivas.
É a partir dessas relações de antagonismo entre os discursos e as práticas da lei e
violência na classe operária que emerge no discurso o espaço do sujeito político. É esse
sujeito político que constrói estratégias para o operário enfrentar a lei. Através de
comícios de protestos, de pregações públicas, da realização de manifestações e da
publicidade anarcossindicalista, com a divulgação de livros e folhetos, buscam elevar o
número de sindicatos no país, fortificando a luta contra as autoridades brasileiras, que,
desde 1893, “se especializavam na arte de expulsar”
117
“indivíduos perigosíssimos” do
território nacional, conforme observamos no quadro acima.
Da mesma forma que observamos o modo como o aparelho jurídico age sobre o
estrangeiro, vemos a “incorporação-dissimulação dos elementos do interdiscurso” que se
processam na forma-sujeito, por meio da qual o sujeito enunciador se identifica com os
saberes da formação discursiva anarcossindicalista que a constitui, pois,
simultaneamente, o “lembrados-absorvidos-esquecidos” pelo interdiscurso no
intradiscurso. Pelo modo como o sujeito estrangeiro é designado pelo aparelho jurídico,
as leis tornam-se coercitivas que obrigam determinadas pessoas a cumpri-las, o que,
segundo os anarcossindicalistas, pode ser obtido com pancadas, com o cerceamento
da liberdade e com a morte.
Essas formas de interpelação são efeitos do trabalho do interdiscurso que intervêm
na memória e registram que essas lutas ocorrem não só na história brasileira, mas
também no estrangeiro. Portanto, observamos no interdiscurso uma oposição: o registro,
na memória do aparelho policial, de que “a violência vem dos anarquistas”; a lembrança,
vinda dos saberes anarquistas e que ressoa na memória dos anarcossindicalistas, de que
“a violência vem das leis, das instituições, do governo”, manifestando o antagonismo
flagrado entre dois domínios de saber de FDs antagônicas. E o modo de interlocução do
sujeito do discurso corporifica a imagem do lugar do anarcossindicalista, mas também a
imagem do lugar assegurado à polícia pelo aparelho jurídico, visto que é no limite da lei
que se determina o que é e o que não é crime.
Dessa forma, a correlação de forças entre classes que se reconhecem a partir de
lugares sociais diferentes nas relações de produção, no intercruzamento/disjunção das
117
Expressão empregada por Rodrigues (1972, p. 40).
191
sdrs, possibilita o reconhecimento da igualdade/diferença e do outro, mas são a tensão e a
resistência que fazem com que os saberes anarquistas e anarcossindicalistas retornem
sempre ao mesmo ponto: a violência das leis.
Com as buscas efetuadas, sabe-se o porquê da apreensão de numerosos livros e
jornais considerados nocivos à autoridade por seus planos criminosos. Logo, a essência
da legislação está no fato de que aqueles que controlam a violência organizada dispõem
de poderes para forçar sua obediência, para fazer o que querem que seja feito. Nesse
sentido, denunciar o poder, subverter a lei, significa tomar o controle, tirar o poder. A
retomada dos saberes da FDJ, para levar os anarcossindicalistas a se mobilizar, produz o
efeito de lembrança para o rearranjo.
Isso porque, conforme Pêcheux, as palavras não têm sentido próprio; elas
significam à medida que podem ser substituídas por outras, ou, ainda, mudam de sentido
ao passarem de uma formação discursiva para outra. As repetições são significadas ou
(re) interpretadas, levando-se em conta a constituição histórica dos sujeitos, as formações
discursivas em que se inscrevem, pois, da mesma forma que as palavras, os sujeitos
também não têm/constituem sentido em si mesmos; os sentidos são produzidos na
relação entre os interlocutores do discurso e nos níveis do intradiscurso e interdiscurso.
Isso equivale a dizer que, nas unidades discursivas acima, as relações parafrásticas
remetem ao mesmo fato, mas constroem outras significações, se considerarmos as
condições de produção de cada um dos locutores: teoricamente, falam de lugares
distintos, em situações e momentos diferentes. As leis são feitas por pessoas que
governam por meio de violência organizada, conduzindo aqueles que se recusam a acatá-
las a sofrer pancadas à perda da liberdade e, até mesmo, a morte. Em síntese, esses
saberes são mobilizados pela FD jurídica e funcionam como pré-construídos no nível do
interdiscurso.
Por outro lado, embora as seqüências discursivas pareçam, por se tratar de
formações discursivas com saberes discursivos de naturezas diferentes FD jurídica, a
FD anarquista e a FD anarcossindicalista _, a paráfrase discursiva ocorre em termos de
que ambas discutem a mesma questão, os estrangeiros no país, e parecem, também,
mobilizar os mesmos pré-construídos. No entanto, podemos constatar que “as leis”, na
FD jurídica, contemplam um aprendizado no sentido de que todo cidadão deve assimilar
e cumprir aquilo que é “determinado” pelo Estado. Já, nas FDs anarquista e
anarcossindicalista, “as leis” dizem respeito a tudo aquilo que “agride” os direitos
192
naturais do homem, conforme pudemos constatar no que foi assinalado em cada sdrs
acima.
Nesse ponto, observamos que os discursos de lideranças sindicais, entendendo que
não têm assegurado espaço dentro dos “aparelhos ideológicos de Estado”, cumprem o
papel de alertar, criticar, negar, combater e incentivar o trabalhador a brigar por seus
direitos e, sobretudo, a desarranjar e rearranjar a sociedade. Cabe pontuar também que
são exatamente as posições contraditórias que caracterizam o encaminhamento
produzido nas FDs anarquista e anarcossindicalista a respeito da lei, que os elementos
pré-construídos na prática jurídica remetem a uma prática condenada pelos militantes,
ou seja, o estreitamento das relações existentes entre governo e polícia comprova que as
penalidades aplicadas pelo Judiciário nem sempre são justas, ou seja, ressoa aqui mais
um saber da FDAR na FDAB, que é a autogestão.
Em vista de tais acontecimentos, portanto, vamos refletir sobre discursos
(des)autorizados pelo Estado que (não) podem e (não) devem circular, visto que o
monopólio da violência revela que os meios de coerção são geralmente fornecidos pelo
Estado, embora possam ser revidados. Desse modo, no próximo capítulo vamos observar
como o Estado, durante a Segunda República, “engoletodos esses movimentos, o que
vai contribuir para que a economia política do pensamento capitalista se faça da vez mais
presente.
193
3. 5 Seção B - Uma prática transformadora?
Não nascemos iguais;
Tornamo-nos iguais como membros de um grupo
pela força de nossa decisão de nos garantirmos
direitos reciprocamente iguais.
Hannah Arendt
Neste bloco, analisamos três textos. Dando continuidade ao estudo realizado no
Bloco II, seção A, ainda como parte do capítulo três, trabalhamos os textos 3, 4 e 5, que
integram os documentos da COB. A seguir, no intuito de fazer contraponto com a
análise realizada nos blocos I e II, trabalhamos com o texto 6, pois, embora os textos da
seção A e B estejam organizados de acordo com os saberes anarcossindicalistas, na
análise que realizamos torna-se necessário examinar como os saberes da FD jurídica
exercem interferência sobre a constituição do discurso da classe operária na Primeira
República.
Há muitas maneiras de se estudar a linguagem. Uma delas é estudá-la relacionada
ao discurso, sentido e história. A articulação desses três conceitos representa a
possibilidade de análise do ideológico na linguagem.
Logo, quando dissemos no primeiro capítulo que a sintaxe tem seu corpo
quebradiço, que em sua estrutura certa porosidade e que espaços para a subversão
da ordem estabelecida na linguagem e também para o que fura a regra, não pensávamos
em tornar transparentes fronteiras dentro/fora ou interior/exterior, tampouco em separar
o que é da língua do que é da história, bem como incluir o “logicamente não
estabilizado”, ou seja, determinar aquilo que não pode e não deve ser constituído como
prática política. Durante todo o tempo entendemos a estrutura como ancoragem de um
processo: o estudo dos processos discursivos que delimitam/opõem as FDs que
atravessam uma formação social; assim como a sintaxe, os movimentos operários
ocupam lugar numa estrutura social, determinada pela ordem social vigente. É nessas
estruturas, a social e a da língua, que o político funciona e a língua passa a ser um lugar
de inscrição do sujeito, da história e dos sentidos e das relações contraditórias e de
antagonismo, já que o papel e o lugar social nem sempre coincidem.
O sujeito histórico, ancorado na língua e na história, ocupa mais de um lugar no
discurso. Conforme Michel cheux (1969, 1975), é afetado pelo inconsciente, ou seja, o
sujeito da AD é interpelado ideologicamente e, portanto, concebido a partir de um lugar
194
socialmente determinado; identifica-se, imaginariamente, com a forma-sujeito de uma
formação discursiva – entendida como o domínio de saber constituído de enunciados
discursivos que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente,
regulando o que pode e deve ser dito, mas também o que não pode e não deve ser
constituído como prática política. Conforme Indursky (1998, p. 115): “Este é o espaço
reservado para o indivíduo através das relações histórico-sociais que o sujeito assume em
sua prática discursiva. O sujeito pensa assumir posições pessoais, quando, de fato,
assume posições afetadas ideologicamente”.
Segundo a autora, esse sujeito é duplamente afetado: em seu funcionamento
individualizado, pelo inconsciente (Freud), e em seu funcionamento social, pela
ideologia (Marx e Althusser). A inscrição numa determinada FD ocorre pelo viés da
ilusão, que Pêcheux chama de “esquecimentos”. Primeiro, o sujeito acredita ser a fonte
do sentido, ignorando a existência de um discurso socialmente preexistente por trás da
aparência da livre enunciação de um indivíduo denominado pelo autor de
esquecimento n.1. Segundo, quanto ao esquecimento n. 2 (forma da enunciação), o
sujeito supõe controlar plenamente o seu dizer; é capaz de reformular o seu dizer e dele
produzir paráfrases discursivas.
Percebemos, pelo exposto acima, que os lugares assumidos pelo sujeito no
discurso são determinados pelo modo como ele (sujeito) se relaciona com a forma-sujeito e
pelo modo como se identifica com os saberes de sua formação discursiva, podendo
identificar-se ou até divergir desse domínio de saber, constituído pela contradição. É
nesse sentido que é constitutivo do seu dizer e determinante dos lugares e posições-
sujeito assumidos no discurso.
Espaço discursivo
118
, lugar discursivo e posição-sujeito, embora estejam
entrecruzados (um no outro), são concebidos de forma distinta na Análise do Discurso.
Quando dizemos “espaço discursivo”, não estamos falando propriamente sobre um lugar
específico, mas sobre a delimitação de uma determinada região que integra um campo
maior. Dentro do discurso político (embora tudo possa ser entendido como político), o
discurso anarcossindicalista se inscreve no discurso da resistência, o qual pode
contemplar também outros espaços discursivos, como é o caso do discurso dos
anarquistas, dos sem-terra, por exemplo. E é dentro do espaço político da resistência que
118
Conforme define Menguenaeau.
195
o sujeito anarcossindicalista se inscreve, “sitiando” um determinado lugar social e
discursivo.
Nesse sentido, é oportuno precisar os limites em que as noções serão empregadas:
1. Quando falamos aqui em espaço discursivo, estamos nos referindo a sítio físico e
simbólico de saberes que integram uma FD. Embora esses saberes se apresentem numa
região (local) de natureza histórica, política mais ou menos definida, as fronteiras que
margeiam esse espaço tornam-se sensíveis, “esburacam–se”, pois num espaço discursivo
circulam outros discursos paralelos, que orientam diversos processos de significação.
Seguindo a orientação de Pêcheux (1988) em O discurso: estrutura ou acontecimento, os
espaços discursivos são definidos como “logicamente não-estabilizados”. Segundo ele, os
enunciados inscritos no interior desse espaço discursivo sofrem determinadas coerções
vindas do exterior; são atravessados por equívocos, ou seja, num espaço discursivo não
se leva em conta o dito, mas também o silenciado, pois, simultaneamente, podem
circular outros sentidos, outras posições-sujeito, saberes heterogêneos. O sujeito que se
reconhece num espaço discursivo inscreve-se num lugar social e político. Daí a aparente
idéia de homogeneidade do discurso.
Assim, as reuniões, as discussões dentro dos sindicatos, os jornais e os
documentos, dentro do mesmo espaço discursivo da resistência, permitem aos operários
certa compreensão da realidade social e levam-nos a concentrarem sua ação na
resistência, ou seja, o espaço político consolida-se nas práticas discursivas como
correlação de força.
Na verdade, as organizações operárias colocam-se como espaço de construção
discursiva, uma vez que discursivizam suas práticas políticas na imprensa de resistência,
onde sujeito e linguagem, em condições de produção específicas, encontram-se, ou seja,
o sujeito anarcossindicalista assume posições. O acontecimento, sendo próprio da
história, abre espaço entre língua e história (interior/exterior, dentro/fora) para
entendermos o discurso - o espaço teórico/prático -, permitindo estudar as relações de
antagonismo e de contradição, que se estabelecem nas práticas políticas.
A determinação do que está fora ou dentro de uma língua não é de todo
transparente. Não podemos separar o que está “dentro” do que está “fora”, tendo em
vista que língua e história são afetadas por um real. A história, para existir, precisa
significar, inscrever-se na língua, e angua, na sua impossibilidade de dizer tudo, precisa
inscrever-se igualmente na história. Se assim o é, ambas são mutuamente constitutivas e
196
organizam-se a partir de práticas sociais e, portanto, produzem uma redefinição crítica
dos conceitos de sujeito e de sentido. Por isso, em nosso trabalho, para falar do
cerceamento do corpo (a exterioridade constitutiva) e da língua (interioridade),
precisamos falar do cerceamento dos sentidos (nos efeitos dessa relação) e, sobretudo, do
lugar onde se forma a resistência.
2. Lugar discursivo é entendido aqui como o lugar de onde o sujeito enuncia. À
primeira vista, não se trata de um lugar específico, mas de qualquer lugar. Em trabalho
recente, Dorneles (2005, p. 104) trata da noção de lugar discursivo a partir da distinção
entre lugar geográfico e lugar social. Segundo a autora, o lugar traz sempre implícito um
sentido de localização, de ponto de referência no espaço. Como diz a autora, “o lugar é
tipo de construção que possibilita vermos uma parte da totalidade, do universo.
Contornada no encontro do espaço físico com a história e o sujeito”. Isso significa que
não se trata de simples ocupação de um lugar por um corpo, mas um gesto simbólico
nessa ocupação, ou seja, a corporeidade do lugar está no gesto e nos efeitos. O
significado da ocupação desse lugar o se encontra no vácuo que se abre para ser
preenchido, mas no revestimento político que se dá no gesto de ocupação desse lugar. Há
um determinado conjunto de práticas sociais que determinam a ocupação pode ocorrer
de modos diferentes.
No entanto, as posições que se constituem nessas relações são diferentes.
Conforme Dorneles, “o que determina a posição não é o lugar, mas a imagem que tem
desse lugar”. Logo, embora todos se mantenham no lugar, ocupam-no, mas, dentro do
movimento, constituem posições-sujeito diferentes.
3. Como acabamos de ver, para falar em posição-sujeito é preciso falar em
assujeitamento a uma forma-sujeito. Vale lembrar que a primeira referência a lugar que
encontramos em AD diz respeito ao lugar social que ocupam os interlocutores. Em
Pêcheux (1969) as condições de produção remetem a lugares determinados na estrutura
de uma formação social, e as relações de força entre esses lugares sociais encontram-se
representadas por uma série de formações imaginárias que designam o lugar que esses
interlocutores se atribuem. Pêcheux (1975) nos mostra que “o ‘sempre-já-aí’ da
interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e ‘seu sentido’ sob a forma da
universalidade”, ou seja, o sujeito, ao ser interpelado pela ideologia e afetado pelas
relações de poder, inscreve-se num determinado lugar social, como é o caso do soldado
197
francês citado (p. 159)
119
: “Se você é um soldado francês, o que de fato, você é, então
você não pode/deve recuar”. Essa ocupação que os sujeitos fazem dos lugares a eles
ideologicamente destinados resulta de um trabalho inconsciente sobre “o todo complexo
das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 1975).
Assim, o sujeito ocupa o seu lugar numa das duas classes sociais antagonistas do
modo de produção, cujas relações são asseguradas pelos aparelhos ideológicos de Estado
(AIE), representados pela Igreja, pela Escola, pela Justiça, dentre outros. O substrato da
forma-sujeito é a ideologia, da qual ela é a manifestação e que, conforme Orlandi (1996,
p. 31), consiste na “interpretação do sentido em certa direção, determinada pela relação
da língua com a história em seus mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois,
ocultação, mas função da relação entre a língua e o mundo”.
O discurso, enquanto lugar material da ideologia, possibilita que se reconstruam
os processos de interpelação pelos quais o simbólico intervém no modo de produção dos
significados. Assim, os sentidos vão se estratificando sob o efeito dos processos sócio-
históricos, onde os sujeitos assumem diferentes posições e ocupam tais lugares,
estabelecendo com eles relações permeadas pelo imaginário” (DORNELES, 2005, p.
106)
4. Como já destacamos nesta tese, o confronto entre o político e o simbólico dá-se
pelo discurso, que, na singularidade do gesto de interpretação, define-se pela linguagem
em seu funcionamento. Como diz Orlandi (1996, p. 63), “a ordem simbólica,
configurada pelo real da língua e pelo real da história, faz com que tudo não possa ser
dito e, por outro lado, haja em todo dizer uma parte inacessível ao próprio sujeito”. O
modo como o objeto simbólico produz os sentidos configura a necessidade de trabalhar,
simultaneamente, a linguagem como estrutura e como acontecimento, o que Pêcheux
(1988) chamou de “o encontro entre uma atualidade e uma memória”. A legitimação do
lugar político é o discurso.
Com base em Hannah Arendt (1954)
120
, é possível dizer que o acontecimento,
pela materialidade da língua e da história, estrutura uma cena, que “o passado nunca
está morto” (p. 37) e é visto como uma força que nos remete à origem e, ao mesmo
tempo, nos empurra para a frente. A cena, como diz Arendt (p. 36), “é um campo de
batalha no qual se digladiam as forças do passado e do futuro”. Logo, o lugar político está
presente na articulação do discurso e se constitui numa relação de entremeio, numa
119
O número da página corresponde à edição brasileira (1995).
120
A data referente à edição brasileira é 2005.
198
relação com a memória, onde os pré-construídos falam sobre a distribuição de lugares
sociais. Se, conforme Arendt, tudo que é político assume um tom desafiador, então, o
político nos joga para a “arena” pública, onde se vão dotar de visibilidade os nossos
lugares sociais, que, por sua vez, vão situar os lugares políticos.
Para Arendt (2005, p. 287), “a verdadeira textura do político é o convívio e ação
conjunta dos homens”, ou seja, o político tem a ver com as condições básicas da
existência humana, dentre as quais está a liberdade. Se a essência do político reside na
liberdade, não é a lei que liga os homens, mas a própria atividade política, a
“pluralidade”, que para o político não interessa o individual e, sim, o coletivo. Nem
Arend, nem Pêcheux jamais falariam em individual. Nesse sentido, conforme Pêcheux
(1988, p. 213), o lugar político pode ser entendido como “complexo contraditório-desigual-
sobredeterminado”; é o lugar de inscrição do sujeito que vai legitimar o seu discurso.
Na obra O que é política? Arendt diz que o sentido da política é a liberdade e,
segundo ela, esse sentido na história do século vinte foi suprimido ou obstruído, não
existe política. Por conseqüência, o lugar político pode não estar bem definido. Política é
“a pluralidade dos homens”, pois é a atividade que “trata da convivência entre
diferentes”. Segundo a autora, todos têm o mesmo direito à atividade política, que não é,
nem pode ser, garantida por leis, pois estas decorrem de acordos ou imposições que
surgem no curso das relações humanas, ao passo que o ser político, o cidadão, precede
essas confabulações, e nessa condição promove ou não os acertos que se inscrevem no
convívio sempre contraditório da política enquanto ação ou intervenção no seio da
comunidade. A lei ordena e, ao interditar movimentos e ações, “cria um espaço no qual
ela vale, e esse espaço é o mundo em que podemos nos mover em liberdade”.
A política não se limita aos espaços convencionais, mas busca ampliar esses
horizontes até os espaços ilimitados da imaginação do homem. Todo agir é político. Ao
sustentar que a política é algo vital para os indivíduos e para a sociedade, Arendt define
como principal objetivo da política a garantia da vida no sentido mais amplo.
Na perspectiva do discurso, para Indursky (2002, p. 112), o lugar político é
dotado de legalidade e remete a sujeitos legitimamente inscritos no espaço público. “Esse
fato se em contraposição a um não-lugar e remete àqueles que não encontram para si
um espaço entre os lugares políticos existentes, inscrevendo-se, pois, em sua origem,
entre os excluídos da ordem social política e jurídica, bem como do discurso político
199
jurídico sobre determinado acontecimento”. Para Rancière (1996), onde existe a
diferença, a desigualdade é o espaço para o político.
O lugar político produz deslocamento na forma de detenção dos meios de
produção, fortificando determinadas posições-sujeito. É pelo discurso que a forma de
representação desse sujeito político é reconfigurada e os seus lugares são mantidos,
marcados e legitimados na/pela lei.
Parafraseando Indursky (2002, p. 113), na perspectiva da FD podemos afirmar
que o encontro destes dois sujeitos antagônicos (operário/Estado), aquele que desde
sempre teve o direito de falar sobre os direitos trabalhistas e se considerar proprietário
dos meios de produção, portanto um sujeito de direito, e o que surge do não-lugar, de
dentre os excluídos, os trabalhadores, ao invés de falar sobre os seus direitos, silencia.
Assim, a constituição do lugar-fronteira, onde se encontram o político e o jurídico,
esmaece, independentemente da moralidade e da ética de seus governantes, que simulam
a reestruturação social e política do país, mas que, de certo modo, revelam-se
conservadores. Tais sujeitos, que poderiam instituir-se em formações antagônicas e
se encontram nesse lugar-fronteira, na verdade, acabam se encontrando numa mesma
FD. Como lembra Indursky,“fora dele (do lugar político), não possibilidade de
interlocução”.
A interlocução, como lembra a autora, é atravessada pelo dissenso, pelo
desentendimento, pelo estranhamento, pelo repúdio, pelo não-reconhecimento dos
direitos mútuos e das interpretações de ambas as partes em litígio. É nesse sentido que a
formulação de Rancière (1996, p. 49) se encaminha, pois, para ele, a política é o conflito
sobre a existência de uma cena comum, sobre a qual se assenta a interlocução.
O lugar político constitui a esfera maior; é o ponto de confluência entre espaços
discursivos, lugares discursivos, lugar enunciativo e posições-sujeitos, que o discurso
nos leva sempre ao reconhecimento desses lugares. Nesse sentido, é impossível pensar o
lugar do articulador, que assume um lugar político e determinadas posições-sujeito, sem
pensar o lugar da enunciação, que é constituído pelo modo de dizer. O modo como os
sujeitos se identificam e se relacionam com os saberes de uma ou outra FD e em relação
ao outro depende da cena que a memória construiu (ou recortou) constitui o lugar da
enunciação.
O lugar da enunciação, de acordo com Guimarães (2002), é uma prática política.
É, portanto, a partir dos modos como esse sujeito se representa que os espaços políticos
são definidos e as posições heterogêneas desse sujeito político são assumidas, ou seja, o
200
funcionamento da língua no acontecimento constitui o espaço de subjetivação do sujeito.
Assim, “os espaços de enunciação são espaços políticos, que se dividem, redividem, se
misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante”. (GUIMARÃES, 2002,
p. 18). E, enquanto tal, o lugar de convivência e de disputa, passa ser o lugar da divisão
do trabalho e a distribuição de papéis, assim como o lugar da organização das vozes
dentro de certas perspectivas, representando a voz de uma instituição, de uma dada
comunidade ou representando a voz individual ou do senso comum.
As relações entre as figuras da enunciação e as formas da língua, conforme
Guimarães (2002, p. 23-31), sustentam os lugares enunciativos. “Os lugares enunciativos,
segundo o autor, são configurações específicas do agenciamento enunciativo por aquele
que fala e aquele para quem se fala”. Nesse viés, situamos no nosso trabalho o lugar no
qual o sujeito articulador se enuncia, ou seja, o sujeito articulador entra em cena no
discurso da resistência.
A história também gera silêncios. Se as publicações operárias foram impedidas de
circular, como vimos na seção A deste capítulo três, é porque o sujeito operário
(se)significa (n)esse emaranhado que o silencia enquanto sujeito e o diz enquanto objeto,
construindo uma identidade em lugares diferentes dos designados para ele. E o “avesso”
dessa história, então, mostra que o trabalhador da Primeira República buscava um lugar
para denunciar, para exercer o seu papel político quando mobiliza suas lutas. O fato de o
operário anarcossindicalista lutar por melhores condições de trabalho e de vida seria o
suficiente para levá-lo a ocupar lugar político-discursivo no cenário brasileiro.
A fim de observar as relações de desarranjo/rearranjo no campo do trabalho
brasileiro e a fim de trazer algumas luzes à questão, realizamos a “costura” de uma
história pelo avesso, que a análise de registros operários, de biografias e artigos da
imprensa de resistência pode oferecer diferencial em relação aos efeitos de significação
produzidos a partir do imaginário que se produz na história oficial. É, pois, em face da
organização da classe operária em sindicatos que buscamos estabelecer aspectos que
diferenciam a ideologia no proletário e na classe dominante, dominada pelo modo de
produção na formação social brasileira. Isso porque as ideologias das classes dominantes
ou rejeitam as “evidências”, ou acobertam as próprias relações entre os silêncios e os
efeitos que se produzem na esfera social, tendo em vista a elite brasileira se servindo de
interesses a fim de obter a alienação ou o sentimento de impotência das massas operárias,
conforme constatado nas análises do capítulo anterior.
