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CULTURA, MERCADO
e PERSPECTIVAS para
O AUDIOVISUAL BRASILEIRO
NO SÉCULO XXI
Daniel Vidal Mattos
Tese defendida para obtenção do grau de
Doutorado em Comunicação e Cultura pela
Escola de Comunicação da UFRJ
Orientador: Prof. Dr. Márcio Tavares
D’Amaral.
Março – 2006
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ii
Mattos, Daniel Vidal
Cultura, mercado e perspectivas para o audiovisual brasileiro
no século XXI / Daniel Vidal Mattos. Rio de Janeiro, 2006.
306p.
Tese (Doutorado em Comunicação) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, ECO, 2006.
1. Audiovisual. 2. Mercado de audiovisual. 3. Políticas de
cultura. 4. Comunicação - Tese.
I. D’Amaral, Márcio Tavares (orient.) II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Escola de Comunicação. III. Título
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iii
CULTURA, MERCADO e PERSPECTIVAS para
O AUDIOVISUAL BRASILEIRO NO SÉCULO XXI
D
ANIEL
V
IDAL
M
ATTOS
Tese submetida ao corpo docente da Escola de Comunicação da UFRJ como parte dos
requisitos necessários à obtenção do Grau de Doutor em Comunicação e Cultura.
Aprovada por:
__________________________________
Prof. Márcio Tavares D'Amaral (orientador)
__________________________________
Prof. Paulo Vaz (UFRJ)
__________________________________
Prof. Ivana Bentes (UFRJ)
__________________________________
Prof. Erick Felinto (UERJ)
__________________________________
Prof. Andréa França (PUC-RJ)
iv
Resumo:
Análise do ambiente de criação, produção e consumo de audiovisual no Brasil em relação
a cenário mundial, notadamente nos aspectos que concernem à avaliação da qualidade
do produto ou obra. Essa avaliação da qualidade se daria por dois vieses antagônicos: o
modelo de valoração do mercado, que articula as propriedades de lucratividade versus
efeitos de audiência; e o modelo de valoração da cultura, que articula os potenciais de
educação e inovação desses mesmos objetos comunicacionais. A partir da definição
dessa dicotomia em termos, procede-se a desconstrução dela mesma, demonstrado-se o
imbricamento dos valores culturais e de mercado nas estratégias de sobrevivência dos
atores sociais envolvidos nesse ambiente produtivo. Em alguns momentos esse choque
de valores revela-se positivo do ponto de vista social, cultural e econômico. Em outros,
ilustra formas incoerentes ou perversas de apropriação do público pelo privado.
Finalmente apresentamos um panorama dos problemas e desafios do audiovisual
brasileiro e a forma como os valores dicotômicos da cultura e do mercado determinarão
seu desenvolvimento no século XXI.
v
Sumário:
Prólogo 1
1.
Modelos 8
1.1.
O Modelo do Mercado 22
1.1.1.
O Eixo do Lucro 40
1.1.2.
O Eixo da Audiência 67
1.2.
O Modelo da Cultura 120
1.2.1.
O Eixo da Inovação 154
1.2.2.
O Eixo Educação 177
2.
Os Entrecruzamentos dos Modelos 185
2.1.
Audiência e Educação 191
2.2.
Audiência e Inovação 208
2.3.
Educação e Lucro 226
2.4.
Inovação e Lucro 236
3.
Perspectivas para o Audiovisual Brasileiro no Século XXI 241
Epílogo 292
Referências Bibliográficas 295
Dedicatória 305
vi
Agradecimentos:
Deixo registrada minha gratidão ao mestre Marcio Tavares D’Amaral, pela orientação que
transcendeu em muito o acadêmico, que foi uma orientação ao espírito e ao entusiasmo
pelo pensar. Agradeço também ao mestre Paulo Vaz pela acuidade e contundência com
que provoca esse mesmo espírito e pensamento.
Àqueles a quem amo e que me retribuem com amor agradeço o milagre do encontro.
