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TANIA JUREMA FLORES DA ROSA
A PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM HIPERTEXTO: OS HIPERLINKS COMO
ANÁFORAS
PORTO ALEGRE
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ESTUDOS DA LINGUAGEM
TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO
ANÁLISE DE DISCURSO
A PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM HIPERTEXTO: OS HIPERLINKS COMO
ANÁFORAS
TÂNIA JUREMA FLORES DA ROSA
ORIENTADOR(a): PROF.(a). DR(a). ANA ZANDWAIS
Dissertação de Mestrado em Teorias do
Texto e do Discurso, apresentada como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
PORTO ALEGRE
2006
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Dedicatória
Para o Marcel, é claro!
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AGRADECIMENTOS
Nesta etapa muitos são os agradecimentos, muitas são as pessoas que contribuíram
para que o trabalho esteja aqui pronto. Agradeço imensamente à professora Ana Zandwais
pela orientação, leitura atenciosa e por acreditar na proposta desta dissertação. Aos demais
professores do Programa de Pós-Graduação que estiveram sempre dispostos a escutar, a
compartilhar questionamentos e a buscar caminhos. Meus agradecimentos especiais à
professora e amiga Dinorá Fraga, cuja paixão pela docência e pelo fazer científico me
despertaram para este caminho. À minha irmã Neiva pelos momentos de troca e interlocução,
pela escuta atenta e carinhosa de minhas angústias e empolgações quando chegava das
aulas. Aos meus irmãos Luís, Mauro e Nei pela torcida e apoio permanente. Aos amigos de
todas as horas: meus pais.
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RESUMO
Nosso ponto de partida é de que o discurso representa a via de acesso privilegiada aos estudos
relativos ao texto aberto e múltiplo, como é o caso do texto digital. Dessa forma a análise das
materialidades eletrônico-discursivas encontra, na análise de discurso, um campo teórico-
conceitual vasto e possibilitador de olhares múltiplos e não-sistematizados, tendo em vista que
as teorias do discurso agem num campo de confluência com conceitos advindos de áreas
díspares, fator que confere à análise de discurso caráter epistemologicamente aberto e
heterogêneo. As questões fundamentais que norteiam este trabalho são: a) O que se faz
necessário mobilizar para promover a análise de discurso eletrônico, ou seja, para fazer com
que a teoria do discurso intervenha no domínio do virtual?; b) Quais seriam os deslocamentos
teórico-conceituais necessários para que possamos definir o texto digital como uma nova
unidade na internet e a emergência de uma materialidade eletrônico-discursiva? Inicialmente a
noção de texto precisa ser deslocada para a noção de hipertexto, o que significa promover
uma série de modificações em nossa unidade de análise. O texto entendido como lugar de
jogo de sentidos, de trabalho da linguagem e de funcionamento das discursividades”
(ORLANDI, 2003), deve dar lugar à entrada de características pertinentes ao texto digital.
Não se trata de uma mera diferença de suportes textuais. O texto digital tem um
funcionamento de sequencialização mais fluido através dos hiperlinks, os quais podem, no
âmbito das teorias do discurso, ser analisados segundo a categoria de anáforas discursivas,
impondo novos gestos de leitura, uma vez que se entrecruza a memória metálica/eletrônica
com a memória discursiva, e os links/ligações simbólicas reclamam o seu lugar no processo
discursivo. Para tanto, lançaremos mão da AD como suporte teórico para as análises
empreendidas, em vista da relação que pretendemos estabelecer entre os hiperlinks
hipertextuais e as chamadas anáforas discursivas, motivando, com essa análise, um olhar mais
atento para o atravessamento do interdiscurso (memória discursiva) no processo de linkagem
durante o percurso de leitura-navegação. Contudo, a entrada no campo teórico da AD, é
antecedida por uma trajetória pelos pressupostos da Lingüística textual (LT), cuja finalidade
reside em pensar sobre as contribuições e as limitações que esta disciplina traz para os estudos
do hipertexto.
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Palavras-Chave: Hipertexto – Análise de Discurso – Anáforas Discursivas –
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RÉSUMÉ
Notre point de départ est que le discours représente la voie d’entrée privilégiée aux études
concernant le texte ouvert et multiple, tel que le texte numérique. Ainsi l’analyse des
matérialités électroniques-discursives trouve, dans l’Analyse du discours, un cadre théorico-
conceptuel large et permetteur de regards multiples et non-systématisés, tenant en compte
que les théories du discours agissent dans un champ de croisement de concepts venus de
domaines singuliers, ce qui lui accorde un caractère épistémologiquement ouvert et
hétérogène. Les questions essentielles qui dirigent ce travail sont les suivantes : a. Qu’est-ce
qu’il faut mobiliser pour promouvoir l’analyse du discours électronique, c’est-à-dire pour
faire intervenir la théorie du discours au domaine du virtuel ? b. Quels seraient les
déplacements théorico-conceptuels nécessaires pour que nous puissions définir le texte
numérique comme une nouvelle unité sur l’Internet et l’émergence d’une matérialité
électronique-discursive ? D’abord la notion de texte doit être déplacée vers la notion
d’hypertexte, ce qui signifie produire une rie de modifications sur notre unid’analyse. Le
texte, compris comme « lieu de jeu de sens, de travail du langage et de fonctionnement des
discursivités » (ORLANDI, 2003), doit faire place aux caractéristiques pertinentes au texte
numérique. Il ne s’agit pas d’une simple différence de supports textuels. Le texte numérique
présente un mode de séquentialisation plus flou au moyen des hyperliens, qui peuvent, dans le
cadre des théories du discours, être analysés selon la catégorie d’anaphores discursives, en
imposant de nouveaux gestes de lecture, puisque l’on entrecroise la mémoire
métallique/électronique avec celle discursive, et les liens/liaisons symboliques demandent
alors sa place dans le processus discursif. Pour ce faire, nous utiliserons l’AD comme base
théorique pour les analyses entreprises, envisageant le rapport que nous voulons établir entre
les hyperliens textuels et les dites anaphores discursives, et stimulant, par même, un regard
plutôt attentif au passage de l’interdiscours (la mémoire discursive) au travers le processus de
linkage lors de la démarche de lecture-navigation. Pourtant l’entrée au domaine théorique de
l’AD est précédée d’un chemin parcouru par les présupposés de la Linguistique textuelle (LT)
dont la finalité consiste à évaluer les contributions et les limites qu’apporte cette discipline
aux études de l’hypertexte.
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Mots-clés : Hypertexte, Analyse du Discours, Anaphores discursives
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................10
1 A LINGÜÍSTICA TEXTUAL: PARTINDO DE UM PONTO DE VISTA CRÍTICO........14
1.1 A Coesão Textual: princípio uniformizador do texto.....................................................23
1.1.1. Halliday e Hasan: a busca por padrões de textualidade..........................................23
1.1.2. Beaugrande e Dressler: uma tentativa de abertura do texto ...................................27
1.1.3. Henrique Bernárdez: o texto como objeto complexo.............................................32
1.2 O recurso da coesão: caso específico da referência anafórica........................................37
1.2.1 A Anáfora e a Isotopia Textual ...............................................................................39
1.2.2. Extrapolando os Domínios da Lingüística Textual: da referência à referenciação 41
1.2.3. Voltando à Anáfora como Objeto de Discurso.......................................................45
1.3 Um Olhar sobre o Hipertexto: o que a lingüística textual nos diz..................................52
2. PERCURSO EPISTEMOLÓGICO: EM DIREÇÃO À ANÁLISE DE DISCURSO
FRANCESA .............................................................................................................................72
2.1 ANÁLISE DE DISCURSO: Em busca do caráter material do sentido..........................75
2.1.1 De que sujeito a AD trata? Sobre a interpelação, FD e funcionamento da posição-
sujeito ...............................................................................................................................80
2.1.2 Sobre a constituição do sentido em AD: o trabalho da interpretação......................87
2.1.3 Da noção de contexto ao conceito de condições de produção do discurso .............95
2.1.4 Análise de discurso e uma nova abordagem da textualidade ..................................99
2.2 Pensando na anáfora discursiva e no processo de articulação de pré-construídos...109
3 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O OBJETO DE ESTUDO – HIPERTEXTO: O
TEXTO ESTILHAÇADO......................................................................................................116
3.1 A Virtualização do Texto .............................................................................................116
3.2. Tecnologia: Determinante ou Condicionante?............................................................125
3.3. Pontuando a Experiência do Hiperleitor......................................................................136
3.4 Por que Pensar os Hiperlinks como Anáforas no Hipertexto? .....................................140
3.5 Procedimentos Metodológicos .....................................................................................148
3.5.1. Condições de Produção do Corpus.......................................................................150
3.5.2. Condições de Produção dos Recortes...................................................................154
3.5.3. As condições de produção dos hipertextos...........................................................156
3.5.4 BLOCO I: Sobre o texto digital e sua interface com os processos de leitura
tradicionais .....................................................................................................................158
3.5.5 BLOCO II: A reflexão sobre o percurso de leitura-navegação.............................177
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................205
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................208
ANEXOS................................................................................................................................212
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INTRODUÇÃO
Para apresentar os objetivos dessa dissertação, começaremos parafraseando Roland
Barthes (1970) para quem o texto não é coexistência de significados, mas passagem
transversal; sendo assim, o autor enfatiza que um texto não responde a uma interpretação,
mas é uma explosão, uma disseminação. Com base nessa idéia, destacamos a proposta
fundante desta pesquisa: pensar na pluralidade dos significados que se constroem durante a
leitura e, primordialmente, nas relações estabelecidas durante o processo interpretativo em um
novo suporte de leitura e escritura: o hipertexto. O texto, assim concebido, não apresenta um
centro, nem um começo ou um fim, ele é, conforme Snyder (1998) nos aponta um texto plural
sem um centro discursivo, sem margens, que não é produzido por um único autor. Como um
texto eletrônico que está sempre se modificando e se transformando, ele é associativo,
acumulativo, multi-linear e instável. Isso nos conduz a refletir, nas páginas que seguem,
sobre a dinâmica existente entre as novas tecnologias e a sociedade contemporânea,
procurando investigar as praticas de leitura e escritura que emergem com o surgimento dos
textos em rede e estruturados pelo sistema de linkagem.
As bases teóricas que orientam a reflexão sobre o hipertexto e as novas relações de
leitura que estabelece são as da Análise de Discurso Francesa (AD), cujos pressupostos nos
permitem analisar o texto de uma perspectiva teórica que rompe com os tradicionais estudos
de texto e textualidade produzidos à moda estruturalista. Ensejando a questão da textualidade
e dos processos de produção de sentidos como relações historicamente e socialmente
marcadas, os conceitos difundidos pelas disciplinas destinadas ao estudo do texto no século
XX encontram na AD um deslocamento e um espaço em que o sujeito e a historicidade
intervêm nas relações com a língua, o que reflete o sentido como ligado às práticas
discursivas e não mais como um efeito de homogeneidade e transparência.
Em vista disso, propomos que se pense no papel da historicidade, das relações
interdiscursivas que intervêm durante a linkagem de textos na web para a formação de um
hipertexto. Salientam-se, dessa forma, questões como: Qual o papel da memória discursiva
neste processo de leitura? Que tipo de prática de leitura se impõe ao homem em interface com
a máquina? Será uma prática de leitura menos historicizada culmina numa tecnologização do
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saber, fazendo da tecnologia um meio nefasto de produção de conhecimento que continua
numa atitude positiva de objetificação do homem e subjetivação do objeto? Será que está se
operando uma compactação do saber e do pensar? Será que este pensar está na era micro?
Ainda, os parâmetros de textualidade continuam pautados nos mesmos critérios usados pelas
Lingüística de Texto? Ou será que está em pauta uma nova textualidade que emerge junto
com um novo texto?
Na busca não por respostas completas para estes questionamentos, mas buscando
sempre caminhos para a reflexão continuada, encontramos na AD um campo de
desmistificação das concepções de transparência da língua e literalidade do sentido que
permeiam a lingüística. A teoria do discurso de que lançamos mão tem um olhar atento para
relação da língua com a história das formações sociais. Assim, deve-se compreender que a
língua tem status político, não funciona sem intervenção deste e das relações ideológicas
engendradas socialmente. Assim, a AD propõe a quebra da ilusão de encontrar o sentido do
texto, para justamente incorporar ao termo discurso o princípio de que não objetividade na
língua, não neutralidade e unidade do sentido, dado o fato de que a língua é social e por
isso, apreendida na história, os sentidos que ela produz são efeitos dessa historicização.
Para dar conta desta reflexão começamos lançando um olhar crítico sobre a
Lingüística Textual (LT) e os parâmetros de textualidade que esta corrente teórica difundiu
para o tratamento de textos. Segundo a perspectiva teórica da LT o texto é um “todo” gerador
de sentido, uma totalidade organizada segundo os princípios básicos da coesão e da coerência.
Esse ponto de partida se fez necessário em função de que as “lingüísticas de textos”
procuraram enquadrar o hipertexto nos princípios de textualidade tradicionalmente usados
para estudar textos em suporte escrito. Obviamente, temos em conta que a existência de
hipertextos não depende apenas do suporte digitalizado, pois estruturas linkadas e em rede
existem muito tempo e se fazem presentes em nosso dia-a-dia sob a forma de referências
cruzadas, de intertextos e de outras formas de retomadas com as quais já estamos habituados a
trabalhar. Este primeiro capítulo intitulado LINGÜÍSTICA TEXTUAL: Partindo de um ponto
de vista crítico, aborda os conceitos basilares que os estudos da linguagem dispensaram no
tratamento do objeto texto, encerrando-se com uma breve reflexão sobre as análises que
lingüistas de texto fizeram sobre o hipertexto. Nossas reflexões iniciais, portanto, nos dão
suporte e passagem para pensar o hipertexto sob outros prismas que não o da linearidade e da
transparência do objeto.
A partir da reflexão acerca do tratamento “clássico” de textos e de sua pouca
contribuição para uma abordagem mais complexa e menos hermética deste novo texto que
surge, passamos a explanar as bases teóricas que nos dão suporte para o desenvolvimento de
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nossa proposta. O segundo capítulo coloca em tela, portanto, os pressupostos epistemológicos
da AD. Passando pela reflexão do lugar da AD no cenário dos estudos da linguagem, pelos
conceitos fundantes dessa linha de estudo da linguagem, buscamos pensar a teoria e os
caminhos que ela nos abre para a análise do objeto de estudo em questão. Mobilizando
conceitos como condições de produção, interdiscurso, anáfora discursiva, textualidade
(textualização), entre outros, seguimos trilhando um caminho que nos auxiliasse na passagem
dos conceitos fixos que a LT produziu para conceitos menos estéreis nos estudos do texto e do
discurso.
No terceiro e último capítulo, buscamos a reflexão sobre o objeto de estudo, a partir
das análises dos percursos de navegação e das entrevistas realizadas com acadêmicos. Estes
dados nos permitem aceder ao processo de produção de sentidos durante a navegação pela
rede digital. Com as entrevistas podemos indagar o leitor acerca desse novo modo de ler e de
como os sentidos são produzidos, retomados num ambiente de leitura em que não há um texto
centralizador, mas redes de textos que se interligam em associação contínua. Assim,
começamos por uma explanação sobre o evento da virtualização do texto, a qual é
acompanhada por uma discussão filosófica acerca do surgimento de um novo modo de ler e
escrever em meio a era digitalizada. O advento das novas e rápidas tecnologias produziu uma
avalanche de produções teóricas que não podem deixar de ser colocadas em pauta,
principalmente porque a materialidade que está em debate é escrita manipulada em ‘bits’. De
forma breve expomos dois modos de encarar a digitalização do texto: uma com base em
teóricos que acreditam no pleno desenvolvimento das técnicas e na constante transformação
do sujeito. Essa primeira reflexão centra-se basicamente nas análises de Landow (1995, 1997)
e Pierre Lévy (1993, 1996, 1999, 2000, 2001) que elencam como tecnologias intelectuais as
novas tecnologias oriundas dos ambientes informatizados. Para estes autores as técnicas que
surgem nunca estão separadas do sujeito, de forma que, se em sua estrutura são artificialmente
binárias, em seu funcionamento, com a língua como materialidade, são eminentemente
ternárias, promovendo uma plena subjetivação do sujeito que entra em contato com elas. Estes
autores trazem concepções positivas acerca das novas tecnologias e do papel que a memória
tem em seu funcionamento. Por outro lado, a segunda linha de reflexão a ser destacada
encontra escopo em teóricos mais céticos em relação à invasão das novas tecnologias no
ambiente cultural e intelectual como Ellul (1964, 1968), Baudrillard (1990, 1999, 2002), Paul
Virílio (1999) os quais citam um grande apagamento de memória possibilitado não pelo
ambiente digital, mas pelas novas técnicas que surgem com o progresso social. Esta reflexão
vem de encontro à noção de tecnologização de saber promovida pela tecnologia, de forma que
foi dado à máquina (computador) status de saber cristalizado e correto, principalmente no que
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tange ao uso da grande rede digital. Este é um ponto de vista que deve ser visto no quadro da
memória, a fim de sabermos se esta tecnologização acaba por apagar, ou melhor, leva os
indivíduos a acreditarem de tal forma na máquina, que acabam, ideologicamente, não
recorrendo à sua memória historicizada na produção de conhecimentos.
Contrapondo dois pontos de vista diferenciados, pretendemos abrir espaço para
reflexão acerca de qual seja realmente o papel das novas tecnologias hoje e que implicações
ocorrem na produção de conhecimento e na relação do homem com sua historicidade e
memória discursiva. Esse debate abre o capítulo destinado às análises dos processos de
leitura-navegação na web. Esta última parte do trabalho compõe-se de um corpus formado
pelas entrevistas realizadas com os leitores-navegadores, os quais, após uma prática de
pesquisa em hipertexto, refletiram sobre seus percursos, sobre a rede de sentidos que se
estabeleceu e sobre a motivações interdiscursivas que intervieram nos acessos realizados.
O que temos a dizer neste momento, em que uma gama de caminhos se abre diante dos
possíveis leitores deste trabalho, é que não se trata de uma escritura linear e não é para sê-lo.
Buscamos os cruzamentos, as interferências, a interlocução constante. Isso é notório na
constituição do percurso do trabalho e foi assim que ele se construiu, devido aos cruzamentos,
às múltiplas facetas que foram sendo vislumbradas no decorrer do caminho. Por isso, os
questionamentos que mobilizaram que deram impulso à escritura desta dissertação não
encontraram repostas definitivas, mas faíscas, pequenos matizes que podem ainda gerar uma
grande e ampla discussão.
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1 A LINGÜÍSTICA TEXTUAL: PARTINDO DE UM PONTO DE VISTA CRÍTICO
As clássicas visões sobre o texto têm operado com a perspectiva de unidade temática,
o que pressupõe um centro estático e uma busca incessante por unidade e homogeneidade. Tal
perspectiva é caudatária de uma tradição nos estudos lingüísticos baseada na uniformidade da
língua, na transparência de sua expressão e, primordialmente, na denegação do sujeito que a
mobiliza. Herdeiros dessa concepção homogeneizante da ngua e dos sentidos, os estudos
destinados à análise de textos não deixaram de cercar-se dos mesmos pressupostos teóricos e
metodológicos.
Os primeiros estudos do texto se caracterizaram pela Análise Transfrástica, como uma
extensão dos estudos frasais. Nesse momento, os textos eram submetidos aos mesmos
critérios de investigação usados para orações, sendo considerados uma seqüência coerente de
enunciados ou uma sucessão de unidades lingüísticas. Até então, não era dada autonomia ao
texto, pois contemplado segundo os mesmos parâmetros de análise dos objetos “típicos” com
que a ciência lingüística trabalhava (sentença, frase).
Solidificando o discurso de uma lingüística autônoma, um segundo momento
1
foi
destinado à construção de Gramáticas Textuais, as quais surgiram devido à impossibilidade
de explicar fenômenos lingüísticos como os textos através de uma gramática oracional.
Advindo da impossibilidade de encerramento do texto em um sistema de regras abstratas, o
projeto de formulação de gramáticas textuais representou uma tentativa de entender um
sistema subjacente e gerador do texto como unidade auto-regulável. Assim, apesar de estas
gramáticas legitimarem uma descontinuidade entre enunciado e texto, os princípios em que se
baseava sua construção continuavam sendo os da morfologia, da sintaxe e de uma semântica
formal. Embora estas gramáticas vislumbrassem o texto como objeto autônomo, ainda
estavam bastante presas, ou ao modelo de gramática estrutural ou de gramática gerativa. Em
vista disso, podemos elencar três tarefas elementares a que as gramáticas textuais se
propuseram:
1
No Brasil, tem-se dados do desenvolvimento de gramáticas textuais a partir da década de 1970.
15
a) “Verificar o que faz com que um texto seja um texto
2
, isto é, determinar os
princípios de sua constituição, os fatores responsáveis por sua coerência, as
condições em que se manifesta a textualidade;
b) Levantar critérios para a delimitação de textos, que a completude é uma
das características essenciais do texto;
c) Diferenciar as várias espécies de textos”(FÁVERO E KOCH, 2002:14)
[grifos nossos].
Efetivamente, tais princípios correspondem ao objetivo imposto para essas gramáticas
que, à luz do trabalho desenvolvido pelas gramáticas oracionais, visavam à formalização e
normatização do objeto de estudo, consistindo num sistema de regras de boa formação textual
e de categorização. Esse empreendimento não deixava de ser mais um projeto estruturalista
para os estudos da linguagem, apostando na concepção de que o sentido pode ser esgotado na
referência ao sistema, tal como é concebida a língua. A questão do sentido fica, assim,
reduzida à ordem do previsível, da combinatória permitida pelo sistema da língua como
objeto pleno. No entanto, com o desenvolvimento dos estudos acerca do texto, o caráter
aberto deste objeto salientou a impossibilidade de operar tal redução, que, enquanto
linguagem em uso, há que ser levado em consideração em seu estudo, um exterior que
interfere no sistêmico. Esse exterior é que marca a distância fundamental entre um texto e os
objetos clássicos dos estudos da linguagem.
Respectivamente, portanto, tiveram destaque as Teorias do Texto
3
que procuraram dar
maior visibilidade e amplitude a fatores extralingüísticos. Os limites impostos ao objeto de
investigação foram sendo diluídos, contemplando aquilo que do exterior está presente no
texto. Trata-se da perspectiva pragmática que coloca em evidência a necessidade de analisar a
linguagem em uso e os fatores extra-textuais que podem influenciar na comunicação. Foi,
então, pelo viés do texto, como unidade de comunicação concreta, pela relação entre a língua
e os usuários, numa determinada situação de comunicação, que a perspectiva pragmática
encontrou espaço nos estudos do texto. As fronteiras interior e exterior são fragilizadas.
Cabe reiterar, por outro lado, que, mesmo permitindo um deslocamento do campo
sistêmico para o campo da prática, a pragmática encontrada na lingüística do texto, perfilava-
se em um quadro de limitações e sistematizações que em muito pouco diferenciaram e
alargaram as fronteiras entre objetos sistêmicos e o texto enquanto objeto discursivo-
pragmático, não rompendo epistemologicamente com as noções estruturalistas. As teorias do
2
Ressaltamos que o termo Texto, no singular, representa uma virtualidade, sendo o ideal a que todos os textos
devem alcançar. Trata-se de uma unidade padrão.
16
texto limitaram a pragmática a componente, a exterior que intervém apenas depois que o
sistema está sintagmatizado, trata-se de uma práxis que permanece abstrata, pois não está
de fato situada em práticas concretas, com sujeitos concretos.
Parece-nos relevante destacar, portanto, que o tratamento dispensado aos textos
firmou-se sobre dois pilares fundamentais e que solidificaram os pressupostos de uma
disciplina sistêmica, recortada segundo os moldes da lingüística cientifica: a) o estruturalismo,
com as análises das propriedades específicas do texto, enquanto sistema de regras; b) o
gerativismo, que forneceu um modelo de gramática, cujas bases estavam em descrever
estruturas semânticas subjacentes aos variados tipos de textos. Pautados pelos métodos
estruturalista e gerativista, os estudos dos textos assumiram uma característica extensionista
em relação à lingüística praticada até então, de forma que o texto representou, nesse âmbito,
um objeto de maior extensão, descritível por regras de boa formação. A concepção de texto
como linguagem em uso apresentou-se reduzida e opacificada, o que levou a subjugar o papel
do sujeito e do contexto de comunicação na formação de textos.
É plausível verificar que sob o tulo Teorias do Texto, uma pluralidade de enfoques
foi abarcada. Nesse sentido, observou-se, a partir da década de 1970 a existência uma “certa”
evolução com os estudos mais recentes de Lingüística Textual, os quais têm se auto-
referenciado por terem uma perspectiva mais ampla
4
. Orientados por uma oposição a
concepções estáticas em que o texto é um sistema uniforme, estável e abstrato, esses estudos
perspectivam a ação do sujeito no funcionamento da linguagem e a inserção dos textos em
situações concretas de comunicação a que se convencionou designar contexto.
Em contrapartida, mesmo com o intuito de ultrapassar o nível de produto, acabado e
definido, próprio de uma ordem estrutural, para entender o texto como processo, orientado
pela construção de sentidos que extrapolam os limites do sistemático; tais características não
são constatadas, efetivamente, nesses estudos, pois o texto continua no âmbito do “tangível”,
que a lingüística textual trabalha com textos delimitados, cujo início e cujo final são
determinados de um modo mais ou menos explícito (KOCH, 2002:18); ou seja, a amplitude
dada ao conceito de texto não o afasta consideravelmente de uma perspectiva sistêmica e
reducionista e a inserção do conceito de contexto passa a ser reduzida a elemento exterior que
intervém apenas como pano de fundo da cena de comunicação, desconsiderando questões
sociais e históricas.
3
A designação no plural remete a uma diversidade de enfoques que predominaram nos estudos do texto, apesar
de os pressupostos básicos que fundamentam tais enfoques encontrarem bases comuns.
4
Note-se que não há de fato um deslocamento epistemológico, mas apenas um alargamento do conceito de texto,
o que nos leva a crer que as bases são comuns. Por isso referenciamos uma “certa” evolução.
17
A fim de representar as noções de texto difundidas pelas teorias do texto e de justificar
nosso ceticismo em relação aos avanços que se dizem empreender estas correntes da LT,
buscamos dois conceitos básicos e que trazem a primazia de alguns aspectos definidores do
objeto texto:
a) Todo texto caracteriza-se pela textualidade (tessitura), rede de relações que fazem
com que um texto seja um texto (e o uma simples somatória de frases), revelando
uma conexão entre as intenções, as idéias e as unidades lingüísticas que o compõem,
por meio do encadeamento de enunciados (KOCH, 1984:21) [grifos nossos].
b) [...] poder-se-ia conceituar o texto como uma manifestação verbal, constituída de
elementos lingüísticos selecionados e ordenados pelos falantes, durante a atividade
verbal, de modo a permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão de
conteúdos semânticos, em decorrência da ativação de processos e estratégias de ordem
cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo com práticas sócio-
culturais (KOCH, 1997:22) [grifos nossos].
Nota-se que essa perspectiva teórica está voltada para o texto como um todo completo,
intencionalmente construído, em que idéias, intenções e unidades lingüísticas estão
conectadas como se as unidades lingüísticas fossem etiquetas das idéias do sujeito, dando
legitimidade ao discurso da transparência na linguagem. Logo, questionamos: como a
exterioridade intervém, se os sentidos estão pré-estabelecidos? Como não fazer apenas
depreensão de conteúdos semânticos se há, nitidamente, a primazia da seleção, ordenação e
homogeneização dos sentidos propostos? Acreditamos, dessa forma, que a concepção de
práticas sociais, que intervêm na produção textual, denota um contexto e um sujeito
idealizados, em que o texto é uma via de acesso à troca de informações límpidas, um espaço
de combinação onde a previsibilidade se sobrepõe aos deslizamentos dos sentidos potenciais
que o acompanham.
Trazemos à baila, para tanto, três direções de pensamento nas quais a Lingüística e,
por extensão, a lingüística do texto, esteve empenhada. Trata-se das seguintes definições,
segundo Koch (2002):
a) Concepção de língua como representação do pensamento em que o sujeito,
conscientemente, é senhor absoluto de sua língua (sujeito cartesiano), sendo, portanto
o texto um produto lógico do pensamento, com sentidos pré-existentes à ação do leitor
sobre ele;
b) Concepção de língua como instrumento de comunicação em que o sujeito compartilha
do código com o leitor, sendo o texto uma informação a ser decodificada;
18
c) Concepção dialógica e interacional
5
de língua, em que o sujeito constrói o texto e ao
mesmo tempo é construído, neste caso, a passividade não é uma característica do
sujeito, ele é mais ativo e produtor de sentidos pelo fato de que intervêm no campo
textual questões de ordem social, cultural. O texto é um espaço de construção de
sentidos.
De acordo com o exposto, acentuamos que os estudos sobre o texto incidiram sobre
questões da ordem ou da supremacia da língua sobre o sujeito, ou deste sobre a língua e, num
último caso, de negociação entre ambos.
Essa linha teórica mais “ampla” (c) prima por um texto que não está fechado, cujos
sentidos não são dados previamente, mas construídos no decorrer da interação, por uma ação
integrada do produtor e receptor. Procura recusar que a língua seja representação do
pensamento, que o texto seja um produto lógico a ser captado por um leitor/ouvinte passivo.
Em vista disso, é salientado o lugar primordial das lacunas de sentido nos textos (implícitos)
como propriedades constitutivas da interação verbal, sendo tais lacunas detectáveis no
contexto sóciocognitivo. Assim, é enfatizada a importância do entendimento de que o sentido
de um texto é, portanto, construído na interação texto-sujeitos (ou texto co-enunciadores) e
não algo que preexista a essa interação (KOCH, 2002:19).Entretanto, o que se vê é a
reiteração de um discurso permeado pela ordem da literalidade do sentido:
[...] espera-se sempre um texto para o qual se possa produzir sentidos e procura-se a
partir da forma como ele se encontra lingüisticamente organizado, construir uma
representação coerente, ativando, para tanto, os conhecimentos prévios
6
e/ou tirando
as possíveis conclusões para as quais o texto aponta [...] (KOCH, 2002:19) [grifo
nosso).
Consideramos, por conseguinte, que, por mais que se procure contemplar uma abertura
no processo de construção de sentidos, o lugar de onde enunciam os pesquisadores do texto
ainda é aquele que prima pelo fechamento do sentido num sistema ideal, embasando-se na
centralidade dos sentidos do/no próprio texto, como construto organizado e planejado,
conforme segue, segundo Koch:
É claro que esta atividade - construção dos sentidos do texto - compreende, da parte
do produtor do texto, um “projeto de dizer”; e da parte do interpretador
5
As teorias sócio-interacionais reconhecem a existência de um sujeito planejador/organizador que, em sua inter-
relação com os outros sujeitos, vai construir um texto, sob a influência de uma complexa rede de fatores, entre os
quais a especificidade da situação, o jogo de imagens recíprocas, as crenças, convicções, atitudes dos
interactantes, conhecimentos (supostamente) partilhados, as expectativas mútuas, as normas e convenções cio-
culturais (KOCH, 1997).
6
Trata-se do conjunto de conhecimetnos construído sócio-culturalmente, armazenado na memória, sob a forma
de modelos cognitivos globais como “frames”, esquemas, “scripts”, planos.
19
(leitor/ouvinte), uma participação ativa na construção do sentido, por meio da
mobilização do contexto, a partir das pistas e sinalizações que o texto lhe oferece.
Produtor e interpretador do texto são, portanto, “estrategistas”, na medida em que,
ao jogarem o “jogo da linguagem”, mobilizam uma série de estratégias de ordem
sociocognitiva, interacional e textual – com vistas à produção do sentido (2002:19).
Koch ratifica esta concepção de texto como “planejamento” e dos
produtores/receptores como “estrategistas”, descrevendo as peças do “jogo da linguagem” que
menciona à maneira mais formalista possível:
1) “produtor/planejador, que procura viabilizar o seu “projeto de dizer”, recorrendo a
uma série de estratégias de organização textual e orientando o interlocutor, por meio
de sinalizações textuais (indícios, marcas, pistas) para a construção de possíveis
sentidos;
2) o texto, organizado estrategicamente de dada forma, em decorrência das escolhas
feitas pelo produtor entre as diversas possibilidades de formulação que a língua lhe
oferece, de tal sorte que ele estabelece limites quanto às leituras possíveis;
3) o leitor/ouvinte, que, a partir do modo como o texto se encontra lingüisticamente
construído, das sinalizações que lhe oferece, bem como pela mobilização do contexto
relevante à interpretação, vai proceder à construção dos sentidos” (2002:19) [grifos
nossos].
Acompanhando a ordem de pensamento da autora, nestas explanações, cabe fazer as
seguintes ressalvas: se o sujeito é produtor/planejador, cujo projeto de dizer é
estrategicamente organizado a fim de orientar o interlocutor para os sentidos possíveis; se o
texto está na ordem da formulação perante uma gama de escolhas lingüísticas realizadas pelo
produtor que, intencionalmente, amarra os sentidos, deixando possíveis apenas os sentidos
convenientes à organização realizada e, ainda, se ao leitor/ouvinte é permitida apenas a
construção de sentidos possíveis e apontados, orientados pelo produtor, não estará havendo
uma involução, continuando o sujeito na ordem da supremacia do homem sobre a língua,
reservando a esta um lugar de representação ideal do pensamento e ao leitor/ouvinte ainda um
lugar de passividade?
Importa mencionar que, nesse jogo da linguagem, a noção de contexto é responsável
pela atomização ou o do texto, pois tal conceito recobre fatos importantes como: a)
nenhuma análise lingüística pode ser empreendida sem levar em conta elementos exteriores,
dado que é impossível fazer análises isoladas; há sempre um fora da língua que nela faz eco; e
b) esse exterior é passível de ser elidido em prol de uma cristalização das situações de
20
comunicação. Assim, a constatação de que o contexto, tal como previsto na primeira
perspectiva, poderia levar à perda da hegemonia da estrutura, levou os estudos do texto a
buscarem um aporte teórico que sustentasse uma concepção de contexto relevante dentro de
uma ordem formal, justamente a fim de que o deslizamento de sentidos não encontrasse
espaço e que a estrutura continuasse comandando os sentidos. Para tanto, buscando um
encerramento do conceito de contexto, a LT adotou a teorização de Grice
7
(1975) para a teoria
dos atos de fala (no âmbito da lógica formal) como forma de regramento do uso do contexto
para evitar possíveis ambigüidades.
Foram elencadas, então, as máximas conversacionais de Grice e, entre elas, com
referência ao contexto de comunicação, a Máxima da Relevância
8
que consiste na adequação
da comunicação a uma convenção, conforme Koch :
No momento da interação, cabe ao interlocutor proceder a uma seleção do contexto
adequado à construção do sentido do texto. Em obediência à Máxima da Relevância
(Grice, 1975) e com base em seu modelo do interlocutor, o falante/escritor verbaliza
somente as unidades referenciais e as representações necessárias à compreensão e
que não possam ser deduzidas sem esforço pelo leitor/ouvinte por meio de
informações contextuais e/ou conceituais (Princípio da Seletividade). [...] Postula-se
que os interpretantes desenvolvem estratégias para o processamento eficaz do texto e
para a seleção apropriada do contexto, em particular (2002:32) [grifo nosso].
Com efeito a concepção de contexto acentuada até então acaba por sobrepor-se à
concepção de práticas sócio-culturais, para salientar uma visão de contexto como convenção,
como acordo entre sujeitos ideais, numa sociedade ideal, numa situação de interlocução ideal,
dado que para que duas ou mais pessoas possam compreender-se mutuamente, é preciso que
seus contextos cognitivos sejam, pelo menos, parcialmente semelhantes (KOCH, 2002:23).
Aliada, a essa designação de contexto como homogeneidade está a existência de um sujeito
cartesiano.
7
Nos limitaremos aqui a explanação do tópico que concerne aos nossos estudos, sem adentrar na teoria de Grice.
Na teoria de Grice o sentido é pensado como intenção do falante, que ele comunica ao ouvinte na medida do
reconhecimento da intenção que teve. Estamos aqui diante de um certo tipo de psicologismo, em que o sujeito da
linguagem é tomado como dono de suas intenções, precedendo seu próprio dizer. Para maiores esclarecimentos
ver GRICE, H.P. Logic and Conversation, 1967
8
A Máxima da Relevância pressupõe que as falas sejam apropriadas às necessidades imediatas da situação de
comunicação, de forma a não ferir o Princípio da Cooperação. Contudo, Grice não deixou de levar em conta o
fato de que há focos de relevância diferentes, dado que o que é relevante para alguém pode não ser para seu
interlocutor: Sob a categoria da RELAÇÃO, coloco uma única xima, a saber “seja relevante”. Embora a
máxima em si seja muito concisa, sua formulação oculta vários problemas que me preocupam muito: questões a
propósito de que tipos de foco de relevância podem existir, como se modificam no curso da conversação, como
dar conta do fato de que os assuntos da conversação são legitimamente mudados, e assim por diante(GRICE,
1982 [1975]:87).
21
Tomando como base, por conseguinte, o direcionamento dado aos estudos do texto de
um modo geral ratificamos que a Lingüística Textual, mesmo almejando concepções mais
complexas acerca do entendimento de texto e língua, mesmo contemplando a importância da
pragmática, permanece conflitiva e problemática, encerrando o texto em um sistema de regras
que o fazem um construto, planejado, organizado, cujas sinalizações orientam o interlocutor a
um caminho ou a caminhos possíveis, mas sempre previsíveis. Neste caso o texto é da ordem
da construção consciente e ordenadora.
Assim, o autor é sempre centralizador de uma mensagem e o leitor seu receptor. E por
mais que sejam destacadas ações extra-textuais e as situações comunicativas como elementos
fulcrais, o trabalho estará sempre voltado a atenuar as fronteiras que podem estabelecer para o
texto um lugar exterior ao sistema. Essa falta de clareza dos limites entre texto e objeto
puramente lingüístico descaracteriza a própria definição que a LT dá a seu objeto: “linguagem
em uso”.
Com base no exposto, notamos que a LT busca como critério fundamental para a
produção de textos a necessidade do cerceamento do processo interpretativo reduzindo o
sentido de “linguagem em uso”. Logo, o que leva à quebra dos sentidos intencionados
consiste em falácia a ser resolvida, tal como segue:
Sempre se fazem muitas inferências a partir dos elementos de um texto. Como
limitar essas inferências apenas às necessárias e/ou relevantes à interpretação
autorizada pelo texto e desejada pelo seu produtor? [...] um problema que se levanta
para toda a tentativa de incorporar o conhecimento do mundo ao processo de
compreensão do texto é encontrar um meio de limitar a incorporação de dados
desse conhecimento ao estritamente relevante na interação. (KOCH e
TRAVAGLIA, 2000: 72)
De Beaugrande e Dressler (1981) tomamos a noção de arbitrariedade como prejudicial
ao processo interpretativo. Os autores enfatizam que as objeções ao uso das inferências, na
explicação do processo de compreensão de textos ou como parte do modelo que representaria
esse processo, ocorrem por duas razões: primeiro porque as inferências realizadas neste
processo seriam escolhidas arbitrariamente e, segundo, porque as inferências admitidas são
poucas e os usuários podem fazer muitas outras. Esse aspecto contempla o fato de que os
estudos 4do texto têm se destinado a operar limitações da interpretação, uma vez que, a
arbitrariedade de que falam Beaugrande e Dressler (Ibidem) está implicitamente sendo
destacada como uma falácia, conforme explanado acima. O movimento arbitrário do
leitor/ouvinte pode fazer com que os sentidos permitidos e admitidos deslizem, se
multipliquem, fazendo intervir outros dizeres sobre o dizer do produtor do texto, levando a
interpretar em outro contexto (não idealizado), trazendo o impensável que a língua, em sua
22
ordem estrutural, não tolera, desfazendo a ilusão
9
de unidade intencionalmente construída. A
saída para tal falácia é, sem dúvida, a redução do potencial de significação que o texto possa
carregar consigo.
Tal redução passa primeiro pela sistematização dos princípios e regras que regem a
construção textual, através de elementos que visam à limitação de inferências; segundo, passa
por uma necessidade de idealização dos sujeitos (produtor/receptor) como homogeneamente
situados no contexto social (nem sequer abre-se espaço para as práticas sociais e à
historicidade da língua e dos sujeitos); terceiro, pela compreensão da língua enquanto código,
isotópico e cartográfico.
Essa sistematização do texto foi denominada textualidade e sua marca comum está
nos elementos coesivos que caracterizam o enlace de suas partes a fim de evitar possíveis
desvios por parte do receptor, direcionando-o à interpretação orientada pelo produtor do texto.
Enfim, este princípio surge como um universal capaz de dar características isotópicas aos
textos e uniformidade ao seu tratamento.
A textualidade é uma sistematização do todo textual. No dizer de Fávero e Koch
(2002:19) os signos individuais que constituem uma seqüência textual são interligados por
muitas relações de ordem semântica, sintática e fonológica. Os textos são seqüências de
signos verbais sistematicamente ordenados. Assim, a textualidade conta do fato de que as
superfícies textuais sejam lineares, estendendo essa linearidade e isotopia no nível semântico.
Parte-se, enfim, do pressuposto de que a textualidade faz pensar o texto sempre na
ordem do tangível, sendo a uniformidade resultado de seu isolamento, em relação a tudo que
leva à margem, ao exterior que, “inevitavelmente”, se faz presente dentro dele. Sob esta ótica,
o texto acaba se configurando como algo da ordem do “realizável”, da “combinatória”
simétrica e perfeita, o que faz com que se imponha a ilusão de uma isomorfia estrutural, de
um todo, cujas margens não permitem o aparecimento de lacunas para a inserção de sentidos
múltiplos (os quais sabemos são constitutivos deste objeto). Ressaltamos, portanto, que o
sentido, na ordem dos estudos do texto, está no campo da permissão e da imposição, pois
intencionado. Por conseguinte, pensar a ambigüidade
10
é pensar o falacioso, o erro que opera
sobre o objeto de estudo.
9
O conceito de ilusão a que remetemos diz respeito à orientação da Análise de Discurso de linha francesa, da
qual compartilhamos, em que a noção de completude, de unidade que encerra um único caminho para os sentidos
é falaciosa. Logo, acreditamos que conceber o texto como unidade delimitável superficialmente, cujos sentidos
operam no âmbito da homogeneidade consiste em ilusão.
10
A concepção de ambigüidade que destacamos acima é redutora, uma vez que, no âmbito dos estudos do
discurso, citamos a Análise de Discurso Francesa, este conceito não representa uma falácia, mas é constitutivo da
língua, trata-se de uma condição que é própria da língua e, como tal, não está aí para ser resolvida ou
cultivada, mas analisada e trabalhada. (LEANDRO FERREIRA, 2000:11), uma vez que a noção de ngua que
23
Com base, portanto, em tal critério de delimitação da interpretabilidade, nota-se que
um texto, para se sustentar como uma unidade de sentido, é construído com base em suportes
lingüísticos que são recursos “necessários” para realizar sua arquitetura. Esses recursos,
operadores da textualidade, estabelecem as relações interfrasais que definem um texto como
tal. Acentuamos que para a LT esses operadores de textualidade são aspectos formais,
elementos estruturadores do texto e através dos quais se operou sua uniformização.
1.1 A Coesão Textual: princípio uniformizador do texto
1.1.1. Halliday e Hasan: a busca por padrões de textualidade
No sentido de regularizar o tratamento de seu objeto de estudo, através da
sistematização, a lingüística do texto propôs dois princípios básicos, operadores do que se
propõem como boa formação textual: a coesão e a coerência. Estes dois processos de
formação dos textos passaram por conceituações diversificadas, mas agregando sempre o
mesmo valor: elementos formadores da textualidade e definidores do que seja texto.
Tradicionalmente, as noções de coesão e coerência começaram a ser estudadas pelo
viés da conexão absoluta, numa relação de causa e efeito. Trata-se da definição de Halliday e
Hasan (1976), para quem coesão e coerência o propriedades textuais, cujas marcas estão
sempre na superfície, sendo a primeira determinante da segunda. Esta concepção está atrelada
a uma vertente de estudos lingüísticos que operam com uma noção de língua centrada no
código, na função informacional. Desta forma, procurava-se postular a boa formação textual e
as regras gerais que permitiam a diferenciação entre um texto e seu oposto, com base em uma
lingüística de dicotomias. Esse processo de separação entre o texto e o não-texto, permeado
pelos princípios positivos de correção/não-correção, objetividade/subjetividade,
lingüístico/não-lingüístico, científico/não-científico assentou-se nos estudos do texto e sobre a
noção de textualidade, vinculada aos critérios de boa formação textual. Ser legível, nessa
ordem de pensamento, é estar em concordância com os parâmetros de textualidade. A
legibilidade permanece vinculada a fatores sintáticos.
Halliday e Hasan partem de um senso-comum de que texto é um todo unificado e um
espaço de relação e esta relação é a coesão. Lançando um primeiro olhar sobre essa definição
de texto, tal como tangenciado pelos autores enquanto espaço relacional, reconhecemos a
diferença salutar entre o texto e os objetos tipicamente lingüísticos. É permitido ver os limites
se tem em AD é permeada pela heterogeneidade e plo fato de que os sentidos podem ser vários, não havendo um
24
entre ambos. O texto é destacado como um sistema de relações semânticas e não meramente
estruturais (léxico-gramaticais), o que pressupunha um possível deslocamento do campo
teórico sistêmico para o textual. Nesse sentido, os autores o descrevem como “unidade de
linguagem em uso”, definição que por si própria justifica a separação deste objeto de uma
ordem estrutural. Assim, estipulam uma tensão entre o que é do âmbito da lingüística (nível
gramatical) e aquilo que dela está à margem desde sua edificação enquanto ciência, o nível
pragmático.
No entanto, com um olhar mais atento sobre os critérios de textualidade e sobre o que
significa esse espaço relacional, notamos que o reconhecimento das instâncias externas à
língua (enquanto uso) como constitutivas do texto, e das fronteiras, mesmo evidentes e claras,
entre uma lingüística estrutural e os estudos do texto são opacificados. Halliday e Hassan
conduzem o texto ao encerramento segundo os moldes da lingüística, apoiando-se em critérios
gramaticais e lexicais, diluindo tudo no campo da língua enquanto sistema. Isso se como
conseqüência da filiação teórica de seus estudos, que para assumir a natureza do texto e
suas fronteiras em relação à lingüística, seria necessário transpor as amarras teóricas a que
estavam ligados.
Constatamos, com efeito, que é na descrição do processo coesivo que as propriedades
do texto se perdem e são sobrepostas pela ordem sistêmica. Evidentemente, mesmo definindo
a coesão como uma relação semântica, trata-se de uma operação num nível superficial, tal
como segue: o conceito de coesão é semântico; refere-se a relações de sentido que existem no
texto, e que o definem como um texto
11
, ao que complementam destacando que coesão é uma
relação semântica. Mas, como todos os componentes de um sistema semântico, ela é
realizada através do sistema léxico-gramatical
12
. Nesses termos. o texto, enquanto espaço
relacional, constitui-se de relações coesivas estabelecidas entre elementos da superfície
textual. Halliday e Hasan designam Ties (Nós Ou Elos Coesivos) os encadeamentos que
permitem suturar os enunciados. Esses nós são responsáveis pela formação de um texto, que
tem como característica principal a Textura. Essa propriedade estabelece assim uma
diferença cabal entre texto e não-texto
13
.
modelo vertical que dê conta de tudo.
11
“the concept of cohesion is a semantic one; it refers to relations of meaning that exist within the texto, and that
define it as a text.” (1976:04)
12
“cohesion is a semantic relation. But, like all components of the semantic system, it is realized through the
lexicogrammatical system” (1976:06).
13
Essa dicotomia texto/não texto faz intervir na concepção de texto um exterior, um sem sentido marginal que,
por não estar adequado ao “padrão” lingüístico, fica excluído, mas latente, ressaltando a existência de uma
possível não-linearidade. Trata-se do oposto que de fora circunscreve o texto. Fica claro, nesses termos, que o
não-texto é da ordem daquilo que escapara ao sistêmico, a esse lugar de transparência tangenciado por uma
lingüística de cunho positivo. Pensamos que o não-texto é da ordem do real, daquilo que extrapola o virtual
25
O conceito de tie’ torna possível analisar um texto em termos de suas propriedades
coesivas e conta de seus padrões de textualidade
14
. Desse ponto de vista, as relações
semânticas que operam a coesão dão ao texto o caráter de unidade de sentido, conferindo
estabilidade, de forma que coesão é uma relação semântica entre um elemento no texto e
algum outro elemento que é crucial para sua interpretação. Este outro elemento também é
encontrado no texto
15
, formando o que os autores denominaram Cadeia Coesiva (Cohesive
Chain). Este termo representa a seqüência possibilitada pelos elementos coesivos que
encadeados mantém a organização hierárquica e linear das partes que compõem texto, o que
pressupõe a linearidade como fator determinante desse objeto como unidade de sentido.
De acordo com tais definições do texto e dos critérios de textualidade, pode-se notar
que perdura a necessidade de segmentar o objeto de estudo, de dar-lhe formas visíveis e
descrição sempre continuada, encerrando a concepção de sentido no/pelo sistema, visto que o
sentido aqui está numa combinatória em que a falta de sentido (não-texto) é, mesmo que
latente, impensável, sendo o processo de coesão uma tentativa de cercear o indizível, os
outros dizeres que acompanham um dizer tido como uno. Para tanto, a noção de continuidade
está ligada invariavelmente à linearidade e à organização hierárquica que começa pelas
sentenças que formam parágrafos, sendo estes formadores de textos de maior extensão.
Nessa perspectiva, e enfatizando a necessidade de uma organização sistematizada do
texto, os autores pressupõem que, no momento em que a continuidade do texto se desfaz por
falta de elementos de coesão, um novo texto está por se estruturar, de forma que o que confere
textualidade ao texto é a cadeia coesiva que se impõe linearmente. Em suas palavras podemos
considerar que um novo texto começa onde uma sentença não apresenta coesão com a que
precede
16
. As palavras dos autores indicam a necessidade de segmentação do todo textual em
partes bem definidas e organizadas, pois qualquer falta de elementos coesivos na passagem de
um parágrafo a outro desestabiliza a unidade semântica, fragilizando a linearidade.
O significado do termo coesão está ligado diretamente ao conceito de textura e vice
versa, como se houvesse entre ambos uma relação de causa e conseqüência. Sendo a coesão
condição necessária para criar textos, Halliday e Hasan destacam, por outro lado que, embora
necessária e, por vezes, determinadora, a coesão não representa propriedade suficiente para a
delimitado, pois não se fecha, é ele que traz as possibilidades do impensável na estrutura. Trata-se da
possibilidade de indeterminação de sentidos, por isso negado.
14
“The concept of a tie makes possible to analyse a text in terms of its cohesive properties, and give a systematic
account of its patterns texture” (1976: 4).
15
“Cohesion is a semantic realtion between an element in the text and some other element that is crucial to the
interpretation of it. This other element is also to be found in the text.” (1976:8)
16
we can consider that a new text begins where a sentence shows no cohesion with those that have preceded.”
(1976:295).
26
formação do texto, sendo ela constitutiva da textualidade, propriedade maior, que padroniza a
formação textual, pois o que cria texto é a textualidade, a forma-texto, sistema do qual a
coesão é apenas uma parte. Isso pressupõe que os autores não conseguem aprisionar
deliberadamente a textualidade a regras formais e tangenciáveis por uma gramática.
Assim, quando partem para uma análise da coesão, num nível propriamente textual,
em que mais do que identidade entre dois termos, retomadas de porções maiores de texto,
os autores inserem em sua teoria a expressão Extended Reference (Referência Estendida
17
),
que é organizadora de grandes unidades. Não se trata de uma referência genuína, mas apenas
de uma extensão, de forma que, segundo os autores, o referente não remete a um elemento
delimitado no texto. Neste caso, a relação semântica depende da habilidade dos
ouvintes/leitores em identificar a porção relevante do texto a que o referente remete.
Observamos, aqui, que a impossibilidade de restringir a textualidade a critérios de
correferência e de co-significação e, primordialmente, que o encerramento do texto em
parâmetros de análise tão restritos se delineia de forma contundente para os autores.
Entretanto, fazendo vistas grossas à natureza pragmática do texto, o potencial da
coesão é situado na sistemática dos recursos de referência, o que de fato pressupõe a
necessidade do encadeamento dos elementos lingüísticos a fim de que o leitor (receptor) seja
capaz de compreender
18
o que o produtor do texto intencionava.
Ressalvamos que há, nas definições de Halliday e Hasan, um conflito de conceitos e
de definições acerca de seu objeto de estudo, dado que definem o texto como “linguagem em
uso” (A text is a unit of language in use
19
.) e, ao mesmo tempo, o colocam circunscrito por um
funcionamento sistemático autônomo e unívoco. Esse conflito se dá entre dois pólos: o
discursivo-pragmático que se faz presente a cada formulação, mas que é opacificado e
esquecido e o lingüístico que busca um espaço de reprodução de um discurso homogêneo,
pois, a aceitação do exterior como fundante da própria noção de texto, levaria à subversão
desse lugar de homogeneidade, colocando ênfase na possibilidade de destituir o sistema da
língua de autonomia. Logo, para uma não oscilação conceitual e orientados pelo imaginário
da transparência e completude, os autores encerram o estudo do texto nos parâmetros
eminentemente lingüísticos.
17
O conceito de referência estendida está hoje atualizado na forma de encapsulamento anafórico. Logo, não se
trata de uma coesão textual que difere da coesão tratada até então, mas apenas de um outro mecanismo não tão
ligado ao aspecto da correferencialidade.
18
Destacamos que a concepção de compreensão em muito se distancia da concepção de interpretação, que
compreender está ligado a depreensão dos sentidos propostos, à luz de uma decodificação, ao passo que a
interpretação condiz com a atividade de construção de sentidos, uma vez que interpretar pressupõe que fatores
extra-texto, ligados ao leitor/ouvinte sejam colocados em prática.
19
1976: 02. A tradução é nossa.
27
Esse fato nos orienta à questão fundamental de que a LT acaba negando a natureza
eminentemente pragmática do texto ao sistematizar seu funcionamento textual. Para tanto, é
com o recurso da coesão, como funcionamento interno das formas lingüísticas, que se opera a
opacificação da natureza funcional do texto. A coesão é vista como fonte de regularização e
uniformização, pois advém do campo epistemológico da lingüística e esse campo permite
apenas efeitos de transparência sobre os objetos que propõe para análise.
Claramente o limite entre texto e não-texto revela o que está para além do sistema e
que com ele se confronta. É nesse caminho de perfilação de um objeto delimitado que a
propriedade da coesão textual é cunhada para formalizar essa “linguagem em uso” que tende a
escapar das formalizações. Logo, é com a própria noção de coesão que a propriedade
pragmática e aberta do texto se perde num emaranhado de operadores formais que funcionam
como pistas para os sentidos, o que enfatiza a coerência textual como conseqüência de uma
cadeia coesiva bem estruturada. Evidenciamos, para tanto, que em LT, a coesão é uma
propriedade da língua e que o sentido do texto está amarrado ao sistema lingüístico.
1.1.2. Beaugrande e Dressler: uma tentativa de abertura do texto
O texto, segundo Beaugrande e Dressler (1981), é definido como uma “ocorrência
comunicacional” que satisfaz a critérios interdependentes: a) um critério de coesão,
perceptível em particular no jogo das dependências entre frases; b) um critério de coerência.
Contudo essa interdependência encontra fronteiras mais claras e nítidas em relação à
abordagem de Halliday e Hasan.
Nos estudos de Beaugrande e Dressler, os recursos de coesão textual passam a ser
entendidos separadamente da propriedade da coerência, de forma que a coesão encontra-se no
domínio do sintático e a coerência no domínio semântico e pragmático. Nessa fase, percebe-se
a coerência como um nível mais amplo, que ultrapassa a superfície do texto, estando na ordem
da interpretabilidade, o que gera uma definição mais complexa, que é da ordem da construção
dos sentidos do texto. Marcuschi (1983) enfatiza esta abertura afirmando que a coerência
passa a destacar muito mais um ponto de vista sobre o texto do que um fator de boa formação
textual. que se destacar, portanto um ponto fundamental na teoria de Baugrande e
Dressler: a textualidade envolve uma relação mais complexa entre fatores intra e extra-
linguisticos.
Sua proposta para a determinação da textualidade centra-se, portanto, em uma conjunção
de princípios que devem ser cumpridos e que regulam a comunicação textual:
Princípios Lingüísticos: Coesão e Coerência
28
Princípios Psicolingüísticos: Intencionalidade e Aceitabilidade
Princípios Sociolingüísticos: Situacionalidade e Intertextualidade
Princípio Computacional: Informatividade
Os autores, direcionam-se para uma linha de pensamento que complexifica mais a
noção de textualidade, pois vêem a coesão e a coerência como propriedades compartilhadas
por produtor e receptor. Ao mesmo tempo em que são restrições inscritas no texto pelo
produtor (caso específico da coesão), encarregadas de orientar os processos interpretativos
dos receptores, são também propriedades provindas dessa mesma atividade interpretativa:
Tanto a coesão como a coerência são noções centradas no texto que designam
operações enfocadas para os materiais textuais. Além delas, necessita-se de outros
tipos de noções centradas no usuário que expliquem com maior amplitude o
funcionamento da atividade comunicativa em que estão implicados tanto os
produtores como os receptores de textos (1981:40).
Assim a dicotomia preconizada entre texto e não-texto começa a ser fragilizada,
devendo ser o texto analisado em suas condições de uso e não meramente em condições
lingüísticas. Parece que o texto hermético começa a se delinear por fronteiras mais porosas.
Esses autores assumem que outros fatores ligados aos papéis do produtor e receptor do
texto contribuem para a textualidade. As atitudes dos usuários são incluídas entre os critérios
de textualidade. Koch (1997) define essa posição dos autores: para que uma manifestação
lingüística constitua um texto, é necessário que haja a intenção do produtor de apresentá-la –
e a dos parceiros de aceitá-la como tal -, numa situação de comunicação determinada
(1997:18.).
A fim de enfatizar tal proposta, Beaugrande e Dressler estabelecem uma analogia entre
texto e mineral cristalizado, ancorados no fato de que o texto, tradicionalmente estudado em
LT, sofre uma paralisação na forma. Posição que negam categoricamente:
[...] o fenômeno da cristalização consiste, em essência, em que uma reunião caótica de
elementos independentes se converte em uma estrutura maximamente ordenada. Isto é
possível graças à conjunção de atividades microscópicas e desconexas entre si, as
quais, no interior de um meio mineral, vão criando, pouco a pouco, zonas
crescentemente coesionadas de coerência que vão se ampliando de maneira sucessiva
até completar a reorganização estrutural total do meio (1981:7).
Esta definição de texto como cristalização remete às concepções de texto e língua com
enfoque sistemático e abstrato. Beaugrande e Dressler propõem uma outra perspectiva a que
chamam de Enfoque Procedimental, que abarca o texto como resultado de um processo não
estritamente lingüístico, de forma que o estabelecimento de unidades e padrões estruturais
29
como centralizadores da investigação lingüística abrem espaço para a compreensão do texto
como resultado de um processo e não mais como uma combinação ou mera seqüencialização
de orações.
Sua análise está centrada no fato de que não é possível aceitar a metáfora da
cristalização para a explicação de textos, uma vez que ela é representativa de uma noção de
texto como evolução natural, à luz dos estudos biológicos. Trata-se de uma concepção estática
da linguagem e de sua materialização, reforçando o caráter imanente. Acreditam, por sua vez,
que coesão e coerência são resultado de um processo intencionado de produção textual, uma
vez que todos os textos são atividades humanas e, em função disso, ultrapassam o nível de
análise estritamente lingüística. Consideram reducionistas as correntes que marginalizam o
sujeito na linguagem.
A concepção de intencionalidade defendida pauta-se no fato de que quando alguém
produz um texto está interessado em que os receptores o entendam, em que reconheçam a
intenção que o autor transmite, logo o produtor textual deve prever os movimentos de seus
receptores potenciais, incluindo em seu texto informação interativa (apresentada pelos
conectores e pelos marcadores discursivos) que guie a trajetória interpretativa dos usuários
do texto (BEAUGRANDE E DRESSLER, 1981:8-9). Neste sentido é que os autores propõem
uma ligação inerente entre os aspectos psicolingüísticos de Intencionalidade e Aceitabilidade
com os aspectos lingüísticos da coesão e coerência. Portanto, um texto coeso e coerente é
produto das intenções do produtor e da aceitabilidade do receptor.
Tomando o conceito de intencionalidade destacado pelos autores como um retorno do
sujeito para o espaço de construção textual, ressalvamos que é nesse conceito que se encontra
a filiação de Beaugrande e Dressler a um discurso homogeneizante e cartesiano. Mesmo
diante de descrição vigorosa em favor da abertura do texto, devemos ressalvar (se não nos
deixarmos levar pelas aparências) que o tratamento dado aos elementos de coesão ainda é
orientado para a descrição de um fechamento do texto e para o afastamento da possibilidade
de deslizamento de sentidos. As características fundamentais das relações coesivas continuam
sendo:
i- codificação de um conceito;
ii- marcação de uma relação;
iii- indicação das melhores maneiras de processar a seqüência
textual;
A utilização de um elemento coesivo como um conector, tem por função indicar a
direção que o receptor deve tomar, o que reduz em muito as possibilidades interpretativas e
30
coloca o texto em relação aos objetos picos da lingüística com uma diferença de grau e não
de natureza.
Convictos de estarem dando um passo adiante nas concepções de texto e textualidade
veiculadas até então, os autores passam a substituir a metáfora do mineral pela analogia a um
Espaço Urbano estrategicamente planejado. Assim, mencionam a atividade interpretativa do
receptor em potencial como decodificação de sinais, o que, efetivamente, não os afasta de
uma concepção estática e inflexível de textualidade, ficando nebulosas suas concepções de
língua, sujeito e texto
20
:
Neste sentido, um texto parece mais com um espaço urbano do que com um mineral
cristalizado. Assim como os espaços urbanísticos, os textos estão modelados para
dirigir a atividade interpretativa de seus usuários (ambos são coesionados, coerentes e
são um produto interativo) (1981:9).
Logo, os autores, mesmo perspectivando mais flexibilidade e abertura em relação aos
estudos que criticam, produzem, através dessa metáfora, um hiato, uma ruptura com as
teorizações que empreendem, que o espaço urbano estrategicamente planejado conduz o
texto ao mesmo fechamento e homogeneidade antes perseguidos. Enquanto cristalização, o
texto era visto na ordem dos fenômenos naturais que se auto-regulam, ao passo que, enquanto
espaço urbano, está na ordem da construção estrutural intencionada de um sujeito
(idealizado). Tangenciar o texto, nesses termos, é tê-lo como fenômeno uniforme e
delimitado.
Tal analogia faz com que a interpretação de Beaugrande e Dressler, mesmo que não
intencionada, esteja restrita a uma visão sistêmica e estrutural de texto, cujos sentidos estejam
amarrados a uma única via de acesso. Contudo, partimos do fato de que esta mesma metáfora,
interpretada de forma diferenciada, de um lugar diferenciado, a partir de uma visão mais
aberta, nos conduziria a pensar o texto na ordem de um espaço urbano, como um espaço de
cruzamento de sentidos, ou seja, em que tudo se cruza, se interliga, em que as vias de acesso
possíveis são muitas, em que a cada entrada nova para este espaço haveria um percurso
diferenciado para percorrer o que nos levaria a tê-lo como espaço multiforme.
É notório, portanto, que a concepção de uma ciência do texto e seus critérios de análise
está sempre voltada para a resolução de ambigüidades. A ambigüidade continua sendo o lugar
“marginal” de deslizamento do sentido uno e transparente, devendo, por isso, ser sanada com
a suturação de todos os pontos que podem deixar lacunas. Esse movimento de fechamento de
20
Importa destacar que em Beaugrande e Dressler voltamos às mesmas ressalvas elencadas sobre o
posicionamento de Koch na primeira parte deste capítulo, que Koch, no Brasil, desenvolve estudos na mesma
corrente teórica dos autores citados.
31
lacunas sobrepõe-se à compreensão de texto como cruzamento de múltiplos sentidos, e se
essa compreensão, ela restringe-se a um nível muito superficial e teórico, o que leva os
autores a produzirem novamente uma falácia em sua teorização, que, se pretendem um
texto aberto e dinâmico para o processo de interpretação, como então a ambigüidade urge de
controle através de um sistema de regras? Nas palavras dos autores:
Uma ciência do texto não só deve explicar como é possível que se produzam
AMBIGUIDADES na superfície textual, sendo que também tem que esclarecer
como os falantes resolvem, de fato, a maior parte dessas ambigüidades sem
nenhuma dificuldade (1981:37).