201
A inscrição do sujeito anarcossindicalista na luta pela organização operária e nas
conseqüentes melhorias constitui a base para um acontecimento discursivo, que
produz uma ruptura nos modos estabelecidos de enunciar o operário e faz surgir um
novo sujeito o operário filiado ao sindicato -, o qual até então se encontrava fora das
redes dominantes de legitimidade.
A interpretação que se deve realizar do acontecimento é a da história deslocada.
O surgimento do sujeito anarcossindicalista no Brasil desencadeou várias discussões
sobre os lugares políticos do operário, sobre os lugares consolidados e dotados de
visibilidade na cena política brasileira, sobre os seus direitos a reuniões, sobre o
pertencimento aos sindicatos e sobre os direitos do trabalhador, que encontram abrigo no
discurso das elites e do jurídico. Esses lugares políticos remetem a lugares demarcados, a
espaços de lutas e de fortalecimento do poder.
Considerando que o acontecimento repõe e transforma as discussões sobre a
organização da classe trabalhadora em forma de sindicatos, analisaremos discursos
heterogêneos oriundos de ordens institucionais antagônicas, inicialmente, da organização
operária (sindicatos) e, na seqüência, o constitucional.
Do ponto de vista teórico aqui adotado, com base na constituição do político
como constitutivo dos processos discursivos, buscando mostrar como lugar disicursivo,
lugar social e posição-sujeito são conceitos que se entrelaçam, numa rede interdiscursiva,
entendemos o discurso como lugar de legitimidade de saberes de uma dada formação
discursiva, da inscrição das diferentes posições-sujeito e dos efeitos de sentidos. A partir
disso, podemos dizer que qualquer discurso constitui-se um lugar-discursivo (e político)
121
,
mas as fronteiras entre uma e outra FD são determinadas por saberes que circulam nelas.
Para identificar essas posições-sujeito de antagonismo, pelo fato de o discurso ser
heterogêneo, deve-se levar em conta os saberes de cada FD, as quais estão relacionadas
às práticas (ações) explicitadas de diversas maneiras: na elaboração de decretos, das leis;
nas reformas de base, nas greves, nos movimentos.
Trata-se de um conjunto de causas e conseqüências que modificam o estado social
e/ou o estado-político. Isso porque “a materialidade da instância ideológica dá-se pelas
condições históricas, reflexas nas práticas discursivas, vindo subtrair dessa relação de
homogeneidade a transparência e a circularidade dos efeitos da prática política no campo
121
Por espaço político entendemos a área de conflito que constitui a base da relação entre sujeitos numa dada
formação social e num certo momento histórico. Para isso, um certo grau de afetação, pois, dentro
desse espaço, existem tomadas de posição e essas estão “amarradas” a uma formação ideológica.
202
discursivo”, de acordo com o visto em Zandwais (2005). Nesse caso, a adoção da
formação discursiva como princípio teórico-metodológico torna-se fundamental para se
pensar o lugar do político no discurso.
É, pois, a partir dessa formulação que trazemos a perspectiva de Arendt (1963, p.
15) que trabalha a ão como sinônima do discurso, ou seja, o fenômeno político
existe na revelação do agente no discurso e na ação, porque estes trazem o duplo aspecto
da igualdade e diferença. “A pluralidade humana é a condição básica da ão e do
discurso”(p. 188). “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta
inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato
original e singular do nosso aparecimento físico original”(ARENDT, 1995, p. 189)
A relação estreita entre a ação e o discurso deve-se, pois, à revelação do agente do
ato, que, ao mesmo tempo, constitui-se o autor das palavras. Para Arendt: “Na ação e no
discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e
singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas identidades sicas
são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação do corpo e no som
singular da voz”. (ARENDT, 1995, p. 192).
É a revelação do agente do ato que torna a ação específica; a significação das
palavras advém da própria ação e todo sentido da ação está ligado ao nome e ao lugar do
autor dessa ação. Apoiados em Arendt (1995, p. 196), podemos afirmar que essa
revelação dos homens como sujeitos é o político, que a ação liberta e permite ao
homem seu autogoverno no meio de tantos outros homens livres das necessidades
imanentes dos animais, ou seja, a prática se inscreve determinadas posições.
De acordo com a perspectiva de Arendt (1995, p. 212), “o poder é efetivado
enquanto a palavra e o ato não se divorciam”; “o poder passa a existir na vida dos
homens quando eles agem juntos, e desaparece no instante que eles se dispersam”, ou
seja, a não-violência para mudar o modo de produção e, conseqüentemente, mudar a
produção social.
Na verdade, espaço discursivo, lugar discursivo, posição-sujeito formam uma
parceria sólida e que vem ao encontro daquilo que Pêcheux chamou de processo de
interpelação, ou seja, os indivíduos são interpelados em sujeitos de acordo com as
construções imaginárias historicamente marcadas que representam o seu lugar nas
relações antagônicas, de aliança ou de dominação entre as classes.
Conforme visto os três conceitos (espaço discursivo, lugar discursivo, posição-
sujeito), acima, é possível depreender que os lugares políticos são determinados pelos
203
conjuntos de interesses que estão determinados pelas formações ideológicas e se
representam na materialidade lingüística. É, portanto, enquanto sujeito político que o
sujeito do discurso tem uma tomada de posição e essa representada pelos modos de
subjetivação.
3.5. 1 O lugar no sindicato: uma perspectiva coletivista
Apresentada na seção anterior a conceituação de lugar discursivo para sustentar o
que dissemos no início deste capítulo sobre a classe operária, pretendemos refletir aqui
sobre as formas de representação do sujeito operário enquanto militante, a qual pode ser
entendida como heterogênea frente aos partidos políticos e à estrutura social brasileira. A
organização dos primeiros sindicatos, na Primeira República, ocorreu de acordo com as
profissões, produzindo algumas separações entre a massa não-qualificada e o grupo com
maior experiência nas indústrias.
Pois bem, se a orientação ideológico-política dos movimentos operários, a
influência de doutrinas, como o anarquismo e distintas formas de socialismo, foram
fortemente incorporados, tanto por operários em zonas rurais como nos centros urbanos,
questionamos: de que forma, dentro desse contexto, produziu-se um espaço político aos
sujeitos que representam seus interesses proletários e a partir de quais princípios
estabeleceram práticas que deveriam ser aceitas por objeto de consenso? De que modo
relações de antagonismo são discursivizadas entre o campo jurídico e a ordem sindical?
Num sentido amplo, podemos afirmar que os discursos legitimam lugares
simbólicos e produzem práticas, que todo discurso faz emergir um campo de questões,
de possibilidades de mudança e de uma reestruturação nas redes de filiação histórica.
Isso pode ser explicado pelo processo de construção de uma identidade coletiva para a
classe operária. Como se sabe, ao mesmo tempo em que os anarquistas defendiam a
solidariedade operária, buscavam desenvolver um sentimento de pertencimento a um
grupo, no qual as formulações que buscavam construir a sua identidade coletiva “não
investiam na auto-imagem do trabalhador engajado na luta com dimensões e objetivos
políticos, como também orientava quanto à atuação sindical, privilegiando as
reivindicações e os episódios grevistas à força organizadora do movimento operário”.
(GOMES, 1988, p. 86). Isso porque, para governo e polícia, toda reivindicação que
204
envolvesse a classe trabalhadora acabava sendo qualificada como ão anarquista e,
conseqüentemente, criminosa.
É, pois, a partir desse conjunto de práticas que se vão (re)configurando os lugares
discursivos e posições-sujeito, que a instauração desses lugares no movimento social
operário, no campo da prática política e das lutas ideológicas, obriga os seus opositores a
buscarem novas estratégias para manter a ordem social.
Acrescente-se que, apesar da garantia constitucional do direito de reunião, como
veremos no final deste capítulo, na análise de seqüências discursivas da FDJ, foram
desrespeitados os direitos, ao mesmo tempo em que foram interditadas as possibilidades
de protesto e de reação por parte das organizações populares e dos trabalhadores. O
esmagamento do trabalhador teve amparo em leis, e isso foi silenciado pelo governo
mais diretamente por seus órgãos policiais e, também, pelo patronato e imprensa. Os
anarquistas eram vistos como um mal externo corrosivo à nacionalidade.
A contradição que se apresenta entre os diferentes julgamentos, entre o que se
entende na lei e o que ocorre na prática leva-nos a observar o silenciamento, isto é, o
funcionamento da censura e do político nos discursos. No seu trabalho sobre as formas
do silêncio, Orlandi (1996) propõe distinguir entre o silêncio fundador e o silenciamento ou a
política do silêncio. Orlandi (p. 31) denomina silêncio fundador a matéria significante por
excelência. Segundo a autora, o silêncio fundador não apresenta divisões internas; é um
continuum de significação cuja materialidade especifica é recortada e categorizada pela
linguagem, ou seja, sempre espaços de silêncio nos processos de
interpelação/identificação do sujeito pelas formações discursivas que o determinam,
porque seu modo de significar tem uma materialidade própria e não se reduz, nem
coincide com a materialidade da linguagem.
o silenciamento ou a política do silêncio tem duas formas de existência: o silêncio
constitutivo e o silêncio local. Na produção de linguagem, o fato de excluir alguns sentidos
para necessariamente dizer caracteriza o silêncio constitutivo. Porém, o silêncio local é
decorrente da interdição do dizer imposta pela censura. Segundo Orlandi (1996, p. 79), a
“censura estabelece um jogo de relações de força pelo qual ela configura, de forma
localizada, o que do dizível, não deve (não pode) ser dito quando o sujeito fala”. Como
vemos, essa forma localizada de silêncio, torna-se visível nos processos discursivos, pela
censura que atua tentando impedir o sujeito de discursivizar as coerções sofridas, as
perseguições, abuso de poder, obrigando-o a buscar a sua constituição por outro viés – na
205
resistência –. É justamente esse viés que, aqui, nos interessa explorar, tendo em vista que
tanto para exercer a coerção como para silenciar é preciso ocupar um lugar de
poder/submissão na luta de classes.
Logo, a resistência oferecida pelos anarcossindicalistas mostra que os
trabalhadores, em sua maioria, sabiam das condições e das causas de sua luta e, se
“foram forçados a fundir um discurso de construção da identidade da classe
trabalhadora
122
, com o discurso de defesa de sua própria imagem como militantes
revolucionários”, como lembra Gomes (1988, p. 90), é porque o sistema judiciário
funcionava em sintonia com as exigências das classes dirigentes.
Parece uma justificativa bastante plausível para entender que os movimentos
operários, através da história, têm sido atacados por governos hostis, subvertidos em
espiões e enfraquecidos pelas “listas negras” e, sobretudo, que o engajamento nos
sindicatos, de certa forma, para a classe trabalhadora era um risco que ameaçava o
sucesso da organização, em função das coerções que a classe sofria, dos riscos a que
estavam expostos os operários. Por outro lado, se se combatia a filiação a partidos
políticos e se se criticava a filiação a associações de bases beneficentes, como veremos
logo a seguir na análise das sdrs do texto 2, era porque, na verdade, temia-se a submissão
dos operários ao patronato e ao governo; os anarcossindicalistas eram adeptos do
sindicalismo revolucionário e eram contra a transformação do sindicato em uma
instituição de beneficência porque os operários podiam correr o risco de submeterem-se
às ações governamentais. Nesse sentido, o lugar político se consagra na esfera pública,
mais precisamente, nas relações de antagonismo com o Estado e com todos que a ele se
identificam com o patronato.
Desse modo, analisaremos neste capítulo os processos dos efeitos de evidência,
por meio do funcionamento das diversas designações que nomeiam o espaço (lugar) da
organização sindical, as diversas modalidades de coletivo, o uso desses espaços e as
posições-sujeito que neles definem sua organização. No contexto dos conflitos político-
discursivos situa-se a fundação da Confederação Operária Brasileira (COB) e, através
dela, as designações de organização, de sindicato e suas atribuições e posições de seus
membros perante a organização. Portanto, como sdrs que dão continuidade à análise do
bloco II, foram selecionados três textos produzidos durante o Primeiro Congresso
Operário Brasileiro (1906), que instituiu a Confederação Operária Brasileira (COB) e
122
Representação dos anarquistas brasileiros na Primeira República.
206
foram tomam resoluções sobre formas de organização sindical da classe operária. Todos
foram extraídos da mesma fonte e pertencem ao bloco II, que identifica saberes da
formação discursiva anarcossindicalista brasileira - FDAB.
O nosso procedimento de análise, num primeiro momento, contempla o estudo
do modo como a organização operária brasileira é tematizada na imprensa de resistência
(anarquista e anarcossindicalista) e como as questões do movimento operário são
apresentadas no texto da lei e segundo os sujeitos anarquistas e anarcossindicalistas, que
questiona o aparelho jurídico.
Em passo posterior, analisamos a relação estabelecida entre as designações
associação e sindicato, as diferentes posições-sujeito a partir das quais se instala um
sentido, apagando outros possíveis/dizíveis ou fazendo emergir os que foram apagados,
silenciados.
Os textos selecionados tratam dos seguintes temas: a) adoção do nome sindicato
para a organização; b) quais as bandeiras de luta da organização; c) como a beneficiência
e o mutualismo podem inscrever-se na prática de resistência. Passemos, então, ao texto 3.
Texto 3
Sobre Organização
Tema 1 – o sindicato de resistência deve ter como única base a resistência ou aceitar
conjuntamente o subsídio de desocupação, de doença ou cooperativismo?
“Considerando que a resistência ao patronato é a ão essencial, e que, sem ela, qualquer
obra de beneficência, mutualismo, ou cooperativismo seria toda a cargo do operariado,
facilitando mesmo ao patrão a imposição das suas condições;
que essas obras secundárias, embora trazendo ao sindicato grande mero de aderentes,
quase sempre sem iniciativa e sem espírito de resistência, servem muitas vezes para
embaraçar a ação da sociedade que falta inteiramente ao fim para que fora constituída a
resistência;
o Congresso aconselha, sobretudo, resistência, sem outra caixa a não ser a destinada a esse
fim e que, para melhor sintetizar o seu objetivo, as associações operárias adotem o nome do
sindicato.”
(Resoluções do 1
o.
Congresso Operário Brasileiro. In: PINHEIRO, P.S. ; HALL, M.M. A
classe operária no Brasil (1889 1930): documentos. São Paulo: v.I, Brasiliense; Funcamp,
1979, p. 48 grifo nosso).
Observamos no texto 3 uma proposta de identidade coletiva para a classe
trabalhadora postulada pelo anarcossindicalista, tendo como fundamento o sindicato de
resistência. O sujeito enunciador que tratava o tema defendia a liberdade organizacional,
ação direta não apenas no sentido de ser livre do patrão, mas de livrar-se também dos
guias e dogmas políticos e religiosos, ou de tudo que pudesse vir a corromper o homem,
207
como a remuneração ou inclusão de chefes no sindicato, conforme veremos mais adiante
na análise dos textos 3 e 4. E é nessa perspectiva que se justificava a educação dos
trabalhadores como um meio de elevação material, moral e cultural do operariado e da
sociedade, tornando visível que o lugar do operário não é o da submissão, mas de um
sujeito de luta e resistência. assim o trabalhador passaria a ser um agente político
capaz de traçar propostas revolucionárias, de tornar-se livre e de transformar a sociedade.
As seqüências recortadas do texto 3 são três, que vão do número 19 a 21. Cada
uma dessas seqüências analisa a estruturação da organização como processo, através da
qual vão sendo preparadas as bases da organização sindical, as bandeiras de luta, como a
beneficiência e o mutualismo podem inscrever-se na prática de resistência e como elas
podem enfraquecer a imagem do sindicato, ou seja, ser de resistência implica estar em
estado de antagonismo com o Estado e as forças institucionais que representam. Nesse
caso, a designação resistência não caracteriza qualquer sindicato, mas o revolucionário.
Conforme observamos, ainda dentro deste mesmo bloco, nos textos 4 e 5, quando a voz
do coletivo aponta para uma determinada forma de determinação do grupo operário que
deve tomar um novo rumo como lugar político para os operários; a organização constrói
um novo lugar político para os operários, para o coletivo, fortificando ainda mais as
relações de antagonismo entre a classe operária e patronato e poderes institucionais.
Eis as seqüências discursivas que compõem a análise do funcionamento sobre
organização, como espaço de luta política da classe operária:
sd 19 o sindicato de resistência deve ter como única base a resistência ou aceitar
conjuntamente o subdio de desocupação, de doença ou cooperativismo?
sd 20 - “Considerando que a resistência ao patronato é a ação essencial, e que, sem ela, qualquer
obra de beneficência, mutualismo, ou cooperativismo seria toda a cargo do operariado,
facilitando mesmo ao patrão a imposição das suas condições; que essas obras secundárias,
embora trazendo ao sindicato grande número de aderentes, quase sempre sem iniciativa e sem
espírito de resistência, servem muitas vezes para embaraçar a ação da sociedade que falta
inteiramente ao fim para que fora constituída – a resistência;
sd- 21 - o Congresso aconselha, sobretudo, resistência, sem outra caixa a não ser a destinada a
esse fim e que, para melhor sintetizar o seu objetivo, as associações operárias adotem o nome do
sindicato.”
Como podemos ver, o sindicato de resistência, ao sugerir o abandono das
características do sindicato revolucionário de prática assistencialista, define a
208
importância da ação direta diante do patronato e do Estado, demarcando o lugar do
operário no campo da luta de classes, combatendo aquelas associações operárias de
assistência mútua ou que, no máximo, combinavam assistência e mutualismo, o que
indica qual é a filiação do sindicato, ou seja, deveria ser fundamentado nos princípios da
luta direta quanto ao patronato, não ao servilismo e à subserviência. Daí por que a COB
passa a ser um acontecimento histórico e discursivo, sobretudo porque a sua fundação
assinalou a legitimação de ações de organização e de luta contra o estado e o patronato.
Das seqüências recortadas que tematizam o texto 3 vemos que a organização
reconhecida pelos anarcossindicalistas aponta para a prática que deve ser instituída no
movimento, não para a nomeação da instituição, ou seja, o modo como essa vai se
estruturando dentro da COB e quais as funções determinadas por ela, bem como a
demarcação dos lugares discursivos.
Como podemos confirmar na sdr 19, a mudança do nome organização para
sindicato de resistência marca a alteração das funções para um e para outro. O emprego “de
resistência” vem, de um lado, simbolizar a ação do sindicato e, de outro, a determinação
dessa ação, tendo em vista que a sua existência se finaliza na revolução, a ão direta no
sindicato produz interferências, silenciamentos e exclusões, na medida em que nomeia
aqueles que não servem para integrar-se a ela.
Por conseguinte, o encaminhamento dessa questão consolidado na sdr 18 vai
produzindo as resoluções a serem tomadas por lideranças sindicais presentes no I
Congresso Operário Brasileiro, explicitando o perfil, a política do sindicato, estratégia do
governo para o esfacelamento do sindicato, em diferentes situações de enfrentamento
com os aparelhos institucionais de repressão, com os empregadores e com as chefias,
vindo esta proposta a ser intensificada mais precisamente no próximo texto (4). Assim, a
determinação das funções dos membros da organização tanto pode representar a união, a
negociação, quanto pode representar a contradição no interior do movimento, as
posições do sujeito anarcossindicalista, ou seja, quem está fora pode continuar de fora,
caso não se identifique com os saberes da FDAB, e quem está dentro pode ou não
permanecer no sindicato, nas mesmas condições dos primeiros. O ingresso na organização
depende do modo como o sujeito se inscreve e se representa na ordem da sociedade
brasileira. Esse modo, portanto, sinaliza a posição-sujeito do anarcossindicalista, que se
antagoniza de forma explícita com a classe dominante (Estado, patronal, aparelho
jurídico) e questiona os grupos de operários (assistencialistas, mutualistas e
209
cooperativistas). No entanto, a contradição torna-se visível na sdr 20, uma vez que se
colocam em votação algumas escolhas, as quais, automaticamente, gerarão a exclusão;
priorizam-se algumas em detrimento de outras.
Para caracterizar esse aspecto, recorremos a Guimarães (2002, p. 14), que,
apoiado em Orlandi (1999), diz “que o sujeito [...] é sujeito enquanto afetado pelo
interdiscurso, memória de sentidos, estruturada pelo acontecimento, que faz a língua
funcionar”. Nesse sentido, fica determinado o lugar de que devem falar os operários
brasileiros. Mais do que isso, a partir da resistência são projetadas as posições
enunciativas, possíveis de serem configuradas no acontecimento histórico do conflito que
desencadeia as relações de antagonismo operários, o patronato e o Estado. Conforme
observamos na sdr 20, a resistência simboliza o lugar da reestruturação social, e esse
processo se na relação da referência estabelecida em relação a uma memória
discursiva. Para tanto, o silenciado no intradiscurso do outro emerge na interrogativa que
pressupõe o que é falado na memória do outro.
No entanto, se a organização sindical é composta pela união de várias facções e
deve encontrar em seus integrantes adesões às ões do movimento, a mobilização dessa
prática política circunscreve múltiplas tomadas de posições, pois, se através do
aconselhamento busca-se o consenso na organização sindical, é porque contradição
no interior do movimento, ou seja, o aconselhamento é uma forma de discursivizar as
relações de conflito entre governo e organização sindical.
Na sdr 21, a designação passa a ser determinada pela ação dos operários dentro da
organização. O operário é chamado para dentro da organização e convocado para a luta
contra a patronal. Por sua vez, tanto na sdr 20 quanto na sdr 21, a contradição torna-se
mais visível, que o enunciador, que deveria estar lutando/resistindo pela lógica
igualitária, luta para garantir o seu espaço de militante anarcossindicalista. Esse espaço
se faz na fronteira com outras facções do anarquismo ao propor a ação direta, ou seja,
não é pela conquista econômica que o operário deve lutar, mas pelo lugar político;
portanto, não se trata de qualquer organização, mas é, definitivamente, uma associação
anarcossindicalista. A organização constitutiva desse espaço político e de luta, ao mesmo
tempo em que oportuniza a entrada nela(organização), aponta para posições-sujeito e
relações antagônicas e contraditórias.
As sdrs 20 e 21 determinam, de modo mais direto, a partir da ação de outras
correntes (mutualismo, assistencialismo e cooperativismo), o entrelaçamento de saberes
das FDs que atravessam o discurso da organização da classe operária no Brasil. Logo,
210
não se trata de uma posição-sujeito única, pois temos marcada a diferença, a
contradição, no interior da FD anarcossindicalista, onde o sujeito enunciador polemiza,
põe em dúvida a prática dos sujeitos de outras facções, não apenas marcando a diferença,
mas produzindo uma lembrança dentro do movimento operário, de que outras facções e
outras formas de coletivismo podem enfraquecer a imagem do movimento. Ao ressaltar a
ação revolucionária dentro do sindicato e condenar outras práticas, o articulador esforça-
se para mostrar que, apesar das contradições, e posições-sujeito, a única saída é a união
dos seus integrantes, ou seja, é adotar a prática dos anarcossindicalista, que é a ação
direta, entendida aqui como revolução, como transformação.
A organização começa a ser submetida ao processo de sucessivas saturações e a
especificidade de sua referência vai construindo discursivamente orientações para uma
prática política. O que chama atenção é que nas sdrs 20 e 21 a saturação convoca
processos específicos de uma outra referência, a da ação dentro da organização,
colocando-a como uma necessidade urgente para conbater as explorações da patronal. É
possível perceber que ficam desqualificados os movimentos de outras organizações que
não sejam de resistência, demarcando não apenas uma posição-sujeito antagônica a um
processo discursivo pré-construído como também a contradição dentro da própria FD.
Assim, as nomeações sindicato revolucionário e associações saturam, preenchem o
sentido, na medida em que permitem construir um papel de sujeito no interior do
movimento na luta de classes. Portanto, vale lembrar que, se, de um lado, a coletivização
se faz pela comunhão dos meios de produção/reprodução, dos produtos do trabalho
comumente distribuídos, colocando a economia inteiramente nas mãos da sociedade
através da abolição do sistema, no anarcossindicalismo essa questão contra os seus
alicerces nos movimentos de resistência que o criados através das ligas, associações e
organizações sindicais. Os anarcocomunistas defendiam a reforma, não a revolução;
divergiam dos revolucionários quanto à forma de produção das mudanças. Para Toledo
(1993, p. 36-37), todos estavam submetidos à exploração capitalista, a péssimas
condições de moradia e trabalho, à discriminação e à violência. Compartilhavam a
desilusão, o sofrimento e, algumas vezes, a revolta. Viviam num mesmo cenário,
conviviam nos cortiços, nas fábricas, nos bondes.
O anarcossindicalismo busca conciliar o difícil equilíbrio entre princípios
libertários e o autoautoritarismo das instituições, do escravismo, as condições de barbárie
a que são submetidos os operários.
211
A partir dessa observação, foi-nos possível desenhar o processo semântico de
organização “não-revolucionária”, o excesso, os saberes da FDAR que retornam “sobre
a organização”, os quais estão representados no quadro que segue, ou seja, como o
discurso da COB, ao colocar as obras de beneficência e assistencialismo como
secundárias, busca mostrar o lugar de subserviência pelo Estado e patronal, ou seja, ser
de resistência implica estar em estado de antagonismo com o Estado e as forças
institucionais que as representam.
O que retorna sobre a organização
Sdrs Determinação
Discursiva
Item lexical Determinação
discursiva
Pré-construído
sdr 20
Qualquer Obra
mutualismo
cooperativismo
de beneficência cede à imposição do
patrão
sdr 21 Essas Obras secundárias
sem iniciativa
sem espírito de
resistência
trazem grande número
de aderentes
embaraçam a ação da
sociedade
Quadro-síntese 9
O quadro acima coloca em evidência os modos como as ações de beneficência e
cooperativas tornam-se um engodo no discurso operário, na medida em que mostra
como determinadas posições-sujeitos criam esse engodo, colocam em evidência uma
organização, mas povoada por contradições.
Como dissemos anteriormente, de acordo com Indursky (1997, p 185), “a
determinação discursiva interseqüencial não se prende somente aos elementos presentes
ao fio do discurso. Ela trabalha com a dispersão discursiva. Como podemos observar no
quadro-síntese acima, rompe-se com saberes de sentido que estão presentes em outras
FDs (mutualista, cooperativista) e que podem levar ao esfacelamento do movimento,
caso não houver união, ou seja, fazer parte do sindicato revolucionário significa.