1
Prólogo:
Tudo começou num dia de infância quando alguém me deu uma explicação equivocada
sobre o que seria o daltonismo: “É quando uma pessoa troca cores, por exemplo: onde
azul, amarelo e onde amarelo, azul”, explicou-me o tal. Minha resposta foi
uma pergunta retórica: “Então como você sabe?”. Um dia alguém me apontou o céu e
disse que aquilo era o azul. Se eu visse amarelo, chamaria de azul e ninguém, munido
do método que fosse, jamais seria capaz de saber. Aliás, quem me garante que aquilo a
que o outro chama de azul é o azul que eu vejo? Para pergunta tão banal, nenhum
arauto da objetividade pôde até hoje me dar uma resposta satisfatória. Mais tarde vieram
me explicar o daltônico como alguém que não consegue ver determinada faixa do
espectro de cores, o que o levaria a não conseguir diferenciar certas cores por serem
compostas, por exemplo: cego para o vermelho, o daltônico confunde verde com
marrom. Eis aí uma limitação que outro é capaz de perceber.
Eureka! Conhecer e diferenciar são o mesmo. Conhecer é reconhecer ou negar
reconhecimento. Este insight fundou minha consciência epistemológica. A ciência se
funda exatamente naquilo que não se pode saber. ali mais vontade de poder do que
de saber. Poder exercido dentro dos limites da capacidade do intelecto de diferenciar e,
portanto, identificar as coisas. Mais que isso: poder que se exerce não pela
superação desses limites, mas também por sua conservação.
Eis então o caminho que segui (meu método): se algo a ser discutido, pensado ou
aprendido, não é aquilo que as coisas são, mas as motivações que nos levam a, por
vezes, pôr fronteiras entre elas e, outras vezes, a ignorar as diferenças existentes dentro
dessas mesmas fronteiras.
2
Diferenças e semelhanças são tudo que experimentei e conheci em minha vida. Das
coisas mesmas nada soube. Comparar é o trabalho de construir conhecimento. Se algo
me fez desejar interferir nessa ordem, foram as situações em que me vi submetido a um
certo daltonismo conveniente para outros, mas não para mim individualmente.
Sobretudo, e a partir de então, não mais admitiria ter o testemunho de minha experiência
cassado em nome de outro, pretensamente menos daltônico ou mais “fundamentado”.
Tudo que fazem as teorias é a apologia de algumas paixões e a sabotagem de outros
desafetos. Nada mais podem as palavras analíticas da ciência além de dividir e
fragmentar. Toda ciência é humana.
Munido de visão cética a respeito das justificativas racionais pirotécnicas que os homens
dão ao uso pressuposto de seus valores arbitrários, ingressei na academia convicto de
que a única coisa nobre que pode ser feita com os signos (signo é aqui uma palavra
inocente de definição) era arte. Arte que para mim se define como uma composição de
signos que tem por princípio justamente o desprezo pela ordem, que me irritava ver
sendo perseguida em discussões estéreis sobre a ética jornalística ou uma tal “qualidade”
que faltaria à programação das emissoras de TV. A academia é também, muitas vezes,
uma reserva de erudição conservadora. Meu fetiche, no entanto, se dirigia para o cinema
e seu poder de arrebatamento. Desejava de uma escola de comunicação que ela me
municiasse dos artifícios capazes de arrebatar com palavras, imagens e sons. Esse era
o único conhecimento que interessava: instrumental, eficaz e amoral. Estava mesmo
convicto de que o exercício da teorização acadêmica só se explicava pelo fracasso de um
projeto artístico. Recalcado, o artista retorna sob a forma de um scholar impiedoso, que
explica ao mundo seu fracasso pelas regras que determinarão o fracasso de todos.