Seguindo esse princípio de que o texto é formado para dar pistas ao leitor, os autores
salientam que quando se usa o termo coesão se quer destacar a função que desempenha a
sintaxe na comunicação (1981:89). Ressaltam ainda o caráter instrumental desse mecanismo:
[...] a estabilidade de um texto, como ocorre em qualquer tipo de sistema, se mantém
graças à continuidade dos elementos que a integram. A noção de continuidade
fundamenta-se na suposição de que existe uma relação entre os diferentes elementos
lingüísticos que configuram o texto e a situação [...] cada elemento lingüístico é um
instrumento eficaz para aceder a outros elementos lingüísticos (1981:89).
Beaugrande e Dressler salientam os recursos de coesão como estabilizadores e
economizadores de esforços, pois organizam a superfície textual, facilitando a interpretação,
de forma que analisando do ponto de vista gramatical, os mecanismos textuais que operam a
longo alcance contribuem de maneira muito significativa para que a superfície textual seja
estável e para que o processo de produção e repetição seja econômico (1981:98).
Em teorização posterior, Beaugrande (1997) contempla o texto como evento
comunicativo, promovendo mais uma brecha para que o exterior clive o sistemático. Essa
definição de texto opera uma redefinição da noção de língua com que o autor trabalha, dado o
fato de que esta se integra a práticas sociais, passando de um simples uso de regras, para uma
esfera em que seja vista como atividade social, em que é essencial tomar o texto como um
evento comunicativo no qual convergem ações lingüísticas, cognitivas e sociais, o que sugere
que o texto seja visto não mais como um construto, mas como evento que ocorre na
integração e conexão de vários elementos como sons, palavras, enunciados, significações,
participantes, contextos, discursos, ações, numa congregação entre o lingüístico e o não-
lingüístico que o circunscreve: “O discurso não é sustentado pelo sistema total da língua, com
um delineamento enrijecido, mas como uma versão parcial com um delineamento evolutivo
32
para fundir condições estáveis com condições emergentes e condições lingüísticas com
condições sociais e cognitivas” (1997:160).
Numa concepção assim delineada, note-se que o texto passa a ser concebido numa
esfera de subjetividade e de integração entre sistema e exterior. Contudo, não podemos ater-
nos somente nas aparências, precisamos encarar o fato de que o autor continua se detendo
num certo psicologismo, em que o sentido é resultado da intenção do produtor do texto e que
esse texto, mesmo sendo produto da noção de língua como prática social, ainda não opera um
deslocamento para o campo discursivo.
Há, dessa forma, uma marcação explicita da existência e da necessidade de relações
internas entre elementos ou conteúdos e que estas relações operem como regras de
conhecimento mútuo entre produtor e receptor, que, estando, idealmente situados num
contexto homogêneo (produzindo uma concepção a-histórica de sujeito e linguagem),
compartilhando de um código de comunicação homogeneamente construído (língua
igualmente a-histórica e sistêmica), produzindo o mínimo de inferências sobre o texto (ideal
de transparência e completude), compactuam na produção de um sentido único para o texto e
no afastamento do sem sentido.
Note-se, por conseguinte, que o objetivo é que o texto parta do produtor, pronto,
monosemântico para que chegue ao leitor. Esta é uma ilusão básica, uma superficialidade que
se tornou necessária para a edificação da noção de sistema na lingüística e de sujeito
psicológico detentor do sentido.
No entanto, a busca pela desambigüização e por uma monosemantização do texto cria
barreiras para o entendimento deste objeto em sua complexidade, uma vez que textos, por sua
condição de uso, sempre serão passíveis de múltiplos e intangíveis sentidos.
1.1.3. Henrique Bernárdez: o texto como objeto complexo
Encontramos na perspectiva de Bernárdez (1995), para quem o sentido é um fenômeno
multiforme, produto da união de um texto e uma situação, uma concepção de texto
heterogêneo o que o afasta dos pressupostos básicos da LT. O autor opõe-se a uma análise
determinista dos textos, colocando-se numa perspectiva que, “de certa forma”, apresenta
pontos em comum com a teoria de Beaugrande e Dressler. Busca uma desconstrução da noção
de homogeneidade textual, destacando o texto como objeto lingüístico complexo.
Esse novo olhar sobre o texto se sustenta em virtude das peculiaridades que apresenta
em relação aos objetos típicos da lingüística. Logo, um estudo do texto, em sua concepção,
não poderia ser nunca completo se fosse limitado a determinado método como fora segundo a
33
ótica estruturalista de texto como agrupação de orações unidas entre si por relações simples.
Assim, para ele a composição textual estará submetida a um grau de indeterminação que não
aparece no nível oracional e nos níveis suboracionais (1995:60).
Bernárdez faz esta oposição negando o que chama de monoteísmo científico em
lingüística, caracterizando esta tendência como a redução da complexidade (para ele
imprescindível aos objetos estudados) a aspectos mínimos, teoricamente encaixados em
modelos pré-estabelecidos e determinados. Ou seja, os objetos se encaixam nas teorias e em
seus axiomas, estas não evoluem para dar conta da amplitude que os objetos alcançam. O
autor destaca o reducionismo como a base do método estruturalista e gerativista usados para
análise de textos. Ele enfatiza que a ciência moderna teve sua solidificação e caracterização
baseados no reducionismo dos objetos de estudo a fim de esgotar as possibilidades de
descrição, caracterizando-se por um positivismo que parte sempre de métodos dedutivos de
análise, de universais que buscam o enquadramento dos fenômenos estudados e nunca a
análise da natureza particular desses fenômenos. Para tanto, esta perspectiva de ciência
produziu abstrações de todos os aspectos “considerados” irrelevantes para os objetivos
propostos. Nesse sentido, generalizações, universalizações se impunham como modelo de
análise e descrição dos objetos de ciência.
Tais métodos sempre partem da hipótese de que os fenômenos reais estão formados
por elementos simples, facilmente analisáveis, por relações limitadas pelo sistema de regras e
leis universais. Parte-se da concepção de que não diferenças radicais entre objetos de
diferente complexidade, pois sempre estarão determinados por elementos mínimos do
sistema, que serão iguais. Assim, diferenças que devem ser cabais para o entendimento de
diferentes objetos reduzem-se apenas a diferenças de caráter quantitativo e nunca qualitativo,
de grau e nunca de natureza, podendo ser utilizado o mesmo método para quaisquer objetos, à
luz de uma prática em que o ponto de vista cria o objeto
21
, estando as peculiaridades deste
fadadas à universalização e homogeneização.
Bernárdez destaca a expressão realidade de laboratório para ressaltar a essência das
análises utilizadas para dar conta de textos quando de seu surgimento no terreno da
lingüística. Para o autor, os textos eram dissecados, sem serem levados em conta aspectos
situacionais, cognitivos e sociais que fazem com que ocorra sua atualização:
O certo é que de uma perspectiva científica é perfeitamente aceitável a idealização
do objeto de estudo, a linguagem em nosso caso. [...] Não é exagerado afirmar que
uma parte considerável dos estudos da chamada lingüística textual tem se limitado a
21
Remetemos à citação encontrada no Curso de Lingüística Geral (1916) de Ferdinand de Saussure que, num
gesto fundador da lingüística como ciência positiva, considerou seu objeto de estudo como homogêneo e
uniforme – a língua – como parte de um objeto heteróclito e multiforme – a linguagem.
34
repetir coisas sabidas há culos, e que tem afirmado que a disciplina descreve e
explica fenômenos que todo falante conhece intuitivamente (1995:54-55).
Há, segundo o autor, na passagem do nível oracional para o nível textual, uma perda
considerável de previsibilidade, pois o texto tem caráter menos estável do que a oração,
menos linear, sendo a imprevisibilidade uma propriedade inerente ao texto:
Podemos dizer que ao ultrapassar os limites da oração nos encontramos com um
campo de indeterminação [...] acreditamos, portanto, que existe um salto qualitativo
radical da oração ao texto: dentro dos limites da oração, um elemento vem
determinado pelo anterior, mas esse determinismo não é absolutamente claro no texto
(1995: 81).
Outro ponto que pareceria apontar para uma concepção menos estrutural é a diferença
radical entre Sistemas Simples (estáveis) = orações e Sistemas Complexos (instáveis) =
textos. Esta diferença ressalta a possibilidade de que parece possível fazer gramáticas do
sistema da língua sem ter em conta seu uso, ao passo que é impossível descrever os textos de
uma língua independentemente das situações em que são utilizados.
Isso se justifica por três razões, segundo as teorizações do autor (1995):
a) um aumento dos caminhos possíveis a partir de um elemento qualquer, que
trabalha com questões inferenciais, o que representa uma lacuna nos estudos do texto,
já que as inferências são sempre alvo de delimitação;
b) uma indeterminação sobre a seleção de caminhos, a qual podemos, de certo modo,
confrontar com a concepção de linearidade apontada como princípio norteador da
textualidade. Tal indeterminação opera uma ruptura com a noção de completude.
c) Há uma enorme perda de generalização que aproxima a textualização da instabilidade,
que o texto deve ser tido em sua singularidade não passível de uniformização e,
portanto, analisável de uma perspectiva indutiva que prime por sua natureza.
Assim, para o autor, pelo método estrutural podemos explicar estruturas oracionais,
enquanto que não podemos passar à explicação de um texto complexo (1995:88). Isso
enfatiza que a diferença entre orações e textos está no fato de uma oração ter o que podemos
chamar de significado abstrato, sendo um texto em potencial. Assim, a oração é composta de
dois níveis: um abstrato e um concreto, uma vez que se torna texto quando em uso, num
contexto determinado. O texto, em contrapartida, não pode ser visto do ponto de vista
meramente abstrato, pois enquanto a oração pode existir como objeto abstrato, puramente
potencial, o texto não:
35
Naturalmente, podemos tomar como prova que a oração é a unidade sintática da
linguagem e que, em conseqüência, o texto não é. E poderíamos ir mais além e
assinalar que se a linguagem é fundamentalmente sintaxe, o texto não é objeto de
estudo lingüístico. Creio, sem dúvida, que assim não fazemos nada mais que ocultar
os problemas, que é: por que a partir de um determinado momento se perde o
determinismo que até então caracterizava a linguagem e nos encontramos com uma
espécie de caos onde não sabemos que caminho tomar? Se nos limitarmos a dizer que
na oração acaba o sintático (provavelmente é assim), não teremos feito nada mais que
colocar uma etiqueta em uma parte concreta e limitada do fenômeno lingüístico
(1995:81) [grifo nosso].
Segundo as explanações do autor, poderíamos, num primeiro momento, supor que
uma desconstrução da noção de homogeneidade e, por isso, uma descontinuidade de seus
estudos em relação aos elencados anteriormente. Contudo, ao observarmos mais atentamente,
constatamos que, mesmo orientando-se epistemologicamente para uma perspectiva menos
abstrata e idealista, deslocando o campo teórico, perseguindo uma concepção de texto
múltiplo, o autor, quando faz uso do conceito de coesão textual, acaba privilegiando os
mesmos aspectos de linearização e estabilização do texto.
Assim, a perspectiva textual, cunhada por Bernárdez, apesar da concepção de texto
como complexidade, ancora seus conceitos de textualidade em bases permeadas pelo formal,
derivando a boa formação textual de uma lógica interna e sistemática.
Isso pode ser evidenciado, no que tange aos mecanismos coesivos, aos quais denomina
estratégias formadoras de uma totalidade estável e em equilíbrio. Segundo o autor, é pelo
recurso a essas estratégias que se acede a um estado de entropia necessário aos textos. Tal
estado entrópico é anterior à ação de interpretação, mas, primordial, uma vez que condiciona
os movimentos do receptor sobre o texto em uma prática que poderíamos denominar
centrípeta, que leva a um centro normatizador e determinador. Essa concepção assemelha-se à
metáfora de Beaugrande e Dressler de texto como espaço urbano.
O texto, desse ponto de vista, possui uma dinâmica que não se vê alterada, pelo fato de
que constitui um sistema que se auto-regula. Está cristalizado nas formas lingüísticas antes do
acesso do leitor. Tal sistema entrópico caracteriza-se por um estado de equilíbrio perfeito, de
estabilidade, estado este em que a única dinâmica permitida é regulada pelo sistema interno.
Sob esta ótica, o processo de coesão volta-se para a dinâmica interna do tecido textual num
constante processo de correferência limitada pelas margens do texto. Esta é uma dinâmica
uniforme de tratamento dos textos. Lugar comum nos estudos textuais.
Tendo elementos coesivos como responsáveis pela auto-regulação e entropia do texto,
o autor os aponta como contribuintes para que o texto torne-se um todo coerente. Ele admite,
portanto, que seu conceito de coesão aproxima-se das correntes estudadas, centrando-se na
concepção de automatismo, pois quanto mais cuidadoso é um texto, mais se aproxima de uma
36
construção automática e, por isso mesmo, resulta mais previsível (1995:157). Define
enfaticamente que certo grau de estaticidade e de previsibilidade é necessário para que o texto
alcance a coerência adequada, elencando as estratégias como elementos utilizados com um
único fim: atingir coerência. Para tanto, analogamente aos autores já citados, Bernárdez
constata que faz-se necessário, portanto, para explicar o funcionamento dos procedimentos
chamados coesão/coerência, poder identificar as condições gerais da comunicação assim
como estabelecer uma série de estratégias (facilitação da interpretação) que atuarão nas
condições estabelecidas (1995:177).
A boa formação textual, para este autor, está agregada a fatores como a eliminação de
ambigüidades na interpretação, a transparência do sentido global do texto. O que atesta a
mesma busca pelo cerceamento e pela cristalização dos movimentos interpretativos sobre o
texto
Logo, se Bernárdez avança em alguns aspectos como na diferença efetiva entre níveis
oracionais e textuais de análise, na instauração do texto como objeto complexo e imprevisível
em sua condição semântica, por outro lado involui, tomando a transparência como um ponto
central naquilo que define por textualidade.
Mesmo na passagem de uma visão estática para uma visão mais amplificada (citamos
aqui amplificada, pelo fato de que não houve o deslocamento necessário, mas apenas um
alargamento do conceito de texto) o status dos elementos de coesão permanece responsável,
em grande parte, pelo estabelecimento do sentido do texto, sentido este direcionado pelo
autor, de forma que operadores de coesão são ativados a fim de suturar os sentidos.
Todas as concepções adotadas e estabelecidas por essa lingüística textual de cunho
menos estático estão embasadas numa noção de consciência individual, na noção de um
sujeito responsável pelo sentido único daquilo que produz, continuando numa perspectiva
positiva que prima pela existência de um sujeito centralizador. Muda-se apenas de enfoque: o
que antes estava emanando do sistema, agora advém do sujeito, de modo que a língua, ou
melhor, a língua em uso, o texto, é instrumento, construto adequadamente montado para
transmitir sem ambigüidades a mensagem do produtor, concedendo lugar privilegiado à
intencionalidade o que, conseqüentemente, confere lugar a um sujeito, no texto,
eminentemente cartesiano.
37
1.2 O recurso da coesão: caso específico da referência anafórica
Se, conforme explanado, os mecanismos de coesão ocupam lugar importante e, por
vezes, determinante no texto, abordaremos até que ponto eles funcionam como limitadores da
interpretação e se podem ser vetores de abertura do texto para um domínio mais discursivo.
Para tanto, à descrição dos mecanismos coesivos, tomamos como ponto de partida e
ancoragem as categorizações clássicas elencadas por Halliday e Hasan (1976) para quem,
conforme explicitado, a coesão é recurso necessário (mesmo que não suficiente) para o
estabelecimento da textura, diferenciando um texto de um não-texto. Voltamos a ratificar o
fato de que se o não-texto, é admitida a possibilidade de sentidos para além da cadeia
coesiva.
Halliday e Hasan (1976) elencam cinco tipos de relações coesivas denominadas
Referência, substituição, elipse, conjunção e coesão lexical, e que podem ser caracterizadas
como noções precursoras, tomadas como objetos de estudo pelos autores que focalizamos.
Entre essas relações de coesão centramos nossas explanações no recurso da referência que
tem no processo anafórico seu fundamento.
A Referência
22
diz respeito ao caso de elementos de coesão que: a) recuperam outros
no interior do texto (referência endofórica
23
), neste caso, se o referente antecede o item
coesivo anáfora; se está posposto, tem-se a catáfora; b)de elementos cujo referente está
fora do texto (referência exofórica
24
). Deve-se levar em conta que os autores compreendem o
mecanismo de referência como sendo de ordem semântica, de pressuposição a nível de
significados, pois sua função básica é o estabelecimento de relações de sentido na superfície
textual.
Os autores ancoram sua abordagem no nível endofórico, pois o nível exofórico
deslocaria o foco de análise e principalmente sua ancoragem epistemológica, pois adotam a
posição de que o texto é formado por propriedades gramaticais. A par das explanações dos
autores, a referência endofórica contempla um processo entrópico, centrípeto em relação ao
texto, pois é uma relação de determinação e de ligação intratextual, tendo em vista que os
elementos de referenciação têm uma natureza intrinsecamente co-textual e co-referencial, ao
22
Importa salientar que o conceito de referência tal como apresentam Halliday e Hasan, não condiz com a
concepção de referência desenvolvida nos estudos lingüísticos e filosóficos. Logo, segundo análise de Brown e
Yule (1983) a concepção da qual tratam Halliday e Hasan condiz com o conceito de correferência. A crítica
daqueles em relação a estes assenta-se numa visão semântica tradicional do conceito de referência, segundo a
qual a relação de referência é tomada para servir de ligação entre expressões em um texto e entidades no mundo.
Esta definição de referência e a definição de Halliday e Hasan geraram inúmeras classificações para as
categorias de referenciação textual a fim de dar conta do problema aqui colocado.
23
Formada pelo grego endos (interno, dentro de) unido a phoréo (levar).
24
Formada pelo grego exo (fora , exterior) unido a phoréo (levar).
38
passo que a referenciação exofórica caracteriza-se por um movimento centrífugo dos sentidos,
extrapolando os limites da unidade textual.
25
É cito, portanto, afirmar que a coesão vista como uma relação no sistema
26
, acaba
encerrando a referência ao nível endofórico. A referência representa o próprio sentido do
termo coesão na teoria de Halliday e Hasan, uma vez que enfatizam a
coesão é parte do sistema da linguagem. O potencial de coesão situa-se na sistemática dos
recursos de referência
27
.
A relação entre endoforia e exoforia representa, nas formulações de Halliday e Hasan,
o que julgamos um ponto conflitivo (tal como formulamos anteriormente), uma vez que é em
função da não-aceitação da exoforia como recurso coesivo que houve o pleno encerramento
do texto a uma acepção de todo, já que a abertura para um processo exofórico no texto, levaria
a uma subversão da própria noção de sistema: Referência exofórica não é coesiva, desde que
não liga os dois elementos juntos em um texto
28
.
Dessa forma, a categoria exofórica de Halliday e Hasan permanece encerrando o texto
na chamada cadeia coesiva. Logo, para eles somente a referência endofórica é coesiva. A
referência exofórica contribui para a criação do texto (...) mas não para sua integração
29
.
Nessa perspectiva, o processo de coesão, tanto no nível endofórico quando exofórico, define
sua existência sempre em relação à superfície textual, definindo-se os elementos que fazem
essa referência pela ausência de especificidade semântica que, conforme os autores, são os
itens da língua que não podem ser interpretados semanticamente por si mesmos, mas remetem
a outros itens necessários a sua interpretação.
Voltamos aqui a contemplar a oscilação existente no percurso de Halliday e Hasan em
“Cohesion in English” (1976), dado que, mesmo contemplando o texto como uso e
funcionamento, o que poderia levá-los a um espaço para a inserção da subjetividade, uma vez
que os autores afirmam categoricamente que um texto deve fazer sentido para alguém,
afirmam sua filiação epistemológica que prima pela regularidade e uniformização, apagando
essa subjetividade e encerrando seu conceito de coesão ao nível intralingüístico, não
assumindo que possa haver sentido na cadeia coesiva que vá para além dela.
25
Usamos os termos centrípeto e centrífugo para caracterizar, primeiramente, um movimento de referenciação
que se dirige ao centro do próprio texto e, em segundo lugar, para designar um movimento de descentramento.
26
“cohesion as a relation in the system” (1976:18)
27
Sdo fiel à citação acima, transcrevemos a mesma no original: cohesion is part of the system of a language. The
potential for cohesion lies in the systematic resources of reference [...] (1976:05)
28
Exophoric reference is not cohesive, since it does not bind the two elements together into a text” (1976:18).
29
“[...] only endophoric reference is cohesive. Exophoric reference contributes to the CREATION of text [...] but
it does not contribute to the INTEGRATION [...]” (1976:37)
39
Nesse sentido, ficamos à vontade para afirmar que ao processo exofórico, destacado
pelos autores, não é dado lugar adequado, que não assumem a importância do componente
pragmático. Os autores afirmam sua posição dizendo que o significado da relação coesiva
baseia-se na identidade referencial e na correferência que tem na anaforização sua vinculação
a uma isotopia textual.
O fenômeno da referência é fundamentalmente ligado à coesão intralingüística e é
sinônimo do fenômeno de correfrencialidade absoluta, dado que a concepção em que é
tomado é demasiado restritiva, pois está atrelada ao vel puramente endofórico de
representação no interior do texto, no sentido de que o elemento referenciador, destituído de
sentido próprio, tem a função unicamente de designar as mesmas idéias e conceitos atribuídos
ao seu antecedente, mantendo em relação a ele dependência total. Destaca-se o fenômeno da
correferencialidade como norteador do processo de referência, apoiado na visão clássica de
referência que idealiza um mundo “cartográfico”, onde, para cada entidade, uma palavra
correspondente, pressupondo-se que a transparência seja o ideal perseguido pelo texto.
Essa ordem de fatos pressupõe que os elementos de referência apresentam uma
característica fundamental: passando da ordem de referência ao mundo (total correspondência
entre as palavras e as coisas) à ordem de referência na língua (seguindo os moldes
estruturalistas de total correspondência no sistema), esses elementos são determináveis pelas
regras formais da língua, sem qualquer relação com a situação ou exterioridade, analisáveis do
ponto de vista do co-texto. É dentro dessa perspectiva que os autores concebem a natureza dos
elementos referenciais enquanto mecanismos de progressão textual como fenômenos que se
restringem aos casos de repetição, retomada e mera sequencialização.
1.2.1 A Anáfora e a Isotopia Textual
Tradicionalmente, a noção de anáfora está relacionada ao seu valor etimológico: a
palavra referir vem do termo latino referre, o qual foi traduzido do grego anapherein e quer
dizer "repetir", "lembrar" ou "trazer de volta". Conforme vimos, para Halliday e Hasan
(1976), o próprio conceito de referência equivale a um processo de substituição e de retomada
de um antecedente num movimento de anaforização: O sinal, ou a expressão, dessa
correferencialidade é a presença do potencial anafórico
30
.
Destacamos três especificações para a relação anafórica a fim de embasar nossa
discussão:
30
The signal, or the expression, of this coreferentiality is the presence of the potentially anaphoric [...]”
(1976:03).
40
a) “um segmento de discurso é chamado anafórico quando é necessário, se quisermos
dar-lhe uma interpretação (ainda que simplesmente literal), referir-se a um outro
segmento do mesmo discurso” (DUCROT, O; TODOROV, T., 1988:257).
b) “qualquer referência a um termo já constante do contexto. [...] a anáfora é uma
iteração (pleonasmo), que consiste na repetição de termos” (CÂMARA JÚNIOR,
1964:37).
c) [...] relação de anáfora entre duas unidades A e B quando a interpretação de B
depende crucialmente da existência de A, a ponto de se poder dizer que a unidade B só
é interpretável na medida em que ela retoma inteira ou parcialmente A (MILNER,
2003:94)
Por anafórico temos, conforme os pressupostos da lingüística textual, o termo que
necessita de uma interpretação do antecedente ou o termo que permite construir esta
interpretação. Assim, a relação anafórica é caracterizada basicamente pela dependência
interpretativa que existe entre dois termos, estabelecendo certa linearidade (progressão e
sequencialização) ao texto. O entendimento do elemento anafórico diz respeito a um papel
regulador e normatizador do sentido, cuja finalidade precípua é evitar ambigüidades. Tal
elemento está efetivamente ligado ao contexto puramente lingüístico (correferencialidade) o
que é enfatizado na definição de Greimas e Courtés (1979:19) quando salientam o processo de
anaforização como um dos principais procedimentos que permitem ao enunciador estabelecer
e manter a isotopia discursiva (as relações interfrasais).
Nessa perspectiva, os elementos anafóricos mobilizam um dito presente na superfície
textual a fim de organizar o texto, caracterizando-se como um processo de estabilização da
representação lingüística, e, por sua função substitutiva, são determináveis no espaço do
próprio texto, fazendo jus a uma natureza eminentemente endofórica. Os elementos desta
natureza fazem parte daquelas categorias gramaticais que estão inseridas numa gica
subjacente à língua, revelando uma total correspondência entre o referente e seu referido. Sua
principal função reside em organizar o tecido lingüístico, evitando desvios dos sentidos
propostos, produzindo um efeito de transparência na linguagem. Isso favorece a emergência
de uma norma que legitima e avalia a correção lingüística, pela qual o sistema lingüístico é
estabilizado, ancorando-se na descontextualização de suas unidades, as quais, por sua vez,
solidificam a possibilidade de considerar a língua como um objeto sistêmico, de desenvolvê-la
espacialmente em suas relações abstratas e descontextualizadas.
No entanto, com estudos mais complexificadores do texto e dos mecanismos de
interpretação, essa concepção de anáfora como elemento interno, delimitador dos espaços de
referência, encontra uma crítica em relação ao papel estabilizador e descontextualizado que
41
exerce. Vemos em Mondada e Dubois uma crítica ao próprio conceito de texto como
estabilidade e como resultado de uma necessidade de uniformização nos processos de
interpretação, demonstrando que a padronização da escrita permitiu o desenvolvimento
científico produzindo um enunciado visual reproduzível com exatidão (2003: 47). Trata-se da
verbalização exata. Citam Latour (1988) que afirma: As práticas científicas não podem ser
concebidas sem as inscrições que produzem ‘móveis imóveis’ (apud.MONDADA E DUBOIS,
2003:47 ). A questão toda está envolta na necessidade de imobilidade das significações o que
origem à concepção de texto homogêneo e unívoco. Tal imobilidade, é destacada por
Mondada e Dubois da seguinte maneira:
No laboratório, a objetividade emerge de uma série de transformações operadas ao
curso das inscrições que constroem a inteligibilidade e a objetividade das afirmações
científicas, que podem também tornar-se fatos. Ao mesmo tempo, elas são móveis:
são fixas e não se transformam em seu movimento. Assim, elas produzem a
inteligibilidade dos fenômenos reduzidos a superfícies planas [...] Elas tornam os fatos
disponíveis na própria materialidade do texto (2003:48).
Ao que complementam com citação de Latour (1988):
Um laboratório real pode ser definido como um lugar único onde um texto é
construído para comentar as coisas que estão todas presentes nele. Pelo fato de o
comentário, os textos precedentes (através das citações e referências) e as “coisas”
terem a mesma consistência ótica e a mesma homogeneidade semiótica, a escrita
realiza um grau extraordinário de certeza [...] O texto não é simplesmente “ilustrado”,
ele comporta em si mesmo tudo o que tem a ver com aquilo a propósito de que ele foi
escrito (apud MONDADA E DUBOIS, 2003:48).
Assim, para Mondada e Dubois, uma vez estabilizados pelos textos e pelas inscrições
visuais, os fatos resistirão às desestabilizações possíveis da controvérsia, terminando por se
impor como sendo evidente e por tornar-se referentes estáveis da ciência (Ibid: 48). É a
cultura da evidência e da transparência, tão necessárias para o aprisionamento dos sentidos.
Tomando como base as críticas que evidenciam a imobilidade que os recursos de
coesão instauram no texto, buscamos elencar uma visão de anáfora e de referência como
processos construídos no discurso, de acordo com pressupostos pragmáticos. Nesse momento
atentamos para o processo exofórico de referência, elidido das formulações da lingüística
textual, em busca de uma abertura semântica do texto.
1.2.2. Extrapolando os Domínios da Lingüística Textual: da referência à referenciação
Com base no exposto, partimos do fato de que comumente duas grandes categorias
de elementos de progressão textual: aqueles que, numa concepção idealista de língua, são
42
como etiquetas, como espelhos e aqueles que, numa concepção processual, são construídos,
são representações produzidas por atividades lingüísticas de sujeitos culturalmente situados
no mundo.
Os partidários da segunda concepção, focando-se na dinâmica do sentido, propuseram,
com base no fato de que os referentes não são apriorísticos e estáticos, mas móveis no interior
do texto, produzindo elos entre este e as situações de seu uso, que fosse denominado por
referenciação
31
o processo de retomadas e substituições que formam a cadeia coesiva dos
textos. Assim, referenciação, em oposição à referência, traz para os estudos dos mecanismos
coesivos, teor de processo, de construção de sentidos. Logo, para os autores dessa linha, os
elementos de referenciação não só dão continuidade ao texto, mas colaboram para a
construção e manutenção dos referentes. E, inversamente ao fenômeno da referência,
eminentemente simétrico dentro dos pressupostos da LT. A referenciação caracteriza-se por
uma certa assimetria entre referenciador e o elemento de referência.
Importa frisar que a passagem da referência à referenciação representa um salto
qualitativamente importante para os estudos lingüísticos do texto, uma vez que a concepção
de referência postula, em suas rias acepções, um ideal de objetividade, advindo da procura
pela constituição de uma língua ideal, em perfeita sintonia com o mundo que reflete, o que
ressalta a necessidade de idealização do sujeito e do contexto em que está situado.Tudo, nesse
sentido, aponta para a construção de uniformidades, deixando para as contradições e
ambigüidades estatus de erros e falácias a serem sanadas. A referenciação vem, por uma outra
ordem, mostrar que a instabilidade não é falaciosa, mas é uma dimensão intrínseca do
discurso (MONDADA E DUBOIS, 2003:21). Assim, para os autores, esse processo comporta
uma instabilidade constitutiva que aponta para a impossibilidade de objetivação do sujeito, do
contexto e da ngua, as práticas lingüísticas não são imputáveis a um sujeito cognitivo
abstrato, racional, intencional e ideal, solitário face ao mundo, mas a uma construção de
objetos cognitivos e discursivos na intersubjetividade das negociações, das modificações, das
ratificações de concepções individuais e públicas do mundo (2003:23).
A análise dos processos de referenciação de que partem os autores, transgride a
questão da referência como discretização e como fenômeno de coesão endofórica. Assim a
referenciação, no lugar de referir a uma ordem do mundo ideal e universal e à sua nomeação
(2003:49), explicita o reconhecimento do papel central das práticas lingüísticas de um sujeito
31
Fazemos referência à tradução brasileira de MONDADA, L; DUBOIS, D. Construction des objets de discours
et catégorisation: une approche des processus de référenciation. TRANEL (Travaux neuchâtelois de
linguistique), 1995/ Tradução de Mônica Magalhães Cavalcante (2003)
43
envolvido, social e culturalmente ancorado, assim como da multiplicidade, mais ou menos
solidificada, das versões do mundo que elas produzem (2003:49).
Seguindo esta perspectiva, Mondada e Dubois (2003) designam os referentes como
objetos de discurso pelo fato de não serem nem pré-existentes, nem dados, mas por se
elaborarem no curso de suas atividades, o que reitera sua instabilidade natural. Cavalcante
(2003), em consonância com a concepção de objetos de discurso, frisa o fato de que os
objetos de discurso são construtos culturais, representações constantemente alimentadas
pelas atividades lingüísticas. E, sob tal pensamento, seria então mais adequado falar de
referenciação, e não de referência, de modo a ressaltar a idéia de processo que caracteriza o
ato de referir (Ibid:10). Neste caso, introduzir um referente, no discurso, não é apenas apontar
para um elemento recuperável e dado na superfície, conferindo ordem sequencial, mas
produzir uma cadeia de redefinições, de construção discursiva do(s) referente(s), cujos
sentidos podem oscilar, o que implica escolhas e trabalho sobre o texto.
Isto diferencia basicamente referência de referenciação, pois a função dos objetos de
discurso está além da simples continuidade referencial. Sua existência não reside no fato de
manter a redundância necessária para a coesão do texto, nem somente em manter a cadeia
referencial, mas adiciona informações novas, fazendo com que o texto se complexifique em
suas relações com a situação e com o sujeito ao mesmo tempo em que mantém laços internos
com outros elementos. Neste ponto, seguramente afirmamos a necessidade de entendimento
dos referentes como auxiliares da progressão tópica dos textos e não meramente como
sequencializadores. Não se trata propriamente de uma relação endofórica, nem de
correferencialidade, mas de uma relação discursiva que é gerada de forma a organizar o tópico
do texto e a atualizá-lo nas circunstâncias de seu uso. No dizer de Mondada:
O objeto de discurso caracteriza-se pelo fato de construir progressivamente uma
configuração, enriquecendo-se com novos aspectos e propriedades, suprimindo
aspectos anteriores ou ignorando outros possíveis, que ele pode associar com outros
objetos ao integrar-se em novas configurações, bem como de articular-se em partes
suscetíveis de se autonomizarem por sua vez em novos objetos. (1994:64).
Este autor não nega o efeito estabilizador dos mecanismos de referenciação, nem sua
importância para a formação do texto, contudo aponta que a estabilidade que conferem a um
segmento textual é virtual, ou seja, é singular e compatível com o momento da leitura. A par
disso, Mondada e Dubois (2003:19) sublinham que no lugar de pressupor uma estabilidade a
priori das entidades no mundo e na ngua, é possível reconsiderar a questão partindo da
instabilidade constitutiva das categorias por sua vez cognitivas e lingüísticas, assim como de
seus processos de estabilização. Nessa transição da referência à referenciação, os autores
44
colocam em pauta a questão da discretização e da estabilização, explicitando que a progressão
referencial não implica correferência, mas construção fundada num contexto, numa relação
entre o lingüístico e o o-lingüístico, o que é fundamental para explicar que os processos de
coesão e coerência podem estar num nível implícito no processamento textual.
As instabilidades não são simplesmente um caso de variações individuais que
poderiam ser remediadas e estabilizadas por uma aprendizagem convencional de
“valores de verdade”; elas são ligadas à dimensão constitutivamente intersubjetiva
das atividades cognitivas. É com relação a isto que insistiremos na referenciação
concebida como uma construção colaborativa de objetos de discurso (2003:20).
Logo, a perspectiva de texto de que partem está além de uma totalidade cujo sentido é
único e delimitável, mas condiz com uma proposta de texto lacunar em que os diferentes
sentidos que podem ser atribuídos, não partem sempre do mesmo ponto e o componente
pragmático age intensamente no processo de produção de sentidos, saindo da ordem
puramente sistêmica e funcional, adentrando na ordem do intangível.
O problema, portanto, não é perguntar como as partes do texto se ligam, que
mecanismos são usados para conferir coerência, mas sim buscar como as atividades do sujeito
estruturam e dão sentido ao texto num processo de construção, de produção de efeitos de
sentido ligados às situações particulares de leitura, conforme segue:
As categorias e os objetos de discurso pelos quais os sujeitos compreendem o mundo
não são nem preexistentes, nem dados, mas se elaboram no curso de suas atividades
transformando-se a partir dos contextos. Neste caso, as categorias e objetos de
discurso são marcadas por uma instabilidade constitutiva, observável através de
operações cognitivas, ancoradas nas práticas, nas atividades verbais e não-verbais,
nas negociações dentro da interação (MONDADA E DUBOIS, 2003:17).
O foco destes autores, em oposição aos tratados, está no entendimento da
referenciação como prática simbólica e não como processo de discretização, de ontologia
dada, buscando entender os processos de produção e recepção textual como processos
concretos, pensam a relação do sujeito com o objeto de uma forma distinta da anteriormente
focada, destacando o fato de que, sendo um processo desenvolvido nas interações individuais
e sociais, portanto, advindo de práticas sociais, questões como adequação referencial,
correspondência não são prioritárias, pois o que está em jogo é a relação intrínseca entre a
categorização e os atores sociais num contexto dado. O elo que se estabelece entre o elemento
categorizador e seu antecedente está envolto num quadro de práticas sociais que acabam por
definir os sentidos naquele momento singular. É neste caso que a pragmática encontra sua
efetiva inserção nos estudos do texto.
45
Nas palavras de Rastier apud Mondada e Dubois (2003) a referenciação não diz
respeito a uma relação de representação das coisas ou dos estados de coisas, mas a uma
relação entre o texto e a parte não-lingüística da prática em que ele é produzido e interpretado.
O que difere referência de referenciação está atrelado, portanto, ao entendimento
acerca de endoforia e exoforia, uma vez que passar à ordem da referenciação, pressupõe um
processo de construção de um caminho ligando interior e exterior, co-texto e contexto, sendo
um determinante para o outro, logo a categoria de referenciação (exofórica) encontra acepção
mais larga e menos estática em conceitos como de Mondada e Dubois uma vez que não a
aceitam como meramente desambiguizadora, mas ancorada em práticas dependentes tanto de
processos de enuncicação como de atividades cognitivas não necessariamente verbalizadas
(2003:29). Assim, o lugar de que falam é aquele em que o sentido não é dado, é efeito
32
, o
texto não é uno, é múltiplo.
Mas, inversamente, na mesma medida em que as duas relações apresentam
propriedades distintas, elas podem também se combinar, pois a referenciação apresenta
sempre um elo em comum com a referência: a necessidade da correferencialidade (mesmo
que parcial) com outro elemento do texto. Essa necessidade reside no fato de que ambas
relações ainda estão a serviço da evolução da cadeia coesiva do texto. Assim, podemos
destacar o fato de que à instabilidade do fenômeno da referenciação subjaz a necessidade de
estabilidade, à exoforia que a determina, sobrepõe-se a endoforia como base para sua
sustentação.
Partindo das definições acima de referência e referenciação e, como os conceitos de
elementos fóricos são pensados à luz de diferentes teorias, a fim de delimitar nosso foco de
atenção, voltaremos ao conceito de anáfora, contemplada do ponto de vista da exoforia.
1.2.3. Voltando à Anáfora como Objeto de Discurso
Da perspectiva colocada em questão neste momento a anaforização abarca alguns
aspectos basilares como o fato de que um anafórico ultrapasse o contexto lingüístico para um
nível pragmático, em que o contexto não-lingüístico passe a intervir. Mondada e Dubois
(2003), na esteira do que definem por referenciação e por objetos de discurso, apresentam
uma crítica explícita em relação ao conceito de anáfora como recurso para o alcance da
isotopia, para tanto dizem que a anáfora exerce um papel de regulação intralingüística, cujo
efeito é de estabilização e planificação do discurso: a anáfora tem sido vista como um modo
32
Salientamos que efeito é aqui entendido tal como postulado pela Análise de Discurso Francesa, uma vez que
não há possibilidade de suturação total de sentidos, tal como é pretendido pelas relações coesivas em LT.
46
de estabilizar ou de focalizar uma denominação particular, excluindo para isso outras
possibilidades, mesmo se elas estiverem potencialmente disponíveis no texto (2003:43). Fica
explícito que, na concepção defendida pelos autores, essas outras possibilidades devem ser
levadas em consideração e são partes constitutivas dos sentidos do texto.
Podemos partir, portanto, do fato central de que as expressões anafóricas, dependendo
de fatores contextuais e pragmáticos, distinguem seu funcionamento quando partem de um
processo de referenciação. Isso leva a um distanciamento da concepção de anáfora como
correferencialidade, noção de ligação puramente sintática, sem nenhum valor extra-
lingüístico. Adentra-se num espaço em que são estabelecidas relações discursivas, cuja
propriedade referencial de atribuição de sentidos e de predicação em relação ao antecedente se
sobrepõe a uma simples ligação intratextual.
Assim como Mondada e Dubois, Apothéloz (2003) define-se por uma visão de anáfora
(e de referência) como uma unidade construída no texto, de acordo com pressupostos
pragmáticos. O autor justifica sua abordagem, rejeitando a formulação segundo a qual um
anafórico refere a seu antecedente (Ibid:57), pois, para ele, essa descrição reduz a relação
anafórica à relação metalingüística ou metadiscursiva. Assume, portanto, que as formas de
retomada são, antes e acima de tudo, expressões referenciais no sentido mais geral do termo
(Idem). Objeta também a acepção de antecedente como segmento textual univocamente
delimitável, que a anaforização não podendo servir-lhe como etiqueta correferencial e co-
significativa, o transforma. Segundo Apothéloz (2003:61) a relação de correferência é
freqüentemente considerada como o protótipo da anáfora: é esse fato que nos leva a
considerar a existência de uma distância muito grande entre anáfora da ordem da referência
e a anáfora na ordem da referenciação.
Enfatiza, um caso específico de anáfora por nomeação, indicando que as nomeações
mostram que os mecanismos da anáfora podem levar muito além da simples retomada de
informação e contribuir para os aspectos mais especificamente construtivos do discurso
(Ibid: 3). Assim, ampara-se no mesmo escopo teórico de Mondada e Dubois, cercando-se de
fatores pragmáticos a fim de negar pressupostos formais e eminentemente endofóricos. A par
disso, Apothéloz ainda problematiza a questão da endoforia e da exoforia e suas fronteiras,
promovendo uma reflexão que se encontrava latente em Halliday e Hasan, mas que por razões
epitemológicas estes se encarregaram de opacificar.
De acordo com essa flexibilidade concedida à noção de anáfora, que se destacar o
efeito de instabilidade, que caracteriza o modo de entender, descrever e compreender o objeto
texto, o que lança, segundo Mondada e Dubois (2003:28) a desconfiança sobre toda
descrição única, universal e atemporal do mundo.
47
Isto sugere claramente que o conceito tradicional de anáfora como operação de
designação referencial, nos moldes de uma simples retomada, não encontra sustentação numa
teoria da referenciação
Encontramos em Milner (2003
33
) uma distinção que em muito nos auxilia na
compreensão do processo de anaforização na ordem da referenciação e que vem ao encontro
da proposta de Apothéloz. Milner distingue anáfora e correferência como duas relações
autônomas, pois a anáfora apresenta uma relação de assimetria entre os termos ligados, à
medida que a correferência caracteriza-se por uma relação de simetria. O que justifica, para
ele, o enquadramento dos mecanismos de coesão, tal como abordados por uma lingüística
textual sistêmica (Halliday e Hasan) como fenômenos não de referência, mas de
correferencialidade.
O autor, nesse sentido, parte do fato de que a anáfora apresenta assimetria em relação
ao termo anaforizante, dado o fato de que ambos tem potencial referencial próprio, ao passo
que a correferencialidade é característica dos mecanismos estritamente de retomada
34
que, não
possuindo referência própria, apenas a adquirem em dependência de outro termo que os
antecede (caso específico da pronominalização). Aqui, fica bastante claro, que a anaforização
não é uma pura relação simétrica entre elementos homogeneamente ligados, mas uma relação
assimétrica em que ambos elementos se complementam, o que leva a um desligamento da
relação puramente pronominal. Segundo o autor, para que uma unidade lexical X entre em
relação de correferência virtual com uma unidade Y, é necessário que Y seja desprovido de
referência virtual própria (quer dizer, que seja um pronome) (2003:88).
O autor destaca as categorias de referência virtual/referência real e correferência
virtual/correferência real para distinguir os significados das unidades em uso e seus
significados literais. Para ele é da ordem do real a referência e a correferência das unidades
em uso, ao passo que é da ordem do virtual o que subsiste fora do emprego, é aquilo que faz
parte da designação do termo em termos dicionarístico e ao seu uso intralingüístico.
Esta é a base para o entendimento do anafórico como simétrico em relação ao seu
antecedente, usando o exemplo do pronome que extrai sua referência do nome que ele
anaforiza, com a função simplesmente de indicar, identificar, retomar e dar seqüência gica
ao texto. Assim, tomada em si mesma, a anáfora pronominal usual não é nada mais que a
combinação da correferência e da retomada(2003:97).
33
Referimo-nos à tradução brasileira de MILNER, J-C. Ordres et raisons de la langue. Paris: Seuil, 1982. p.9-65/
Tradução de Mônica Magalhães Cavalcante (2003).
34
Destacamos que mecanismos de retomada para Milner são idênticos à forma ligada elencada por Apothéloz.
48
Operando essa diferença entre anaforização e correferencialização, Milner salienta que
ambas confundem-se num nível genérico, no entanto, distinguem-se quando identificadas
particularidades. O autor cita:
correferência entre duas unidades referenciais A e B quando elas têm a mesma
referência o que pode acontecer sem que a interpretação de uma seja afetada pela
interpretação da outra. Os dois termos relacionados podem ser homogêneos ou não
quando a sua natureza categorial: N”/N” ou P/P, ou os pares heterogêneos N”/P. A
relação é manifestamente simétrica e transitiva; não seria descabido considerá-la
como reflexiva: uma unidade referencial pode ser dita correferencial dela mesma.
[...] Em oposição, a relação de anáfora é uma relação assimétrica , que existe entre
um primeiro termo anaforizado e um segundo termo anaforizante. Podemos fazer
uma distinção entre anáfora pronominal e nominal. No primeiro caso, o anaforizado
é um N” e o anaforizante, um pronome de terceira pessoa. O par anafórico é
claramente heterogêneo, do ponto de vista categorial. O pi da relação é que o
pronome, desprovido, por natureza, de referência virtual, recebe uma referência
virtual do anaforizado. Basta, então, que este último seja provido de uma referência
virtual [...] No segundo caso, anaforizado e anaforizante são todos dois N”: há
homogeneidade categorial; em contraste, o pivô da relação é, com efeito, que o
referente do anaforizante seja tomado como identificado somente pela relação que
mantém com o referente do anaforizado (2003:108).
Tal base para a determinação do anafórico faz com que notemos sobre quais bases a
coesão na lingüística textual foi cunhada, pressupondo uma interpretação direta do contexto
lingüístico, sem informações adicionais quanto aos segmentos designados. ausência de
pressuposições, de implícitos para os elementos anaforizantes, que a ausência de referência
própria, os coloca numa posição inerte, dando-lhes função de elos. Note-se que o texto foi
determinado como unidade de referência virtual, num nível de abstração.
Milner salienta que é uma informação externa implícita na relação de anaforização que
sustenta a diferença entre anaforizar e correferenciar, já que o autor coloca a anaforização
como uma relação real que, por sua natureza exofórica, não pode ser direta, nem transparente:
Na medida em que a anáfora nominal concerne essencialmente à identificação de
uma referência real, não parece concebível que ela possa ser reconhecida em uma
situação onde o anaforizante nominal seja provavelmente desprovido de referência
real. Tal eventualidade seria, ao contrário, imaginável, e de fato atestada, para a
anáfora pronominal (2003:108-109).
Coloca em jogo duas tarefas para a anáfora: a de identificar e a de particularizar, já que
na anáfora o poder de modificar o caráter genérico ou particular do anaforizado. Anáforas
pronominais não particularizam, apenas identificam, ao passo que as anáforas nominais tem o
potencial de particularizar.
Passando, da ordem formal da referência para a ordem discursivo-pragmática da
referenciação, a categoria anafórica apresenta definições e funções particulares que procuram
49
desmascarar a imagem de transparência lingüística dada a tais elementos. Logo, alguns papéis
têm sido atribuídos a esses elementos, provocando o entendimento de que referenciar, no
nível textual, não condiz com fechar, com suturar, mas com a abertura para a opacidade
latente e que depende da ação do sujeito sobre a língua. Elencamos, para exemplificação da
relação anafórica discursiva, alguns papéis atribuídos aos anafóricos e que entendemos serem
ainda limitados para nossos propósitos de análise neste trabalho:
a) Papel resumitivo ou de encapsulamento: trata-se do recurso coesivo chamado
encapsulamento anafórico pelo qual um elemento funciona como paráfrase resumitiva
de uma porção precedente do texto. É um recurso que não é destacado pela
correferencialidade absoluta, mas pela retomada de parcelas de informação, cuja
extensão pode ser de uma sentença ou parágrafo inteiro. O antecedente ou âncora não
é claramente delimitado no texto, mas deve ser reconstruído pelo leitor. Halliday e
Hasan (1976) tratam desta categoria como Referência Estendida, a fim de esgotar a
possibilidade de referência ao sistema.
b) Papel conceitual: as chamadas anáforas conceituais (GERNSBACHER, 1991;
OAKHILL, 1992) destacam-se pela ausência de correferencialidade e por um processo
de pronominalização sem antecedente. Trata-se de um pronome plural que não tem um
antecedente delimitado, sendo necessário o contexto textual para que haja inferência
de seu antecedente. Foi denominada por Marcuschi (1998, 2000) de anáfora
esquemática e anáfora indireta
c) Papel axiológico: Trata-se da intervenção de alguma espécie de valor, principalmente
valores morais, que contribuem para a construção do referente no texto ancorado em
práticas culturalmente situadas. Cada contexto, cada situação particular contribuirá de
forma a que o referente multiplique suas possibilidades de significação;
d) Papel associativo: as anáforas associativas são, segundo Apothéloz (2003), sintagmas
nominais que apresentam certa dependência interpretativa, mas sem
correferencialidade a um referente. Este tipo de anaforização repousa sobre
conhecimentos gerais supostamente partilhados. Para Kleiber (1999) podem funcionar
através de estereótipos, realizadas com base em uma relação de associação semântica
ou léxico-estereotípica.
Tais acepções para a função anafórica distanciam essas categorias da base puramente
endofórica a que estavam atreladas, em função de estudos sistêmicos, já que o contexto
lingüístico por si não conta da interpretação da relação entre os elementos coesionados.
50
Entretanto, algumas ressalvas devem ser feitas, apesar da amplitude alcançada pelo conceito
de anaforização, de seu desligamento parcial da função de correferenciação e do
entendimento da necessidade de informação não puramente lingüística para a interpretação do
texto. Há duas restrições que sobrepõem o nível endofórico ao exofórico.
1º) a necessidade de manter um referente identificável;
2º) o controle sintático (sintaxe de concordância, por exemplo.) do antecedente sobre
o anaforizante, ou seja, a eterna ilusão da busca de uma relação de transparência e simetria
entre a referência e os significantes a que ela remete.
A correferencialidade ainda é pressuposto básico do processo de anaforização, por isso
a citamos ainda como necessidade parcial, mas determinante.
Contemplando, portanto, o fato de que a completude e a transparência almejadas pela
lingüística textual representam uma ilusão e, até mesmo, uma necessidade cuja, finalidade
reside em uniformizar o objeto de estudo, ressaltamos que os mecanismos de coesão
endofóricos como os citados até então, fazem jus ao objetivo proposto pela lingüística do
texto, mas até certo ponto, que constatamos que nem mesmo o processo endofórico é
eminentemente centrípeto, mas que algo de exofórico é constitutivo desses elementos, como
uma forma de mostrar que, por se tratar de textos, a objetivação e descontextualização são
impossíveis de serem aplicadas a fim de sistematizar e planificar este objeto.
É com base nesse percurso acerca do processo de coesão textual que é nítido que, no
nível do estudo de textos, o ato de fazer referência é o responsável pela estabilidade deste
objeto. Assim, se um texto, para ser texto, necessita de textura, textualidade, e se para isso a
coesão é fator preponderante, mesmo que não suficiente, a referência é o mecanismo coesivo
primeiro da textualidade.
A lingüística, e sua tributária a lingüística textual, partem do pressuposto da
regularização, tentando planificar um objeto que é por natureza multiforme. O que é fruto dos
movimentos dicotômicos da lingüística que fundados na idéia de que os fenômenos tais como
se apresentam devem ser libertos de suas qualidades intrínsecas a fim de instituir um objeto de
pesquisa. Naturalmente, o fenômeno multiforme chamado texto sofreu uma redução para de
modo legítimo aceder ao estatuto de objeto científico. Ganhou-se rigor com este gesto, mas
não sem perdas. O conhecimento acerca da estrutura do texto assenta-se sobre a redução da
complexidade, baseando-se na formulação de regras, à luz de regularidades observáveis:
É plausível, portanto, considerar que duas ordens de pensamento circundam os estudos
do texto convivendo e opondo-se:
51
1º) uma vertente epistemologicamente e metodologicamente vinculada ao
positivismo, voltada de forma contundente à produção de conhecimento
objetivo e explicativo, rigorosa e, por isso, com objeto restrito;
2º) uma vertente que se diz “declarada” aberta, que incide sobre o objeto de
modo a não o restringir a um sistema de regras. Esta vertente é de natureza
pragmática, subjetiva, prima por métodos qualitativos em oposição aos
quantitativos, com vistas à obtenção de conhecimento intersubjetivo;
No entanto, tipicamente, essa segunda vertente depara-se com uma crise, pois
reproduz o reducionismo da primeira distanciando-se apenas em alguns pontos, continua com
um movimento de cerceamento do texto, dirigindo o olhar para os mesmos aspectos que a
lingüística circunscrevia para seu campo de atuação. Isso ocorre, repetimos, porque a
lingüística destinada ao estudo do texto é tributária da lingüística oracional, dela reproduzindo
os modelos.
No sentido, então, de romper com o campo estático de análise da linguagem,
propomos de forma categórica que o texto, por sua propriedade de uso, de linguagem em
funcionamento, não é da ordem do Todo, que propomos que há uma falta que o
circunscreve, trazendo ele para o Não-Todo, colocando-o numa posição avessa ao
entendimento linear. um ponto de impossível que nele se coloca, de modo a compreender
que, a todo momento, novas totalidades se estruturam e se reestruturam. Vemos o texto, sob
esta ótica, com enfoque qualitativo, olhando para o fenômeno de constituição de sentidos.
Assim, o que se manifesta no texto é da ordem de um saber aberto à emergência de um dizer
que pode desconstruir o dito, fazendo emergir outros dizeres que o circunscrevem. Por não
trazer o todo do sentido, ou o sentido sob a forma do todo, o texto passa a implicar a
necessidade do outro, o compartilhar o trabalho sobre o texto, na emergência da compreensão
do texto como espaço de construção e desconstrução, como espaço para o dizível e o que lhe
escapa.
Lançando o olhar sobre nosso foco de estudo, partimos de algumas observações e
indicações genéricas sobre certos aspectos significativos dos estudos do texto como a coesão e
a coerência, já que nos parece subjacente que todo o aporte teórico e metodológico dispensado
para análise de textos, foi transportado para a análise de hipertextos, ou melhor, o hipertexto,
foi encaixado na LT como um novo gênero textual sem maiores observações sobre suas
peculiaridades.
Para tanto, antes que o propósito de nossa investigação seja enunciado,
detalhadamente explicado e abordado, precisamos tecer alguns comentários sobre as análises
que a LT empreendeu sobre o texto digital, dado o fato de que, do lugar discursivo de onde
52
falam os lingüistas do texto, o movimento de encaixar o hipertexto em sua circunscrição
produziu perdas significativas na natureza desse objeto.
1.3 Um Olhar sobre o Hipertexto: o que a lingüística textual nos diz...
O termo hipertexto
35
, composto pelo prefixo hiper, que significa “além”, “excesso”
e pelo sintagma texto, que comporta o significado de “conjunto de palavras e de frases”
36
,
exprime a idéia de escrita/leitura não linear, possuindo um aparato paratextual na forma de
referências, gráficos, remissões, bancos informacionais, tudo demandando de um suporte
tecnológico, cujo acionamento se faz ao simples toque de um elemento eletrônico de ligação.
Esse texto hiper caracteriza-se por uma complexidade que transpõe os limites do texto tal
como contemplado nos estudos da linguagem, dado que este texto eletrônico perturba noções
tão fundamentais como: linearidade, autoria e leitura, bem como implica abdicar do controle
sobre o texto, aceitando a dispersão da noção de unidade centrada na materialidade
lingüística, para comportá-la como um efeito discursivo. Para compreender este conceito
deve-se, inicialmente, ampliar a definição de texto em dois sentidos:
a)
Substantivamente, um texto pode designar mais do que palavras e frases;
b) Estruturalmente, o texto pode transcender a dimensão unitária (linear e seqüencial)
que é imposta pelo meio impresso e pela cultura, constituindo-se de
multidimensões: relacionamento seqüencial e acesso randômico de idéias;
O hipertexto mobiliza um recurso conhecido e discutido com relação aos textos em
suporte impresso: a multiplicidade de percursos de leitura. Isso é fato comum quando o objeto
texto está em debate. Todavia, a estrutura hiper faz com que esse potencial de leitura, através
de diferentes percursos a serem feitos livremente pelo leitor, se constitua na possibilidade de
esse leitor ser, a um tempo, autor de outro texto. Cria-se com o hipertexto uma rede textual
de referências cruzadas, disponíveis em tempo real. O hipertexto deve possibilitar a
construção do texto de cada nó, bem como a interligação desses nós através dos hiperlinks, os
quais funcionam como elos entre os textos disponíveis na rede e cuja organização fica a cargo
do próprio leitor. Esse fato permite pensar o texto eletrônico segundo várias imagens que,
metaforicamente, descrevem seus processos de organização: centrífugo ao invés de centrípeto,
multimodal ao invés de logocêntrico, descontínuo ao invés de linear. Trata-se de uma
textualidade aberta, inibidora do conceito de texto nucleado e centrado, enquadrado por
margens.
35
A definição de hipertexto, devido a sua complexidade, será abordada adiante.
36
Dicionário Aurélio, 1986.
53
Um outro aspecto a se observar é que com o hipertexto não necessidade de ter um
único enredo linear, uma fixidez de caminhos. Esse texto acontece onde cessa a linearidade.
Estamos, então, diante de um processamento textual que excede os parâmetros constituídos
pela ciência da linguagem, o que conduz à emergência de olhares mais aguçados para este
novo objeto que surge no âmbito dos estudos do texto, fragilizando a noção de uma estrutura
hierarquizada para colocar-se como lugar de multiplicidade, constituindo-se por ser uma
estrutura poli-hierarquizada, que se assenta na base do cruzamento de sentidos. E enfatizamos
a palavra sentidos no plural, em favor do entendimento da impossibilidade de encontrarmos
um sentido uno e delimitável no interior do texto, mesmo daquele texto instituído pela ciência
da linguagem, dado que nele também há caminhos que se cruzam e que o fazem ultrapassar as
margens da folha de papel.
Lançando um rápido olhar sobre o hipertexto, podemos visualizá-lo como efêmero em
suas manifestações, desprovido de limites ou partes definidas, desenvolvido de forma
multilinear o que possibilita uma estrutura não permeada por uma noção de completude. E,
embora o alcance dessa nova maneira de produção textual ainda não tenha sido amplamente
avaliado, os estudos sobre o hipertexto têm se movido em direção ao estabelecimento de
pontos em comum com as teorias do texto clássicas e que atribuem ao texto impresso muitas
das características inerentes à textualidade informática.
Nesta convergência, encontramos definições e análises do texto eletrônico que partem
do lugar da lingüística do texto (o que justifica nossas explanações precedentes). Entre tais
trabalhos, alguns ocupam espaço significativo, no âmbito dos estudos brasileiros, com autores
que têm dispensado atenção ao tratamento do hipertexto e de sua estrutura linkada.
Importa ressalvar que os estudos do texto presenciam essa emergência do texto hiper
como um novo gênero textual” (Marcuschi, 2004) que tem, em certos aspectos, modificado
a relação entre autor-texto-leitor, bem como entre língua e uso, mas que tem sido colocado
lado a lado com o texto com que esses autores trabalham.
Autores como Koch (2002), Marcuschi (2000, 2004), Xavier (2001, 2002, 2004), têm
se dedicado à reflexão dos processos de leitura e escritura em ambiente digital, cujos enfoques
convergem para um mesmo ponto: o papel dos hiperlinks como elementos coesivos e o
processamento da coerência no texto eletrônico.
Destacamos que, para operar a aproximação “necessária” entre texto e hipertexto,
esses autores têm mobilizado o conceito de texto com que a LT tem trabalhado. Trata-se do
conceito cunhado por Beaugrande (1997), que contempla o texto como um evento
comunicativo no qual convergem ações lingüísticas, cognitivas e sociais (1997:60).
54
Essa definição, no dizer de Beaugrande, sugere que o texto não é uma simples
seqüência de palavras escritas ou faladas, mas um evento visto como um sistema de conexões,
que envolve aspectos lingüísticos e não-lingüísticos em seu processamento, o que o torna um
evento interativo que se baliza por uma natureza processual. Baseados, portanto, nessa
flexibilização da concepção de texto, esses autores “enquadram” o hipertexto nesses moldes,
não havendo um real deslocamento de campo teórico. Notamos esse movimento nas
descrições que seguem.
Numa tentativa de destacar pontos em comum entre texto e hipertexto, Koch
(2002:63), parte do ponto de vista de que “todo texto é um hipertexto”. Para tanto, apóia-se
em alguns fatores de aproximação entre ambos, asseverando que:
a) o texto é uma proposta de múltiplos sentidos e não mais de um sentido único;
b) no texto há, assim como na estrutura hipertextual, “links” que assumem o papel de
projetar o leitor para o exterior como notas de rodapé, referências, citações, etc;
c) a multisemiose não é característica particular de hipertextos, dado o número de
linguagem não-verbal (tabelas, gráficos, imagens) que acompanha a linguagem
verbal;
d) todo Texto é lacunar, dado que as informações veiculadas não são explícitas;
e) analogamente ao hipertexto, o texto é não-linear, dada a pluralidade de direções
permitidas pelo texto;
Sugere, para tanto, que por ser concebido como uma proposta de sentidos múltiplos,
tal como em a, e não mais de um único sentido, o texto é constitutivamente hipertextual, pela
possibilidade de cruzamento de sentidos e do número de inferências permitidas ao leitor. A
autora faz menção à estrutura lacunar dos textos em sua maioria, cuja constituição se
através de recursos que atuam como “links” que podem remeter o leitor para além da
superfície textual, como postulado em b. Assim, em sua definição, a diferença com relação
ao hipertexto eletrônico está apenas no suporte e na forma e rapidez do acessamento
(2002:61).
Além dessas observações, a autora é enfática em sua comparação, valendo-se do fato
de que, assim como os hipertextos, os textos em suporte impresso são multisemióticos (c),
pelo número de informações agregadas. Usa como exemplo reportagens construídas em torno
de boxes explicativos, gráficos, tabelas, o que faz com que linguagem verbal e não-verbal
convirjam em ambos suportes, o que levaria o hipertexto para os domínios de estudo da
lingüística textual, pelo menos aparentemente.
55
E mais, assumindo a perspectiva da leitura a autora busca solidificar sua aproximação
elencando aspectos comumente discutidos em LT, admitindo como certo que não existem
textos - escritos ou orais - totalmente explícitos, e que qualquer texto, digital ou impresso, se
constitui de um conjunto de pistas destinadas a orientar o leitor na construção do sentido; e,
ainda, que, para realizar tal construção, ele terá de preencher lacunas, formular hipóteses,
testá-las, encontrar hipóteses alternativas em caso de “desencontros” entre o dito e o não-dito,
tudo isso por meio de inferências que exigem a mobilização de seus conhecimentos prévios de
todos os tipos, dos conhecimentos pressupostos como partilhados, do conhecimento da
situação comunicativa, do gênero textual e de suas exigências:
na construção do sentido, um constante movimento em variadas direções bem
como o recurso ininterrupto a diversas fontes de informação, textuais ou
extratextuais. Verifica-se que a compreensão não se de maneira linear e
seqüencial, como se pensava antigamente, o que vem a constituir um argumento a
mais para afirmar que todo texto é um hipertexto (2002:62-63) [grifo nosso].
Em contrapartida, a autora ainda prima por uma textualidade pautada na linearidade e
na literalidade, conforme segue:
[...] espera-se sempre um texto para o qual se possa produzir sentidos e procura-se a
partir da forma como ele se encontra lingüisticamente organizado, construir uma
representação coerente, ativando, para tanto, os conhecimentos prévios e/ou tirando
as possíveis conclusões para as quais o texto aponta [...] (2002:19).
Importa ressalvar que a autora pressupõe um texto estrategicamente planejado e
orientador do sentido proposto pelo autor/produtor, o que mobiliza o fato de que os sujeitos
envolvidos no processo de construção de sentidos sejam ideais e estejam em situações ideais.
Em vista disso, partimos do fato de que as aproximações que a autora faz simplificam o
entendimento do texto em suporte digital e seus processos de leitura, além de que, do campo
teórico de onde enuncia, submete o sujeito a um papel de ordenador, de manipulador da
língua, como se entre ambos não houvesse uma relação social e histórica que interviesse na
comunicação.