Por meio desse duplo jogo de determinação, o sujeito da FDAB trabalha visando
atingir duplamente a opinião do trabalhador: construindo para a organização sindical
revolucionária uma luta e desconstruindo a imagem de outras associações, que se
descaracterizam como organização sindical. Por outro lado, no nível do interdiscurso
“vestígios dos discursos silenciados pelo sujeito do discurso”, os quais vêm à tona no
interior da organização sindical desengajada dos movimentos de luta. O apagamento dos
sentidos possíveis, mas indesejáveis, no interior da mesma FD é o que torna possível
interpelar os operários, fortalecer a contradição entre eles, formar a organização. No caso
212
da análise da sdr 20, dizer qualquer obra de beneficência” e essas obras secundárias,
sem iniciativas, sem espírito de resistência” significa reconhecer a falta de consenso no
interior do movimento operário, o que não convém à organização sindical se ela quiser
combater o inimigo.
Nesse sentido é que o trabalho da imprensa de resistência permitiu aos
trabalhadores brasileiros criar uma visão coletiva da luta que os opunha ao capital,
enfatizando, assim, que cada indivíduo e cada grupo o estavam isolados e que os
avanços sociais eram possíveis, isto é, a partir das federações operárias e na
Confederação Operária Brasileira (COB) o sindicalismo deixa entrever tendências
marcadamente fortes do anarquismo, sobretudo do anarcossindicalismo, do sindicalismo
revolucionário.
Tanto é que a identidade
123
construída a partir de sua vida cotidiana nas lutas pela
sobrevivência e em suas relações de trabalho, somada às práticas culturais e sociais, criou
uma relação de enfrentamento com a ordem estabelecida. É uma identidade que se
constrói na oposição ao outro e, também, uma identidade que se constrói na prática de
resistência, no enfrentamento, na luta, na negação das práticas de coerção do outro.
Desse modo, a imprensa paralela funciona como estratégia de luta e a contradição
que se apresenta entre os diferentes julgamentos e entre o que ocorre na prática leva-nos a
observar o funcionamento da censura. Esse silêncio local determina o que do dizível não
deve (não pode) ser dito; a censura impede a constituição do sujeito operário como
sujeito político, uma vez que este, historicamente, no Brasil influenciou a luta.
Vale lembrar que, para Ferdinand Pelloutier (1867 1901), uma das figuras mais
importantes na história da classe operária francesa em 1895, os sindicatos poderiam
servir, ao mesmo tempo, como um meio de levar avante a luta para obter a
transformação social e como meio de conscientização dos operários. Dotar os sindicatos
de uma série de serviços, de bibliotecas, de escolas, de cursos de aperfeiçoamento, de
edição de jornais e de outras publicações poderia ser o caminho para emancipar o
proletariado. Para ele, os sindicatos seriam o caminho para a transformação, a
regeneração e a revitalização da sociedade. A ação construtiva está ligada à ação
educativa, isto é, se obtém dos homens um esforço efêmero quando este esforço se
limita à preocupação com os seus interesses materiais ou corporativos. Ao contrário, o
123
Efeitos imaginários e ideológicos determinam a identificação na Formação Discursiva que se torna
dominante para o sujeito “coletivo”.
213
entusiasmo dos trabalhadores por sua emancipação suscita às organizações operárias um
objetivo maior.
As idéias do sindicalismo revolucionário, desse modo, iniciaram-se na França e
desenvolveram-se entre os militantes da Confédération Generale du Travail. Essa
confederação ocupa uma posição singular no movimento operário internacional, sendo
praticamente uma das únicas organizações a o ter qualquer ligação com partido
político.
Com base nessa missão de designar a organização, constrói-se estratégia de
sobrevivência e de luta. Podemos, pois, concluir, por enquanto, que a determinação que
ocorre no nível discursivo passa por constantes afetações: o sujeito é interpelado por uma
ideologia e, inconscientemente, é assujeitado. A ocupação de um lugar que ele acredita
ocupar, também sob o efeito de ilusão, leva-o a se inscrever em algum lugar de operário,
o que determina o modo como ele se relaciona com a forma-sujeito e como se identifica
com saberes da FDAB. Assim, o assujeitamento ao lugar e à forma-sujeito determina as
relações identitárias do sujeito operário.
O que as análises mostraram foi que, no espaço discursivo da resistência, as
coerções vindas do exterior são atravessadas por outros discursos, por saberes de outras
FDs, o que implica processos diferentes de constituição. A determinação do dentro e do
fora, portanto, não é lingüística, nem é só vinda de fora, mas é um processo contínuo
de mútua constituição. A imagem de operário é construída sobre uma imagem de
sindicato que se constrói a partir de práticas de enfrentamento, de luta, de resistência a
coerções.
Percebemos que o processo discursivo é fortemente ancorado em duas imagens: a
do sindicato revolucionário e a do sindicato reformista. Assim, a primeira imagem está
calcada na imagem do modo como o sujeito deseja ser visto e a segunda, no modo como
não deve ser o sindicato. Assim como ele está assujeitado a uma forma-sujeito y, na qual
ele está perpassado por outros saberes, um todo complexo dominante antagônico e
contraditório.
Quanto à posição sujeito em relação ao estar dentro ou fora, ao concordar,
questionar ou romper, indica posicionamentos que influenciam nas formas de
determinação, que, evidentemente, parecem ser conscientes, mas não são. Dpor que o
projeto anarquista de transformação moral e cultural dos trabalhadores no Brasil da
Primeira República, na medida em que é uma convergência entre várias facções no
interior da organização, não foge aos propósitos da política Internacional.
214
3.5.2 Em dizer e silenciar: o atravessamento do político
Na seção anterior, a ação coletiva constrói discursivamente a identidade dos
operários como uma classe, à primeira vista, homogênea e sem distinções, o que, na
verdade, não ocorre, pois o coletivo divide-se em grupos: a) sindicatos de resistência; b)
beneficência; c) mutualismo e d) cooperativismo. Os efeitos de sentido de coletivo, para o
sujeito do discurso, constroem-se no processo de auto-reconhecimento diante de/“sobre
a organização”, na qual o sujeito se identifica enquanto classe.
Observamos que, no retorno à organização, o sindicato revolucionário passa a ser
designado enquanto processo, pois, conforme aponta a análise das sdrs do texto 4, a
ação, o ato coletivo é mais importante que a nomeação da organização. Assim, aquele
que é incluído na organização, como observaremos nas seqüências discursivas que fazem
parte do bloco II, identifica-se com um certo tipo de organização, no caso a organização
sindical.
Nesse processo de representação, no caso, dos líderes sindicais, apesar de a lei
estar sempre atrás perseguindo suas ações, de proibir a sua instalação na organização, a
voz do articulador o silencia, uma vez que sua ação no interior do movimento
operário, por exemplo, será articular o grupo, orientando seus membros a
desempenharem seu papel político na luta de classes. Essa transposição do indivíduo
para sujeito de direito, colocado, para sempre, sob a gama de direitos e obrigações,
apesar de não se referir a uma pessoa em particular, mas a todos os operários brasileiros,
cria uma esfera de interdições e ilusões, porque as construções socialmente regradas,
contraditoriamente, sustentam-se nos efeitos de evidência produzidos ao longo da
história.
Veremos também que a ação do sindicato revolucionário rechaça não só os que se
identificam com saberes de FD antagônicas, como questiona a representação do
sindicato por algumas categorias profissionais (cargos e funcionários remunerados),
tendo em vista que a remuneração exclui a atividade política no interior dos sindicatos,
conforme observamos no texto 4, a seguir:
215
Texto 4
Tema 4 No seio da organização sindical poderão admitir-se funcionários remunerados?
No caso afirmativo, sob que condições?
“Considerando que a remuneração dos cargos no sindicato é suscetível de produzir
rivalidades e intrigas, ambições nocivas à organização e interesses contrários à sua ação e
liberdade de movimentos;
que essa remuneração pode chamar às funções administrativas indivíduos unicamente
desejosos de se emancipar individualmente, trabalhando com o exclusivo fim de perceber o
ordenado, e não com o amor que provém de um forte espírito de iniciativa e de uma larga
compreensão dos interesses solidários do operariado, e da necessidade da luta;
o Congresso operário aconselha vivamente às organizações operárias a repelirem as
remunerações dos cargos, salvo nos casos em que a grande acumulação de serviço exija
peremptoriamente que um operário se consagre inteiramente a ele, não devendo, porém,
receber ordenado superior ao salário normal da profissão a que pertença.
Outrossim, no caso excepcional em que qualquer sociedade tenha necessidade de ter
funcionários remunerados, estes, ainda quando sócios, não poderão votar nem ser votados;
e, para tais cargos remunerados, devem ser preferidos os sócios inutilizados pelo trabalho.”
(Resoluções do 1
o.
Congresso Operário Brasileiro. In: PINHEIRO, P.S. ; HALL, M.M. A
classe operária no Brasil (1889 1930): documentos. São Paulo: v.I, Brasiliense; Funcamp,
1979, p. 49 grifo nosso).
Considerando que o acontecimento discursivo é o lugar material, onde o real da
língua e o real da história se encontram, sendo a fundação da COB (1906) um
acontecimento discursivo no Brasil da Primeira República, nomear a organização
operária de sindicato revolucionário significa mais que registrar um novo nome para a
organização; significa trabalhar em cima da ação direta. Não regras preestabelecidas,
no caso do corpus de nossa tese e conforme orientação de cheux (1983, p. 53), que diz
que “todo enunciado é suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo e de se
deslocar discursivamente de se seu sentido para derivar outro”. Nomear é produzir
sentidos e é assumir posições-sujeito nas formações discursivas inscritas no complexo de
Formações Ideológicas; é, sobretudo, produzir ruptura com saberes de FDs antagônicas.
Apresentamos a seguir as seqüências recortadas do texto 4 para análise do bloco
II, seção B, no qual circulam saberes que identificam a formação discursiva
anarcossindicalista (FDAB):
216
sdr 22 - No seio da organização sindical poderão admitir-se funcionários remunerados? No caso
afirmativo, sob que condições?
sdr 23 - Considerando: que a remuneração dos cargos no sindicato é suscetível de produzir
rivalidades e intrigas, ambições nocivas à organização e interesses contrários à sua ação e
liberdade de movimentos;
que essa remuneração pode chamar às funções administrativas indivíduos unicamente desejosos de se
emancipar individualmente, trabalhando com o exclusivo fim de perceber o ordenado, e não
com o amor que provém de um forte espírito de iniciativa e de uma larga compreensão dos
interesses solidários do operariado, e da necessidade da luta.
sdr 24 - o Congresso operário aconselha vivamente às organizações operárias a repelirem as
remunerações dos cargos, salvo nos casos em que a grande acumulação de serviço exija
peremptoriamente que um operário se consagre inteiramente a ele, não devendo, porém,
receber ordenado superior ao salário normal da profissão a que pertença.
Outrossim, no caso excepcional em que qualquer sociedade tenha necessidade de ter
funcionários remunerados, estes, ainda quando sócios, não poderão votar nem ser votados; e,
para tais cargos remunerados, devem ser preferidos os sócios inutilizados pelo trabalho.
Na sdr 22, a função do articulador é produzir coerência dentro do movimento,
uma vez que tudo de que a associação precisava era organizar-se para pôr em prática a
ação direta. A base da organização, nesse momento, a aliança entre saberes anarquistas e
anarcossindicalistas poderia garantir a sobrevivência das organizações operárias, até se
podia admitir as contradições internas, contanto que não se abrisse mão da prática
política.,conforme observamos na sdrs 23, com a possibilidade da admissão de
funcionário remunerado ou algum cargo. Nesse caso, o aconselhamento, conforme
observamos na sdr 24, constitui uma orientação para o movimento, em que confirma a
importância do papel do articulador para a organização do movimento, ou seja, ao
mostrar as contradições internas e os riscos de minar os saberes que orientam a prática
política do movimento, o articulador constrói uma memória por antecipação. Na medida
em que o lugar empírico, na esfera da formação social, passa a ser habitado por um corpo
o da associação, ou pelo do funcionário com remuneração, antecipa-se a possibilidade
de integrarem o movimento aqueles que vão trabalhar contra e em favor do Estado e da
patronal. O que o sindicato precisa, para justificar sua existência, é de membros que
denunciem o poder e os abusos praticados por ele e, sobretudo, defenda os interesses
políticos do grupo.
No entanto, observamos que a delimitação das ações no interior do movimento, o
articulador realiza uma operação que consiste em demarcar o espaço físico (estrutura) e
217
preencher esse espaço vazio no enunciado que compõe a organização enquanto
instituição, nem tão-somente para delimitar quem fará parte da esfera institucional, mas,
na medida em que limita sua extensão na esfera social, dotando-a de referência atual,
qualifica como elemento do dizer ideologicamente identificado à FD que afeta o discurso
em que tais efeitos ocorrem, ou seja, o lugar político do associado no interior do
movimento. Nesse sentido, tomando a designação do lugar como espaço geográfico
mesmo, teremos o que determina, pela língua, o dentro (interior) e o fora (exterior) da
organização, conforme sdr 24: Outrossim, no caso excepcional em que qualquer
sociedade tenha necessidade de ter funcionários remunerados, estes, ainda quando
sócios, não poderão votar nem ser votados; e, para tais cargos remunerados, devem ser
preferidos os sócios inutilizados pelo trabalho”.
No interior do congresso operário, espaço de luta e de prática política é
construído, histórico e ideologicamente, a partir dos efeitos de autoridade e moralidade,
reflexos da exterioridade, da prática social e discursiva, ou seja, a remuneração interna
pauta a conduta no interior do sindicato. Ao determinar quem “pode ocupar cargo de”,
indica, ao mesmo tempo, os diferentes níveis de pertencimento na organização e os
mecanismos de exclusão. Observamos que na sdr 22, os saberes que determinam a
FDAB, são o coletivismo e a ação direta e o que o articulador faz é buscar o consenso,
que a remuneração e cargos de chefia podem colocar em risco a essência do movimento.
A pergunta na introdução da pauta de discussão encaminha a dúvida e indica essa
divisão no interior do movimento.
Percebemos, ainda, uma construção de consenso no núcleo do sindicato e a
exclusão do sujeito. Mas não se trata nem coorporativismo, nem sectarismo, uma vez
que o que determina o pertencimento ao sindicato, quem pode ou não entrar, quem pode
ou não ser aceito, são os saberes eleitos no interior da FDAB, ou seja, observamos na sdr
23 que qualquer cargo ou a remuneração pode ser empecilho para a prática política e
enfraquecer a imagem do sindicado, uma vez que a associações precisava era consolidar
suas bases para por em prática a ação direta.
Para Guimarães (2002, p. 2-3), no ato de nomear, o sujeito “é tomado na
temporalidade do acontecimento”, a qual passa a congregar, pela evocação da memória
discursiva, tempos que lhe são correlatos: o tempo do discurso. Os dizeres inscrevem-se,
pela sua historicidade, em determinadas regiões do interdiscurso, e os sentidos o
tomados de acordo com a filiação de quem diz, porque já significam, desde que “a língua
funciona afetada pelo interdiscurso”.
218
Desse modo, os efeitos de evidência produzidos por uma determinada memória
discursiva constituída durante o Congresso Operário são estruturados pelo silenciamento
ou pela nomeação dos excedentes, cujos processos de designação da associação operária
e dos sujeitos que devem ficar de fora dessa organização são estruturados pelo
esquecimento de sua essência e dos riscos de se admitirem no interior do movimento
sujeitos que fizessem aliança com o patrão. A enunciação coloca o sujeito do discurso na
posição de sujeito revolucionário (anarcossindicalista) porque evoca a memória na qual o
operário aparece inscrito nessa divisão como pertencente a uma determinada
organização, equivalente, no campo do discurso, a uma posição de sujeito, que é
antagônica aos que se rendem ao Estado, ao patrão.
Na sdr 24, o aconselhamento encaminha as divergências, as contradições no
interior do movimento para chegar ao consenso, ou seja, o que mais se precisava naquele
momento era somar forças para combater os diversos tipos de exploração, abusos e
violência. Nenhum sindicato poderia sobreviver sem uma bandeira de luta, sem uma
prática política. O que se percebe nesse texto é que, apesar das contradições, o
articulador, ao encaminhar a pauta da discussão e encaminhar as decisões do grupo,
procura conduzir o grupo para o consenso, independentemente das facções, conquanto
defenda os interesses políticos dos operários.
O que fica evidente é que toda nomeação é postulada de um lugar ideológico.
Pêcheux (1980, p. 192), ao fazer a leitura sobre o Tratado político de Spinoza, afirma que
“uma ideologia não é idêntica a si mesma, não existe senão sob a modalidade da divisão,
e não se realiza mais que na contradição que com ela organiza a luta, e a luta dos
contrários”. O sujeito anarcossindicalista, por exemplo, ao elaborar as regras do
funcionamento da organização sindical e determinar quem fica de dentro ou fora dela, ao
mesmo tempo em que assume a função de articulador do movimento, acredita construir
consenso no interior da FD, com base na determinação de saberes do que deve funcionar
no interior da organização.
Em síntese, o modo de determinar a organização sindical, no texto 4, rechaça
saberes no interior da FD anarcossindicalista que se opõem à prática política de todos
aqueles que pretendem obter remuneração no interior do sindicato, ou seja, determina
como se deve pautar a prática política no interior do sindicato, não as vantagens.
219
3.5.3 A imagem do sujeito “dedo-duro” no sindicato revolucionário
E o que traía tinha-lhes dado um sinal, dizendo: o que eu beijar é
esse; prendei-o. (Mateus, 26,48)
Nesta seção, examinaremos uma das formas de representação do sujeito da
enunciação. Das sds que compõem o texto 4, fica determinado quem devem ser excluído
do seio da organização sindical. A partir de uma série de formações imaginárias que
designam o lugar que ocupa, ou seja, a partir da imagem que faz de seu próprio lugar e
do outro, define-se a representação do sujeito anarcossindicalista.
A essa representação subjazem as formações imaginárias propostas por Pêcheux
(1969), o qual afirma que o discurso produzido por um sujeito (A) sempre pressupõe um
destinatário (B), que se encontra num lugar determinado na estrutura de uma formação
social. Das questões formuladas por Pêcheux para o exame das imagens do locutor e do
interlocutor transcrevemos duas:
AI (A)
Imagem do lugar de A para o sujeito situado
em A
“Quem sou eu para lhe
falar assim?”
IA(B)
Imagem do lugar de B para o sujeito situado
em A
“Quem é ele para que eu
lhe fale assim?”
Quadro-síntese 10
As duas questões destacadas no quadro nos ajudam a compreender a imagem que
o locutor faz de si e a imagem que seu interlocutor faz dele. Vale destacar que essas
imagens estão ligadas aos processos discursivos e às condições de produção dos
discursos. Assim como nos textos 3 e 4, o texto 5 foi produzido sob a forma de pautas e
contém questionamentos/respostas a respeito de polêmicas entre a classe operária, tendo
em vista que, enquanto uma formação social constituída por indivíduos de diferentes
nacionalidades, níveis culturais, raças, credos e, portanto, interpelada por formações
ideológicas distintas, não apresentava, durante o congresso de instituição da organização
sindical, saberes harmônicos em relação às posições e estratégias de ação de classe.
Como mencionamos, isso está relacionado às diferentes posições que o sujeito
vai assumir no discurso, pois a posição que ele assume está diretamente ligada com a sua
220
forma de inscrição no seio do movimento operário, ao modo como ele é interpelado.
Logo, os sujeitos-enunciadores das pautas se constituem, ao mesmo tempo, em
enunciadores e articuladores, tendo em vista a dinâmica de perguntas-resposta utilizada
para a interlocução durante o congresso; “excluem ou apagam o que não deve e não
pode ser dito”, de acordo com as atitudes e representações determinadas e compatíveis
com as posições da classe. A proporia denominação da pergunta é um indicador da
divisão no interior do espaço sindical.
Por outro lado, embora as condições de produção dos discursos apresentem uma
característica de alteridade constituída entre sindicato e os seus membros, as condições
dessa organização, as diferentes posições-sujeito, é preciso construir um consenso.
Assim, os encaminhamentos pela liderança sindical passam a ocupar lugar hegemônico
em relação à manutenção dos saberes que deveriam regular a prática política. A
legitimidade não se em relação à retomada aos saberes que devem circular no interior
da FD, mas em relação à prática política a que se deve aderir no interior do movimento.
As resoluções consensuais a serem tomadas pela classe operária são produzidas e
divulgados pelas lideranças sindicais, que passam a ocupar, duplamente, uma posição
hegemônica em relação à classe operária, por serem lideranças representativas e por
produzirem os tipos de resoluções encaminhadas à classe em face das divergências
existentes.
Tomaremos, aqui, como objeto de análise o texto 5, referente ao tema exclusão de
algumas categorias do sindicato, dentro do conjunto de textos que se agrupa no bloco II.
Assim como outros desse bloco, o texto 5 faz parte de publicações anarquistas
produzidas no Brasil da Primeira República, nas quais observamos relações de
antagonismo entre a classe operária e a classe dominante.
Cabe ainda ressaltar que o texto selecionado trata do seguinte tema: deliberação
sobre aqueles sujeitos que não podem fazer parte dos sindicatos. No texto, a partir da
militância de intelectuais responsáveis pela mobilização dos operários, podemos observar
a imagem da representação do sujeito.
Texto 5
Tema 7 – Sob que condições poderão ser admitidos os mestres, contramestres, encarregados,
os operários, enfim, que exerçam qualquer cargo de mando?
“Considerando que os mestres e contramestres são, pelo lugar que ocupam, os verdadeiros
representantes dos patrões;
221
que eles, por este motivo, podem trazer às organizações operárias o desacordo e converterem-
se em espiões;
que é impossível distinguir, de modo positivo, os bons dos maus mestres e contramestres;
o congresso entende que os mestres e contramestres devem ser excluídos dos sindicatos
operários; podendo em casos excepcionais, fazer-se um regulamento interno para regularizar
a admissão dos mesmos.”
(Resoluções do 1
o.
Congresso Operário Brasileiro. In: PINHEIRO, P.S. ; HALL, M.M. A
classe operária no Brasil (1889 1930): documentos. São Paulo: v.I, Brasiliense; Funcamp,
1979, p. 50 grifo nosso).
A série de designações que aparecem na imprensa de resistência é usada em outras
práticas sociais e não se aplica da mesma forma, o que gera uma dispersão no
interdiscurso. Por conseqüência, apaga-se a presença de outros tipos de sindicatos no
espaço da resistência pela analogia com outras categorias sociais e espaciais (nomeação e
negação da identificação dos referentes nomeados).
A multiplicação de iniciativas culturais que eles encaminhavam e o valor que lhes
atribuíam explicitavam o projeto de identidade coletiva que buscavam construir. A
participação de forma igualitária a um projeto associativo é que lhes garantiria a
liberdade. Desse modo, a maneira de pensar a sociedade e o coletivo integra a liberdade e
o individualismo; é a inserção coletiva orientada por valores universais do homem, bem
diferente de um coletivo voltado para os interesses de grupo particulares. É nesse sentido
que se destacam os Congressos Operários como responsáveis pela caracterização e
definição do perfil e da atuação dos setores organizados do movimento operário
O exame revela que o discurso da COB legitima uma imagem presente nas cinco
sdrs em análise. Apresentamos, a seguir, as seqüências recortadas do texto 6 para análise
desta questão.
sdr 25 - Sob que condições poderão ser admitidos os mestres, contramestres, encarregados, os
operários, enfim, que exerçam qualquer cargo de mando?
sdr 26 - “Considerando que os mestres e contramestres são, pelo lugar que ocupam, os
verdadeiros representantes dos patrões;
que eles, por este motivo, podem trazer às organizações operárias o desacordo e converterem-se
em espiões;
que é impossível distinguir, de modo positivo, os bons dos maus mestres e contramestres;
sdr 27 - o congresso entende que os mestres e contramestres devem ser excluídos dos sindicatos
operários; podendo em casos excepcionais, fazer-se um regulamento interno para regularizar a
admissão dos mesmos”.
Como o documento que analisamos legitimidade às tomadas de decisão no
interior do movimento, é possível afirmar que a restrição ao ingresso de algumas
222
categorias profissionais (mestres, contramestres) revela o receio de alianças com
interesses no sindicato. Com isso, faz um movimento de identificação da sindicalização,
tentando aproximá-lo da ordem da resistência, tendo em vista que essas categorias
poderão implicar a cisão no interior do movimento, já que esses poderão votar em favor
de interesses dos patrões, ou em favor aos interesses próprios. Em seguida, observamos
que a ocupação desses lugares ressalta a possibilidade de contaminação do sujeito
operário (que incorpora aquela formação). Fica claro, portanto, que o lugar se relaciona
com a posição-sujeito. Nesse caso, o articulador vem cumprir o papel político, uma vez
que busca despertar a consciência do operário e mostrar a importância desta para a sua
independência.
Qualquer cargo, como de “mestres” e “contramestres”, pelo trabalho da memória,
antecipa saberes que vão contra os saberes da FDAB, e a presença de “maus sujeitos”
124
no interior do grupo revela a contradição existente no movimento. Portanto, não basta
ser sócio do sindicato; é preciso não se identificar com os saberes da FDAB, mas,
também, desempenhar papel político, prática própria daqueles que combatem qualquer
tipo de traição, delação, ou seja, o verdadeiro anarcosssindicalista não se vende ao
patrão, nem vende os seus princípios. Desse modo, o imaginário de “dedo-duro” é
construído no discurso de resistência a partir dos efeitos da violência, da exploração e da
perseguição contra os operários, reflexos da própria ruptura dos operários com os
próprios saberes que passam a atender aos interesses da mais valia.