“Quem sabe faz, quem não sabe ensina”, diz o ditado mais impiedoso com a vocação do
magistério ao qual hoje me dedico integralmente. Mas, naquele momento, eu desejava o
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saber fazer, longe do positivismo totalitário da ciência consultiva, que me parecia
incomodamente dominante na academia, em detrimento justamente do aprendizado
artesanal que eu buscava. Ao mesmo tempo, encontrei na escola indícios de um outro
tipo de reflexão teórica, soterrada nos escombros de dois mil anos de certezas
autoritárias da Igreja e da Ciência. Os Sofistas, Nietzsche, e mais alguns filósofos se
uniram a Jung e o niilismo abissal da filosofia oriental para construir em mim uma
alternativa à convicção do estelionato político possivelmente mascarado pela metodologia
científica (estratégia do não-pensar) e marcar um rompimento prematuro com tudo que a
autoridade intelectual representava. Acreditava que o emblema do pensamento de estufa
universitária era a nota de rodapé. Referências bibliográficas me pareciam uma
constrangedora caricatura da insegurança daquele que cita e da mistificação do que é
citado. Por falta de microscópio, o cientista das humanidades se debruça sobre a doxa
alheia. A comunicação, como ciência demasiado humana, é um campo onde o poder de
opinar está em jogo. Como sobreviver no que me parecia o território minado da tradição
teórica das ciências humanas? Todo o acúmulo histórico de formalidade sufocante
condicionaria o direito de falar a um levantamento arqueológico-bibliográfico-
metodológico sujeito a regras ambíguas que tornariam a tarefa da produção intelectual
interminável, inexeqüível, estrada dos mil pedágios, túmulo do pensamento.
Foi, por assim dizer, uma relação de amor e ódio. Enquanto meus colegas pegavam
seus diplomas como cartas de alforria e abandonavam a escola para sempre, eu segui,
como um rebelde fiel, a dialogar com o objeto através dos textos e a dialogar também
com os textos através do objeto sempre com uma mistura de culpa e um certo prazer
perverso por manipular e iludir onde se exige isenção e disciplina. E não é essa culpa e
esse prazer a ética de todo cientista?
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Graças ao método da contradição, essa tese se costura fundamentalmente nos textos de
outros, editados e fragmentados como vozes de uma assembléia fantasmagórica, que
discute o papel do audiovisual, em especial do cinema, para o Brasil. Essas vozes nem
sempre falam o que eu gostaria de dizer. São personagens de um diálogo entre cultura e
mercado no qual me recuso terminantemente de tomar partido que não seja o meu
próprio.
Após essa confissão, posso crer que o ensaio é a forma do texto que se segue. Gostaria
de poder dizer que o ensaio é o único estilo que qualquer um pode produzir em ciências
humanas, se quiser ser sincero com o leitor, mas para não me indispor com a tradição da
casa, me calo como Galileu. Resta-me defender da melhor maneira possível o ensaio
como método usado na construção desta tese.
Creio que a questão central aqui é a legitimidade do enunciado. Por exemplo: é legitimo
afirmar que se alguém não leu um texto, não pode comentá-lo? A afirmativa é, a
princípio, incontestável. Não posso representar algo a que não fui apresentado. No
entanto, um texto não é um objeto fechado em si mesmo. Pelo contrário, é uma
composição de signos e regras de associação entre eles que representa algo que é (este
sim) o objeto da representação. Da mesma forma, um texto (qualquer texto) versa sobre
algo que existe para além do campo textual. É um enunciado emitido por um sujeito
acerca de um objeto.
Cabe agora reformular a pergunta: pode alguém que não leu um texto, emitir
legitimamente um enunciado sobre o objeto representado no texto?
Para responder a essa pergunta é preciso definir se o objeto de estudo é o texto ou o
objeto representado pelo texto. Problema este que pouco é encarado pelas ciências
5
humanas ficando restrito à curiosidade de alguns filósofos. Se o objeto de estudo é o
texto, alguém que o lê detém autoridade moral para enunciar legitimamente sobre o texto,
mas não sobre o objeto por ele representado. Parece que, muitas vezes, o que está em
jogo nas ciências humanas não é a legitimidade do enunciado sobre objeto, mas a
autoridade moral sobre o texto.
A legitimidade da enunciação é dessa forma transferida para o autor (sujeito da
enunciação) e outorgada ao estudioso do texto, convertido numa espécie de
sacerdote. Que a relação com o texto seja essa é perfeitamente compreensível, os
primeiros textos são até hoje sacralizados, mas será então que a religião e as ciências
humanas dividem um mesmo método/fundamento (da sacralidade do texto)? Evidencia-
se aí uma relação canônica com a figura do autor, que nem sempre é Deus. A reverência
e submissão do leitor perante o autor é uma estratégia das ciências humanas para lidar o
problema do fundamento, imposto segundo as regras das ciências naturais e exatas.