Isso aponta o fato de que, para que sua concepção de texto tenha legitimidade, a autora
amplia suas definições e pressupõe uma sobreposição do texto ao hipertexto, solidificando a
LT como via de acesso ao estudo de textos. Em resumo, Koch salienta características em
comum entre Hipertexto e Texto a fim de possibilitar uma abordagem mais ampla do texto
segundo os princípios que regem o texto eletrônico e não visa a uma abordagem do hipertexto
em si, o que formaliza a análise deste com diferenças apenas graduais em relação àquele.
56
Apesar de sua constatação de que textos e hipertextos convergem em muitos aspectos,
Koch é levada a frisar um fator primordial no destaque da singularidade do texto eletrônico.
Trata-se de sua estrutura constitutivamente linkada. Atribui aos hiperlinks o potencial de
principal inovação do texto eletrônico, dado o fato de que tais dispositivos técnico-
informáticos têm função de realizar remissões, acessos a outros hipertextos, formando uma
grande rede multilinear, sendo eles a via de acesso para o entendimento da natureza do texto
eletrônico. Contudo, nas análises que empreende sobre o hipertexto e suas propriedades, a
autora busca definições para os hiperlinks que os colocam em posição análoga aos elementos
de coesão textual cunhados pela LT. Para tanto, parte de uma classificação que define duas
funções para os links eletrônicos: uma fixa e outra móvel
37
.
Os links caracterizados pela fixidez, são aqueles que têm um espaço estável e
constante no site, que são parte da estrutura do site como os links search (busca), next
(próxima), volta (back), links que compõem os sites de provedores como Terra, Uol, etc. São
denominados Links Fixos.
Há os links definidos por sua mobilidade, por sua variação, uma vez que aparecem de
acordo com a conveniência do navegador. Trata-se dos links próprios dos ambientes de
pesquisa virtual. São os Links Móveis. Para fins de nossos estudos, não abordaremos os links
fixos, mas a mobilidade do processo de linkagem, dado que não se trata de categorizar esses
dispositivos, mas de tratar de seu funcionamento.
Na esteira da LT, Koch confere, portanto, as seguintes funções aos hiperlinks móveis:
1º) uma função dêitica;
2º) uma função coesiva;
3º) uma função cognitiva.
Por função dêitica, a autora destaca o processo de indicar, sugerir caminhos ao
hiperleitor. Assim, os links são apontadores e focalizadores de atenção, apontando para um
lugar atualizável no espaço digital, o que pressupõe, em suas palavras, um papel
essencialmente catafórico para esses elementos. A função dêitico-catafórica que Koch
mobiliza está centrada no interior do hipertexto, no movimento de abrir uma nova janela
através do hiperlink acessado. Segundo a autora:
37
Essa categorização dos hiperlinks encontra convergência com a definição de Joyce (1995). O autor define dois
graus de navegação: 1º) uma navegação em hipertextos exploratórios, que se definem pela conservação do
concetúdo proposto, de modo que o leitor apenas seleciona trilhas pré-definidas; ) uma navegação em
hipertextos construtivos, cuja característica é a construção do caminho pelo leitor-autor.
57
Da mesma forma que os dêiticos discursivos, os links com função dêitica
monitoram o leitor no sentido da seleção de focos de conteúdo, porções de
hipertextos que devem merecer sua consideração caso esteja interessado em obter
uma leitura mais aprofundada, mais rica em matizes e em pormenores sobre o
tópico em tela (2002:65).
Sob esta ótica, os links dêiticos são como ticas discursivas
38
(estratégias) que
permitem, no dizer de Koch, cercar determinado problema por todos os possíveis ângulos e
perspectivas, já que a indicação linkada se geralmente entre hipertextos que tratam de um
mesmo tópico. (2002:65), o que nos leva a determinar sua posição acerca do texto como
unidade temática e intralingüística. Fica evidenciado, no uso do termo “cercar”, a intenção da
autora de delimitação do texto em formação, atribuindo uma função ao links de delimitadorres
de caminhos. Torna-se claramente exposta sua determinação dos links como elementos de
sequencialização tópica intra-hipertextual, ou seja, no espaço de pesquisa, os links apenas são
focalizadores de atenção para determinada porção de texto adequada à continuidade da
pesquisa. É nesse sentido que a dêixis assume aqui sua função de dêixis textual .
No entanto, mesmo assumindo uma diferença basilar entre texto e hipertexto, dada a
estrutura linkada deste, Koch prima por um encaixe do hipertexto nos parâmetros da LT,
abordando os hiperlinks como elementos de coesão, focando as distinções entre textos e
hipertextos como diferenças apenas de grau e não de natureza.
Esta função leva ao encontro da concepção difundida em LT de busca por
monosemantização através da suturação do texto, que, se os links são considerados como
estratégias ou táticas discursivas, cujo papel é atingir as possibilidades de fechar o assunto
pesquisado pelos ângulos possíveis, esses dispositivos eletrônicos estão apenas mudando de
nome e de espaço de atuação, sendo considerados elementos de coesão textual
39
.
Por conseguinte, conforme definição da autora, a função coesiva, no hipertexto, é
responsável pelo entrelaçamento discursivo
40
no espaço cibernético. Os links amarram
informações de modo a permitir que os leitores extraiam delas um conhecimento real e
conclusões relativamente seguras. Os textos esparsos são soldados de forma coerente,
formando um grande mosaico. Assim, atar os hiperlinks de acordo com certa ordem
38
A concepção dos links como táticas discursivas converge com o papel de estratégias, definido por Bernárdez.
Tal definição coloca os links numa posição de elementos de coesão textual.
39
É nesse ponto que nossas análises acerca da concepção de coesão textual vêm de encontro do objeto de estudo
proposto. Tendo em vista a necessidade de inserção desse objeto no discurso da Lingüística Textual à luz de
pressupostos formalistas, as análises empreendidas sobre ele apenas reproduziram os mesmos mecanismos
usados para textos em suporte impresso, sem levar em consideração a natureza do hipertexto e suas
peculiaridades.
40
Destacamos que os termos discurso e discursivo são contemplados do campo teórico de que Koch enuncia de
forma diferente e restrita em relação ao nosso ponto de vista.
58
discursiva e semântica é essencial para garantir a fluência da leitura e a drenagem da
compreensão sem excessivas interrupções e/ou rupturas (2002:65). O foco de análise da
autora é assegurar a atenção do leitor para um ponto comum: o sentido uno do texto e,
ademais, evitar rupturas na linearidade. Para tanto, designa os links como catalizadores
temáticos, como focalizadores da atenção do leitor sobre o tema em pesquisa, o que incide
sobre a busca pela linearidade textual, fazendo-a retroceder quanto à questão da não-
linearidade de que tratava anteriormente. Salienta ainda que não deve haver links perdulários
em termos de informação, isto é, não deve haver espaço para que tais pontes virtuais existam
improdutivamente
41
, sem gerar dados novos e relevantes para a temática em discussão, o que
coloca os hiperlinks em função de progressão textual, como elementos de coesão diferentes
tecnicamente, mas não em seu status funcional, pois produzem a progressão tópica e a
relevância do conteúdo em acesso. Isso pressupõe a ênfase em três aspectos, citados
anteriormente, como fulcrais para a boa formação do texto, segundo ótica da LT:
i- Autor = produtor/planejador
ii- Texto = projeto de dizer que estabelece limites às leituras possíveis;
iii- Leitor/ouvinte = construtor de sentidos orientados pelas estratégias e
sinalizações.
A autora busca através de estudo realizado por Xavier (2001, 2002)
42
a ênfase
necessária para o entendimento dos hiperlinks como operadores da coesão hipertextual:
[...] é importante que as palavras linkadaspelo produtor dos textos constituam
realmente palavras-chave, capazes de levar o leitor a estabelecer, ao navegar pelo
hipertexto, encadeamentos com informações topicamente relevantes, de modo a
construir uma progressão textual dotada de sentido. Em outras palavras, caberá ao
hiperleitor, ao passar, por intermédio de tais links, de um texto a outro, detectar,
através da teia formada pelas palavras-chave, quais as informações tipicamente
relevantes para manter a continuidade temática e, portanto, uma progressão textual
coerente (XAVIER apud KOCH, 2002) [grifos nossos].
Importa, portanto, salientar que as definições da autora reiteram a entrada em cena do
hipertexto como outro gênero textual entre tantos outros, cujas diferenças baseiam-se em
questões gradativas. Ratifica essa questão apoiada em Perfetti (1996), quando afirma que a
questão central não está em discutir a relação entre texto e hipertexto, mas em admitir que se
trata sempre de textos. O que é questionável de nosso ponto de vista.
41
Enfatizamos que a noção de improdutividade textual destacada pela autora diz respeito justamente ao sem
sentido ao ambíguo, os quais devem ser banidos, sanados como problemas para o texto.
42
Em tese de doutoramento, orientada por Koch na UNICAMP.
59
No entanto, importa-nos uma questão imprescindível: no hipertexto a progressão
textual se de forma coerente pelos acessos efetuados pelo leitor (função cognitiva). Assim,
o hipertexto encadeado pelo produtor, não será jamais o mesmo acessado e “formado” pelo
leitor. A coesão tal como orientada pelos estudos do texto, passa a um nível discursivo de
construção e o texto a um novo espaço a se constituir.
Nesse sentido, notamos claramente que a aproximação de Koch entre textos e
hipertextos vai ao encontro de uma edificação dos pressupostos uniformizadores da LT,
operando um olhar mais aberto sobre o texto em si, mas não um olhar peculiar sobre o
hipertexto, que é o que de fato deveria ser feito. Para tanto a autora destaca que, na passagem
da compreensão de textos singulares para a compreensão de textos múltiplos, a Lingüística
Textual começou a operar com a noção de textos como uma proposta de múltiplos sentidos,
abandonando a concepção estática de texto e suas propriedades, mas não operou uma
ampliação dos parâmetros de textualidade. Em função disso é que a Lingüística Textual pode
auxiliar eficazmente, segundo Koch, na compreensão do funcionamento do hipertexto e em
seu enquadramento no padrão de textualidade proposto e difundido pelos estudos do texto
clássico:
O hipertexto deverá estar sujeito às mesmas condições básicas da textualidade, desde
que estas sejam entendidas, conforme a sugestão de Beaugrande (1997), como
princípios de acesso e não de boa formação textual. Entre tais princípios, caberia
mencionar a intertextualidade, a informatividade, a situacionalidade, a topicidade, a
relevância e a coerência (Ibid: 67) [grifo nosso].
É oportuno ressaltar ainda que o texto de Koch é finalizado com uma afirmação
bastante complexa para o entendimento do hipertexto a de que os hiperlinks são operadores da
continuidade de sentidos e da progressão referencial. Perguntamo-nos se cabe falar em
progressão referencial na estrutura hipertextual, tendo em vista o conceito de referência
postulado pela LT que, como já vimos, é insuficiente para explicar o funcionamento do
próprio texto impresso.
Outra abordagem importante para nossas análises é a de Xavier (2004), em que
encontramos perspectiva “por vezes” semelhante à de Koch, mas que em certos aspectos se
distancia da autora. Xavier entende o hipertexto como uma forma híbrida, dinâmica e flexível
de linguagem em constante diálogo com outras interfaces semióticas que adiciona e
acondiciona à sua superfície formas outras de textualidade (2004:171). Compreender esta
nova ordem e a relação com ela deve passar necessariamente por uma aprendizagem da leitura
e da escrita do/no hipertexto. Não se tratando meramente de uma transposição mecânica dos
movimentos do texto para o hipertexto. Além disso, é destacada a capacidade de ampliação
ilimitada do sistema de relações referenciais possibilitadas pelos hiperlinks, que faz com que
60
o texto eletrônico destaque-se do texto impresso, criando fronteiras entre ambos. Essa
reflexão não foi permitida por Koch, dado o lugar privilegiado que a autora confere às
análises pautadas na forma lingüística.
Tendo em conta esta característica, é que o hipertexto, no dizer do autor, apresenta um
desafio à linearidade, de forma que por sua natureza não-linear e rizomática, não impõe ao
leitor uma ordem de partes e seções a serem seguidas, sendo, por conseguinte, a linkagem
direta a outros textos uma inovação sem precedente no modo de produzir textos. (2004:73). A
partir desse ponto, nota-se que Xavier produz um afastamento em relação a Koch, dado sua
acepção de linearidade/não-linearidade, uma vez que produz uma limitação para o lugar da
linearidade no âmbito dos estudos do hipertexto, movimento que Koch vinha fazendo de
forma contrária ao impor a necessidade de linearidade através da progressão tópica instaurada
como elemento fundador da linkagem.
Em contrapartida, Xavier reconhece o fato de que a não-linearidade não chega por si
a constituir uma revolução radical, que o suporte impresso possibilita certo grau de
multissemiose (notas, referências, índices, gráficos, etc.). Mas, mesmo não sendo uma
revolução radical, o autor visa à definição de que não é o fato de o hipertexto apresentar a
não-linearidade que o difere do texto impresso, dado que este por sua vez também é capaz de
ser não-linear. O ponto de desencontro entre ambos os textos está sim no fato de que a
inovação trazida pelo texto eletrônico está em transformar a deslinearização, a ausência de
um foco dominante de leitura, em princípio básico de sua construção (2004:175), estando a
não-linearidade prevista na concepção desse texto, ela é constitutiva.
Contudo, falando de um lugar ainda clivado por um discurso formalista o autor
assegura que mesmo apresentando um distanciamento das formas tradicionais de organização
textual e discursiva, o hipertexto, para ser estudado segundo os parâmetros do texto, deve
perseguir a formação de uma linearidade. Salienta, sobretudo, a necessidade de certas
sistematizações que o façam passível de análise. Tais sistematizações encontram-se pautadas
num olhar sobre o hipertexto que o coloca no mesmo lugar de análise dos textos, com os
mesmos critérios de textualidade.
Baseado, portanto, na concepção de busca por uma linearidade discursiva, o autor
define os hiperlinks como elementos dêiticos-vetoriais, com natureza progressiva, em que o
tópico em pauta se mantenha. Por constituírem elos entre textos, informações e saberes, além
de manterem a progressão tópica, sua condição de navegação permite a orientação dos leitores
pelas páginas virtuais de maneira rápida, prática e econômica. Esse fato é o que sustenta tal
definição:
61
Os hiperlinks dêiticos, além de monitorar cognitivamente e lançar luz sobre o tópico,
acrescentam informações globais e adicionam dados gerais ao conteúdo em
discussão, uma vez que ultrapassam o limite de um único hipertexto e conduzem a
reflexão para muitos outros blocos discursivos hipertextualizados nos quais se
refratam e para os quais se remetem.[..] O link dêitico transborda totalmente a
discussão para além de um hipertexto. Ele é o instrumento virtual pelo qual se
“materializa” o complexo processo que é feito abstratamente, mentalmente, que
são as inúmeras e inevitáveis associações, vínculos e ligações quase instantâneas
entre discursos e saberes afins ativados pelos leitores, quando lêem hipertextual e
enciclopedicamente (2002:112) [grifo nosso].
Esta citação nos leva a marcar uma diferença conceitual entre Koch e Xavier a respeito
da natureza dos hiperlinks, dado que aquela vê esses elos como fontes de continuidade
temática e de monosemantização de sentidos, concedendo à dêixis papel endofórico de
focalizadora de atenção para os textos linkados, ao passo que Xavier pressupõe um papel mais
disperso para tais elementos, papel que destaca a natureza multilinear e discursiva do
hipertexto, que para a mesma função dêitica, Xavier propõe a agregação de outra natureza:
de associação contínua entre interior (hipertexto em curso) e exterior (múltiplas possibilidades
de acesso e cruzamento de sentidos).
Para tanto, o autor designa duas funções para os links. um processo de auto e
hétero-referenciação a que chama de referenciação co-hipertextual e referenciação pan-
hipertextual (intra e extra-texto eletrônico), seguindo o modelos de links fixos e móveis
elencados por Koch, diferenciando-se desta por um ponto: prevê a natureza exofórica dos
links.
Por referenciação co-hipertextual entendem-se as referências feitas por hiperlinks
internos a um mesmo website. São links que remetem o leitor para dentro do próprio portal.
Trata-se dos links fixos elencados por Koch. por referenciação pan-hipertextual entendem-
se as referências que levam o usuário às páginas externas ao website. Trata-se das propostas
de leitura diversificadas cujos links são móveis.
Nessa perspectiva é que os hiperlinks são destacados como formadores de discurso, de
modo que ao atualizar o hipertexto e percorrer seus links, o hiperleitor estará realizando
tentativas de compreensão, efetivando gestos de interpretação
43
(2004:177). Assim, mesmo
compartilhando com Koch a noção de que os links têm função dêitica, Xavier vai além da
mera categorização desses elementos como demarcadores de atenção, para inseri-los num
processo subjetivo de construção textual, pois para ele os hiperlinks apresentam aos leitores e
43
Destacamos que a expressão gestos de interpretação a que o autor faz referência não condiz com a noção
encontrada no âmbito dos estudos de AD, dado que o discurso de Xavier é o discurso da Lingüística Textual, em
que o gesto de interpretar é o gesto de decodificar sentidos já propostos e não em visas de se constituir.
62
navegadores uma forma digital de fazer referenciação muito mais dinâmica e desafiadora do
processo de leitura (Ibid: 101), já que
o hipertexto pode ser considerado, ao mesmo tempo, um sistema material e uma
tecnologia intelectual em que o ator humano interage com as informações que ele faz
nascer um percurso (navegação) virtual e as modifica em função de suas
representações individuais (sistemas de crenças, valores, ideologias) e suas
demandas circunstanciais (Ibid: 104).
Esse movimento de expansão da função dos hiperlinks faz com que Xavier aproxime-
se apenas parcialmente de Koch. Mencionamos parcialmente pelo fato de o autor considerar
uma natureza exofórica para esses dispositivos eletrônicos, à medida em que Koch os coloca
em posição endofórica. Nesses termos, é que temos uma flutuação das explanações de Xavier
entre a endoforia e a exoforia, dado que
1º) o leitor do hipertexto não tem compromisso com uma sequenciação a priori, rígida
e inviolável durante a leitura-navegação; e
2º) esta não-linearidade está na ordem do dispositivo material e não na ordem do
discurso, uma vez que funcionalmente a continuidade, nesse aspecto, é necessária e consiste
em decisão do leitor;
Temos em sua definição de hiperlinks, portanto, um descompromisso com a
sequencialização linear e, ao mesmo tempo, um compromisso com uma linearidade que se faz
por decisão do leitor. Com efeito, Xavier pauta suas noções entre a exoforia e a endoforia.
Isso é ratificado quando o autor coloca alguns ceticismos em relação à não-linearidade
potencializada pelos links, o que o faz retroagir em relação à perspectiva diferenciadora que
elencava acerca do hipertexto:
Temos então a noção de hipertexto como um texto potencialmente desorganizador do
processo de leitura. Contudo, Xavier trabalha sobre uma oscilação entre linearidade
“necessária” e não-linearidade “constitutiva”, sendo esta contemplada no nível discursivo:
O discurso na superfície digital se fortalece não devido à linearidade de um
desenvolvimento temático qualquer, mas por causa da rede subterrânea de
filamentos ditos, não-ditos e ecoados, ainda que à distância, entre os temas afins
vinculados entre si por fortes ou tênues relações interdiscursivas/intertextuais. O
hipertexto, então, convida o leitor a re-organizar esta estrutura originalmente
descontínua (Ibid: 104).
Logo, este autor define que, por não seguir uma gica seqüencial, análoga ao texto
impresso, o texto eletrônico é um espaço semântico a construir ou em vias de construção pela
63
intervenção criativa e exploratória de seus usuários. (Ibid:105), o que traz a questão da
subjetividade e da construção da coerência pelo leitor.
É nesse sentido que um distanciamento importante entre Xavier e Koch, de forma
que o processo de leitura em Koch segue os mesmos passos da LT ao passo que para Xavier
uma prática enunciativa implícita no processo de linkagem, que se trata de um novo
modo de enunciação que surge no seio da contemporânea sociedade da informação [...]
(2004:104).
Trata-se, sobretudo, de abrir pistas de investigação do acontecimento, antes de
carimbar, enquadrar em formas delimitadas e pré-estabelecidas e isso se considerando que
a subjetividade é constitutiva do texto desse leitor-escritor e por isso, marcada pela
singularidade. Referindo-se a essa função, o autor designa que o hiperlink funciona
originariamente como um apontador enunciativo digital, sendo, assim, um focalizador de
atenção, apontando um lugar concreto atualizável no espaço digital, mas que, além disso,
permite a realização de uma escrita sobre o texto que está em rede.
Assim, assumindo a perspectiva da referenciação, Xavier ressalta que os hiperlinks
manifestam um modo digital de referenciar. E este referenciar está na ordem da
referenciação, da construção discursiva do texto que se sobre a materialidade lingüística.
Pensamos aqui na pergunta feita anteriormente, se cabe falar em referencia no contexto do
texto eletrônico, dado o fato contundente de que os parâmetros da LT para os processos de
referência não dão conta de uma estrutura mais complexa como o hipertexto. Vemos que
neste modo digital de referenciar citado por Xavier, a referenciação está na ordem da
construção do texto de forma singular, na ordem da produção de efeitos de sentido.
O hiperlink dêitico, então, operacionaliza as imprescindíveis intersecções entre
texto/discurso, assumindo, segundo o autor, caráter essencialmente exofórico, prospectivo,
ejetando o leitor para fora do dito, o que se opõe à função coesiva designada por Koch.
Assim, o hiperlink é um elemento de ostensão, de mostração
44
. Xavier traz a dêixis para o
âmbito dos estudos do hipertexto como lugar discursivo de ostensão, este é o cerne da
referenciação em suas reflexões. Mesmo admitindo que Xavier usa uma análise mais
apropriada para o hipertexto, destacamos nosso ceticismo em relação à aproximação da
função dos hiperlinks com os processos de referenciação textual, pois os objetos de discurso,
tal como postulam os teóricos da referenciação, tem uma função categorial, de nomeação,
designação de seu referente, dada a ligação direta que ambos mantêm no texto e, sobretudo,
dada a necessidade de relação sintática entre referente e antecedente. Vislumbramos essa
44
A definição do autor não destaca função catafórica para os hiperlinks.
64
característica dos objetos de discurso em discussão precedente. Com os hiperlinks, por outro
lado, não como destacar as mesmas funções, pois esses dispositivos eletrônicos ligam
janelas (nós) de informações que mantém relações de linkagem virtuais. Essas janelas
linkadas em rede a tantas outras formam um universo textual múltiplo, que possibilita ao
leitor-escritor retornar seu “dizer” através de um novo acesso, produzir novos caminhos.
Novas bifurcações são conectadas por expressões determinadas que não tem a capacidade de
referenciar conforme os moldes clássicos, dado que referenciar hipertextualmente é da ordem
não da categorização, mas da ordem cognitiva do fazer sentido com as informações
disponíveis nas janelas. Oportunamente destacamos que hiper referenciar não pode estar no
mesmo nível de referenciar textualmente, mesmo que as nomenclaturas sejam similares.
De
acordo com o exposto, por outro lado, nota-se que a análise realizada em torno da
linkagem e do tipo de processamento da leitura possibilitado pelo hipertexto vai ao encontro
de uma necessidade de busca por monosemantização. Este é o ponto comum entre os autores
citados. É sob esta ótica que os links são vistos e definidos à luz de categorias de coesão
textual, sendo vistos como modos de estabilização textual.
Marcuschi (2000, 2004) parte da noção de gênero textual para expor seu
entendimento acerca do texto eletrônico, uma vez que compartilha da concepção de gênero
textual como fenômeno social e histórico, que surge em determinados momentos, trazendo
consigo novas exincias e novas formas de relacionamento. Trata-se de observar que as
modificações operadas pelo hipertexto, enquanto novo gênero textual, trazem consigo a
necessidade de novos padrões de textualidade, o que o autor enfatiza categoricamente: cabe-
nos providenciar novas noções para coesão e coerência a fim de abrigar também a produção
hipertextual (2000). Ressalvamos que, mesmo apontando essa perspectiva de que novas
noções de textualidade devem acompanhar o hipertexto, essa definição não encontra
desenvolvimento nos estudos de Marcuschi. Pelo contrário, é recobrida pela necessidade de
edificação de padrões de textualidade da lingüística do texto.
Afigura-se relevante destacar, portanto, que, para o autor, o hipertexto é mais um
gênero textual emergente de reflexão no âmbito dos estudos do texto, uma vez que as novas
tecnologias não mudam os objetos, mas as nossas relações com eles (2004:18). Tal afirmação
é fundamentada no fato, considerado por ele inconteste, de que a Internet e todos os gêneros a
ela ligados são eventos textuais fundamentalmente baseados na escrita, o que os coloca lado a
lado com os demais gêneros provindos da cultura da escrita.
Além disso, o autor postula que os processadores de texto trazem a possibilidade de
transformação da escrita em atividade diferente, mas que, se a relação com a escrita se altera,
65
a noção de textualidade não é alterada, o que contribui para que afirmemos a opacidade das
definições e análises que a LT vem empreendendo sobre o hipertexto.
Analisando a prática da produção de sentidos no texto eletrônico, o autor enfatiza três
aspectos relevantes:
a) Trata-se de uma dispersividade discursiva;
b) O centro da coerência é o navegador;
c) Os links geram expectativas, são instrumentos interpretativos e não simples
instrumentos neutros e estáticos;
Quanto ao primeiro aspecto, o autor aborda o fato de que há ou pode haver grande
dificuldade de as pessoas produzirem sentido e coerência ao entrarem no labirinto
hipertextual, uma vez que sua natureza é multiramificada. Apontamos que a noção de
dispersividade que é mobilizada por Marcuschi é diferenciada da perspectiva da AD e,
ademais, é carregada de teor negativo. Atentamos para que a dispersividade, de nosso ponto
de vista teórico, é inerente ao texto eletrônico e não é fator de perda de legibilidade para o
mesmo, mas, evidentemente, é marca da profusão de inovações que determinam a sociedade
contemporânea, o homem que vive nela. A dispersão, hoje, é a possibilidade de tomar
múltiplos caminhos, de não ser pautado por um sentido pleno e ilusório. Para Foucault
(1969), autor em que a AD pauta sua noção de dispersividade, a busca incessante por uma
linearidade determinadora sempre esteve baseada na sustentação de uma continuidade do
pensamento, de uma homogeneização dos conhecimentos e dos homens que os produzem.
Estar na dispersão é, com efeito, estar em constante fluxo de informação, é não recebê-la, mas
produzi-la singularmente.
Quanto ao segundo aspecto, contraditório em relação ao primeiro, é salientado o fato
de que do ponto de vista da coerência textual, autor/leitor agem colaborativamente na
produção de sentido e a coerência é o que ressalta dessa colaboração, não sendo fixada
previamente no texto e nem intencionada como vigora em LT, de forma que o hipertexto,
conforme sua explanação, não foi concebido para uma recepção completa, o que não exige
uma relação completa prévia e prevista entre todos os elementos ou nós informacionais que
podem ser interconectados. (2000). Marcuschi argumenta que o centro da coerência está no
leitor, no entanto, o lugar de onde enuncia o faz reproduzir um discurso uniformizador. Isso
está sugerido nas dois recortes que seguem e que se contradizem claramente:
a) Indaga-se de onde vem a organicidade necessária ao texto e a perspectiva
interpretativa, já que a coerência, na acepção aqui tomada, é uma perspectiva
interpretativa e não uma propriedade textual. Uma das respostas, talvez a mais
66
radical e esclarecedora, mas também a mais vulnerável, sugere que, no hipertexto, o
centro da coerência passa para o navegador, pois é com ele que está o mouse.
b) Fique desde logo claro que não se trata de dar o predomínio ao leitor, nem de
dizer que ele é o responsável direto e único pelo sentido, mas que ele dirige os
movimentos que conduzem à construção do sentido. De modo especial, trata-se de
afirmar que a coerência não é uma propriedade estrutural do texto. É uma operação
do indivíduo sobre o texto: uma perspectiva interpretativa (2000:01) [grifo nosso].
Do primeiro recorte emana a crença no sentido como construção do leitor que, incide
sobre o texto suas perspectivas, o que de fato, potencializa o texto como uma multiplicidade
de sentidos. Não se trata da falta de sentido pela dispersividade negativa, mas justamente, da
natureza plural dos significantes dispostos na tela. Por outro lado, o segundo recorte, retirado
do mesmo texto, contradiz o anterior, dado que Marcuschi insiste em o permitir um sentido
que se faz no momento único da leitura, mas em um sentido que está lá, no texto. Ao leitor
cabe, nessa perspectiva, amarrar os pontos deixados pelo autor, cabe achar o sentido do texto.
Fica claro que ao colocar a coerência do texto nas mãos do leitor, o autor está retomando um
conceito de coerência e de interpretação muito restritos ainda e, sobretudo, um conceito de
sujeito ideal, centro e fonte do sentido.
Note-se que dificuldade em aceitar certas peculiaridades que o funcionamento do
hipertexto apresenta em relação ao texto, uma vez que o problema maior não está na
volatilidade nem na virtualidade e sim na não-linearidade, não continuidade, não
centralidade e, de modo especial, na possibilidade de interferência do leitor-navegador
(2000:5).
O autor aponta como problemas do texto digital justamente o que a ele é inerente,
pois contemplar a não-linearidade, a não continuidade, a não centralidade como fatores que
desestabilizam a noção de textualidade, e respalda um discurso homogeneizador e
uniformizador que atenta para a centralidade totalizante, para a linearidade suturadora dos
sentidos. Além disso, aponta a interferência do leitor-navegador como problemática.
Converge com isso, ainda, o fato de que Marcuschi desconsidera o texto eletrônico e suas
peculiaridades como uma nova possibilidade de pensar a relação texto-autor-leitor.
Ademais, Marcuschi não leva em consideração que essa problemática interferência”
do leitor ocorre em ambos os textos, mas com naturezas diferenciadas e seria esse o fato para
o qual ele teria de atentar com mais ênfase. A interferência do leitor sobre o texto impresso
baseia-se no princípio de construção de sentidos, pois este também é potencialmente passível
de múltiplos caminhos. O que a diferencia, em alguns aspectos, do texto digital é a concepção
de escritura passa a estar atrelada à leitura, que toda leitura em hipertexto é uma
(re)escritura em potencial. Isso justifica o princípio da metamorfose como essencial para o
67
entendimento do texto eletrônico. Além disso, a materialidade de um hipertexto é virtual,
existe texto a partir da linkagem, da atualização constante.
O terceiro aspecto ressalta que uma coesividade de longo alcance na estrutura
hipertextual e que, certos aspectos envolvidos nas relações coesivas ou projeções dêiticas não
podem ser tratados do mesmo modo que em textos impressos. Entretanto, o autor imprime
valor anafórico aos hiperlinks, centrando-se principalmente em questões da ordem da
continuidade tópica e temática e na noção de unidade coerente.
É destacada, ainda, dificuldade de definir fronteiras entre textos e hipertextos, uma vez
que, em muitos aspectos, como a não-linearidade, ambos apresentam semelhanças. Tal
dificuldade está baseada no fator textualidade que, para ele, não pode gerar dicotomia, dado
que Certamente não vamos ter uma posição dicotômica no que toca ao problema da
textualidade como tal (2000:7), uma vez que, em posição compartilhada com Koch, trata-se
sempre de textos, pois dizer isto não é afirmar algo específico do hipertexto e sim algo que
vale para todo e qualquer texto (2000:1).
Note-se que, por estas definições, os hiperlinks emergem no contexto dos estudos do
texto, como instâncias pouco definidas, ainda opacas quanto a sua real função na estrutura
hipertextual e seu papel no processamento da leitura. Até este ponto podemos notar que
funções básicas para os hiperlinks: enquanto operadores de coesão que oscilam entre uma
perspectiva intralingüística puramente textual (dêiticos–catafóricos, anafóricos, projetores
dêiticos) e outra discursiva (dêiticos – exofóricos, dêiticos – Objetos de discurso).
Para Marcuschi, assim como para Koch e Xavier o hipertexto compartilha dos mesmos
padrões de textualidade do texto “clássico”, dado que, do lugar de onde enunciam, um lugar
epistemológico da uniformização, prever novos padrões de textualidade para o texto
eletrônico, seria subverter o discurso já instituído da lingüística. A afirmação inicial de
Marcuschi acerca da necessidade de rever padrões instituídos de textualidade para este
novo texto que emerge, e sua involução quanto a essa afirmação, vem a corroborar a noção de
que para a LT o caminho mais produtivo e menos desetabilizador de suas bases é o encaixe do
texto eletrônico em seus princípios teóricos. Para tanto, Marcuschi esquece de sua afirmação
inicial acerca da necessidade de rever padrões de textualidade.
Recorremos a Burbules (1998) para destacar que as características mobilizadas pelos
autores citados acima para aproximar texto impresso e texto eletrônico são baseadas em
aspectos óbvios e que aparentemente podem fazem com que ambos convirjam em
determinados aspectos. No entanto, diferenças fundamentais e que embasam nosso
ceticismo em relação a tais aproximações. Compilamos algumas das definições desse autor:
68
a) A página impressa é altamente seletiva (essa seletividade, no entanto, vem
pré-determinada) na forma de leitura de notas, consulta a outros livros
remetidos pela página, a identificação de fontes e assim por diante. Muitas
dessas coisas só podem ser feitas saindo do livro [...] o computador
permite que entremos na WEB, visitemos as bibliotecas virtuais, que se
sobreponha à página em leitura uma obra qualquer ou até mesmo uma
biblioteca inteira. uma sobreposição de textos que permite uma conexão
rizomática, em que se um ponto do caminho for desconectado, a rede não se
desfaz;
b) Pode-se dizer que a gina impressa é exclusiva mandando ler “este ou este
ou este...” texto e não permitindo somá-los; já o hipertexto seria mais
inclusivo no sistema “e...e...e...e”. A questão de ser um texto inclusivo ao
hipertexto seu caráter mais saliente de dispersão radical. Isso pode criar uma
ilusão centrífuga e desviar com facilidade para muitos caminhos sem que
isso consista na desconstrução do percurso, dado o fato de que se pode
sempre voltar aos textos anteriores e retomar o percurso;
c) A forma de organização do hipertexto não é hierárquica nem linear no
sentido em que a organização do texto impresso o é. O protótipo da escrita
impressa seria a noção de silogismo, ao passo que para a construção
hipertextual seria o rizoma, isto é, um crescimento pelo enraizamento e pelas
bifurcações;
d) A maneira de o hipertexto organizar a informação é o bricolage e a
justaposição numa perspectiva flexível, ou seja, sem uma relação de natureza
lógica ou outra que lhe pareça evidente ou imediata. Em conseqüência pode-
se esperar também uma “fragmentação do conteúdo;
Com base no exposto, não cabe mencionar a questão de que todos ou modelos de
estudos dos textos podem ou não ser utilizados, essa seria uma interpretação superficial do
problema aqui proposto. Cabe sim pensar no tipo de objeto que diferencia a Lingüística
Textual de uma chamada Lingüística Hipertextual, de forma que a passagem do texto ao
hiper, sugere a passagem de um objeto cujo tratamento busca a unilateralidade e
homogeneidade para um objeto constituído pela heterogeneidade, pela pluralidade. Seria
aceder a um domínio de compreensão da textualidade que permite uma passagem tensa de
determinadas questões que acompanham os estudos do texto impresso para outras questões
que incidem sobre interrogações que buscam o rompimento com uma linearidade fundante da
69
concepção de textualidade, rompimento com uma centralidade definidora do leitor, do sentido
e da língua.
Apontamos, portanto, com vistas ao que fora exposto, que esse rompimento não
ocorreu no âmbito dos estudos do texto. Trazemos com Fávero e Koch (2002:18) uma
definição do objeto de estudo da lingüística textual que esclarece o principal aspecto que
diferencia o texto do hipertexto quando estas autoras dizem que de maneira geral a
lingüística textual trabalha com textos delimitados, cujo início e cujo final são determinados
de um modo mais ou menos explícito. Esta é uma das principais fronteiras entre ambos.
Nos estudos do texto vemos um movimento de alternância entre a abertura e o
fechamento: abertura na concepção de produção de sentidos e fechamento na ilusão de um
possível sentido unívoco e pré-determinado, monossemântico como mencionado
anteriormente. Contudo esse movimento que poderia ser o de uma dialética que contribuiria
para o alargamento da própria noção de texto, sempre volta para seu fechamento, pelo medo
dos caminhos tortuosos do sem sentido.
Não estamos pretendendo estabelecer uma polaridade entre texto e hipertexto, mas
ressaltar que a concepção de textualidade de que partimos deve colocar em evidência que o
texto, independente do suporte em que esteja materializado, não transmite uma informação
unidirecional e neutra, e muito menos parte da intenção de um sujeito idealizado e
centralizador de um dizer higienizado de toda a realidade.
Este ponto nos fornece a ocasião de precisar o que nos conduziu diretamente à escolha
do tema e do aporte teórico e aquilo que justifica a convergência entre hipertexto e Análise de
Discurso Francesa, pois o quadro teórico abordado até então e as críticas que sobre ele
incidimos partem do lugar dos estudos discursivos, do lugar em que o sentido é circunscrito
pela exterioridade, sendo da ordem do fazer e não do contemplar.
Este movimento contemplativo sobre o texto vem, pelo viés da transparência
disciplinar e normatizar a subjetividade, destacando que essa relação transparente nos
funcionamentos discursivos que, apagando tudo o que, do exterior, poderia levá-lo a exercer
esse discurso, tendem a fazer do sujeito a fonte de seu discurso (HAROCHE, 1992:26). Trata-
se, antes de mais nada, do que, em AD, chama-se de autonomia aparente, que faz com que o
sujeito acredite estar na fonte dos sentidos, ao passo em que está definitavamente assujeitado.
A presença do sujeito é minimizada, controlada, contestada, para dar vasão a uma certa
ideologia que prima pela clareza, transparência.
Essencialmente o percurso de estudos que buscam a monosemantização e a
linearidade do texto produzem um ideal de texto exterior à subjetividade, ideal de completude,
de clareza. A mobilização de mecanismos gramaticais faz com que estejam os autores citados
70
num espaço de enunciação conduzido ainda por uma ideologia individualizante e
cristalizadora dos sentidos e de quem os produz. Essa cristalização não passa de efeito do
longo trabalho de cerceamento do pensar livre, pois a ciência tal como fundada no século XX
abriu um caminho de coerções limitadoras do pensamento. O conhecimento e sua produção
pautam-se por essa limitação e regulação constantes tendencialmente voltados para o
equilíbrio e para o não questionamento. Limitação de tudo o que possa produzir a
ambigüidade. Assim, os mecanismos coesivos, tal como fundados para orientação,
delimitação do espaço textual são funcionamentos gramaticais coercitivos que impõem uma
regularidade e que, por isso, limitam a ação subjetiva sobre a materialidade da língua. Essa
coerção passa a uniformizar os espaços de enunciação. Claudine Haroche (1992) discorre
sobre a determinação que a normatização da linguagem produz:
O próprio conceito de determinação, que recobre a questão do sujeito e do sentido, se
remete a uma ideologia da transparência, responde igualmente à exigência específica
do discernível, própria a qualquer língua. Os mecanismos de individualização se
inscrevem assim no postulado geral que subentende toda gramática: a exigência de
clareza, de desambigüização, de determinação, de perfeita legibilidade. (1992:22)
As considerações dos autores da LT acerca dos processos de leitura escritura em
ambiente digital nos parecem, sem dúvida, estar alicerçadas nessa crença de que o sujeito tudo
diz, de que os objetos de saber estão determinados por pontos de vista alicerçados que em
nada se modificam para entender os novos funcionamentos que a linguagem produz através
das técnicas que surgem. A linguagem está alicerçada em técnicas que, ao passo em que a
humanidade se transforma, produzem novos olhares. Pensar o novo, nesses termos, requer que
se tenha em conta que com ele as maneiras de produzir conhecimento modificam-se
substancialmente.
Para tanto, o encaixe do texto digital em “regrasde boa formação textual, obsoletas
desde sua fundamentação, pois não dão conta nem mesmo do texto em suporte impresso, não
passa da reprodução de um discurso uniformizador, instituído por um fazer ciência ligado às
praticas de isolamento do sujeito, de uniformização.
Em suma, notamos que todos os movimentos da LT sobre o texto digital estão
cercados pelo fato de que se deve, antes de entender o verdadeiro papel da ambigüidade, da
implicitude no texto, em criar meios para delimitá-la, evitá-la. Esses estudos não procuram
questionar os efeitos produzidos pela ambigüidade, pela inserção do extra lingüístico no
lingüístico, eles procuram o lugar-comum, o terreno firme da certeza delimitadora e
coercitiva, limitando-se à constatações rápidas e tradicionais de inadequação à regras gerais e
imobilizadoras dos objetos de estudo.
71
Esses movimentos delimitadores sobre o hipertexto estão ligados à delimitação
também do indivíduo e do social, dado que ao não serem levados em conta tais fatores
essenciais à significação, está-se negando a contradição, a implicitude, a deriva da
significação para edificar uma concepção de transparência e da totalidade. São opostos assim:
a) o sistema “ilusoriamente” fechado e perfeito do texto, ligado a um indivíduo senhor de seu
discurso conscientemente organizado e; b) o texto enquanto incompletude, enquanto devir,
cujo sujeito não pode tudo dizer, pois não é senhor da língua. O sujeito diz, mas também é
dito nas lacunas que seu texto deixa em aberto.
Reforçando o caráter linear do texto (e do discurso), conforme em a e repelindo as
inserções subjetivas, a LT insere-se na ordem de edificação dos pressupostos que fundaram os
estudos gramaticais. O texto, nesse sentido, deve ter limites definidos, portanto, deve coibir as
manifestações dos implícitos e dos subentendidos através dos elos coesivos, que partem do
fundamento de uma cadeia significativa interna ao texto e orientada pelo autor. O que está
fundamentalmente baseado numa relação eminentemente parafrástica.
Constata-se, assim, uma aparente dedicação a um trabalho formalista e estilístico,
voltado às formas de articulação das partes do texto (tidas como segmentos), sem, contudo,
atentar para a articulação dessas formas à exterioridade e para o fato de que as partes são
recortes ligados a uma situação. Trata-se, a partir de nosso ponto de vista, de um trabalho
ideológico sobre o que é texto, escritura e leitura. Vê-se que os autores analisados trabalham,
com efeito, na idéia de monossemantização da língua e de sujeito como origem e fonte do
sentido. O que instaura a necessidade de um discurso completo, transparente que cristaliza as
possibilidades interpretativas. Ver o hipertexto dentro destas ceara é colocá-lo no mesmo
campo de cerceamento do processo de interpretação. Manifestamente, os trabalhos se
destinam, se inclinam para a sintaxe, para a fixidez da referência. A liberdade do sujeito está
limitada pela restrição dos espaços de interpretação.
Elencadas as motivações deste capítulo, passaremos à perspectiva teórica que sustenta
as bases desta dissertação.
72
2. PERCURSO EPISTEMOLÓGICO: EM DIREÇÃO À ANÁLISE DE DISCURSO
FRANCESA
A lingüística no culo XX instala-se como ciência através de seu encontro com
princípios gico-positivistas e do recorte de um objeto específico e delimitado para si: a
língua. Esse movimento se deve ao corte saussuriano, datado de 1916, com a publicação
póstuma do Curso de Lingüística Geral (CLG), no qual a língua é configurada como um
objeto homogêneo, como um sistema de formas que existe pelas relações internas que
mobiliza. Esta concepção sistêmica de língua entra em polaridade com a concepção
naturalista e organicista das teorias comparatistas do século XIX, instalando um significativo
contraste entre uma lingüística histórica (diacrônica
45
) e uma lingüística descritiva
(sincrônica), vindo esta a corroborar com um novo modo de olhar para os objetos de pesquisa:
o olhar do pesquisador volta-se para as estruturas. É creditado a Ferdinand de Saussure,
portanto, o mérito de dotar a ngua de autonomia e de vincular a ciência lingüística ao
positivismo
46
. Através da instauração de dicotomias (língua/fala; sincronia/diacronia;
objetividade/subjetividade; paradigma/sintagma), o saussurianismo concedeu à língua o
estatuto de “objeto de laboratório”.
Vê-se, desde então, um extraordinário desenvolvimento de uma lingüística
denominada estrutural
47
que, incontestavelmente, circunscreve-se como um dos mais
significativos fatos da história do pensamento científico do século XX, tendo como princípio
a noção de que
uma estrutura é um conjunto de elementos entre os quais existem relações, de forma
que toda modificação de um elemento ou de uma relação acarreta a modificação
dos outros elementos e relações. A estrutura é a concretização de certas leis que
procuram certo equilíbrio num conjunto que, na perspectiva em questão, pode ser
considerado fechado (LEPAGNEUR, 1925: 4).
45
Destacamos que a concepção de história com que as teorias comparatistas trabalhavam estava baseada na
noção de cronologia temporal, de modo que a historicidade de que se trata em AD em muito difere do puro
desenvolvimento cronológico.
46
O termo positivismo tinha como principal objetivo defender uma ciência geral. A caracterização geral da
ciência almejada pelos positivistas pretendia ser universal e a-histórica Universal, no sentido de ser igualmente
aplicada a vários âmbitos e a-histórica no sentido de que deveria aplicar-se sem levar em conta processos de
transição ou de transformação, baseando a existência da ciência na desnecessidade de uma história.
47
A associação da língua a uma estrutura é fruto dos conceitos forjados no CLG, no entanto, os termos
estruturalismo e estrutura não são mencionados no livro, no qual a idéia de estrutura está mencionada como
“sistema”.
73
Assim, o estruturalismo, cujo critério básico era elidir o que representasse empecilho
para o alcance de conhecimentos estritamente objetivos, alavancou pesquisas no domínio das
ciências humanas e sociais, dando lugar a uma maneira formalista de ver os objetos de estudo.
À subjetividade foi dado caráter metafísico.
Segundo Françoise Gadet, em prefácio à edição brasileira de A língua Inatingível
(GADET e PÊCHEUX, 2004
48
), o formalismo ocupou um lugar de hegemonia na ciência
lingüística, pois em seu nome se autorizou o desinteresse das ciências da linguagem pelos
seres falantes (suas produções, suas falas, seus textos, seus discursos).
Por esse viés a lingüística incorre num artificialismo de extremos, delimitando-se por
fronteiras definidoras do que estava no âmbito do científico o ideal de correção - e do que
estava marginalizado, pois não científico o incorreto. Em função desse movimento Gadet e
Pêcheux (ibid: 20) criticam a lingüística por sua ignorância” dado que na verdade, eles [os
lingüistas] não podem recusar a idéia de que uma ciência organiza sua autonomia em troca
de um certo número de ignorâncias e recalques.
Os caminhos do estruturalismo, nesse sentido, foram construídos com base em um
mecanicismo, cujo legado abrange uma das piores faces da produção científica do século XX:
o apagamento da memória pelo viés de uma universalização de uma língua lógica e
desarticulada de sua face social. Instala-se na língua uma política da razão, um neopositivismo
que marginaliza a linguagem natural, bem como fecha os olhos para as práticas de seu uso.
Decorre daí, então, que à mecanização da língua estavam aliadas uma mecanização do sujeito
e de seu fazer sentido.
Inevitavelmente, todo esse movimento de instauração de uma gica que regula a
linguagem natural e seus agentes, supunha que o próprio ser da linguagem fosse de natureza
lógica, pois o que fundamenta essa mecanização é a necessidade de divorciar a língua de sua
expressão social. Numa obstinação em cercear o lugar do imprevisível, eliminam-se todos os
pontos de deriva, todas as lacunas por onde possam se fazer presentes o equívoco e a
opacidade, produzindo o que, segundo Pêcheux (2002 [1983
49
]), convém chamar de espaços
discursivos logicamente estabilizados em que supõe-se que todo sujeito falante sabe o que
fala, porque todo enunciado produzido nesses espaços reflete propriedades estruturais
independentes de sua enunciação: essas propriedades se inscrevem, transparentemente, em
uma descrição adequada do universo. (2002:31).
48
Referimo-nos à data da publicação brasileira, no entanto o original data de 1981.
49
Reportamos à data de publicação do original de “O Discurso: estrutura ou acontecimento”, no entanto a
publicação usada para referência é a 3ª edição brasileira, datada de 2002.
74
Em contrapartida, no âmago do próprio movimento estruturalista essa rede de
pensamento estava começando a se romper em muitos pontos, pois foi sobre esse processo de
exclusões que outras maneiras de pensar a língua em sua relação com o sujeito e com o
mundo começaram a emergir. Foram questionados os lugares marginais em que foram
colocados o sujeito, o sentido e a realidade. Assim, as verdades de laboratório foram
desestabilizadas e os estudos da linguagem encontraram um novo percurso, em que vários
caminhos começaram a ser abertos em nome das exclusões operadas pelo CLG.
Revelaram-se, nesse contexto, dois modos de relacionar a língua com o real, cujas
bases contrastam substancialmente: aqueles para quem a questão está em encerrar a língua
em um quadro de regras autônomo e auto-regulável. Sua prática consiste em descrever o
funcionamento das formas, em detrimento do processo como essas formas produzem
significação. Nesse aspecto o conceito de valor toma um delineamento muito direto e
“politicamente eficaz”, recobrindo a noção de sentido. O real da língua, nesses termos,
consiste numa ordem interna, que relaciona formas e as coloca em oposição. Segundo Gadet e
Pêcheux (2004: 30) Para os que sustentam que a língua trabalha com a existência de uma
ordem própria, o real da língua reside naquilo que nela faz Um, a assegura no Mesmo e no
Idêntico e a opõe a tudo o que da linguagem cai parta fora dela....
Por outro lado, aqueles que se colocam em um lugar exterior ao fazer científico
positivo, pois preocupados em restaurar o lugar do sujeito como agente das práticas de uso da
língua
50
. Estamos, neste segundo domínio, diante de uma concepção de linguagem pensada a
partir de uma relação constitutiva com a exterioridade. A lingüística do enunciado começa a
abrir espaço para a enunciação e suas marcas. Partiu-se para uma fase em que não bastava
pensar a língua apenas no nível do intradiscurso
51
, era preciso, sobretudo, redimensionar a
relação da língua com os sujeitos que a mobilizam.
O que até então se colocou reflete a existência de dois pólos para a compreensão dos
estudos da linguagem no século XX: o pólo de concepções que buscam a definição de língua
pela perspectiva da unidade, a fim de dominar o corpo do pensamento, através de uma língua
ideal, imaginária; e aquele que, de outro ponto de vista, subsume uma não unicidade da
língua, primando pelo estudo da linguagem em sua complexidade, em uso.
Gadet e Pêcheux confirmam essa polaridade:
50
Fazemos referências aos estudos enunciativos que buscaram restaurara a subjetividade nos estudos da
linguagem.
51
Intradiscurso, segundo courtine (1982) é a materialidade lingüística pela qual se realiza a sequencialização, a
sintagmatização do discurso em língua. Isso subsume que se tem por intradiscurso o fio do discurso, o efeito de
linearização. Isso ficará melhor explicitado adiante.
75
as ideologias da Ciência como escrita lógico-matemática retomam por sua conta essa
determinação jurídica, fazendo da ciência uma máquina lógica. A noção de ngua
lógica como plano do real garante, assim, a coesão do positivismo da ciência com a
prática do direito e surge no âmago da questão lingüística pela idéia de
axiomatização. Fixar no início convenções arbitrárias necessárias aos símbolos e às
regras, depois colocar a máquina para funcionar: assim materializar-se-ia um
tribunal lingüístico pronto para legitimar a validade das expressões (2004:42).
Entre essas correntes desenvolveu-se a chamada Análise de Discurso Francesa, cuja
especificidade entre as teorias do discurso es na perspectiva materialista-histórica de
analisar a linguagem. Seu trabalho transborda para além de uma descrição, emergindo da
necessidade de análise das línguas naturais com todas as possibilidades de acesso ao real do
homem e ao real da história. Incide-se sobre as marcas que o cotidiano inscreve nas práticas
de linguagem, buscando o espaço do sujeito como protagonista da história e da língua, ou
seja, busca-se a compreensão de tudo o que não pode ser apreendido por uma ordem gico-
matemática.
2.1 ANÁLISE DE DISCURSO: Em busca do caráter material do sentido
Invocando um ponto de vista materialista-histórico sobre as práticas de uso da
linguagem, a Análise de Discurso (AD) começa a ser delineada no cenário científico, histórico
e político francês, da década de 1960, a partir da necessidade em (re)elaborar questões
concernentes à problematização do lugar anti-materialista e anti-dialético que a positividade
conferiu aos estudos da linguagem. Para os analistas de discurso a necessidade de considerar
um novo objeto que congregasse a materialidade lingüística às materialidades histórica e
social emergia como um movimento de recusa à busca dos formalistas por uma língua perfeita
(língua de madeira). A AD, portanto, pautou um posicionamento teórico e analítico contrário
às tendências conteudistas, tomando um objeto que, diferentemente da língua e do texto,
objetos “clássicos” da lingüística, coloca-se em relação com uma filosofia materialista-
histórica. Nesses termos, esta disciplina toma a língua em seu funcionamento na produção do
discurso, o que possibilita observar que, para significar, ela mantém estreitas relações com o
histórico e com o social. É dessa aspiração materialista que a noção de discurso
52
toma uma
feição particular na década de 60: ele é concebido como processo das práticas de linguagem
52
O conceito de discurso foi desenvolvido, no século XX, sob vários domínios teóricos que buscavam a entrada
em cena do sujeito elidido dos estudos lingüísticos. A partir disso surgem as Teorias do Texto e do Discurso cujo
foco central estava em questões de enunciação e pragmática. Para tanto, temos que ter em conta que sob o termo
Teorias do Texto e do Discurso estão resguardadas todas as correntes de estudos lingüísticos que procuraram de
alguma forma voltar seu olhar para o sujeito e suas práticas de uso da ngua, mas com bases teóricas
diferenciadas.
76
em uma formação social dada. No interior desse horizonte, o sentido passa a ser efeito,
relativo ao lugar e ao momento em que os enunciados são (re) produzidos
53
. Isso aponta para
uma nova forma de ver a relação sujeito-significação em que a produção de sentido é um
processo que se realiza na prática discursiva. Orlandi fundamenta esta questão:
Do ponto de vista da significação, não há relação direta do homem com o mundo, ou
melhor, a relação do homem com o pensamento, com a linguagem e com o mundo
não é direta assim como a relação entre linguagem e pensamento, e linguagem e
mundo tem também suas mediações. Daí a necessidade da noção de discurso para
pensar essas relações mediadas. (2004: 12)
A instauração da Teoria do Discurso de Pêcheux ocorreu em 1969, com a publicação
de Análise Automática do Discurso (AAD69) e lançou as bases de uma teoria do discurso,
aportando-a na relação inerente entre um estado dado das condições de produção com os
processos de produção do discurso, o que reflete, especialmente, a inscrição do sujeito e da
língua num processo histórico. No entanto, mesmo que o gesto fundador da Análise de
Discurso tenha sido a publicação de AAD69
54
, foi com dois textos datados de 1975 que
Michel Pêcheux instaurou sua teoria em bases mais sólidas. Num trabalho de (re)avaliação do
projeto de 1969, foram publicados dois textos edificantes. Em parceria com Catherine Fuchs,
na revista Langage, foi publicado o artigo “A propósito da Análise Automática do Discurso:
atualização e perspectivas”, com o qual delimitam-se com mais precisão os campos teóricos
que constituem a AD, tal como falaremos adiante; e, respectivamente, foi publicado o livro
“Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio”
55
, assinado por Pêcheux. É preciso
observar que mesmo suscitando reconsiderações, reavaliações, e sempre pautada por um
movimento de reconstruções e reformulações que dataram de 1969 a 1983, a teoria do
53
Ao reportarmos aos conceitos de produção/reprodução estamos fazendo referência ao fato de que, em AD, o
sujeito não é fonte dos sentidos, estes existem e são produzidos com referência a uma rede de formulação
existente, oriunda de uma intrincação entre formações ideológicas, interdiscurso e formações discursivas que
determinam os ditos em referência sempre a já-ditos, a discursos instituídos. Tais conceitos encontrarão
formulação aequada no decorrer do trabalho.
54
Destacamos que, segundo Denise Maldidier, a AD surgiu de uma dupla fundação. Da pena de dois estudiosos
da época. Nos domínios da lingüística estava Jean Dubois e nos domínios da filosofia Michel Pêcheux. Para a
autora, em “Elementos para uma história da análise de discurso na França”, “o terreno, a situação, as
preocupações os distinguem. J. Dubois e M. Pêcheux, entretanto, são tomados em um espaço comum: aquele do
marxismo e da política. Na contramão das idéias dominantes, eles partilham as mesmas evidências sobre a luta
de classes, sobre a história, sobre o movimento social” (1997:17). Maldidier destaca que Dubois coloca a AD no
terreno dos estudos dos grandes textos políticos, elegendo o discurso como objeto específico da nova disciplina,
ao passo que Pêcheux aborda a questão da leitura na contramão das práticas de explicação de textos. No entanto,
que se levar em conta que havia um hiato entre os propósitos de ambos autores, dado que para Dubois a AD
era pensada num continuum, em que as análises passariam do terreno das palavras para o dos enunciados,
levando em consideração a relação da lingüística com o domínio sociológico e psicológico. Para Pêcheux, o
objetivo teórico incidia sobre um corte epistemológico em que a questão do discurso se articularia com questões
do sujeito e da ideologia, buscando uma interpretação althusseriana do materialismo histórico.
55
O título mencionado refere à publicação brasileira. A edição original, publicada em língua francesa é datada de
1975.
77
discurso inaugurada por Michel Pêcheux manteve o que lhe é essencial: a negação de uma
teoria da unicidade do sujeito e do sentido, desfigurados de sua face social-histórica.
Assim o traço característico da AD é a negação de duas evidências elementares nos
estudos da linguagem e nos estudos psicossociológicos: a evidência do sujeito e a evidência
do sentido. Esta disciplina instaura-se num espaço de tensão entre a ordem da língua e outras
áreas do conhecimento, promovendo uma interlocução muito necessária entre o campo dos
estudos lingüísticos e as ciências humanas e sociais. Essa relação levou Eni Orlandi a
caracterizar a AD como uma disciplina de entremeio, justamente pela restauração de um
movimento dialético entre os estudos da linguagem e seus exteriores, pois ela
Produz um outro lugar de conhecimento com sua especificidade. Não é mera
aplicação da lingüística sobre as ciências sociais e vice-versa. A AD se forma no
lugar em que a linguagem tem de ser referida necessariamente à sua exterioridade,
para que se apreenda seu funcionamento, enquanto processo significativo. (1996:24)
Assim, é chegado o momento de a lingüística encontrar-se com seus excluídos e de as
ciências humanas e sociais saírem dos gabinetes. Nesse sentido, propondo a discursividade
como uma ordem diferente da materialidade puramente lingüística, o discurso (diferentemente
do que as teorias da enunciação e as pragmáticas vinham fazendo) é instaurado como ponto de
encontro entre a língua e a ideologia. Para tanto, é proposta fundamental da AD o exame das
condições de aparecimento do discurso que deve ser entendido como um processo
determinado pela conjuntura sócio-histórica e ideológica que tem na língua a base de seu
aparecimento. É, portanto, pela superfície da língua que o analista tem acesso à espessura do
discurso, às relações do sujeito com o histórico e o ideológico.
Foram congregadas três regiões do saber para a formação do quadro epistemológico da
AD:
1. “o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas
transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;
2. a lingüística , como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de
enunciação
56
ao mesmo tempo;
3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos
semânticos;” (PÊCHEUX E FUCHS, 1997a :164)
Ambos articulados com uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica).
56
Importa frisar que na primeira fase do projeto de Pêcheux, a AAD69, não havia menção à enunciação, dado
que o autor fez uso do esquema comunicacional de Jakobson, substituindo o termo mensagem por efeitos de
sentido entre sujeitos A e B. Somente na reavalização da teoria, em 1975, é que a enunciação foi levada em conta
como princípio pertinente para a continuidade e o aprimoramento da teoria do discurso.
78
A interlocução dessas três regiões está paramentada no fato de que o sujeito
enunciador não é origem, de que o sentido não é conteúdo e de que a história não é contexto.
Logo, a produção de sentidos, nos termos da AD, está ligada a um processo que relaciona
língua-sujeito-história, envolvidos numa ordem ideológica. Essa relação por parte do sujeito
se de forma inconsciente, num processo de criação de evidências. A AD lança um olhar
atento para o fato de que as práticas de linguagem estão sempre ancoradas em uma rede de
relações anterior ao sujeito, que determina sua prática discursiva. Em vista disso, entenda-se
que a prática discursiva distancia-se da mera mobilização do “código”, mas está situada num
espaço relacional, dialético em que o sujeito ao enunciar, o faz de um lugar especificamente
delineado histórica e ideologicamente.
Tem-se, com efeito, que é da prática discursiva que emerge a multiplicidade de
sentidos sobre a língua. Cada sentido, nessa multiplicidade, produz-se de acordo com o lugar
e o momento da prática discursiva. Assim, não há recobrimento de uma totalidade de sentidos
possíveis, pois sempre o impossível, o inesperado. Pêcheux pretendeu retomar o estatuto
da polissemia como elemento fundamental para entender o sentido como um processo que
jamais pode ser uno, a não ser em uma concepção abstrata e puramente teórica. Por certo,
rompe-se com o formalismo predominante na ciência da linguagem, dado que A língua o
seria então um sistema dedutivo fechado ao abrigo de mal-entendidos, lacunas e excessos,
mas comportaria em si a possibilidade de rupturas (LEANDRO FERREIRA, 2000:10), o que
quer dizer que há uma heterogeneidade que emana da própria estrutura e que desmistifica a
busca por uma língua perfeita, pois as línguas naturais são, assim como os sujeitos que as
mobilizam, historicamente mutáveis.
É esclarecedor, dessa forma, que para uma teoria do porte da teoria de Pêcheux os
deslocamentos promovidos passam a ser entendidos como verdadeiros cortes de ordem
epistemológica, dado que a AD propõe, um rompimento fundamental com um real da língua,
da ordem do sistemático que atesta, antes de tudo, que completude na língua. Os sentidos
que emanam da mobilização da língua passam a ser vistos, na perspectiva da AD, como um
trabalho social e simbólico, engendrados pela materialidade histórica e ideológica. Nesse
sentido, o espaço do dizível não é cerceado por margens e limites entre um interior e um
exterior, antes, ambos são constitutivamente clivados um pelo outro, complementares,
produzindo um efeito sobre a materialidade lingüística de abertura para o não-dito, o
silenciado, o imprevisível que a circunscrevem.
No centro da análise de discurso está o fato considerável de que o equívoco e o
irrealizado não são defeitos, mas provas de que o sentido é trabalhado pelo sujeito e que este,
ao mesmo tempo, é trabalhado pelos sentidos. O que essa circularidade (dialética) remete é ao
79
fato de que as concepções da AD produzem como central uma desestabilização das evidências
fundadoras da lingüística, abre-se o caminho para aceder ao real que emerge por um outro
viés, que não é de caráter ontológico, fenomenológico ou estrutural, mas um real constitutivo,
que não margeia para delimitar, mas que fundamenta. A teoria do discurso, nesses termos,
busca um real da língua
57
.constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber que
não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos
(Pêcheux, 2002:43).
Para atender aos propósitos lançados neste trabalho, importa direcionarmos nosso
olhar especificamente para o fato de que essa disciplina de entremeio faz frente, entre outras
questões, fundamentalmente
a) à interpretação formalista dos mecanismos lingüístico-discursivos do
encaixe que promove uma cristalização das formas significantes;
b) ao efeito ideológico ‘sujeito’, pelo qual a subjetividade aparece como
fonte, origem, ponto de partida ou ponto de aplicação;
Torna-se claro, para tanto, que o discurso, em AD, se constitui numa rede complexa de
relações com uma memória historicamente constituída, que representa um domínio de saber,
do qual emanam dizeres que fazem eco no dizer do sujeito. Isso implica que o sentido nunca é
o mesmo, mesmo que a língua seja a mesma. Segundo Courtine (1982:10): O discursivo
materializa o contato entre a ideologia e a lingüística ou representa no interior da língua os
efeitos das contradições ideológicas ou inversamente ele manifesta a existência da
materialidade lingüística no interior da ideologia.
Para tratar dos processos de constituição de sentido no texto digital, enquanto efeito de
um processo discursivo, e sem a pretensão de recobrir a totalidade e a completude teórica das
noções integrantes da AD, nos deteremos em explicitar apenas as noções que julgamos
imprescindíveis à nossa investigação. Elencaremos, para tanto, a constituição do sujeito e do
sentido em AD; a passagem da noção de contexto ao conceito de condições de produção e que
a AD traz para a noção de texto e textualidade. Encontram-se diluídos nessas abordagens
outros conceitos fundamentais para a análise do corpus.