Nesse caso, nas sdrs 26, 27 e 28, a representação da imagem do “dedo-duro” no
interior da organização aparece sob o efeito do cargo, do lugar que ele ocupa dentro da
fábrica e na esfera da formação social, o qual desencadeia malefícios e aparece na figura
do espião. O congresso e em discussão a entrada desses elementos no interior do
sindicato, antecipando a imagem do “mau sujeito”, que se vende ao patrão e, para
ganhar dinheiro, vai contra a sua própria classe. Mais uma vez, como é sabido na
história, encontramo-nos diante de uma representação da imagem do poder como algo
prejudicial e que mina a base de qualquer segmento de classe. Dizendo de um outro
modo, algumas categorias profissionais (como os mestres, os operários com cargos, os
funcionários remunerados) evidenciam quais os saberes que prevalecem no interior da
FDAB, as cisões que implicam na exclusão daqueles que atendem aos interesses da mais-
124
Referimo-nos à segunda modalidade de subjetivação desenvolvida por Pêcheux (1988, p. 215), em cujo
processo o sujeito do discurso se contrapõe à forma-sujeito, contra-identificando-se com alguns saberes da FD,
no caso do nosso corpus de análise, contra-identificando-se com saberes da FDAB que o afeta, instituindo-se
como forma de resistência à forma-sujeito e ao domínio de saberes que organiza.
223
valia, determinando quem pode e quem não pode entrar fazer parte, conforme
observamos no quadro-síntese a seguir:
1. o pré-construído: acerca do cargo de confiança do patrão com indício de mau sujeito;
2. a posição-sujeito: no discurso Outro (imaginário de B sobre A) o individualismo
como efeito da remuneração;
3. a contradição: na luta sindical abre-se espaço para a “mais-valia” operar.
Quadro-síntese 11
Em outros termos, o quadro nos mostra que nas sdrs de 25 a 27 há a possibilidade
de virem a ser corruptos, que junto à venda da força do trabalho, alguns passam a
vender os princípios também, como é o caso dos mestres, contramestres e operários
remunerados. Observamos, portanto, a contradição no núcleo da organização.
Na sdr 26 tal imagem afetada pelo poder intensifica-se na medida em que falta
dispositivo para corrigir o sistema, justamente pela dificuldade de se caracterizar que
saberes devem determinar as práticas de seus filiados e de localizar o mau sujeito no
interior do movimento, porque, em defesa de seus interesses ou do patrão, sempre
aqueles que vendem, junto com a força de trabalho, os princípios, caracterizando um
outro tipo de prática no interior do movimento, como a prática da delação e traição; por
isso, é melhor impedir a entrada daquele que possui propensão a vir a se tornar um
mau sujeito (por espionagem e traição), ou excluí-lo do meio sindical.
Como podemos observar na sdr 27, nos domínios de antecipação, com base na
instauração de movimentos operários em momentos históricos anteriores, devido à
formação de um discurso de aliança entre os empregadores e o governo e à repetição de
situações fraudulentas por parte dos empregadores, que faziam qualquer coisa para obter
informações, as delegações eleitas encaminham aos operários a resolução de que
desvinculem dos movimentos qualquer sujeito que possa representar riscos, prevendo a
repetição do desmantelamento de movimentos organizados e o crescimento de cisões
entre as classes. Ademais, todas as experiências vividas pelos operários, as diferentes
explorações, os casos de violência, as constantes perseguições e todo tipo de repressão
ensinam-lhes que a qualquer momento o sindicato pode ser surpreendido por novos casos
de traição e, por isso, o delator deve ser excluído dos movimentos.
224
Dessa forma, nas sdrs o domínio da antecipação pode ser identificado pela forma
verbal, como efeito de projeções feitas a partir dos elementos pré-construídos
mobilizados na sdr 26, conforme transcrição abaixo.
(26
1
) Considerando que os mestres e contramestres são, pelo lugar que ocupam, os verdadeiros
representantes dos patrões...
(26
2
) que eles, por este motivo, podem trazer às organizações operárias o desacordo e
converterem-se em espiões ...
Na sdr 26, por exemplo, observamos a não-nomeação do sujeito agente,
responsável pelo questionamento sobre a admissão dos mestres, contramestres,
encarregados, os operários, na organização. Igualmente, o sujeito agente, na sdr 25, o
aparece lexicalmente marcado, ficando claro, portanto, que a própria classe, por estar
dividida, encaminha resoluções sobre a desvinculação de movimentos de resistência de
qualquer atividade que possa representar nculo com a patronal. No caso de nosso
corpus, percebemos a ausência de uma marca, mas identificamos a sua presença
semanticamente pressuposta na materialidade histórica e interdiscursiva. Entendemos
que as sds paralelas às sdrs, por nós analisadas, fazem parte de um domínio da memória
enquanto fatos históricos que coexistiram com as sdrs em estudo, tendo em vista a
existência de uma voz consensual apontando para esse “nós” (não-marcado) e por meio
da qual a configuração de um sujeito que está sendo convidado a associar-se a uma
classe, instituindo, com isso, a necessidade de instaurar estratégias de ação consensuais
entre os mesmos. Logo, mesmo sendo apagada da estrutura, essa voz mais ou menos
anônima do coletivo busca evitar os desgastes e insucessos ocorridos em situações
anteriores, o que configura que as evidências vindas de fora (do interdiscurso) podem ser
diluídas durante as formulações.
Desse modo, a indeterminação referencial ocorre no nível do interdiscurso,
através do domínio da memória, convoca saberes das FDs antagônicas, que passam a ser
inseridos e configurados nas sds das lideranças dos movimentos, configurando as
posições dos opositores a serem combatidas e desmascaradas por todos os seguimentos
que integram a COB.
Ainda, levando-se em conta que, de acordo com Pêcheux (1982, p. 17), “o porta-
voz se expõe ao olhar do poder que ele afronta, falando em nome daqueles que ele
representa, e sob seu olhar”, fala diante dos seus e parlamenta com o adversário, vamos
225
encontrar nas sdrs analisadas a presença de um outro sujeito e operando de um outro
modo. O papel do articulador, embora, às vezes, possa se confundir com o papel do
porta-voz, possui a função de mediador, diferenciando-se, portanto, do papel de porta-
voz pelas seguintes razões:
1) a função enunciativa de negociação interposta é encoberta pela não-nomeação
do sujeito agente, que atua como articulador e cujo papel se camufla com a representação
do outro (ele), configurando uma certa imparcialidade do dizer. E isso se confirma pela
desinência verbal, a saber: “... considerando que os mestres....”
2) a simulação do esvaziamento da forma-sujeito da FDAB, a que se refere
Indursky, vincula o sujeito do discurso ao papel legitimação da COB, diminuindo a força
da figura enunciativa e, pela não-nomeação, instaura uma outra pessoa discursiva (ele),
fortificando o acontecimento discursivo. A sua fala aponta mais para o consenso do que
propriamente para a negociação. Isso pode ser constatado pelo encaminhamento das
resoluções finais através de orações subordinativas que tomam como sujeito “o
congresso”, deixando claro que o modo de interpelação da classe é pelo congresso, não
pelas lideranças, conforme constatamos na sdr a seguir:
sdr 27 - o Congresso entende que os mestres e contramestres devem ser excluídos dos sindicatos
operários; podendo em casos excepcionais, fazer-se um regulamento interno para regularizar a
admissão dos mesmos.”
Indursky (1997, p. 76) distingue a não-pessoa discursiva da quarta-pessoa discursiva.
Segundo a autora, a o-pessoa discursiva remete para grupos lexicalmente não-nomeados
que se associam ao sujeito do discurso, ao passo que a quarta-pessoa discursiva produz a
impessoalização desse sujeito: ele abdica de dizer eu, cedendo espaço para o
acontecimento discursivo, ou seja, de acordo com Indursky, não inclusão do outro
nessa forma de representação. Por meio dela, o sujeito apresenta-se como se fosse outro.
A seguir, transcrevemos as sdrs que encaminham as resoluções finais à classe
operária e que comprovam a preocupão com as bases e o futuro do movimento,
mostrando a importância do papel político do sindicato como força de resistência e
pressão contra os governos e a patronal, para se chegar à transformação, à revolução.
Texto 3 sdr 21 - o Congresso aconselha, sobretudo, resistência, sem outra caixa a não ser a
destinada a esse fim e que, para melhor sintetizar o seu objetivo, as associações operárias adotem
o nome do sindicato.”
226
Texto 4 - sdr 24 - o Congresso operário aconselha vivamente às organizações operárias a
repelirem as remunerações dos cargos, salvo nos casos em que a grande acumulação de serviço
exija peremptoriamente que um operário se consagre inteiramente a ele, não devendo, porém,
receber ordenado superior ao salário normal da profissão a que pertença.
Texto 5 - sdr 27 - o Congresso entende que os mestres e contramestres devem ser excluídos dos
sindicatos operários; podendo em casos excepcionais, fazer-se um regulamento interno para
regularizar a admissão dos mesmos.” (p. 48 – 50)
A representação do sujeito do discurso em terceira pessoa equivale à quarta-pessoa
discursiva, cuja especificidade reside na simulação do não-preenchimento da forma-
sujeito, para dar lugar ao acontecimento discursivo. Assim procedendo, o sujeito simula
seu apagamento ao mesmo tempo em que sublinha o efeito de esvaziamento da forma–
sujeito, que produz a ilusão de que o acontecimento discursivo está desvinculado do
sujeito que o constrói.
O apagamento da estrutura dialógica pelo papel do articulador fortifica a imagem
do coletivista, uma vez que os sintagmas verbais “aconselhar”, “entender”, introdutores
das resoluções finais, produzem efeito de homogeneização dos saberes que identificam as
FDs da classe operária. Destacamos, nesse sentido, a importância do papel do
articulador, cujo funcionamento discursivo é encaminhar o grupo, ser agente, interpelar e
produzir um efeito de controle hegemônico sobre a ação operária. No esforço de
legitimar o papel da COB, o sujeito do discurso representa-se como “o congresso”,
produzindo a dissociação entre as duas figuras, realizando uma espécie de movimento
dêitico discursivo ou anáfora discursiva, que consiste em apontar para essa forma que é
construída como contraditória, colocando em evidência a força do coletivo.
É, pois, possível observar a constituição do sujeito coletivo e político. Por meio
dessa modalidade, o sujeito articulador lugar ao sujeito nomeado no enunciado por
“ele” - o congresso –, legitima um lugar ao sujeito do enunciado que se transforma numa
referência externa à interlocução, sendo, assim, incorporada pelo discurso do articulador.
O que podemos ver das sdrs é que, ao referir “ele”, aponta para um outro” mais
ligado à figura do “patrão” explorador e aético, cujo desejo de expropriar os operários é
que vale. Esse patrão despótico, tirano (que usufrui o poder imediato e pleno em
detrimento e às expensas de todos os outros) está bem representado nas elites desse
tempo histórico que examinamos e por que não nas de hoje? Os sindicalistas parecem
referi-lo dessa maneira e criam uma organização baseada na igualdade e na fraternidade
para poderem fazer frente a ele.
227
É nesse sentido que, através do domínio da memória, são convocados saberes das
FDs antagônicas, inserindo a figura de opositores que devem ser combatidos e
desmascarados por todos os segmentos que integram a COB, dentre os quais está a
imagem do “dedo-duro”, que deve ser combatido tanto quanto a patronal.
A questão, então, que se coloca aqui é moral e ética e nos estimula a pensar sobre
um saber instituído, pois, no nosso entendimento, por intermédio da liderança
anarcossindicalista, o articulador põe-se a questionar a “traição institucionalizada”
dentro do movimento, uma espécie de delação premiada, que os mestres e
contramestres, como participantes dos sindicatos operários e como associados, terão o
direito de denunciar à autoridade “os agitadores”, facilitando a sua prisão, sobretudo,
possibilitando o desmantelamento do movimento. Em contrapartida, a defesa à traição
representa um atentado ao direito e a tudo que a classe operária estava buscando
construir; representa uma agressão aos princípios da organização, à harmonia social e a
valores como a justiça, a segurança e o bem-estar.
Assim, no caso que analisamos no presente trabalho, o sujeito, ao se enunciar
como articulador, torna-se defensor do sindicato revolucionário. Tal lugar antecipa uma
determinada imagem social na qual a voz da censura e da traição não pode ser ignorada.
3. 6 A inscrição do político na FD jurídica (FDJ)
A análise que segue, ao contrário do que foi feito até o presente momento,
constitui-se de um texto tomado da Formação Discursiva Jurídica (FDJ). Trata-se do
reverso da moeda, no qual observamos o modo como o sujeito operário é inscrito no
discurso da lei, quais os efeitos da interferência discursiva jurídica sobre as práticas
políticas e discursivas da classe operária.
Nesta seção, pretendemos também mostrar como, através da antecipação de
imagens, a lei e o legislador são apresentados e/ou se representam no discurso jurídico e,
assim, criam mecanismos para coagir o sujeito da organização e quais as formas de
penalização. Para tanto, são determinadas relações de antagonismos entre práticas
anarcossindicalistas e práticas jurídicas. A análise é feita a partir das sds da FD jurídica,
228
que não é tomada como FD de referência, mas como importante FD antagônica aos
saberes da FD anarcossindicalista.
O pressuposto é que, ao falar de justiça, fala-se em valores ligados à sociedade,
quer seja na realização material, quer seja na sua concretização de igualdades de direitos,
que a norma representaria a garantia da força social e tem ligação com o político e
com as verdades de fabricação de sujeito, ou seja, cada um faz não o que quer, senão
aquilo que pode, senão aquilo que lhe cabe na posição de sujeito que ocupa num dado
momento. De início, podemos adiantar que constatamos que o dito, ao mesmo tempo
em que convoca uma memória, pelo interdiscurso, permite-nos observar as práticas de
coerção do sujeito operário através da lei. Através do interdiscurso, observamos marcas
da subjetividade
125
de quem elabora ou de quem aplica a lei, que o discurso põe em
circulação saberes que revelam o modo como instituições e diferentes classes o
representadas na FDJ, produzindo mecanismos de exclusão.
O que dizer dessa distribuição desigual, que, aparentemente, é igual e universal e
não privilegia ninguém, mas que se mostra na diferente organização do social e do
discursivo? Com certeza, a lei poderia buscar como álibi o legal para justificar a
existência de mecanismos que burlam a própria norma. Seria abuso de poder?
Entendemos que, quando a lei é reduzida à força do aparelho jurídico e policial, às forças
coercitivas, não se busca apenas manter a ordem social, mas impedir o político,
silenciando-o.
Para Foucault (2000, p. 183), o poder “funciona e se exerce em rede” e es
relacionado às formas de verdade que integram uma sociedade. Para que as relações de
poder se constituam, de um lado, é preciso que alguém detenha, comande e domine tais
relações e, de outro, faz-se necessária a existência daqueles que se submetam, que
cumpram ordens impostas e determinadas por quem está no topo das relações. “Em
qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e
constituem o corpo social” (FOUCAULT, 2000, p. 179).
A partir dessa formulação de Foucault, é possível pensar o discurso enquanto
prática política, conforme escreve Rancière (1996, p. 35-39) na obra O desentendimento,
mais precisamente no capítulo “O dano: política e polícia”, onde este concebe a política
como uma aposta do jogo do litígio que a institui. “O litígio refere-se à existência das
partes como partes, a existência de uma relação que as constitui como tais. E o duplo
125
Subjetivo é entendido como “efeito necessário do real imaginário”. (PÊCHEUX, 1995, p. 76).
229
sentido do logos, como palavra e como contagem, é o lugar onde se trava o conflito”. No
nosso entendimento, o discurso vem fazer o laço com o que está na exterioridade, com o
social. Ainda para Rancière, é por meio da palavra que existe política, por meio da qual
se a divisão do sensível, onde os corpos se encontram em comunidade e em estado de
separação. Segundo o autor, o conflito em torno da existência de uma cena comum é que
separa dois modos de estar-junto humanos, dois tipos de divisão do sensível, opostos em
seu princípio, no entanto entrelaçados um no outro nas contagens impossíveis da
proporção, assim como nas suas formas de violências. O modo de estar-junto situa os
corpos em seu lugar e nas suas funções, segundo suas propriedades, segundo o seu nome
ou sua ausência de nome
126
.
No caso do texto que analisaremos, a identificação do sujeito, para o qual as leis
são formuladas, mostra-nos que a temporalização de um acontecimento e a sua inscrição
no âmbito da lei é que nos permitem identificar, por exemplo, a que sujeito a lei se dirige,
uma vez que não diz quem é o delinqüente, o ladrão, o assaltante, o incendiário, o
homicida, o subversivo, mas diz quem faz “provocação” e desempenha papel político de
cidadão.
O conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento
das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os
sistemas de legitimação dessa distribuição é o que chamamos de política, e para essa
distribuição e sistema de distribuição dessas legitimações, Rancière propõe outro nome
para o reducionismo da política: a polícia.
O autor chama a atenção para o sentido da polícia, dizendo que a baixa polícia
lembra os golpes de cassetete das forças da ordem e as inquisições das polícias secretas, e,
apoiado em Foucault, diz que a baixa polícia é apenas uma forma particular de uma
ordem mais geral que dispõe o sensível, na qual os corpos o distribuídos em
comunidade. É a fraqueza, não a força dessa, aencarregá-la do conjunto das funções
de polícia. Exemplo disso é a evolução das sociedades ocidentais, que faz do policial um
elemento de um dispositivo da ordem social, em que se entrelaçam outras ordens,
mostrando que o que a polícia faz é negativo.
126
Este ato de nomear a que se refere Rancière, nos faz voltar à seção 4.1.2, onde, apoiados em Guimarães
(2002, p. 2-3), dissemos que a temporalização de um acontecimento a partir do momento em que o sujeito
da enunciação passa a congregar, pela evocação da memória discursiva, onde os sentidos são tomados, de
acordo com a filiação de quem diz, porque de algum modo já significam.
230
Se assim o é, conforme vimos no início deste capítulo, podem funcionar num
mesmo espaço discursivo saberes de diferentes FDs. Nesses espaços, segundo Pêcheux
(1988), os enunciados inscritos sofrem coerções vindas do exterior, são atravessados por
saberes distintos, silenciamentos, diferentes posições-sujeito. No caso do corpus
desta tese, já mostramos que as organizações operárias colocam-se como espaço de
construção discursiva e política. E a resistência, representada pelas lutas no interior dos
movimentos operários, marca um lugar para o sujeito anarcossindicalista, mas também
marca um lugar para a lei e para aqueles que estão a seu serviço. Relacionando essa
noção de espaço discursivo com o espaço político, buscamos respaldo em Pêcheux (1988,
p. 213-14), o qual afirma que “toda prática discursiva está inscrita no complexo
contraditório-desigual-sobredeterminado das formações discursivas que caracteriza a
instância ideológica em condições históricas dadas”.
Definido o “corpo” jurídico, constituído pelo poder judiciário e seus aparelhos,
esses se constituem como instituições para que as penas se concretizem, tal como se
aplicam e se desenvolvem, ou seja, na representação das forças políticas, a lei protege
somente uma parcela da sociedade, sobremodo aquela que configura a ocupação e
apropriação dos espaços que são distribuídos desigualmente. Essa distribuição desigual,
na medida em que não é evidente, somente se mostra como efeito de apagamento das
diferenças na organização do social e do discursivo.
Para poder dar a sentença, o aparelho jurídico e o patronato caracterizam os
operários como sujeitos políticos subversivos, portanto, “mexem” com essa distribuição
dos corpos, com a lei. E a baixa polícia, como diz Rancière, usa a força em defesa da
ordem e dispõe do sensível na distribuição dos corpos, fazendo do policial um elemento
de um dispositivo social em que se entrelaçam o corpo do juiz e mais outros corpos: o
dos militantes e o corpo do povo, que, silenciando as perseguições e humilhações,
aceitam mais uma distribuição desigual das partes. É o outro produzindo dano.
O poder, nessa perspectiva, não depende somente daqueles que o detêm, mas
também daqueles que viabilizam a “posse” e uma nova distribuição da ordem dos
corpos. Assim, estendemos nossa reflexão no sentido que escreve Porter (1992, p. 324): o
corpo individual e o corpo político merecem atenção pelas maneiras como a autoridade
política tem realmente tratado o corpo individual. A busca pelo direito do homem torna-
se pura abstração a partir do momento em que a liberdade de expressão recai sobre as
liberdades e as imunidades físicas fundamentais, não apenas sobre o hábeas corpus em si.
231
Como diz o autor,
permanecemos incrivelmente ignorantes quanto às circunstâncias e às racionalizações, sob as
quais os estados dominaram ou arregimentaram o corpo no recrutamento militar, na época
da peste e, na verdade, na escravidão. Há um enorme campo de ação para os historiadores
políticos e os cientistas políticos serem mais sensíveis às realidades do poder produzidas pelo
exercício da autoridade sobre os corpos de seus súditos. (PORTER, 1992, p. 235).
É nessa direção que entendemos o sensível de que trata Rancière. Para ele, é a
atividade política que desloca um corpo do lugar que lhe era designado e que muda a sua
destinação. “A política faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde
só tinha lugar para o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como
barulho”(p. 42).
Tornar visível e dizível implica configuração e ocupação dos espaços dentro de
uma certa regularidade de distribuição.Essa relação dos corpos com seus deslocamentos
e em relação à conjuntura político-social, em que a ruptura se manifesta por uma série de
atos, reconfigura o espaço em que as parcelas se definem, revela traços do encontro de
diferentes lógicas: a lógica jurídica, a lógica policial, a lógica do patronato, a lógica do
operário. Tendo esse entendimento, acreditamos ser possível estabelecer relação com a
história do direito e das constituições como lugares de distribuição dos corpos, das
parcelas contáveis e o contáveis e dos efeitos produzidos por suas diferentes formas de
representação.
Assim, Rancière (1996, p. 47) encaminha a reflexão sobre o modo como as
instituições e as diferentes classes são subjetivadas, como são representados temas e a
distribuição das parcelas e dos sem-parcelas. Transcrevemos o que o autor entende por
modos de subjetivação:
Toda subjetivação é uma desisdentificação, o arrancar a naturalidade de um lugar, a abertura
de um espaço de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma
contagem dos incontados, do relacionamento entre uma parcela e uma ausência de parcela. A
subjetivação política proletária [...] pressupõe [...] uma multiplicidade de fraturas que
separam os corpos operários de seu ethos coletivo e da voz que supostamente exprime sua
alma, uma multiplicidade de eventos [...] singulares em torno do litígio em torno da palavra e
da voz, em torno da divisão do sensível. (RANCIÈRE, 1996, p. 48).
Em relação a isso, consideramos importante a abordagem de Pêcheux (1988, p.
161), o qual diz que “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos de seu discurso, pelas
formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes
são correspondentes”. Nesse sentido, Pêcheux (1988, p. 171) chamou de “tomada de
232
posição” o modo como o sujeito da enunciação se relaciona com a forma-sujeito.
Segundo o autor,
a tomada de posição resulta de um retorno de ‘Sujeito’ no sujeito, de modo que a não-
coincidência subjetiva que caracteriza a dualidade sujeito/objeto, pela qual o sujeito se separa
daquilo de que ele ‘toma consciência’e a propósito do que ele toma posição, é
fundamentalmente homogênea à coincidência-reconhecimento pela qual o sujeito se
identifica consigo mesmo, com seus semelhantes e com o Sujeito.
Embora as concepções de Rancière e Pêcheux sejam tomadas tendo por base
pressupostos distintos, ambos tratam da questão da subjetividade e do modo como os
sujeitos são reconhecidos na ordem do social. Para Pêcheux, a individualização dos
saberes que dominam uma forma-sujeito dá-se no seio de contradições e de relações
desiguais, compatibilizando-se, portanto, com relações contraditórias de
reprodução/transformação. E o modo como o sujeito se desdobra como efeito do
complexo de relações desiguais, contraditórias e sobredeterminadas que permeiam sua
condição de sujeito interpelado materializa-se nas “tomadas de posição”.
Em síntese, a subjetivação, na perspectiva de Rancière, dentro da filosofia política,
implica uma prática política, onde o sujeito desempenha papéis, quer seja para contar-se
no espaço de uma contagem desigual, quer seja para dar voz em torno da legitimação de
saberes que vai contra a uma prática social defendida pelo sindicato revolucionário. Na
perspectiva de Pêcheux, concepção marxista-leninista do marxismo histórico, a
subjetivação é a “tomada da palavra” que representa a inscrição do sujeito num espaço
onde ele (o sujeito) pode contar-se entre uma parcela e uma ausência de parcela.
3.6.1 A “armadura da lei
Como referimos, o modo como os corpos são contados e o efeito dessa
contagem implica analisar a posição e o lugar que o sujeito vai ocupar no discurso. No
caso dessa seção, queremos mostrar como o sujeito anarcossindicalista vai ocupar lugar
no discurso jurídico. Refletimos, portanto, sobre o funcionamento do discurso jurídico,
buscando possibilidades de respostas para os questionamentos em torno da legitimação,
da emergência, dos apagamentos dos saberes dos discursos das FD anarcossindicalista
(FDAB) brasileira. Para tanto, iniciamos com breves comentários acerca do direito.
233
Inicialmente, devemos ressaltar que, na história do direito, entre os códigos mais
antigos, encontramos a consolidação de leis babilônicas, que se concretizaram pelo
célebre monarca Hamurabi (1728-1688 a.C.)
127
, chamada também de “lei do talião”,
aplicada de forma direta e sem os mecanismos institucionais, princípio este sintetizado
pela expressão “olho por olho, dente por dente”.
Nesse sentido, a aplicação do direito ligada ao poder representado por
autoridades, que determinam a natureza, os limites e o modo de funcionamento das
sociedades, impede a forma direta de se fazer justiça.É a normalização que indica quem
está e quem não está dentro dos limites da lei, ou seja, cada um tem um lugar a ocupar e
lugares que o cidadão comum não pode e não deve ocupar. Trata-se de uma
concepção assimétrica e do centro para a periferia. Se substituirmos a capacidade de obter
obediência pela capacidade de submeter, pela prerrogativa de impor, pela probabilidade de
influenciar o comportamento, é porque alguém aceita essa condição. Mas para que tudo isso
senão a busca de uma forma de poder regular a vida social?