Constrói-se o palco para uma cena edípica. O leitor, filho submisso, deve assimilar o pai
completamente para assim apoderar-se de sua autoridade. O texto, primeiro é adorado
em um altar para em seguida ser apropriado em sua legitimidade na forma de um outro
texto, “novo”, que confere ao ex-leitor a legitimidade conquistada através da educação.
O problema que leva à cassação da fala do sujeito que não leu é que este fala acerca do
objeto, e o faz em seu próprio nome, o que é inadmissível na tradição dessa sociedade
do conhecimento. Já o sujeito educado fala em nome do autor e acerca do texto, jamais
abandonando os jardins seguros da erudição. A maior ou menor legitimidade de um
sujeito nesse sistema varia conforme sua capacidade de demonstrar que leu, ou seja,
que não fala em seu próprio nome. Paradoxalmente a conquista dessa legitimidade tem
como objetivo a libertação em relação à dimensão textual e o conseqüente ingresso na
classe autoral.
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À classe leitora cabe tão somente o papel de comentar o texto. É privilégio exclusivo da
classe autoral a emissão de enunciados de representação do objeto. Privilégio cuja
longevidade e raio de ação dependem da manutenção do compromisso do autor com o
universo da textualidade. Quanto menos autoral for o autor maior será sua autoridade.
O expediente garante a conservação do ideal positivista do conhecimento visto como um
todo sistêmico. Evita legitimamente a dispersão e a redundância. O texto deve possuir
descendência, deve pousar no topo de uma pilha histórica de outros textos. Sem o
amparo dos nomes nas notas de rodapé nenhum texto acadêmico se sustenta,
simplesmente porque o seu autor, no ato da escrita, porta-se como leitor e torna-se autor
justamente por isso.
Peço que me perdoem a insolência logo no prólogo e justo sobre a metodologia. O que
acabou de ser lido é uma caricatura. Está propositalmente parcial e radical. Mas é um
forma de ilustrar o papel da bibliografia no presente trabalho. Aqui não se recorre ao
texto como subsídio ou amparo para afirmações a respeito do objeto, mas antes para
popular a tese de vozes contraditórias, que erram (e herram), e que por isso nos ajudam
a compreender o erro de que trata esse trabalho. O pressuposto central da tese é o de
uma dicotomia entre duas textualidades (cultura e mercado) sobre o mesmo objeto: o
audiovisual. Não se pretende aqui, certamente, apurar a existência de um lado que tem
razão e outro que não. Nem se quer construir uma “terceira via” que pretenda ser mais
real que o rei, neutralizando assim todas as incoerências e paradoxos que constituem o
objeto que veio a produzir essas perspectivas distintas sobre si. Quer-se antes explorar
os perigos e oportunidades presentes justamente na contraposição e embate dessas
vozes. Esta tese é uma representação do diálogo entre cultura e mercado no cenário do
audiovisual brasileiro. É, portanto um exercício de dialética no qual a dimensão textual
tem um papel dissuasivo e a leitura um papel conclusivo. Optou-se por um formato por
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vezes jornalístico e didático. As definições e perspectivas são carregadas nas tintas para
dar relevo visível às nuances. É um texto cheio de inverdades, pois é justamente a
inverdade que ele busca no meio de afirmações pretensamente verdadeiras. Afinal, esta
é uma tese de política da comunicação. E está politicamente posicionada no extremo-
centro. Isso porque não busca conciliar, mas implodir os dois lados de uma vez, atraindo
seus discursos para um centro denso, pesado, como um buraco negro faria.
A tese está dividida em três partes. Na primeira, identificamos e descrevemos dois
modelos de valoração do produto audiovisual: o modelo do mercado e o modelo da
cultura. Cada um será descrito segundo suas próprias regras. Isso significa que uma
parte desmente a outra, desobedece à outra, distingue-se da outra. O modelo do
mercado será descrito em uma linguagem econômica, a partir de dados econômicos. O
modelo da cultura traz outra linguagem, mais crítica, menos objetiva. Na segunda parte
os dois modelos são decompostos e recombinados. As duas linguagens entram em
conflito, pois são os conflitos que interessam à segunda parte. Finalmente, na terceira e
última parte, uma análise crítica das perspectivas que esse exercício nos oferece.