57
Esclarecendo a discussão empreendida na seção precedente, temos uma noção de real da língua em AD
oriunda das formulações de Jean-Claude Milner no livro “O amor da língua”, publicado originalmente em XXX.
Milner lança as bases para o entendimento de uma língua sujeita a falhas e equívocos, sendo seu real justamente
a incompletude. Michel Pêcheux faz uso do conceito de Milner associando-o à história, elidida das formulações
originais deste autor.
80
2.1.1 De que sujeito a AD trata? Sobre a interpelação, FD e funcionamento da posição-
sujeito
Em vista das reflexões que precedem temos que, em AD, a materialidade da língua é
conjugada à materialidade da história e à ideologia. Este é um imbricamento que determina as
práticas enunciativas como práticas eminentemente sociais. O sujeito enunciador, tido como
efeito dos processos sociais, não é senhor da língua e conseqüentemente não é origem do
sentido. A AD faz frente, portanto, a todas as concepções que primam por uma idéia
individualista de constituição de sentidos. Michel Pêcheux, como teórico de formação
marxista-leninista visava, na conjugação entre a ciência da linguagem a as ciências humanas e
sociais, a problematizar o fato de que a fragmentação instaurada pelo paradigma positivista
não dava conta da linguagem em sua complexidade, pois junto com a fragmentação
disciplinar, o sujeito antropológico e o sujeito sociológico separavam-se do sujeito de
linguagem.
Com base nisso, a teorização sobre o discursivo, pauta-se no sujeito da enunciação em
suas relações com a história (formações sociais) e com a ideologia (representações), pois parte
da evidência fundamental de que o trabalho da história e da linguagem se através de um
sujeito que não recebe e manipula a língua, mas que faz sentido no/pelo simbólico. Tal fato
coloca a questão da enunciação numa perspectiva em que o sujeito se posiciona sempre em
relação a uma rede de representações, determinada social e ideologicamente.
As reflexões acerca do estatuto do sujeito na AD partem fundamentalmente da ligação
aos estudos althusserianos. É de Althusser (1969
58
) que a AD traz a noção de um sujeito que
se situa como tal pelo movimento de interpelação ideológica. Foi neste autor que a AD
encontrou uma de suas teses fundamentais de que “a ideologia interpela os indivíduos em
sujeitos”. Isso reflete o fato inconteste de que o sujeito é constituído ideologicamente e que
suas práticas são determinadas por esse processo de interpelação-assujeitamento
59
. Esse
processo de interpelação não é claro para o sujeito, pois, segundo Althusser, o papel da
ideologia é criar evidências. É nesse ponto fundamental que está contida a noção de
inconsciente, dado que o sujeito não acede à sua interpelação, a qual opera inconscientemente.
58
Referimo-nos à edição original em francês. No entanto, o livro de referência é a edição brasileira datada de
2001.
59
Althusser (2001[1969]) desenvolve sua teoria acerca das ideologias retirando-as do campo das idéias e
instaurando-as como práticas que determinam as relações de produção/reprodução em sociedade. Para tanto, o
autor mobiliza o conceito de AIE (Aparelhos Ideológicos de Estado) que implica na existência de instituições
que regulam a reprodução das relações de produção. Assim como existem os AIE, Althusser busca no conceito
de ARE (Aparelhos Repressores de Estado) a noção de que existem determinadas instituições que não regulam
as relações de produção tão mascaradamente como os AIE, mas de forma opressiva. Pêcheux, por sua vez, busca
o entendimento de que não apenas reprodução nas relações engendradas pela ideologia, mas que no interior
dos próprios AIE existe a contradição e a transformação. Essas condições contraditórias são constituídas em um
81
A noção de evidência é fundamental nas relações do individuo em sociedade, dado que este
indivíduo torna-se sujeito a partir do processo de sujeição que o torna ser de práticas, crenças,
rituais materializadores da ideologia que o interpelou. Nas palavras do autor:
Diremos, portanto, considerando um sujeito (tal indivíduo), que a existência das
idéias de sua crença é, material, pois suas idéias são seus atos materiais inseridos em
práticas materiais, reguladas por rituais materiais, eles mesmos definidos pelo
aparelho ideológico material de onde provêm as idéias do dito sujeito.”
(ALTHUSSER, 2001: 92
60
).
Isso atesta que o discurso se articula sobre o que ele não diz, sobre aquilo que fala,
mas ancorado nas materialidades histórica e lingüística. Em parceria com Maldidier e
Normand, Robin acentua esse fato quando dizem que As ideologias não ‘flutuam’ no céu das
idéias, são práticas inscritas em realidades materiais, em instituições, em aparelhos, alguns
servindo mais que outros aos mecanismos da reprodução do assujeitamento ideológico
(1997:86).
Ao tratar das evidências “elementares” do sujeito e do sentido, Pêcheux colocou em
conexão o sujeito da ideologia e o sujeito da linguagem como uma única e mesma categoria,
que toda ideologia tem por função o que a define) ‘constituir’ indivíduos concretos em
sujeitos (2001:93). Assim, se um sujeito só o é por e para uma ideologia, não há como separar
categorias de sujeito sem levar em conta sua relação com as práticas. Também segundo a
posição de Althusser:
Segue-se que, tanto para vocês como para mim, a categoria de sujeito é uma
‘evidência’ primeira (as evidências são sempre primeiras) [...] Como todas as
evidências, inclusive as que fazem com que uma palavra ‘designe uma coisa’ ou
‘possua um significado (portanto inclusive as evidências da ‘transparência’ da
linguagem), a evidência de que vocês e eu somos sujeitos é um efeito ideológico
elementar. Este é aliás o efeito característico da ideologia – impor (sem parecer fazê-
lo, uma vez que se tratam de ‘evidências) as evidências como evidências, que não
podemos deixar de reconhecer e diante das quais, inevitável e naturalmente,
exclamamos (em voz alta, ou no ‘silêncio da consciência’): ‘é evidente! é
exatamente isso! é verdade! (2001:95).
A referência de Pêcheux a Althusser reflete o fato de que o sujeito (efeito ideológico)
ocupa determinados lugares numa formação social devido ao processo de interpelação
ideológica, que tem no discurso sua materialidade específica. Essa relação circular entre
ideologia – discurso – sujeito, concerne a uma relação que é intrínseca, pois conforme
Althusser (2001:93) prática através de e sob uma ideologia” e “só ideologia pelo
sujeito e para o sujeito, não excluindo o fato de que o sujeito é sempre sujeito de práticas.
momento histórico e em uma dada formação social e são afetadas por relações de contradição desigualdade
subordinação entre seus elementos que constituem o pivô da luta ideológica de classes.
60
Tomamos como referência a 8º edição brasileira de “Aparelhos Ideológicos de Estado”, cujo original data de
1969.
82
Em consonância com isso é que Pêcheux caracteriza o conceito de ideologia não como
um exterior que se projeta na materialidade que lhe dá suporte (língua), mas como um
funcionamento significante, que impõe conteúdos às formas da língua, fazendo com que esta
funcione, subjetivando os indivíduos enunciadores de acordo com lugares de identificação
ideológica. Para a AD, portanto, articular as práticas de linguagem às determinações sócio-
ideológicas, está para além da contextualização da enunciação, está no fato inconteste de que
o social e o ideológico governam os discursos, imputando-lhes significação.
Com Robin (1973) concordamos quanto à existência de traços fundamentais de uma
ideologia:
As ideologias não são arbitrárias, mas, orgânicas, historicamente necessárias. Elas
organizam as massas humanas; formam o terreno em que os homens se movem e
adquirem consciência de sua posição[...];
As ideologias têm uma função específica numa formação social. De uma maneira
geral nas sociedades de classe (...) elas ocultam, deslocam as contradições reais da
sociedade [...];
[...] a ideologia tem uma existência material”. (1973:114-115 – grifos nossos)
Na busca de um dispositivo analítico para o funcionamento do ideológico na língua,
Pêcheux forjou conceitos que estabelecem a relação entre a ideologia e as formas de sua
materialização em discurso. Devemos ter em conta, portanto, a relação entre o que se
convencionou chamar Interdiscurso Formações Ideológicas (FI) Formações discursivas
(FD).
Intrincadas no Interdiscurso
61
(o todo complexo com dominante das FDs) as FI
separam-se segundo sua especificidade, determinando, regionalizando cada FD
62
. Toda FD
dissimula essa imbricação, produzindo para o sujeito uma ilusão de transparência do sentido
que nela se forma. Esse mascaramento é que permite ao sujeito pensar-se fonte do sentido e
manipulador de seu discurso. Para tanto, o sujeito identificado a uma FD encontra sua
posição enunciativa. Pêcheux e Fuchs discorrem a respeito:
[...] o ponto da exterioridade relativa de uma formação ideológica em relação a uma
formação discursiva se traduz no próprio interior desta formação discursiva: ela
61
O interdiscurso corresponde a uma memória do dizer. Estando fora da FD, trata-se do lugar onde se constituem
os objetos do saber, os enunciados que as FD recortam em seus domínios. É no interdiscurso que os sujeitos têm
disponíveis dizeres, já-ditos que compõem sua enunciação. O interdiscurso é o lugar em que todos o -dito
permanece latente para atualizar-se no discurso de cada sujeito, em sua posição no interior de cada FD
específica.
62
As FI constituem um complexo conjunto de representações que remetem a lugares (posições) diferentes. Elas
produzem formações imaginárias (representações) que atribuem lugares, papéis ideologicamente marcados para
os sujeitos.
83
designa o efeito necessário de elementos ideológicos não-discursivos
(representações, imagens ligadas a práticas etc.) numa determinada formação
discursiva (1997:168).
Para tanto, a FD
63
tem o papel essencial de produzir uma identificação do indivíduo
com os saberes que a constituem, saberes recortados segundo as FI que determinam esse
espaço de enunciados possíveis. O sujeito, ao enunciar, de um lugar especifico, sem perceber,
está num lento processo de vinculação com os saberes de uma FD. Com efeito, e com base no
que explanamos, este é um trabalho lento e silencioso, apagado para o próprio sujeito, que
enuncia de um lugar que julga próprio e singular. Pêcheux assim explica: [...] os indivíduos
são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) por formações
discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são
correspondentes (Ibid: 214).
Courtine propõe, nesse sentido, proposições que articulam a relação de FD com FI.
Para o autor (1981:34-35):
a) A instância ideológica realiza, sob a forma de uma contradição desigual no
interior dos aparelhos, uma combinação complexa de elementos sendo cada um
deles uma FI. As FI possuem ao mesmo tempo um caráter ‘regional’ ou específico,
e comportam as posições de classe;
b) As FD são componentes interligadas das FI. Isso implica que as FD que
constituem a mesma FI possam ser distinguidas umas das outras (em função, por
exemplo, de sua ‘especialização”), mas sobretudo que as FD que dependem de FI
antagônicas, aliadas... mantêm entre elas as relações contraditórias, que se
inscrevem necessariamente dentro da materialidade mesma dessas FD, ou seja,
dentro de sua materialidade lingüística.
c) É no interior de uma FD que se realiza o ‘assujeitamento’ do sujeito
(ideológico) do discurso.
Assim, a FD constitui-se por uma ordem de retorno a um dizer anterior, latente que se
projeta na enunciação de forma silenciosa. Está no conceito de FD, portanto, a noção de
regularidade que define a enunciação, legitimando modos e lugares de dizer vinculados por
características comuns. Pêcheux traz a FD como um espaço de legitimação do dizer para o
sujeito, espaço de identificação a saberes que orientam os sentidos da enunciação:
63
Este conceito foi delineado a partir das formulações de Michel Foucault em “Arqueologia do Saber” (1969),
buscando a noção de dispersão e de elo que liga os enunciados dispersos na história a uma regularidade.
Foucault, segundo Courtine (1981:33) buscava interrogar as condições históricas e discursivas, dentro das
quais se constituem os sistemas de saber. A AD agrega este conceito a seu campo teórico reformulando alguns
aspectos basilares para que se possibilite uma análise materialista (de bases históricas) dos processos de
enunciação. No dizer de Courtine: “Pêcheux desenvolveu uma crítica marxista da conceituação foucaultianna de
discurso, do ponto de vista da categoria da contradição e concluiu sobre a necessidade ‘de uma apropriação do
que o trabalho de Foucault contém de materialista” (1981:33).
84
Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica
dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo
estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito [...] (PÊCHEUX,
1997b: 160)
Portanto, não basta mencionarmos a existência de lugares de enunciação que são
engendrados a condições específicas de produção de discursos, é preciso atentar para que,
esses lugares, que determinam os processos de enunciação, estão vinculados a redes de
significados que os sustentam e de onde emanam determinados sentidos. Conforme Pêcheux
e Fuchs:
Queremos dizer que, para nós, a produção do sentido é estritamente indissociável da
relação de paráfrase entre seqüências tais que a família parafrástica destas
seqüências constitui o que se poderia chamar a ‘matriz do sentido’ [...] é a partir da
relação no interior desta família que se constitui o sentido. (1997:169).
Enunciar significa, nessa ordem, tomar lugar num domínio em que os saberes se
especializam, se regionalizam de acordo com os recortes que a ideologia produz através da FI.
A enunciação sai do lugar comum e se direciona a um lugar de entrecruzamento da língua
com a ideologia e com a história. Sendo a FD, portanto, uma referência (direcionada pelo
ideológico) para os sentidos que nela circulam. Os sentidos se movimentam diferentemente,
de acordo com as FD em que estão aportados, dado que a língua é a mesma, mas nós não
somos indiferentes a ela
64
, pois enunciamos de lugares diversos que direcionam nossa
interpretação. Por isso, é salutar perceber que sujeito e sentido são efeitos e não fontes ou
pontos de estagnação da linguagem.
Essa é a essência do assujeitamento: a interpelação ideológica cria a evidência de um
sujeito único e fonte de todo sentido, autônomo. Essa evidência faz parte da necessidade de
apagamento do processo de interpelação do sujeito ideológico, para que este “pense” que se
encontra na origem do dizer. Nas palavras de Pêcheux sob a evidência de que ‘eu sou
realmente eu’ (com meu nome, minha família, meus amigos, minhas lembranças, minhas
‘idéias’, minhas intenções e meus compromissos), o processo da interpelação-
identificação que produz o sujeito no lugar deixado vazio (1997b: 159)
No que concerne ao processo de assujeitamento faz-se necessário ressaltar ainda que
ele não se diretamente na FD, ele passa por uma mediação da chamada forma-sujeito
65
que
tem o papel fundamental de regular o dizer das diferentes posições-sujeito que nela convivem.
se concebe o sujeito em AD como efeito de uma identificação inconsciente, dado que para
64
Reportamo-nos a um referência que Michel Pêcheux (Semântica e Discurso, 1975) faz a Stalin.
85
ele não há percepção de sua vinculação à forma-sujeito da FD. Courtine explicita essa relação
ao dizer que o sujeito enunciador é, nessa perspectiva, produzido como um efeito das
modalidades desta identificação, da qual emanam posições-sujeito
Há que se constatar que as posições-sujeito desestabilizam a homogeneidade da forma-
sujeito, visto que os sujeitos, ao se identificarem com a forma-sujeito de uma FD, o fazem de
modos particulares, o que instaura diferentes posições-sujeito no interior de uma FD.
Courtine lança mão da categoria da contradição e da heterogeneidade para retirar a FD da
noção de pura repetibilidade
66
.
Contudo, é com Courtine que essa permeabilidade da FD toma contornos mais nítidos.
O olhar deste teórico buscou uma FD heterogênea, híbrida, passível de contradição em seu
interior:
[...]como uma unidade dividida, uma heterogeneidade em relação a si mesma: os
limites de uma FD são fundamentalmente instáveis, ela não consiste num limite
traçado de uma vez que separa para sempre um interior de um exterior do seu saber,
mas se inscreve entre diversas FD como uma fronteira que se desloca em função dos
desafios da luta ideológica (1982:245).
Para Courtine a FD é porosa, híbrida e não se fecha, pois não faz fronteira entre
interior e exterior, ela existe na relação desses dois elementos. Portanto:
uma FD, não é ‘um único discurso para todos’, também não é ‘para cada um o seu
discurso’, mas deve ser pensada como ‘dois (ou vários) discursos em um único’.
Duas modalidades diferentes de um mesmo esquecimento: o da contradição como
princípio constitutivo de qualquer FD. (1982:245)
Com efeito, em vista disso, vemos que a unidade da forma-sujeito não passa de um
efeito ilusório. Isso é constatado na imbricação de diferentes posições-sujeito relacionadas e
ela. Encontramos em Indursky uma explanação clara acerca dessa relação:
O sujeito, ao relacionar-se com a forma-sujeito, pode assumir diferentes posições de
sujeito, as quais vão desde a plena identificação com a forma-sujeito, refletindo o
saber de sua formação discursiva, até divergir desse domínio de saber,
introduzindo o diferente e o divergente. (1998:116-117)
As posições de sujeito são posições interiores à formação discursiva e vinculadas à
forma-sujeito. Trata-se de lugares sociais que se projetam no discurso. Esse conceito traz na
65
Termo cunhado por Althusser e realocado para a AD a fim de designar um sujeito universal que representa
para o sujeito ideológico, a unidade com a qual se identifica. A forma-sujeito apresenta-se na AD como
historicamente determinada. É ela que regula o dizer das diferentes posições-sujeito.
66
Importa constatar que Pêcheux já vislumbrou em “Semântica e Discurso” (1975) a o homogeneidade da FD
e da forma-sujeito. Para isso elencou três categorias de relação das posições sujeito com a forma-sujeito: a plena
identificação, a contra-identificação e a desidentificação.
86
teoria do discurso a necessidade de olhar para um sujeito que não é senhor dos sentidos, ele
ocupa determinados lugares sociais de enunciação, vinculados à sua filiação ideológica.
Conforme Indursky (1992):
Com a AD, a categoria de sujeito deixa de ser idealista, pois entende-se que esta
categoria é interpelada ideologicamente e o sujeito, ao produzir seu discurso, o faz
a partir de determinadas posições de sujeito, igualmente ideológicas. Essa visão
“individualizada”, contudo, não transforma esse sujeito em uma figura que decide
livremente seu discurso, pois trata-se de um sujeito socialmente constituído. No
entanto, por não ter consciência de seu assujeitamento, mantém fortemente
arraigada a ilusão de ser plenamente responsável por seu discurso. (1992:17)
Assim, o caráter material dos sentidos é efeito do elo intrincado entre formações
ideológicas, as quais regionalizam FD como espaços de constituição de efeitos-sujeito,
oriundos da relação estabelecida com a forma-sujeito. Essa materialidade do sentido é sempre
mascarada, pois engendrada num jogo simbólico em que:
[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe
‘em si mesmo’, mas ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão
em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições
são produzidas (isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as
palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições
sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu
sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações
ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. (PÊCHEUX, 1997b:160)
Voltamos a destacar o funcionamento elementar da subjetivação em AD: trata-se do
funcionamento inconsciente da interpelação. Dado que, segundo Pêcheux um traço comum
entre o funcionamento ideológico e inconsciente: eles operam silenciosamente, ocultando sua
própria existência, produzindo uma rede de verdades ‘subjetivas’ evidentes em que os sujeito
se constitui. (1999:148). Pensando nas formas de subjetivação, Michel Pêcheux propôs os
conceitos de esquecimento nº 1 e esquecimento nº 2 para dar conta do fato de que as
evidências produzidas pela ideologia se materializam tão naturalmente que o sujeito não se
conta de dois fatos incontestáveis quando mobiliza a língua: 1º) sua prática subjetiva de
linguagem mantém relação intrínseca com o mecanismo de paráfrase, pois advém da ligação
com uma FD na qual o sujeito seleciona um enunciado dizível. O sujeito, nesta caso, está na
zona da segunda modalidade de esquecimento; 2º) seu dizer está sempre clivado por sentidos
que o pré-determinam, que existem antes dele sob a forma de pré-construídos. Logo, para o
sujeito é apagada essa determinação em seu dizer e tornada evidente a idéia de que está na
fonte dos sentidos. Estamos no domínio do que Pêcheux propôs por esquecimento 1. Esse
processo de esquecimento faz com que o sujeito não se conta de que ele mesmo é efeito
87
(efeito-sujeito), de que os sentidos produzidos são efeitos relacionados a uma rede de
enunciados existentes e ligados por afinidade a uma família que compõe o que se
convencionou chamar matriz de sentido. Ao selecionar enunciados no interior de uma FD, o
sujeito não se dá conta de que há um processo de repetibilidade e determinação que
faz parte do mecanismo elementar da ideologia, que é a interpelação do indivíduo
em sujeito, o apagamento dessa opacidade que é a inscrição da ngua na história
para que ela signifique: o sujeito tem de inserir seu dizer no repetível (interdiscurso,
memória discursiva) para que seja interpretável. Esse é também um dos aspectos da
incompletude e da abertura do simbólico: esse dizer que é uma coisa aberta, mas
dentro da história. No efeito da transparência, o sentido aparece como estando lá,
evidente (Orlandi, 2001:48).
Pensar a relação da língua, lugar em que os efeitos de sentido se realizam, com os
processos discursivos, pressupõe, portanto, sair da linearidade lingüística dos textos, para ir ao
encontro do lugar em que a língua é ordem e não organização, tal como postula Orlandi
(1998), lugar em que ela é atravessada pelo efeito-sujeito, visto a partir da identificação com
uma ideologia.
Importa-nos a partir de agora, pensar em como os sentidos se estabelecem no trabalho
de interpretação, restringindo nossas explanações ao papel da interpretação a partir da
posição-sujeito, dado que pensar nos percursos de leitura efetuados pelos leitores-navegadores
nos leva a crer que na FD acadêmica que será constituída como nossa formação discursiva de
referência (FDR), para fins de análise
67
, várias posições-sujeito se salientam, produzindo
percursos diferenciados e engendrados por condições de produção específicas de navegação.
Para tanto, elucidaremos que a questão do sentido em AD passa invariavelmente pelo
movimento interpretativo do qual emanam gestos de leitura específicos possibilitados pelas
posições-sujeito.
2.1.2 Sobre a constituição do sentido em AD: o trabalho da interpretação
É especialmente nos sentidos e sobre eles que a AD se detém a fim de os perceber
como flutuantes e em constante re-significação. Nesta seção as noções de sentido e
interpretação são conjugadas, dado que pensar em sentido enquanto efeito, não nos abstém de
pensar concomitantemente em um movimento interpretativo do sujeito em uma posição dada,
67
A formação discursiva acadêmica foi tomada como objeto de investigação por dois fatores: 1º) foi considerada
a formação universitária como fator que auxiliou a reflexão dos leitores sobre a formação de seus hipertextos; 2º)
o tema proposto para pesquisa na web mantém estritos vínculos com a FD acadêmica, e é focalizado a partir dos
domínios de saberes dos sujeitos universitários.
88
visto que, em consonância com Orlandi pensamos que a interpretação é um ‘gesto’, ou seja, é
um ato novel simbólico
68
. (2004: 18). Nesse caso, as duas noções de sentido e interpretação
não podem estar separadas, pois o sentido, em AD, não existe a priori, ele é constituído num
movimento de interpretação tida como gesto, estando suscetível de ser sempre outro. O
sentido está sempre em curso. O gesto de interpretar não se reduz à mera decodificação, ele
depende daquilo que na lingüística estruturalista de Saussure e no contexto de estudos de
Chomsky foi excluído: o contexto histórico-social.
Segundo Pêcheux o sentido não existe em si mesmo, isto é, em sua relação
transparente com a literalidade do significante, mas é determinado pelas posições
ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são
produzidas(1997b:160). Percebe-se, então, que diferentemente do sentido, tal como tratado
em uma ordem estruturalista (a exemplo da lingüística textual), a AD busca a percepção de
que ‘fazer sentido’ vincula-se a um trabalho do sujeito em sua posição numa determinada FD.
Partimos das explanações de Pêcheux (1997c:317-318) acerca do processo
interpretativo para respaldar nossa discussão:
a) Se a análise de discurso se quer uma (nova) maneira de ‘ler’ as
materialidades escritas e orais, que relação nova ela deve construir entre a
leitura, a interlocução, a memória e o pensamento?;
b) Em que condições uma interpretação pode (ou não) fazer intervenção?
Para debater acerca de tais questões (dado que respondê-las é tarefa pretenciosa)
voltamos à primeira formulação de Pêcheux acerca do efeito de sentido a fim de entendermos
que a passagem do sentido posto na ordem da língua para uma concepção de efeito se
através do entendimento da prática interpretativa.
No quadro teórico da AD o discurso é tido como efeito de sentidos entre os pontos A
e B (1997a:82). Esse efeito é produzido a partir da determinação de lugares sociais que os
sujeitos ocupam, sendo, portanto, os pontos A e B lugares determinados social e
ideologicamente. Os sentidos gestados nesses lugares sofrem as orientações das posições de
enunciação que representam. Recorremos a Orlandi quando escreve que a ideologia é
interpretação do sentido. Nesses termos, e na interlocução entre a noção de Pêcheux e a noção
de Orlandi, chegamos a um ponto crucial de imbricamento em que a ideologia leva os
indivíduos, em suas posições-sujeito, a interpretarem e suas interpretações são sempre
específicas e pautadas por condições de produção dadas. Tal como Pêcheux formula:
68
Elucidamos a importância de separar as noções de gesto e ato, pois este por se encontrar em uma perspectiva
pragmática coloca o sujeito numa posição de intencionalidade e de manipulador da língua e dos sentidos. O
gesto, por sua vez, marca o deslocamento para a relação da interpretação com o histórico e o social.
89
Um efeito de sentido não preexiste à formação discursiva na qual ele se constitui. A
produção de sentido é parte integrante da interpelação do indivíduo em sujeito, na
medida em que, entre outras determinações, o sujeito é produzido como causa de
si’ na forma-sujeito do discurso, sob o efeito do interdiscurso. (1997b:261)
Assim, tal como acentuamos, a relação do sujeito com a FD e desta com o
interdiscurso, resulta num processo de interpretação que não é direto e ontológico, mas
ideologicamente marcado. Interpretar é estar num espaço simbólico em que o sentido se
constrói quando mobilizada a língua, pois, segundo Orlandi “ao significar, o sujeito se
significa, o gesto de interpretação é o que perceptível ou não para o sujeito e/ou para seus
interlocutores – decide a direção dos sentidos, decidindo, assim, sobre sua (do sujeito)
direção” (2004:22). Para a autora ainda (2004:17)
O gesto de interpretação, fora da história, não é formulação fórmula), não é re-
significação rearranjo). A partir desta nova atitude os estudos de textos deixaram
para traz a ênfase conteudística e passaram à interpretação, à compreensão daquilo
que subjaz ao tecido textual: o discurso.
Uma teoria do sentido que se pauta na fluidez dos processos significantes desloca a
semântica de uma semântica do sentido posto para uma semântica discursiva em que
importam os processos que dão conta da articulação entre o lingüística e as condições de sua
mobilização. Essa semântica se fundamenta por dois modos de relação do sujeito com a
língua na constituição de significados:
Um processo parafrástico que conta da (re) produção de sentidos
sedimentados e resignificados em condições de produção diferentes. É esse
processo de permite pensarmos que todo discurso nasce em outro, engendrado
pelas relações interdiscursivas;
Um processo polissêmico que conta do fato de que não um sentido pré-
determinado, não língua onipotente. A língua é orgânica, logo, passível de
ser trabalhada, transformada produzindo sentidos múltiplos, efeitos do trabalho
simbólico sobre o sujeito. Abandona-se a noção de um sentido nuclear.
Com base nesses dois processos é que temos que o sentido não existe e não se encerra
em si, mas nas/pelas relações que engendra. Disso decorre que paráfrase e polissemia são dois
movimentos que não se dissociam, visto que no processo discursivo atuam uma memória do
dizer (que leva à repetição) e uma atualização pela prática enunciativa (que leva ao
deslocamento). Em primeira instância atua o movimento parafrástico, pelo qual os
mecanismos de assujeitamento se fazem salientes, levando o sujeito à reprodução, à retomada
90
de dizeres hisotiricamente marcados. Esse nível é, para nós, o atestado do efeito de
assujeitamento que se estabelece pela repetição. O sujeito acredita estar na origem do sentido,
quando está “embrenhado”, “tomado’ numa rede de outras formulações invisíveis para ele,
mas presentes num espaço de memória. O nível parafrástico está no cerne do processo de
assujeitamento. É diante desse fato que, em AD, os sentidos e sua produção estão intimamente
ligados a uma relação parafrástica entre a matriz do sentido (FD) e o sujeito.
Por outro lado, a relação do sujeito com o mecanismo parafrástico sofre rupturas que
trazem para esse mecanismo aparentemente homogêneo e fechado a heterogeneidade. As
rupturas fazem com que os significantes se desloquem e com eles novas formas de significar
se instaurem. A polissemia é o espaço de surgimento da multiplicidade nos espaços
discursivos. A linguagem assume uma dinâmica que se entre a repetição (o mesmo) e a
atualização (o diferente). O caráter polissêmico ocorre, portanto, quando o sujeito, em uma
posição de enunciação dada (PS), abre espaços para a diversidade de efeitos de sentido. Isso
subsume que o discurso se dá no espaço entre uma memória e uma atualização.
Por conta dessa intrincabilidade, paráfrase e polissemia estabelecem-se num espaço de
tensão, pois a polissemia representa a ruptura, o deslocamento, a intervenção no processo
parafrástico.
As oposições de Pêcheux tocam o problema da universalidade e da linguagem ideal.
Para ele, a busca por uma construção artificial marca o acobertamento da heterogeneidade e
da discrepância, elementos não apreensíveis e não dimensionáveis numa concepção lógico-
lingüística. Coloca em questão o caráter regional e local dos sentidos produzidos sobre a
materialidade lingüística, procurando mostrar que todo dizer está cercado por outros dizeres,
anteriores, historicamente marcados, ideologicamente construídos, que ecoam nos dizeres dos
sujeitos, de acordo com suas posições de classe e com as condições em que seus discursos são
produzidos como uma memória que, sem ser percebida, se faz presente. Trata-se para o autor
do retorno do saber no pensamento que produz uma evocação sobre a qual se apóia a tomada
de posição do sujeito. (1997b:125)
Esse retorno que se projeta no discurso tem no conceito de pré-construido seu
elemento de base. Os pré-construídos
69
ou já-ditos trazem a real dimensão do que é
impossível de apreender numa ordem lógico-matemática de análise das línguas, dos sujeitos e
do sentido, uma vez que não há como delimitar a relação do sujeito com aquilo que o
representa e que nele se representa. A modalidade do pré-construido regula a identificação
enunciativa, marca o dizer, incide sobre ele como um retorno de um exterior que define a
91
enunciação. É no interdiscurso que esses elementos pré-construídos se encontram sob a forma
de uma memória que está associada à existência histórica do enunciado no interior das
práticas discursivas regulamentadas pelos aparelhos ideológicos e visa os discursos que ‘são
ditos, permanecem ditos e ainda estão por dizer’ (COURTINE, 1981:53)
Para Courtine ainda
A caracterização do interdiscurso de uma FD é portanto um ponto crucial da
perspectiva desenvolvida por Pêcheux: é a partir do interdiscurso que poderão ser
analisadas as modalidades de assujeitamento. Com efeito, o interdiscurso é o lugar
dentro do qual se constituem, por um sujeito falante produzindo uma seqüência
discursiva dominada por uma FD determinada, os objetos que esse sujeito
enunciador se apropria para fazer os objetos de seu discurso, assim que as
articulações entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai dar uma
coerência a sua proposição, dentro disso que nós chamaremos, de acordo com
Pêcheux (1975) o intradiscurso da seqüência discursiva que ele enuncia. (1981: 35)
O interdiscurso se faz presente no fio do discurso, a que se convencionou chamar de
intradiscurso. Temos por intradiscurso o elemento que representa o efeito de encadeamento na
língua do pré-construido que consistiria numa discrepância pela qual um elemento irrompe
no enunciado como se tivesse sido pensado ‘antes, em outro lugar,
independentemente’(1997b:156). O interdiscurso é linearizado e materializado
lingüisticamente através de um processo de articulação que promove a clivagem da
materialidade lingüística por dizeres outros, exteriores e que determinam os conteúdos do que
está sendo formulado. A existência de um enunciado está ligada ao efeito de repetibilidade
(com base na FD tomada como objeto de referência), pois formulações anteriores,
enunciadas pairam no interdiscurso e se atualizam a cada apropriação do dizer por um sujeito
enunciador interpelado. Segundo Pêcheux:
[...] o ‘pré-construido’ corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que
fornece-impõe a ‘realidade’ e seu sentido’ sob a forma da universalidade (o
‘mundo das coisas’), ao passo que a ‘articulação’ constitui o sujeito em sua relação
com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a
dominação da forma-sujeito” (1997b: 164)
A noção de pré-construído intervém para o alcance de uma teoria materialista dos
sentidos, das representações e do pensamento nos processos discursivos, dado que leva a
pensar a língua em sua historicidade, ligada sempre a um antes que produz efeitos sobre a
69
Termo cunhado por Paul Henry para designar aquilo que remete a uma construção anterior e exterior que se
projeta no enunciado do sujeito.
92
materialidade da língua. Os sentidos são ligados a e advindos de práticas sociais,
ideologicamente determinadas que se refletem nos processos enunciativos.
Para Courtine, situar os processos através dos quais um sujeito é interpelado-
assujeitado é tarefa que demanda entender a relação complexa entre o interdiscurso de uma
FD e o intradiscurso de uma seqüência discursiva, produzida por um sujeito enunciador a
partir de seu lugar de inscrição numa FD. Enunciar, nos termos desse autor, é tomar uma
posição, é apropriar-se da língua em condições determinadas sócio-histórica e
ideologicamente e, por isso, é estar no domínio da repetibilidade (mascarada por uma
‘faixada’ de evidências), pois a ideologia faz com que, no discurso do sujeito, apareçam
marcas de outros discursos que o determinam, que o identificam como sujeito desta ou
daquela FD, através do que se convencionou chamar pré-construídos.
Voltando a Pêcheux:
[...] diremos que a forma-sujeito (pela qual o ‘sujeito do discurso’ se identifica com a
formação discursiva que o constitui) tende a absorver-esquecer o interdiscurso no
intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o
interdiscurso aparece como o puro ‘já-dito’ do intra-discurso, no qual ele se articula
por ‘co-referência’” (1997b:167)
Assim, é destacada, segundo Courtine, a existência de dois níveis fundamentais na
descrição de uma FD: trata por nível do enunciado e nível da formulação
70
. Na relação
estabelecida entre esses dois níveis um elemento tem papel central: o interdiscurso, dado que
o interdiscurso de uma FD, como instância de formação/repetição/transformação dos
elementos do saber desta FD, pode ser entendido como o que regula o deslocamento de suas
fronteiras. (1982:250). É no interdiscurso que a FD encontra seu domínio de saber, sua
especificidade.
Para Courtine o que está no nível do enunciado [E] destaca-se pelo papel de elemento
do saber próprio de uma FD determinada. em sua natureza o papel de repetibilidade. Este
se situa na linha da verticalidade, é próprio do interdiscurso. Por outro lado, esta verticalidade
sofre, no processo de enunciação, uma horizontalização que está no nível da fomulação [e], e
que, conseqüentemente, materializa o interdiscurso, dado que [e] é uma seqüência lingüística
de dimensão sintagmática, cujo papel fundamental é possibilitar uma (dentre tantas)
reformulação possível de [E]. Dessa forma, [e] marca a presença de [E] materializada
lingüisticamente. Assim, temos por base que o discursivo promove a articulação do
70
Designaríamos aqui este segundo nível como vel de reformulação, pois a característica primordial do
processo discursivo é a re-significação, contemporânea do processo de enunciação. O sujeito ilusoriamente se vê
na fonte dos sentidos, mas na verdade os reformula.
93
interdiscurso com o intradiscurso e esta articulação produz efeitos discursivos específicos,
determinados pelo que pode e deve ser dito no interior de uma FD. A inserção de [E],
dimensão vertical, em uma seqüência lingüística [e], dimensão horizontal, é a própria essência
do processo discursivo:
O interdiscurso de uma FD deve assim ser pensado como um processo de
reconfiguração incessante no qual o saber de uma FD é conduzido em função das
posições ideológicas que esta FD representa dentro de uma conjuntura determinada,
para incorporar os elementos pré-construídos, produzidos no exterior dela mesma,
para no interior dela mesma produzir a redefinição ou a reversão; a suscitar
igualmente o retorno de seus próprios elementos, para esses próprios elementos
organizarem a repetição, mas também a provocarem eventualemnte o apagamento, o
esquecimento ou mesmo a denegação” (Ibid: 250)
Nesses termos, enquanto o interdiscurso regula o deslocamento dos saberes, cabe ao
intradiscurso realizar a sequencialização desses elementos de saber, linearizando o que está no
interdiscurso. Essa linearização ou a horizontalização da dimensão vertical de constituição do
enunciado é contemporânea da apropriação por um sujeito enunciador [L], como menciona
Courtine (1982:251). [L] se apropria dos saberes interdiscursivos devido à ocupação de um
lugar determinado numa FD, em uma situação de enunciação dada.
Todo discurso, determinado por sua exterioridade, remete a outros discursos, que se
acham presentes nele como uma ausência necessária. Nesse processo de sentidos referidos a
outros sentidos, processo de identificação, o primado dessa memória do dizer
(interdiscurso) podendo ser inacessível ao sujeito, mas que está presente, que fala, que faz
ecos em sua fala. Segundo Courtine esse apagamento está ligado diretamente ao fato de que o
que é repetido é um não-sabido, um não reconhecido, deslocado e deslocando-se no
enunciado, isto é, uma repetição a mesmo tempo presente e ausente na série de formulações.
Ausente porque desconhecida, presente em seu efeito: a repetição de uma memória lacunar
ou com falhas (1981:21).
A preocupação central aqui é retomar a enunciação não como uma atividade centrada
num sujeito falante, mas como uma tomada de posição que se materializa nesse processo de
articulação entre o lingüístico e o ideológico, sendo segundo Courtine (1981: 35) dentro da
relação entre o interdiscurso de uma FD e o intradiscurso de uma seqüência discursiva
produzida por um sujeito enunciador a partir de um lugar inscrito dentro de uma relação de
lugares no interior dessa FD, que é necessário situar os processos pelos quais o sujeito
falante é interpelado-assujeitado em sujeito de seu discurso.
No entender de Courtine, as concepções desenvolvidas por Pêcheux têm as seguintes
conseqüências:
94
1. “É no interdiscurso, como lugar de formação dos pré-construídos e da
articulação dos enunciados, que se constitui o enunciável como exterior ao sujeito
da enunciação;
2. A interpelação-assujeitamento do sujeito falante em sujeito de seu discurso se
realiza pela identificação deste último ao sujeito universal da FD; o sujeito
enunciador é, nessa perspectiva, produzido como um efeito das modalidades desta
identificação; é, nos termos de Pêcheux, o domínio da forma-sujeito;
3. A determinação das condições de produção de uma seqüência discursiva
deveria se efetuar, no quadro de definições que constitui o conceito de FD, somente
a partir do interdiscurso da FD que domina esta seqüência, como “todo complexo
intrincado de FD e FI.” (1981:36-37)
Para Courtine, essa intrincação de elementos no processo discursivo representa uma
tomada de posição teórica na qual a noção de Condições de Produção, ao mesmo tempo em
que se consolida no âmbito do processo discursivo, afasta-se da concepção psicossocial que a
compara a circunstância de um ato de comunicação. Intervém, dessa forma, como
fundamental, a análise do laço existente entre CP de um discurso, FD, interdiscurso, relação
notadamente circular e complementar.
Nesta trilha teórica, voltar a nosso objetivo neste trabalho é fundamental, pois o objeto
texto e as práticas de leitura e escritura reconfiguram-se a partir do olhar da análise de
discurso. Abarcar a intrincação do interdiscurso no intradiscurso nos encaminha a dois pontos
basilares deste trabalho: a formação do percurso de leitura através da filiação da posição-
sujeito que transparece nos acessos e nas reflexões sobre a prática de leitura, bem como a
mobilização do conceito de pré-construido como determinante para o entendimento do
funcionamento das anáforas discursivas, tal como desenvolveremos adiante.
Em resumo: trabalha-se com um sujeito que não detém o sentido, que não pode
apreendê-lo integralmente, mas que lança sobre o texto, enquanto espaço simbólico, efeitos
que não cessam de aparecer. Do que até então foi exposto temos que os sentidos existem
nas relações engendradas pelas FDs que conferem sentidos às palavras, proposições,
expressões. A formação discursiva, por sua vez, está constituída na relação com o
interdiscurso (a memória do dizer), o qual representa no dizer do sujeito as formações
ideológicas. Para tanto, o sentido é fruto de um trabalho da interpretação que se em duas
instâncias: o sujeito é interpretado (direcionado) pelo ideológico, o que, conseqüentemente,
gera o gesto de interpretação sobre a materialidade da ngua, pois ao significar o sujeito se
significa, o gesto de interpretação é o que –perceptível ou não para o sujeito e/ou para seus
interlocutores decide a direção dos sentidos, decidindo, assim, sobre sua (a do sujeito)
direção (ORLANDI, 2004:22). Não como centrar, portanto, a abordagem de texto sobre a
95
ancoragem em um contexto homogêneo e uno, mas aborda-se o texto, sua formulação e o
processamento da leitura em condições de produção dadas.
2.1.3 Da noção de contexto ao conceito de condições de produção do discurso
Colocar em contraponto a concepção de contexto com o conceito de condições de
produção difundido pela AD francesa nos leva a pensar nas limitações impostas pela ciência
quanto à relação entre seus objetos e sua historicidade. Vinculada a um funcionamento de
“pano de fundo” das práticas humanas e de registro dos acontecimentos, a idéia de contexto
emana da atribuição de um caráter positivista às questões históricas e sociais. Ademais, o
papel do sujeito é, assim, reduzido a de um mero decodificador, caracterizando-se como
sujeito de evidências, transparente para si mesmo. Suas práticas de linguagem, portanto, estão
sempre situadas num espaço de interlocução evidente e descaracterizado das relações sociais e
históricas que engendram. Desse ponto de vista, concordamos com a constatação de Paul
Henry quando menciona que livrar as ciências humanas do historicismo é então ao mesmo
tempo a condição de sua objetividade e de sua utilidade pragmática (HENRY, 1997:50). Foi
nesse sentido que a idéia de contexto
71
opacificou a vinculação das ciências à historicidade.
Interessando-se menos pelas individualidades e mais pelos homens enquanto parte de
grupos sociais, a AD recusa a noção de contexto por sua insuficiência para uma reflexão
materialista-histórica dos processos de enunciação e faz uma passagem salutar para a noção
de condições de produção, pois conforme Orlandi não se dirá, assim, que se acrescentam
dados históricos para melhor delimitar a significação; dir-se-á que o processo de
significação é histórico (1988:18). Numa perspectiva sensivelmente diferente, é proposta a
71
Para voltar ao diálogo travado com a LT, trazemos o conceito de contexto a fim de colocá-lo em contraponto
com a noção de CP difundida pela AD. Pautado numa situação de interlocução imediata o contexto foi colocado
a serviço de uma pragmática eminentemente idealizadora do sujeito enunciador e das situações em que mobiliza
a ngua, pois não só o co-texto, como a situação de interação imediata, a situação mediata (entorno
sociopolítico-cultural) e a também o contexto sociocognitivo dos interlocutores que, na verdade, subsume os
demais (KOCH, 2002:24). Vemos que o contexto tal como tangenciado pela LT aborda superficialmente o
entorno sociopolítico-cultural que mencionam, tanto que são discriminados pela autora os fatores que,
agregados, formam a noção de contexto que para ela engloba todos os tipos de conhecimentos arquivados na
memória dos actantes sociais, necessitando ser mobilizados por ocasião do intercâmbio verbal: o conhecimento
lingüístico, propriamente dito, o conhecimento enciclopédico, quer declarativo, quer episódico (frames, scripts),
o conhecimento da situação comunicativa e de suas ‘regras’ (situacionalidade), o conhecimento superestrutural
(tipos textuais), o conhecimento estilístico (registros, variedades de língua e sua adequação às situações
comunicativas), o conhecimento sobre os variados gêneros adequados às diversas práticas sociais [...]
(2002:24)
96
desvinculação do discursivo em relação a uma individualidade fundadora de sentidos,
tomando como central a noção de “lugar” a partir do qual o discurso se articula. Eliminam-se
as pretensões de objetividade dos espaços de enunciação, substituindo-os por uma concepção
de lugar social. As práticas discursivas passam a ser vistas em termos de processo, ou seja,
existe em torno da enunciação um processo discursivo que passa efetivamente a congregar o
histórico, o ideológico (coma noção de interpelação) e o lingüístico numa teoria materialista
dos sentidos.
Sobretudo devemos levar em consideração que pensar a linguagem nesses termos
exclui que a tenhamos como instrumento de expressão do pensamento ou de comunicação,
para atentarmos para o fato de que ela está diretamente ligada ao domínio do sujeito e de suas
condições históricas e políticas. Robin (1973), nesse sentido, remetendo às reflexões de
Guespin, diferencia o que é da ordem da materialidade puramente lingüística e o que concerne
ao discurso, enquanto ordem que articula o lingüístico e as condições de produção de seu
funcionamento, pois um olhar lançado a um texto do ponto de vista de sua estruturação em
‘língua’ faz dele um enunciado; um estudo lingüístico das condições de produção desse texto
fará dele um discurso (GUESPIN apud ROBIN, 1973:26).
A análise de discurso procura, com a compreensão da historicidade, inerente à prática
discursiva, contemplar o fato de que as práticas enunciativas não podem ser reduzidas ao
conhecimento da ngua, tal como “evidenciado” pela lingüística. A AD busca, na
discursividade, enquanto efeito da relação da materialidade da língua com a materialidade da
história, atentar para que o discurso, além de operar no campo de um sistema lingüístico,
coloca em jogo uma (re)apropriação da língua por sujeitos inscritos numa ordem social e
cujas enunciações instauram um presente relativo a um momento e a um lugar.
Nesses termos, não se pode deixar de levar em conta que todo lugar próprio é alterado
por aquilo que de exterior se acha nele, em sua constitutição, tornando inerentemente
falaciosa a condição de plenitude que lhe é imposta. Há, dessa forma, uma articulação com a
escrita da história, pois parte-se de um ponto de vista de que as práticas discursivas
correspondem a lugares sociais. De Certeau (1976) enfatiza a importância de perceber que
desvincular todo o sistema de pensamento de sua referência a lugares sociais, econômicos e
culturais produz um chamado “sonambulismo teórico”, dado que somente é válida a teoria
que articula uma prática [...] (1976:18) e que o discurso ‘científico’ que não fala de sua
relação com o corpo’ social não seria capaz de articular uma prática (1976: 22)[Grifo do
autor]. Ainda segundo o autor:
97
[...] a história se define inteiramente por uma relação da linguagem com o corpo
(social), e, então, também por sua relação com os limites colocados pelo corpo, seja
sob a forma do lugar particular de onde se fala, seja sob a forma do objeto distinto
(passado, morte) do qual se fala (1976:27).
Quando Pêcheux propõe que falar de mensagem como transmissão de informação é
insuficiente, preferindo usar o termo discurso como “efeitos de sentido entre os pontos A e B”
(AAD69:82), o que o mobiliza é a questão de que A e B designam lugares determinados numa
formação social, designam lugares de onde os sentidos emanam com especificidades e
particularidades ligadas a determinações sociais e históricas. São colocados em jogo lugares
engendrados socialmente.
Pêcheux passa do conceito de contexto ao de CP com a seguinte formulação:
o estudo da ligação entre as ‘circunstâncias’ de um discurso – que chamaremos
daqui em diante suas condições de produção e seu processo de produção. Esta
perspectiva está representada na teoria lingüística atual pelo papel dado ao contexto
ou à situação, como pano de fundo específico dos discursos [...] (1997a:75).
Devemos levar em conta que esta passagem não trata de uma simples substituição de
termos, mas de um deslocamento primordial para o entendimento das práticas de linguagem
como regionais, como localmente estabelecidas e não como práticas homoneas e objetivas
que partem de sujeitos que “compartilham” de uma mesma bagagem social e histórica, tal
como formulou-se em LT.
É preciso considerar, no entanto, que, no âmbito das primeiras formulações de
Pêcheux este conceito ainda corria o risco de ser confundido com uma circunstância imediata
de interlocução, dado o papel ainda homogeneizador dos conceitos da AAD69. Nesse sentido
a intervenção de Courtine (1982) é determinante para o conceito de condições de produção,
pois, o autor, partindo de um conceito que se pauta pela heterogeneidade, outra face à
noção forjada inicialmente por Pêcheux.
Courtine, assim como Pêcheux, considera a noção de condições de produção do
discurso como a relação da materialidade lingüística de uma seqüência discursiva com as
condições históricas que determinam sua produção (1982:246), o que estabelece uma relação
intrínseca da língua com as práticas sociais. Entretanto Courtine (1982) enfatiza que Pêcheux
ainda manteve o conceito no limite da objetividade e da homogeneidade, considerando as CP
como homogêneas. Por sua vez, ele afirma que as condições de produção representam o ponto
em que uma seqüência discursiva relaciona-se com o sujeito do saber de uma formação
discursiva, numa conjuntura histórica, configurando-se pela heterogeneidade, dado o caráter
intrínseco da contradição. Essa heterogeneidade traz a instabilidade para o processo
98
discursivo e, primordialmente, não aprisiona o sujeito num espaço delimitável de enunciação,
pois as condições de produção, se pautam pela possibilidade de análise de um domínio de
memória, anterior à enunciação e que intervém de maneiras diferentes em A e B, ou seja, o
sujeito que enuncia e aquele para quem destina seu discurso não compartilham domínios de
memória idênticos. entra a importância das condições de produção no trabalho de
interpretação, pois
,
segundo Pêcheux:
[...] O sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista,
para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um
conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto
não se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo
discurso: a língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos
diferenciados [...] (PÊCHEUX, 1997b: 91)
É evidente, dessa forma, que ver com clareza que a língua é a mesma e indiferente aos
lugares sociais em que é mobilizada, mas que, em contrapartida, jamais os sujeitos serão
indiferentes a ela, pois material simbólico, é ver que todo processo discursivo está inscrito
numa relação ideológica e social.
Tomando nossa proposta neste trabalho como ponto de reflexão, vemos que o
deslocamento da noção de contexto para a de CP, requer que tenhamos um olhar atento
também para o trabalho de interpretação sobre o texto e em nosso caso, sobre uma nova
textualidade que é a que emerge no ambiente digital. Sair do texto enquanto materialidade
puramente lingüística, engendrada numa situação delimitada de uso, significa a existência de
uma relação deste objeto com o todo que é o mecanismo discursivo, abandonando a evidência
de que um texto fala por si, enquanto materialidade lingüística, concebendo que, para dar
conta do discursivo, deve-se colocá-lo no limite de todas as demais práticas que intervém em
seu domínio. Ultrapassar tais obstáculos, segundo Robin, significa que efetivamente, colocar
o problema do discurso como prática numa formação social é ultrapassar a problemática da
Lingüística como ‘receita’ puramente técnica, para abordar o lugar das práticas discursivas
numa formação social
(1973:107).
Com efeito, as CP estão no discursivo, não operam como um exterior a ele. Esse fato
toca no fundamental da questão: a história e a interpelação ideológica produzem lugares de
enunciação, lugares de identificação para o sujeito e primordialmente, orientam os sentidos,
pois
[...]em cada momento histórico dado, as formas ideológicas não se equivalem, e
efeito simulação-recalque que elas engendram não é homogêneo: as formas que a
‘relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência’ toma não
são homogêneas precisamente porque tais ‘condições reais de existência’ são
99
‘distribuídas’ pelas relações de produção econômicas, com os diferentes tipos de
contradições políticas e ideológicas resultantes dessas relações (Pêcheux, 1997b:
77).
Em vista disso, fica evidente que as CP, afetadas pela ideologia, resultam em lugares
de enunciação, lugares contemplados em AD pelo conceito de Formação Discursiva (FD),
intrincado no complexo das formações ideológicas (FI). É, portanto, no interior de um
formação discursiva que o sujeito encontra seu lugar de enunciação e sua vinculação a uma
forma-sujeito do discurso, vinculação de caráter eminentemente ideológico, produzida pela
sujeição. É na identificação com essa forma-sujeito que indivíduos sabem o que podem e
devem dizer, pois Diremos que toda formação discursiva deriva de condições de produção
específicas, identificáveis (PÊCHEUX E FUCHS, 1997:167).
Convém observar, nesse sentido, que a possibilidade de ‘n’ sentidos faz com a análise
semântica de um texto, tal como proposta por uma teoria estruturalista como a lingüística de
texto, seja falaciosa em sua própria natureza, já que, conforme destacado por Pêcheux e Fuchs
(1997:169) a evidência da leitura subjetiva segundo a qual um texto é biunivocamente
associado a seu sentido (com ambigüidades sintáticas e/ou semânticas) é uma ilusão
constitutiva do efeito-sujeito em relação à linguagem. Nesses termos, os gestos de leitura que
o(s) sujeito(s) incide(m) sobre textos são efeitos de sentidos igualmente vinculados a lugares
de enunciação que direcionam a interpretação.
Na passagem das seções anteriores para esta corroboram pontos fundamentais para
nossa pesquisa: a) o sujeito interpelado, produz efeitos de sentido ligados a uma memória que
retorna em condições de produção específicas e discursiviza o sujeito, projetando-se
silenciosamente em sua enunciação; b) todo sentido, portanto, é efeito de um trabalho
interpretativo circular: o sujeito é interpretado antes de interpretar, é levado a assumir uma
posição de enunciação que legitima sentidos que o falam. Logo, para nossos propósitos,
buscamos a noção de um sujeito-leitor, cujo teor é mais denso do que o leitor passivo
instaurado pelas Lingüísticas de Texto. Este sujeito constitui-se como tal na heterogeneidade:
a sua e a do texto, o que nos leva às considerações sobre a textualidade em AD.
2.1.4 Análise de discurso e uma nova abordagem da textualidade
O que por definição a AD entende por texto em muito se distancia do objeto límpido e
linear da lingüística textual. Neste domínio, houve um pretenso isolamento do texto e uma
forte esterilização da interpretação. Assim, a elaboração de teorias do texto que se abstraem
do sujeito e das práticas sociais, inerentes à constituição de sentidos, resulta numa distorção e
100
numa eliminação daquilo que, de fato, situa o texto enquanto materialidade simbólica. Numa
perspectiva diferente
O que está em jogo para a Análise do Discurso é o modo como o texto organiza sua
relação com a discursividade, vale dizer, com a exterioridade e o modo como
organiza internamente estes elementos provenientes da exterioridade para que
produzam o efeito de um texto homogêneo (INDURSKY, 2001:28).
É nesse ponto chave que acentuamos a importância de distanciamento da concepção
de texto em AD daquela própria de uma ordem puramente lingüística. Robin acentua o
engendramento essencial que a AD traz para a análise de textos,
o que quer dizer que, se a Lingüística descreve o texto, se diz precisamente o que
existe no texto, seu arranjo interno, não nossua chave nem a função. Ela ordena a
ideologia, mas o que significa socialmente a ideologia está fora de seu campo
(ROBIN, 1973:20).
A partir disso, temos duas formas distintas de vislumbrar o texto: sob a perspectiva da
forma abstrata, o texto é límpido, transparente e efeito de literalidade; sob a perspectiva de
uma concepção materialista, o texto é objeto histórico e opaco, logo, fundamentado na
incompletude. Se antes da AD o texto era segmentado linearmente, depois dela ele passa a ser
dimensionado como uma organização de recortes, de unidades discursivas que correlacionam
linguagem e situação.
Ensejando uma vigorosa crítica à abordagem dos estudos da linguagem sobre os
textos, Michel Pêcheux dá outro foco para a relação sujeito-língua-sentido:
[...] as questões concernentes aos usos semânticos e sintáticos colocados em
evidência pelo texto ajudavam a responder às questões que diziam respeito ao
sentido do texto (o que o autor ‘quis dizer’). Em outros termos, a ciência clássica da
linguagem pretendia ser ao mesmo tempo ciência da expressão e ciência dos meios
desta expressão, e o estudo gramatical e semântico era um meio a serviço de um
fim, a saber, a compreensão do texto, da mesma forma que, no próprio texto, os
‘meios de expressão’ estavam a serviço do fim visado pelo produtor do texto (a
saber: fazer-se compreender) (1997a: 61-62).
Esse tratamento sistemático destinado aos textos deixou de responder a algumas
questões cruciais, rendendo-se às análises eminentemente descritivas chamadas de ‘análises
de conteúdo. Para o autor
[...] como é de regra na história da ciência, a inclinação pela qual a lingüística
constituiu sua cientificidade, deixou a descoberto o terreno que ela estava
abandonando, e a questão que a lingüística teve que deixar de responder, continua a
se colocar, motivada por interesses a um só tempo teóricos e práticos:
‘O que quer dizer este texto?’
‘Que significação contém este texto?
101
‘Em que o sentido deste texto difere daquele de tal outro texto?” (1997a:63)
Com vistas a tais lacunas, a AD baseou-se na necessidade de uma mudança de
perspectiva teórica, em que a língua encontrasse articulação com o exterior que a circunscreve
e que esteve elidido. Alijar a exterioridade foi um movimento que promoveu o que Pêcheux
(1981) determinou por ser uma cegueira em relação à história e uma surdez em relação à
língua. O autor estabeleceu, nesses termos, a impossibilidade de analisar textos com base
‘unicamente’ nos princípios pautados pelas análises ‘clássicas’, pois corria-se e corre-se - o
risco de cair em um conteudismo crescente, o que minimiza a dimensão simbólica da
linguagem. Para ele, que haver sempre uma referência a um mecanismo discursivo
específico, não universal, mas regional dos sentidos:
[...] os fenômenos lingüísticos de dimensão superior à frase podem efetivamente ser
concebidos como um funcionamento, mas com a condição de acrescentar
imediatamente que este funcionamento não é integralmente lingüístico, no sentido
atual desse termo e que não podemos defini-lo senão em referência ao mecanismo de
colocação dos protagonistas e do objeto de discurso, mecanismo que chamamos
‘condições de produção’ do discurso (1997b:78).
É importante asseverar que quando a AD nega um funcionamento integralmente
lingüístico, está sendo apontado o fato de que a textualidade é paramentada pelas condições
de sua produção. Por isso, o texto é caracterizado como um espaço de constante interlocução
entre sentidos estabelecidos, e aqueles que se produzem no espaço da emergência enunciativa.
Essa relação da textualidade com as condições de produção faz com que ela encontre-se com
o conceito de textualização
72
. Ou seja, o texto como efeito de um trabalho simbólico passa a
engendrar relações que não são de ordem puramente interna, visto que, conforme Indursky
para a Análise do Discurso, a organização lingüística interna ao texto é o que menos
interessa. (2001:28).
A textualização difere do conceito de textualidade por ser um processo que o antecede.
Expliquemo-nos: para que haja textualidade qualidade de ser texto as lingüísticas de texto
cunharam dois conceitos base: a coesão e a coerência, desvinculados de qualquer base
histórica e social. Esses conceitos davam conta de uma organização interna do texto. A
textualização, por sua vez, engendra relações discursivas, exteriores ao entrelaçamento
endofórico do texto. A textualidade passa a ser vista como resultado do trabalho de
textualização, resultado que surge como efeito de completude. Segundo Indursky (2001) faz
parte da constituição do texto uma série de outros fatores, tais como:
72
O conceito de textualização é inserido no campo teórico da AD a partir da tese de doutoramento de Solange
Gallo intitulada Texto: como apre(e)ender essa matéria?, IEL, UNICAMP, 1994.
102
- as relações contextuais: contexto socioeconômico, político, cultural e
histórico. Define-se pelas condições de produção do texto;
- as relações textuais intertextualidade: definem-se pelas relações que o texto
mantém com outros textos;
- e as relações interdiscursivas interdiscursividade: aproximam o texto de
outros discursos. A interdiscursividade afasta-se da materialidade da língua,
para remeter às redes de sentidos que se imbricam na formação do texto,
tornando-o espaço de atualização e reformulação de memórias.
Constituído nas/por essas relações o texto possui uma materialidade lingüística, mas não se
reduz a ela, uma rede de textos e discursos que o atravessam, o que faz com que Indursky
defina o texto como heterogeneidade estruturada. Esse processo de textualização produz um
texto em que diferentes textos, diferentes discursos e diferentes subjetividades se fazem
presentes (INDURSKY, 2001:30), o que corrobora com Orlandi (2004:14), quando diz que o
texto é “multidimensional, enquanto espaço simbólico”.
Voltamos a Indursky e a um importante contraponto que faz com a Lingüística
Textual:
Estas relações textuais, que nesta etapa de textualização já são internas ao texto, não
se confundem com as relações de coesão de que se ocupa da Lingüística Textual
(LT), porque, na perspectiva da Análise do Discurso (AD), essas relações promovem
a organização interna ao texto de saberes provenientes da exterioridade, do
interdiscurso, dos quais o sujeito-autor inconscientemente se apropriou. Por
conseguinte, para a AD, consiste em organizar internamente o que é proveniente da
exterioridade. Trata-se de sintagmatizar/linearizar/internalizar o que é,
originariamente, desintagmatizado e externo. Enquanto, na perspectiva da LT,
organiza-se o que já é, desde sempre, interno, o que foi produzido ali, apenas pelo
autor, sem remeter, em momento algum, à exterioridade, à alteridade. Ou seja, para a
LT, o autor está na origem plena do texto. Fazendo mais um contraste, para a AD,
trata-se de produzir o efeito de uma superfície plana e sem emendas, de produzir o
efeito de homogeneização dessas heterogeneidades e alteridades. Para a LT, trata-se
de relacionar o que precede com o que sucede no interior unívoco do próprio texto,
na sua linearidade natural. (2001:32)
Isso implica uma outra concepção deste objeto, que diferentemente da LT, é
tangenciado como espaço relacional, não fechado em si mesmo, que se define pela relação
que estabelece com as condições de sua produção e com outros textos (textos de que parte e
para os quais aponta), em que não dominância de um sentido, pois um texto são sempre
vários, desde sua ‘origem’, os textos possíveis num ‘mesmo’ texto”. (ORLANDI, 2004:14).
Apontamos ainda, junto com a autora que
103
O texto pode ter qualquer extensão: pode ser desde uma simples palavra até um
conjunto de frases. O que o define não é sua extensão, mas o fato de que ele é uma
unidade de significação em relação à situação. (ORLANDI, 1996:159)
Indursky propõe que o texto seja, então, dimensionado como efeito dessa
textualização. Trata-se do que a autora define, em lugar da textualidade tal como matizada
pela LT, por efeito de textualidade, que é uma qualidade discursiva que deriva da inserção e
textualização de recortes discursivos provenientes de outros textos, de outros discursos,
enfim, do interdiscurso. (2001:31).
Este efeito-texto é resultado de uma evidência, produzida silenciosamente como o
efeito-sujeito e o efeito de sentido. Ele resulta da ilusão de completude do texto. Ilusão
necessária para o autor que é afetado pelo imaginário de estar na origem de seu dizer.
De posse do conceito de texto e textualidade em AD, urge que direcionemos nossas
explanações à questão da leitura e aos efeitos que o texto, enquanto espaço heterogêneo,
produz sobre essa prática.
Inevitável constatar que sempre houve uma sobreposição do sintático ao pragmático
nos estudos destinados ao texto e aos critérios de textualidade. Privilegiou-se a informação e a
função representativa da linguagem, encerrando o texto num percurso linguagem–pensamento
em detrimento do percurso linguagem–sociedade. Segundo Orlandi (1988) essa
representatividade redutora centra-se num conceito móbil para a abordagem de textos: o
conceito de legibilidade. Tal noção fundamenta-se, primeiramente, segundo os estudos
clássicos do texto, na existência deste objeto como uma totalidade que está a serviço de um
autor, o qual destina seu “produto” a um leitor que, onipotente, desvendará o sentido (único)
direcionado.