Isso nos conduz à teoria do poder em Foucault (1999), por meio da qual ele opõe
uma concepção do poder como um conjunto de forças materiais que se concentram no
centro da sociedade e se irradiam de forma intermitente em direção à periferia, mediante
espasmos que se desencadeiam para submeter os bons súditos e esmagar os que resistem;
que funciona negativamente, por confisco e por coleta; a uma concepção do poder como
relação assimétrica entre indivíduos, entre grupos, que se irradia do centro para a
periferia, de cima para baixo, que se exerce permanentemente, dando sustentação à
autoridade, e que funciona positivamente, dinamizando e incrementando as forças e
recursos já existentes.
Pensar o poder, como propôs Foucault, significa considerar nas relações de poder
a vontade de regular a política. No caso os proletários, se o poder se sustenta de baixo
para cima e no aparelho judiciário, quanto mais alto na hierarquia de poder, menor a
autonomia do indivíduo para alterar as redes de força na sociedade, uma vez que estará
127
Hamurabi é o documento reformador mais antigo - antes dele os reis Ur-Nammu (cerca de 2.050-2.032
a.C.), Lipit-Ishtar (1875-1865 a.C.), e mil anos após sua elaboração, ainda era aplicado integralmente na
Babilônia e na Assíria! Hamurabi, grande guerreiro, foi reformador do direito e da ordem social de seu
país. A “lei do talião” implicava que a justiça era feita de modo direto por aqueles que eram objetos de
ofensas, de injustiças e agressões, contra os ataques que sofriam, independentemente daqueles que
defendiam a ordem e da forma de organização. No caso do nosso trabalho, relacionamos a ordem direta
defendida pelos anarcossindicalistas com a “justiça pelas próprias mãos”, preconizada no código de
Hamurabi. De acordo com os princípios anarcossindicalistas, quando as injustiças não são corrigidas, a
justiça deve ser feita de ordem direta, sem os mecanismos institucionais.
234
sempre impedido de exercer práticas de autodefesa. No entanto, a atitude de negação
diante das leis não aponta para a resistência a uma determinada ordem dos corpos,
como também permite desvelar a ilegitimidade da lei, que busca na criminalização a
proteção de seu próprios crimes.
Foucault (1999, p.39), ao ser questionado sobre o julgamento da polícia, diz que,
talvez, se devesse perguntar a partir dos atos da justiça popular e ver se esses atos podem
ou não se coadunar com a forma de um tribunal. De acordo com o autor, o tribunal não
é a expressão natural da justiça popular, pelo contrário, tem por função histórica reduzi-
la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do
aparelho de Estado. Para o autor, “aqueles que nos governam querem utilizar contra nós
para nos fazer entrar na ordem, a dupla pressão dos inimigos que nos invadem do
exterior. Dependendo, pode se construir um ato de guerra contra os inimigos internos,
um ato de vingança contra os opressores”. (p.40)
A rebelião é tratada pelo autor como uma forma de justiça popular, cujos meios
de ação diferem dos meios próprios da justiça estatal. Os atos de justiça popular, de
modo geral, sempre foram muito marcados por um caráter antijudiciário e por ritos que
revelam a alteridade da população em relação aos tribunais. A característica dessa forma
de justiça é a inexistência de um terceiro elemento que julga e que está acima da disputa.
Dessa forma, as decisões da justiça popular não são decisões de autoridade, porque não
se baseiam num poder de Estado; assim como não se referem a uma idéia universal e
abstrata de justiça, mas à própria experiência popular, à forma como foram oprimidos os
que produziram a rebelião e os danos que sofreram (FOUCAULT, 1992).
Trata-se de formas ilegais e violentas de administração de justiça que concorrem
para a consolidação de um poder estatal judiciário; levam à ineficiência do sistema de
justiça criminal oficial, por vezes à existência de uma ideologia da autodefesa, atitude de
negação diante das leis.
Quando uma manifestação popular eclode contra a ineficiência dos serviços de
segurança e justiça, é porque percepção de que a justiça pública é influenciada pela
divisão de classe, pelos privilégios e pela ineficiência da burocracia; pela instituição
jurídica e pela ineficiência de uma série de serviços públicos, que não funcionam
adequadamente para a maior parte dos habitantes, que não têm direito à saúde, à
moradia, ao saneamento, ao transporte, à educação. As classes populares muitas vezes
optam por fazer manifestações e até “justiça pelas próprias os”, valendo-se da
violência para corrigir aqueles que cometeram atos criminosos, porque sabem que não há
235
outro jeito de defenderem a sua integridade, de defenderem os seus direitos e, apesar de
um ato extremo, a desobediência civil torna-se um recurso legítimo a ser usado em defesa
desses direitos. Eis o funcionamento da “lei do talião”, a justiça feita de forma não
jurídica, pois, quando o aparelho jurídico não as defende, se a justiça não funciona, a “lei
dos bárbaros” há de funcionar.
O fato é que a história do direito é sempre uma história com episódios com vistas
à moral. Por trás dessa tensão permanente entre Estado e cidadão encontra-se uma
questão, que é a razão de fundo do conflito entre Estado, direito e cidadão. O Estado e o
direito “garimpam” as confissões do mesmo modo que as instituições religiosas se
atribuem o direito à aplicação das penas, do castigo aos que cometem o pecado.
A verdade e as formas jurídicas, de Michel Foucault, contempla o jurídico.
Independentemente de qualquer juízo de valor sobre quaisquer dos casos referidos, não
deixa de ser sintomático que, no mundo exilado do sagrado em que vivemos, apenas a
guerra subsista como forma jurídica admissível e, mesmo assim, sob severas condições,
designadamente das teorias da guerra justa, ou do processo internacional da contestação
das Nações Unidas e afins. Em todas as figuras referidas, a divindade garante o fiador,
ou, especialmente, juiz. Mesmo as questões ligadas ao dom/dádiva colocam não só
problemas fascinantes para a antropologia jurídica e para a antropologia geral como
permitem esclarecer o sentido do contrato e da propriedade e do que está fora e para
além dela.
3.6.2 Lei Marcial - Relações de Antagonismo entre a Formação
Discursiva Anarcossindicalista Brasileira e a Formação Discursiva
Jurídica
Desde a introdução desta tese, vimos falando em interdições, em silêncios,
apagamentos e em exclusões. Na seção 4.1 escrevemos que, apesar da garantia
constitucional do direito de reunião, até o final deste capítulo seria mostrado como foram
desrespeitados os direitos e foram coagidas as possibilidades de protesto e de reação por
parte das organizações populares e dos trabalhadores. O silenciado, pelo esforço do
governo, por seus órgãos policiais e também pelo patronato e imprensa, que articulava a
questão do nacionalismo, comprova uma estratégia repressiva e excludente.
236
Nesse caso, o funcionamento da censura e do político nos discursos pode ser
observado no texto 8, analisado logo a seguir. O silêncio local decorrente da interdição do
dizer; imposto pela censura, pela Lei de Expulsão dos estrangeiros, é tratado como uma
questão de saúde pública, tendo em vista que um dos efeitos produzidos pelo discurso
jurídico daquele período era que as idéias e práticas anarquistas representavam incômodo
para as autoridades governamentais. “O indivíduo anarquista configurava-se como um
corpo estranho, invasor e contaminador do corpo social”(LOPREATO, 2003, p. 82),
devendo, por isso, ser extirpado do corpo social do mesmo modo que se deve eliminar
um câncer, um tumor maligno, sob a justificativa de não deixar corroer os órgãos vitais
deste corpo. A aplicação da lei era uma espécie de “intervenção cirúrgica” que serviria
para cortar o mal pela raiz.
Se, de um lado, a política de imigração subsidiada estimulava a vinda de
estrangeiros para o Brasil no final do século XIX e o fluxo da corrente imigratória trazia
alívio para os fazendeiros, que conseguiam manter baixos os custos com a mão-de-obra,
de outro, essa política trouxe preocupações às autoridades, especialmente em relação aos
hóspedes “perigosos e indesejáveis”, conforme Loppreato (2003, p. 76). Isso se deve ao
fato de que os imigrantes não se enquadravam no ideário positivista de ordem e
progresso que marcou a primeira fase do período republicano no Brasil (1889 – 1930).
Segundo a autora, no início da Primeira República, os estrangeiros eram
considerados chefes partidários da seita destruidora: “acusados de virem aqui implantar a
desordem e uma luta fraticida, incompatíveis com a abundância e a excelência dos
nossos recursos de vida” (p. 77). A influência das idéias anarquistas sobre o operário
brasileiro deve-se à imprensa com publicações, em sua maioria de militantes estrangeiros,
que introduziram uma nova leitura do universo brasileiro, pondo em evidência a relação
tensa e conflituosa existente entre o capital e o trabalho. A prática política anarquista
defendia a ação direta (movimentos de protesto contra a carestia de vida, contra as
precárias condições de moradia, contra a exploração do trabalho, em especial das
mulheres e das crianças, organizadas e orientadas pelos libertários).
As perseguições deviam-se ao fato de que “as reivindicações operárias ganharam
as ruas, ultrapassando os muros do espaço privado das fábricas. Greves e passeatas foram
se incorporando ao cotidiano das principais cidades do país agitando o cenário brasileiro.
Isso despertou a ira das elites e a mira da repressão”. (p.78)
A repressão contra o “delito” de anarquismo atingiu, em especial, o militante
estrangeiro, pois, apoiados no princípio de soberania nacional, os tribunais se julgavam
237
no direito de impedir a permanência de estrangeiros por serem, segundo eles, perigosos à
ordem e à segurança pública. A exemplo disso, a eclosão de movimentos grevistas no
Rio e São Paulo, em 1906, tornou-se ponto de discussão no Senado. O decreto-lei 1.641
foi aprovado em 1907 e ficou conhecido como “Lei Adolpho Gordo”, constituindo-se
numa das medidas mais eficazes para vigiar e controlar a ação dos militantes
estrangeiros.
É possível afirmar que o alvo privilegiado da lei foi eliminar do cenário político-social
brasileiro os militantes anarquistas e socialistas estrangeiros considerados nocivos e
perniciosos ao país porque incomodavam industriais e autoridades constituídas com sua
bandeira de luta, que colocava em xeque o regime de exploração a que estavam submetidos
os trabalhadores. (LOPPREATO, 2003, p. 81)
Nesse sentido, na análise do texto 6 vamos perseguir o esforço do(s) legislador(es)
para criminalizar qualquer tentativa de toda e qualquer ação política do movimento
operário, silenciando a sua voz e impedindo a sua ação e, portanto, anulando a sua
própria subjetividade. Nesse caso, optamos pela análise da FD jurídica no sentido, a
princípio, de saberes que caracterizariam um discurso “neutro”. Esse tipo de discurso
permite-nos observar a inscrição do sujeito legislador numa outra dimensão, diferente
daquela que prevê a existência de um “senhor” dotado de consciência plena de seu dizer.
Antes, porém, lembramos que o texto 6 integra o segundo volume da obra
elaborada por Edgar Rodrigues, cujo título é Nacionalismo e cultura social (1913-1922). É a
continuação de Socialismo e sindicalismo no Brasil, obra em que o autor se ocupou em
relacionar dados que nos permitem reconstituir um longo período histórico que se inicia
em 1675, com a formação dos quilombos, até 1913, com o segundo Congresso Operário
Brasileiro.
A finalidade de pôr em circulação o dizer da Constituição em edição anarquista é,
sem dúvida, a configuração de um dizer que coloca em evidência as práticas coercetivas
da ordem jurídica, a trajetória de lutas e sofrimentos, greves, protestos e prisões que
marcaram o dia-a-dia do trabalhador brasileiro de 1913 a 1922.
Lembramos que, conforme informações do Arquivo - Seção de Documentos
Históricos, em pesquisa nos Anais da Câmara dos deputados
128
, o projeto de lei nº 374 de
1920 regulou a repressão do anarquismo. O projeto foi sancionado pelo decreto n. 4.269,
128
Para obter maiores informações sobre o projeto, apoiamo-nos na pesquisa feita na página da Câmara dos
Deputados www.camara.gov.br. No calendário de 1920, em 9 de setembro, página 627 (PL nº 374, de 1920) e na
página 653 (PL nº 613).
238
de 17 de janeiro de 1921(publicado no Diário Oficial de 23 de janeiro de 1921), e regula a
repressão do anarquismo (cf. PL n. 613, de 1919).
129
Segundo Rodrigues (1972, p.15), os projetos de lei serviam para regularizar aquilo
que as autoridades se antecipavam em fazer: expulsar, deportar e prender os “agitadores
estrangeiros e seu cúmplices nacionais”, que defendiam idéias voltadas a uma cultura
social baseada na igualdade e em princípios humanitaristas. Rodrigues prossegue
dizendo que, “quer queiramos ou não, a cultura social foi semeada e agitada no Brasil
pela classe proletária”, toda de origem estrangeira. Desse modo, o fato de não silenciar e
de pregar uma política de luta, escrevendo em jornais, proferindo conferências e
pregando a educação da classe operária, fez dos anarquistas o maior inimigo do Estado.
A contribuição anarquista não se resume apenas a movimentos grevistas, como, por
exemplo, o direito de questionar as suas condições de trabalho, o direito de protesto e o
direito de reivindicações sociais,
recursos de que lançará mão centenas de vezes o proletariado, até 1922 para se fazer respeitar
e assegurar as mínimas conquistas que o patronato burlava constantemente, mas também as
suas preocupações com o ensino e a cultura para si e para os seus filhos. Para tanto, fundava e
sustentava escolas de alfabetização, nos sindicatos e junto aos locais de trabalho, fundava e
sustentava grupos de teatro amador, centros de cultura social, e publicava jornais de defesa da
classe, doutrinários e alguns até tratando profundamente da sociologia. (RODRIGUES,
1972, p. 22)
Para Foucault (1995b, p. 236), toda experiência de exploração e de poder está
ligada às formas de subjetivação e os mecanismos de sujeição não podem ser estudados
fora de sua relação com os mecanismos de exploração e dominação, mantendo relações
complexas e circulares com outras formas. Segundo ele, “a necessidade de ter uma
participação direta na vida espiritual, no trabalho de salvação, na verdade que repousa
nas escrituras - tudo isso foi uma luta por uma nova subjetividade.”
Nesse caso, o Estado passa a ser esse lugar legítimo de poder. Como ele ocupou
durante a maior parte do tempo o poder político, que ignora os indivíduos, ocupa-se
apenas com os interesses da totalidade, constituindo-se naquilo que o autor chama de
“tecnologia da pastoral”, originada das instituições cristãs. Essa forma específica de
poder, embora aplicada mais às relações de poder da Igreja, mais especificamente por
meio do pastor, não do príncipe, nem do magistrado, nem dos educadores, promete
129
Sinopse dos trabalhos da Câmara dos Deputados. 1920.
239
aquilo que se chama de “salvação” do indivíduo, como propõem a lei, o Código Civil, a
Constituição, que, teoricamente, dão garantia total dos direitos do cidadão.
Nesse caso, a norma jurídica, tendo como objetivo a relação entre as pessoas, ou a
coletividade, ou a própria garantia da força social, assume valor imprescindível.
Montesquieu, em O espírito das leis, definia-as como “as distintas leis podem estar com
distintas coisas: a natureza e o fundamento do governo, a gradualidade da autonomia
que a constituição estabelece, a religião, os costumes... e, em definitivo os objetos do
legislador”. Em Montesquieu (1996, p.21) lê-se ainda: “No estado popular, o povo está
dividido em certas classes. É pela maneira de fazer esta divisão que se destacaram os
grandes legisladores, e é disto que a duração da democracia e sua prosperidade sempre
dependeram.”
Na verdade, a existência de uma lei pode se justificar pela existência dos próprios
legisladores, que elaboram as leis de acordo com seus próprios princípios e objetivos, os
quais podem ser interesses seus ou de uma classe. uma “inscrição” e uma certa
“interferência” nos mecanismos lingüísticos, que, sofrendo determinações do sistema
jurídico, marcam o modo de subjetivação do sujeito-legislador, ou seja, as leis que o
legislador cria, diz o autor, devem ser relativas ao princípio de governo.
No poder despótico, por exemplo, “um só, sem lei e sem regra, impõe tudo por
força de sua vontade e de seus caprichos”(MONTESQUIEU, 1996, p.19). Como nos
lembra o autor, existe diferença entre a natureza do governo e seu princípio: “Sua
natureza é o que o faz ser como é, e seu princípio o que o faz agir. Uma é a sua estrutura
particular; outro, as paixões humanas que o fazem mover-se.”(p.31)
A natureza do governo republicano é que o povo, em conjunto, ou certas famílias,
possui o poder soberano; no governo monárquico, o príncipe possui o poder soberano,
mas exerce-o segundo leis estabelecidas; no governo despótico, um governa segundo
suas vontades e seus caprichos.
Quando cessa esta virtude, a ambição entra nos corações [...] e a avareza entra em todos. Os
desejos mudam de objeto; o que se amava não se ama mais; era-se livre com as leis, quer-se
ser livre contra elas; cada cidadão é como um escravo fugido da casa de seu senhor; o que era
máxima é chamado rigor; o que era regra chamam-no incômodo; o que era cuidado chamam-
no temor. É na fragilidade que se encontra a avareza, não no desejo de possuir. Antes, o bem
dos particulares formava o tesouro público; mas agora o tesouro público torna-se patrimônio
de particulares. A república é um despojo; e sua força não consiste em nada além do poder de
alguns cidadãos e na licenciosidade de todos. (MONTESQUIEU, 1996, p.33).
240
Ainda que a maneira de obedecer seja diferente nesses dois governos, o desejo
pelo poder pertence a ambos. Para qualquer lado que se volte, a passagem do ato de bater
o martelo e a habilidade de virar a balança sempre implicam uma parte forçada a
obedecer. Montesquieu (1996, p.40) alerta ainda que “a extrema obediência supõe
ignorância naquele que obedece; supõe-na também naquele que ordena; ele não precisa
deliberar, duvidar ou raciocinar; precisa querer”, ou seja, a prisão torna-se uma região
sombria do aparelho judiciário, porque, no seu poder de punir, o repressor exerce
determinadas práticas, silenciosamente, e sob sombra de uma objetividade, que é a lei.
Orlandi (2002, p. 280) afirma que “uma das funções da Constituição é apresentar,
como em outras propostas positivistas, uma estranha combinação entre ditadura e
liberdade”.
No caso do texto legal, o legislador, sujeito que elabora a lei, pertence ao grupo
que representa, e o seu discurso é uma fala autorizada, portanto, ele se torna o verdadeiro
mediador entre o Estado e aquele que é legislado, ou seja, fala do lugar social ocupado
pelo grupo que representa, podendo ser o da coletividade (do povo) ou o de uma minoria
(da instituição e daquele que a dirige).
Tomando como base o texto abaixo (texto 6), façamos, pois, nossa primeira
leitura.
Texto 06
1 Lei marcial
O congresso Nacional decreta:
Art.1
0
. – constituem crimes:
A provocação ou dano, furto, roubo, assalto, incêndio, homicídio e a supressão ou subversão
da atual organização da sociedade ou de algum de seus institutos legais pena de prisão
celular por dois a cinco anos.
Considera-se provocação a apologia feita verbalmente ou por escrito ou por qualquer outro
meio de publicidade nas ruas, teatros ou associações ou reuniões onde quer que funcionem,
todos os meios de ação direta para qualquer dos fins acima indicados.
Parágrafo único.
Se a provocação for feita a militares, a praças ou oficiais da polícia, com o fim de induzi-los a
desobedecer aos seus superiores e sublevá-los contra as autoridades constituídas pena de
prisão celular por três a oito anos.
Art.4
0.
Concentrarem-se duas ou mais pessoas para a execução de algum dos crimes
mencionados nos números antecedentes, ou associarem-se para a sua prática continuada,
embora não sejam eles especialmente determinados – pena de prisão por um a cinco anos.
Art. 8
0
. O governo poderá dissolver e impedir o funcionamento de sociedades civis ou de
sindicatos, tenham ou não personalidade jurídica, quando incorram em atos opostos aos seus
fins ou nocivos ao bem público. (Código Civil, art. 21, n
0
, III).
241
Parágrafo único. O ato de dissolução será fundamentado e expedido pelo Ministro da Justiça
e Negócios Interiores.
d) Quando a provocação for feita a oficiais ou praças do Exército e da Armada:
Art. 10
0
. Dá-se flagrante nestes crimes:
I - Quando alguma pessoa for encontrada fazendo a provocação a que se refere o n
0
I do
artigo 1
0.
(apud RODRIGUES, 1972, p. 347-348)
Como a elaboração de uma Constituição é um “acontecimento histórico” e pode
manter ou subverter o discurso da dominação, uma vez que mantém ou rompe um
determinado círculo de repetição e instaura uma outra estrutura, significa que o que antes
não podia nem devia ser dito por não pertencer ao(s) domínio(s) de saber dominante(s)
– passa a ter lugar na enunciação.
Desse modo, nossa análise será desenvolvida em torno de três seqüências
discursivas: a) uma seqüência discursiva onde se define crime; b) uma seqüência
discursiva na qual se faz a qualificação apenas de um tipo de crime e c) uma terceira
seqüência discursiva, por meio da qual se pode perceber nitidamente que a preocupação
da instituição jurídica é regular um tipo de ação do cidadão no espaço social, ou seja,
regular, sobretudo, a sua prática política. Passemos, então, à análise da primeira
seqüência discursiva recortada do texto 6.
A definição de crime
sd 28 - Art.1
0
. – constituem crimes:
A provocação ou dano, furto, roubo, assalto, incêndio, homicídio e a supressão ou subversão da
atual organização da sociedade ou de algum de seus institutos legais pena de prisão celular por
dois a cinco anos.
[...]
sd 29 - Art.4
0.
Concentrarem-se duas ou mais pessoas para a execução de algum dos crimes
mencionados nos números antecedentes, ou associarem-se para a sua prática continuada, embora
não sejam eles especialmente determinados – pena de prisão por um a cinco anos.
Observamos nas seqüências discursivas acima (28 e 29) que a lei apresenta o crime
por meio da substantivação. A definição de crimes através da designação “provocação”
legitima uma prática de proibição que pode ir desde o impedimento de manifestações,
reações, à concretização de uma ação como o questionamento, por exemplo. Essa
legitimação intervencionista na sociedade torna-se responsável não só pela “ordem”
jurídica dessa sociedade, como também passa a regular práticas políticas e sociais. Nesse
242
processo, o discurso da lei, através da nominalização “provocação”, define o dano, o
furto, o roubo, o assalto, o incêndio, o homicídio e a supressão...., generalizando o crime
e, conseqüentemente, generalizando a aplicabilidade de penas, uma vez que não existe
diferença, não existe gradualidade entre as diferentes “ações criminosas”.
Para Bordieu (1998, p. 215), a maior parte dos processos lingüísticos
característicos da linguagem jurídica concorre para produzir efeito de neutralização, que
é constituído por um conjunto de características sintáticas, como as construções passivas
e marcas de impessoalização do enunciado normativo, constitutivos de um sujeito
universal e, ao mesmo tempo, imparcial. Nesse caso, o uso de verbos na terceira pessoa,
no presente - constituem - ou no futuro do presente, seguidos de indefinidos, como
“concentrarem-se”, “associarem-se exprimem a generalidade, a qual pressupõe um
consenso, que consagra uma visão legítima, “justa” do social.
No entanto, o que se torna visível nas sds 28 e 29 é a divisão social do trabalho,
onde estão implicadas as inscrições do sujeito e as diferentes posições. O que fica
evidente é que essa nomeação foi feita do lugar da instituição jurídica, a qual busca
manter a ordem, a sua lógica, apagando as diferenças, a fim de garantir o privilégio de
apenas uma classe. Não provocar, por outro lado, significa o sujeito ter de abrir mão de
seu papel social, qualidade tão essencial para o papel político do cidadão, ou seja, ao
abrir mão de seus direitos civis, dentre os quais está a constituição de ser um ser político,
o cidadão passa a viver apenas como animal, que trabalharia apenas em nome de sua
sobrevivência. Esse sujeito, conseqüentemente, morre para o mundo pela insignificância
e é apenas mais um na sociedade, deixando de fazer história, não modificando o mundo.
E isso se torna um campo fértil para os regimes autoritários agirem, uma vez que
a acomodação e a passividade são requisitos fundamentais na manutenção da ordem. A
desordem, pelo contrário, como diz Foucault (1999, p.40), “leva aqueles que nos
governam a querem utilizar contra nós uma ação que nos obrigue a entrar na ordem”.
Nesse caso, observamos na sd 28 que enquadrar a “provocação” na modalidade crime
constrói aquilo que Foucault (1999) chama de construção de um ato de guerra, de um ato
de vingança contra os inimigos, ou seja, se provocou, deve ser preso e condenado.
Segundo Guimarães (2002, p. 2-3), no ato de nomear, “o sujeito inscreve-se,
historicamente, em determinadas regiões do interdiscurso, e os sentidos são tomados de
acordo com a filiação de quem diz”. Desse modo, os efeitos de evidência produzidos nas
seqüências discursivas 28 e 29 constroem uma determinada memória discursiva na
definição de crime. Esses efeitos são estruturados na designação “provocação”,
243
revelando a ânsia por colocar na cadeia e eliminar uma classe que não só ocupa um lugar
na sociedade, mas que desempenha papel político importante, no caso os militantes
anarcossindicalistas, determinando, assim, que quem decide cometer um ato de
desobediência civil não pode reclamar se vier a sofrer alguma acusação de crime.
Mas por que deverá o cidadão entregar sua “consciência política” aos
governantes? Vejamos que a “provocação” não significa apenas transgressão à norma; a
desobediência à norma significa desestabilização da instituição jurídica e obriga à
inversão da ordem; a “provocação” cria necessidade de senso crítico do cidadão, excita a
sociedade a questionar; por isso a “provocação”, pelo discurso jurídico, deve acoplar
outras modalidades de crime, tais como o roubo, o assalto, o homicídio, a subversão. É
nesse sentido que a “provocação” passa a representar risco de morte, perseguições,
difamações, exclusões, prisões, deportações, tendo em vista que, ao desobedecer à
autoridade, colocam-se em evidência as fragilidades dos aparelhos repressivos e da
instituição jurídica.
Nesse sentido, a busca pelo silenciamento da voz de um grupo no/pelo discurso
da lei, pela nomeação do que seria excedente na sociedade, ataca diretamente a
associação operária anarcossindicalista, uma vez que são os seus membros que, no seu
papel político-social, vão fazer articulações na sociedade e vão apontar a ilegitimidade da
lei. Enquanto se cria uma lei marcial que proíbe o direito a reuniões e ações políticas do
cidadão, conforme podemos observar no artigo 4, a execração pública dos cidadãos, cuja
ação criminosa está definida pela “provocação”, cria na opinião pública a falsa imagem
de selvageria planejada, na qual se incluem os movimentos operários. Ao enquadrar a
“concentração de pessoas” e a “associação” como crime, se define a que sujeitos essa
lei se destina, de modo que a indeterminação do crime pela definição de “provocação”
passa a especificar que o cidadão ao qual a lei se dirige é, sem dúvida, o
anarcossindicalista, sobretudo o estrangeiro.
Assim, o aparelho jurídico, ao ser questionado sobre o modo de aplicar suas
penas, tem por função histórica reduzir, dominar, sufocar qualquer cidadão que ousar
inscrever outra ordem no interior de instituições, seja questionando, seja provocando ou
buscando fazer justiça pelas próprias mãos, mesmo que se trate de oprimidos que
produzem a rebelião e os danos que sofreram (FOUCAULT, 1992). Trata-se de formas
ilegais e violentas de administração de justiça que concorrem para a consolidação de um
poder estatal judiciário, que levam à ineficiência do sistema de justiça criminal oficial,
por vezes à existência de uma ideologia da autodefesa, atitude de negação diante das leis.
244
A revolta popular eclode contra a ineficiência dos serviços de segurança e justiça,
contra a percepção de que a justiça pública é influenciada pela divisão de classe, pelos
privilégios, pela inecifiência da burocracia da instituição jurídica e pela ineficiência de
uma série de serviços públicos que não funcionam adequadamente para a maior parte
dos habitantes das grandes cidades, como a saúde, a moradia, o saneamento, o
transporte, a educação. As classes populares muitas vezes optam por fazer “justiça pelas
próprias mãos”, valendo-se da violência para corrigir aqueles que cometeram atos
criminosos. Eis o funcionamento da “lei do talião”, a justiça feita de forma jurídica
quando o aparelho jurídico não as defende; se a justiça não funciona, a “lei dos
bárbaros” há de funcionar.
O fato é que a história do direito é sempre uma história com episódios com vistas
à moral. Por trás dessa tensão permanente entre Estado e cidadão encontra-se uma
questão que é a razão de fundo do conflito entre Estado, direito e cidadão. O Estado e o
direito “garimpam” as confissões do mesmo modo que as instituições religiosas se
atribuem o direito à aplicação das penas, do castigo aos que cometem o crime, cuidando
para que não escape o controle, conforme podemos observar na sd 29.
A definição e a qualificação de uma das práticas de crime
sd 30 - Considera-se provocação a apologia feita verbalmente ou por escrito ou por qualquer
outro meio de publicidade nas ruas, teatros ou associações ou reuniões onde quer que
funcionem, todos os meios de ação direta para qualquer dos fins acima indicados.
Parágrafo único.
sd 31 - Se a provocação for feita a militares, a praças ou oficiais da polícia, com o fim de
induzi-los a desobedecer aos seus superiores e sublevá-los contra as autoridades constituídas
pena de prisão celular por três a oito anos.
[...]
sdr 32 - Quando a provocação for feita a oficiais ou praças do Exército e da Armada:
I - Quando alguma pessoa for encontrada fazendo a provocação a que se refere o n
0
I do artigo 1
0.
Observamos nas seqüências discursivas 30, 31 e 32 que o emprego de certos
termos, como o uso de substantivos do tipo “provocação”, “apologia” e “publicidade”, e
de verbos, como “considera-se”, “se a provocação for feita”, “induzi-los a desobedecer”
“sublevá-los contra autoridades”, pode produzir efeitos de apagamento, uma vez que
através do discurso da lei busca-se neutralizar e universalizar as práticas criminosas pela
“provocação”. Provocação aqui designa a ão direta e, portanto, o crime aqui é a ação
245
direta, ou seja, o que deveria ser combatido era a prática política dos anarcossindicalistas
a ação direta. O enunciado normativo tende a silenciar os sujeitos do processo
enunciativo justamente por não se destinar a ninguém e a todos ao mesmo tempo.
Afinal, quem faz parte da “provocação?”, Quem faz apologia e publicidade contra o
governo”? Trata-se de um apagamento do lugar do papel do sujeito que ousa transgredir
as leis, que é o anarcoossindicalista. Não se explicita na estrutura lingüística quem é esse
sujeito individualmente, no entanto pode-se resgatá-lo na instância da memória do dizer,
inscrita nos saberes da FDJ. Fixar o castigo pela vontade daqueles que colocam na prisão
de homens que questionam as leis injustas, o porque mataram ou roubaram, não seria
uma ilusão necessária para o funcionamento da máquina jurídica e do Estado, já que esta
máquina utiliza o cidadão para praticar o uso da condenação? Como a língua é
movimento, é possível não acionar uma memória através do intradiscurso, mas
também do interdiscurso, visto que no processo da linearização/verticalização, com o
uso dos substantivos generalizantes, ocorre a simulação da ideologia dominante: “o
cumprimento a lei sob a pena de”.
Os exemplos apresentados nas sds 30 a 32 elucidam a questão do apagamento do
sujeito, ou seja, podemos dizer que não há espaço para o sujeito anarcossindiclaista, para
o estrangeiro, nem para o sujeito brasileiro (povo), e, sim, para o sujeito da lei, da
instituição; lugar para o sujeito que trata com bondade e consideração a lei que
assegura o privilégio de alguns e proíbe o que é mais sagrado na vida do homem: o
direito à liberdade de expressão.
Observamos nas sds 30, 31 e 32 que quem ocupa o lugar do sujeito, lexicamente
marcado pelo substantivo “provocação”, só pode ser resgatado pelo interdiscurso. A
indeterminação, apesar de dificultar a recuperação desse sujeito no plano da memória,
haja vista a indefinição provocada pela configuração lexical do verbo “considera-se”,
deixa claro que não são os “militares”, os “praças” ou “oficiais da polícia”, ou qualquer
outro sujeito que seja representante legal da instituição. A confirmação quanto a qual
sujeito a lei é destinada pode ser feita a partir da qualificação feita à “provocação”, ou
seja, todos os meios de ação direta recupera, pelo interdiscurso, os saberes inscritos na
formação discursiva o sujeito anarcossindiclaista.
Tal efeito de indeterminação/determinação revela que há resistência dos dois
lados: a resistência da lei, que insiste em manter a ordem, e a resistência do sujeito, que
não pode desestabilizar a ordem, pois “onde quer que funcionem, todos os meios de ação
direta para qualquer um dos fins acima indicados”, o sujeito configura um trabalho de
246
memória que reenvia aos saberes anarcossindicalistas, que são: nunca cessar, nunca
curvar-se diante da lei. Contraditoriamente, a desobediência civil passa a ser um recurso
legítimo para os anarcossindicalistas e ilegítimo na ótica da Constituição, da lei e dos
parelhos jurídicos. O sujeito não criminoso, portanto, pode ocupar lugares diferentes na
esfera social, mas desepenhar um único papel: não questionar a injustiça da lei. Nesse
caso, o sujeito anarcossindicalista, o associado, o cooperado, o estrangeiro, o trabalhador
brasileiro..., se provocarem, serão sempre os “fora da lei”.
Em relação ao movimento da memória discursiva, que marca o lugar do
anarcossindicalismo no Brasil, no nosso entendimento, comprova que a existência da lei
mais se justifica pela proteção” da República, que é a instituição, constituindo-se num
atentado contra os direitos do cidadão. Assim, nas sds 30 a 32, é a prova de abuso de
poder do “Estado” contra o povo, visto que não são permitidas quaisquer críticas às
instituições políticas, nem se tem, sequer, direito à exposição de idéia. Não há, portanto,
liberdade de reunião, de associação, de palavra e de imprensa; não lugar para
resistência. Configura-se, nas sds, a posição do sujeito da FDJ como aquela que se
identifica com o lugar do déspota, quer seja na figura do legislador, quer seja na
representação daquele que aplica a lei. Isso pode ser comprovado pelo uso da passiva,
que, a princípio, procura encobrir o sujeito institucional, bem como isentá-lo de qualquer
tipo de responsabilidade do dizer, ou seja, tem-se a ilusão de um sujeito que, ao contrário
de déspota, é democrático e visa somente ao bem do povo.
Podemos perceber, ainda na sd 33, pelo emprego do “se”, um certo tom de uma
ameaça. Os verbos, na sua maioria, aparecem na sua forma impessoal. O que significa ou
(re) significa essa forma enquanto fato lingüístico? A forma infinitiva não aciona o
sintagma nominal e, portanto, produz o “efeito” de apagamento do lugar do sujeito.
Nesse caso, esse apagamento produz o efeito de contradição e negação por acionar,
através da memória discursiva, saberes de formações discursivas antagônicas, ou seja, de
um lado, os saberes da formação discursiva jurídica (provocar militares e forças armadas,
associar-se, reunir-se, fazer publicidade é crime), de outro, saberes da formação
discursiva anarcossindicalista (resistir, associar-se, reunir-se, fazer publicidade não é
crime, mas um modo direto de combater as injustiças).
O que podemos perceber é que os efeitos de sentido produzidos por aquele que
ocupa o lugar de poder produz o sentido regulador, centralizador, da ação verbal
“provocação”, mas também produz o efeito de centralização do poder; por isso, é preciso
vigiar, aplicar penas para manter a ordem, controlar as ações dos “fora da lei”.
247
Ao ocupar lugares geográficos a rua, o teatro, o sindicato o sujeito operário
anarcossindicalista assumirá posições condenadas pela FDJ, a qual lhe é antagônica. É
esse modo de ocupação e a retomada do processo histórico de formação dos saberes
anarcossindicalistas que singularizam tais espaços e constituem o alvo não-nomeado das
proibições supostas pela lei. Dessa forma, podemos retornar a Dias (2002), cujos
trabalhos m mostrando o preenchimento de lugares sintáticos pelo acionamento da
interdiscursividade. Quem fala na rua ocupa lugar discursivo, porque está historicizado
esse espaço geográfico tanto para o lugar do próprio anarcossindicalista quanto para o
mecanismo da lei, ou seja, um policial estar parado na porta de um sindicato, por
exemplo, não significa apenas estar obstruindo o lugar de entrada, mas também significa
estar buscando o silenciamento de uma classe.
Perseguindo a idéia de situar o sujeito anarcossindicalista, é possível verificar que
o discurso institucional o generaliza e o indefine, da mesma forma que indefine outros
sujeitos, ou seja, a seqüência sd 30 “[....] por qualquer outro meio de publicidade”
possibilita-nos, a partir dos espaços ocupados na esfera social, estabelecer as seguintes
relações:
Determinação do papel político
1. na rua - povo, cidadão comum, agitadores, provocadores, criminosos...
2. nos teatros - artistas, público, intelectuais;
3. nas associações ou reuniões – trabalhador, operário
Quadro-síntese 12
Conforme Orlandi (1996), “o estudo da linguagem não pode estar apartado da
sociedade que a produz”. Assim, os processos de mediação como relação constitutiva
entre homem e realidade natural e social não podem ser entendidos senão como
processos histórico-sociais. Na AD, o discurso é visto pelo modo como se produz
linguagem; pelo/no processo discursivo explicita-se a linguagem como fato histórico-
social.
Como podemos ver no quadro acima, o papel político do anarcossindicalista,
marcado na sintaxe, põe a história funcionar, ou seja, o lugar do anarcossindicalista,
segundo a ótica do aparelho jurídico, é a prisão uma vez que ele insistem organizar-se
coletivamente, sem levar em conta a determinação da lei. Isso, no entanto, produz a
negação do direito à cidadania e também a negação do direito de ser um cidadão “livre”.
248
Os saberes convocados na sd 33, enfim, remetem-nos ao discurso das leis
positivistas, do direito civil, e, tal como nos discursos “oficiais”, institucionalizados pela
lei, sacramentam na sociedade um dizer que, infelizmente, não reconhece a cidadania,
além de produzir o apagamento do sujeito e de reproduzir a idéia de que o certo é a
subserviência. Vejamos a sdr 33:
A ação da justiça como efeito da ação de um determinado grupo
sd 33 - O congresso Nacional decreta:
Art. 8
0
. O governo poderá dissolver e impedir o funcionamento de sociedades civis ou de
sindicatos, tenham ou o personalidade jurídica, quando incorram em atos opostos aos seus
fins ou nocivos ao bem público. (Código Civil, art. 21, n
0
, III).
Parágrafo único. O ato de dissolução será fundamentado e expedido pelo Ministro da Justiça e
Negócios Interiores.
Art. 10
0
. Dá-se flagrante nestes crimes:
Quanto à seqüência sd 33, a ação da justiça usa como justificativa a ação de um
determinado grupo, ou seja, o uso de determinados dispositivos para reprimir e silenciar
a ação dos anarcossindicalistas configura uma espécie de autoritarismo velado, tendo em
vista que as leis eram criadas em defesa de uma minoria, que ainda não existia o
chamado Estado democrático e todos os outros setores, inclusive o próprio aparelho
jurídico, estavam atrelados ao governo. Nesse caso, o Congresso Nacional, o governo e o
ministro da justiça e negócios interiores são instituições ligadas ao Estado, cuja lei aponta
para uma série de ações que o sujeito da obrigação não pode e não deve fazer e que,
portanto, são consideradas ilegais ações, como provocar, danificar, furtar, roubar,
incendiar, matar, subverter a ordem ou o instituto legal. Aquele que “ousar” desrespeitar
a lei estará sujeito à ação da polícia, que estará amparada pela própria lei. É, pois, preciso
que se observe a lei que coloca os homens das armas sob a sua proteção. É como se a lei
fosse elaborada para protegê-los, tanto que os lugares sintáticos que eles ocupam são
aqueles em que se configuram como “passivos” de uma possível ação por parte da
população. O lugar do sujeito da lei é aquele ocupado pelo governo, a quem cabe
proteger os homens das armas e as instituições. Vê-se que não há um lugar para o
cidadão. A noção de cidadania, aquela que traria a idéia de que a lei protegeria o cidadão
249
em primeiro lugar, nesse caso, não se configura, já que os meios governamentais servem
prioritariamente para proteger o Estado e todos aqueles que trabalham em seu benefício,
menos os cidadãos, que assim se situam em condições de não preservar as instituições.
No nosso campo de estudo, a noção desenvolvida por Dias (2002) para quem a
concepção que apresenta suporte operativo coloca como sujeito o que traz uma
informação determinada pelas condições de operação ou funcionamento da sentença no
processo de interação entre interlocutores - aproxima-se do que acabamos de constatar na
sds (30 a 33). As escolhas lexicais “supressão”, “subversão” tornam evidente que os
saberes constitucionais são antagônicos aos interesses do povo, que é regido por tais leis.
Tais recursos salientam, dentro do conjunto de representações constituídas, a posição-
sujeito do sujeito legislador, havendo, desse modo, espaço para aquilo que Dias diz ser
“uma informação delineada como foco de atenção pelo falante e determinada pela
necessidade de se apontar algo como relevante na interação, real ou virtual.” (p.48)
Notamos que “a supressão” ou “a subversão da atual organização da sociedade
constituem crimes” trazem marcas do lugar ocupado pela instituição - “o Congresso
Nacional decreta-, o que lhe o direito de “decretar” o que é e o que não é crime? O
enunciador, ao escolher o léxico “decreta”, fê-lo de algum lugar da instituição, para
alguém também de algum lugar da sociedade, produzindo o efeito de legitimidade e de
completude do tipo: “decretamos”, “promulgamos”, “estabelecemos”. Produz também
um efeito de verdade, posicionando-se, portanto, como um sujeito inscrito no contexto
histórico-social e, sobretudo, dentro de uma instituição que determina o que pode e o que
deve ser feito, o que não pode e não deve ser feito. Há, ao mesmo tempo, uma dupla
visibilidade, pois o sujeito do discurso não apenas fala diante dos seus, mas, também,
parlamenta com o adversário, o que o coloca em posição de negociador em potencial: ao
dizer o “Congresso Nacional decreta” equivale dizer: “nós, os representantes do povo
brasileiro, estabelecemos, decretamos...”
Orlandi (1996, p. 26) lembra que “todo discurso nasce de outro discurso e reenvia
a outro, por isso não se pode falar em um discurso, mas em estado de um processo
discursivo, e esse estado deve ser compreendido como resultando de processos
discursivos sedimentados, institucionalizados.” Isso, pela própria existência da lei, seria
o que chamamos um discurso isento de “contradições” e totalmente “objetivo”, o que
não se torna possível visto que nos permite “prever”, situar-se no lugar do ouvinte,
antecipando representações a partir de seu próprio lugar de locutor, que regula a
possibilidade de respostas, o escopo do discurso.
250
O modo como o “grupo citado” encontra-se designado no texto da Constituição
permite identificar para quem a demanda pública é feita. O fato de não ser uma pessoa
que fala, mas o próprio grupo de legisladores, possibilita-nos dizer que uma Constituição
não é feita para o povo embora se dirija a ele. O povo não pode nem deve ocupar lugar
no espaço x, mas no espaço y. Com isso, o povo não fala, mas é falado, o que se torna
uma condição de dominação, pois, caso o povo falasse, a função do legislador e da
instituição, no caso o Estado, seria anulada.
No caso da sd 33, o dizer vem ao encontro do que afirma Pêcheux a respeito das
formações discursivas, as quais permitem identificar o lugar social ocupado pelo sujeito
do discurso, fazendo remissão a outro(s) discurso (s), de processos discursivos
sedimentados, institucionalizados. Marcadamente, traz a estratégia discursiva, que é
situar o lugar do ouvinte, prevendo a representação do lugar do locutor, regulando
previamente as possibilidades de respostas. O “Congresso Nacional”, assim, não é a voz
do povo, mas mostra em que modalidade o povo passa a ser falado, assim como a
garantia da legitimidade da instituição, do Estado, do governo, do legislador.
Sabemos que, no Brasil, havia núcleos anarquistas de diversas orientações a partir
de 1890, compostos em sua maioria por imigrantes e seus descendentes. Enquanto, na
Europa, o anarquismo se isolava progressivamente do movimento operário a partir de
1880, no Brasil o anarcossindicalismo constituiu a corrente mais importante do
movimento operário durante quase trinta anos.
O anarcossindicalismo brasileiro foi muito influenciado pela doutrina e pela
prática do sindicalismo francês, que sublinhava a importância dos sindicatos na luta
contra o Estado. Isso se justifica pela crença de que as associações e os sindicatos,
primeiramente, serviram como entidades fundamentais para a luta pela melhoria das
condições de vida do operariado e pela emancipação social. Ainda, os
anarcossindicalistas brasileiros sentiam-se parte de um movimento internacional e
procuravam desenvolver laços de solidariedade com os movimentos operários da
Espanha, Itália e Portugal.
O esforço de homogeneização do movimento operário deixou de lado a existência
de uma corrente que, sem colocar em questão a organização social, formulava
reivindicações para a melhoria das condições da classe operária. O estudo da tendência
reformista torna-nos possível entender o sucesso da estrutura tutelar imposta de cima
para baixo pelo Estado depois de 1930.
251
Na década de 1920, outros interlocutores tentavam disputar com os anarquistas a
liderança do movimento operário. Entre esses é necessário apontar o Partido Comunista
e os ensaios de constituição de sindicatos com o apoio oficial. A repressão provocava a
relutância dos operários em participar dos sindicatos. Para entender como ocorre a
configuração do sindicato brasileiro, observemos a sdr 30, na qual o uso de substantivos
pode resultar em generalizações, produzindo efeitos de apagamento e de silenciamento
do dizer do sujeito que fizer parte de associações, federações, ou reuniões.
Foucault, em debate com Delleuze sobre o tribunal do júri e sua gênese, comenta
que o tribunal popular não é a expressão da justiça popular, mas tem por função histórica
reduzir as injustiças contra as massas, pois "o aparelho judicial, de uma maneira geral
(...), sempre funcionou de modo a introduzir contradições no seio do povo”. Para este
autor, o tribunal do júri é uma maneira eficiente de reinscrição da justiça popular no
interior de instituições características do aparelho do Estado, pois Foucault analisa como
o Estado e suas instituições se valem de um discurso popular para justificar a proibição
dentro de um sistema judicial "livre de qualquer influência ideológica". A própria
disposição do tribunal do júri visa conferir ao julgador uma posição de neutralidade
eqüidistante dos pólos discordantes do processo. Acima deste, a cruz que o redime de
possíveis lapsos ilumina os jurados e define a retidão das falas sacramentadas pelo
juramento no Livro Sagrado.
Desse modo, na sd 33, por meio do emprego dos verbos “concentrarem-se” e
“associarem-se”, temos o imaginário do trabalhador brasileiro determinado pela ação
sindical, que, segundo a ótica da instituição, não passa de um criminoso uma vez que,
por determinação legal, são proibidas as “concentrações” e “associações” de pessoas.
Por outro lado, através da sd 33
,
temos o imaginário que o governo tem de si. A
escolha lexical de verbos como “dissolver” e “impedir”, dentro daquilo que caracteriza
Pêcheux (1975), produz o “efeito de evidência”. Nesse caso, o acionamento de pré-
construídos da esfera institucional mobiliza o dizer nos níveis da
verticalidade/horizontalidade (inter e intradiscurso), acionando na memória do dizer o
já-dito e que rememora na sd 29 “concentrarem-se duas ou mais pessoas” como
configuração do crime.
Percebendo o discurso legal do tipo autoritário, é possível “vislumbrar” outras
“vozes” distantes, por exemplo, na Rússia de 1905, mas que ressoam no
anarcossindicalismo brasileiro.
252
Conforme vimos em outro momento desta tese, de acordo com Pêcheux, o
primeiro modo de subjetivação é quando há uma identificação plena entre os saberes que
identificam o sujeito-universal e o indivíduo que se reconhece como sujeito no interior de
uma FD; o sujeito, ao ser interpelado, ao reconhecer-se, pela forma-sujeito, identifica-se
plenamente com os saberes da forma-sujeito. O segundo modo de subjetivação implica
um processo de contra-identificação entre o sujeito-enunciador e o sujeito universal,
lugar onde o sujeito-enunciador se volta contra o sujeito universal através da dúvida, do
questionamento, da contestação e da revolta, lutando contra as evidências não-
questionáveis que lhes são apresentadas pelo sujeito do saber de uma FD. Já a terceira
modalidade de subjetivação é trabalhada por Pêcheux (1988, p. 217) nos limiares da
prática política com a prática científica. Segundo o autor, essa é uma tomada de posição
não-subjetiva que conduz ao trabalho de transformação-deslocamento da forma-sujeito.
O sujeito desidentifica-se de uma formação discursiva e de sua forma-sujeito, deslocando
sua identificação para outra formação discursiva e sua respectiva forma-sujeito.
3. 6.3 “Adoráveis” revolucionários
Feita a análise do texto 6, no qual circulam saberes da FD jurídica, em
contraponto com o analisado nos textos (de 1 a 5) do bloco II, seções A e B, vimos que
os saberes das FDs anarquista e anarcossindicalista, o tempo todo, antogonizam-se com
os saberes da FD jurídica, que por sua vez, são atravessados pelos saberes da FD
patronal e estatal.
O texto 6 permitiu-nos ver como se configura a aliança entre os saberes da FD
jurídica (FDJ) e da FD patronal, a fim de combater práticas político-discursivas dos
anarquistas e anarcossindicalistas e esfacelar os movimentos operários que aderiam tais
práticas. Isso porque a base do trabalho de resistência da imprensa anarquista e
anarcossindicalista consistia em denunciar o poder.
No interior deste trabalho explicitamos que as condições de formação das FDs
são reguladas pelo plano interdiscursivo e que as condições de formulação dos processos
discursivos podem ser localizadas no intradiscurso, promovendo lembranças e
esquecimentos. Para Courtine (1982, p. 246), a noção de condições de produção se
253
constitui de relações entre a materialidade lingüística e as condições históricas que
determinam sua produção e o corpus que analisamos, não nos permitiu constatar essas
relações, como também identificar o modo como determinadas práticas político-sociais
foram se discursivizando. É, pois, a noção de memória que nos permite chegar às
condições de constituição de um corpus discursivo, as relações de contradição, os efeitos
de sentido.
Entendemos que a partir das condições de formação não só foi possível identificar
as trajetórias históricas, mas estabelecer relações comparativas que possibilitaram
identificar os percursos dos sentidos realizados no interior das FDs, pelo interdiscurso,
no retorno ao domínio da memória.
Dessa forma, das análises até aqui realizadas foi possível depreender que o quadro
de correlação de forças, durante a Primeira República, era bastante assustador e que as
esferas governamentais compactuavam posições para assegurar as condições de
reprodução do quadro hegemônico do país. Vimos, na figura do articulador, que muitos
dos problemas da organização que geraram o enfrentamento policial e o associativismo
patronal, estão ligados ao papel dos sindicatos, como espaço de força política e pressão
na luta contra o patronato e poderes públicos, sobretudo estão pautadas na busca por um
lugar para um sujeito político que, explorado no mundo do trabalho, procura inserrir-se
no espaço da sociedade brasileira e a fazer parte da parcela dos contáveis.
Nesse sentido, a imprensa de resistência, lugar onde as penosas condições de
trabalho e a repressão aos operários eram denunciadas, passou a configurar esse espaço e
a ser o lugar das denúncias e espaço onde as bandeiras de lutam podiam ser acenadas,
quer seja através do trabalho de denúnicas, quer seja no trabalhou de inclusão das
questões sociais, revelando que a política do governo era “caso de polícia”.
A partir de 1910, enquanto o processo de industrialização se acelerava, o
movimento operário lutava para obter, junto a empresários e políticos, a proteção de uma
legislação social no país. Por outro lado, as leis repressivas que asseguravam a coação,
proibição e aplicação da violência protegiam o aparelho policial.