Haroche (1992) liga a questão da legibilidade à individualização e isolamento do
sujeito. A busca pela transparência e completude surge, para a autora, da necessidade latente
de uniformização do sujeito, que individualizado, homogeneizado segundo as regras que a
“língua” lhe impõe, é responsabilizado. Isso implica a visibilidade do sujeito que mobiliza a
língua, visibilidade que produz para o sujeito a necessidade de produção de um discurso linear
e claro, correspondente ao ideal de dizer “completo” e encerrado. Isso gera uma caça ao
indeterminado semanticamente, ao impensado que não se mostra, tal como destacado quando
refletimos sobre os cerceamentos que a LT propunha com o conceito de coesão
eminentemente endofórica:
A caça incessante à ambigüidade, à elipse (à falta) à incisa (ao acréscimo
descontrolado) e, de maneira geral, a tudo que pode parecer uma zona de sombra
104
nascida de uma ruptura a linearidade do discurso, participa desta exigência de
legibilidade. Visibilidade isolante e legibilidade isolante. (HAROCHE, 1992:23)
Neste caso a questão da legibilidade é um problema com que a AD se depara, e para o
qual lança outro ponto de vista, ligado à questão do texto como efeito, pois pensar que um
texto para ser texto deve ser legível requer que tenhamos em conta outros fatores como: o
texto é legível para quem? Em que condições um texto é legível? Tais fatores deixam em
aberto muitas questões acerca do que se entende por legibilidade. Incidiremos sobre a
relatividade que este termo adquire na análise de discurso:
[...] de um lado, a legibilidade não é uma questão de tudo ou nada, mas uma questão
de graus, e, de outro, gostaríamos de dizer que a legibilidade envolve outros
elementos além da boa formação de sentenças, da coesão textual, da coerência.
(ORLANDI, 1996:183)
Para a autora pensar em questões como “O que torna um texto legível?” ou “O que é
um texto legível?” está numa escala mais complexa de entendimento do que seja texto e
sentido, bem como do que sejam as atividades de escritura e leitura. Significa, direcionando
um olhar discursivo sobre o texto e os processos que nele e por ele se instauram, que a
legibilidade não está no objeto texto, como se fosse um ingrediente que lhe conferisse o
sucesso de ser ou não texto. Pelo contrário, a legibilidade está e, ao mesmo tempo, não está
no texto. Não se trata de uma conseqüência direta, unilateral e automática da escrita
(ORLANDI, 1988:8 [grifos nossos]), mas se trata de uma relação relativizada sempre por
condições de produção tanto da escritura quanto da leitura que se empreende sobre a
superfície lingüística. Assim é a natureza da relação que alguém estabelece com o texto que
está na base da caracterização da legibilidade” (1988:9).
Não sendo a legibilidade uma conseqüência direta e unilateral da escrita, ela ultrapassa
os limites presos ao próprio objeto. Pode-se, portanto, compreender que a relação texto/não-
texto não pode estar barrada (tal como em LT), mas deve ser tida como uma relação de
constituição. O texto contém em si o não-texto, já que os critérios de textualidade se
relativizam, sendo uma questão de natureza, de condições, de modos de relação, de
trabalho, de produção de sentidos, em uma palavra: de historicidade” (ORLANDI, 1988:9)
Isso mostra como a escritura e a leitura podem ser processos complexos que estão
além do desenvolvimento de habilidades lingüísticas, além do domínio das formas da língua.
Trata-se de processos indistintos, pois escrever é ler (re-ler) e ler é escrever (produção de
sentidos), ambos processos em busca do que o texto diz e do que não diz, sendo, por isso,
processos eminentemente interpretativos. Leitura e escritura, nesses termos, e em consonância
105
com o que postula Orlandi (Idem), não são relações entre leitor–texto e entre autor-texto,
como se ambos processos tivessem sua ocorrência entre sujeito-objeto. Trata-se, sobretudo, de
uma relação entre sujeitos (autor leitor virtual leitor real
73
) em que o texto é objeto
mediador para a constituição de sentidos. Segundo Orlandi:
O leitor não interage com o texto (relação sujeito/objeto), mas com outro(s)
sujeito(s) (leitor virtual, autor, etc). A relação, como diria A. Schaff (em sua crítica
ao fetichismo sígnico, 1966), sempre se entre homens, são relações sociais; eu
acrescentaria, históricas, ainda que (ou porque) mediadas por objetos (como o texto).
Ficar na ‘objetalidade’ do texto, no entanto, é fixar-se na mediação, absolutizando-a,
perdendo a historicidade dele, logo, sua significância. (1988:9)
Na medida em que os interlocutores (leitor real leitor virtual autor) se encontram,
começa um constante debate, pois as condições de produção da escritura do texto nem sempre
se encontram em relação harmônica com as condições de produção da(s) leitura(s) possíveis.
A única relação que pode ser seguramente harmônica é a relação do autor com seu leitor
virtual, pois essa relação está no nível das projeções, das formações imaginárias que fazem
com que o autor destine seu dizer a um determinado interlocutor:
Mais amplamente, um outro aspecto importante da representação do leitor no
processo de leitura. O outro, isto é, o leitor na medida em que lê, se constitui, se
representa, se identifica. A questão da compreensão não é só do nível da informação.
Faz entrar em conta o processo de interação, a ideologia. (ORLANDI, 1996:185)
Por conta disso, a relação com os possíveis leitores reais será sempre tensa, visto que a
leitura instaura-se como um espaço de interlocução que, inevitavelmente, confronta sentidos
derivados de formações discursivas diferentes que trazem diferentes posições-sujeito
mobilizando esses sentidos. Conforme Indursky:
É preciso ter em conta, também, que o leitor é um sujeito interpelado e identificado
com uma FD. Isso implica que o sujeito-leitor vai ocupar uma posição-sujeito em
relação àquela ocupada pelo sujeito-autor, com ela identificando-se ou não. Ou seja,
o sujeito-leitor vai produzir sua leitura desde seu lugar social e este pode ou não
coincidir com o lugar social do qual o sujeito-autor produziu o texto. Por
conseguinte, a produção de leitura vai mobilizar, num primeiro momento, essas duas
posições-sujeito. (2001:34)
73
Orlandi descreve a existência de duas categorias de leitor com os quais o autor do texto entra em interlocução.
Primeiramente, tendo como base as formações imaginárias, o autor pressupõe um leitor (leitor-virtual) que seria
o sujeito para quem destina seu texto. Essa é uma categoria de leitor inscrita no texto, constituída no próprio ato
da escrita. No entanto, o texto, no processo de leitura, entra em relação direta com leitores reais os quais estão
em interlocução com este leitor-virtual. Por isso, a relação de produção de sentidos se entre sujeitos, mas
nunca numa relação biunívoca entre sujeito e objeto.
106
Essa é a tensão necessária que instala o efeito-texto, sempre relativo ao momento em
que ele é mobilizado por um sujeito-leitor em sua posição-sujeito. Isso implica, para a autora,
numa outra concepção para o efeito-texto, visto como heterogeneidade provisoriamente
estruturada. Esta concepção corrobora com a questão da legibilidade relativa do texto:
A cada novo sujeito-leitor, novas relações podem ser estabelecidas, novas leituras
podem ser produzidas, novos efeitos de memória podem ser mobilizados, novas
interpretações podem ser projetadas. E é esse trabalho discursivo de atribuição de
sentidos, instaurado pela produção da leitura, que o constitui em sujeito-leitor. Diria
mesmo que a prática discursiva da leitura instaura uma disputa de interpretações
entre o sujeito-leitor, o sujeito-autor e todas as outras vozes anônimas provenientes
do interdiscurso, pelo viés do efeito-texto. (2001:36-37)
Obviamente a relação engendrada pelos textos, no âmbito dos estudos lingüísticos
sempre esteve baseada nas relações puramente parafrásticas, fazendo desse processo um
limitador da interpretação. Isso é acentuado pelas oposições entre gramatical/agramatical,
certo/errado que culminam, no âmbito dos estudos de textos na oposição legível/ilegível.
Nesses termos, tais estudos, desconsiderando o texto em suas condições de produção
discursivas, não se deram conta de que os conhecimentos não são partilhados
homogeneamente pelos sujeitos, o sentido do texto não é nuclear e oriundo de um autor,
sujeito fonte de todo sentido. Esses conhecimentos são sempre socialmente distribuídos, por
isso, não-passíveis de serem reduzidos a informações factuais e mensuráveis. A polissemia é
reintegrada à ordem da língua:
Através dessa noção [texto], entendida como unidade diferente, em natureza, da
soma de frases como conceito que acolhe o processo de interação e a relação com
o mundo pela (e na) linguagem nos instalamos no domínio da significação como
multiplicidade (polissemia, efeito de sentidos) e não como linearidade
informativa.(ORLANDI, 1996:139)
Numa ordem discursiva, portanto, o texto deixa de ser espaço eminentemente
parafrástico para instaurar-se como espaço polissêmico em que, mais do que informar, produz
sentidos ligados às condições de produção da escritura-leitura. A natureza do texto, nesses
termos, é tensa, dialógica, pois assim como não pode abster-se do processo parafrástico
(reformulação), não como abrir mão da constante interlocução entre as posições-sujeito
engendradas na textualização, as posições-sujeito do autor e do leitor e ainda as posições-
sujeito que se engendram no texto pelas relações interdiscursivas. O texto não é mais o
império de um significante, mas dos significados em toda sua pluralidade, não sendo objeto
que se fecha, mas que pelo contrário abre um feixe de possibilidades.
107
Promovendo, portanto, esse olhar menos objetivo sobre texto, critérios de textualidade
e, primordialmente, sobre os sujeitos que interagem nos processos de leitura e escritura, nega-
se contundentemente a possibilidade de pensar, segundo Orlandi, na existência de:
a) “um autor onipotente, cujas intenções controlassem todo percurso da
significação do texto;
b) a transparência do texto, que diria por si toda (e apenas uma) significação;
e, ainda,
c) um leitor onisciente, cuja capacidade de compreensão dominasse as
múltiplas determinações de sentidos que jogam em um processo de leitura”
(1988:11).
É com base nessa perspectiva sobre o texto que encontramos, na AD, a porta de
entrada para um estudo menos delimitador de nosso objeto de estudo. Assim, ao observarmos
o hipertexto da perspectiva discursiva, e principalmente, os gestos de leitura que sobre ele se
instauram, vemos a multiplicidade de direcionamentos, a multiplicidade de planos
significantes de uma ótica diferenciada daquela que a LT produziu. Voltamos a Orlandi
(2004:14) e a suas explanações sobre o texto:
Diferentes versões de um texto, diferentes formulações constituem novos produtos
significativos [...] qualquer modificação na materialidade do texto corresponde a
diferentes gestos de interpretação, compromisso com diferentes posições de sujeito,
com diferentes formações discursivas, distintos recortes de memória, distintas
relações com a exterioridade
.
Isso quer dizer que se a lingüística descreve o texto, se diz precisamente o que existe
nele, de acordo com uma análise fechada, prevê seu arranjo interno, uma teoria do discurso
como a AD, amparando-se na lingüística como suporte, mas negando a centralidade imposta
por seus estudos, procurando exatamente o fragmentário que constitui a língua, o impossível,
a incompletude, pois, constitutivos, busca trabalhar naquilo que do exterior atravessa o texto,
em sua discursividade, relacionando-o a uma situação de produção (situação social, cultural,
política) e, primordialmente, com o trabalho simbólico que o carrega de sentidos.
O texto contém em si o dito e o não-dito. As relações de sentido se estabelecem entre o
que está no texto e o que está fora dele. Assim, as fronteiras estabelecidas pela análise de
conteúdos entre texto e não-texto deixam de ser fronteiras para existirem como elos entre o
que está materializado (superfície lingüística) e aquilo que do exterior nele se acha latente
produzindo ‘efeitos’ de sentidos (pré-construidos/ memória discursiva).
108
Segundo Pêcheux (1997b) os processos de leitura sempre tiveram por fundamento
impor ao sujeito-leitor seu apagamento atrás da instituição que os emprega” (p.57)
descaracterizando o processo de interpretação e, logicamente, a inserção do sujeito na
constituição dos sentidos. Note-se que com a concepção de sujeito e de sentido com que a
AD trabalha, não há espaço para a fixação do texto como espaço intencionalmente construído
e marcado pela completude (esta é efeito pertencente a um imaginário), pois na perspectiva
discursiva esses conceitos são revestidos de outros significados. O texto é atualização de
sentidos, é o momento em que o discursivo coloca-se “como” transparência e “sendo
atualização da memória discursiva, a formulação (texto) se faz materialmente pela colocação
do discurso em texto, pela textualização” (ORLANDI, 2001:11).
Para a AD o texto é unidade complexa de significação em que devem ser consideradas
as condições de sua produção. Não há, para a perspectiva discursiva, texto antes do processo
de interação. Logo, segundo Orlandi em termos de sua dimensão, o texto, além de não
progredir apenas em uma direção e não crescer somente para a frente, tem relação com o
que ele não é, uma vez que o espaço simbólico (os implícitos) entre enunciados efetivamente
realizados é constitutivo do texto, bem como sua relação com outros textos.” (1988:22)
Portanto, o que até aqui foi exposto com a concepção de texto como efeito, como
heterogeneamente constituído, nos leva situar um sujeito-leitor que produz sentidos
vinculados a uma rede de relações exteriores à materialidade puramente lingüística. A
linearização, sintagmatização de saberes exteriores que se projetam no texto escrito, pelas
relações interdiscursivas, nos leva, na análise do texto digital, em sua estrutura linkada, a
refletir acerca de como essa rede de textos conectados produz essa sintagmatização. Não
estamos nos referindo ao texto que compõe cada janela interligada, mas justamente ao que
liga as janelas para formar os chamados hipertextos. Por isso, salvaguardadas as ressalvas,
enfocamos o conceito de anáfora discursiva para lançar uma reflexão sobre o funcionamento
dos hiperlinks constituidores do texto digital.
Essa discussão se fez necessária para nós, no momento em que o hipertexto foi
estudado segundo os moldes da LT e, principalmente, quando seus elementos constituidores,
os links, foram associados aos tradicionais dispositivos de coesão textual. Por isso, é com o
intuito de trabalhar sobre o cerceamento que a lingüística textual impõe aos elementos de
referenciação e sobre a impossibilidade de encerramento do funcionamento fluido dos links a
essas categorias, que buscamos o conceito de anáforas discursivas em oposição ao processo
de anaforização da lingüística textual.
109
2.2 Pensando na anáfora discursiva e no processo de articulação de pré-construídos
Herdeiros da ciência moderna, os textos obrigam seus leitores a tratá-los
analiticamente partindo do todo para as partes ou das partes para o todo. uma unidade
temática, que se constitui no centro único do texto, responsável por aquilo que é considerado
como coesão textual. Retomar a categoria da anáfora, de um modo geral nos interessa porque,
na ordem dos estudos lingüísticos do texto, ela representa um elemento fulcral na busca pela
centralização das informações e pela formação de um texto nuclear. De nossa parte, a reflexão
do elemento anafórico permitiu-nos lançar mão de outros fundamentos teóricos para pensá-lo
no sentido oposto a essa busca por centralidade do texto. É do lugar da análise de discurso que
abordamos o processo de anaforização não como processo de fechamento do texto marcado
por relações endofóricas, mas como processo de abertura.
Preocupados em saber quais são os critérios de coesão e coerência do texto, os
lingüistas trabalharam sobre um objetivo central: de que elementos do interior do texto
dessem conta da textualidade e da legibilidade deste objeto. No entanto, mesmo sendo
produtivo para pesquisas em torno da textualidade e alavancando modelos de escritura e de
interpretação das formas lingüísticas, dispostas na rede textual, tais estudiosos produziram
uma maneira “embaçada” de ver o texto em sua globalidade, se é que isso é possível.
Tal como exposto precedentemente, o processo anafórico passa por um entendimento
da referência, da significação sempre em relação a uma rede de retomadas, ancorada
puramente no nível da sintaxe, a exemplo do que expomos com Halliday e Hassan,
Beaugrande e Dressler, Bernárdez. Segundo tais perspectivas as palavras passam a relacionar-
se entre si, no interior do texto, como se as formas da língua pudessem dar conta dos
movimentos interpretativos. Temos isso explícito em Marcuschi (1983:31), quando aponta
contundentemente que as pronominalizações sempre correferem elementos da estrutura do
texto, nunca entidades não recobráveis nesta estrutura” .
É importante destacar que tal observação advém de um domínio próprio da semântica
estrutural e que privilegia as relações endofóricas, presentes na superfície lingüística. Essa
busca por limites internos às formas da língua está atrelada ao cerceamento da ambigüidade,
da polissemia, tidos como desvios das regras de boa formação textual. Contudo, ocupando-se
da determinação histórica dos processos de interpretação, a AD desvincula a noção de
textualização, tal como já explanamos, de um espaço de linearidade e literalidade significante,
para adentrar no campo do texto enquanto espaço simbólico, passível da falha, do efeito
metafórico e do equivoco. É nessa perspectiva que os clássicos processos de coesão e
coerência tomam uma feição menos determinista, que os elementos lingüísticos, no
110
entender da AD, são mediadores, materializadores da relação do sujeito com o ideológico e o
social. Assim, em contraste com os pressupostos teóricos e metodológicos da lingüística do
texto, a análise de discurso não se limita à interioridade, mas faz apelo à relação intrínseca
que as formas da língua mantêm com a exterioridade e, principalmente, que é na
interlocução entre a linguagem, o sujeito e a história que os sentidos trabalham. Para isso os
conceitos de textualidade e textualização tomaram formas mais complexas.
Para tanto, em AD, fala-se em referente em construção por um processo discursivo, o
que significa que uma relação da linguagem com o mundo que não é direta, harmônica e
homogênea, pois essa relação é intermediada, atravessada pelo ideológico, que existe
estabelecendo as relações mundo-linguagem de formas diferentes, contraditórias. Esse espaço
de mediação é o que possibilita vermos a incompletude, a fluidez e hibridez da língua. Assim,
de acordo com Orlandi (2004:29) Não partimos, como na análise de conteúdo, da
exterioridade para o texto, ao contrário, procuramos conhecer esta exterioridade pela
maneira como os sentidos se trabalham no texto, em sua discursividade”.
A anáfora discursiva é, diferentemente da anáfora textual, uma exterioridade social e
histórica. Logo, as remissões e projeções realizadas por este elemento tido como sendo de
“coesão” ejetarão o leitor sempre para o interdiscurso, dado o atravessamento de elementos
pré-construidos que configuram o elemento anafórico. Indursky elucida esta questão:
Enquanto que no processo anafórico frasal e textual são estabelecidas relações
internas, no processo anafórico discursivo não se limitam as relações à interioridade
do recorte do discurso, tendo em vista a própria noção de recorte.
74
(1997:718)
O que se entende por anáfora discursiva é, portanto, para a autora um processo num
espaço teórico-analítico privilegiado para refletir sobre as relações que a forma material do
discurso estabelece com a exterioridade(1997:719); tratando-se de um domínio sobre o qual
se estabelecem relações intradiscursivas em constante conexão com o interdiscurso,
ultrapassando claramente o limite do texto. Ainda segundo a autora “Pensar o processo
anafórico na ordem do discurso implica, pois, a interpretação e a produção de efeitos de
sentido insuspeitáveis na ordem do texto”. (1997:720)
Tomando, por conseguinte, os deslocamentos que a AD realizou, no campo dos
estudos da linguagem, podemos gradualmente deslocar os elementos de coesão para uma
esfera menos delimitadora, pois se contexto passa a ser condições em que se produzem o
texto, suas contingências histórico-sociais; se ao invés de tratar da função dos elementos
lingüísticos passa-se a olhar para seu funcionamento; se a paráfrase encontra na polissemia
74
Segundo Orlandi (1984: 14) O recorte é um fragmento da situação.
111
uma relação tensa e dialógica; se, fundamentalmente, a noção de recorte passa a recobrir a
noção de segmento, o mais como pensar em elementos de coesão da perspectiva
intralingüística, que a partir dos pressupostos da AD um determinada referência, feita no
interior de um texto, pode necessitar de remissão ao interdiscurso para que seja significada. É,
portanto, o processo de exoforização que caracteriza o funcionamento da anáfora discursiva.
Mas não simplesmente como uma dêixis, à semelhança do que pratica a Lingüística do Texto,
já que a correferencialidade entre uma classe pronominal, interna ao texto e seu referente, não
pode ser estabelecida com base em um contexto imediato, simultâneo às condições de
produção de um texto. Ao contrário, sob a perspectiva da AD, esse exterior é também
anterior, porquanto é histórico.
Com base, portanto, em tais deslocamentos que a anáfora discursiva tem dois
pressupostos, segundo as análises de Indursky (1997:720)
a) Constrói-se sobre um dito retomado na superfície textual e;
b) Sobre um já dito retomado na exterioridade do texto, no interdiscurso;
Neste entrelaçamento com o interdiscurso tem-se como propósito algo além do que
buscar a informação transmitida e estável, mas ver como os efeitos de sentido se constroem.
Conforme exemplo que segue, retirado da análise de Zandwais (2006
75
) em texto sobre as
fronteiras entre estrutura e exterioridade, esclarecemos a diferenciação entre a anáfora textual
e a anáfora discursiva. A Autora traz o seguinte enunciado, produzido durante uma assembléia
de municipários de Porto Alegre, na qual se estabelece um embate entre funcionários da
Prefeitura e o Governo Olívio Dutra, em virtude da rejeição de um pedido de aumento
salarial:
QUEM QUISER QUE CONTINU A CONFIAR NELLES !!!
Pelos parâmetros da lingüística textual, deveria ser analisada aqui uma relação de
pronominalização ou, uma anáfora pronominal, tendo em vista a necessária co-referência
existente entre o referente e seu anafórico. O pronome Nelles deveria estar ligado a um
referente endofórico, contudo a relação que se estabelece neste enunciado não encontra
ligação intratextual, pois além, de não haver uma relação de referenciação explícita,
elementos que apontam um já-dito retomado no enunciado em questão. O que se evidencia
aqui é o fato de que as práticas discursivas, sendo produzidas em determinadas contingências,
atualizam os fatos históricos, contudo, há, subjacente a essa atualização, uma reprodução, um
75
Texto no prelo.
112
movimento parafrástico que renegocia os sentidos. Voltemos ao enunciado no interior do
texto de que foi retirado pela autora:
Abaixo esta ditadura desta burguesia Petista que nunca soube o que é trabalho de
verdade, pois sempre gigolearam os trabalhadores... Xôo... Xiitas... Mas o que elles
escondem é que são essa administração que está aí. Que elles avalisaram as promessas feitas
por Ollívio/Traso aos municipários à véspera da eleição... Até hoje nenhuma foi cumprida.
[...] (União Municipária 1990)
O que se coloca como contundente aqui é a relação estabelecida entre os atos de
enganar, ludicriar ao então presidente Fernando Collor de Melo. Segundo a autora: o que elles
significa não depende de relações endofóricas estabelecidas entre itens lexicais e os itens
gramaticais que os retomam, mas de uma exoforização e de uma inscrição dos pronomes em
acontecimentos enunciativos [...]. (ZANDWAIS, 2006). Vejamos a representação que segue
das relações intra e interdiscursivas que se estabelecem na atualização enunciativa:
Collor .......promessas, ludibriação
Elles / Ollívio promessas, rejeição de aumento salarial
Num nível interdiscursivo está um conhecimento retido na memória que ecoa quando
os sentidos começam a aproximar-se. O funcionamento anafórico se dá nesse ponto de
intersecção entre uma memória e sua atualização, transformação, rediscursivização. Assim,
este mesmo exemplo sendo analisado dentro dos paradigmas da análise de discurso, traz no
processo de anaforização outros elementos de base interpretativa e que não podem ser
respondidos na superfície textual, pois o elemento anafórico passa a adquirir sentido somente
em relação a um acontecimento histórico anterior, isto é, a prática política demagógica e
ludibriadora instaurada pelo PRN, durante o governo Collor.
A relação referencial é clivada agora por uma relação discursiva. À noção de coesão
textual, tal como fudamentada no contexto da LT, sobrepõe-se um conceito de coesão que
desloca a função intra-referencial no texto, para uma noção exofórica que depende sempre de
pré-construídos para ser significada. Os elementos de referenciação textual exigem do leitor o
estabelecimento de relações sociais e históricas que fazem com que o processo de leitura seja
um processo de retomada de acontecimentos enunciativos que, linearizados na superfície
113
textual, apagam o interdiscurso na materialidade pura do texto. Temos, para tanto, que o
elemento anafórico é um recorte que não significa por si, mas que é uma janela aberta que
pode ser interpretada somente com referência aos domínios de saberes próprios das FDs que o
engendram e não uma costura entre partes do texto. A condição de legibilidade, de que
falamos precedentemente, impõe-se assim como construção de referentes por uma relação
entre língua e interdiscurso, entre o dito e o que a ele subjaz.
Prevendo que “todo discurso nasce em outro” (Orlandi, 1988:18), os processos de
referenciação não podem conter vinculações meramente intra-lingüísticas. Isso seria
contribuir para a edificação do imaginário de onipotência da língua. O que se propõe é que
um antes, um já-dito que estabelece o elo entre a materialidade (elemento referenciador) e
aquilo que significa, que o faz referenciar de um modo e não de outro. Nesses termos, de
acordo com os saberes implicados em determinado contexto histórico-social e ideológico
serão produzidos efeitos distintos para um mesmo elemento lingüístico.
Tomando de Sériot (1985) a noção de relação anafórica, a temos formulada como um
ponto de passagem entre a coerência linear superficial, das formas de um texto e formulações
textuais anteriores, o interdiscurso que é pura condição de possibilidade e ao qual está
misturado por entrelaços inextrincáveis.” Com efeito, devemos ter em conta que a anáfora
discursiva necessariamente não repete, não retoma itens anteriories, ela produz uma
referenciação que está no nível discursivo e não lingüístico.
Com isso não se quer dizer que a referenciação eminentemente intra-lingüística não
tenha sua contribuição para o tecido discursivo. Contudo, tal contribuição continua presa a
uma ordem lógica de cristalização dos movimentos interpretativos. O que se propõe quando é
lançado um olhar de discursivista para os processos de referenciação é que estes estejam
sempre pautados na abertura do simbólico, estejam no domínio em que o lingüístico não
prescinde do que é da ordem do não lingüístico. Trata-se de uma relação orgânica e não
mecânica. A anterioridade que define a atualização do material lingüístico está atrelada a
cada movimento do sujeito sobre o texto. Reportando-nos a nosso caso específico, cada clique
do leitor sobre um hiperlink acessível está pautado por um movimento interdiscursivo, mesmo
nos acessos negados e que geram um retorno, dado que a negação e o retorno estão
determinados por um processo interdiscursivo que “falam o sujeito” no momento da leitura.
Trabalha-se, portanto, sobre a existência de uma anterioridade que é a essência do
processo discursivo. Tal anterioridade resulta em efeitos na enunciação. Observa-se que
subjaz à forma lingüística, no nosso caso o link, o interdiscurso e seus efeitos de pré-
construídos que conferem ao gesto de leitura uma filiação a sentidos outros, anteriores e que
determinam o direcionamento do texto. Nesses termos, a questão da legibilidade está
114
diretamente associada ao gesto interpretativo. Para produzir sentidos, é preciso estar filiado a
uma rede de memória que implicitamente direciona a leitura, produzindo um texto ímpar em
que uma representação predomine sobre tantas outras possíveis, representação essa oriunda
das práticas do leitor que, antes de sê-lo, é efeito de uma leitura que o mundo faz sobre ele.
Logo, ler é reflexo, é projeção de uma anterioridade que parece ser ausente, mas faz ecos.
A consistência de um texto está associada, portanto, à relação que o material
lingüístico mantêm com a exterioridade. O ponto de vista que lançamos sobre a textualidade
faz com que nos detenhamos no fato de que o princípio da “coerência”, tal como proposto
pela LT, é uma ilusão, já que aquilo que faz sentido para um sujeito, desde sua filiação aos
saberes de uma FD, não faz para outro, já que mudam as filiaçõe e as contingências históricas
e sociais.
A proposta de que partimos, portanto, cerca-se de um cuidado: não muitas e todas
as leituras possíveis sempre. Partimos do ponto fundamental que sempre algumas leituras
possíveis e outras que não condizem como o modo de filiação do texto a uma rede de
sentidos. Isso entra como conseqüência da filiação histórico-ideológica do sujeito-leitor, de
acordo com a FD da qual se posiciona.
Enquanto o processo de referência endofórica pauta-se por uma sintaxe horizontal,
linear, em que elementos são retomados, repetidos, e significados dentro do espaço tangível
do texto, o processo discursivo pressupõe que os elementos anafóricos sejam recortes, que se
definem por uma escala bem mais complexa do que a retomada de um elemento anterior. Não
falamos em uma sintaxe, em segmento mensurável que suture o texto. O papel de um
elemento anafórico discursivo está centrado justamente na incompletude própria do texto, na
porosidade de suas margens. A anaforização discursiva faz intervir a idéia de ruptura do fio
discursivo, desenraiza-se da noção de linearidade. Isso implica na restituição da presença do
sujeito, em uma posição-sujeito numa formação discursiva dada, a partir de determinadas
condições de produção.
É nesse ponto que justificamos nossa intenção em analisar hiperlinks como anáforas
discursivas. Expliquemo-nos: se um anafórico discursivo está ainda ligado à retomada de um
elemento da superfície lingüística, tal como exemplo (I) de Zandwais, pensamos que essa não
é uma relação própria da AD, pois implícitos, pré-construídos existem na relação tensa entre
materialidade lingüística e interdiscurso o que coloca o anafórico como elemento que retoma
já-ditos.
Assim, a enunciação (temos a leitura em texto digital como um processo enunciativo)
está entrelaçada a outras enunciações anteriores (paráfrase), ocorridas em domínios diferentes
e que sedimentadas produzem efeitos sobre a superfície lingüística atualizando-a. A anáfora
115
discursiva é, dessa forma, um mecanismo de linguagem que aponta, assim como os dêiticos,
para lugares de enunciação
76
, mas, numa perspectiva mais ampla, mantém relação intrínseca
com sentidos dispersos, que intervêm na leitura pelos olhos do leitor singularmente situado
diante do texto. Nesses termos, a anáfora discursiva pressupõe, antes de tudo a possibilidade
de polissemia. É neste ponto fundamental que nos ancoramos para a análise dos hiperlinks, tal
como o faremos nas análises que seguem.
76
Ao salientarmos a noção de lugares precisos de enunciação, estamos nos referindo ao mecanismo da dêixis
como um mecanismo virtual. Não podemos relacionar nossa proposta à abordagem clássica dos iticos como
marcadores do lugar do sujeito na linguagem, dada a idealização da noção de sujeito na teoria clássica da
enunciação.
116
3 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O OBJETO DE ESTUDO – HIPERTEXTO: O
TEXTO ESTILHAÇADO
77
3.1 A Virtualização Do Texto
Nas sociedades orais, as mensagens discursivas são sempre recebidas no
mesmo contexto em que são produzidas. Mas, após o surgimento da escrita, os textos se
separam do contexto vivo em que foram produzidos. É possível ler uma mensagem escrita
cinco séculos antes ou redigida a cinco mil quilômetros de distância o que muitas vezes
gera problemas de recepção e de interpretação. Para vencer essas dificuldades, algumas
mensagens foram então concebidas para preservar o mesmo sentido, qualquer que seja o
contexto (o lugar, a época) de recepção: são as mensagens ‘universais’ (ciência, religiões do
livro, direitos do homem etc.). Esta universalidade, adquirida graças à escrita estática, só
pode ser construída, portanto, à custa de uma certa redução ou fixação do sentido: é um
universal ‘totalizante’. [...] a cibercultura leva a co-presença das mensagens de volta a seu
contexto como ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala, em uma órbita
completamente diferente. A nova universalidade não depende mais da auto-suficiência dos
textos, de uma fixação e de uma independência das significações. Ela se constrói e se estende
por meio da interconexão das mensagens entre si, por meio de sua vinculação permanente
com as comunidades virtuais em criação, que lhe dão sentidos variados em uma renovação
permanente (LÉVY, 1999:15).
Partindo do ponto de vista de Pierre Lévy (1999), temos que os textos, oriundos da
necessidade de estratificação da escrita e, conseqüentemente, de fechamento semântico,
direcionam seus usuários a tratá-los analiticamente, segundo um princípio de sucessão linear,
pautando-se por uma “fixação do sentido”. Esse hermetismo prima pela elisão de fatores
exteriores à materialidade puramente lingüística. No entanto, o contexto informatizado, com o
surgimento da Internet
78
, propiciou o que veio a ser chamado ciberespaço, que se constitui em
um novo ambiente de enunciação e comunicação que, com suas múltiplas linguagens, com a
infinita possibilidade de interação, com a velocidade do fluxo de informações e com sua
estrutura multimidiática potencializa o ambiente digital, fazendo dele técnica e objeto cultural.
77
Esta expressão tem origem em Barthes (1970) ao referir-se ao um texto sem centro. Trata-se de sua discussão
no livro S/Z, de onde parte um ideal de textualidade aberta que se caracteriza pela possibilidade de múltiplos
trajetos e cadeias. Essa textualidade para Barthes prima pelo inacabamento: “o texto é uma galáxia de
significantes”.
78
Termo derivado da palavra inglesa Internetworking, que significa interconexão de redes. A Internet, na
verdade, é composta por uma infra-estrutura computacional e de telecomunicações que propicia a transferência
de informações por redes espalhadas por diversos países.
117
Por essa razão, a Internet suscita e expressa um ambiente cognitivo diferenciado que resulta
em um novo modo de produzir texto: o “hiper” texto.
O termo hipertexto surgiu em 1965 quando Theodore Nelson, em um projeto chamado
Xanadu, propôs a implementação de uma rede de publicação eletrônica, instantânea e
universal um verdadeiro universo documental
79
. O termo está relacionado à idéia de
leitura/escrita não-linear em sistemas informatizados para caracterizar um tipo de estrutura
textual eletrônica de unificação de idéias e de dados próprios dos ambientes informatizados
(www
80
). É um sistema de organização de dados que produz uma rede não seqüencial e
associações que permitem examinar distintos temas, independentemente de sua ordem de
apresentação. Trata-se de uma série de blocos de textos conectados entre si por nexos, que
formam diferentes itinerários para o usuário.
Desde então, o termo hipertexto tornou-se expressão de produção de sentido não-
linear, envolvendo uma crise nas clássicas visões sobre texto, as quais têm operado com a
perspectiva de unidade temática, o que pressupõe um centro estático. Com a digitalização do
texto, pelo contrário, não se buscam o centro e a unidade, mas a multiplicidade, busca-se uma
supra-textualidade. A partir da idéia, entre outras, de rizoma
81
, pensamos que se buscam os
caminhos, os movimentos, os cruzamentos pautados por uma não-centralidade que
negligencia qualquer restrição e tentativa de tangenciar o texto. Na esteira do projeto de
Nelson, a tecnologia da informação proporcionou maior velocidade de acesso, um volume
infinitamente maior de documentos disponíveis à sociedade, e associações, em uma mesma
mídia, de textos, imagens e sons.
Esse agenciamento multisemiótico na estrutura hipertextual perturba a estabilidade que
o suporte impresso produziu, favorecendo um contraponto deste com o suporte digital.
elementos básicos e preponderantes na estrutura hipertextual que a distanciam dos suportes
impressos. Elencaremos os seis princípios básicos citados por Lévy (1993: 25-26) para
caracterizar o hipertexto:
79
No mesmo ano foi criado o mouse por Douglas Engelbart.
80
World Wide Web, biblioteca de recursos que pode ser utilizada pelos usuários de computadores conectados à
Internet. Permite o acesso a uma grande quantidade de informação: arquivos de publicações periódicas,
bibliotecas públicas ou universitárias e notícias atualizadas de todo tipo. Graças à forma como está organizada, é
possível mover-se de um recurso a outro com facilidade. A conexão às distintas fontes, isto é, os computadores
que atuam de servidores de informação, se faz de forma automática e oculta para o usuário. As ginas de
WWW estão escritas em HTML (sigla de Hypertext Markup Language), linguagem de hipertexto. Também se
utiliza HTTP (sigla de Hypertext Transfer Protocol), o protocolo de transferência hipertexto, para as
comunicações entre equipamentos de informática. World Wide Web foi desenvolvida em 1989 por um cientista
inglês, Timothy Berners-Lee. O propósito original do sistema foi permitir que os equipamentos de pesquisadores
de física de altas energias do CERN (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares) de Genebra, Suíça, pudessem
trocar informação.
118
1. Princípio de Metamorfose: a rede hipertextual está em constante
construção e renegociação. Ela pode permanecer estável durante um
certo tempo, mas esta estabilidade é em si mesma fruto de um
trabalho. Sua extensão, sua composição e seu desenho estão
permanentemente em jogo para os atores envolvidos, sejam eles
humanos, palavras, imagens, traços de imagens ou de contexto,
objetos técnicos, componentes destes objetos, etc.
2. Princípio de heterogeneidade: os nós e as conexões de uma rede
hipertextual o heterogêneos. Na memória serão encontradas
imagens, sons, palavras, diversas sensações, modelos, etc., e as
conexões serão gicas, afetivas, etc. Na comunicação, as mensagens
serão miltimídias, multimodais, analógicas, digitais, etc. O processo
sociotécnico colocará em jogo pessoas, grupos, artefatos, forças
naturais de todos os tamanhos, com todos os tipos de associações que
pudermos imaginar entre estes elementos.
3. Princípio de multiplicidade e de encaixe de escalas: o hipertexto se
organiza de um modo ‘fractal’, ou seja, qualquer nó ou conexão,
quando analisado, pode revelar-se como sendo composto por toda
uma rede, e, assim por diante, indefinidamente (...).
Ao que acrescentamos dizendo que as multiplicidades se definem pelo fora. Este
princípio concebe a abertura do hipertexto e sua relação com um número infinito de textos.
Este elemento torna o hipertexto fecundo, tendo em vista que ele se multiplica a cada novo
clique do usuário que proporcionará a expansão das dimensões hipertextuais.
4. Princípio de exterioridade: A rede não possui unidade orgânica,
nem motor interno. Seu crescimento e sua diminuição, sua
composição e sua recomposição permanente dependem de um
exterior indeterminado: adição de novos elementos, conexões com
outras redes.
81
Rizoma: Conceito ligado aos princípios da conexão e da heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode
ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo (DELEUZE e GUATTARI, 1995).
119
5. Princípio de topologia: Nos hipertextos, tudo funciona por
proximidade, por vizinhança. Neles, o curso dos acontecimentos é
uma questão de topologia, de caminhos. Não há espaço universal
homogêneo onde haja forças de ligação e separação, onde as
mensagens poderiam circular livremente.
6. Princípio de mobilidade dos centros: A rede não tem centro, ou
melhor, possui permanentemente diversos centros que são como
pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de um a outro,
trazendo ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas raízes,
de rizomas (...) correndo para desenhar mais à frente outras paisagens
de sentidos.
Para complementar os princípios de Lévy, ressaltamos mais duas características do
hipertexto, a primeira ligada ao princípio da mobilidade de centros e a segunda ao princípio
de heterogeneidade. São elas:
7. Não-linearidade: em oposição ao texto nuclear clássico, não um
centro norteador da informação, os links abrem novos centros que
ligados uns aos outros formam um grande rizoma, Deleuze e Guattari
(1995).
82
8. Multissemiose: é o recurso que viabiliza a união de diferentes
recursos em uma mesma superfície de leitura como ícones, gráficos,
sons. Essa característica é primordial para o entendimento do
hipertexto, tendo em vista a união de várias linguagens a serviço do
texto.
A abordagem mais simples do hipertexto é a de descrevê-lo, por oposição a um texto
linear, como um texto estruturado em rede. O que possibilita esse processo de conexão e que
faz com que uma rede de textos seja um hipertexto é a existência dos hiperlinks, os quais
trabalham fundamentalmente como elementos apontadores de caminhos para navegação na
rede. Os hiperlinks são vínculos eletrônicos que permitem a amarração entre vários textos,
possibilitando uma rede de sentidos contínuos, sendo a materialidade hipertextual uma deriva
82
Conceito ligado aos princípios da conexão e da heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser
conectado a qualquer outro e deve sê-lo. DELEUZE,Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia. SP: Ed. 34, 1995-1997.
120
constante, em que os sentidos estão sempre em curso. Este é o ponto fundamental de
sustentação desse ideal de textualidade. Por isso, a ausência de centro, o efeito de
incompletude e o não fechamento são inerentes ao hipertexto, tendo em vista seu caráter
multidimensional, multidirecional e eminentemente interpretativo enquanto espaço simbólico.
O hipertexto é constituído, portanto, de nós (os elementos de informação, parágrafos, páginas,
imagens, seqüências musicais etc.) e de ligações entre esses nós (referências, notas,
indicadores, ‘botões’ que efetuam a passagem de um nó a outro). Segundo Landaw:
Con hipertexto, pues, me referiré a um médio informático que relaciona información
tanto verbal como no verbal. Los nexos electrónicos unen lexias tanto ‘externas’ a
uma obra, por ejemplo um comentario de ésta por outro autor, o textos paralelos o
comparativos, como internas y así crean um texto que el lector experimenta como no
lineal o, mejor dicho, como multilineal o multisecuencial. (1995:15-16)
Os hipertextos permitem, dessa forma, a problematização do pensamento logocêntrico
ocidental e corroboram com as concepções de autores que usaram termos como ‘nexo, rede,
trama, trajeto, conexão, interconexão’. Destacamos a importância do pensamento não linear, a
negação das margens como cerceadoras dos movimentos do sujeito que eram vislumbradas
fora da emergência de uma tecnologia informática. Temos em Barthes (1970
83
, S/Z: uma
análise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac) as noções de texto estelar, lexias, nexos; em
Foucault (1969
84
, Arqueologia do Saber) a concepção de texto em termos de rede, pautando
seu projeto de análise arqueológica do conhecimento no ideal de dispersividade, salientando a
fragilidade das noções de margem, linearidade e hierarquização de informações; citamos
ainda Derrida (1995), A escritura e a Diferença) que reclamou a existência de uma nova
forma de escritura que escape às limitações da linearidade. Note-se, para tanto, que, em
essência, o desafio da linearidade se delineou durante o século XX como um efeito das
restrições que um sistema logocêntrico de produção de conhecimento produziu. Isso
comprova que a hipertextualidade foi delineada antes como uma crítica aos clássicos
movimentos coercitivos do sujeito e de seu fazer sentido.
Incorporando o conceito de texto aberto, o hipertexto aproxima-se da proposta que
Barthes fazia na década de setenta, com o conceito de texto estelar ou estilhaçado. Para este
autor todo texto é plural. Tudo significa sem cessar e várias vezes, mas sem se submeter a um
grande conjunto final, a uma estrutura última. O texto, em sua perspectiva, é uma rede com
mil entradas, na qual o leitor pode ou não obedecer a uma ordem, organizando-se, assim,
83
Referimo-nos à edição do texto original, no entanto, usamos como referência a edição brasileira publicada pela
editora Nova Fronteira em 1992.
121
sempre para uma re-leitura. O autor queria comparar o texto a um céu, simultaneamente plano
e profundo, sem margens, nem ponto de referência, no qual se observa a migração dos
sentidos.
Barthes descreve, dessa forma, um ideal de textualidade que coaduna com o
hipertexto. Em suas palavras:
[...] neste texto ideal, uma abundância de redes que atuam entre si, sem que
nenhuma possa impor-se às demais. Trata-se de uma galáxia de significantes e não
de uma estrutura de significados, não tem princípio, mas diversas vias de acesso,
sem que nenhuma delas possa ser qualificada como principal. Os digos que
mobiliza se estendem, são indeterminados. Os sistemas de significados podem
impor-se a este texto absolutamente plural. (1992:15)
Nessa perspectiva, da conectividade, tudo pode entrar em relação com tudo. Isso
implica o reconhecimento de uma transformação na relação do homem com as formas de
comunicação. Não linearidade, nem caminhos fixos a seguir, logo os sentidos passam da
esfera do fixo para a do fluxo contínuo, ou seja, os sentidos podem ser muitos e estão sempre à
deriva, em devir, conforme Lévy (2000) Nosso “fazer sentido”, neste paradigma foi
transformado os conhecimentos se tornam obsoletos cada vez mais rapidamente. O saber-
estoque é substituído por um saber – fluxo em aceleração constante. (2000: 25).
A presença de múltiplos trajetos de leitura perturba o equilíbrio entre leitor e escritor.
Além disso, a separação hierárquica entre texto principal e as anotações, que passam a ser
textos independentes, ligados apenas pelos links, elide as fronteiras entre textos individuais.
Segundo Landow:
[...] que sistemas hipertextuais permitem ao leitor anotar um texto individual e
linkar para outros, atextos contraditórios, isso destrói uma das mais importantes
características do texto impresso sua separação e univocalidade. Sempre que
colocamos um texto numa rede de outros textos reforçamos a sua existência como
parte de um diálogo complexo (1995:63).
Os nexos do hipertexto, o controle por parte do leitor e a variabilidade não se
afastam dos modos de escritura tradicional, bem como têm outros efeitos mais gerais como a
alusão à aleatoriedade do texto do leitor. O escritor, nesses termos, perde o controle sobre seu
texto e, mais especificamente, sobre os extremos e os limites que antes eram básicos para a
definição de texto. Este parece fragmentar seus componentes. O que antes eram segmentos,
84
Referimo-nos à edição do texto original, no entanto, usamos como referência a edição brasileira publicada
pela editora Forense Universitária em 2004.
122
agora temos como recortes
85
que assumem uma vida própria e que dependem menos do que
precede ou segue, em sucessão linear, e mais de uma relação com o exterior.
Configura-se, ainda, na digitalização, a perda da inalterabilidade do texto,
característica própria da cultura impressa. O texto eletrônico, por sua vez, sempre é variável,
nenhuma versão, nenhum estado é definitivo. Efetivamente dinâmico, o texto digital é
atualizável, reconfigurável, disperso. E é nessa característica da dispersão que encontramos o
cerne da transição do texto impresso para a digitalização: abandonada a inalterabilidade,
perde-se a noção de texto unitário, sectário e autônomo. Há, dessa vez, uma variação, uma
dispersão fundamental que fazem com que toda a herança de atomização dos sentidos, passe a
ser vista em sua ineficácia.
Constituído pela estrutura eminentemente linkada, o hipertexto favorece ao não-
encerramento. Os links, capazes de colocá-lo num constante estado de metamorfose, abrem
infinitas possibilidades de encadeamento. Assim, esses nexos eletrônicos permitem aos
usuários recorrer distintos trajetos de leitura em um conjunto dado de lexias. Sem dúvida, o
hipertexto traz a possibilidade de compor um texto como um campo disperso de variantes e
não como uma estrutura falsamente unitária. Esta nova forma de textualidade deve nos levar a
estender a noção dominante de texto, para que o conteúdo deixe de estar encerrado em um
livro e suas margens, mas que esteja envolvido numa rede, num tecido de referências
distintas, exteriores. O hipertexto sugere, para tanto, integração em lugar da auto-suficiência,
desconstruindo o isolamento físico do texto, pois Não é mais o leitor que vai se deslocar
diante do texto, mas é o texto que, como um caleidoscópio, vai se dobrar e se desdobrar
diferentemente diante de cada leitor. (LÉVY, 2000:14)
Em O que é o Virtual (1999), Lévy define, de forma geral, no conjunto de seus
escritos, o princípio básico da hipertextualidade: sua virtualidade, seu potencial de
atualização, sem ligação a uma materialidade estática: É virtual toda entidade
‘desterritorilizada’, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos
e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em
particular (1999:47). Para ele, a palavra é virtual, pois pode ser pronunciada, atualizada em
qualquer lugar, qualquer momento, sem estar de fato em lugar nenhum. A não ser de uma
perspectiva reducionista e ontológica, não sentidos que emanem das palavras que estejam
vinculados a realidades puras. Enunciar é atualizar significantes que não estão presos a
realidades objetificadas. O Virtual, nesses termos é fonte indefinida de atualizações.
(1999:48).
85
Segundo a Análise de Discurso de linha francesa o conceito de recorte ilustra a relação entre uma seqüência
123
Essa idéia pressupõe uma ubiqüidade no texto digital, dado o fato inegável de que
estruturas hipertextuais são passíveis de múltiplas e infinitas atualizações em tempo real, em
lugares diversos. Não que o texto em suporte impresso não seja passível de associações
diversas. Obviamente é, que a escrita possibilitou a separação temporal e espacial entre o
autor e seu texto, proporcionando a ubiqüidade da informação, no entanto, a leitura fora de
contexto e presa à busca do sentido único implicou um refinamento das práticas
interpretativas, edificando os enunciados auto-suficientes, independentes de contexualização,
que favoreceram as mensagens universais e cristalizadas por uma técnica de aprisionamento
da palavra. O que acentuamos é a idéia de que as mídias digitais criaram formas discursivas
que re-interpretam formas culturais historicamente solidificadas como a oralidade e a
escritura, para problematizar a questão da relação entre as técnicas de informação e o homem.
Neste ponto nodal nos detemos para afirmar que o real do hipertexto é o virtual. Isso
pressupõe que coloquemos em dúvida a própria noção de representação, que o texto que
temos materializado a nosso alcance somente existe no momento de sua digitalização, no
momento de sua atualização e, certamente, deixará de existir, quando retornarmos em um link
que nos conduzirá a uma reconfiguração do texto e, em última instância, quando desligamos o
computador. Ao passo em que temos no texto impresso uma materialização visível,
delimitável, a materialidade dos blocos que formam um hipertexto é fugaz:
Se definirmos o hipertexto como um espaço de percurso para leituras possíveis, um
texto aparece como uma leitura particular de um hipertexto. O navegador participa,
portanto, da ‘redação’ do texto que lê. Tudo se como se o autor de um hipertexto
constituísse ‘uma matriz de textos potenciais’, o papel dos navegantes sendo o de
realizar alguns desses textos colocando em jogo, cada qual à sua maneira, a
combinatória entre os nós. O hipertexto opera a virtualização do texto (LÉVY,
1999:57).
Pierre Lévy coloca a questão da leitura como a força motriz que faz com que
hipertextos não se configurem somente como materialidades digitais, como produtos da
informatização. A digitalização e o programa de leitura que encerra predeterminam um
conjunto de possíveis que, mesmo imenso, é, sobretudo. numericamente finito e logicamente
fechado. É a leitura que realiza o texto. A essência da hipertextualidade está, para tanto, além
do suporte mecânico (hardware e software), pois a informática por si oferece combinatórias
que não problematizam em nada a questão do sentido. Isso é potencial, o(s) texto(s) existe(m)
em potência. Não são as inúmeras possibilidades de associações que dão essência ao modo
virtual de fazer sentido. A virtualização extrapola os limites binários quando é trabalhada pelo
sujeito. Para o autor, portanto,
discursiva e uma situação. Elucidaremos melhor esta noção adiante.
124
Um hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sendo que alguns deles vão se
realizar sob o efeito da interação com um usuário. Nenhuma diferença se introduz
entre um texto possível da combinatória e um texto real que está na tela. A maior
parte dos programas são máquinas de exibir (realizar) mensagens (textos, imagens
ect.) a partir de um dispositivo computacional que determina um universo de
possíveis. Esse universo pode ser imenso, ou fazer intervir procedimentos aleatórios,
mas ainda assim é inteiramente pré-contido, calculável (1996: 40).
O que está em ‘tela’, nesses termos, é o fato inconteste de que o virtual eclode com
a entrada da subjetividade humana no circuito (LÉVY, 1996:40), pois a propensão do texto a
significar envolve uma tensão entre o que está fisicamente disponível e o sentidos que
potencialmente podem fazer-se nessa superfície. A estrutura binária em nada importa senão
pelas novas formas de ler e compreender, pelas novas relações que engendra com o homem.
Este não cria técnicas fora de uma relação cultural, de uma necessidade de transformação.
Entre o surgimento de cnicas e as novas relações que elas forjam para os homens uma
dialética, um movimento recursivo que parte do homem, mas que a ele retorna como
efeito. A exterioridade técnica só ganha eficácia se for internalizada de novo, diz Lévy
(1996:74), pois se deve aprender gestos, adquirir reflexos, recompor identidades, redirecionar
o olhar. Nesse sentido, a tela informática, para Lévy, é uma nova máquina de ler que
potencializa uma reserva de informação possível. No entanto, essas informações
possibilitadas entram em relação direta com as necessidades particulares de um leitor que
produz uma atualização das significações do texto. Interpretar comporta uma intangibilidade
não passível de cálculo.
O espaço do sentido não preexiste à leitura. Isso é fato inconteste para qualquer texto,
em qualquer suporte, pois o leitor tem diante de si o que Lévy configura por uma paisagem
semântica móvel e acidentada em que o texto é esburacado, riscado, semeado de brancos
(1996:35). Para o autor, ainda, enquanto leitores, podemos desobedecer às instruções, tomar
caminhos transversais, produzir dobras interditas, estabelecer redes secretas, clandestinas,
fazer emergir outras geografias semânticas (1996:35). E, fundamentalmente, essa
atualização, essa viagem por percursos semânticos únicos não se realiza para retornar ao
pensamento de um autor, mas para fazer do texto atual parte de um campo textual maior,
móvel, reconfigurável:
Confiamos às vezes alguns fragmentos do texto aos povos de signos que nomadizam
dentro de nós. Essas insígnias, essas relíquias, esses fetiches ou esses oráculos nada
têm a ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica viva do texto, mas
contribuem para criar, recriar e reatualizar o mundo de significações que somos
(1996:37).
125
O texto que se pretendia contemplativo, imutável, hoje se mostra como figura móvel,
transformado em fluxo, sendo ele próprio operação, pois “Longe de aniquilar o texto, a
virtualização parece fazê-lo coincidir com sua essência subitamente desvelada. Como se a
virtualização contemporânea realizasse o devir do texto. Enfim, como se saíssemos de uma
certa pré-história e a aventura do texto começasse realmente.” (Ibid, 1996:50).
3.2. Tecnologia: Determinante Ou Condicionante?
Escrever sobre hipertexto implica que estejamos atentos para os vários pontos de vista
sob os quais essa nova tecnologia textual é abordada. A transição operada pelos meios
eletrônicos encontra reflexões críticas que apontam para o lugar das técnicas na
reconfiguração das relações entre os homens e os instrumentos por eles criados. Por um lado,
fatores como a “possível” desorientação do usuário frente à profusão de informações que essa
nova tecnologia possibilita, os impactos sobre a cultura da escrita e sobre as estabilizações
que com ela se formaram, como a questão da autoria e da produção de conhecimento,
encontram críticos que tendem a condená-las de um ponto de vista cético que teme a
substituição das técnicas anteriores e o apagamento da subjetividade em prol de uma
mecanização do pensamento. Por outro lado, há aqueles que defendem a importância da
tecnologia do hipertexto como um caminho para que o sujeito se liberte das amarras de um
texto hermético, bem como o vêem como um desenvolvimento técnico inevitável que
reconfigura as relações do sujeito com suas práticas de leitura e escritura. Partimos, portanto,
de um contraponto fundamental para nossas análises posteriores: entre pontos de vista
otimistas, tal como vimos destacando com Lévy (1993;1996;1999; 2000), Lemos (2002) e
Landow (1995) que consideram as novas tecnologias digitais como condicionantes de
reconfigurações do social e do sujeito; e entre pontos de vista céticos com as ressalvas de
Baudrillard (2002;2003), Virílio (1999), Ellul (1964;1968) acerca dos efeitos negativos que
estes elencam para essa nova tecnologia, considerada determinante do social, produzindo uma
mecanização do homem.
Para Lévy, as tecnologias contribuem para nossa apreensão do real, ou seja, produzem
representações sociais, de forma que a cada nova tecnologia intelectual que surge, novas
representações são forjadas com elas e, assim, o homem está submerso num campo semiótico.
As técnicas nos levam a revisitar nossa forma de produzir conhecimento, pois são vetores,
molas propulsoras das novas formas de sociabilidade, formando-se no coração do fenômeno
técnico que segundo Lemos (2002) desempenha um papel fundamental na formação do
homem, de forma que este não pode ser definido antropologicamente sem a dimensão da
126
tecnicidade: A técnica é o fazer transformador humano que prepara a natureza à formação
da espécie e da cultura humana (LEMOS, 2002: 40).
Os sentidos se produzem e reproduzem no interior de um sistema simbólico comum
entre os indivíduos que formam uma sociedade e esta cultura se solidifica à medida que esses
indivíduos lhe dão vida. De acordo com Lévy, o hermetismo dos sentidos, propagado por uma
cultura anestesiante, é substituído por uma visão holística e sincrética em que não
totalidades reguladoras:
Esse sentido que nos é impossível apreender em estado puro, emerge geralmente no
seio de uma estrutura simbólica que preexiste a sua aparição. Ele se manifesta e ao
mesmo tempo se esconde nos jogos de uma combinatória que enlaça linguagens,
referenciais simbólicos e uma certa estruturação da experiência. Ou seja, para os
seres humanos, o sentido só pode existir dentro e por uma cultura (2000: 22).
Assim, o sentido é oriundo de um modo de ver, pensar e produzir conhecimento, por
isso cada sociedade, em cada contexto histórico, tem maneiras singulares de dar sentido às
coisas. Esta idéia está no cerne dos novos ambientes de produção de conhecimento próprios
da cultura contemporânea, a qual, segundo Pierre Lévy (2000), poderíamos chamar de pós-
cultura”, caracterizando-se por um estado singular, no qual a “crise do sentido se torna
doravante crônica.
O autor, em “Tecnologias da Inteligência” (1993), observa que certas técnicas surgem
impetuosamente no panorama intelectual, e a compreensão da evolução intelectual do homem
necessita da compreensão simultânea dessas técnicas que o levaram a se transformar. Assim,
a sucessão da oralidade, da escrita e da informática como modos fundamentais de gestão
social do conhecimento, não podem ser compreendidos por simples substituição, mas por
uma complexificação e deslocamento intelectual (1993:10).
O autor não pretende que seu ponto de vista seja considerado como defesa de um
determinismo tecnológico, mas como defesa de que certas técnicas tornam possíveis ou
condicionam certas mudanças culturais, ao mesmo tempo em que se historicizam. Daí surge a
concepção de um coletivo cosmopolita que vem ao encontro do que o autor defende por
tecnodemocracia, ou seja, técnicas e homem não se separam, pelo contrário, se fundem,
ambos ligados pelo devir.
Sob a ótica deste autor, as formas de conhecer, de pensar, de sentir são condicionadas
pela época, cultura e circunstâncias, contempladas as técnicas como resultantes desses fatores.
O computador, a exemplo disso, tornou-se hoje dispositivo técnico, através do qual é possível
perceber o mundo, não apenas em um plano empírico, mas virtual, abarcando o social, os
homens e as práticas que envolvem essas duas instâncias, pois,
127
basta que alguns grupos sociais disseminem um novo dispositivo de comunicação,
e todo o equilíbrio das representações e das imagens será transformado, como
vimos no caso da escrita, do alfabeto, da impressão, ou dos meios de comunicação
e transporte modernos. [...] Vivemos hoje em uma destas épocas limítrofes na qual
toda a antiga ordem das representações e dos saberes oscila para dar lugar a
imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda pouco
estabilizados. Vivemos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova
configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com os cosmos, um novo
estilo de humanidade é inventado (LÉVY, 1999:16-17).
O hipertexto, modelo mais amplo da informática da comunicação, nos conduz a uma
reflexão não apenas acerca das técnicas de comunicação, mas da própria essência da produção
de sentidos e das práticas de leitura e escrita, de forma que os diversos agenciamentos de
mídias, tecnologias intelectuais, linguagens e métodos de trabalho disponíveis em uma dada
época condicionam fundamentalmente a maneira de pensar e funcionar em grupo vigente em
uma sociedade (LÉVY, 1993:52).
Lévy, discorrendo acerca do uso da tecnologia de comunicação (hipertexto), acredita
na essência triádica desta técnica, em oposição à tradição de informatas e críticos que
defendem sua pura binariedade e rigidez matemática:
Os críticos da informática acreditavam, ingenuamente, nos informatas que
sustentavam, até cerca de 1975, que a “máquina” era binária, rígida, restritiva,
centralizadora, que o poderia ser de outra forma, no entanto, separar o
conhecimento das máquinas da competência cognitiva e social é o mesmo que
fabricar artificialmente um cego (informata “puro”) e um paralítico (o especialista
“puro” em ciências humanas
(
1993:57).
Dando continuidade à sua reflexão, o autor refere-se ao uso da informática, dos
grandes hipertextos, sempre amparados pela interface com o humano, ou seja, o uso torna esse
sistema, a princípio tão rígido e dicotômico, em um sistema de inter-relação e de interconexão
homem-máquina, logo, a separação homem / objeto já não encontra amparo:
Não há, portanto, a técnica de um lado e o uso de outro, mas um único hipertexto,
uma imensa rede flutuante e complicada de usos e a técnica consiste exatamente
nisto. As coisas, todas as coisas, seguindo o espectro completo de suas significações
e de seus efeitos (e não somente enquanto mercadorias), mediatizam desta forma as
relações humanas. Eis por que a atividade técnica é intrinsecamente política, ou,
antes cosmopolítica (1993:59-60)
.
Esta concepção acerca da tecnologia respaldo à nossa proposta, nesta primeira
conjetura, tendo em conta que os atos de ler e interpretar têm por função elementar construir
128
sentidos e buscar vias de acesso a um texto, o que ocorre no hipertexto através do movimento
de ligação em uma rede associativa de outros textos.
Nesse percurso, traçado pelo autor, importa ressaltar a ênfase em um esquema
comunicacional em que A não transmite algo a B
86
, mas A modifica uma configuração que é
comum a A, B, C, D...
A metáfora do hipertexto conta da estrutura indefinidamente recursiva do sentido,
pois que ele conecta palavras e frases cujos significados remetem-se uns aos outros,
dialogam e ecoam mutuamente para além da linearidade do discurso, um texto é
sempre um hipertexto, uma rede de associações. O vocábulo “texto”,
etimologicamente, contém a antiga técnica feminina de tecer. E talvez o fato deste
tricô de verbos e nomes, através do qual tentamos reter o sentido, ser designado por
um termo quase têxtil não seja uma coincidência. A humanidade, espécie falante, é
também a raça que se veste. A roupa pacientemente tecida nos contém, nos delimita,
forma uma interface colorida entre o calor de nossas peles e a rigidez do mundo. Os
coletivos também cosem, através da linguagem e de todos os sistemas simbólicos de
que dispõem, uma tela de sentidos destinada a reuni-los e talvez a protegê-los dos
estilhaços dispersos, insensatos, do futuro; uma capa de palavras capaz de abrigá-los
da contingência radical que perfura a camada protetora dos sentidos e mistura-se, à
sua revelia (1993:73).
Deve-se assinalar, de imediato, que, de acordo com as explanações precedentes,
nenhum tipo de conhecimento independe do uso de tecnologias intelectuais e que estas estão
sempre inseridas num processo crescente e incessante de transformação das formas de relação
do homem com o conhecer. São essas relações tensas entre o instaurado e o que o transforma,
o transgride que marcam o lugar das técnicas na cultura. Uma tecnologia intelectual, pois,
estará sempre ligada às formas culturais e, é neste ponto que se torna primordial enfocar o
papel da memória e da historicidade na constituição das técnicas.
Lévy (1993), refletindo sobre palavra e memória, traz à tona duas questões
fundamentais: a) a linguagem é instrumento de memória e propagação de representações; b)
linguagem e técnica contribuem para produzir e modular o tempo. Logo, se a língua é
elemento primeiro para a constituição da tecnologia intelectual de que estamos tratando, não
poderíamos abstraí-la das relações de memória e cultura. Segundo o autor, compreender o
lugar fundamental das tecnologias da comunicação e da inteligência na história cultural nos
leva a olhar de uma nova maneira a razão, a verdade, e a história, consideradas ameaçadas
de perder sua preeminência na civilização da televisão e do computador (1993:87).
É necessário precisarmos que as tecnologias intelectuais assim como condicionam
certas formas de pensar e agir, não são suficientemente determinantes destas, uma vez que
uma tecnologia intelectual depende em muito dos atores sociais que a colocam em atividade,
tal como explanamos anteriormente, um movimento recursivo que parte do homem, mas
86
Em referência ao esquema elementar de comunicação de Jakobson (1974).
129
que a ele retorna como efeito. Assim, os atores sociais, suas memórias, sua história são
condicionantes das tecnologias intelectuais, ao passo que as historicizam em meio a uma
cultura pré-existente. Trata-se de uma relação dialética. Logo, a passagem da oralidade à
escrita, da escrita aos sistemas digitais não se caracteriza por um simples salto de uma
tecnologia intelectual a outra, mas por um constante redimensionamento do pensamento
humano e por um acúmulo de atividades que foram transformando as maneiras de viver e de
produzir conhecimentos, logo, a historicidade do ator social, jamais será subjugada por uma
técnica. Enfatiza Lévy, a história do pensamento não pode, de forma alguma, ser deduzida do
aparecimento desta ou daquela tecnologia intelectual, que os usos que dela irão fazer os
atores concretos situados na história não são determinados com esta aparição(1993:95).