À medida que aumentavam as indústrias, o contingente de trabalhadores
organizados crescia, fortalecendo o movimento operário. Em decorrência das inúmeras
greves entre 1917 e 1920, o debate sobre a questão social e sobre as medidas necessárias
para enfrentá-la ganhou considerável espaço no cenário político nacional. O mesmo
acontecia no plano internacional, tanto que o Brasil participou da Conferência do
Trabalho de Washington, em 1919.
254
O objetivo central da classe operária era melhorar as condições de vida, de
trabalho e salário. o empresariado considerava a possibilidade de fazer algumas
concessões ao operariado para garantir o processo de produção e de acumulação de
capital e, simultaneamente, fazer frente às críticas antiindustrialistas que acusavam o
setor de ser o causador da alta do custo de vida, além de estimulador de graves
problemas sociais com sua intransigência.
Dentro desse panorama de luta, segundo Lima (1990, p. 40 - 41), o
reconhecimento desses dois acontecimentos o significa, de maneira alguma, admitir
duas classes operárias (o operário de antes de 1930 e o operário de depois de 1930). Ao
contrário, como lembra a autora, é preciso analisar as condições econômicas e políticas
durante a Primeira República e depois de 1930, pois é sob essas condições, que são
diversas, práticas político-discursivas da classe operária.
Quanto à composição da mão-de-obra depois de 1930, a taxa elevada de
brasileiros deve-se, sobretudo, aos descendentes da população imigrante (seja de antigos
operários urbanos, seja de trabalhadores que ficaram nos campos). Dito isso, é certo que
o movimento operário era “mais autônomo” com relação ao aparelho de Estado antes de
1930, mas distinguir “dois operários”, aquele de “antes de 1930” (o “bom operário”, que
sacrificava sua vida em nome da classe operária) e o outro, aquele de “depois de 1930”(o
“mau operário”, “conformista”que não se batia mais como aquele de antes de 1930),
segundo Lima, parece simples demais, até porque este discurso é da mesma ordem
daquele que seria enunciado por Vargas, quando faria referência ao trabalhador de antes
de 30 e de depois de 30; oporia o “estado mau” da Primeira República ao “bom estado”,
aquele de “depois do movimento de 1930”, que protege e defende os trabalhadores, antes
abandonados.
Assim, na Primeira República, o sujeito sindical assume posições de aliança ou de
antagonismo perante a organização sindical; na Segunda República, os sindicatos muitas
vezes deixam de atender aos interesses do proletariado para atender aos interesses do
governo. Daí é que surgem os sindicatos pelegos, dentro dos quais o sujeito-operário é
apagado ou neutralizado, uma vez que suas práticas político-discursivas sofrem
interdições, e o monopólio da violência não se limita apenas à força física, mas também
revela que os meios de coerção, geralmente fornecidos pelo Estado, são igualmente
violentos, razões diferentes da Segunda República.
Recortamos um texto que foi dirigido ao ministro da Agricultura, Indústria e
Comércio pelo Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo, em 1921,
255
período em que a aplicação da lei de repressão aos estrangeiros foi mais intensa, cujo
objetivo era propor a carteira de identificação profissional como mais uma estratégia para
vencer/aniquilar a classe operária.
mais alto dissemos os benefícios que dessa medida advirão para operários e patrões e
aqui diremos que os indesejáveis que o crivo da polícia dos nossos portos não consegue
reter, representam para a Nação em perigo sério, imbuídos como estão esses adventícios de
ideais que repousam sobretudo na destruição radical dos alicerces sobre o que assenta a
sociedade. Acoitam-se nas colméias obreiras, agitam-se na sombra e pregam o seu
evangelho de destruição sobretudo entre as massas operárias, em cuja mentalidade o
observador atento já vislumbra não mais aquela cordura peculiar à nossa plebe mas sim
vagos anseios, sintomáticos de um estado de alma que se modifica aos poucos.
É tudo quanto, prevalecendo-nos da autorização que foi dada aos interessados, cumpre a este
Centro dizer. [...]
130
Grifo nosso.
Percebemos que, dentre os rios dispositivos criados durante a Primeira
República para combater o anarquismo e o anarcossindicalismo, inclui-se a carteira de
trabalho. Conforme Pinheiro e Hall (1981, p. 197 198), o trecho acima deixa claro que
a “carteira profissional”, uma das dádivas da Revolução de 1930 à classe operária,
estabelecida em 21 de março de 1932 pelo decreto 21 175, era uma inovação muito
tempo preconizada pelas classes patronais, mas com a óbvia intenção de controlar a
classe operária e proteger a patronal.
O que isso significa? Significa que existe um distanciamento muito grande entre a
proposta de se implementar uma carteira de identificação profissional com fins de
controle policial e a carteira de trabalho como garantia de direitos. A partir dessa
constatação, permitimo-nos realizar outra leitura desse direito tão cobiçado pelo
trabalhador. Nessa direção, voltemos ao texto 6, analisado na seção anterior, onde
centramos mais nossa discussão no domínio jurídico, especificamente no espaço
constitucional, e constatamos que a legitimação de práticas sociais e institucionais
sempre estive mais a serviço da elite brasileira que propriamente do povo. O curioso é
que os textos dos blocos I e II também discutem essas questões e acusam, nos aparelhos
jurídicos e policial, a existência de contradições.
O trecho do documento acima reproduzido é um ofício encaminhado pela
entidade dos industriais têxteis, o Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem, ao
130
Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem, São Paulo, “Circular”, 12 abr. 1921. In: PINHEIRO,
P.S; HALL, M.M. A classe operária no Brasil (1889 1930): documentos. São Paulo: v.II, Brasiliense;
Funcamp, 1981, p. 197 - 200)
256
governo Epitácio Pessoa
131
sugerindo providências visando à implementação do controle
da força de trabalho através de “cadernetas de identificação”. Segundo Pinheiro e Hall
(1981), a pretensão inicial era promover a identificação de operários em estabelecimentos
industriais de mais de trinta empregados. Essa medida deveria correr por conta dos
patrões, em colaboração com o Departamento Nacional do Trabalho solução julgada
preferível à identificação obrigatória pela polícia, em vigor em cidades como Sorocaba.
Vale lembrar que, neste mesmo ano (1921), os setores mais avançados do
empresariado paulista organizaram um controle mais efetivo da força do trabalho. Uma
das medidas para enfrentar as ameaças da organização do movimento operário foi a
“identificação científica” dos operários, sob o pretexto de reprimir os roubos nas fábricas.
Conforme Pinheiro e Hall (1981, p. 194), “já não bastava a simples expulsão de
operários em cada fábrica pelos patrões e a comunicação dos nomes ‘indesejáveis’
através de circulares do centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem a seus sócios”. A
“identificação científica” representava a ação conjunta entre industriais e polícia, a qual
funcionava da seguinte maneira: as fábricas destinavam uma pessoa, um contramestre,
por exemplo, para fazer a revista dos operários na hora da saída e, constatado o roubo,
com ajuda de um agente da polícia, o criminoso era levado à delegacia, identificado e
processado. A ficha, acompanhada das digitais do operário, era distribuída a todas as
fábricas filiadas ao Centro de Identificação, onde se fazia “um trabalho de cuidadosa
depuração dos maus elementos(PINHEIRO e HALL, 1981, p. 195). O que se percebe
em medidas como a “identificação científica” e a “carteira profissional”, preconizadas
pelo Centro, é que todas as vozes ressoam num coro e numa mesma direção: sempre
em favor do patrão. Daí se entender por que, na análise dos textos 4, 5 os
anarcossindicalistas, veementemente, opõem-se à entrada de mestres, contramestres e
funcionários com cargos. Para ele, essas categorias sempre ressoaram a voz da traição.
131
Durante o governo de Epitácio da Silva Pessoa (1919 – 1922), conforme cpdoc/FGV, é possível
perceber a forte manipulação eleitoral por parte das oligarquias, pois o candidato encontrava-se na
Conferência de Versalhes, chefiando a delegação brasileira à Conferência de Paz, e recebeu uma simples
notificação dizendo que havia sido candidato e que havia vencido as eleições. Dentre suas obras ditatoriais,
destaca-se a "Lei de Repressão do Anarquismo" (17 de janeiro de 1921), por meio da qual pretendeu limitar
a atuação da oposição. Destaca-se ainda a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”, em 5 de julho de
1922, que irrompeu no Forte de Copacabana, com a adesão do Forte do Vigia e dos alunos da Escola
Militar. Foi o primeiro levante tenentista da história brasileira e visava derrubar o governo de Epitácio
Pessoa e impedir a posse de Artur Bernardes. A maior parte dos inúmeros oficiais que haviam acordado
com a revolta desistiu, computando-se apenas dezessete oficiais que optaram por manter a rebelião,
obtendo o apoio de um civil. Os dezoito amotinados saíram pela praia de Copacabana em busca de seus
objetivos, o que resultou no enfrentamento com o restante do exército. Metralhados, dezesseis morreram e
o dois, embora baleados, sobreviveram.
257
De um lado, em 6 de janeiro de 1921, o decreto 4.247 regulamentou não a
entrada de estrangeiros no Brasil, impedindo o desembarque de indivíduos considerados
nocivos à saúde (doentes), à moral (prostitutas) e à economia (velhos, mendigos e
aleijados), inclusive regulamentando o tempo de residência no país para se tornarem
inexpulsáveis; de outro, houve a mobilização dos industriais para controlar os meios de
produção e os operários. Pela voz da patronal, podemos observar a imagem do
sindicalizado.
É importante, entretanto, lembrar que as lutas populares, em especial a sindical,
têm um grande peso para impulsionar as mudanças. Nesse caso, o papel do articulador
na imprensa de resistência foi de grande valia, uma vez que exerceu grande influência
nas lutas contra os diversos tipos de exploração e violência. O que queremos dizer é que,
muitas vezes, a constitucionalidade da Lei de Expulsão era questionada, como o caso de
julho de 1917, por colocar em jogo a liberdade individual e os direitos de livre-expressão
garantidos pela Constituição do Brasil. Questionava-se o uso de “indesejáveis e
expulsáveis”, uma vez que se criava idéia de delito de opinião, qual seja, declarar crime a
crença filosófica do anarquismo.
Para muitos parlamentares, os estrangeiros eram considerados tumores, o
incômodo e, portanto, para não molestar a população brasileira, precisavam ser
extirpados. Nesse caso, tratava-se de uma questão não de direito de soberania, mas de
dever do Estado, incubido de realizar a obra de “saneamento social”, de dar fim à
“infecção social” que ameaçava contaminar o país. Logo, um dos modos de neutralizar o
inimigo era, justamente, dar-lhe o que mais queria, ao mesmo tempo reconhecendo os
seus direitos e envenenando-o aos poucos, lentamente.
Ainda conforme informações de relatórios policiais, grande parte dos movimentos
operários foi levada a subtrair-se, por conseqüência, à cerrada vigilância das polícias, as
quais os viam como elementos perigosos à ordem e às instituições nacionais. Disso
resultaram explosões repentinas, especialmente no Rio, em São Paulo e em Santos, sob a
forma de greves violentas, nas quais, porém, a ação provocadora era mais das polícias
locais que dos grevistas. Isso porque, ao estilo policial, o operário era obrigado a beber do
veneno das publicações anti-subversivas e, em nome da segurança pública, deixar de
reclamar do patrão, deixando “silenciado” o seu lado político.
Somado a isso, a Lei Adholfo Gordo (1907), por exemplo, teve várias alterações
até sua aprovação final em 1921. Apoiado no artigo 72 da Constituição (1891), o
Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a Lei de Expulsão, derrubando os
258
argumentos apoiados na “soberania nacional” e de lulas perniciosas que
contaminavam as sadias e úteis no convício social. No entanto, a partir de 1913 a Lei de
Expulsão tornou-se mais intensa, devido às greves deflagradas no Rio e São Paulo. As
emendas, suas interpretações e substituições, de certo modo, iriam imprimir todo ódio
das elites contra tudo que vinha dos movimentos operários, levando a se formar no Brasil
um verdadeiro complô, a fim de comprovar os delitos cometidos pelas diversas facções
anarquistas. As polícias locais, portanto, nas suas medidas preventivas, não se esqueciam
de ninguém e promoviam repressões violentas, não apenas no combate das idéias, mas
contra os movimentos operários organizados. Aos olhos das autoridades, os anarquistas
eram vistos como um câncer social que corroía os valores da harmonia social instituídos
para sociedade; era, pois, preciso extirpá-los para restabelecer a saúde corroída do tecido
social.
Em contrapartida, como defesa, a bandeira de luta da Confederação Operária
Brasileira fez divulgar no exterior as condições adversas a que estavam submetidos os
trabalhadores estrangeiros no Brasil, denunciando não o cerceamento da liberdade de
expressão e de manifestação no país, mas, também, as precárias condições de vida e de
trabalho, levando o perseguidor a provar de seu próprio veneno, pois a Lei de Expulsão
prejudicava também aqueles que a defendiam. A Lei de Expulsão e a deportação de
muitos militantes anarquistas e anarcossindicalistas foram a ruína de muitos capitalistas e
a desmoralização de muitos governantes.
Assim como o governo partia para a repressão, espalhando “forças policiais” por
toda cidade, especialmente no Rio, em São Paulo e Santos, ao mesmo tempo e em
lugares diferentes, sem processo, sem formação de culpa e às ocultas, policiais invadiam
lares na calada da noite e prendiam vários trabalhadores considerados elementos
subversivos. Era desse modo que os “hóspedes perigosos e indesejáveis” eram
embarcados clandestinamente no porão do navio Curvello rumo ao degredo.
Os saberes acima referidos, trazidos para o interior da FD patronal na perspectiva
da desqualificação do operário, estão claramente fronteirizados com os saberes que se
lhes opõem os domínios da FDAB, permitindo que os demais industriários saiam do
anonimato e combatam o inimigo. Cabia, nessa “missão” de limpeza, o apoio do
ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, uma vez que existia o apoio do
Judiciário e da Polícia.
uma cobrança sobre a ação do Departamento Nacional do Trabalho, que
esquece que a elaboração de leis não é suficiente para impedir que a vida industrial
259
seja afetada pela presença de uma “praga” contra a qual lutam continuamente, a
presença dos operários indesejáveis”, que têm de ser banidos a fim de salvar as
indústrias desse mal. É, porém, em face do reconhecimento de que os operários
estrangeiros sabem de seus direitos que o Centro das Indústrias de Tecelagem busca
medidas mais enérgicas e, para tanto, sugere ao ministro da Agricultura, Indústria e
Comércio a criação da carteira de identificação profissional.
No que concerne à FD patronal, cabe demarcar que se funda em instâncias de
ordens simultâneas e distintas: a jurídica e a estatal. Seus saberes são inscritos na
instância jurídica, na qual um projeto de nacionalização para o Brasil, a partir de leis e
decretos, é bastante discursivizado na estatal. A forte repressão aos movimentos
operários, especialmente aos anarcossindicalista, revela uma das facetas mais acentuadas
do projeto de nacionalização. A repressão não só atingiu as associações e os movimentos
operários, mas também as escolas e todos os segmentos da sociedade que estivessem, de
uma ou outra forma, ligados aos estrangeiros e ou aos movimentos operários. Desde a
instância da saúde pública à instância da segurança nacional, desde que configurasse um
espaço de discursivização ou de prática política para a classe operária, tudo era motivo
para perseguição.
Durante a Primeira República defendia-se a necessidade de sanear o ambiente. A
higienização da nação tem a função de proteger o corpo social. o essas vozes da
Primeira República que ainda ressoam e fixam um lugar de memória. A política de
saneamento moral vinha sendo desenvolvida, na Primeira República, a partir da Lei
Adholfo Gordo, pulverizando os saberes anarquistas e anarcossindicalistas. Vimos
também que, a partir dos anos 1920, o Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem, em
São Paulo, manteve uma extensa lista negra dos operários “indesejáveis”. Os nomes
eram enviados para o Centro, cujo objetivo era se proteger e proteger a população; assim,
através de circulares comunicava-se a todos os associados o nome dos “agitadores”. Por
volta de 1927, essa tarefa foi transferida para o Estado, sob o encargo da Delegacia de
Ordem Política e Social. Entretanto, o esforço de arregimentação da classe operária pelo
Estado foi uma tendência presente em toda a Primeira República e que se estendeu à
Segunda República. Em nome da luta contra o anarquismo e o comunismo e em nome
do nacionalismo, essa campanha de saneamento moral continuou ressoando na política
do Estado. A substituição do operário da doutrina liberal pelo trabalhador como membro
socialmente útil do Estado aparece muito presente nos discursos enunciados sobre os
projetos de reformas do novo governo, conforme discutiremos mais adiante.
260
Vimos também que Foucault (1995), ao propor a relativização da noção de
função-vazia, refere-a como um lugar do devir, destacando duas propriedades do
enunciado, as quais exploramos no capítulo da memória: a primeira propriedade é a
raridade, por haver pouquíssimas enunciações novas, figurando o papel do sujeito muito
mais no sentido de ocupação de um lugar posto do que de formulação do conteúdo
original desse dizer; a segunda propriedade diz respeito à sua inscrição no debate em
torno da questão do poder. Segundo o autor, na formação dos objetos dos discursos
vamos encontrar a emergência desses objetos em forma de sectarizações que variam de
época para época.
Em relação ao nosso corpus, ainda apoiados em Foucault, é possível dizer que a
ocupação dos lugares discursivos é de caráter predominantemente institucional, por esses
estarem implicados nas relações das práticas políticas institucionais, por exemplo. Daí
que a “novidade” na proposta da restauração (já feita na Primeira República) vai se
concretizar pelo saneamento público, que exerce uma espécie de “cura” do corpo social,
na pulverização ideológica, administrativa e educaciona. Tal jogo indica o movimento
gerado na tensão do acontecimento, a luta de um sujeito que tenta assegurar, a qualquer
custo, a sua legitimidade no poder. Esse nível de dificuldade é assegurado pela tomada
do poder, tendo em vista que deve decidir frente à “encruzilhada” dos erros do passado,
o que significa encontrar o perigo pela frente, pois no desconhecido, entre muitas coisas,
podem estar à espera a “tocaia” e a “traição”.
De acordo com o que vimos em Pêcheux e Courtine, os lugares sociais são
trabalhados na luta de classes; a apropriação do dizer oscila desde a identificação plena
do sujeito do discurso com uma forma-sujeito até a completa desidentificação. Vimos,
anteriormente, que o sindicalismo no Brasil iniciou com a chegada dos imigrantes
europeus, através da organização operária em clubes, grêmios, associações sindicais, com
forte influência das idéias socialistas e anarquistas. Durante a Primeira República
ocorreram muitas greves e muitas repressões, como mostram as análises.
Na introdução desta tese destacamos quatro questões norteadoras que,
acreditávamos, situariam o leitor no percurso da escrita deste texto. Agora, fazendo um
levantamento do que teria restado de nossa reflexão, vemos o sujeito sindicalista deixar
de falar, ter sua fala “roubada”.
A tentativa de, pela força, decretar prisões, anular os movimentos operários e suas
conquistas, suspendendo os direitos constitucionais adquiridos, acabando, inclusive, com
todas as suas liberdades, não impediu a auto-organização e autonomia dos trabalhadores
261
nas sociedades contemporâneas, conforme lembra Silva (2000) na obra O movimento da
organização sindical no Brasil e as primeiras lutas operárias. Assim como na Europa, no
percurso desenvolvido pelo movimento operário brasileiro para a organização da classe
em sindicatos, críticas negativas a respeito de uma educação controladora e
disciplinadora, implementada pelo Estado e pela Igreja, que queria criar indivíduos
completamente submissos. Ameaçados os interesses e a autoridade dos patrões, dos ricos
industriais, dos antigos escravocratas dos seus senhores, enfim para cumprir a lei, é
preciso prender operários por “crimes” como o de pretender dirigir-se a localidades onde
greves; é impedir o livre e público exercício do direito de reunião, seja pela violência
direta, seja pela pressão exercida sobre os proprietários, e a polícia conseguia irritar os
ânimos, derramar o fel amargo do ódio no coração dos oprimidos.
A busca de estratégias para obrigar a aceitar as imposições dos patrões e as
arbitrariedades da polícia, submetendo-os a um jogo sempre mais pesado e sem protestos,
abre para o operário o caminho das reivindicações. Na medida em que procura mais pão,
mais instrução para os filhos, recebe isso tudo de presente do Estado, o que representa
um modo de neutralizar a força dos inimigos de classe que tão hipocritamente falam
em “liberdade de trabalho”-, traindo, muitas vezes, os companheiros em luta e rompendo
os laços de solidariedade.
Pêcheux (1975, p. 162) define o interdiscurso relacionado ao conceito de
formação discursiva, como "o todo complexo dominante das formações discursivas". O
entendimento do interdiscurso como memória discursiva se dá na discursivização, visto
que esses dois elementos discursivos encontram-se articulados no intradiscurso e têm a
ver com a estrutura e o acontecimento do discurso.
No interdiscurso localizam-se unidades significantes (pré-construídos),
constituindo-se em memória discursiva, ou seja, a memória discursiva é constituída por
sentidos possíveis de se tornarem presentes na linguagem. Conforme vimos
anteriormente, para que alguns sentidos se tornem “visíveis” é necessário que outros
(sentidos) permaneçam silenciados. A oscilação entre o dito e o não-dito, portanto, vai
constituir a rede de memória.
Nesta mesma obra de cheux (em Semântica e discurso), no exemplo da página
165, por meio do qual o autor formaliza o funcionamento do discurso transverso, temos
Sy como discurso transverso de Sx, que efetua o encadeamento entre a e b em Sx, ou
seja, Sx é atravessado por Sy. Vejamos o exemplo explorado pelo autor:
262
Constatamos uma deflexão do galvômetro, que indica a passagem de uma corrente
elétrica.(p. 166)
Segundo o autor, o uso do que ele chama de processos conceitual-científicos não é
sustentado por um sujeito (que seria impossível sujeito da ciência). A evocação desse
discurso não reporta a nenhum sujeito efeito de indeterminação do discurso científico.
Do contrário, num processo nocional-ideológico, o efeito de determinação do discurso-
transverso sobre o sujeito leva à relação do sujeito do discurso com o Sujeito Universal
da Ideologia, que é evocada no pensamento do sujeito (sob as formas “todo mundo sabe
que” “é claro que”).
Na página seguinte (p. 167), Pêcheux destaca a relação entre discurso transverso e
pré-construído. O discurso-transverso é da ordem do interdiscurso e coloca em conexão
elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso, enquanto pré-construídos. Assim,
“o intradiscurso, enquanto ‘fio do discurso’ do sujeito, é, a rigor, um efeito do
interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente determinada como tal ‘do
exterior’”.
Da mesma forma, ao falar sobre a articulação de enunciados, Courtine(1981, p.
36) afirma que o interdiscurso é o lugar em que se constitui o pré-construído, fornecendo
elementos para a enunciação de uma seqüência discursiva, ao mesmo tempo que
atravessa e conecta esses objetos, funcionando como um discurso transverso, a partir do
qual se realiza a articulação em que o sujeito enunciador dá coerência “ao fio do
discurso”. O interdiscurso aparece, assim, como efeito do interdiscurso sobre si mesmo.
É nesse contexto que o autor cita os trabalhos de Henry (1975) e cheux (1975),
sobre as relativas apositivas, cujo emprego (sob as formas como foi dito, como cada um
sabe, pode-se ver) produz um apelo do que se sabe e um efeito de apoio à articulação das
proposições no intradiscurso. Ao falar sobre as formas de refutação, Courtine (1981, p.
105) diz que o interdiscurso figura na formulação sob a forma de discurso transverso,
salientando seu caráter contrastivo. Pêcheux, em “A análise de discurso: três épocas
(1983), diz:
...uma FD o é um espaço estrutural fechado, pois é constitutivamente “invadida”
por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras FD) que se repetem nela,
fornecendo-lhe suas evidências fundamentais (por exemplo sob a forma de “pré-
construídos” e de “discursos transversos” (PÊCHEUX, 1993, p. 314)
263
De acordo com a citação acima, é possível depreender que as constantes
“presenças” do interdiscurso no intradiscurso produzem a ilusão subjetiva de que o
sujeito controla o que diz. Tal mecanismo, no entanto, ancorado na noção de FD, abriga
uma pluralidade de sentidos que, simultaneamente, desdobram-se em “um” e vice-versa,
sob o efeito de homogeneidade, ou seja, a ressonância do não-um é resultante dum gesto
de interpretação entendido como tomada de posição e reconhecido como efeito de
identificações assumidas. Daí o “efeito de visibilidade” do interdiscurso (pré-construídos,
de outro discurso) no intradiscurso.
Logo, falar sobre o discurso-transverso requer que falemos sobre o processo de
interpelação ideológica do indivíduo em sujeito de dizer. Conforme vimos em vários
momentos desta tese, a interpelação realiza-se por meio da inscrição e de identificação do
sujeito nas diferentes formações discursivas que o constituem e o determinam, havendo a
reinscrição dos traços históricos e ideológicos que o determinam como sujeito em seu
próprio dizer. Isso porque nos processos de inscrição-identificação do sujeito uma
pluralidade contraditória de filiações históricas que movimenta a relação entre o
interdiscurso e a manifestação do inconsciente e da ideologia na produção dos sentidos e
na constituição dos sujeitos e que expõe todo e qualquer dizer ao equívoco da língua,
deixando-o suscetível a se tornar outro. É a “transitividade” e a incompletude do
processo de interpelação ideológica do sujeito que permitem a coexistência dessa
pluralidade contraditória de filiações históricas e ideológicas e sob forma de memória.
Para Pêcheux, a memória discursiva seria aquilo que, em face de um texto que
surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os "implícitos" (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos
etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.
(PÊCHEUX, 1999, p. 52). Assim, a memória discursiva é tomada por Pêcheux como o
efeito do interdiscurso (eixo da verticalidade) no intradiscurso (eixo da horizontalidade) e
como constitutiva dos efeitos de sentido aí produzidos.
264
Considerações
Os frios espaços da semântica exalam um
sujeito ardente.
Michel Pêcheux
132
Com a estranha sensação de que algo começa a nos faltar, quem sabe, porque de
antemão já sabemos que um trabalho nunca é inteiramente concluído e que não é
possível dizer tudo, o nosso discurso se rende a outras formas de interpretação e sofre
interdições. Este estudo estrutura um percurso que vimos trilhando desde o tempo de
mestrado e organiza um espaço-memória do qual não podemos dissociar o histórico e o
político, que pela retomada se produzem os deslocamentos teóricos e práticos.
Considerando que em toda memória existe a marca do real histórico com remissão
necessária para o exterior, aprendemos que a memória não restitui o passado, mas
possibilita identificar posições sobre o que é reconstituído e, nos termos de Pêcheux
(1999), a memória é um lugar de regularizações e conflitos, de inscrições e
esquecimentos. E o reconstruído aqui é, sem dúvida, uma posição, um lugar, um efeito
de interpelação ideológica.
À procura daquilo que mais “lateja” em nosso discurso, sentimo-nos como se
estivéssemos sendo sugados por uma força do/para o político. Encontramos naquilo que
ressoa o silenciado, o censurado, o proibido, a estranheza de um passado marcado a ferro
e a fogo, em “carne-viva”. E nesse movimento dos discursos nos damos conta de que,
talvez, tenha sido essa a direção que desde o início deslocara nosso ouvido” para nos
encontrarmos com a narração e, nela, abrir algumas questões. Uma questão interessante
logo se apresenta: “O modo de circulação do discurso dos trabalhadores brasileiros,
especialmente daquelas falas que foram impedidas de circular”. O que nessa
132
Pêcheux (1995, p. 30)
265
afirmação que poderia comandar a narrativa deste texto e nos conduzir à reflexão sobre o
interditado, sobre o imaginário que se criou em torno do imigrante no país,
especialmente na construção de sua imagem nos movimentos operários e dos efeitos
sobre as práticas político-sociais e discursivas? Parece-nos que é a reivindicação de um
lugar político para aquele que, na Primeira República, aderira à resistência e, na Segunda,
ensurdecera para este político, porque fora silenciado.
Repetidas vezes enfatizamos que trabalhar com a Análise do Discurso sempre é
um desafio. Esse trabalho pode ser entendido como uma forma de resistência, porque
tudo que se discutiu se abre novamente a questionamentos. Não há, então, como se
proteger das questões que emergem nos discursos. No primeiro capítulo desta tese
tratamos da Análise do Discurso como uma teoria-prática que (des)amarra muitos “nós”.
O primeiro deles é a linguagem estudada em seu funcionamento, em nosso caso, com o
discurso do outro, o sujeito é amarrado por este discurso. Vale lembrar que, a princípio, a
teoria pressupunha a não-acomodação do analista em práticas descritivas de corpus, nas
quais prevaleciam análises de conteúdo de orientação exclusivamente formalizante e que
ignoravam ou reduziam a análise histórica das condições de produção dos discursos de
que as disciplinas tratavam. A teoria não-subjetiva da subjetividade proposta por
Pêcheux e Fuchs contribui com a noção de descentramento do sujeito, dado que os
efeitos de sentido, embora se realizem no sujeito através da relação que se estabelece
entre enunciado e enunciação, não têm origem no sujeito e, sim, “em referência às
formações ideológicas nas quais as posições-sujeito se inscrevem”. (PÊCHEUX, 1995, p.
160). É, pois, dessa maneira que a semântica também passa a ser tratada como uma
questão política. Daí a importância para nós de, no trabalho com o discurso político,
retornar às questões da língua e da história, que estamos nos defrontando com esses
movimentos, que vão da relação entre o sujeito até os diferentes modos de subjetivação e
a constituição de uma identidade da classe operária no campo da prática.
Em relação à questão da interação entre os interlocutores, queremos enfatizar que
essa interlocução não ocorre somente entre os sujeitos do discurso, mas entre as
condições históricas também. Nessa questão, somos levados a concluir que o
deslocamento teórico reside naquilo que Pêcheux se refere a “dois mundos em um só”,
ou seja, a partir de uma concepção materialista de linguagem, o autor propõe o estudo
dos efeitos de sentido; aborda a questão da subjetividade diluída no duplo (interior e
exterior reduplicando-se um no outro), cujos processos estariam atravessados por uma
memória. É um retorno a um efeito de lugar a partir do qual se pode dizer.
266
Vimos que a contradição é constitutiva de todo discurso e que os efeitos de
sentido são constitutivos nos enunciados, identificam-se com saberes das FDs e não se
originam dentro da materialidade da língua, mas na confluência com o real da história.
A subjetividade não é um processo individual ou coletivo, mas tem a ver com os modos
de identificação do sujeito e de articulação no interior do discurso. Assim, na análise de
nosso corpus, a redistribuição dos meios de produção, pela qual os “desiguaisafirmam
seu pertencimento, revelou um sujeito que ensaia muitas formas de resistência; emerge
um sujeito heterogêneo, dividido e que se constrói na contradição. Logo, a interdição,
referida no início deste estudo, incide sobre o controle desses sujeitos que são
interpelados por uma ideologia.
Assim, o desenvolvimento de um capítulo sobre língua no interior deste estudo,
permitiu trabalhar diferentes materialidades, ao mesmo tempo que vinha questionado
sobre as razões que nos levaram a escrever sobre língua, se o nosso objeto de estudo
situa-se no campo político. O trabalho com discursos heterogêneos e dispersos, sem
fronteiras preestabelecidas, encontra nas “bordas” da língua, dos enunciados e da
posição do sujeito o espaço para inscrição do político. Esse campo onde o “mesmo está
inscrito no outro” nos permite remover processos discursivos, os quais foram chamados
de pontos de difração, porque o encontro entre o real da língua e o real da história é
indissociável e inevitável. E o equívoco é justamente o lugar do confronto.
Confrontaram-se os lugares ideologicamente marcados operariado/patronal, a partir dos
quais a resistência foi possível de se enunciar na confluência desses dois reais: o real da
língua e o da história.
A insólita parceria língua-discurso-ideologia-história-sujeito encaminha-nos para
os efeitos resultantes da relação do interdiscurso com as FDs. O jogo heterogêneo das
formações discursivas, a resistência e a dispersão do sujeito e dos discursos são efeito
imaginário, de tal modo que o discursivizado no Brasil, no recorte histórico de 1889 a
1945, período esse que compreende a Primeira e a Segunda Repúblicas, constituiu-se
num gesto de interpretação entre tantos. Pêcheux (1995, p. 304) nos mostra que não
dominação sem resistência e que ninguém pode pensar do lugar do outro, produzindo a
resistência do outro. Segundo ele, é impossível escapar às injunções da ideologia
dominante e, por isso mesmo, “é preciso suportar o que venha a ser pensado, é preciso
ousar pensar”, isto é, deve-se suspeitar da evidência da leitura.
O político e o simbólico colocam questões para a lingüística, para as ciências
sociais e para a AD. Na Análise do Discurso, o político e o simbólico são constitutivos
267
dos processos discursivos e das condições de produção da linguagem. A refração e
reflexão dos sentidos baseadas no empiriocriticismo de Lênin e na teoria das cores de
Newton, exploradas por Bakhtin, configuram o trabalho da interpretação e os efeitos do
imaginário, que, dependendo dos ângulos de incidência do feixe de luz branca (a história
com seu real afetado pelo simbólico), produz os efeitos de sentido. Assim, a Análise do
Discurso pressupõe o legado do materialismo histórico, isto é, o real da história também
não lhe é transparente. O materialismo é questionado pelo simbólico e a ideologia é
materialmente relacionada à história, à dialética e ao inconsciente.
Tal relatividade, base da teoria do conhecimento, é não somente o
reconhecimento do nível de autonomia de nossos conhecimentos, mas, também, a
negação de qualquer medida ou modelo objetivo, inclusive nas questões ligadas ao
paradoxo do reflexo comunista, fundado sobre a ambigüidade entre o engajamento
consciente e a faculdade de refletir objetivamente o mundo. Nesse caso, as
discursividades são marcadas pela resistência, pelo político, pelo confronto dos sentidos.
Ainda, vimos que, através da metáfora da luz monocromática dissociada em
espectro, Bakhtin descreve a materialidade “opacidade” ou “palpável” do signo
ideológico, opondo-se à transparência do reflexo, postulada por nin. Pontos de
difração, conforme vimos em Foucault (1995, p. 82-84), têm a ver com a complexidade
dos conceitos dos objetos e das FDs. Para o autor, há diferentes níveis de análise segundo
o grau de incompatibilidade, de equivalência, de função de sistematização, ou seja, é
nesse movimento do o-fixo, do mutável e da não-transparência e da opacidade que, na
perspectiva da AD, entendemos a heterogeneidade constitutiva dos discursos, do sujeito
e dos sentidos.
A questão da linguagem, a dos efeitos de fronteira (interior e exterior), amarra-se
à figura da interpelação ideológica do indivíduo em sujeito. A interpretação e
explicitação desses efeitos criam condições para a apreensão de um real da história e da
língua que reclama sentidos. Nessa perspectiva, vale lembrar que o modo de produção da
vida material condiciona o conjunto dos processos da vida social, política e cultural,
enfim, o sistema de valores, a ideologia. A contradição, numa perspectiva marxista, é
situada entre capital e trabalho e se de forma concreta entre a "burguesia", que detém
os meios de produção, e o "proletariado", que padece o processo de alienação na medida
em que não é dono daquilo que produz.
Nossas análises comprovam que a contradição não existe desvinculada do
político. Nos discursos dos anarcossindicalistas, por exemplo, vimos que os
268
trabalhadores, ao mesmo tempo em que lutam pelo trabalho, reconhecem a possibilidade
de se desenvolver o individualismo. É também no seio da prática política, por meio da
luta sindical que se abre espaço para a “mais-valia” operar, ou seja, reproduzindo o
sistema da ideologia dominante.
Vimos ainda que, desde a Rússia de 1905, saberes como a negação de uma
política partidária, autogerenciamento e a negação da autoridade e da lei ressoaram junto
de Kropotkin e Tolstoi e produziram ecos nos espos ocupados no Brasil. Por ocasião
dos movimentos imigratórios, os discursos dos anarquistas e anarcossindicalistas como
discurso transverso e ou pré-construído, levam em conta aqui que o interdiscurso exerce
determinação sobre a FD.
Nesse mesmo recorte cronológico foram focalizadas as enunciações da formação
discursiva anarquista russa (FDAR), no âmbito da qual se postularam saberes a respeito
do Estado e seus instrumentos de opressão, especialmente sobre a violência e a validade
das leis, espaço em que Kropotkin e Tolstoi constroem, reivindicam um lugar político
para o articulista, cujo papel não é buscar o acordo ou apagar as diferenças, mas,
justamente, promover o político confrontando duas realidades de dois mundos em um
só. É isso que Kropotkin e Tolstoi fazem. Num primeiro momento, na análise do bloco I,
estabelecemos contrapontos com a FDJ como referência para a leitura de saberes da
FDAR, posto que o movimento anarquista, no Brasil, instituiu significativa parte das
condições para a formulação das enunciações da FDAB, enunciações essas que se
colocaram como forma de resistência à possível inserção dos saberes da FDT. Já, no
contexto da Segunda República, realizamos movimento inverso, partindo dos saberes
governamentais para, então, chegar aos saberes da FDT, que ocupam um lugar jurídico
específico, os quais podem ser perpassados por outras formações discursivas, como a
ministerial (FDM), patronal (FDP) e estatal (FDE).
Se, para Rancière, a política é pensada a partir da noção de desentendimento, para
a AD o conflito diz respeito à contradição, à heterogeneidade dos discursos e ao modo de
apresentação do sensível. Para Rancière, as estruturas de desentendimento são aquelas
em que a discussão de um argumento remete ao litígio acerca do objeto da discussão e
sobre a condição daqueles que o constituem como objeto. O político é a contradição. É o
lugar da contagem das partes entre os que têm direito e aqueles que não têm direito de
serem contados. Para a AD, o político é a contradição de dois mundos alojados num só;
é a ultrapassagem de fronteiras, é a heterogeneidade de uma formação discursiva, a
dispersão do sujeito e a multiplicidade de sentidos.
269
O sujeito político da Primeira República sobrepunha-se a todo tipo de
dificuldades, e sua função era lutar para inverter a ordem do corpo social. Os lugares
políticos ocupados nos movimentos de resistência, determinados no âmago das práticas
políticas, constituíram modos de identificação do indivíduo com a nação, derivados das
relações com o imaginário tecido em torno da luta de classes.
A luta para legitimar o estatuto de brasileiro deu-se em diversas instâncias, desde
o domínio da escrita jornalística até o direito de pertencimento ao mundo do trabalho. A
política de saneamento, por exemplo, era aplicada à área da educação e ao mundo da
moral e da ética, higienizando o país dos germes e dos “estrangeirismos” em todos os
sentidos, sobretudo no mundo do trabalho, onde se exercia a dupla dominação na
organização sindical e na política.
Ainda que rápida e parcial essa conclusão, dentro do percurso que realizamos até
aqui, e apoiados na Análise do Discurso, não podemos fechar esta reflexão senão
dizendo que os contornos traçados pelo sujeito enunciador que cercam os discursos do
adversário (lei, Estado, governo) incidem sobre as práticas políticas e discursivas no
Brasil da Primeira República e sobre o modo de se produzir a “ordem Pública” na
Segunda República. O desmantelamento do corpo social, através da coerção, da
inquisição, da violência, deve-se aos aparelhos jurídico e policial, mas de modo diferente
entre o período da Primeira para a Segunda República.
Ainda, apoiados nos estudos de Pêcheux, que afirma que a “matriz do sentido” é
inerente à formação discursiva, podemos dizer que os saberes da FDAR, trabalhados no
bloco I, são reiterados e ressignificados como saberes da FDAB, trabalhados nas sdrs do
bloco II, estabelecendo relação de paráfrase. Como lembra o autor (1995), “o esboço de
uma análise não-subjetiva dos efeitos de sentido é atravessado pela ilusão do efeito-
sujeito (produção/leitura), e que retorna ao processo discursivo por uma espécie de
arqueologia regular”. Tais domínios semânticos não correspondem, diretamente, a uma
proposição lógica, mas aos processos discursivos. Isso ficou mais que comprovado nas
seqüências discursivas analisadas no interior deste texto. O sujeito, em sua situação
concreta de enunciador, constitui-se à medida que diz e que permite que falemos sobre
ele. “O fato de se tratar, fundamentalmente, de uma ilusão não impede a necessidade
desta ilusão e impõe como tarefa ao menos a descrição dos processos de enunciação e
possivelmente também a articulação da descrição desta ilusão ao que aqui chamamos de
esquecimento n
0
.1”. (PÊCHEUX, 1993, p. 171).
270
Nesse sentido, é pelo interdiscurso que podemos perceber que se produz o mesmo e
a diferença; ainda, mobilizam-se saberes antagônicos no interior da mesma FD, convoca-
se algo “já-ditoe que ressoa no interior do mesmo discurso. Conforme Serrani (1997),
as ressonâncias de sentido ocorrem em torno de unidades específicas e/ou em torno de
modos de dizer.
Especificado nos exemplos (blocos I e II) o modo de produção do discurso da
negação, de saberes e do lugar do outro, por meio da reformulação, e a negação dos
saberes da FDJ, lembramos aqui que não se trata de mera reformulação, mas de
qualificação do modo de produção da ação e dos efeitos do discurso jurídico, sobretudo
de relações de poder, que, de um lado, colocam-se saberes das classes dominantes,
poderosos, legisladores, burguesia, que são beneficiados pela lei, e, de outro, em oposição
à classe dominante, encontramos saberes das FDs anarquista no contexto russo, a
maioria, o movimento de emancipação proletária, os anarcossindicalistas brasileiros,
todos sob o efeito da violência das leis, justificando-se, portanto, as condições sob as
quais se produzem relações de antagonismo entre o movimento operário e o aparelho
jurídico.
Dessa forma, a correlação de forças entre classes que se reconhecem a partir de
lugares sociais diferentes nas relações de produção, no intercruzamento/disjunção das
sdrs, possibilita o reconhecimento da igualdade/diferença e do outro, mas são a tensão e a
resistência que fazem com que se retorne sempre ao mesmo ponto: a violência das leis.
Por outro lado, entre os saberes que circulam na FD jurídica, a propaganda
subversiva sempre será vista como perigo, sempre ressoará como uma lembrança de
destruição, por bombas de dinamite lançadas contra palacetes, contra cidades,
alarmando a população e merecendo, por isso mesmo, a mais formal condenação. Sabe-
se que, em liberdade, voltarão a constituir novas formas propagandistas, voltarão a
fundar jornais e a fazer “publicações perigosas” para a ordem pública e a realizar
reuniões secretas com intuitos anarquistas. Das buscas efetuadas, sabe-se pela apreensão
de numerosos livros e jornais considerados nocivos à autoridade por seus planos
criminosos. Logo, a essência da legislação está no fato de que aqueles que controlam a
violência organizada dispõem de poderes para forçar sua obediência, para fazer o que
querem que seja feito.
Isso porque, conforme Pêcheux, as palavras não têm sentido próprio; elas só
significam à medida que podem ser substituídas por outras, ou, ainda, mudam de sentido
271
ao passarem de uma formação discursiva para outra. As repetições são significadas ou
(re)interpretadas, levando-se em conta a constituição histórica dos sujeitos, as formações
discursivas em que se inscrevem, pois, da mesma forma que as palavras, os sujeitos
também não têm/constituem sentido em si mesmos; os sentidos são produzidos na
relação entre os interlocutores do discurso e nos níveis do intradiscurso e interdiscurso.
Isso equivale a dizer que, nas unidades discursivas acima, as relações parafrásticas
remetem ao mesmo fato, mas constroem outras significações, se considerarmos as
condições de produção de cada um dos locutores (empíricos): teoricamente, falam de
lugares distintos, em situações e momentos diferentes. As leis são feitas por pessoas que
governam por meio de violência organizada, conduzindo aqueles que se recusam a acatá-
las a sofrer pancadas à perda da liberdade e, a mesmo, à morte. Em síntese,
percebemos quais são os saberes mobilizados pela FD jurídica e que funcionam como
pré-construídos no nível do interdiscurso.
Embora as seqüências discursivas pareçam engajadas, por se tratar de formações
discursivas com saberes discursivos de naturezas diferentes FD jurídica, a FD
anarquista e a FD anarcossindicalista -, a paráfrase discursiva ocorre em termos de que
ambas parecem fundadas nos mesmos princípios e parecem, também, mobilizar os
mesmos pré-construídos. No entanto, podemos constatar que “as leis”, na FD jurídica,
contemplam um aprendizado no sentido de que todo cidadão deve aprender, assimilar e
cumprir aquilo que é “determinado” pelo Estado. Já, nas FDs anarquista e
anarcossindicalista, “as leis” dizem respeito a tudo aquilo que “agride” os direitos
naturais do homem, conforme pudemos constatar no que foi assinalado em cada sdrs
analisadas.
Desse modo, através da reconfiguração de saberes, da mudança de sentidos em
relação à FD dominante, mesmo que as fronteiras entre um e outro domínio tenham se
deslocado e o “fechamento” de uma unidade tenha aparentado estável, a luta ideológica
permanece e o homogêneo aparente sempre aponta para o heterogêneo.
Nesse ponto, observamos que os discursos de lideranças sindicais, entendendo que
têm assegurado espaço dentro dos “aparelhos ideológicos de Estado”, cumprem o papel
de alertar, criticar, negar, combater e incentivar o trabalhador a brigar por seus direitos.
Cabe pontuar também que são exatamente as posições contraditórias que caracterizam o
encaminhamento produzido na FDs anarquista e anarcossindicalista a respeito da lei,
que os elementos pré-construídos na prática jurídica remetem a uma prática condenada
272
pelos militantes, ou seja, o estreitamento das relações existentes entre governo e polícia
comprova que as penalidades aplicadas pelo Judiciário nem sempre são justas.
Em contraposição, as forças políticas que fazem parte da construção de uma
realidade e definem os seus limites dentro do processo da produção da lei como um
efeito do processo da luta de classes podem ser fundamentadas no conceito de classe
social, como o formulado em Poulantzas (1975, p. 13-14):
as classes sociais são conjuntos de agentes sociais determinados principalmente, mas não
exclusivamente, por seu lugar no processo de produção, isto é, na esfera econômica. (...) Para
o marxismo, o econômico assume o papel determinante em um modo de produção e numa
formação social: mas o político e o ideológico, enfim a superestrutura, desempenham
igualmente um papel muito importante. De fato, todas as vezes que Marx, Engels, Lênin e
Mao procedem a uma análise das classes sociais, não se limitam somente ao critério
econômico, mas se referem explicitamente a critérios políticos e ideológicos.
Segundo os autores, a história como espaço imaginário é suscetível de conclusões
práticas, como confronto entre a ditadura dos donos da língua e a causa da liberdade.
Em relação às nossas análises, levando-se em conta que a detenção dos meios de
produção incide sobre a imposição de normas em nome da natureza da língua, ocorre o
desmantelamento da classe, o cerceamento dos sentidos e do sujeito e a expulsão do que
é estranho; por meio de dispositivos das leis de segurança nacional exerce controle
impondo o silêncio.
As análises dos textos dos blocos I e II mostram que não podemos dizer que a
classe operária foi apática ou que não teve consciência de sua condição. Apesar do alto
percentual de estrangeiros, o nível político da classe operária não foi o mesmo durante da
Primeira República. A violência que marcou as relações de trabalho serve como uma
indicação, ao menos antes dos anos 1920, para avaliar os abusos de todo tipo cometidos
pela polícia, agindo tanto contra os brasileiros como contra os imigrantes. Daí a
conclusão de que as prisões policiais, sem processo, por tempo indeterminado, agravadas
pela aplicação de sevícias corporais, foram o meio visual de incutir boa conduta, e o
processo de depuração dos meios proletários, pelas deportações para lugares afastados,
foi admitido como normal, mesmo sem qualquer perturbação da ordem pública.
A generalização da violência policial, assim como o desrespeito por nomes legais
e a alta incidência de castigo físico brutal, constituía uma das práticas padrão da política
de Estado. Os empresários também puniam os operários por organizarem sindicatos ou
ingressarem neles. Ainda, ficou claro que, no geral, a ão violenta era mais das polícias
locais que dos grevistas. Toda ação operária era vista como uma ameaça à ordem e, para
273
se sentir segura, anula o direito à reunião, impondo o silêncio. Conforme Pinheiro e Hall
(1985, p. 105),
nem o sistema legal nem o processo eleitoral serviram para legitimar a ordem que prevalecia
na Primeira República. A dominação se fundamenta tão pesadamente na força e na violência
e goza de tão poucas outras sanções pode deixar os governantes vulneráveis à surpresas bem
bruscas. As greves gerais que irromperam nas grandes cidades, entre 1917 e 1920, devem
muito à conjuntura econômica específica desses anos, mas também serviram para indicar a
inesperada fragilidade do controle exercido pela classe dominante.
A maneira pela qual a consciência dos trabalhadores foi escamoteada e distorcida
em nome de sua suposta “apatia” ou falsa consciência sugere a interrupção da imigração.
Segundo os autores, os períodos de organização efetiva e de grande atividade operária na
Primeira República coincidem com interrupções da imigração em larga escala: 1906-
1907; 1911-1912;1917-1919.
Os imigrantes europeus o apontados como modelos de militância e experiência
política, ao mesmo tempo em que suas aspirações por uma mobilidade social ascendente
são consideradas obstáculos à formação de um forte movimento operário.
Se, em ambos os períodos (Primeira e Segunda Repúblicas), encontramos líderes
que traem o movimento operário e influência das dissidências anarquistas, é porque
todas as questões existentes para impedir as greves a repressão muito severa, o baixo
nível de qualificação de mão-de-obra e um mercado de emprego excedente de oferta
facilitavam demissões freqüentes para os empresários. “Essa falta deixa supostamente
um vácuo de poder, que é então preenchido pelo Estado” (PINHEIRO; HALL, 1985, p.
96).
A sua apatia e a falta de consciência entre os operários industriais, conforme
vimos na análise do texto do bloco II, diferem em relação a outros países, onde essa
relação é usada para explicar uma militância excepcional, de não-apatia. Durante o
Período da Segunda República vamos encontrar em muitas regiões importantes do Brasil
a incidência de greves e outras formas de mobilização em índices bastante altos e,
discutindo a Primeira República, a passividade da massa rural, quebrada somente por
explosões importantes, mas desprovidas de conteúdo.
Nessa espécie de trilha política que estamos percorrendo, chegamos, então, a um
fechamento temporário: aquele do encerramento de um texto científico que toca a
questão da memória de acontecimentos histórico-discursivos prontos para novamente
serem lidos e relacionados a outros trabalhos, que a heterogeneidade é constitutiva de
274
todo discurso e este texto, por extensão, nos possibilita, num espaço de resistência,
perseguir sujeitos que resistem ao rolo compressor de uma política de Estado repressiva,
como o que analisamos no interior desta tese. Chegamos a este ponto considerando
ainda que a prática política é, antes de mais nada, um trabalho de interpretação que
ganha vida na relação desse sujeito, nos termos de Pêcheux, conforme citação na epígrafe
que preside o início desta conclusão, “ardente”, desejante, imerso na linguagem e que
insistentemente ousa se revoltar.
É exatamente essa resistência que nos induziu a buscar suporte na identidade
desse sujeito, enquanto classe, um efeito de um processo discursivo constitutivamente
incompleto, contraditório e desigual, pois sempre que se considerar um resto a ser
contido e que encontraremos em outras discursividades, no/pelo interdiscurso, sob a
modalidade do pré-construído, do discurso-transverso e do discurso-outro, seja quando a
língua está em movimento, seja quando a história intervém. Além disso, o sujeito-
articulador que se recusa a assimilar/incorporar determinados saberes mostra que os
lugares e os modos de constituição de sentidos e sujeitos são desiguais no modo de fazer
e de praticar o político. E que os discursos que ressoam entre si nos permitem produzir e
ler nos frios espaços da semântica e reencontrar esse sujeito ardente (de que fala Pêcheux), que
mais uma vez retorna nas/às práticas político-discursivas da classe operária brasileira.
275
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