Sobretudo, como sublinha Lévy, a cibercultura não é uma negação da oralidade ou da
escrita, ela é o prolongamento destas, sendo a cibercultura a nova forma da cultura. Nesses
termos, está destinada ao fracasso toda e qualquer análise da informatização que esteja
fundada sobre uma pretensa essência dos computadores, ou sobre qualquer núcleo central,
invariante e impossível de encontrar, de significação social ou cognitiva (2001:101). Disso
tudo decorre a constatação categórica de Lévy acerca do caráter triádico e dialético que as
novas tecnologias de informação engendram:
Binária, a informática? Sem dúvida, em um certo nível de funcionamento de seus
circuitos [...] Não identidade estável na informática porque os computadores,
longe de serem exemplares materiais de uma imutável idéia platônica, são redes de
interfaces abertas a novas conexões, imprevisíveis, que podem transformar
radicalmente seu significado e uso [...] Eis por que nossa análise da informatização
não estafundada sobre uma definição da informática. [...] a codificação digital
relega a um segundo plano o tema do material. OU melhor, os problemas de
composição, de organização, de apresentação, de dispositivos de acesso tendem a
libertar-se de suas aderências singulares aos antigos substratos. Eis por que a noção
de interface pode ser estendida ao domínio da comunicação como um todo e deve
ser pensada hoje em toda sua generalidade [...] A codificação digital já é um
princípio de interface. Compomos com bits as imagens, textos, sons, agenciamentos
nos quais imbricamos nosso pensamento ou nossos sentidos (2001:102)
Dessa forma, toda uma realidade estruturada, historicizada pré-existe à
informatização, assim, há memórias imbricadas neste contexto. Pensar na imbricação, na
coexistência e na interpretação recíproca dos diversos circuitos de produção e de difusão do
saber, é tarefa mais do que essencial para o entendimento do hipertexto como uma grande
rede de associações e conexões e não apenas como digitalização de dados. A ação do homem
continua a mesma em busca de sua subjetivação.
130
O tempo pontual não anunciaria o fim da aventura humana, mas sim sua entrada em
um ritmo novo que não seria mais o da história (cronológica). Seria um retorno ao
devir sem vestígios, inassinalável, das sociedades sem escrita? Mas enquanto que o
primeiro devir fluía de uma fonte imemorial, o segundo parece engendrar a si mesmo
instantaneamente, brotando das simulações, dos programas e do fluxo inesgotável dos
dados digitais (LÉVY, 1993:115).
Lemos (2002), em consonância com Lévy, acredita que a tecnologia, antes de ser um
instrumento de separação homem/objeto, torna-se ferramenta convivial e comunitária:
Todo impacto da cibercultura está na simbiose paradoxal entre tecnicidade e
socialidade. Ela pode ser mesmo compreendida como a expressão tecno-cultural
desta Civilização Virtual, pondo em marcha um processo de apropriação e de
construção de tecno-socialidades, de cibersocialidades. Podemos dizer com Mercier
que “os usuários não se contentam em se submeter à técnica. E seu papel supera
aquele de escolhas elementares do tipo adquirir/não adquirir, ou utilizar bem/não
utilizar (...) os novos objetos técnicos. São eles que, pelas práticas que eles vão
progressivamente desenvolver e afinar, determinarão, no final das contas, a
incidência efetiva das novas tecnologias sobre a transformação de suas vidas
quotidianas. Existe um processo de reapropriação mais ou menos consciente das
técnicas que o público nem concebeu nem explicitamente desejou
(Ibid:84).
Para este autor, a compreensão dos impactos das novas tecnologias na cultura e na
comunicação contemporâneas deriva de um olhar mais aguçado para a sociedade enquanto
processo (que se cria, se reconfigura), para as formas e os conteúdos (representações), pois O
conhecimento por simulação e interconexão em tempo real valorizam o momento oportuno, a
ocasião, as circunstâncias relativas, opostas ao sentido molar da história ou à verdade fora
do tempo e fora do lugar, que eram, talvez, apenas efeitos de escritura (2001:90). Essa
perspectiva torna clara a idéia de que as técnicas não surgem ao acaso, não determinam a
sociedade, mas que, pelo contrário, uma fusão entre técnicas e sociedade de tal forma que
excluir uma, seria fragilizar a outra.
Lemos propõe pensar a cibercultura como resultado da convergência entre o social e o
tecnológico, não se tratando de nenhum determinismo de um por outro e sim de um processo
simbiótico, pois o mundo da vida está em simbiose com o mundo da técnica.
A sociedade não é passiva à inovação tecnológica, sendo o nascimento da micro-
informática um caso exemplar, mostrando a apropriação social das tecnologias, para
além de sua funcionalidade econômica ou eficiência técnica. Esta prática estabelece-
se como um duplo movimento de dominação e apropriação simbólica (...) no caso da
micro-informática, podemos dizer que a relação entre o campo social e as novas
tecnologias é construída pela apropriação simbólica(...) esta apropriação “desvia ou
prolonga os usos de maneira inesperada e desenvolve práticas sociais enraizadas no
imaginário comum (2001:112).
131
Isso ilustra o fato de que a interatividade é tida como um contexto não meramente de
conversação, mas de plena ação, sendo a interação um contexto de comunicação em que
computador e usuário são agentes. A interface é o terreno simbólico onde a interatividade
acontece.
Se não interagimos com os hipertextos, sejam eles um site ou um jogo eletrônico,
nada acontece e a ação não se concretiza. Diferente ação (alguns diriam passiva)
ocorre com os media clássicos, como a TV ou o rádio, onde o usuário assite o que
passa na telinha ou ouve o que é emitido pelo rádio, por exemplo (2001:130).
Seria pessimista, segundo os autores citados, pensar que, com a cultura informático-
mediática a perspectiva histórica e, com ela, toda reflexão crítica iriam desertar, desaparecer.
Isso seria negligenciar fatores de extrema importância para o entendimento da informatização
como uma tecnologia intelectual. Para eles fatores elementares devem ser levados em
consideração:
Livros históricos, reflexivos ou críticos continuam a ser publicados e lidos;
Outros ritmos de informação e difusão dos conhecimentos, que não os das mídias e
da informática, continuam funcionando;
Inúmeras habilidades e representações ainda são transmitidas e transformadas de
forma oral nas famílias, grupos de trabalho e nas diversas redes sociais, e ademais,
são essas relações e as informações que engendram que respaldam os processos de
produção de sentidos, independente do suporte em que se dão a escritura e a
leitura;
Lévy, portanto, atenta para o fato de que a informática opera por dois caminhos:
a. a técnica tem uma estrutura constitutivamente binária e;
b. enquanto tecnologia intelectual, no processo de operacionalizar informações, torna-se
triádica em sua interface com o sujeito;
Em contrapartida do exposto, por um outro viés, temos as posições emimentemente
céticas de autores que ‘encaram’ a revolução digital como uma massificação dos saberes,
como uma generalização da informação, de forma a produzir massas hipnotizadas,
anestesiadas frente às novas tecnologias de informação que tendem, sobretudo, ao
apagamento da memória. Importa matizar que as visões antitécnicas e definidoras de um
determinismo tecnológico de que partem os autores citados (Baudrillard, Virilio, Ellul)
132
centram-se, fundamentalmente, na alusão à estrutura binária das novas tecnologias. Para eles,
a binariedade opera uma mecanização que se pauta em princípios como:
a) Unidade (conjunto homogêneo);
b) Universalidade (indiferente aos detalhes culturais);
c) Acumulação (inclui todos os aspectos da existência);
d) Autonomia (lógica interna hegemônica sobre outras);
Tais características vêm a formar o sistema técnico e seus valores de forma que os
domínios da vida social estejam subjugados pelos domínios da técnica. Nessa perspectiva,
fala-se em uma tecnocultura que opera o apagamento do sujeito e de sua historicidade.
De acordo com Ellul (1964), a técnica moderna não é uma ferramenta de mediação
entre o homem e o mundo, mas, radicalmente, um instrumento de imposição da ordem
cultural, de tal forma que o homem não entra em interface com a tecnologia, mas a tecnologia
determina suas práticas sociais, operando um afastamento sua capacidade de simbolizar e de
intervir na transformação e edificação de práticas culturais. Opera-se uma sobreposição dos
objetos ao humano:
A fim de operar à vontade, a técnica dissocia para em seguida reconstituir, separa
os elementos do homem para sintetizar um homem que ainda não havíamos
conhecido. A operação técnica se faz ao vivo, insigne desastramento, desprezo
absoluto pela sensibilidade do homem [...] cada técnica circunscreve seu domínio,
mas nenhum desses domínios circunscreve o homem. Este se encontra disperso,
deslocado em uma multidão de peças individualizadas (Ibid: 397-398) [grifo
nosso].
Tal concepção ilustra a dispersão como um processo de desestabilização, de
fragmentação do ser que, sem estar pautado em uma unidade, perde-se. Decorre disso, a
constatação de que Ellul busca uma unicidade fundadora de um modo de pensar linear e que
não comporta a contradição. Vemos, nesse caso, uma desconsideração do processamento das
técnicas como mediadoras do social, de suas novas configurações e, sobretudo, uma
desconsideração da própria existência da contradição.
Baudrillard (2002), por sua vez, amparando-se nos princípios de artificalidade que
advêm das novas tecnologias, propõe que, com elas, estamos diante de uma mera circulação
de informações em excesso, de uma codificação digital que nos faz muito mais indivíduos em
interação artificial do que sujeitos em processo de intersubjetividade, uma vez que quanto
mais o conhecimento entra em estado de profusão, o que é bem ilustrado na atualidade pela
revolução informática, menor a compreensão da existência. (Ibid:8). Discorrendo acerca da
digitalização do saber e da informação, este autor, mesmo considerando a passagem do tátil
ao digital um acontecimento essencial ao mundo contemporâneo, baseia-se (equivocadamente
133
a nosso ver) no fato de que estamos imersos em uma realidade artificial de informação e
comunicação, o que ele chama de hiper-real: comunicação por simulação:
A extensão incondicional do virtual determina a desertificação sem precedentes do
espaço real e de tudo o que nos cerca. Isso valerá para as auto-estradas da
informação e também para as de circulação. Anulação da paisagem, desertificação
do território, abolição das distinções reais. O que até agora se limita ao físico e ao
geográfico, no caso de nossas auto-estradas, tomará toda a sua dimensão no campo
eletrônico com a abolição do tempo. O que entrevemos não é mais somente o
deserto do trabalho, o deserto do corpo que a informação engendrará em razão de
sua própria centração. (2002:17-18).
Para o autor, trata-se de uma implosão da informatização que ultrapassa a massa
crítica, pois, com as auto-estradas da informação, parece que estamos fazendo tudo para
ultrapassar o limiar crítico:
Podemos nos perguntar de resto se não ultrapassamos esse limiar e se a catástrofe
da informação não ocorreu, na medida que a profusão multimidiática de dados se
auto-anula e que o balanço em termos de substância objetiva da informação é
negativo. um precedente com o social: o patamar de massa social crítica já está
amplamente ultrapassado com a expansão populacional das redes de controle, de
socialização, de comunicação, de interatividade, com a extrapolação do social-total,
provocando desde agora a implosão da esfera real do social e de seu conceito
(2002:19).
Baudrillard chama a esse processo de um feudalismo tecnológico, caracterizado por
um tipo de informação meteorológica que opera apenas por simulação virtual e não busca
verdades, ancoragem real, gerando muito mais uma cultura de crença e de credibilidade na
tecnologia do que de busca por certezas e por verdades reais e humanas:
Lançada a informação, enquanto não for desmentida, será verossímil. E, salvo
acidente favorável, nunca sofrerá desmentindo em tempo real, restará, portanto,
credível. Mesmo desmentida, não será nunca mais falsa, porque foi credível.
Contrariamente à verdade, a credibilidade não tem limites, não se refuta, pois é
virtual. Estamos em uma espécie de verdade fractal (2002:45).
Para ele, as máquinas produzem uma operacionalização das idéias (tecnologização do
saber), uma manipulação destas que faz com que o homem entregue-se mais ao espetáculo das
idéias do que às próprias idéias. É como se a profusão de informações, a volatilidade com que
estão e não estão ao alcance do sujeito o tornasse volúvel, a-crítico e, portanto, a-histórico: o
ato de pensar é continuamente adiado (2003:60). Suas implicações trazem uma
compreensão da tecnologia digital pelo viés meramente binário. Contempla a digitalização da
informação como uma operacionalização que coloca em relação binária inclusive o saber,
134
como se o sujeito que está em frente a um computador abdicasse de toda bagagem de
conhecimento que o formou, que o tornou sujeito, que o fez ocupar um lugar social, de onde
ele enuncia, onde ele vive e onde ele abastece seus conhecimentos. Aqui voltamos a um
questionamento: uma técnica tem o poder de determinar uma tal mecanização, uma suspensão
do pensar em prol de uma massificação advinda de múltiplas informações simultâneas,
linearizadas?
Baudrillard refuta o processo de expansão tecnológica destacando-o como um modo
de apagamento da dimensão histórica do homem e de sua memória, de forma que, através do
conhecimento por simulação, ancorado na fugacidade da informação e em sua virtualidade, a
interconexão homem-máquina é operada, de forma inversa àquela citada por Lévy, tendo em
conta que, na articulação de Baudrillard, o homem interage de tal forma com a máquina que
acaba por confundir-se com ela.
Temos então, na perspectiva deste autor, a relação Homem-máquina vista de um
ponto de vista cético, que a coisificação do homem como resultado de sua interface com a
máquina, gerada pela sobreposição desta ao pensamento humano em virtude de uma ciência
que prima mais pelo objeto do que pelo sujeito.
Por outro lado, retomando a posição levyniana, temos a relação Homem-máquina
pensada como necessária para lançar oposição à separação positivista entre homem/objeto.
Para Lévy, essa relação gera possibilidade de subjetivação e domínio dos objetos da ciência,
elidindo da concepção de tecnologia o conceito de objeto de laboratório, desvinculado de toda
relação humana e simbólica.
Através desse contraponto, acentuamos que Baudrillard defende ferrenhamente que a
tecnologia, da forma como é concebida, produz massificação:
Vídeo, tela interativa, multimídia, Internet, realidade virtual: a interatividade nos
ameaça de toda parte. Por tudo, mistura-se o que era separado, por tudo a distância é
abolida: entre os sexos, entre os pólos opostos, entre o palco e a platéia, entre os
protagonistas de ação, entre o sujeito e o objeto, entre o real e o seu duplo. Essa
confusão dos termos e essa colisão dos pólos fazem com que em mais nenhum lugar
haja a possibilidade do juízo de valor: nem em arte, nem em moral, nem em política.
Pela abolição da distância, do “pathos da distância”, tudo se torna irrefutável. A
excessiva proximidade do acontecimento e de sua difusão em tempo real cria a
indemonstrabilidade, a virtualidade do acontecimento que lhe retira a dimensão
histórica e o subtrai à memória. (2002:129-130) [grifos nossos].
Um dos pontos fundamentais que Baudrillard questiona situa-se no seguinte: no
cyberespaço a possibilidade de realmente descobrir alguma coisa?(2002:132). E responde
ceticamente: a internet apenas simula um espaço de liberdade e de descoberta. Nos oferece,
em verdade, mais do que um espaço fragmentado, mas convencional, onde o operador
135
interage com elementos conhecidos, sites estabelecidos, códigos instituídos. Nada existe para
além desses parâmetros de busca (Idem). A esse respeito, perguntamo-nos: para além dos
parâmetros de busca, não está o sujeito, constituído socialmente, historicamente, acessando,
clicando, fazendo escolhas, atualizando os sentidos potenciais que a tecnologia digital
encerra?
Ao encontro das concepções baudrillardianas, Paul Virilio (1999) destaca a concepção
de industrialização do esquecimento (industrialization de l’oubli), segundo a qual as novas
tecnologias do tempo real, do imediato estabelecem a fugacidade, não privilegiando a
reflexão, o debate ou mesmo o exercício da memória. Este autor mostra que as novas
tecnologias privilegiam o fluxo de dados que circulam no ciberespaço de forma instantânea,
sendo regidas, assim, pelo reflexo e não pela reflexão ou a memória. Afirma, ainda, que,
quanto mais o saber cresce e mais o desconhecido aumenta ou, melhor dizendo, mais se
precipita a informação-número, mais nós somos normalmente conscientes de sua essência
completa e fragmentária. Para ele, com os computadores, é a informação que é transportada,
mas não as sensações. O processamento dos
dados é sinal de que quanto mais informado
esteja o homem, mais, ao seu redor, cresce o deserto do mundo: o pensamento coletivo
imposto pelos diversos media visava aniquilar a originalidade das sensações [...], um estoque
de informações destinado a programar suas memórias (VIRILIO apud LEMOS, 2002:78).
Para Vírilio, a ciência contemporânea se perde na própria desmesura de seus pretensos
progressos, pois a tecnociência elimina progressivamente as possibilidades de conhecimento
real. O autor chama de um fenômeno de virtualização generalizada ao desenvolvimento
crescente das tecnologias virtuais, comparando-as às drogas cujo efeito é anestésico e de
desligamento. Para ele, são anestesiadas a memória e a história: Como se sabe, se o que é
excessivo é insignificante, uma ciência sem consciência é apenas ruína da alma (1999:10),
pois,
ciência do extremo, aquela que assume o risco incalculável do desaparecimento de
toda ciência. Fenômeno trágico de um conhecimento que de repente se tornou
cibernética, essa tecnociência se torna então, enquanto tecnocultura de massa, agente
não mais da aceleração da história, mas da vertigem da aceleração da realidade, e
isso em detrimento da verossimilhança.[...] (Ibid: 11).
Importa frisar que Baudrillard e Virílio convergem no fato de que apenas a difusão
de um conhecimento por simulação e não por construção real. Virilio afirma que o homem
entra no cibermundo e, em conseqüência disso, opera-se o desaparecimento da consciência
como percepção direta dos fenômenos que nos informaram sobre nossa própria existência,
sendo a virtualidade uma eliminação do próprio conceito de referência.
136
Assim, a noção de tempo real, da informática, resume bem a característica principal,
“espírito das novas tecnologias” que nos cercam e que permeiam a chamada tecnocultura: a
condensação no presente, na operação em andamento. quem acredite ainda numa
Hipercultura inevitável, desenfreada e que nos leva a uma corrida pela informação cada vez
mais fugaz.
Este diálogo de teor semiótico, entre concepções teóricas que se opõe, nos permitirá
incidir sobre nosso objetivo neste trabalho com um olhar mais crítico, não delimitador, pois, à
medida que nos propomos tratar da questão da produção de sentidos em ambientes
informatizados, surgem questionamentos concernentes às mudanças basilares que ocorrem no
tratamento do que seja texto, sentido e leitura, trazendo para o campo de reflexão as seguintes
problemáticas:
a) Trata-se do mesmo olhar sobre o sentido que tínhamos no texto impresso?
b) O papel do leitor continua o mesmo?
c) Como se dá o processo de produção de sentidos nestes ambientes?
Com base nisso, buscamos atentar para que o novo suporte do texto permite usos,
manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais numerosos e mais livres do que
qualquer uma das formas de escritura tradicionais. Isso nos leva a repensar nossos gestos e
nossa forma de compreensão diante do texto, visto que o que antes estava presente e
legitimado sob a forma de uma centralidade organizadora, padronizadora das formas de ler e
escrever, agora vive uma pluralidade de existências que produz, conseqüentemente, uma
pluralidade de gestos interpretativos. O que se deve notar é que, conforme atesta Lebrun
(1999:49) Hoje, com as novas possibilidades oferecidas pelo texto eletrônico, sempre
maleável e aberto a reescrituras múltiplas, são os próprios fundamentos da apropriação
individual dos textos que se vêem colocados em questão.
3.3. Pontuando a Experiência do Hiperleitor
Percebe-se que os efeitos da hipertextualidade estão para além da navegação em uma
rede de textos conectados, mas que a questão do sentido é complexificada, pois a profusão de
informações que a rede conecta torna o sujeito mais responsável pelas informações e pelos
saberes que acessa. Voltando a Lebrun (1999:91) incidimos sobre o fato de que com essa
nova textualidade não se cria a dispersão ao infinito, na medida em que as experiências
137
individuais são sempre inscritas no interior dos modelos normas compartilhadas. Cada
leitor, para cada uma de suas leituras, em cada circunstância é singular.
Buscamos em Birman (1996) um discussão sobre a dimensão social das práticas de
leitura para reiterarmos que
Se a leitura tem uma evidente dimensão social, ela remete também para o registro da
relação do sujeito com o texto, que se consubstancia em diferentes modelos
históricos de leitura [...] Nesta perspectiva, para que se possam pensar as relações
sociais presentes nas práticas de leitura, é necessário sublinhar as diferentes formas
de relação do leitor com o texto, delineando-se, então, diversas inscrições históricas
do sujeito no campo da escritura. Isso porque, se a leitura implica uma política de
forma insofismável e reenvia para isso, ela também remete para uma ética, pela qual
se pressupõe a implicação do sujeito na escritura.[...] Portanto, a leitura é o outro da
escritura, condição de possibilidade de sua materialidade na ordem do sentido. A
produção do sentido implica a apropriação do texto pelo leitor, que imprime a sua
singularidade na experiência da leitura. (1996:53-54) [grifos nossos]
O que nos parece fundamental aqui é, pensando juntamente com Lévy, que toda leitura
é uma escrita em potencial, é o fato de que a leitura tem o poder de desconstruir, reconstruir,
reconfigurar, desconfigurar. O plano em que um autor se pautou para conferir unidade a seu
texto é desarticulado pelo simples fato de que ler é um ato social, imbricado numa rede de
memória que não é de uma ordem homogênea. Isso atesta a definição de Indursky (2001) para
texto: heterogeneidade provisoriamente estruturada. Esse caráter provisório existe pelas
múltiplas possibilidades de instauração de sentidos por sujeitos-leitores diferentes, pois os
sentidos, em AD, são efeitos da mobilização da língua, numa dada posição-sujeito, a qual
direciona os sentidos.
Voltamos a Birman para quem as múltiplas possibilidades de sentido que um texto
permite decorrem do fato de que:
Algo da ordem da provocação aconteceu, pois o desejo do leitor é colocado em
movimento mediante um fragmento do texto. Com isso, o leitor se descobre como
um sujeito desejante pela experiência da leitura, de forma que essa possibilita ao
leitor uma intuição e até mesmo um conhecimento de si mesmo que eram
inexistentes antes da leitura. (Ibid: 55)
Isso corrobora com nossas constatações de que as novas tecnologias da informação
asseguram uma transformação nas relações do leitor com os textos, produzindo uma nova
forma de textualidade híbrida, cunhada pela associação contínua.
Ao analisarmos a leitura, tanto em suporte impresso quanto em suporte digital,
notamos que o componente exterior, as condições de produção em que se processa essa
prática são determinantes, pois os efeitos de sentido que se geram sobre o texto ocorrem em
relação a uma rede de associações, externa ao sujeito empírico e às formas da língua. Os
138
textos linkados são, a nosso ver, projeção de uma exterioridade que afeta a prática de leitura.
Constatamos esse fato quando acompanhamos os percursos de navegação efetuados pelos
leitores, pois diante da profusão de informações a serem acessadas, dos ‘n’ links que estão
potencialmente disponíveis, cada leitor navegou em espaços orientados por uma expressiva
busca de coerência. Esta coerência estava ligada diretamente ao “interesse particular” de cada
leitor sobre o assunto lançado para pesquisa e às condições de produção que se fizerem
presentes no percurso de linkagem.
No entanto, não se trata de um olhar tão simples. Essa busca, ilusoriamente tida como
direta e uníssona, faz parte de uma rede de sentidos mais ampla, orientadora silenciosa do
percurso desse leitor que pensa estar na direção de sua navegação. Contudo, uma mudança
no itinerário, uma resistência no meio do caminho. Por que isso acontece? Pergunta-se ao
leitor. Por que a resistência se materializa no ato de retornar ao lugar estável em que tudo faz
sentido, em que tudo é óbvio. Por que determinado link foi incômodo e não teve mais
atenção? Ou, ainda, porque a incidências de links com o mesmo teor semântico? A tudo isso o
leitor discursiviza sem se dar conta de que seus movimentos sobre a tela são efeitos de um
gesto interpretativo, de uma inscrição numa determinada rede de significações que interdita
caminhos a serem navegados em prol da construção de outros caminhos. Esse leitor que pensa
estar no comando de sua navegação, está na verdade sendo carregado por uma maré alta e à
qual não vai aceder conscientemente. Seus gestos são inconscientes, são orientados por um
ressoar silencioso, imperceptível que o conduz a simbolizar. Para tanto, partimos da análise de
diferentes percursos de leitura em suporte digital e dos diferentes gestos de interpretação que
os sujeitos da pesquisa produziram acerca de um mesmo tema. Em nosso caso, esses sujeitos
clicam, criam percursos de leitura em hipertexto. Nesse processo de navegação notamos que
eles ocupam diferentes posições-sujeito, na FD acadêmica, o que interfere na formação de seu
hipertexto.
A possibilidade de diferentes gestos de leitura sobre uma mesma reserva potencial
(textos disponíveis para navegação), nos permite vislumbrar o fato de que leitura e escritura
estão em convergência e que uma confluência entre memória metálica, delimitada pelo
pela digitalização, finitamente calculável, e uma memória discursiva que atualiza as ligações
dessa reserva potencial de textos atualizando ligações semânticas. A ligação entre essas
memórias retoma o princípio triádico que Lévy apontou como prerrogativa do ambiente de
leitura digital.
Trata-se de uma recursão: da autoridade do autor, propagada pelo texto impresso, para
a responsabilidade do leitor, que se torna mais atento, que busca e não recebe, que opta, que
conecta, que constrói.
139
A interpretação, isto é, a produção do sentido, doravante não remete mais
exclusivamente à interioridade de uma intenção, nem a hierarquias de significações
esotéricas, mas antes à apropriação sempre singular de um navegador ou de um
surfista. O sentido emerge de efeitos de pertinência locais, surge na intersecção de
um plano semiótico desterritorializado e de uma trajetória de eficácia ou prazer. Não
me interesso mais pelo que pensou um autor inencontrável, peço ao texto para me
fazer pensar, aqui e agora. A virtualidade do texto alimenta minha inteligência em
ato (LÉVY, 1996:49)
As palavras de Lévy trazem à tona o fato de que a complexidade e o desregramento
das intrincadas redes de links que a tecnologia digital criou nos levou a complexificar a
atividade de leitura e o olhar sobre a busca por informações. O que antes advinha da demanda
por estruturas claras que consolidaram e minimizaram os recursos de textualização, hoje se
apresenta como espaço de tensão. O hipertexto impôs estruturas complexas, linkadas e
maximizadas por recursos infinitos de formação e progressão textual. Assim, ao contrário do
que tangenciaram Baudrillard, Virílio, Ellul, onde se temia que as cargas cognitivas com redes
de links amplas e irregulares causassem aflição aos leitores, vemos, na prática, que uma
grande quantidade de leitores da Web converge para o que Ted Nelson chamou de
docuverse
87
. A experiência que o leitor tem com os hipertextos não é de uma desordem
caótica, mesmo que ainda não possamos descrever sua estrutura complexa concisamente; o
problema não é a falta de estrutura, mas a falta de percepção de que novas concepções devem
ser colocadas em “tela” para a complexificação da relação do sujeito com suas formas de
escritura, leitura, enfim, com suas formas de comunicação.
Portanto, esta textualidade compreende outra postura do leitor diante do texto, pois
atribuir sentidos, no espaço topológico do hipertexto, exige que o leitor autorize-se, digamos,
a uma errância, a um vaguear. Uma aventura cognitiva de caminhar sem rumo. Envolve
instaurarmo-nos na dispersão do sentido. Esse é o entendimento da mentalidade necessária
para a emergência de um hipertexto, pois o leitor, ao acessar um texto em estrutura HTML,
passa do estatuto de leitor passivo ao estatuto de navegador na rede virtual de sentidos. Na
rede do Ciberespaço, este navegador faz escolhas e abre caminhos diferenciados de leitura,
produzindo sempre uma configuração diferente, pois El lector siempre se encuentra ante uma
imagem virtual del texto almacenado y no ante la versión original (LANDOW, 1995:33). A
estrutura hipertextual permite que seja lançado um novo olhar sobre a leitura tradicional, um
olhar fragmentado e não-linear, desterritorializando conceitos de unicidade e homogeneidade.
A cada novo clique, há um novo gesto de leitura sendo produzido. Conforme Landow:
87
Palavra composta pelos termos documento e universo para significar o universo de documentos
interconectados.
140
A medida que el lector se mueve por uma red de textos, desplaza constantemente el
centro, Y por lo tanto el enfoque o princípio organizador de su investigación y
experiencia. En otras palabras, el hipertexto proporciona un sistema que puede
centrase una y otra vez y cuyo centro de atención provisional depende del lector, que
se convierte así en un verdadero lector activo, en un sentido nuevo de la palabra.
(1992: 24).
Poderíamos comparar o clique do navegador ao virar de página do leitor tradicional,
entretanto, a linearidade não se sustenta para o primeiro, pois, para ele, escolhas ao passo
que para o segundo não há, além do virar de página, outras condições de produção de escolhas
a serem realizadas em seu gesto de leitura. Pierre Lévy reflete acerca desta diferença:
Acredito que o texto não vai desaparecer de forma alguma com a informatização. O
que vai desaparecer é a noção de página, porque na etimologia a página se refere a
um campo e um campo com proprietário, com fronteiras delimitadas. Esta página,
com o campo circunscrito, está desaparecendo, uma vez que os elementos que a
compõem navegam nos fluxos. (2000: 15)
No entanto, no tocante à questão da linearidade, não podemos considerar o hipertexto,
por sua estrutura aberta e por ser uma rede de infinitas possibilidades, como uma textualidade
que abertura a quaisquer sentidos. uma certa linearidade significante, os sentidos se
entrecruzam em um ponto comum. Pode-se dizer que uma temática comum, não
centralizadora, mas que mantém um elo entre os textos, isso ocorre através da ação do leitor
sobre o hipertexto e, primordialmente, da passagem por um processo de construção técnica da
linkagem a qual vem de um trabalho de direcionamento de leitura
88
.
Tendo em vista o exposto, dirigidos essencialmente para a reflexão acerca da
navegação em ambiente digital como um gesto de interpretação pautado, sobretudo, por
condições de produção que interferem sobre o processo de linkagem e formação dos
hipertextos, selecionamos recortes que nos possibilitarão identificar tanto o modo como se
processa a leitura digital como a existência de posições-sujeito no interior da FD acadêmica.
Além disso, identificamos, no referido processo de análise, a interferência de múltiplas
filiações de sentido que configuram os sujeitos da FD em estudo.
3.4 Por que Pensar os Hiperlinks como Anáforas no Hipertexto?
Trazendo uma reflexão sobre o texto e o processamento interpretativo, o hipertexto
nos leva a reconhecer que as relações entre as diversas práticas de leitura, as tecnologias da
88
Importa ressaltar que há diferentes tipos de estrutura hipertextual, de forma que este direcionamento pode ser
mais ou menos limitado conforme o suporte técnico que o montou. No entanto, há estruturas que não encontram
limites, pois ligadas a e realimentadas pela rede de acessos. Essas estruturas são as que mais nos interessam.
141
informação e a cultura têm contextos e implicações sócio-históricas. Assim, as considerações
sobre a nova textualidade que o ambiente digital nos traz devem atentar para que o papel da
digitalização, hoje, assemelha-se à reflexão que a tecnologia da escrita e da imprensa geraram
em seu surgimento. Junto com Chartier vemos que os gestos mudam segundo os tempos e
lugares, os objetos lidos e as razões de ler (1999:77).
Assim, se a tecnologia da imprensa mudou radicalmente o mundo, perguntamo-nos
quais os efeitos de uma transição para a digitalização? Encontramos, com efeito, uma das
definições que melhor respondem a essa pergunta e que vem ao encontro do objetivo proposto
nesta pesquisa: cuando el texto impreso se convierte en um texto electrónico, deja de posser
la mesma clase de textualidad (LANDOW, 1995:61).
Gera-se o que Landow define por una clase de texto flexible, hecho a la medida,
abierto a las demandas del lector y, posiblemente, vulnerable a ellas. También generam la
noción de una textualidad múltiple... (Ibid: 31). Esta nova concepção de textualidade é
descrita por termos como nexos, conexão, trajetos, tramas. Ainda com o autor
[...] el texto virtual, cuya apariencia y forma pueden ser modificados según
convenga al lector, también tiene el potencial de añadir un elemento completamente
nuevo: el nexo electrónico o virtual que reconfigura el texto tal y como lo
conocemos los que hemos crecido junto los libros. Es la facultad de conexión
electrónica lo que crea el hipertexto, una textualidad compuesta de bloques y nexos
que permitem multiplicar los trayectos de lectura “ (Ibid: 136)
Reconhecemos, portanto, que o hipertexto reconfigura o texto de um modo
fundamental e que os nexos eletrônicos representam a transição de um modo de conceber uma
textualidade margeada e centralizada, para uma textualidade rizomática. A rede dos nexos
informa ao leitor acerca dos links e conteúdos à disposição, pois Los nexos electrónicos
desplazam los límites entre um texto y outro, entre escritor y lector (LANDOW, 1995:48).
Para tanto, é a idéia de links que visibilidade ao texto eletrônico como sendo um ideal de
interconexão e de multiramificação. Este dispositivo digital vincula infinitamente os textos
numa teia virtual de acesso ilimitado, o que o caracteriza como um texto-processo, ou seja,
um texto que está sempre em constante (re)construção. Esses nexos simplesmente aceleram o
processo de estabelecimento de relações entre o externo e o interno do texto. Com os nexos as
fronteiras entre o dentro e o fora do texto se disseminam, produzindo um texto sempre aberto
que é radicalmente transformador, visto que há, no início do acesso, uma visão geral dos
nexos relacionados ao assunto em pesquisa que pode ser um autor, um momento histórico,
uma teoria, um movimento. Esta visão geral implica que qualquer idéia que o leitor escolha
142
como centro (virtual) de sua investigação existe em relação a outros nexos. Ao ativar um nexo
particular, outras possibilidades são refratadas.
Essa mudança reveste-se de significativa importância para os estudos do texto e do
discurso, dado que, por um lado, muda nossa concepção de texto, por outro essa nova
textualidade permite ao leitor direcionar-se por muitos caminhos distintos. Isso muda
significativamente também a noção de estrutura textual, antes tida como centrada e nuclear
com início e final delimitados. Os leitores não podem escolher vários pontos onde
terminar, como também podem seguir ampliando o texto, estendê-lo. Ted Nelson (1965), um
dos iniciadores do hipertexto constatou isso, dizendo que não última palavra. Não pode
haver uma última versão, um último pensamento. Sempre há uma nova visão, uma nova idéia,
uma nova interpretação.
Em nosso caso, nos movem os seguintes questionamentos: podem os links ter função
coesiva segundo os parâmetros propostos pela lingüística do texto? Pode-se presumir, neste
caso, uma pré-determinação dos links na sequencialização textual?
Para tanto, para serem compreendidos em sua complexidade este texto e seus
mecanismos de interconexão foram estudados sob a ordem do discurso, tendo em conta, que,
quanto à produção de sentidos, o olhar da lingüística textual tornou-se muito reducionista,
pois os sentidos engendrados por um texto ou, em nosso caso, por uma rede de textos
interconectados, somente se efetivam se o hiperlink tiver a seu favor uma outra rede, a
discursiva (memória, interdiscurso), a qual possibilitará uma ligação semântica entre as
várias janelas de textos embutidos. O papel do interdiscurso, na atualização da rede textual,
promove a organicicidade do hipertexto, que o ato de clicar, de ‘zapear’, de desconsiderar
um hiperlink em favor de outro mais interessante à complementação da pesquisa em curso,
atestam a virtualização do texto no momento em que entra em tela a subjetividade. Os
hiperlinks, sob essa ótica, têm papel calidoscópico, tendo sentidos oriundos de combinações
múltiplas. Essas combinações partem sempre da interligação, no momento da leitura, de uma
materialidade lingüística com o interdiscurso que a atualiza.
Buscamos um contraponto com a lingüística textual (já abordada) com a finalidade de
apontar para a superação que a textualidade digital traz em relação às concepções
estabelecidas de textualidade. Tal como explicitado em capítulo específico, as teorias do texto
pautaram-se em princípios formalistas para a análise de textos. As chamadas gramáticas de
texto passaram a tratar seu objeto de estudo pelo viés eminentemente intralingüístico, tal
como o tratamento que as teorias gramaticais vinham outorgando à frase. Esse formalismo
tinha um objetivo específico: alijar ambigüidades do quadro formal em que estava
estabelecida a língua e seu uso. No entanto, a dimensão pragmática passou a fazer-se inerente
143
ao tratamento de textos e levou as teorias do texto a ultrapassarem o tratamento formalista.
que, no intuito de assegurar um quadro de regras de boa formação textual, a LT reduziu a
pragmática a componente e os sujeitos mobilizadores da língua a indivíduos ideais. Indursky
(1997) explicita a respeito: ao deslocar-se da frase para o texto, a Lingüística Textual apenas
promoveu a passagem de um vel a outro, ampliou seu objeto, mas pautou suas análises nos
mesmos pressupostos da lingüística de frases.
Esses princípios de boa formação textual estão concentrados nos conceitos
explanados no primeiro capítulo: coesão e coerência. Essa retrospectiva que estamos
empreendendo nos permite passar às análises sobre o corpus, justificando nossas ressalvas em
relação à aplicabilidade dos parâmetros de textualidade da LT para o texto digital e, sobretudo,
apontar, de nosso lugar de analista de discurso, uma possível reflexão sobre essa nova
textualidade. Autores da LT presumem dois pontos de vista sobre a relação entre coesão e
coerência: 1º) a coerência está separada da coesão, dado que aquela se estabelece na interação
e na interlocução, numa dada situação comunicativa que confere sentido ao texto em questão,
estabelecendo assim sua interpretabilidade e sua legibilidade, enquanto esta se revela através
de marcas especificamente lingüísticas. A coerência é semântica e pragmática, contudo
tenhamos em conta que a noção de semântica aqui é eminentemente presa às formas da língua,
e a pragmática traz uma concepção de sujeito detentor de plenos poderes sobre o sentido; 2º) a
coerência e a coesão não podem se dissociar, dada a interdependência entre semântica e
pragmática no tratamento de textos, já que são língua em uso.
Segundo a LT (precisamente os clássicos Halliday e Hasan, 1976), a coesão é um
conceito semântico que se refere às relações de significação que existem dentro de um texto e
que o definem como tal. Sendo um processo que assegura (ou torna recuperável e possível)
uma ligação lingüística significativa entre os elementos que ocorrem na superfície textual e
que opera de acordo com categorias intratextuais como referenciação, sequencialização
89
.
Nessa perspectiva os elementos anafóricos mobilizam um dito presente na superfície
textual a fim de organizar o texto, exercendo um efeito de estabilização e planificação do
discurso. Do ponto de vista crítico de Mondada e Dubois a anáfora tem sido vista como um
modo de estabilizar ou de focalizar uma denominação particular, excluindo para isso outras
possibilidades, mesmo se elas estiverem potencialmente disponíveis no texto (2003:43)[grifo
nosso]
A partir das explanações acerca dos mecanismos de coesão textual acentuados pela LT
e das análises que esta disciplina empreendeu sobre o fenômeno da textualidade digitalizada,
89
Apontamos as metra-regras de Charolles (1978).
144
podemos atentar para um fator de extrema importância para dar seguimento a nossa pesquisa:
a LT, ao considerar os hiperlinks como elementos catafóricos, vinculou o texto digital aos
parâmetros que usa para textos em suporte impresso, sem levar em conta, as profundas
modificações que a digitalização e a virtualização do texto trazem para a relação com o leitor.
Planificando texto impresso e texto informatizado, a LT reproduz o discurso estéril que a
lingüística, de uma forma geral, edificou. A planificação das duas ordens de textualidade
buscou efetivamente uma planificação do sujeito que mobiliza a materialidade da língua.
Ademais, alinhada com a idéia de links como elementos coesivos, de ligação interna dos
textos em rede, está sua classificação como dispositivos dêitico-vetoriais. Essa concepção
coloca dos hiperlinks num espaço tenso entre a interioridade dos textos interconectados e a
exterioridade dos caminhos que podem se abrir. Todavia, a LT empreende a idéia de ixis
ainda presa a uma sistema de ostensão interna, cuja função essencial reside em orientação
interpretaiva. Essa orientação está ligada à noção de intencionalidade do produtor do texto.
Dessa forma, a concepção de dêixis permeia-se por um hermetismo que em muito se distancia
da notável abertura que poderia agregar ao texto eletrônico, já que os dêiticos, no âmbito dos
estudos do texto, podem ter um papel de extrapoladores dos limites e margens estéreis que a
teoria impôs ao objeto texto.
Por um outro ponto de vista, no entanto, buscamos, na análise de discurso francesa,
entender os processos de leitura e produção de sentidos como relações estabelecidas entre o
texto e o que está fora dele. Vemos em Indursky uma reivindicação pelo tratamento exofórico
do elemento anafórico, dado que, em AD, A passagem da frase e do texto para o discurso
inaugura não só um novo objeto, mas instaura uma nova ordem a partir da qual é preciso
contemplar de modo indissolúvel as relações internas e externas (1997:718).
Com a mobilização de conceitos como interdiscurso, intradiscurso, anáforas
discursivas, buscamos mostrar que o funcionamento lingüístico dos elementos de
referenciação textual, difundido pela LT, não coincide com seu funcionamento discursivo,
estando este mais ligado à atitude interpretativa frente ao texto. Conforme Indursky, o vestígio
das ligações que se estabelecem com a exterioridade, as quais entrelaçam inextrincavelmente
o texto com o interdiscurso, ancorando sua coerência também na exterioridade (2001: 29)
Nos detemos, portanto, nessas possibilidades que fazem do texto um elemento
orgânico, potencializador de sentidos outros, diversos. Segundo nossas considerações sobre o
objeto de estudo, o texto existe em potência, ele é potencialmente possível e passível de
atualizações como a árvore que ainda existe potencialmente na semente. Lévy (1996)
expunha essa metáfora: o problema da semente, por exemplo, é fazer brotar uma árvore. A
semente ‘é’ esse problema, mesmo que não seja somente isso. Isto significa que ela ‘conhece’
145
exatamente a forma da árvore que expandirá finalmente sua folhagem acima dela. A partir
das coerções que lhe são próprias, deverá inventá-la, coproduzi-la com as circunstâncias que
encontrar (1996:16).
Assim, contrariamente ao estático, ao constituído, o texto é um complexo
problemático, um nó de possíveis configurações, reconfigurações semânticas, um nó de forças
que necessita de um processo de resolução: uma atualização. Dado isso, atentamos para que a
realidade dos sentidos jamais é matéria pura, pelo contrário, é sempre virtual, atualizável
através de uma relação tensa entre o texto e o sujeito que o coloca em atividade. Os sentidos
existem potencialmente nas possibilidades de conexão entre textos da rede hipertextual, mas
são atualizados com o clicar do sujeito que, ao invés de efetivar uma ação mecânica, como
pressupõem os mais céticos, produz uma atualização do link através da imensa rede de
memória que acompanha a leitura. Segundo Lévy, A tela apresenta-se então como uma
pequena janela a partir da qual o leitor explora uma reserva potencial (1996:39).
Partimos do fato de que os hiperlinks, por serem vínculos entre blocos de textos, têm
funcionamento diferente do funcionamento dos elementos de referenciação da lingüística
textual. Essa diferenciação é visível quando observamos uma tela da rede WWW, que nos
mostra os links como dispositivos que:
i- não constituem fenômenos de dependência interpretativa.
ii- cumprem uma certa função coesiva, sem, contudo, referirem-se a elementos
delimitados intratextualmente;
iii- constituem fenômenos de abertura, tendo em vista que remetem a um
conjunto de informações extratextuais contidas em janelas a serem abertas e
a discursos anteriores, tornando o texto um documento aberto.
iv- sua natureza não é substitutiva; não é meramente projetiva; e não é de
retomada;
v- as práticas de leitura mobilizam relações interdiscursivas intensas em
virtude da necessidade de associação no processo de linkagem;
Cada link acessado ou descartado, no processo de navegação, possui uma unicidade
semântica que solicita do leitor a ativação de inferências intra e extratextuais. Neste ponto é
que reside a maximização do conceito de hiperlinks de meros elementos de ligação entre
blocos de textos para elementos de referenciação discursiva. Isso permite ao leitor construir
um objeto discursivo que nunca é dado a priori. O leitor assume um papel de itinerante,
navegador em busca de caminhos a seguir. Há, nesse sentido, um processo discursivo que
interfere na formação do hipertexto.
146
Em vista disso, a relação da categoria de anáforas discursivas com a linkagem
hipertextual é concernente em função da exterioridade e da não dependência interpretativa em
relação a um elemento referido e, além disso, temos que ter em vista que o que é
habitualmente considerado como ponto estável de referência, no âmbito do hipertexto, é
instável, lábil, que as referenciações não são nem evidentes, nem dadas, mas são resultados
de processos interdiscursivos que interferem nas relações, nas escolhas de links.
No entanto, quando se afirma que a anáfora discursiva constrói-se sobre um dito
retomado na superfície do texto, pressupondo um referente explícito, em se tratando da
estrutura hipertextual, esta idéia não procede, tendo em vista que uma das características
básicas do hiperlinks é sua não ligação a um referente explícito. Reiterando o que fora
exposto, os hiperlinks não assumem as mesmas formas dos referentes tradicionais, pois a
relevância do hipertexto não está na progressão referencial propriamente dita, mas na
progressão tópica e temática, a qual produz uma continuidade, devendo haver entre os blocos
de textos que compõem o hipertexto uma integração conceitual e temática que dê suporte à
interpretação do leitor. Assim, o que se procura determinar aqui é uma concepção processual
de construção do sentido e de texto vetorizado, metamórfico. Notamos essa característica nos
processos de navegação quando os leitores ativam o actema de volta, de retorno a um menu
principal para escolha de novos links. O processo de retorno faz com que atentemos para o
fato de que a profusão de links e a carga de informações que com eles se coloca à disposição
do leitor, orientam este para uma atitude mais responsável frente ao processo de leitura. O
retorno nos mostra que um percurso está se formando e que as escolhas do leitor não
permitem a entrada em qualquer janela disponível.
Assim, diferentemente dos elementos de referência tradicionais e dos dêiticos, os links
não marcam posições, não suturam informações, abrem possibilidades significantes, abrem
possibilidades de encadeamento e, alem disso, atestam o processo de construção textual como
eminentemente ligado à pratica do sujeito sobre a superfície lingüística. Isso nos coloca diante
da possibilidade de pensar nesses dispositivos como anafóricos discursivos. Contudo, o
próprio conceito de anáfora discursiva, mesmo sendo o que melhor representa o processo de
linkagem, precisa ser expandido, pois, na concepção aqui adotada para os links, a anáfora
discursiva se caracteriza por três aspectos, dos quais apenas o primeiro se mantém da
conceitualização original:
a) Constrói-se sobre um dito retomado na exterioridade do texto, no interdiscurso.
Projeção à exterioridade;
147
b) Constrói-se por associação semântica de textos, realizada pelo leitor, nunca
explícita na superfície textual. A ligação ocorre na atualização;
c) O processo de seqüencialização e de unidade textual é sempre virtual e passível de
reformulação;
Formam-se diferentes e pequenas redes no interior de cada imenso hipertexto, tais
redes são irrepetíveis e únicas, pois cada leitor, operando com sua memória discursiva, com
objetivos diferentes, formará uma rede própria de leitura e de encaixe, assim, os links
assumem esse duplo papel: de estabilização no plano da forma e de desestabilização no plano
do conteúdo significante, marcando espaços de interdiscursividade. No entanto, essas marcas
não são diretas nem tão límpidas, pois indireta é a relação do sentido com a materialidade
lingüística que lhe suporte. A função do hiperlinks deve ser vista em seu funcionamento
como janela que abre possibilidades de encadeamento. Não há links dispostos em um
hipertexto que se façam auto-evidentes, esses links trazem em si a possibilidade de formação
de textos outros sobre um texto disposto na tela do computador. O funcionamento do links,
seu acesso e as informações que abrem para o leitor estão ligados às condições de produção
da leitura enquanto processo significante, dado que ler é atualizar singularmente.
Em vista do que compreendemos por processo de construção discursiva, acentuamos
que definir o hipertexto como uma nova unidade de análise, principalmente em AD, nos faz
pensar na circulação de informações que a internet possibilita e nas práticas de leitura
engendradas pela materialidade eletrônica. Ademais, apontamos para o fato fundamental de
que não estamos diante de uma materialidade puramente eletrônica, mas eletrônico-
discursiva, em que novos processos de leitura se estabelecem fazendo emergir deslocamentos
teórico-conceituais no âmbito dos estudos do texto. Para tanto, justificamos o uso do termo
‘anáforas’ para o estudo aqui proposto, dados os limites que a categoria de anáforas
discursivas encontra. Assim, o diálogo constante com a semiótica nos permitiu abordar o
elemento anafórico em seu limite com os processos discursivos de constituição de sentidos, a
fim de ultrapassar o que impunha a esse elemento um papel de cerceamento interpretativo.
Assim, mais do que anáforas discursivas e mais do que meramente anáforas, o que propomos
para análise dos hiperlinks é uma análise que congrege valor discursivo, semiótico e
lingüístico a esses elementos.
148
3.5 Procedimentos Metodológicos
Caracterizando-se por ser uma pesquisa sobre leitura em ambiente digital,
paramentada pelos pressupostos teóricos da análise de discurso francesa, principiamos pelo
fator determinante de que, em AD, busca-se a desconstrução da noção de evidência dos
sentidos, tão cara aos estudos formalistas do texto. Portanto, para engendrar uma perspectiva
processual de construção de efeitos de sentidos, desligados da concepção conteudista de texto
e orientados pela relação intrínseca entre a materialidade lingüística e a materialidade
histórica e social, buscamos, nos domínios da materialidade discursiva, que não incorre na
pura subjetividade, nem na dureza de uma estrutura pré-estabelecida, um campo de reflexão,
cujo olhar para as práticas de leitura sejam mais complexos e menos deterministas. Com base
nisso, o analista de discurso encontra em seu “percurso”, um caminho de desmistificação das
evidências fundadoras da língua, do sujeito e, primordialmente, da relação entre ambos que
resulta numa outra evidência: a do sentido como transparência. Esse desmistificar implica a
passagem para a ordem discursiva que, distinta da ordem da língua, representa a relação entre
esta e o ideológico.
Isso posto, atentamos para o fato de que, em AD, o trabalho do analista,
inexoravelmente, não pode se realizar tomando como foco somente a materialidade
lingüística, mas deve focalizar as condições de produção do corpus a ser analisado. Definido
por Courtine como um conjunto de seqüências discursivas estruturado de acordo com um
plano definido em relação a certo estado das CP do discurso (1981: 24), o corpus representa
a confluência de duas ordens: uma horizontal e uma vertical, pois, de um ponto de vista
empírico, os recortes que o compõem estão na ordem da materialidade lingüística horizontal e
sintaticamente analisável; contudo, da ótica do processo discursivo, essas seqüências
sintagmatizam-se sempre em relação a uma relação interdiscursiva, em determinado estado
das condições de produção da leitura, em nosso caso específico.
Para tanto, esta pesquisa delineou-se em algumas etapas que mobilizaram um trabalho
individual do leitor e um trabalho em conjunto com a pesquisadora, o qual procurou entender
os acessos realizados pelos leitores durante um percurso de leitura em ambiente digital,
levando em conta as condições em que se produziu a leitura e a linkagem dos textos que
constituem o hipertexto. Além disso, com a preocupação não de colher resultados pré-
estabelecidos, mas com o intuito de buscar um entendimento da leitura em ambiente digital,
baseada na experiência do leitor, este trabalho não foi definido por um método dedutivo de
análise, dado que a construção do corpus, em AD, já consiste num trabalho analítico.
Evocando a concepção de recorte, definida por Orlandi (1987) como um fragmento
que, em oposição à concepção de segmentação, relaciona linguagem e situação, trabalhamos
149
com recortes dos acessos realizados e das entrevistas com os sujeitos da pesquisa, o que nos
possibilitou uma visão abrangente e qualitativa dos percursos dos leitores-navegadores, bem
como nos possibilitou estabelecer as condições de produção do processo discursivo,
remetendo sempre a uma exterioridade. Vale lembrar, além disso, que a definição de recorte é
fundamental para a pesquisa no texto digital por situar-se num campo em que elementos se
repetem e se deslocam em diferentes “textos e/ou discursos”, em CP específicas, que
estabelecem a relação entre a materialidade lingüística de uma seqüência discursiva e as
condições históricas, sociais, ideológicas que determinam sua existência.
Em vista disso, nosso corpus foi constituído com dizeres dos leitores que participaram
das práticas de navegação na WEB, levando em conta sua relação inerente com os lugares
sociais de onde produziram as leituras em hipertexto, ou seja, em termos analíticos, de suas
posições-sujeito no interior de uma FD. Foi com esses recortes que encontramos meios para
expor nossas ressalvas em relação àqueles que criticam o ambiente digital como propício à
leitura de qualidade e inserimos uma proposta para análise do processo de linkagem à luz do
que a análise do discurso denominou anáforas discursivas. Ademais, esses recortes acentuam
a proposta de análise da textualidade informatizada pelo viés da AD francesa em contraponto
com análises da LT.
Buscamos, do ponto de vista da AD, pensar a materialidade eletrônico-discursiva
como uma convergência entre uma memória metálica e uma memória discursiva, fazendo dos
links ligações simbólicas que reclamam seu lugar no processo discursivo. Os hiperlinks são
apontados aqui como materializadores de gestos de leitura particulares. Através desses
dispositivos eletrônicos o texto (hipertexto) encontra sua constante re-significação, operada
pela ação de um leitor, que, antes de tudo, é sujeito socialmente, politicamente e
ideologicamente constituído, através de quem uma memória se projeta.
Esclarecemos, portanto, que os recortes analisados nos permitem o contraponto e o
constante diálogo com o campo teórico da Lingüística de Texto, tal como já matizamos e com
um debate semiótico e filosófico sobre as interferências das novas tecnologias nas formas de
leitura e escritura.
Esta pesquisa transcorreu nas seguintes etapas:
i- Escolha do tema a ser pesquisado na WEB: “Sistema de Cotas nas
Universidades Federais”;
ii- Prática de leitura-navegação na WEB;
iii- Momento de reflexão do leitor sobre seu percurso de leitura através de um
questionário com perguntas dirigidas ao processo de leitura-navegação
(respostas escritas);
150
iv- Reflexão sobre o percurso de leitura-navegação (conversas espontâneas);
3.5.1. Condições De Produção Do Corpus
O corpus é constituído de recortes das entrevistas realizadas com 05 (cinco)
leitores
90
que configuram os sujeitos que estão na FD acadêmica. Para escolha dos
participantes da pesquisa, foram tomados como base critérios de grau universitário, tendo em
vista que nosso objetivo consistia em investigar como se processam percursos de leitura, e
também analisar a reflexão sobre as condições em que as leituras sobre o tema Sistema de
Cotas nas Universidade Federais” foram produzidas. Tomamos como objeto de nossa
investigação a FD acadêmica, considerando, sobretudo, o fato de que os domínios de saberes
que circulam no interior dessa FD nos permitiriam avaliar, de modo mais objetivo, a
complexidade do processo de produção de sentidos em ambiente digital, o que nos auxilia
num cotejo de informações com mais qualidade e um maior grau de reflexão por parte do
sujeitos dessa FD, acerca de seu processo de leitura em hipertexto. Tais critérios respaldaram
as análises e reflexões concernentes ao nível de construção de um hipertexto, dado o fato de o
foco desta pesquisa ser a análise das condições de produção de um hipertexto por um sujeito-
leitor situado social, histórica e ideologicamente.
As práticas de leitura foram realizadas com base em um tema comum e atual: O
sistema de cotas nas universidades federais. A delimitação do assunto por parte da
pesquisadora teve a seguinte motivação: avaliar os diferentes percursos de leitura, os
diferentes processos de linkagem que os leitores produzem com base em um mesmo quadro
de links disponíveis para acesso, mas que não necessariamente seriam linkados por todos.
Esse é o passo fundamental para nossa investigação: a diferença nos acessos realizados e na
formação de um hipertexto com base nas condições de produção da leitura. Nesse sentido,
temos que os diferentes percursos correspondem às diferentes condições de produção das
leituras e, principalmente, à construção discursiva dos hipertextos como efeito de um trabalho
de interpretação que aponta para a heterogeneidade da FD acadêmica. Isso se evidenciou
quando, durante as entrevistas, os leitores explanaram suas motivações para a produção dos
percursos. Justifica-se, dessa maneira, a escolha do tema para pesquisa, que o sistema de
cotas nas universidades é comum no meio acadêmico gerando diversas posições por parte dos
estudantes universitários. Os percursos vinculam-se, a nosso ver, a uma rede interdiscursiva
90
Salientamos que a pesquisa transcorreu com a participação de 10 leitores-navegadores, dos quais 05 percursos
foram escolhidos para análise.
151
que se atualiza no momento da linkagem dos textos e que intervém na formação de cada
‘rede’ hipertextual. Trata-se dos processos interpretativos que refletem posições-sujeito
diversas, no âmbito de uma mesma FD, o que instaura a construção do percurso em ambiente,
digital como efeito do processo interpretativo e, conseqüentemente, os hipertextos como
efeito-texto.
Com a finalidade de familiarizar os participantes com as condições gerais a partir
das quais a pesquisa transcorreu, foi realizado um primeiro encontro para o preenchimento de
uma ficha
91
com dados do leitor-navegador. A ficha contém dados salutares para que o
pesquisadora conheça os assuntos mais pesquisados por cada leitor, suas motivações de
pesquisa. Tais dados são organizados de uma forma crescente quanto à importância,
começando pela informação da idade, profissão, curso universitário, passando a questões
como assuntos de interesse para pesquisas na WEB. Esta questão é validada pela informação
que segue sobre os assuntos mais pesquisados e pelos motivos de pesquisa. A ênfase nesses
itens reside no fato de que, acreditamos que nenhuma leitura em ambiente digital prescinde de
um movimento interpretativo, já que o sujeito será sempre engendrado por um processo
simbólico. Isso justifica nossas ressalvas em relação às considerações que a LT produz acerca
da leitura em hipertexto, dado que interpretar, para esta teoria, é buscar ‘um’ sentido dado de
antemão, intencionalmente inscrito na formação do texto, ao passo que, de nosso ponto de
vista teórico, interpretar é gerar efeitos sobre a materialidade lingüística, efeitos singulares,
pois ligados, ao mesmo tempo, a um processo de leitura individual e a determinações
históricas, o que nos leva a aventar o fato de que o ambiente digital é um suporte que
materializa outra relação do leitor com o texto que agora está em rede, sendo tal relação mais
complexa do que aquela que a LT aborda. Esta ficha, portanto, nos concede as condições
necessárias para uma primeira análise dos percursos de leitura e suas singularidades.
Salientamos, sobretudo, que, segundo os leitores-navegadores, os assuntos que pesquisam na
WEB são, geralmente, os mesmos pesquisados em suporte impresso. Com base nos dados
recolhidos e na conversa destes encontros, temos os seguintes perfis dos leitores:
Leitor 1 (L1)
Formação acadêmica em Letras, estudante de pós-graduação na mesma área. Professora
de Ensino Fundamental e Médio da rede particular de ensino na cidade de Farroupilha - RS. Idade 24
anos. Assuntos que mais pesquisa na WEB: atualidades e assuntos acadêmicos. Algumas pesquisas
são realizadas em busca de material para o planejamento de suas aulas (textos, reportagens...).
152
Leitor 2 (L2)
Formação acadêmica em Publicidade e Propaganda (em curso). Trabalha como
assessora na Câmara de Vereadores de Cachoeirinha - RS. Idade: 25 anos. Assuntos mais
pesquisados na WEB são: assuntos acadêmicos, notícias e assuntos relacionados a seu trabalho,
como leis, projetos, governo. A leitora é integrante do grupo da juventude do partido dos
trabalhadores (PT) em sua cidade, onde desenvolve projetos nas comunidades carentes.
Leitor 3 (L3)
Formação acadêmica em História com pós-graduação em curso na área de educação.
Idade 30 anos. Professora da rede pública de ensino para os níveis fundamental e médio, na cidade
de Gravataí - RS. Assuntos mais pesquisados na WEB são relacionados a seu trabalho: área de
educação, práticas de ensino, atualidades.
Leitor 4 (L4)
Formação acadêmica em Ciências Jurídicas, pós-graduação em andamento na mesma área.
Idade 28 anos. Trabalha no departamento jurídico da rede bancária de Porto Alegre. Assuntos mais
pesquisados na WEB são relacionados ao trabalho, assuntos acadêmicos e encontra na internet um
meio ágil de ter acesso às notícias referentes a leis e projetos em andamento.
Leitor 5 (L5)
Formação acadêmica em Ciências Jurídicas e graduação em ciências sociais (em curso).
Idade 29 anos. Trabalha com assessoria jurídica em Porto Alegre. Assuntos mais pesquisados na
WEB: notícias, atualidades, assuntos acadêmicos e relacionados ao trabalho (projetos, leis...). Além
disso, a leitora trabalha como voluntária em alguns projetos sociais em sua cidade. Entre os
entrevistados é a única de origem negra.
De posse dos dados dos sujeitos, passamos, então, à análise do modo de produção dos
hipertextos, buscando entender os percursos que cada leitor fez para a constituição de seu
hipertexto. Para tanto, conversamos espontaneamente sobre os assuntos de interesse para
pesquisa e seguimos para a Leitura-Navegação.
O processo de leitura começou pela orientação do assunto escolhido no site de
pesquisa www.google.com.br. Cada leitor digitou o link sistema de cotas nas universidades
federais. Este link abriu um menu principal com um resultado de aproximadamente 434.000
91
A proposta para a prática, a ficha e o questionário utilizados com os leitores encontram-se em anexo. Anexo I
153
links para pesquisa. Dessa forma, os leitores partiram de um mesmo ponto de navegação,
anotando o percurso realizado. Dessas anotações constaram:
a) Os links acessados e a ordem dos acessos;
b) Os links acessados e não lidos (resultados de retorno no percurso). Neste caso
específico foi solicitada a colocação de um ‘N’
92
;
Após a navegação, com os percursos registrados, solicitamos ao navegador que fizesse
uma reflexão sobre seu percurso, respondendo a algumas perguntas escritas. Esse questionário
teve a finalidade de instigar o leitor-navegador à análise do processo de produção do percurso
e das condições de produção de seu hipertexto. Trata-se de perguntas orientadas, nesse
momento, para os objetivos de análise e de seleção dos recortes que compõem o corpus. O
leitor não teve conhecimento dos objetivos da pesquisa, de forma a não haver pré-
determinação para suas respostas.
As perguntas que compõem o questionário são:
a) Em seu percurso, quais os procedimentos que tomou como fundamentais para a criação do
(hiper) texto?
b) Como você explica o contexto no caso da navegação em ambiente digital?
c) Após a navegação, segundo seu ponto de vista, que fatores propiciam a diferenciação entre
texto em suporte impresso e o texto digital (hipertexto)?
d) Como você explica seu percurso de leitura neste caso?
e) Com o hipertexto, o fechamento pode não se dar da maneira com que estamos habituados.
Levando isso em consideração, que critérios você destaca para ter encerrado seu percurso de
leitura?
Após os percursos realizados e acompanhados das respostas de cada leitor, coube à
pesquisadora produzir o que se convencionou chamar de “representações gráficas” dos
percursos
93
. Esta etapa da pesquisa se destinou à visualização da trajetória de cada percurso,
apenas com a descrição dos links acessados, não acessados e os que, após o acesso, geraram o
retorno do leitor, pois não interessantes no percurso.
Tal visualização possibilitou, num primeiro momento, à pesquisadora fazer um
cotejo sobre o percurso realizado, para, então, na última fase da pesquisa, apresentar ao
sujeito-leitor seu percurso. Essa situação permitiu ao leitor refletir sobre o percurso realizado,
sobre os fatores externos, históricos e sociais que auxiliaram na realização dos acessos. De
posse da representação dos links acessados, cada leitor pôde acrescentar considerações sobre
92
O uso da letra “N” corresponde a um “Não”, indicando os acessos não realizados.
93
Anexo II. O modelo de representações gráficas que utilizamos foi retirado de Landaw, 1995. No entanto, as
representações que integram este trabalho foram aprimorados para que a visibilidade dos percursos seja
facilitada.
154
o trabalho realizado, justificar determinados acessos, falar sobre as condições de produção do
texto e sobre a relevância do tema para ele. Durante a reflexão sobre o trajeto que o leitor
produziu, algumas questões foram sendo levantadas pelo pesquisador a fim de que fosse
realizada uma reflexão final do processo de leitura. As falas dos leitores foram posteriormente
transcritas e selecionadas para compor o corpus.
Com todos dados disponíveis, tanto das entrevistas quanto dos percursos, coube à
pesquisadora fazer os recortes necessários para a análise.
3.5.2. Condições De Produção Dos Recortes
Com a pretensão de investigar as práticas de leitura instauradas pela digitalização do
texto em rede e, ademais, de situar os links, em oposição às análises empreendidas pela LT,
como desencadeadores de uma anaforização, que se na confluência entre memória
metálica e memória discursiva, selecionamos recortes condizentes com nosso propósito e que
elucidem o lugar do sujeito no processo de leitura, permitindo a análise deste como um efeito
do trabalho interpretativo. Se, em AD, temos o trabalho interpretativo como um movimento
circular, em que o sujeito ao interpretar, ao mobilizar sentidos, está sendo igualmente
interpretado, devemos levar em conta, sobretudo, que o ambiente digital, por possibilitar
hipertextos que se transformam a cada clique, possibilita igualmente um movimento dialético
mais intenso sobre a produção da leitura. Tornou-se, portanto, salutar que nossa busca por
informações partisse de um cotejo de questões gerais como os procedimentos que cada leitor
julga importantes para a formação de um hipertexto, a noção de contexto que cada leitor tem
e, ademais, diante da imensa digitalização por que o mundo tem passado, que diferenças esses
leitores vêem entre os suportes impressos e os suportes digitais. Essas questões tornaram-se
basilares para nossas análises.
Dessa forma, para analisar o modo como o sujeito mobiliza os hipelinks num processo
de retorno ao interdiscurso, selecionamos:
1. as respostas dadas aos questionários realizados após o percurso de
navegação;
2. as falas (dos sujeitos-leitores) resultantes das análises das
representações gráficas;
155
Salientando fundamentalmente o modo como o leitor produziu seu texto, como a
memória discursiva interveio na materialidade eletrônica, atualizando seus nodos, esses
recortes são representativos de cada percurso realizado.
Assim, o princípio de constituição do corpus desta pesquisa baseou-se na remissão dos
hiperlinks a sentidos anteriores que os atualizam, produzindo a abertura, num processo de
leitura, de determinados textos e não outros. A linkagem é vista, assim, como um processo
seletivo de ligação e atualização de textos. Tal seleção está sempre pautada pelas condições de
produção da leitura, pela inscrição do leitor em posições-sujeito numa FD acadêmica.
Reunimos um corpus que contém 48 recortes (R), organizados para análise em 02
blocos. Esses blocos correspondem às perguntas que compõem o questionário respondido
pelos leitores. Foi estabelecido assim um referencial para análise sob dois prismas:
a) A reflexão acerca do texto digital e sua interface com os processos de
leitura tradicionais (Bloco I);
b) A reflexão sobre o percurso de leitura-navegação (Bloco II).
Esses dois blocos organizam-se da seguinte maneira
Bloco I:
a) Em seu percurso, quais os procedimentos que tomou como fundamentais para a criação de
teu (hiper) texto?
b) Como você explica o contexto no caso da navegação em ambiente digital?
c) Após a navegação, segundo seu ponto de vista, que fatores propiciam a diferenciação entre
texto em suporte impresso e o texto digital (hipertexto)?
Bloco II:
d) Como você explica seu percurso de leitura neste caso?
e) Com o hipertexto, o fechamento pode não se dar da maneira com que estamos habituados.
Levando isso em consideração, que critérios você destaca para ter encerrado seu percurso de
leitura?
Além disso, foram adicionadas no interior das análises de cada bloco, recortes
correspondentes à etapa de reflexão sobre as representações gráficas. Esses recortes tornaram-
se imprescindíveis para abordar as condições de produção em que ocorreu cada percurso de
leitura, as especificidades dos acessos realizados, bem como para analisar as posições-sujeito
que se salientaram durante a investigação. Esse cotejo foi fundamental para a reflexão sobre
os diferentes efeitos de sentido gerados no processo interpretativo e para a instauração do
hipertexto como um efeito-texto.
156
3.5.3. As condições de produção dos hipertextos
Ensejar as condições de produção dos hipertextos requer que retomemos a discussão
colocada em tela anteriormente sobre o real e o virtual no ambiente digital de texto.
Alinhando autores como Lévy e Landow, colocamos em cena o fato de que o real do
hipertexto é a virtualidade, ou seja, é a potencialidade que está sempre presente e que se
atualiza no momento em que o dispositivo eletrônico se acopla à subjetividade, gerando
processos de criação e de diferenças no interior da rede digital. Pensamos, portanto, que o
dispositivo técnico de digitalização do texto responde por um processo de
redimensionamento, de transformação nas formas de relacionar sujeitos - materialidade
lingüística – e eventos de leitura. Pensar assim nos ajuda a compreender que o objeto
computador não foi meramente lançado no mundo para agregar uma forma diferente de leitura
e escritura, mas faz parte de uma simbiose, de um fluxo contínuo de complexificação dessas
formas de entender texto e textualidade. Dessa maneira, a relação usuário-computador não se
esgota na análoga relação sujeito-objeto, mas exige novos conceitos, novas reflexões acerca
dos gestos que o sujeito lança sobre o texto, visto que a leitura passa a investir-se de uma nova
significação: a navegação. Para balizar essa reflexão, a proposta que se lança neste trabalho é
a de refletir sobre os processos de constituição de hipertextos e saber por que relações esses
processos pautam-se, na busca de uma textualidade coerente, em condições de produção
específicas. Os leitores-navegadores foram instigados à pesquisa de um tema específico
(SISTEMA DE COTAS NAS UNIVERSIDADE FEDERAIS) dado o teor histórico, social e
político de que este tema se cerca. A pesquisa de cada leitor transcorreu em etapas diversas,
tal como explanado anteriormente. Os leitores produziram percursos em ambiente digital e
cada percurso representou a potencialidade que o texto em rede pode trazer à tona. As
diversas possibilidades de acesso, as inúmeras subredes que se formam dentro de cada janela
aberta pelo leitor representam a ilimitada gama de informações interconectadas para um
mesmo assunto. Nesse sentido, os links acessados e os não-acessados têm o mesmo valor para
análise, visto que o que está em pauta não é o simples manejo do suporte, mas a construção do
sentido, orientado por um suporte mais amplo do que o materialmente visto, pela memória
que instiga a fazer um caminho diverso para cada leitor.
Para engendrar essas questões, buscamos aqui uma contribução de Rosenberg (2002)
que denominou actema a prática de seguir links. Para este autor um link pode ser seguido de
diferentes maneiras, desencadeando diferentes actemas, por exemplo:
a) Clicar uma âncora graficamente visível ou inferida pelo leitor;
157
b) Operar um dispositivo interativo intermediário mostrando todos os links possíveis,
como um menu de nomes de links;
c) Clicar num mapa de visão geral;
Toda forma de hipertexto, cuja estrutura se dá com links embutidos, permite ao
usuário além do movimento de ligação de textos, os movimentos de volta, de mudança de
caminho. Estes movimentos são objetos de análise em questão neste trabalho, tendo em conta
que vários questionamentos surgem neste tipo de actema, conforme Bieber (apud Rosenberg,
2002:58) deve um retorno disparar uma operação inválida ou simplesmente refletir o estado
atual dos nós de partida?; Rosenberg em resposta a esta pergunta argumenta que:
O simples ato de voltar para trás pode ter múltiplas facetas. Pode-se revisitar uma
lexia simplesmente para lê-la de novo, ou pode ser um genuíno desfazer: Talvez o
leitor não tenha desejado de modo algum seguir aqueles links. Esses são
comprovadamente actemas diferentes (2002:58).
Trazemos à baila, nesse sentido, o fato de que cada hipertexto corresponde a condições
de produção específicas, relacionadas a uma rede interdiscursiva que intervém nos
movimentos que os leitores incidem sobre a tela. O que se presume quando o que esta em
pauta é o gesto de leitura em hipertextos é o fato contundente de que a estrutura linkada, que
vida à uma rede de interconexões, traz à tona a potencialidade que cada links tem de
transformar, remodelar, construir, pela ativação que propaga, ao longo das vias de acesso, a
topologia da rede e a composição de seus nós dando espaço para a formação de novos
hipertextos, de novas redes. Cada vez que um caminho ativado é percorrido, algumas
conexões são reforçadas, ao passo que outras são desconsideradas. Essa efetiva relação da
ação do leitor com a produção das redes hipertextuais não se refere somente às conexões em
tela, mas mantém uma estreita e necessária ligação com as conexões interdiscursivas que
interferem no processamento do hipertexto. Dessa forma, cada leitor forma uma constelação
hipertextual, cujos sentidos se interconectam na tela e no interdiscurso e, ao passo em que a
perspectiva interdiscursiva se modifica, abre-se espaço para outras possíveis constelações.
Isso se revela no simples ato de retorno, de clique sobre links embutidos nas janelas
abertas. Esse tipo de ligação rizomática que se forma e transforma, se faz e desfaz em
momentos únicos de leitura é que nos conduz a pensar que cada hipertexto corresponde a um
efeito de um trabalho interpretativo, de um leitor que está engendrado numa rede discursiva.
Os sujeitos que participam do ato de clicar,ao qual subjaz o gesto interpretativo, reorientam os
caminhos que outros sujeitos fizeram, dado que o sentido não tem fixidez, não é determinado
somente pela materialidade do texto. Tomamos como ponto fundamental o fato de que não é
158
quem escreve que significa, também o leitor produz sentidos. Esses sentidos não se dão
abstratamente, mas em CP cuja especificidade é serem sócio-históricas. Portanto, longe de ser
um auxiliar útil à interpretação, as condições de produção são o próprio foco da formação das
redes de sentido que se instauram.
Temos, então, no conjunto das reflexões aqui empreendidas, que a leitura está
intrincada na determinação histórica dos processos de significação. Para Orlandi, quando
estamos lendo, estamos participando do processo (sócio-histórico) de produção dos sentidos e
o fazemos de um lugar e com uma direção histórica determinada (1988: 59)
Partiremos, para tanto, do fato de que o cerne da produção de sentidos está no modo de
relação (leitura) entre o dito e o compreendido. A naturalidade dos sentidos é ideologicamente
construída. Essa relação de naturalidade com o dizer e com o que através dele se mostra é um
efeito da ideologia sobre a capacidade de simbolizar do ser humano. Naturalidade, portanto, é
vista como transparência, limpidez, objetividade entre o dizer e o dito. Essa transparência que
emerge para o leitor nos leva a ver mecanismos que aí estão jogando e que fazem dos sentidos
efeitos de relações sócio-historicamente fundadas. O que nos permite afirmar que os sentidos
são produzidos na fusão entre uma memória e uma atualidade.
As análises que seguem, por se ancorarem numa teoria materialista-histórica, nos
ajudam a refletir sobre essas relações e sobre a efetiva relação entre leitor-navegador e o texto
digitalizado em rede, já que o clicar do leitor, a navegação sobre telas e textos que se
interconectam e se desconectam nos levam a crer que a leitura evidencia a configuração
semântica que cada leitor participante da pesquisa formou durante os acessos realizados. Cada
link associado faz parte de uma constelação diferente, produzida em condições de produção
condizentes com as conexões interdiscursivas de cada leitor.
3.5.4 BLOCO I: Sobre o texto digital e sua interface com os processos de leitura
tradicionais
Este bloco foi organizado a partir das três primeiras perguntas que compõem o
questionário respondido pelos leitores-navegadores. O que se coloca como prioritário, neste
momento, é a reflexão dos leitores sobre a produção de hipertextos (durante a leitura) e sobre
a diferenciação que esses leitores vêem entre texto impresso e digital. Dividiremos as
análises do bloco em três partes correspondentes às perguntas. Passemos à primeira pergunta
que constitui este bloco:
159
1º) Em seu percurso, quais os procedimentos que tomou como fundamentais para a criação
do (hiper) texto?
Tivemos acesso a sete recortes correspondentes às respostas dos leitores
94
. O objetivo
desses recortes é ensejar a questão da orientação do percurso de leitura. Buscamos investigar
qual é a prática de leitura que é mobilizada diante dos possíveis caminhos a serem trilhados
pelos leitores.
R1: Diante das opções que tive, selecionei as que foram mais
interessantes para a realização da minha pesquisa, sendo que os
assuntos estavam relacionados sistematicamente. Me guiei pela
associação do tema. (L1)
R2: Os assuntos que busco são os que me interessam. Acessando
localizo a frase ou a palavra relacionada ao assunto. Se eu não
gostar, procuro voltar e localizar outro link que esteja associado ao
assunto. (L2)
R3: O interesse e a clareza com que o assunto foi exposto tornando
fácil o entendimento. Levei em conta também a possibilidade de
ligação entre os assuntos relacionados ao tema que pesquisei.(L3)
R4: Após escolhido o assunto e relacionados os itens, seleciono
aqueles que me parecem estar associados à minha busca. Procuro um
texto que seja de uma boa elaboração sem tornar o assunto monótono.
Até porque temos que selecionar o que é de qualidade ou não, pois a
internet traz uma gama de assuntos relacionados. Temos que ter
discernimento para fazer essas escolhas. (L4)
R5: Título, abordagem do assunto pesquisado. Acho que todo um
contexto influencia na leitura.(L5)
94
Os leitores serão indicados ao final das seqüências da seguinte forma: L1, L2, L3, L4, L5.
160
Com efeito, a partir da análise dos recortes (R1 a R5), notamos que o hipertexto
pressupõe uma textualidade orgânica, em oposição a uma textualidade mecanizada.
Examinando, no R1, a resposta de L1 “Me guiei pela associação do tema.”, percebe-se que
não há sentido em considerar o texto digital como um confuso emaranhado de links e
informações, pois o leitor torna-se o ‘centro’ da coerência de sua pesquisa. Não queremos
dizer com isso que o leitor detém o sentido do texto que está linkando, pelo contrário, o que se
quer enfatizar é o fato de que os sentidos, não existindo em si, nem estando ligados a um
processo de decodificação feito pelo leitor, estão ligados, sobretudo, às relações engendradas
no momento em que o leitor entra em contato com o texto. Esse sentido existe enquanto
efeito do clicar do leitor e enquanto efeito das escolhas locais que ele realiza. Nos deteremos
aqui, portanto, na relação intrínseca entre a leitura e as condições de sua produção, dado o fato
de que os sentidos existem em potência, atualizando-se quando um leitor é levado a isso. Esse
é o significado de ter o leitor como centro da coerência. Ela não está fora do texto, nem
contida nele, mas existe no momento em que um sujeito mobiliza o texto e o coloca em
relação com uma memória que fará emergirem efeitos de sentido. Vemos essa relação
interdiscursiva nos fragmentos contidos nos recortes como
R2: “Acessando localizo a frase ou a palavra relacionada ao assunto” (L2);
R3: Levei em conta também a possibilidade de ligação entre os assuntos relacionados ao
tema que pesquisei” (L3);
R4: “(...)seleciono aqueles que me parecem estar associados à minha busca.” (L4)
Quando aventamos o fato de que um efeito de textualização que antecede a
textualidade, percebemos, sobretudo, que os efeitos do trabalho simbólico é que permitem a
caracterização de um texto. relações de ordem externa que produzem efeitos no tecido
lingüístico. Vemos isso na necessidade de relação e associação que os leitores em na
formação de seus hipertextos. E estes são, antes de tudo, formados por esse trabalho de
textualização, de engendramento entre os sentidos estabelecidos e aqueles que se formam
durante o trabalho de conexão.
Voltamos, para tanto, a Indursky (2001) e à sua noção de texto como Heterogeneidade
Provisoriamente Estruturada, para enfatizar, com base no recorte 2 a formação dos
hipertextos e de sua metamorfose contínua, pois cada gesto de leitura se coloca diante de nós
como um resultado de um mecanismo discursivo que orienta a formação dos hipertextos e, ao
passo que cada leitor se move na tela, a estrutura muda, as ligações se complexificam.
161
Percebemos com isso a evidência da não passividade do leitor, que se torna mais
responsável pela formação de seu hipertexto. Quando L2 menciona Se eu não gostar,
procuro voltar e localizar outro link que esteja associado ao assunto (...)”, podemos
considerar a importância da possibilidade de retorno no percurso, a possibilidade
infinitamente superior que o texto digital traz em relação ao texto impresso de mudar de
direção durante a leitura e, ademais, a natureza não-linear desse texto, o que o torna mais
fluido.
Analisando ainda R2, vemos que L2 deixa clara a não passividade do leitor. Isso
subsume que leitor e texto estão constantemente se re-significando, dada a possibilidade de
reconfiguração que o suporte digital possibilita ao leitor. Esse recorte nos fez voltar às
considerações da Lingüística de Texto acerca do hipertexto e dos processos de leitura.
Voltaremos a dois recortes retirados de Xavier (2004) e de Koch (2002):
[...]esse princípio não-linear de construção do hipertexto pode tanto contribuir para
aumentar as chances de compreensão global do texto, como também o risco de
essa falta de linearidade fragmentar o hipertexto de tal maneira a deixar o leitor
iniciante desorientado e disperso. O uso inadequado dos links pode dificultar a
leitura por quebrar, quando visitados indiscriminadamente, as isotopias que
garantiriam a continuidade do fluxo semântico responsável pela coerência, tal
como ocorre numa leitura de texto convencional (2004:173 – grifos nossos)
{...}atar os hiperlinks de acordo com certa ordem discursiva e semântica é essencial
para garantir a fluência da leitura e a drenagem da compreensão sem excessivas
interrupções e/ou rupturas (2002:65 – grifos nossos)
Nosso retorno a esses recortes se justifica para atestar o que desde o início suspeitamos
sobre a orientação da LT: o olhar da LT para o hipertexto é falacioso e inconsistente, pois não
abrange as profundas modificações que esta textualidade traz para os estudos do texto.
Percebemos, por outro lado, que ruptura e não-linearidade não contribuem para que a leitura
sofra perdas na constituição do sentido, pelo contrário, atestam a atividade plena do leitor
diante da tela.
Corrobora com essas constatações o R6 (L2
95
) que faz parte do processo de reflexão
sobre os percursos realizados pelos leitores. Cabe indicar aqui que esta questão tem especial
relevo pelo fato de que, diante das respostas que L2 nos forneceu no questionário escrito,
notamos a familiaridade deste leitor com os processos de leitura em hipertexto e,
primordialmente, uma reflexão crítica deste leitor em relação à linkagem. Nesse sentido, foi
95
Esta seqüência faz parte de indagações feitas pela pesquisadora acerca das respostas dos leitores. Trata-se de
um seqüência originada de conversas espontâneas, diferente das seqüências anteriores.
162
feita a seguinte pergunta com a finalidade de indagar o leitor sobre a orientação da leitura e a
busca de coerência:
Pesquisadora: Quando tu falas em links mais interessantes, há, então,
uma triagem do percurso de leitura antes de entrares nos textos?
R6: Sim, os links, principalmente os do menu de entrada, contém
pequenas frases que resumem o início dos textos. Isso me leva a
escolher os adequados para a busca a que me proponho. No entanto,
sempre entro nos textos para ver se há sublinks, pois vários outros
textos podem estar ligados a um texto que não é de meu interesse.
Muitas vezes, o texto que estava no menu de entrada não é
interessante, mas os sublinks que estão em sua janela abrem textos
melhores...(L2)
Com base no que L2 colocou, fica claro um ponto essencial para nossa investigação: o
caráter heterogêneo do percurso de leitura. A reflexão deste leitor nos ajuda a pensar que L2
está plenamente consciente das possibilidades de acesso que a tecnologia digital lhe fornece,
mesmo que a natureza dos acessos, as motivações para acessar determinados links e não
outros não esteja nesse nível de consciência. As reflexões desse leitor nos auxiliam a negar
que rupturas e voltas (actemas), no percurso de navegação, possam comprometer o processo
de leitura (textualização), pois este processo está formando-se num nível simbólico em que a
plena atividade subjetiva interfere na conectividade dos textos e garante a singularidade dos
percursos de linkagem. Voltamos a Orlandi quando constata que o texto é multidimensional
enquanto espaço simbólico (2004:14).
Observando o recorte em questão, percebemos que a coerência do percurso parte do
leitor, em uma posição de amarrador de seu hipertexto e, por isso, as interrupções, o retorno
quando um link não traz a informação desejada, são sinais de que o acesso à informação e às
formas de sua interpretação são mais potencializados, alijando a cristalização do texto
(isotopia) como um espaço gido formado de itens separados e isolados. No hipertexto, pelo
contrário, o entrelaçamento de seções relevantes, que realçam uma seção antiga,
fornecendo um novo caminho para um novo material ou mostrando como uma nova
contribuição ilumina ou responde à outra gina. Além disso, temos uma visão mais
sofisticada do processo de leitura. O sujeito do discurso chama de sublinks os links que estão
embutidos dentro de outros textos. O leitor aponta a importância do que chama de sublinks:
163
No entanto, sempre entro nos textos para ver se sublinks, pois vários outros textos podem
estar ligados a um texto que não é de meu interesse (...) - (L2). Essa fluidez ajuda a romper
com os textos monolíticos para que a escritura possa ser re-significada a cada novo gesto de
leitura que sobre ela se processa.
Os recortes R3 e R4, assim como R1 e R2, apontam a ligação e a relação entre os
assuntos, atestando que os links funcionam como âncoras de associação, não de fixação.
Temos, no recorte R4, a imprescindível atuação do leitor para a qualidade da navegação. Este
leitor faz uma leitura crítica acerca da leitura em ambiente digital e sua relação com a leitura
em suporte impresso. Diante do fragmento do R4 temos que selecionar o que é de qualidade
ou não, pois a internet traz uma gama de assuntos relacionados. Temos que ter discernimento
para fazer essas escolhas (L4), indagamos o leitor sobre este discernimento. A pergunta feita
pela pesquisadora buscou cotejar uma maior reflexão do leitor em relação ao processo de
leitura e à formação de hipertextos, bem como quanto às condições de produção da leitura.
Para isso, perguntamos:
Pesquisadora: E quanto ao discernimento que tu disseste ser
necessário no momento da escolha dos links, tu achas que o texto
digital apresenta mais profusão de informações do que o impresso,
por isso a seleção deve ser mais atenta?
R7: Veja, eu acho que assim como tem muita informação inútil e que
deve ser descartada na internet e que ninguém vai navegar (como tu
diz) em busca do nada, o livro deve ser também selecionado. Tem
muita coisa ruim nas prateleiras das universidades. Na minha área,
por exemplo, existem livros de quinta categoria. Acho que esse
discernimento está em cada pessoa, independente do lugar em que se
lê. (L4)
Neste recorte (R7) evidenciamos que o leitor em questão tem “consciência
96
” da
responsabilidade sobre o processamento de sentidos num texto. Junto à reflexão de L4
colocamos a resposta de L5 à questão. Este leitor demonstra, assim como L4, a consciência de
sua efetiva participação na formação de uma rede textual coerente, mas vai além da reflexão
96
A questão de o leitor ter consciência de sua ação sobre a construção de sentidos está ligada ao imaginário de
ser fonte de seu dizer e de seus movimentos interpretativos.
164
engendrada por L4, pois, no R5, quando o leitor diz (...) Todo um contexto influencia a
leitura, vemos que ele coloca a questão do contexto como constitutiva da leitura e da
produção de sentidos. Diante disso, é incontornável reconhecer que o leitor leva em
consideração as condições de produção em que ocorre cada leitura. Os leitores demonstram,
em suas falas (recortes), a especificidade que as condições de produção tem no processo de
linkagem. Tendo as CP como a forma de delineamento dos sentidos pelas relações
estabelecidas entre sujeito-língua-exterioridade, notamos que esses leitores buscam uma
associação contínua entre os temas pesquisados, essa associação é ligada a cada gesto de
leitura.
É fundamental vermos, com base no que os sujeitos da pesquisa evidenciam, que a
leitura é direcionada por eles e que as redes hipertextuais que se formam durante os acessos
são efeitos de escolhas que eles fazem diante das possibilidades de linkagem. Esse imaginário
é, sobremaneira, importante para a constituição do sujeito-leitor, enquanto efeito e,
conseqüentemente, para o texto como efeito. Isso fica claro nas seguintes expressões
utilizadas nessa primeira parte do questionário:
L1: Diante das opções que tive, selecionei as que foram mais interessantes para a realização
da minha pesquisa;
L2: Se eu não gostar, procuro voltar e localizar outro link que esteja associado ao assunto;
L3: Levei em conta também a possibilidade de ligação entre os assuntos relacionados ao tema
que pesquisei;
L4: Após escolhido o assunto e relacionados os itens, seleciono aqueles que me parecem
estar associados à minha busca;
Isso acentua a questão do texto enquanto heterogeneidade provisoriamente
estruturada, conforme vínhamos explanando com vista às formulações de Indursky, pois, para
cada leitor, a rede de conexões que realiza é clara, fato que faz com que cada momento e
perspectiva interfiram na formação de um hipertexto que parece ser diferente e único. Aqui se
entrelaçam os efeitos do sujeito-leitor, do efeito-texto e dos efeitos de sentido que se
instauram. Esse é um resultado dos movimentos de esquecimento engendrados em AD.
Voltamos a abordar o fato inconteste de que um texto é uma unidade de significação em
relação a uma situação tal como aponta Orlandi (1996).
Passemos a segunda questão que compõe este bloco. Neste momento, incidiremos
sobre o conceito de contexto e sua mobilização, segundo os leitores, na leitura em hipertexto.
165
2ª)Como você explica o contexto no caso da navegação em ambiente digital?
Analisamos seis recortes (R8 R12) que incidem sobre a concepção de contexto e sua
influência no percurso. Investigamos até que ponto o leitor percebe o contexto como
determinante de sua leitura na web e, ademais, como o leitor reflete sobre a importância da
contextualização:
R8: Eu acho que tudo está ligado ao objetivo da pesquisa no momento
e os próprios textos que estão relacionados indicam as possíveis
ligações que podemos fazer. (L1)
R9: Oriento minha pesquisa de acordo com o assunto que escolhi,
mudando de link quando o conteúdo não está associado à pesquisa.
Acho que contextualizar a leitura é fazer essa relação com meus
interesses.(L2)
R10: As informações estão ali, sendo necessário apenas selecionar o
que é interessante ou não, sendo que esta seleção está
condicionada por um interesse mais amplo de pesquisa. Também
adquirimos outras informações que podem mudar o foco de interesse
da pesquisa, devido ao número de informações disponíveis. (L3)
R11: Tudo o que procuro na internet está sempre relacionado com
meus interesses, assim, sites que não têm um assunto que me chame
atenção, ou que não traz nenhum tipo de informação produtiva, ligada
à realidade, são os que eu nem olho. (L4)
R12: Eu entendo por contexto a delimitação do tema em consonância
com que o se está buscando na pesquisa, a clareza, a coerência com
que os assuntos são ligados. Nós vamos para a internet com uma
pré-opinião. (L5)
Os recortes em questão nos auxiliam a ver relações com o processo de produção do
hipertexto, pois inscrevem a noção de contexto em um espaço semântico representado pelos
166
interesses dos leitores. A aproximação entre contexto e interesse dos leitores faz com que as
perspectivas de L1 a L5 estejam pautadas por uma ordem em que contexto é pano de fundo
imediato da produção de sentidos. Nesses termos, nos perguntamos: em que medida se pode
pensar na relação entre o que a LT trata por contexto e o que a AD tem como condições de
produção? Ainda devemos ensejar o fato de que as motivações do leitor e a construção
discursiva são opacificadas para os sujeitos, dadas as condições históricas que determinam a
leitura e a reflexão sobre ela.
Dessa forma, buscamos respaldar nossas considerações no fato de que as condições
históricas que intervêm nas práticas de leitura são opacificadas porque o lugar da escola e do
cerceamento das práticas interpretativas é forte na historicidade desses sujeitos, para quem
‘contexto’ é um componente útil e complementar do sentido e não constitutivo. É lugar
comum a escola propiciar o primeiro contato do estudante com textos através da noção de
contexto, falando em contextualização da leitura. Tanto a produção, quanto a leitura de textos
orais e escritos é direcionada pelos professores para ser contextualizada. Para tanto, esta
palavra sugere, no âmbito formalista da LT que
a análise contextual é um complemento da análise lingüística fora de contexto, ela
vem depois, para complementar o que ficou por complementar: isto é, o contexto ‘só
se invoca quando necessário’, como, por exemplo, para desfazer ambigüidades,
justificar efeitos de sentido (polissemia, sentido indireto), ‘salvar’ um enunciado que
se apresenta como desviante, retificando interpretações a priori anormais, completar
a interpretação (no caso de expressões indiciais, anafóricas, exercendo, assim, o
papel de ‘saturador’) (KOCH, 2002:27 – grifos nossos)
Diante disso, temos uma concepção de contexto como componente exterior à língua e
ao texto, como um elemento a ser usado para desfazer ambigüidades e para sanar dúvidas dos
leitores. Isso implica uma noção de sentido imanente e preso às formas lingüísticas, bem como
uma noção de sujeito decodificador. Quando são usadas expressões como: o contexto ‘só se
invoca quando necessário’; é componente tomado para salvar’ um enunciado que se
apresenta como desviante; além disso exerce o papel de ‘saturador’, temos que levar em conta
o campo teórico da LT e as restrições que traz à tona quando trata dos processos
interpretativos. De nossa parte, evidenciamos, com os recortes analisados, que os leitores
entendem o contexto como um cenário imediato em que estão inseridos para efetuar sua
leitura. Não se dão conta, por exemplo, que a contextualização de que estão tratando está
ligada a interesses muito específicos e regionais de leitura. Essa relação entre contexto e
interesses particulares de leitura é que nos leva a tomar a noção de condições de produção da
AD.
167
Temos por condições de produção, junto com Courtine, a relação da materialidade
lingüística de uma seqüência discursiva com as condições históricas que determinam sua
produção (1982: 246), o que estabelece uma relação intrínseca da língua com as práticas
sociais. Em vista disso, as CP representam o ponto em que um seqüência discursiva relaciona-
se com o sujeito do saber de uma formação discursiva (em nosso caso a FD acadêmica), numa
conjuntura histórica e, dado o caráter caráter intrínseco da contradição, a heterogeneidade é
característica inerente a FD. Essa heterogeneidade traz a instabilidade para o processo
discursivo e, primordialmente, não aprisiona o sujeito num espaço delimitável de enunciação,
pois as condições de produção, se pautam pela possibilidade de análise de um domínio de
memória, anterior à enunciação e que intervém de maneiras diferentes para diferentes sujeitos,
em diferentes lugares de enunciação. Ademais, a análise do discurso procura, com a
compreensão da historicidade, constitutiva da prática discursiva, contemplar o fato de que a
enunciação não pode ser reduzida ao conhecimento da língua, tal como “evidenciado” pela
lingüística. A AD busca, na discursividade, enquanto efeito da relação da materialidade da
língua com a materialidade da história, atentar para que o discurso, além de operar no campo
de um sistema lingüístico, coloca em jogo uma (re)apropriação da língua por sujeitos inscritos
numa ordem social e identificados a uma ou outra FD e cujas enunciações se produzem a
partir das relações entre os lugares que ocupam na ordem social, a forma como são
interpelados como sujeitos e o modo como as continncias tomadas na história os afetam.
Para tanto, retomando que o discurso é tomado como uma atualidade (enunciação) e uma
memória (interdiscurso), vemos na análise desses recortes a constatação da intrincabilidade
entre a reflexão que os leitores fazem dos percursos de leitura e a interdiscursividade
instaurada pelo jogo de sentidos que se cruzam, seja para divergir ou para convergir.
Voltamos às noções da LT para observar que é notório que ou língua e contexto estão
separados, como se a mobilização da língua ocorresse numa etapa de ‘uso’ do código e que
posteriormente este código fosse contextualizado ou, numa outra ordem, que o sujeito tenha
internalizados (conscientemente) os conhecimentos necessários para a correta mobilização da
língua. Se olharmos de perto esse discurso da LT e os recortes em análise, percebemos que
um imaginário muito forte, enraizado nas concepções de leitura, escritura e textualidade,
cunhado na escola. Essas concepções não concebem as práticas de leitura a não ser como
reprodução do que um autor propôs. Para essa tradição escolar são mais perigosos os riscos da
leitura do que sua difusão. Vamos acompanhar como esse imaginário está inculcado nos
leitores nos recortes a serem analisados, uma incidência muito grande de termos e
expressões como ‘linearidade’, ‘controle’, comando do texto’, ‘leitura direcionada’, além do
uso exaustivo de primeira pessoa como afirmação de que os sujeitos ‘vêem-se’ na origem do
168
sentido. Obviamente, esta é uma herança da tradição escolar que prima por uma concepção de
contexto como realidade imediata e sem ligação com as condições de produção dos processos
discursivos dos sujeitos autor e leitor. Nosso ponto de vista é o de que o discurso sobre o
contexto, no âmbito da LT, é o discurso que predomina na escola, fazendo com que o aluno
(leitor ou escritor) não reflita acerca de suas produções e sobre as interferências das
determinações pessoais (históricas, sociais, culturais) no processo interpretativo.
Em vista disso, temos, nos recortes, uma representatividade nas explanações acerca do
contexto que aparece, invariavelmente, associado a uma realidade imediata. Vejamos: no R8,
L1 menciona a ligação do contexto ao objetivo da pesquisa no momento: Eu acho que tudo
está ligado ao objetivo da pesquisa no momento e os próprios textos que estão relacionados
indicam as possíveis ligações que podemos fazer; L2, no R9, parte para uma questão mais
pessoal, como a ligação da leitura com os interesses do leitor: Oriento minha pesquisa de
acordo com o assunto que escolhi, mudando de link quando o conteúdo não está associado à
pesquisa. Acho que contextualizar a leitura é fazer essa relação com meus interesses; no R11,
L4 indica claramente que a produtividade da informação é sua ligação com a realidade. É
oportuno colocar em tela, no entanto, que, sem perceberem, esses leitores distanciam-se da
rigidez e do hermetismo dos conceitos cristalizados pela escola, dado que os três recortes nos
conduzem a ver que um desenvolvimento mais complexo da concepção de contexto para
estes leitores, dado que, para eles, o contexto representa os dados da realidade que vêm ao
encontro de seus interesses, portanto, é visto por eles como um recorte necessário da ordem
do real, pois relacionados à simbolização e não mais à objetificação do texto.
Cotejando essa complexificação da idéia de contexto, temos nos R10 e R12, uma
orientação que nos permite ensejar a complexidade da noção de contexto e sua passagem às
condições de produção, pois, no R10 temos que seleção dos links está condicionada por um
interesse mais amplo de pesquisa (L3); e no R12 temos que nós vamos para a internet com
uma pré-opinião (L5). Essas duas afirmações nos auxiliam a ver que, no momento da leitura,
os leitores têm necessidade de recortar condições próprias, regionais para a formação de seu
percurso. Aproximando-se do conceito de condições de produção, estes leitores nos permitem
vislumbrar que não são claras para eles as interferências dos fatores externos no processo de
leitura, no entanto, apontam que essas interferências partem de suas vivências. Assim, quando
pensam em interesses para produzir suas associações e, conseqüentemente, seu hipertexto,
eles estão engendrando relações mais profundas. L5, por exemplo, faz uso do termo ‘pré-
opinião’ que estabelece um limite entre o que é de uma ordem geral como o termo ‘realidade’
e o que pontua uma ordem de interpretabilidade mais singularizada. Isso traz à tona o fato de
que as pessoas lêem sempre em relação ao que suas condições históricas lhes permitem, o que
169
evidencia a existência de uma imbricação entre o texto em tela e as CP de leitura do sujeito-
leitor. O texto estará sempre no limite tenso entre o que está materializado lingüisticamente e
todas as práticas que intervêm em seu domínio instituindo sentidos diversos. Este leitor
entende que os sentidos se mobilizam, para ele, a partir de um lugar que está pré-
determinado, mas ele não tem consciência desse processo, visto que o gesto de clicar e
‘selecionar’ textos não aparece como implicado nas relações de pertencimento desse sujeito a
lugares sociais e filiações históricas que o determinam. O imaginário da leitura decodificadora
e da detenção dos sentidos do/no texto fica bastante nítido aqui. Contudo, do ponto de vista
teórico em que nos colocamos não se pode falar na existência “Da leitura”, mas de gestos de
leitura. Não há, para o analista de discurso, ‘O Texto e Sua Leitura’, sim uma rarefação
desses conceitos estanques, que resulta na rarefação do sujeito leitor. Isso entra em choque
com os conceitos da LT.
É preciso matizar aqui que esse imaginário de leitura uníssona, de texto completo e
esse desconhecimento dos fatores que influenciam na interpretação advêm do fato de que o
sujeito precisa imaginar-se na fonte de seu dizer, de seu fazer sentido, tal como vislumbramos
anteriormente. Adentra-se na zona dos esquecimentos necessários à criação do efeito texto.
Pêcheux asseverou isso quando disse que a questão da constituição do sentido junta-se à
constituição do sujeito, e não de um modo marginal (por exemplo, no caso particular dos
‘rituais’ ideológicos da leitura e da escritura) mas no interior da própria ‘tese central’, na
figura da interpelação (1997b: 153-154).
No que tange a essa particularização, e acentuando a opacidade das interferências das
condições de produção na interpretação, voltamos a L4, no final da R11, quando fala sobre
alguns hiperlinks disponíveis para acesso: (...) o os que eu nem olho. Perguntamo-nos: por
que o sujeito não lança seu olhar para determinados links e textos? Nesses termos, a produção
discursiva desses leitores-navegadores começa a colocar em movimento as relações
interdiscursivas, as redes de saberes que clivam os processos de interpretação. Buscamos
Lebrun para refletir a respeito:
Todo leitor diante de uma obra a recebe em um momento, uma circunstância, uma
forma específica e, mesmo, quando não tem consciência disso, o investimento
afetivo ou intelectual que ele nela deposita está ligado a este objeto e a esta
circunstância. Vemos, portanto que, de um lado um processo de
desmaterialização que cria uma categoria abstrata de valor e validade transcendentes,
e que, de outro, múltiplas experiências que são diretamente ligadas à situação do
leitor e ao objeto no qual o texto é lido (1999: 71)
O que importa explorar das palavras do autor é que há, para autores e leitores, modos
de percepção, hábitos culturais, conhecimentos que fazem com que um texto seja muitos,
170
mesmo que no plano da forma ele seja um só. Essa multiplicidade fica ainda mais evidente
com a digitalização e a conexão de textos em rede. Lebrun destaca, em contrapartida que,
com o advento do texto digital abre-se uma reflexão inversa, indo das formas em direção ao
que elas transmitem, atendo-nos à diversidade das significações de um ‘mesmo’ texto quando
mudam suas modalidades de difusão (Ibid: 73).
Complementando este bloco, selecionamos recortes que atestam a diferença entre
suporte impresso e digital. Passamos aos recortes da 3ª pergunta que compõem o bloco I:
3ª) Após a navegação, que fatores propiciam a diferenciação entre texto em suporte
impresso e o texto digital (hipertexto)?
A questão que se impõe agora incide sobre a reflexão acerca da nova textualidade que
se faz presente para o leitor, o qual se diante de uma avalanche de inovações tecnológicas
que acabam o ‘enredando’ nessa rede de conexões em que, cada vez mais, ele é levado a
acessar, fazer escolhas e percorrer a rede digital. Refletindo acerca da passagem do texto ao
hipertexto, esses recortes nos possibilitam ver diferentes posições-sujeito no interior da FD
acadêmica.
R13: Acho a leitura em meio digital mais interessante, devido à sua
dinâmica: é possível fazer relações com outros textos de maneira
muito rápida e até por causa das possibilidades de animação. Esse
tipo de coisa torna a leitura menos monótona. Todavia, eu prefiro
fazer leitura em texto impresso e sei que muitas pessoas preferem. Em
primeiro lugar porque faço anotações no papel e, em segundo lugar,
porque acho mais fácil acompanhar a leitura (em termos físicos
mesmo). Não sei explicar direito o porquê, mas percebo que é mais
fácil acompanhar a linearidade da leitura no papel, talvez pela
posição em que o texto se encontra. Pode ser que simplesmente
estejamos mais acostumados com a leitura do texto nessa posição e,
por isso, seja mais fácil. (L1)
R14: A busca na internet é mais rápida e resulta em mais opções. Os
principais subtemas são bem destacados, possibilitando correr o texto
e ler ape nas o que interessa. Podemos sair de um texto e entrar
em outro de acordo com nosso interesse. (L2)
171
R15: O texto impresso é limitado, está contido em si. Já o texto digital
propicia a busca, a pesquisa de forma ampla pelo número de
informações disponíveis ao mesmo tempo. O texto impresso segue
uma direção para o assunto, enquanto o texto digital não. São
apontadas direções variadas. (L3)
R16: O texto impresso é mais restrito, o digital possibilita que a
pesquisa seja bem mais ampla e aprofundada. (L4)
R17: Na internet há uma amplitude de autores, de opiniões. Isso
propicia uma visão geral. O texto impresso se limita à um ponto de
vista, o que limita a pesquisa do leitor. Há a existência da contradição
que raras vezes existe no texto impresso que segue uma linha
direcionada. Por exemplo, havia no meu percurso um link sobre cotas
para docentes, usando o exemplo da universidade do Mato Grosso do
Sul. Temos, portanto, uma abrangência bem maior. o ponto de
vista positivo e negativo coexistindo na tela. (L5)
É preciso estabelecer aqui uma orientação: a de que as heranças do domínio discursivo
escolar mostram-se muito fortes com seu discurso de cerceamento do texto e de sua
interpretação. Vemos isso no R13 (L1): (...) eu prefiro fazer leitura em texto impresso e sei
que muitas pessoas preferem. Esta preferência não é clara para L1, dada sua identificação
com uma tradição escolar: Não sei explicar direito o porquê, mas percebo que é mais fácil
acompanhar a linearidade da leitura no papel, talvez pela posição em que o texto se
encontra. Conforme já vinha sendo colocado em pauta nas análises precedentes, notamos que,
quando chamado a colocar em contraponto a leitura em texto e em hipertexto, o sujeito filia-
se a sentidos dominantes que vêm da escola, propagadora dos princípios da LT, pois o cânone
escolar define uma leitura legítima que é a linear. É importante salientar, por exemplo, que a
escola parte da busca pela linearidade, pelo respeito às margens do texto, pela interpretação de
um sentido literal, contido no código. Geralmente, é feita a seguinte pergunta para o aluno: “o
que o autor quis dizer?”. Esta mesma questão encontramos na ordem da lingüística de texto.
Fica claro aqui que esse leitor busca a linearidade e a isotopia do texto, pois isso faz parte de
sua identificação com um discurso propagado pela escola.
172
Como toda discursividade relaciona-se com uma materialidade histórica, ao estudar
R14 evidenciamos o retorno desses saberes instituídos acerca da leitura na escola. Para tanto,
numa análise em que sujeito e linguagem são pensados na relação com o inconsciente e com a
ideologia, essa seqüência mostra que não pode existir controle que apague aquilo que de fora
se projeta no leitor e que interfere no uso da materialidade da língua.
Ademais, nesta mesma seqüência encontramos o uso do adjetivo ‘fácil’ que predica o
processo de leitura em suporte impresso. Isso corrobora com todo um movimento das
Lingüísticas de Texto para diminuir o grau de exigência para o leitor em prol de uma
simplificação da legibilidade. Para o sujeito do discurso o hipertexto supõe uma leitura que
está fora daquela legitimada pela instituição escolar, por isso menos ‘fácil’ e, de certa forma,
‘negada’ como a ideal.
Os recortes analisados matizam a existência de duas posições-sujeito no interior da FD
acadêmica: R13 coloca em tela um sujeito influenciado por uma busca pela linearidade. Está
identificado com uma posição-sujeito que legitima o discurso institucionalizado pela escola.
Os demais recortes (R14,R15,R16,R17) trazem uma posição-sujeito dominante na FD em
análise, dado que, em oposição a L1, os demais leitores, estão engajados nos processos de
pesquisa, escritura, leitura em ambiente digital. Formularemos nossa explanação da seguinte
maneira: L1 é o único entre os leitores-navegadores que é professor, portanto, identificado ao
discurso dominante na escola (FD escolar). Estamos diante de uma plena identificação com
um discurso conservador. Podemos, portanto, atestar que a posição-sujeito de L1, na FD
acadêmica, encontra reflexos do discurso propagado pela escola e maculado como ideal.
Em contrapartida, nos demais recortes temos evidenciada uma desidentificação com o
processo de leitura em texto impresso. No R14, o sujeito do discurso menciona a
possibilidade maior de opções que a internet possibilita; no R15 o sujeito predica o texto
impresso com o adjetivo limitado; no R16 esta predicação se faz com o adjetivo restrito: O
texto impresso é mais restrito, o texto digital possibilita que a pesquisa seja bem mais
ampla; no R17, uma construção reflexiva o texto impresso se limita a um ponto de vista,
além disso, L5 atribui a esta limitação o cerceamento da interpretação do leitor. Notamos
aqui, uma seqüência de paráfrases que correspondem à identificação desses leitores com os
ambientes digitais de leitura e escritura:
L3= O texto impresso é limitado, está contido em si. (...)
L4= O texto impresso é mais restrito (...)
L5= O texto impresso se limita a um ponto de vista, o que limita a pesquisa do leitor (...)
173
Em consonância com essas paráfrases está a afirmação de L2, no R14, que tem
implícita a noção de que o texto impresso é limitado ou restrito.
L2= A busca na internet é mais rápida e resulta em mais opções (...)
Quando o sujeito do discurso usa a expressão mais rápida, temos a negação menos
rápida, para seu contraponto; ou quando diz resulta em mais opções, temos a oposição ao
posto resulta em menos opções. Estamos aqui diante de uma relação entre posto e pressuposto
na análise em contraponto. No momento em que dois elementos estão em questão, a
afirmação acerca de um corrobora em implícitos acerca da afirmação do outro. Se um é
menos, implicitamente o outro é mais; se um é restrito o outro o é. Estes recortes atestam
essa polaridade e a identificação dos leitores com posições-sujeito diferentes e a existência de
uma posição-sujeito dominante na FD acadêmica. Essas reflexões nos deram a possibilidade
de ver que a interpretação dos leitores acerca da nova textualidade está ligada à sua
identificação ou não com os sentidos institucionalizados pela escola, o que indica a existência
de diferentes posições sujeito na FD acadêmica. Por um lado, há uma posição-sujeito pautada
por um discurso de ordem estruturalista, condizente com o que a lingüística textual aborda,
pois notamos que em L1 está presente este discurso que nega outras possibilidades complexas
presentes no processo de leitura digital . Por outro lado se faz presente uma posição discursiva
(L2, L3, L4 e L5) que tece críticas às formas tradicionais de produção de sentidos
engendrados pela leitura escolar e apresenta uma maior aceitabilidade da nova textualidade e
de sua complexidade. Vejamos quadro que segue:
174
A paráfrase e o discurso de desidentificação com os saberes dominantes na escola
É menos fácil em hipertexto
Le1=(...) é mais fácil acompanhar a linearidade da leitura no papel (...) PS1
PS identificada com o discurso dominante da escola: discurso formalista.
No texto impresso é menos rápida...
Le2=(...) A busca na internet é mais rápida e resulta em mais opções (...)
O texto digital é ilimitado
PS dominante
Le3= O texto impresso é limitado, está contido em si. (...)
O texto digital é menos restrito
Le4= O texto impresso é mais restrito (...)
O texto digital não se limita a um ponto de vista, não limita a pesquisa do leitor.
Le5= O texto impresso se limita a um ponto de vista, o que limita a pesquisa do leitor (...)
Posições-sujeito desidentificadas com o discurso dominante da escola
O que até aqui se apresentou foi uma interpretação dos leitores acerca de fatos gerais
como a leitura em ambiente digital, as diferenças entre texto e hipertexto. Neste momento,
175
importa retomar a reflexão que fizemos acerca do hipertexto como condicionante ou
determinante. Em seção anterior, Baudrillard (2002) subsume que a circulação de informações
em excesso e a rapidez com que elas chegam até os sujeitos faz com que estes não
contemplem mais com a devida atenção as informações que acessam, trata-se, para o autor, de
uma descentração da razão, um apagamento da memória. Esse ceticismo estaria justificado se
levássemos em conta, sem um olhar mais aguçado, discursos como o do sujeito L1, no R13,
quando diz: Acho a leitura em meio digital mais interessante, devido à sua dinâmica: é
possível fazer relações com outros textos de maneira muito rápida e até por causa das
possibilidades de animação. Esse tipo de coisa torna a leitura menos monótona. Todavia, eu
prefiro fazer leitura em texto impresso e sei que muitas pessoas preferem. Em primeiro lugar
porque faço anotações no papel e, em segundo lugar, porque acho mais fácil acompanhar a
leitura (em termos físicos mesmo). Não sei explicar direito o porquê, mas percebo que é mais
fácil acompanhar a linearidade da leitura no papel. Obviamente, se levarmos em
consideração a posição-sujeito de L1, temos um discurso pautado pela não-complexidade nos
movimentos interpretativos e pela linearidade textual. Esse tipo de discurso estabelece
ligações com os dizeres da escola e das disciplinas de lingüística de texto. Por outro lado, se
analisarmos mais atentamente a outra posição-sujeito ensejada aqui, em que leitores como L2,
L3, L4 e L5 evidenciam uma maior acessibilidade às informações através da textualidade
digital, notamos que o discurso baudrillardiano contém precauções em relação à chamada
mecanização da memória. Voltemos aos recortes de L2, L3, L4, L5:
A busca na internet é mais rápida e resulta em mais opções. Os principais subtemas
são bem destacados, possibilitando correr o texto e ler apenas o que interessa.
Podemos sair de um texto e entrar em outro de acordo com nosso interesse. (L2)
O texto impresso é limitado, está contido em si. o texto digital propicia a busca, a
pesquisa de forma ampla pelo número de informações disponíveis ao mesmo tempo. O
texto impresso segue uma direção para o assunto, enquanto o texto digital não. São
apontadas direções variadas. (L3)
O texto impresso é mais restrito, já o digital possibilita que a pesquisa seja bem mais
ampla e aprofundada. (L4)
Na internet uma amplitude de autores, de opiniões. Isso propicia uma visão geral.
O texto impresso se limita à um ponto de vista, o que limita a pesquisa do leitor. Há a
existência da contradição que raras vezes existe no texto impresso que segue uma
176
linha direcionada. Por exemplo, havia no meu percurso um link sobre cotas para
docentes, usando o exemplo da universidade do Mato Grosso do Sul. Temos,
portanto, uma abrangência bem maior. Há o ponto de vista positivo e negativo
coexistindo na tela. (L5)
Obviamente, a busca pela rapidez faz com que a coloquemos em contraponto com a
questão da crítica e da reflexão necessária sobre o que está sendo lido. No entanto, a rapidez
de acesso às informações não quer dizer que estas não estejam passando por uma absoluta
triagem pela subjetividade em ato. Isso é fundamental apontar: o sujeito acessa rapidamente,
mas sua prática de leitura nunca vai estar desvinculada de um processo simbólico. O recorte
de L2 (R14) nos possibilita ensejar esta questão: A busca na internet é mais rápida e resulta
em mais opções. Os principais subtemas são bem destacados, possibilitando correr o texto e
ler apenas o que interessa. Podemos sair de um texto e entrar em outro de acordo com nosso
interesse. Vemos que o acesso a subtemas, a seleção daquilo que está relacionado à pesquisa
em ato, exigem que o leitor esteja não apenas manuseando o suporte em que se dá a prática de
leitura, mas que este leitor, antes de tudo, esteja envolvido na montagem complexa de um
texto, em que recortes estejam intertextualmente e interdiscursivamente ligados. Essas
relações intertextuais e interdiscursivas dependem da ação subjetiva que estrutura seu
hipertexto, sempre relacionado ao interdiscurso que fala o sujeito, às contingências do
momento histórico, às filiações discursivas do leitor/produtor. Optamos, então, por pensar que
o que subjaz a esta rapidez é o fato de que o leitor abandonou a passividade. L2 diz: Podemos
sair de um texto e entrar em outro de acordo com nosso interesse; L5 diz: Há a existência da
contradição que raras vezes existe no texto impresso que segue uma linha direcionada. Essas
falas indicam a possibilidade de imbricamento, numa mesma tela em rede, de pontos de vista
discordantes sobre o tema pesquisado, não há uma seleção prévia, induzindo a um ponto de
vista, mas há a relação rizomática entre os pontos de vista, entre textos que falam de lugares
diferentes e apontam para perspectivas diferentes. A seleção está “nas mãos” do leitor.
Travar esse diálogo com Baudrillard (assim como com Ellul ou Virilio) nos permite
ensejar nossas questões com mais ênfase. Trazemos Lebrun para enfatizar, numa perspectiva
diametralmente oposta, a leitura como ato simbólico: A leitura é sempre apropriação,
invenção, produção de significados (...) Apreendido pela leitura, o texto não tem de modo
algum ou ao menos totalmente o sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus
comentadores (1999:77). Ao encontro deste autor trazemos o recorte R14: A busca na internet
é mais rápida e resulta em mais opções. Os principais subtemas são bem destacados,
possibilitando correr o texto e ler apenas o que interessa. Podemos sair de um texto e entrar
177
em outro de acordo com nosso interesse (L2). Com vistas ao que Lebrun destaca e ao efetivo
trabalho construtivo que o leitor demonstra realizar durante seu percurso de navegação
podemos ensejar uma visão cética acerca de Baudrillard, Virílio e Ellul. Notemos que, para o
leitor entrevistado, a conexão contínua, a possibilidade de mudar de caminho e de percorrer
textos diversos é uma necessidade para sua leitura.
A partir disso, passaremos à análise do Bloco 2 que incide sobre a reflexão acerca de
processos de navegação no texto digital e das condições de produção que intervêm nas
práticas de navegação e formação de hipertextos. A proposta, a partir deste momento, é de
analisar as determinações de cada percurso, procurando enfatizar, em contraponto com a LT e
com a discussão filosófica que desenvolvemos com Baudrillard, Virilio e Ellul, que nenhum
percurso de leitura em suporte digital ocorre fora de condições de produção específicas, que
regionalizam os efeitos de sentido. Acerca disso, Lebrun se questiona:
Um livro existe sem leitor? Ele pode existir como objeto, mas, sem leitor, o texto
do qual é o portador é apenas virtual. Será que o mundo do texto existe quando não
ninguém para dele se apossar, para dele fazer uso, para inscrevê-lo na memória
ou para transformá-lo em experiência? (Ibid:154)
Essa nova tecnologia precisa ser vista como fundadora de uma nova relação entre
sujeito e texto, sobretudo como uma rede de textos que, se desvinculada da subjetividade, será
mera virtualidade, sem atualização.
3.5.5 BLOCO II: A reflexão sobre o percurso de leitura-navegação
O que até então foi matizado deflagra, para nós, que as práticas de navegação, em
suporte digital, trazem uma transformação da leitura pelo suporte que a materializa, mas que,
mesmo assim, há ainda um imaginário propagado pelo discurso escolar sobre texto, autor e
leitor, que é alimentado por sentidos dos estudos do texto (LT), os quais são de ordem
estruturalista e que neutralizam os processos interpretativos. É, a partir dessa ilusão de
concentração de um sentido uno num texto específico e de um leitor que tem internalizadas
‘competências’ para desvendar o sentido do texto, que o hipertexto passou a ser enquadrado
no paradigma de estudos de textos. Os recortes que compõem o bloco em análise nos ajudam
a apontar reflexões acerca do texto digital, do processamento da leitura-navegação e, ademais,
acerca da falaciosa inclusão desta textualidade nos parâmetros teórico-analíticos da lingüística
de texto. Temos em conta que, ao produzir um hipertexto, o leitor, no ato de clicar, de zapear,
de retornar, está produzindo efeitos sobre uma materialidade disponível como uma memória
metalizada, delimitada, calculável, mas que está em confluência com a memória discursiva.
178
Dessa confluência resultam gestos de leitura singulares e ligados aos lugares de onde
esse leitor enuncia. A maneira como esse sujeito se relaciona com os lugares sociais, sua
inscrição numa determinada rede de sentidos, orientam a formação do hipertexto como uma
rede semântica em que as escolhas dos links ao mesmo tempo em que abrem as diversas
possibilidades de acesso, fecham outras. Esse gesto está, de nosso ponto de vista, ligado a um
posicionamento específico desse sujeito que aparece, para nós, na discursivização que faz de
seu percurso de navegação. Logo, é na reflexão sobre o percurso de navegação que o leitor-
navegador significa o que fala antes dele e nele se projeta. Neste caso específico, a projeção
se dá nos vários acessos realizados, e nos que deixaram de ser feitos.
É nessa etapa do trabalho de análise que as posições-sujeito se salientam. Tal como
destacado no bloco anterior, uma oscilação na FD acadêmica entre uma PS identificada
plenamente com o discurso institucionalizado e legitimado pela escola e outra PS
desidentificada com esse discurso. Vemos essa segunda posição como dominante na FD em
questão. Atribuímos essa predominância ao largo e amplo desenvolvimento das tecnologias
de comunicação nas últimas décadas do século XX, à larga modernização dos cursos de
ensino superior, ao lugar cada vez mais intenso do computador na vida dos universitários. Por
estes motivos, vemos que o discurso predominante no ambiente universitário, quando se trata
de novos suportes e ambientes de leitura, é um discurso identificado com as novas tecnologias
e que prima pelo lugar cada vez mais intenso de novos suportes de leitura e escritura na vida
escolar e profissional. No entanto, com o bloco de análises em pauta evidenciamos outras
posições sujeito, dado o teor polêmico das questões que compõem o bloco. Enquanto no bloco
anterior tínhamos um lugar evidenciado do universitário e de sua identificação ou não com
um discurso sobre os processos de leitura e escritura, agora temos questões que abordam o
tema usado para a prática de navegação, as quais nos levam a matizar que a leitura em
ambiente digital segue um percurso interdiscursivo que está presente nos acessos.Temos, em
vista disso, uma FD que se evidencia heterogênea pelos lugares a partir dos quais os sujeitos
interagem com um tema de ordem social como o escolhido.
O que as análises do bloco 1 nos mostraram foi a existência de duas PS na FD
acadêmica que se salientaram em relação a um assunto geral como a leitura em suporte
impresso e digital, contudo, neste segundo bloco, em que os leitores analisam seus percursos
de leitura-navegação, com base em um tema polêmico, as PS destacadas começam a
configurar-se por uma relação mais tensa na FD e por influência de outros saberes de outros
domínios discursivos com os quais cada sujeito se identifica. Este estudo nos leva a considerar
a heterogeneidade de posições-sujeito na FD acadêmica, o que constitui o discurso do
estudante, seus conceitos, suas crenças. Nota-se com a análise dos discursos dos leitores-
179
navegadores que sua posição na FD, em relação ao tema tratado, é condicionada por um
mecanismo de identificação com saberes de outros domínios discursivos, tais como o racismo,
a exclusão social, a política e que constituem o sujeito-leitor e orientam a estruturação de seu
hipertexto, o que se reflete nos percursos analisados. Interessa-nos colocar em questão,
portanto, dois pontos:
a) Os significados que perpassam o processo de leitura-navegação são efeitos
do imbricamento de saberes de domínios discursivos diferentes que se
projetam nas posições-sujeito da FD acadêmica;
b) Os hiperlinks que ligam as janelas e formam os hipertextos explicitam não-
ditos, produzem efeitos diversos para cada leitor-navegador;
Para investigar esses pontos analisaremos os recortes 18-48, divididos em duas partes
correspondentes às duas últimas perguntas respondidas pelos leitores formalmente e às
conversas de análise das representações gráficas dos percursos
97
. Para tanto, temos a seguinte
divisão: para a primeira pergunta Como você explica seu percurso de leitura? temos os
recortes 18 – 23; para a segunda pergunta Com o hipertexto, o fechamento pode não se dar da
maneira com que estamos habituados. Levando isso em consideração, que critérios você
destaca para ter encerrado seu percurso de leitura? temos os recortes 24 48. Passemos à
análise:
Como você explica seu percurso de leitura?
R18: Acho que justamente pela possibilidade de associação com
vários textos, a ligação entre os links deve estabelecer uma
linearidade. (L1)
R19: Primeiro leio o tulo e o resumo (ou início do texto) dos links
na ordem em que eles aparecem na tela. Acesso os que me possam
interessar e, em caso negativo, volto à página de buscas. (L2)
97
Essa etapa da pesquisa em que a pesquisadora e os sujeitos leitores conversam espontaneamente sobre os
percursos realizados por cada um, se deu individualmente, num período de mais ou menos 1h. Cada sujeito teve
acesso à representação gráfica de seu percurso, com os links acessados e não acessados, com o número de links
disponíveis para acesso em cada janela aberta. Através dessa análise a pesquisadora passou a questionar os
acessos realizados. O leitor respondia livremente, sem a preocupação em formular uma resposta direta e objetiva,
como no caso das entrevistas. Tratou-se de um momento de reflexão sobre o trabalho realizado no ambiente
digital.
180
R20: Procurei links que estivessem dando uma coerência ao assunto
que eu estava pesquisando. Como a Internet traz muitos links sobre o
mesmo assunto, mas divergentes, com ênfases diferenciadas. Quando
comecei a pesquisa, pensei: qual é o tópico que vou procurar, e me
baseei nisso para negar alguns acessos. (L3)
R21: Há sempre uma associação entre esses links, para que não passe
a abrir textos em vão. Os que abro e não são de meu interesse, fecho e
retorno ao menu principal de busca. (L4)
R22: Fui em busca de links que me motivassem a abrir os textos.(L5)
Neste bloco de recortes, fica aparente o fato de que a formação do percurso de leitura
‘parece’ intencionalmente construída. Todos os recortes apontam sujeitos do discurso que se
colocam num lugar de construtores de seu percurso de navegação, conforme destacamos a
seguir:
Acesso os que me possam interessar e, em caso negativo, volto à página de
buscas (L2)
Os que abro e não são de meu interesse, fecho e retorno ao menu principal de
busca. (L4)
Isso é revelador do que vínhamos apontando nas análises precedentes: o leitor cria
uma ilusão de autoria revelada pela intencionalidade no processo de busca de links para a
composição do texto. Os leitores não são passivos e sua subjetividade é regulada pelo que eles
denominam de “interesse”. O fundamental dessa questão é a ilusão de autoria contida nos
discursos dos leitores.
Trazemos outro recorte das conversas de reflexão sobre as representações gráficas para
ensejar essa ilusão que os leitores têm de estarem numa posição de autoria.
Pesquisadora: E esse movimento de voltar à página de busca não
interfere na criação de teu hipertexto?
181
R23: Não, porque eu estou no comando, não é!!! Eu procuro ligar
da melhor maneira os textos, para isso eu sempre retorno a outros
menus, fecho que não me interessa. Descarto opções em prol de
outras. (L2)
É incontornável o fato de que um imaginário de controle e intencionalidade que
permeia a noção de leitura do sujeito do discurso. Ao usar a expressão eu decido o leitor
imagina-se na fonte dos sentidos que toma para si. O percurso de linkagem é um gesto de
interpretação através do qual os sentidos se produzem e adquirem materialidade.
Essa orientação intencional do sujeito navegador fica explícita no R19, quando L2
quando afirma o seguinte: (...)Acesso os que me possam interessar e, em caso negativo, volto
à página de buscas. Esse gesto de retornar, para o leitor, coloca-se como gico e direto,
contudo, não se trata do ato de clicar em si, mas do percurso, do processo que envolve o
percurso. É mais do que clicar, pois este ato está apenas materializando um processo
interpretativo que dimensiona uma textualidade em plena formação e transformação e este
processo de ir e vir entre textos, de conectá-los, desconectá-los é inteiramente subjetivo e
simbólico, portanto gestual. Acentuamos isso com o recorte que segue, em que o sujeito do
discurso (L2) usa o termo “comando’ para especificar seu processo de leitura-navegação.
Imporá, então, trazer à baila uma posição sujeito que aparece como dominante nos enunciados
e está marcada por duas ilusões: a) a ilusão de autoria e b) a ilusão de controle dos sentidos.
Pela via da análise de discurso, o sujeito empírico/individual assume, pela prática
discursiva, uma posição discursiva que o orienta à produção de sentidos, sem que ele se
conta dessa orientação. Essa é a essência da prática discursiva: pensar não no indivíduo que
mobiliza a língua como se esta fosse um instrumento, mas visa a pensar num sujeito que, a
partir de sua prática simbólica, promove a circulação de sentidos sobre a materialidade
lingüística, circulação que reside na interligação incessante com as práticas sociais. Fazer
sentido, simbolizar, nesses termos, é produzir efeitos com base numa relação maior, anterior
ao indivíduo, que o leva, no lugar de sujeito de discurso, a ocupar distintos lugares, a apontar
para efeitos heterogêneos. As práticas de leitura em ambiente digital, o clicar do hiperleitor,
estão sobremaneira, circunscritos por essa prática simbólica. O leitor desloca-se do lugar de
passividade, para assumir uma posição discursiva que traz consigo marcas do histórico e do
social. Trazemos novamente o recorte das conversas espontâneas para elucidar a explanação
que precede. Quando a pesquisadora questiona L2 sobre se o movimento de voltar à página de
busca não interfere na criação do hipertexto o leitor responde:
182
Não, porque eu estou no comando, não é!!! Eu procuro ligar da
melhor maneira os textos, para isso eu sempre retorno a outros
menus, fecho que não me interessa. Descarto opções em prol de
outras. (L2)
Fica evidenciada aqui a postura de um sujeito que se coloca, desde sempre, na
condução de sua leitura. Alinhada a essa postura está a determinação desse sujeito por um
discurso orientador da plena detenção dos sentidos por parte de um sujeito onipotente,
direcionador e produtor de sentidos estabelecidos a priori, planejados.
Essa opacificação das determinações que interferem nos movimentos interpretativos é
encontrada também quando L3 menciona (...) eu tentei manter uma linha que direcionasse
minha leitura. Quando comecei a pesquisa, pensei: qual é o tópico que vou procurar, e me
baseei nisso para negar alguns acessos. Temos a mesma ênfase com L4: Os que abro e não
são de meu interesse, fecho e retorno ao menu principal de busca.
Temos, então, um movimento parafrástico de sentidos que se reiteram entre os
recortes e que atestam a filiação desses leitores a uma prática de controle da leitura e que
parece expressar-se através de princípios de controle do navegador. De acordo com a AD,
esse processo de reiteração de sentidos dos discursos dos sujeitos-leitores é que atesta,
justamente, o não controle efetivo dos sentidos produzidos sobre a materialidade do texto,
visto que se a identificação dos discursos a um mesmo discurso dominante que legitima
uma prática de escritura e leitura linear. A paráfrase atesta, para o analista de discurso, essa
repetibilidade que coloca os sujeitos enunciadores num mesmo ponto de vista sobre o assunto
em pauta.
Em contrapartida, L5, no R22, explicita, de uma outra forma, que motivações que o
levam a clicar em determinados links e não em outros, no entanto, não continua sua
explicação sobre quais as motivações que os links podem produzir, já que para ele não estão
determinadas essas motivações. Isso ficará melhor explicitado nas análises que seguem.
As seqüências discursivas começam a apresentar sinais de que os percursos realizados
são reflexos de um processo interpretativo maior. Em AD, assume-se que o sujeito é
determinado ideologicamente. Essa determinação opera sobre o sentido. Este, por sua vez,
não está no sujeito, intencionalmente constituído, mas é produzido materialmente a partir de
processos discursivos que se instauram silenciosamente nas práticas de linguagem. Esse
silenciamento tem a função de deixar emergir evidências, imaginários. Tal como vem
sendo exposto, os leitores acreditam em sua plena condução dos percursos, sem se dar conta
183
que eles e seus percursos de leitura são efeitos dos lugares que ocupam em uma ordem social
e histórica. A língua materializa essas projeções e, em consonância com condições de
produção das leituras, cada percurso, mesmo partindo de um ponto comum, formou-se
diferentemente, de acordo com os gestos de leitura de cada leitor. Salientam-se, com base
nisso, os links acessados por cada leitor como materializadores de percursos de leitura
notavelmente singulares para o mesmo tema e com as mesmas possibilidades de acesso. Com
as análises que seguem, fica clara a singularidade dos percursos, e também o fato de que
estes leitores não acreditam em uma “padronização” de sentidos, no fechamento destes.
Convocando, para tanto, os leitores-navegadores, sujeitos da pesquisa, a refletirem sobre o
deslocamento que as idéias de centro, margem e linearidade sofrem frente a uma nova
textualidade baseada na multilinearidade, em nós, links e redes que se bifurcam, passamos à
última questão das entrevistas realizadas, a qual nos permite ensejar a dimensão da relação
entre interdiscurso e texto que passa a ser eletroniacamente mediada.
Com o hipertexto, o fechamento pode não se dar da maneira com que estamos
habituados. Levando isso em consideração, que critérios você destaca para ter
encerrado seu percurso de leitura?
R24: Se eu faço a linearidade eu decido o encerramento do texto, mas
esse encerramento funciona pra mim. Isso é legal porque, por
exemplo, na universidade, vários colegas pesquisam em casa o mesmo
assunto e, quando chegamos na aula, temos textos diferenciados. Isso é
super importante porque eu parei em determinado ponto, meus colegas
foram adiante, acharam outras informações. (L1)
R25: Encerro a pesquisa ou quando coleto todas as informações que
preciso naquele momento ou quando preciso parar de ler. Aí, da
mesma forma que faço com os livros, anoto o link acessado e volto a
acessá-lo em outro momento. Neste caso, encerrei minha busca no
link que fala do projeto de lei com mais isenção e de forma mais
explicativa. Ele foi o único a informar que as cotas são destinadas a
alunos oriundos de escolas públicas e que, dentro dessas cotas,
haverá vagas para negros e índios, conforme a porcentagem dessas
184
raças em cada estado ou país. Os sublinks eram poucos, por isso
fiquei no menu principal. (L2)
R26: Quando encontrei as respostas para o que procurava naquele
momento. Basta pesquisar. Acredito que um encerramento definitivo
como o ato de “fechar um livro” é impossível na rede de textos que a
Internet traz.(L3)
R27: O percurso de leitura só foi encerrado no momento em que
obtive, através da pesquisa, os dados desejados e mesmo assim eu
ainda voltei e procurei mais informações complementares. (L4)
R28: Quando consegui desenvolver o assunto, quando o material foi
suficiente. De forma geral, outro fato que leva ao encerramento da
pesquisa é a repetição. Quando o assunto começa a ser repetitivo
paro, pois links que trazem as mesmas informações. Acho que não
hipertexto fechado porque cada texto trabalha com subitens que
podem não servir para mim, mas que estão ali para outros leitores.
Esse fechamento é implícito, ocorre de maneira virtual, existe
fechamento para o leitor. (L5)
No R24, L1 reitera a necessidade de busca por uma linearidade, o que está em
convergência com as análises anteriores e sua filiação a uma ordem formalista de ver os textos
e os processos de leitura. Além disso, fica ainda mais clara a noção de leitor como orientador
do percurso quando L1 usa as expressões eu faço a linearidade e eu decido (...). O sujeito do
discurso acredita estar conduzindo seu percurso de navegação, o que evidencia o apagamento
das determinações que se refletem na leitura. Podemos aventar aqui o fato de que os sujeitos
assumem de modos diferentes a condição de autoria, pois, ao passo em que, com o hipertexto,
a concepção de passividade se fragiliza, por outro lado, uma relação de autoria entra em cena
na atividade de leitura. A própria idéia de enquadramento do texto entra em tensão com aquilo
que sai fora do quadro, pois os sentidos migram e o responsável por essa transitividade é o
sujeito-leitor que, navegando, produz mais do que o que se presume estar na superfície
textual.
185
A par disso, continuamos indagando L1 acerca dos acessos realizados. Essa etapa foi
importante para salientarmos que é representado, em suas falas, um discurso acerca do ensino
universitário que o direciona a uma minoria. Isso leva a notar que L1 assume ser contra o
sistema de cotas por sua identificação com um discurso elitista acerca do ensino universitário.
Sua interpretação sobre as cotas para estudantes negros baseia-se num impasse entre o “não-
reconhecimento” (ou velamento) da existência do racismo no Brasil e uma vinculação muito
forte a um discurso elitista em que se nega a existência do racismo, pondo resistência a
qualquer política de inclusão social de maior abrangência. Vejamos os recortes que seguem:
Pesquisadora: Quanto à pesquisa solicitada, como tu te posicionas
frente a esse assunto?
R29: Em primeiro lugar, acho que é outra forma de preconceito. Os
"brancos" vão olhar para todo e qualquer "negro" ou "pardo"
achando que estão ali porque lhes foi facilitado o acesso,
independentemente de estes serem capazes de entrar na universidade
como aqueles. Os beneficiados vão ter de lidar com esse tipo de
preconceito dentro da universidade. Além disso, vão ter de "correr
atrás do prejuízo" se quiserem acompanhar o vel de exigência de
uma universidade, dado que as escolas públicas de onde saíram não
lhes preparam o suficiente para ingressarem na universidade (se
preparassem, não precisariam de cotas especiais!).Outro problema é
que, se for constatado que esses beneficiados com as cotas não
acompanham o nível de exigência, duas são as possibilidades: ou
eles irão desistir ou o nível vai ter de baixar e todos saem
perdendo.Além de tudo isso, sei que, quem quer estudar em uma
universidade federal, independentemente de ter estudado em escola
pública ou particular, tem de se esforçar, estudar e abrir mão de
muitos lazeres em função deste objetivo. Quem não se esforça, seja
branco seja negro/pardo, não chega a lugar nenhum. Enquanto não
houver pesquisas genéticas que comprovem que uma raça é melhor
que a outra, penso que todos somos iguais e temos direito às mesmas
oportunidades. Alguns querem mais, outros, menos. Pode parecer que
digo isso porque sou branca, mas ouvi negros que entraram na
universidade federal via vestibular (sem cotas) falarem que estão se
186
sentindo discriminados e que esse novo sistema desmerece a raça
negra. (L1)[grifos nossos)
Os pontos em destaque, no recorte analisado, nos auxiliam a ver o teor do discurso
de L1: um discurso em que o racismo é negado, mas transparece no uso das expressões “os
brancos”; na afirmação de que negros e pardos terão que correr atrás do prejuízo se quiserem
acompanhar o nível de exigência da universidade, como se sua capacidade intelectual fosse
inferior a dos brancos”; ademais, L1 aponta a possibilidade de que todos vão sair perdendo
se o nível de exigência na universidade diminuir. Conforme sinalizado, L1 traz à tona um
discurso que parece de defesa da igualdade racial, mas que trilha um percurso de negação das
políticas afirmativas e de inclusão social.
Diante disso, dos intensos debates que o tema gerou em sociedade e, sobretudo, da
larga divulgação que teve para além da comunidade acadêmica, somos levados a pensar no
seguinte fator gerador de discursos como o de L1: a sociedade democrática moderna abre para
todos os indivíduos a possibilidade de entrar na escola elementar. A alfabetização torna-se
prioritária, no entanto, ao mesmo tempo em que a educação é considerada fundamental, ela
vem acompanhada de uma estrita hierarquização, impregnada de um caráter sectário que
coloca os níveis escolares em relação aos níveis sociais. O ensino universitário encontra-se,
numa escala hierárquica, num nível maior, restrito a uma minoria. A relação do homem com a
educação sempre esteve pautada pelas circunstâncias políticas e econômicas, instauradas por
essa minoria. A existência desse discurso de teor elitista, presente em todos os recortes de L1,
é um exemplo claro de um imaginário social maculado socialmente e culturalmente.
Retornemos aos fragmentos dos recortes de L1 para refletir sobre a questão sociopolítica que
se reflete em seu discurso:
correr atrás do prejuízo” se quiserem acompanhar o nível de exigência de
uma universidade;
se for constatado que esses beneficiados com as cotas não acompanham o
nível de exigência, duas são as possibilidades: ou eles irão desistir ou o nível
vai ter de baixar e aí todos saem perdendo;
Os "brancos” vão olhar para todo e qualquer "negro” ou "pardo” achando
que só estão ali porque lhes foi facilitado o acesso(...)
Pode parecer que digo isso porque sou branca,
É interessante notar que, quando certos atores sociais envolvidos em debates sobre
cotas e ações afirmativas são indagados quanto às notórias dificuldades que a divisão e o
recorte racial promovem em sociedade, com freqüência, lançam mão de uma negação desse
187
racismo velado, optam por um opacificação das determinações sociais que sofrem, em prol de
um discurso anti-privilégios, mas, como no caso de L1, não deixam de dizer “nós os brancos”.
Nesses casos, paira o que poderíamos chamar de uma ausência de expressão crítica,
de uma visão sócio-histórica mais apurada e desenvolvida do tema racial, transparecendo uma
determinação de discursos elitistas. Isso enfatiza a relação sectária em que o sujeito do
discurso acredita e que está, de fato, legitimada socialmente, historicamente. Ele se refere a
solucionar uma prática de exclusão sem refletir sobre os preconceitos que já existem na
sociedade acerca do negro ...acho que é outra forma de preconceito. Os brancos vão olhar
para todo e qualquer negro ou pardo, achando que estão ali... A própria separação entre
aqueles que vão olhar e aqueles que estão sob olhares de observação e de avaliação introduz,
para nós, um discurso determinado por um imaginário social muito forte e enraizado que
recorta a sociedade entre aqueles que avaliam e aqueles que são sempre avaliados, colocados
à prova.
L1 assume uma posição-sujeito plenamente identificada com um discurso elitista e
pouco democrático acerca da difusão do ensino. Ademais, usa a expressão Pode parecer que
digo isso porque sou branca. uma recusa por parte de L1 a assumir o caráter elitista de seu
próprio discurso. Esse é mais um sentido de um domínio discursivo exterior que cliva a
posição-sujeito da FD acadêmica. Esta posição-sujeito sofre interferências que acabam
delineando os acessos realizados na navegação.
Pesquisadora: Essa tua posição, influenciou na formação de teu
percurso de leitura?
R30: Olha (...)! Eu acho que muitos são os motivos que nos levam a
clicar em alguns links e não em outros. Vou te dar um exemplo
prático: eu não acredito em benefícios para poucos, enquanto uma
grande maioria está trabalhando para progredir.
Deixa eu ver o meu percurso. (...)
Olha aqui, cliquei nesse link “Planeta Educação”. Sou professora,
estudante. Os links que trazem notícias do MEC, da educação de
forma geral me interessam. Vou ser sincera contigo, não tenho
absolutamente nada contra os negros, mas eu não leria, não abriria
um texto que estivesse direcionado a questões raciais. (L1)
188
Procurando uma legitimação que justifique os acessos realizados, o sujeito do discurso
usa sua profissão como exemplo, o que autoriza a falar de um papel social. O que fica
evidenciado nos recortes que precedem é o fato de que L1 tem uma relação tensa com suas
determinações. Nega suas filiações ideológicas e sociais, não clica em links que tenham
conotação étnica e justifica esses acessos e negações como se tudo isso fosse claro e evidente.
A posição-sujeito deste leitor é elitista e excludente, colocando-se contra as políticas
governamentais, não por visão crítica, mas porque ignora o lugar dos negros. aqui uma
relação tensa entre as práticas políticas e a realidade social.
O que começa a ser delineado, a partir deste ponto das análises, é o fato de que os
percursos de navegação, na web, não são realizados aleatoriamente, a dispersão de
informações não obstrui a constituição dos sentidos e os hiperlinks não têm mera função
projetiva. O que se coloca em tela é justamente a ligação intrínseca entre o gesto de linkar e a
interpretação. Continuemos as análises.
L2, no R25, afirma ter orientado seu percurso pela busca de textos com isenção de
juízos de valor e pelo teor explicativo: encerrei minha busca no link que fala do projeto de lei
com mais isenção e de forma mais explicativa. Esse caráter de isenção de juízos de valor e de
textos meramente explicativos, indica um movimento recursivo: fica implícito que, nos links
acessados e naqueles que o leitor deixou de acessar, critérios de valor correspondentes às
condições de produção da leitura específicas deste sujeito-navegador. Isso fica claro nos
recortes que seguem:
Pesquisadora: No percurso que tu me entregaste havia “N”
98
em
vários links do menu principal. Esses links eram: “Portal Sesu” ,
“Portal MEC”, “Com ciência”, “Seminário discute sistema de cotas
nas ...”. Tu levaste em conta que palavras específicas dos links para
não os acessar?
R31:No primeiro link havia a expressão ‘hospitais universitários’ que
não me interessa. No segundo link eu abri a janela, mas havia um
texto tendencioso quanto à questão racial. (L2)
Pesquisadora: Mas tu és imparcial quanto a este assunto?
189
R32:Procuro ser.(L2)
Pesquisadora: Por que procura ser?
R33:Por que eu trabalho com política e procuro não ser tendenciosa.
Procuro avaliar os aspectos realmente positivos ou negativos da
questão. (L2)
Concluímos, a partir desses recortes e, principalmente do último, que uma
necessidade de o sujeito afirmar-se neutro, devido a sua filiação política que não lhe autoriza
a parcialidade, como se os discursos políticos pudessem se dotar de total imparcialidade.
Surge, aqui, a relação que este sujeito tem com outra FD: político-partidária (PT), a qual
influência sua posição-sujeito na FD acadêmica. L2 assume uma posição-sujeito que está
perpassada pelo domínio político-partidário. Especifiquemos: este sujeito é filiado ao Partido
dos Trabalhadores (PT) do qual partiram os atuais projetos de implantação de um sistema de
cotas nas universidades
99
. Contudo, o sujeito do discurso reitera, em suas falas, que esse fato
não determinou seus acessos. O que até aqui se coloca é que L2 tenta manter-se numa posição
de neutralidade frente ao assunto pesquisado, o que o leva a afirmar que os acessos realizados
não têm relação com sua filiação partidária. Pensando na impossibilidade de haver
neutralidade num processo interpretativo, fica claro o funcionamento da negação que
evidencia a presença, no discurso do sujeito-leitor 2, um discurso outro. Esse discurso que
cliva a enunciação do sujeito é opacificado e internalizado inconscientemente. O sujeito, ao
enunciar, tem uma imagem de si: a imagem transparente de um leitor que orienta os sentidos,
contudo, a interpelação opera, em seu discurso, produzindo a contradição com os saberes
próprios da formação ideológica a que se filia: O Partido dos Trabalhadores. O discurso
predominante na FD Petista defende a institucionalização de cotas nas universidades, logo,
mesmo que o sujeito-leitor não concorde, sua filiação partidária se projeta intensamente e
acaba predominando.
A par do percurso analítico que estamos fazendo notamos, no primeiro bloco, que, no
princípio, os leitores-navegadores identificaram-se com duas posições-sujeito: uma
98
Foi solicitado que para todos os textos não acessados, acessados e não lidos o leitor colocasse um ‘N’ ao lado
do link anotado.
99
Destaquemos que já no Governo anterior (FHC) havia políticas afirmativas no que tange às questões raciais,
no entanto, foi com o governo LULA que o tema tornou-se veementemente debatido em sociedade e que as
políticas começaram a ser implantadas nas universidades.
190
identificada com o discurso escolar e outra desidentificada com esse discurso. O que está em
pauta agora é que outras posições-sujeito em tela na FD acadêmica porque o teor do
assunto que está em questão é polêmico por ser um tema que institui uma complexa relação
entre movimentos sociais, a academia e as instituições governamentais. Assim, quando
trazidos à discussão, os sujeitos, inevitavelmente, colocam em tela suas convicções sobre o
assunto e suas pré-determinações. Surgem, neste momento, outras posições-sujeito na FD
acadêmica, posições-sujeito clivadas por outros saberes, por outros discursos que orientam os
percursos de leitura. Vejamos novamente as respostas do L2 ao ser questionado
especificamente sobre o tema pesquisado?
Pesquisadora: Como tu te posicionais frente à questão das cotas?
R34:Eu não preciso concordar com tudo o que o meu partido prega,
pois dentro de um partido várias tendências, vários grupos
diferentes que se contradizem, mesmo estando no mesmo partido. Eu
sou de um grupo que não concorda plenamente com a ala governista.
Em nossa cidade mesmo, sou de uma tendência dentro do partido que
não apóia as medidas do prefeito e de seus colaboradores. Isso me faz
acreditar em parte nas políticas que o governo vem implantando. No
caso do sistema de cotas, acredito apenas como medida paliativa.
(L2)
Vemos que o sujeito entra em contradição com os saberes da FD que o interpela como
sujeito político. O sujeito nega a determinação de seu discurso por sentidos dominantes que
advêm de sua identificação com a FD do partido dos trabalhadores. Contudo, na seqüência
que segue vemos a recursão que atesta a notória predominância do discurso da FD político-
partidária. Essa recursão configura a ilusão de ter uma perspectiva diferente do partido na FD
partidária, a ilusão de estar à frente dos sentidos produzidos no momento da leitura, a ilusão
de estar na direção do processo interpretativo. No entanto, ainda que essa imagem de
centralização, de direcionamento seja extremamente importante para a configuração do efeito-
sujeito (efeito-leitor), não o rompimento almejado pelo sujeito, um corte definitivo com o
discurso legitimado pelo partido:
Pesquisadora: Então tu apóias o sistema?
191
R35: Sim, pois a melhoria no ensino tem resultados demorados.
Enquanto isso, é necessário garantir o acesso ao ensino público no
grau para os jovens que nunca tiveram condições de pagar uma
escola particular e, provavelmente, não terão condições de ‘bancar’
uma universidade privada. Sem as cotas, a possibilidade desses jovens
ingressarem na universidade pública diminui muito, pois não tiveram
o mesmo preparo que os alunos das escolas particulares. (L2)
Notemos que a neutralidade não se afirma, pois no R34 e no R35 uma contradição
aparente e que indica que as determinações políticas fazem com que este sujeito assuma a
posição do Partido, condizente com sua interpelação:
Espaço da contradição
Penso que não preciso...
Sd37= Eu o preciso concordar com tudo o que o meu partido prega
Sd38= Sim, pois a melhoria no ensino tem resultados demorados
.
Enquanto isso, é necessário garantir o acesso ao ensino público no 3º grau
L2 reproduz o discurso corrente na ala governista quando indagada sobre a aplicação
do sistema de cotas. É apagado para o sujeito do discurso sua sujeição aos sentidos
dominantes na FD petista. Notamos essa determinação no processo de navegação quando
analisamos a representação gráfica de L2 e identificamos uma grande incidência de links que
tem alguma menção ao governo. Isso atesta que a imparcialidade indicada como orientadora
da pesquisa não existe.
Salientam-se, assim, as posições-sujeito conflitantes em que L2 se coloca, observamos
que ele assume lugares de enunciação distintos: do lugar de acadêmico ele fala X, do lugar do
filiado ao PT, ele fala Y.
Pautando-nos, sobretudo, na vinculação de L2 a um domínio discursivo exterior à FD
em análise, voltamos à constatação de que as posições-sujeito, no interior da FD acadêmica,
se constituem na confluência com saberes de outras FD. A identificação desse sujeito ao
192
discurso dominante na FD petista faz com que sua posição-sujeito, na FD acadêmica, retome
os sentidos daquela a favor da implantação das cotas.
ainda a vinculação de L2 a um discurso elitista em relação ao acesso à educação
superior. Essa vinculação é forte nos enunciados do sujeito, causando um desencontro entre o
que se coloca como legítimo no discurso partidário: ser a favor das cotas e o que se coloca
como verdade no discurso arraigado por anos de educação escolar e universitária: acreditar
que o acesso à universidade é para alguns.
Interferem, nos acessos realizados, duas instâncias de interpelação: uma política que
faz com que os sujeitos acessem determinados links e outra cultural que faz com que negue
outros tantos links. Com base em Courtine (1982), temos sentidos não fechados na/pela FD,
mas instaurados na confluência entre saberes. Assim, vemos que o sujeito que produz
sentidos na navegação orientado pelo discurso da FD e pelas formas através das quais é
interpelado. É notório, com vista nas análises realizadas, que a FD acadêmica traz uma
permeabilidade reveladora da imbricação entre os saberes contraditórios. Ao mesmo tempo
em que L2 está filiado a um partido que diz atender aos interesses das minorias, procura negar
um espaço de discussão sobre o papel dessas minorias na sociedade. Esse espaço contraditório
que se produz e que trabalha nos/com os sentidos se deve ao acionamento de um tema caro à
reflexão e que mexe com a comunidade universitária e com sua ligação à legitimação de
injustiças históricas como o recorte racial, o acesso limitado e restrito das minorias, das raças
tidas como inferiores à educação. O que vem à tona é uma reinterpretação das relações socias
no Brasil e os vários olhares que se lançam sobre o tema dentro da academia. Vemos isso nos
recortes que seguem:
Pesquisadora: O que tu consideraste como fundamental para os
acessos realizados em teu percurso?
R36: As expressões e a definição de que assunto eu focaria para
minha pesquisa.(L2)
Pesquisadora: Por exemplo?
R37: Ah! Alguns links não despertaram meu interesse como os links
sobre racismo, sobre índices e percentuais de aprovação nos
vestibulares. Havia outros também como links ligados ao MEC. (L2)
193
Fica claro que os hiperlinks contém expressões, palavras que auxiliam na formação do
percurso, visto que a recusa imediata por links de acordo com as expressões que estes
trazem. Isso corrobora com as questões que nos movem à escritura deste trabalho, visto que o
sujeito apaga de sua prática uma indagação fulcral: Quem fala quando eu clico? O que me
move a fazer escolhas diante de uma gama de acessos a serem realizados? Nossa
investigação pauta-se justamente nessa tomada de sentidos pré-existentes que são produzidos
numa FD com a qual o sujeito se identifica ou não e que interferem em sua interpretação.
A análise dos recortes das entrevistas do L3 nos ajudam a ratificar tais questões:
Pesquisadora: Que interesses te motivaram à pesquisa?
R38: Bem, busquei textos que elucidassem minhas dúvidas quanto ao
sistema de cotas nas universidades, pois tenho minhas ressalvas
quanto a esse sistema. (L3)
Pesquisadora: Observando a representação que fiz de teu percurso, o
que tu tens a me dizer sobre os acessos que realizaste? Esses acessos
estão relacionados a essas ressalvas que tu mencionas?
R39: Ah, tinha textos ali que não me chamavam atenção como os que
tratam da implantação das cotas na UNB, na Universidade de Juiz de
Fora, pois se trata de propaganda. Outros que falam dos percentuais
para entrada de alunos oriundos de escolas públicas me interessaram
muito. (L3)
Vemos que L3 justifica seu percurso de navegação como estando direcionado por uma
linha de pesquisa determinada por ele: os links que contém textos genéricos sobre alunos
oriundos de escolas públicas e os links polêmicos sobre cotas. Isso é tão evidente para o
sujeito que ele não pensa nos acessos que deixou de fazer, mesmo estando à disposição na
tela. Vejamos o que ele fala sobre isso:
Pesquisadora: Olha aqui o teu percurso: “N” em vários links. O
que tu achas que te levou a alijar esses textos de teu percurso no
momento?
194
R40: Tudo eu não poderia ler, né! Mas tem textos, por exemplo, que
acessei e voltei porque não foram interessantes e se tornaram
monótonos para mim. (L3)
Pesquisadora: Pensando nisso que tu disseste, o que te levou a clicar
em links como: “Sistema de cotas das universidades federais Você é
contra ou a favor? e Universia Brasil critérios de sistema de cotas
ainda provocam controvérsias? E não em outros links disponíveis?
R41: Bom, tem links que realmente não chamam atenção para mim.
Mas, esse link, por exemplo, de ser a favor ou contra o sistema de
cotas chamou minha atenção porque eu, particularmente, sou contra.
O sistema de cotas nas universidades apresenta aspectos
controversos. Primeiro, que este sistema é preconceituoso quando
nivela as pessoas pela cor e em segundo porque apresenta outro
aspecto que é a dificuldade que o negro e o índio encontram para
entrar no mercado de trabalho e até mesmo em se manter no ensino
básico. O que deveria existir é uma mudança no ensino, uma mudança
que privilegiasse a qualidade e respeito à educação e isso daria
condições de concorrência a uma vaga na universidade pública sem a
dependência de cor ou situação financeira. Falo isso, porque não tive
condições financeiras favoráveis para estudar e consegui me formar.
Isso depende muito de cultura e força de vontade, não de cor. Acho
que este governo está lançando mão da existência do preconceito
para não encarar que o problema é bem maior. (L3)
Nos recortes acima, salientam-se dois pontos: a) este sujeito não acessou links que
trouxessem a menção a questões raciais; b) suas ressalvas, quanto ao sistema de cotas,
parecem estar ligadas mais a sua contrariedade em relação ao partido do governo. Isso fica
claro no R41 quando usa a expressão este governo: [...] Acho que este governo está lançando
mão da existência do preconceito para não encarar que o problema é bem maior [...]. É
preciso atentar para o fato de que este leitor tem um ponto de vista sólido sobre as políticas de
educação compensatórias. Vejamos o recorte que segue:
195
Pesquisadora: Tu colocas em questão o fato de que o governo toma
medidas compensatórias para não resolver o problema na raiz.
Consideras esse um fato que te leva a não ter dado outro “rumo”
para teu percurso de navegação?
R42: Considero, claro, pois acredito, como professora, que as cotas
implicam numa oposição radical a todo um percurso de não
separação da sociedade por raças. Nós estamos vindo de um longo
percurso de apagamento das diferenças raciais, do racismo que divide
a sociedade, que marca nosso país. Lutamos muito tempo pela
instituição de uma outra mentalidade sobre a “raça”, uma
mentalidade que o faça da raça critério de marcação dos
indivíduos. As cotas vêm nesse início de século colocar em cena
novamente a marcação, a distinção, refazendo um sistema de
classificação racial. Esse não deve ser o papel do governo e de suas
políticas de educação e cultura, pelo contrário. (L3)
Este recorte salienta que L3 pesquisou levando em conta uma reflexão mais ampla e
apurada sobre o tema proposto, o que influenciou na produção de uma reflexão mais rica
sobre os acessos realizados. Além disso, precisamos acentuar a expressão particularmente
contra, do recorte 41 que incide sobre a determinação do sujeito do discurso. Quando este usa
o modalizador ‘particularmente’ está colocando-se num lugar em que ele acredita que não
sofre determinações exteriores: Bom, tem links que realmente não chamam atenção para mim.
Mas, esse link, por exemplo, de ser a favor ou contra o sistema de cotas chamou minha
atenção porque eu, particularmente, sou contra. O sistema de cotas nas universidades
apresenta aspectos controversos. Primeiro, que este sistema é preconceituoso quando nivela
as pessoas pela cor e em segundo porque apresenta outro aspecto que é a dificuldade que o
negro e o índio encontram para entrar no mercado de trabalho e até mesmo em se manter no
ensino básico [...] Acho que este governo está lançando mão da existência do preconceito
para não encarar que o problema é bem maior. duas posições-sujeito na FD acadêmica
que estão ligadas ao domínio discursivo da política, contudo, essas duas posições-sujeito são
opostas: L2 está identificado com a FD do partido dos trabalhadores (PT), enquanto L3 está
identificado em oposição ao discurso dominante sobre o sistema de cotas. Esses cruzamentos
que se realizam, incidem sobre o percurso de navegação desses leitores.
196
197
PROCESSO DE DESIDENTIFICAÇÃO
DES
Identificação com o discurso da FD petista
L2 No caso do sistema de cotas, acredito apenas
como medida paliativa (...) Cruzamento com
O domínio discursivo
DESIdentificação com o discurso do governo da política
L3 Acho que este governo está lançando mão da
existência do preconceito para não encarar que o
problema é bem maior (...)
Essas duas interferências geram reflexos diferentes nos acessos dos leitores. Isso fica
evidente na discursivização desses leitores acerca da navegação.
Os recortes do L4 trazem afirmações de teor muito parecido com o discurso do L3. No
entanto, a análise do percurso de L4 indica uma orientação totalmente diversa de L3. Isso se
justifica porque L4, quando é levado a analisar seu percurso de navegação, traz à tona outras
determinações para a realização dos acessos. Comecemos pelo fato de que se trata de um
advogado, logo, segundo ele, seu percurso baseou-se em sua formação jurídica:
Pesquisadora: Então, olhando para a representação que fiz de teu
percurso, explique os acessos realizados, por que alguns links te
interessaram mais que outros:
R43: Eu estava em busca da parte legal, do que está sendo colocado
em pauta para aprovar ou não o sistema de cotas. Existem vários
pontos a serem observados, veja bem, a distribuição de cotas gera a
diferença étnica declarada. Isso é um tipo de racismo. Acredito na
busca de espaço pela capacidade, pela obtenção de condições por
parte do sistema de ensino; mas se formos observar a história de
nosso país, temos que levar em conta os anos de exclusão social, de
falácia do sistema de ensino. Vendo por este lado, temos que
concordar que deve haver uma medida inicial, mas amparada por
198
uma política de mudanças graduais. Eu sempre vejo pelos dois lados
essa questão. (L4)
É evidente, para o sujeito, que sua navegação pautou-se na ‘vontade’ de saber mais
acerca da parte jurídica de implantação da política de cotas, quando diz Eu estava em busca
da parte legal(...). Este sujeito tenta manter-se o mais neutro possível, dada a identificação
com a FD jurídica que prega a imparcialidade até que se tenham em mãos todos os fatos para
fazer uma avaliação sobre o assunto em pauta: Existem vários pontos a serem observados e
Eu sempre vejo pelos dois lados essa questão. Todavia, voltando ao recorte citado Existem
vários pontos a serem observados, veja bem, a distribuição de cotas gera a diferença étnica
declarada. Isso é um tipo de racismo. Acredito na busca de espaço pela capacidade, pela
obtenção de condições por parte do sistema de ensino (...), e alinhando com eles outros
oriundos dessa conversa, vemos que essa imparcialidade é inalcançável, dado o teor polêmico
do assunto tratado e as interferências que o sujeito do discurso sofre:
Pesquisadora: Além de questões legais, houve alguma outra
motivação para a realização de teus acessos?
R44: O assunto que tu propôs é de meu interesse em vários aspectos:
1º porque até mês passado fui estudante universitário com muitas
dificuldades; sou advogado, então, como falei, a parte legal me
interessa; tudo o que é colocado em pauta como sendo benéfico
para a sociedade, mas não passa de discurso político eu mantenho
minhas dúvidas;
Ainda que o sujeito não tenha claras as interferências que perpassam seu discurso,
muitas são elas e muitos são seus reflexos no percurso de leitura de L4, o que nos auxilia a ver
que a imparcialidade desejada o se mantém, ou melhor, essa imparcialidade é uma ilusão
necessária para este sujeito-leitor, dado o fato de ele ser advogado e de que sua plena
identificação com o discurso dominante da FD jurídica o faz tomar sentidos desse discurso,
reproduzindo o ideal de neutralidade. Podemos justificar isso analisando os acessos realizados
pelo sujeito-leitor, pois entre eles estão os links consultor jurídico; ENEC uma das
restrições ao sistema de cotas era a falta de legislação a respeito...; UFBA identifica terceiro
caso de fraude no..., entre outros de mesma orientação que justificam essa identificação e essa
199
busca pelo tema jurídico como orientador da linha de pesquisa. O que L4 não leva em conta e
que para a análise de discurso é de profundo interesse são também os acessos não realizados,
negados. São esses acessos que nos levam às determinações que se projetam silenciosamente
no processo interpretativo do sujeito. Temos, nesse caso, a negação de determinados links
como Cotas: estimular o debate, subverter o preconceito...”; “Cresce número de negros na
universidade”; “Universidade: acesso a todos”, entre outros. Essas negações o são (nem
podem ser) nítidas para L4, que, quando questionado sobre os acessos não realizados,
responde:
Pesquisadora: Tu colocaste um “N” ao lado de vários links. Tiveste
um critério, além da busca por textos de teor jurídico, para o não
acesso a esses textos?
R45: Realmente, como eu estou muito envolvido com a minha área, a
primeira coisa que me veio à cabeça para pesquisa foi a parte legal
que envolve esse assunto. Mas, se eu for te dar um outro critério,
realmente eu não acessei links sobre as cotas e as questões sociais
envolvidas porque eu o concordo com essas políticas de campanha,
com essas políticas de doação de um privilégio. Eu fiz uma faculdade
com muitas dificuldades e sou branco. Não tive privilégios para fazer
o meu curso, eu e meus pais não temos uma situação financeira.
Confortável, como a maioria dos brasileiros. Então, acho que se deve
haver uma política de reforma do ensino, que garanta acesso
irrestrito às universidades públicas, acredito que deva ser para todos,
sem levar em conta questões raciais.
Instigado à reflexão, L4 começa a colocar em cena outras determinações que
interferiram em seu percurso de navegação. O fundamental nisso é que transparece, para nós
analistas, uma desidentificação com um discurso de teor político-partidário, e,
primordialmente, com o discurso sobre cotas para negros. Vemos que a pesquisa feita por este
sujeito-leitor, segue uma reflexão menos relacionada á questões sócias, se comparada com o
percurso de L2 e L3. Sua posição sujeito, no entanto, é a mesma, na FD acadêmica de L3,
desidentificado com o discurso predominante sobre o sistema de cotas. Mesmo não sofrendo
as interferências do saberes de uma formação discursiva político-partidária, L4 demonstra sua
desidentificação.
200
Deve-se levar em consideração que, de uma perspectiva discursiva, os sentidos
somente se tornam enunciáveis e compreensíveis pela ação da memória discursiva, a qual cria
uma condição de legibilidade ao legível. Ou seja, a interface homem-máquina, proposta pelas
novas tecnologias, urge do papel da memória a fim de que o texto digital não seja meramente
produto, mas um resultado do processo de produção de sentidos. É neste aspecto que
estabelecemos uma relação necessária entre a memória, sob a ótica discursiva, e seu papel
para a realização de um hipertexto. Isso se pelo viés do que ressaltamos como relações
interdiscursivas que se instauram na textualização. Essas relações não partem apenas do autor,
mas do próprio leitor, que reconfigura o texto de acordo com seu gesto de interpretação,
tornando a legibilidade relativa. O que se quer dizer é que a técnica, o suporte que viabiliza a
digitalização do texto, das imagens não está desligado dos agenciamentos sociais, das
representações, da simbolização que a linguagem configura, dado que a materialidade
essencial da tecnologia hipertextual é a linguagem. O que se remodelam são as relações entre
os sujeitos e os novos suportes que materializam a linguagem. Esse é o ponto nodal, o sujeito,
usuário de um suporte informatizado, sempre vai estar além do que o suporte oferece, dada
sua capacidade de simbolização. Isso fica patente nas análises dos acessos realizados.
Em vista disso, acentuamos o percurso de L5 que evidencia uma grande interferência
do interdiscurso na formação do hipertexto. O sujeito do discurso parte do mesmo lugar que
L4 – o jurídico – buscando, por isso, uma imparcialidade, contudo, a representação gráfica do
percurso do sujeito-leitor evidenciou uma pré-determinação histórica, social e cultural nos
acessos realizados, o que nos coloca diante do fato de que a leitura, em ambiente digital, está
paramentada numa intrincação entre memória discursiva (interdiscurso) e a materialidade
digital:
Pesquisadora: Observando a representação de teu percurso, tu notas
a incidência de links relacionados ao negro e a questões raciais.
Pensando nisso, tu achas que essas questões te acompanham,
interferem na interpretação que tu dás às coisas, aos acontecimentos?
R46: Ah!! (pensou um pouco). Sim. Nós sempre trazemos um pouco
essas questões culturais, históricas. Não conseguimos ser imparciais.
Até que ponto somos imparciais, eu me pergunto. Se sou filha de um
latifundiário, o problema agrário vai ser defendido por mim de uma
perspectiva, se sou filha de um lavrador, assumo outra perspectiva.
Temos um passado, uma história, nem que isso não esteja, e não está
claro para nós em nossas atitudes, em nossas conversas. (L5)
201
Pesquisadora: Então, tu pensas que todos esses fatores estão
envolvidos no momento em que tu lês, em que tu pesquisas sobre algo,
em que tu debates?
R47: Obviamente, sempre estão envolvidos. Ninguém escolhe um
assunto para pesquisar, como tu pediu para eu fazer na Internet, sem
uma gama de conhecimentos que motivem a escolha dos acessos. Vou
te dar um exemplo: sou advogada. Se tu olha o meu percurso eu
pesquisei o link “Adami: Advogados associados (Seminário nacional
sobre cotas nas universidades”, o meu acesso foi baseado no fato de
que não lei ainda para a implantação desse sistema, de meu lugar
de advogada, os links que trazem à tona a questão jurídica sempre
serão prioritários, assim como os links sobre o racismo velado, sobre
a inclusão social. (L5)
É oportuno mencionar, neste momento das análises, que L5 se como leitor de dois
lugares diferentes. No entanto, esses lugares para o sujeito do discurso são tão óbvios que não
a possibilidade de ele ver-se interpelado ideologicamente. As condições de produção de
sua leitura ficam claras quando diz que é advogada e que é ligada a questões étnicas,
colocando-se em duas instâncias de leitura que, para ela, em nada se imbricam na leitura que
fez. Do lugar de advogada, procurou determinados links e, do lugar de estudante negra,
procurou outros. No entanto, trata-se do mesmo percurso.
Pesquisadora: Vendo a incidência, entre tantos outros links que tu
acessaste, de links como “Política de cotas raciais nas universidades
brasileiras...”; “Cotas para negros nas universidades...”; “O
apartheid brasileiro...”; Boletim Ppcor programa políticas da cor
na educação...”. Como tu justificas o fato de que teu hipertexto tenha
ficado tão direcionado?
R48: o sei o que te dizer, realmente, vendo esse “mapa” noto que
os textos têm teor muito parecido. É isso ficou forte...(L5)
202
O apagamento da memória discursiva que intervém nos acessos é tido no R48.
Quando L5 diz isso ficou forte, temos a noção de que, para a própria leitora, não é claro esse
atravessamento, a fragmentação do sujeito fica opacificada por um discurso que objetiva a
linearidade da leitura e da formação do texto. No entanto, essas relações múltiplas é que
determinam a não existência de uma leitura direta e reveladora da intenção de um autor. Toda
leitura é ocasional, circunstancial, por isso gestual. Temos em conta, portanto, juntamente
com Pesavento (2005), que Indivíduos são seres no mundo e, como tal, portadores de um
lugar social e de uma temporalidade, a sua e a herdada, partilhada. Neste sentido, a memória é
um processo transacional, em que o sujeito se liga com o social, (2005:05). É que os
sentidos se fazem e desfazem. O processo simbólico encontra sua fundamentação na
passagem pela historicidade e pela memória, os quais sacralizam ou silenciam dizeres.
Note-se, para tanto, que, segundo os recortes analisados, há, no processo de
navegação, na atualização do hipertexto, uma re-significação ocasionada pela mobilidade dos
links. De acordo com os recortes que precedem, acentua-se essa fluidez e a intervenção de
elementos pré-construidos no processo de constituição de cada hipertexto. Os sujeitos dos
discursos respondem de um lugar social que se projeta em suas falas. Refletem-se em seus
dizeres sua concepção política e ideológica, pois
toda leitura mobiliza em maior ou menor intensidade, com maior ou menor
evidência, efeitos de ambigüidade que se estendem pelo texto. Pensar a leitura sob a
ótica de uma concepção da univocidade seria ilusório e ingênuo. Não se pode pensá-
la nem sob a perspectiva do mito da univocidade absoluta, identificável ao sonho
simplista da transparência da linguagem, nem sob o mito da plurivocidade absoluta,
em que nenhuma significação é atribuída de modo seguro e categórico. A leitura é
um processo de desvelamento e de construção de sentidos por um sujeito
determinado, circunscrito a determinadas condições sócio-históricas. Portanto, por
sua própria natureza e especificidade constitutiva, a leitura tende a ser múltipla, a ser
plural, a ser ambígua. Mas não será nunca “qualquer uma. (LEANDRO FERREIRA,
1998:208)
Atentar para o processo de leitura como espaço de dizer, de re-significar o que está
supostamente posto pelo autor, requer que situemos a prática de leitura como prática de
seleção, de recorte e escolha, de opções e exclusões orientadas por espaços de enunciação, de
semantização. É do interior desses espaços que ocorrem os possíveis deslizamentos
metafóricos, que apontam para outros sentidos e para dimensões intertextuais e,
primordialmente, interdiscursivas. Segundo salienta Pesavento é na leitura que se amplia o
leque dos possíveis (Ibid: 08). Em consonância com a autora buscamos Lebrun para quem
A relação da leitura com um texto depende, é claro, do texto lido, mas depende
também do leitor, de suas competências e práticas, e da forma na qual se encontra o
texto lido ou ouvido. Existe aí uma trilogia absolutamente indissociável se nos
203
interessamos pelo processo de produção do sentido. O texto implica significações
que cada leitor constrói a partir de seus próprios códigos de leitura, quando ele
recebe ou se apropria desse texto de forma determinada. (1999:152)
De acordo com isso, a interface entre a análise do discurso e o texto digital, tendo mais
propriamente a leitura em ambiente informatizado como objeto de análise, se justifica
salientando que a confluência entre as memórias (discursiva e metálica) torna-se ímpar nesse
trabalho, pois o hipertexto marca idealmente este lugar de confluência: em sua especificidade,
ele articula uma linguagem artificial (HTML), que prima por ser essencialmente a-histórica,
homogênea e estabilizada, com a linguagem verbal (historicizada). Partindo deste princípio,
pensa-se: a memória metálica é binária e não como não ser, mas a leitura em ambiente
digital pressupõe uma memória mais ampla, a memória daquele que maneja com o suporte
informatizado. Duas memórias se fundem: memória metálica e memória social que colocam o
gesto de leitura para além do sujeito e do objeto, mas numa zona de confluência entre ambos.
Pierre Lévy tem um ponto de vista interessante no que tange a questões de memória e
textos digitais, pois relaciona a técnica (texto digital) à sua inscrição no meio intelectual, ou
seja, para este autor, o texto, no momento em que ultrapassa os limites da tela do computador,
deixa de ser técnica e passa a ser tecnologia intelectual, uma vez que passa a influenciar no
ambiente cultural e social do homem, fazendo emergir novos modos de relação com as
técnicas, tornando algumas obsoletas, fazendo interface com outras. A técnica, objeto cultural
no sentido aqui proposto, encontra conexão com a chamada memória discursiva que é para
Pêcheux
aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os
“implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e
relatados, discursos transversos, etc.)de que sua leitura necessita: a condição do
legível em relação ao próprio legível (1999:52).
Nossa hipótese de articulação pauta-se, portanto, em três pressupostos básicos, citados
por Leandro Ferreira (1998) para o processo de produção de sentidos em AD:
a) o sujeito não é a fonte do sentido, nem senhor da língua;
b) o sentido se forma por um trabalho da rede de memória;
c) sujeito e sentido não são naturais, transparentes, mas determinados historicamente e
devem ser pensados em seus processos de constituição;
Baseando-nos no fato de que, conforme Leandro Ferreira (1998), na AD, o que está
fora (o exterior) faz parte integrante do que está dentro (o interior) urge que questionemos
concepções deterministas que colocam a técnica sempre a serviço do inatismo, sendo que o
204
movimento seria diferente, pois as técnicas estarão sempre na composição deste fora, elas são
o que de mais marcante formou a historicidade dos homens e, juntamente com elas,
formaram-se modos de ver, sentir e conhecer. Dessa forma, pensar uma cnica como o
hipertexto, cujo pressuposto básico é a conexão e a abertura à heterogeneidade, como um puro
instrumento de leitura, seria retroagir a um estágio de exclusão do sujeito no curso da história.
Assim, compreender a informática unicamente pela sua dimensão técnica é um
reducionismo e, além disso, é promover uma tecnologização do saber, deslocando o conceito
de produção de conhecimento, através da interface e da conexão, para um conceito de
conhecimento produzido, enlatado e recebido pela sociedade. Tal processo é de fato errôneo:
Os dispositivos materiais em si, separados da reserva local de subjetividade que os
secreta e os reinterpreta permanentemente, não indicam absolutamente nenhuma
direção para a aventura coletiva. Para isto são necessários os grandes conflitos e os
projetos que os atores sociais animam. Nada de bom será feito sem o envolvimento
apaixonado de indivíduos (..) Por mais que elas sejam consubstanciais à
inteligência dos homens, as tecnologias intelectuais não substituem os pensamento
vivo. O enorme estoque de imagens e palavras ressoando ao longo das conexões,
cintilando sobre as telas, repousando em massas compactas nos discos, esperando
apenas um sinal para levantar-se, metamorfosear-se, combinar-se entre si e
propagar-se pelo mundo em ondas inesgotáveis, esta profusão de signos, de
programas, esta gigantesca biblioteca de modelos em vias de construção, toda esta
imensa reserva não constitui ainda uma memória(...) Porque a operação da memória
não pode ser concebida sem as aparições e supressões que a desagregam, que a
moldam de seu interior. Debruçado sobre seus projetos, o ser vivo destrói,
transforma, reinterpreta as imagens e as palavras daquilo que se torna, através desta
atividade, o passado (LÉVY,2001: 132).
Uma das possibilidades aqui propostas é que, ao clicar sobre um link entre vários
outros, o leitor-autor coloca-se em uma série de formulações que retornam, produzindo, sobre
a materialidade do texto em questão, uma rede discursiva que faz com que o leitor clique
naquele link e não em outros. De acordo com Pêcheux, sob o mesmo da materialidade da
palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação
discursiva (1983:53). Ora, se a linkagem promove o encaixe entre os textos, sua função é
também de metaforização, de forma que cada leitor atribuirá ao link uma significação, pois
seus sistemas de referência serão ativados a fim de que a produção de sentidos instaure um
processo interpretativo singular. Isso se dá pelo viés da memória. Esta possibilidade de análise
da memória discursiva, como constitutiva da leitura hipertextual, durante o processo de
linkagem, encontra culminância na concepção de links como anáforas.
205
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo propôs-se a investigar, a partir de diferentes correntes teóricas, quais os
fundamentos que caracterizam e delimitam as condições de funcionamento do hipertexto,
enquanto materialidade que se define pelo cruzamento de sentidos, num esforço contra a
transparência e a dimensão de unicidade que permeiam a palavra texto e as práticas de leitura
e escritura que dela derivam. Procurando ultrapassar a dimensão meramente eletrônica dos
textos em rede, nosso propósito cercou-se de um cuidado específico: laçar um olhar para o
duplo papel que cabe à leitura em ambientes digitais e pensar, sobremaneira, no modo como a
materialidade eletrônica e o acontecimento se cruzam, visto que se trata de um texto em
constante estado de fluxo que, contrariamente, representa a inconsistência e a deriva de
sentidos, ocasionando uma abertura ao sem sentido
100
. É necessário, pois, repensar o estatuto
epistemológico do texto e é igualmente recomendável que se tente redefinir a noção de texto
dentro daquilo que é nossa tradição textual, dado que, aparentemente, essa tradição textual
ainda não sabe o que fazer com esse sem sentido, visto que ela sempre se pautou pela busca
de sentido uno e delimitável, “tangível”. O que se coloca para além dessa univocidade traz a
perda dos alicerces estáveis, uma vez que estabilidade e fixidez são as traves mestras do texto
“clássico”, as quais se encontram desestabilizadas pela efemeridade e volatilidade
proporcionadas por um texto hiper, cuja constituição está na essência dos “caminhos que se
bifurcam”. O que está em pauta, quando essa pluralidade de caminhos na rede textual é
analisada, é uma leitura não-linear e em constante (re) construção, como se estivéssemos
frente a um labirinto que a cada leitura permite caminhos novos e cruzamentos ainda não
experimentados.
Atentar para tal fato implica que levemos em conta a escritura hipertextual, como toda
escrita, marcada pela subjetividade de quem a constitui. Como essa escrita é constituída por
infinitos textos disponibilizados, de forma a compor uma intensa rede textual, os textos
precisam ser construídos por seus leitores, ao percorrerem essa escrita, em busca da realização
100
Fazemos menção à existência de sentidos que transpõem a linearidade e as margens impostas ao texto, esses
sentidos permitem que consideremos a inexistência de um sentido uno e pré-determinado, possibilitando a
inserção do sem sentido, daquilo que escapa ao olhar uniformizador da lingüística. Esse sem sentido representa
aquilo que foi deixado à margem pela sistematização do texto.
206
de um objetivo. O texto, que passa a ser processualmente construído por um leitor que, agora,
é também um navegador, pois escolhe caminhos e roteiros que contêm marcas lingüísticas
evidenciadoras da sua relação com o dito e de como se posiciona frente a ele. Essas marcas,
resultado do trabalho de escolha do leitor-navegador, de dizer algo e fazê-lo de um certo
modo, em detrimento de tantos outros, “revelam” ou “escondem” o sujeito que diz.
Ressalvamos, portanto, que a fronteira existente entre um texto e sua versão hiper não
está na esteira de um processo de dicotomização, de fim, mas de início, pois fazer fronteira
não é findar, é abrir espaço para o reconhecimento do que está fora de nossa circunscrição, é
reconhecer que há algo para além dos limites impostos, pois uma fronteira não é o ponto onde
algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo
começa a se fazer presente (BHABHA, 2001:19). Trata-se da desterritorizalização do texto
em favor da fragmentação e da transição, dado que o texto antes intransitivo, pois homogêneo
e limitado, agora passa a ter um status de trasitividade, de locomoção para além de suas
margens, produzindo a abertura, no movimento de reconhecimento de uma nova ordem de
produção de sentidos, necessária de deslocamentos e clivada pelo deslizamento e ruptura
contínuos.
Essa é a compreensão de textualidade que empreendemos, embasada no deslizamento
dos sentidos, na clivagem da estrutura pelo movimento contínuo dos significados, cujos
significantes estão sempre à espera, pois produzir sentido, no espaço teórico em que nos
situamos, é da ordem da metáfora, que o sentido é desde sempre metafórico, pois nunca
pré-existente e ontológico.
Procuramos, assim, estabelecer que, além de um movimento contemplativo frente ao
texto, o leitor autorize-se à transitividade entre as múltiplas vias de acesso ao(s) sentido(s) e
que, sobretudo, este sujeito não seja constituído na homogeneidade, mas num entre-lugares
em que dizeres, história, cultura, ideologia se cruzam. Portanto, somente um estudo do texto
que privilegie seu caráter construtivo parece-nos compatível com nosso projeto e o justifica.
Ademais, procuramos demonstrar, através das representações gráficas dos percursos, através
da ênfase na heterogeneidade das posições-sujeito que se salientaram durante as análises, que
a ativação de determinados nexos faz aparecer silenciosamente uma seleção específica,
condicionada por uma anterioridade. Evidenciamos isso porque cada leitor tinha n’ nexos a
serem pesquisados e a eleição de qualquer elemento do menu provocou a aparição do
documento conectado com um potencial rizomático intenso e ilimitado, o que provocou a
busca por caminhos, a intensa associação entre os textos conectados. Assim, a capacidade de
criar nexos em ambas direções e conectá-los com qualquer passagem é o que faz com que a
leitura, neste texto, seja sempre uma escritura em potencial e, primordialmente, faz com que
207
os nexos signifiquem mais do que um apontador de caminhos a seguir, mas um elemento de
interligação semântica, ativado não por pura e simples curiosidade, mas por associação
contínua com a rede semântica que o leitor produz. Nesse sentido En todos los sistemas de
hipertexto el lector puede escoger su proprio centro de investigación y experiencia. Lo que
este principio significa en la práctica es que el lector no queda encerrado dentro de ninguna
organización o jerarquía (1995:25).
O que nos parece fundamental é a possibilidade de, pela observação do percurso de
navegação e das considerações do leitor, ver marcas, indícios do modo como se realiza o
processo de produção de leitura. É neste ponto que a noção de hiperlink promove
deslocamentos e nos levou a pensar nesses dispositivos de ligação textual como anáforas,
segundo as quais os processos de coesão atingem um nível diferente em relação ao conceito
de cadeia coesiva que a LT propõe.
Para tanto, os lugares sociais que são ocupados pelos sujeitos, em determinadas
formações sociais e ideológicas e suas formas de pertencimento/reconhecimento dos saberes
que identificam as FDs a que se filiam vão determinar as posições-sujeito que assumem
quando enunciam, em nosso caso, quando clicam. Esse movimento se através da forma-
sujeito e da formação discursiva com que cada sujeito se identifica. Foi pela discursivização
de seu percurso de leitura que cada leitor deu a ver o processo pelo qual se construiu seu gesto
de leitura. A prática da linkagem deixou à vista os caminhos porque os leitores passaram antes
de clicar.
Enfim, é enquanto espaço de relações em rede, falamos de relações sociais e
históricas, que se materializam enquanto memória, que a prática de leitura potencializa
diferentes itinerários, diferentes configurações para o espaço significante do texto. É nesse
espaço relacional que os links aparecem como elementos fluidos, resignificados
incessantemente, discursivamente. Isso se dá, pela ação movente de um anterior que interfere
na ligação dos textos e na escolha de determinados textos.
O que os recortes produzidos pelos sujeitos-leitores nos possibilitaram foi ver que o
ato de clicar está pautado por interferências de ordem interdiscursiva e que essas
interferências fizeram, em nossa pesquisa, com que todos os leitores, mesmo partindo de um
mesmo ponto e de uma mesma gama de acessos, produzissem percursos diferenciados e
condizentes com a sua interdiscursividade. É nesse ponto de falar em hiperlinks como
dispositivos anafórico (discursivos) torna-se relevante, devido à mobilidade que o hiperlinks
propiciam na formação do hipertexto.
208
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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212
ANEXOS
213
Anexo I
PROPOSTA PARA NAVEGAÇÃO NO TEXTO DIGITAL
Caracterizando-se por ser uma pesquisa sobre leitura em ambiente digital, que conta
com a participação de XX pessoas, propomos que algumas etapas de trabalho sejam
estabelecidas, etapas que mobilizam um trabalho individual do leitor e um trabalho em
conjunto com o pesquisador, o qual procurará entender os percursos dos acessos realizados
pelos leitores participantes da pesquisa. Além disso, com a preocupação não de colher
resultados pré-estabelecidos, mas com o intuito de buscar um entendimento da leitura em
ambiente digital baseada na experiência do leitor, este trabalho não está delineado por um
método dedutivo de análise. Trabalharemos com recortes dos acessos realizados e das
entrevistas, o que nos possibilita uma visão abrangente e qualitativa dos percursos dos
leitores-navegadores. Para tanto, esta pesquisa transcorre nas seguintes etapas:
I) Seleção de leitores: serão escolhidos 05. leitores com base nos seguintes critérios:
a) Grau universitário;
b) Idade acima de 20 anos
Será preenchida uma ficha com dados que serão levados em conta no momento de
análise do percurso. Ver 1.
II) Leitura-Navegação: ocorrerá em um ou dois encontros na universidade ou na
residência do leitor.
O percurso de navegação é proposto com base em dois temas a saber:
SISTEMA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES FEDERAIS
O processo de leitura começa pela orientação do assunto escolhido no site de
pesquisa Google, tanto em páginas brasileiras, quanto estrangeiras. Ao passo que o
navegador acessa, ele indica (anota) quais são os links que está acessando e a
ordem. As páginas acessadas serão impressas para análise do percurso. As
impressões marcam o percurso de navegação.
Após a navegação, com os links anotados e as páginas impressas, solicitamos ao
navegador que faça uma narrativa de seu percurso, respondendo a algumas
perguntas escritas. Ver roteiro de perguntas em 2
III) Produção de Narrativas gráficas: as narrativas gráficas são produzidas pelo autor
da pesquisa, com base no percurso de navegação do leitor, nas impressões e nos
links anotados. Essa narrativa gráfica permite visualizar de forma clara os acessos
realizados, bem como aqueles que não foram escolhidos. Com o objetivo de seguir
214
o percurso do leitor-navegador, esta narrativa gráfica, em comparação com as
páginas impressas, contendo todos os caminhos não acessados, possibilita que
sejam feitos os recortes necessários para análise. Ver em 3.
IV) Entrevistas: após a produção das narrativas gráficas, os usuários terão acesso a seu
gráfico do percurso para, então, serem realizadas entrevistas que posteriormente
serão transcritas. Nessa entrevistas o usuário falará sobre os acessos, seu interesse
e motivações para tais acessos, responderá a algumas questões que serão realizadas
livremente.
215
1) Dados do navegador:
Idade: _____________________________________________________________________
Profissão: ___________________________________________________________________
Curso universitário: ___________________________________________________________
Assuntos de interesse para pesquisa na Web: _______________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Assuntos que mais tem pesquisado na Web: _______________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Motivos de pesquisa: _____________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
216
2) Questionário:
a) Em seu percurso, quais os procedimentos que tomou como fundamentais para a
criação de teu (hiper) texto?
b) Como você explica o contexto no caso da navegação em ambiente digital?
c) Após a navegação, que fatores propiciam a diferenciação entre texto em suporte
impresso e o texto digital (hipertexto)?
d) Como você explica seu percurso de leitura neste caso?
e) Com o hipertexto, o fechamento pode não se dar da maneira com que estamos
habituados. Levando isso em consideração, que critérios você destaca para ter encerrado
seu percurso de leitura?
217
Anexo II
Representações Gráficas
218
Leitor 1
Percurso: 50 min
Entrada no site das 13:50 às 14:40
30 links
5 links
23 links
www.google.com.br
2.450.000 links
14 links 18 links
1.2.1.2
Portal MEC
1.3
Partes
1.2
Aprovadas
cotas nas
1.1.3
Sistema de
cotas:
implementa
1.1.1
Cotas
50% nas
federais
1.2.1.1
Nacionalismo
1.1
Planeta Educação
1.2.1
Aspectos
históricos
1.1.2
ANDI
1.4
Sistema de cotas
nas Federais:
conseqüências
indesejáveis e
1.5
Hipótese
1.6
Atlas
linguísti
1.7
Dos povos rafos
ágrafos a cidadãos
analfabetos
1.0
Sistema de
cotas nas
universidades
federais
219
Leitor 2
Percurso: 50 min
Entrada no site das 13:50 às 14:40
n links n links n links n links n links
---------------- ----------- ---------- ---------- ---------
18 links 30 links 5 links
23 links ------------ ------------ ------------ n links
------------ -----------
links
14 links
---------- n links
----------------
[....]
2.1.2
Movimentos de
integração
3
Cotas
raciais
2.1
Educação
é tema de
discussão
1.3
Consultor
Jurídico
1.1
Projeto
restringe
as cotas
2.1.1
Nacionalismo
1
Sistema de cotas
nas universidades
federais
2
Ações
afirmativas...
1.2
Sistema de
cotas gera
controvérsias
4
Fórum
temático
: você é
5
Hipótese
6
Associação
dos docentes
da
universidade
federal
Senador Paulo Paim =
PT/RS – O cidadão no
legislativo
220
Leitor 3
Percurso: 40 min
Entrada no site das 18 às 18:40
23 links
www.google.com.br
2.450.000 links
14 links 18 links
[...]
1.2.1.2
Portal MEC
1.2.
Aprovadas
cotas nas
federais
1.1.3
Sistema de
cotas:
implementad
o em 6 anos
1.1.1
Cotas
50% nas
federais
1.2.1.1
Nacionalismo
1.1
Planeta Educação
1.2.1
Aspectos
históricos
1.1.2
ANDI
1 sistema de
cotas nas
universidades
federais
O que se ganha com o
sistema de cotas, em termos
sociais e políticos!
Mais uma ação
afirmativa...
221
Leitor 4
Percurso: 120 min
Entrada no site: 18:24 às 20:24
www.cade.com.br
6.660.000 links
Sistema de
Cotas nas
Universidades
Federais
1.1.1
Com
ciência
1.1.3
Cotas de 50% nas
federais – a
Câmara dos
1.1.2
Acordo
propões
1.1.4
Documentação
1.1.5
Senado –
Agência
do Senado
1.4.2.1
Região sul
1.4.2
Universidad
1.4.1
Sistema de Cotas
para alunos de
escolas públicas
1.2
Portal
MEC
1.3
Em busca da
igualdade
1.4.2.2.3
Cursos de
graduação
1.4
Brasil
avança na
qualidade
de ensino
1.4.2.2
São
Leopold
o
1.1
universidade
de Brasília
pode ser a
1.4.3
Pós-graduação
1.4.1.1
A abrangência
das cotas
1.4.1.1.1
Um
a questão
racial
1.4.1.1.2
O lugar do negro e do
índio na universidade
222
Leitor 5
Percurso: 35 min
Entrada no site: 20:03 às 20:38
www.google.com.br
35.100.000 links
t
Sistema de Cotas
nas
1
Artigos
acadêmicos
sobre o
sistema de
cotas
2
A
cesso a Negros
nas
Universidades
públicas
2.1
Democratização do
acesso á educação
2.1.1
Política de cotas
raciais nas
universidades
2.1.2
Universidade
aberta
3
Planeta
educação
3.1
Sistema de cotas
pode chegar às
escolas técnicas
3.1.1
MEC -
reforma
3.1.2
Port...
para pré-
escolares
3.2
Reforma
universitária
3.2.1
Cotas para
negros nas
universidades
3.2.2
O apartheid
brasileiro
Políticas de cor na
educação
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