Uma tentativa de dar orientação às conclusões tiradas, de propor algumas coisas e
retornar a umas outras. É uma conclusão, embora o processo esteja concluso desde o
princípio e venha todo na forma de uma grande demonstração.
Por fim, desejo ao leitor sorte na empreitada de dar sentido à trama e paciência com a
imperfeição do meio e a incoerência do autor. Se for capaz de perdoar a ambição do
trabalho, o leitor talvez testemunhe nele a paixão pela escrita, pela comunicação, pela
política, pela polêmica e pelo audiovisual. Essas são paixões a compartilhar. Se o forem
efetivamente, não poderão fracassar.
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1. Modelos:
Nossa jornada parte de uma hipótese que tem um valor inicial intuitivo. Existem dois
principais modelos de abordagem da atividade audiovisual: um tipicamente cultural e
outro mercadológico. Esses modelos se voltam ao mesmo objeto, mas o definem de
formas diferentes. Porque o audiovisual diz respeito tanto ao mercado quanto à cultura,
estes são forçados à dialética. Na maioria das vezes, no entanto, esse diálogo é
contornado e evitado. Em outras é entendido e praticado com um conflito. A suposição
de que esses modelos sejam antagônicos ou que sua relação se resolva em uma função,
é falsa segundo esta tese. Cultura e Mercado não são coisas, mas aspectos da
sociedade. “Features of the same face”, como definiria Josef Campbell. O
desenvolvimento e a utilização dessas duas perspectivas como modelos também serve a
interesses ideológicos por vezes conflitantes. ainda momentos em que uma
abordagem dicotômica de aspectos culturais e mercadológicos do objeto cultural acaba
por sabotar essa relação, fazendo com que se pretenda um lugar prioritário para um, e
logo se acrescentará: em detrimento do outro. Os encontros e desencontros dos modos
de valoração da cultura e do mercado deixam vestígios nas políticas públicas, nas
decisões empresariais, nos critérios de investimento e chegam mal arrumados ao senso
comum.
Para falar sobre o litígio entre cultura e mercado é preciso buscar uma origem simbólica
para essa oposição. Nossa escolha é o pensamento do sociólogo alemão do século XIX,
Karl Marx. Vários pensadores se debruçaram sobre a materialização produto cultural a
partir do século dezenove. O tema, objeto primordial da escola de Frankfurt, tem origem
em Marx. A obra de Karl Marx apresenta uma forma de interpretação da dinâmica social
que influenciou os mais diversos campos do pensamento. O alcance e as implicações da
sua poderosa teoria contaminam tanto o discurso político de esquerda, quanto o de
direita e tem papel na construção histórica da dicotomia entre público e privado que se
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desdobra na oposição entre socialismo e capitalismo e, quando transposta para nosso
problema, apresenta-se na cisão entre Cultura e Mercado.
Os marcos do pensamento, como Marx ou Darwin, estabelecem paradigmas quando
ordenam, ao alcance do conhecimento (do método), fenômenos antes experimentados de
forma indistinta.
Hoje sabemos que não há marco teórico definitivo, livre da ação
corrosiva do tempo. Desfeita a ilusão positivista de uma ciência platônica feita à imagem
e semelhança do real, passamos a entender as concepções de mundo como sintomas da
cultura com endereço histórico e geográfico em que se criaram. Essa diferenciação
costuma ser descrita nas narrativas da passagem da cultura moderna ao que seria uma
cultura pós-moderna, ainda sem nome próprio. Apóia-se precisamente o conceito de
paradigma.
Um sistema interpretativo, ao mesmo tempo em que media a relação do homem com o
mundo através de um método, impõe ao conhecimento limites próprios desse método.
Então podemos supor que, quando mediada exclusivamente pela sistemática marxista, a
comunicação é passível de ser reduzida a um problema de economia política. A partir
daí não falta quem, julgando-se amparado pelo modelo marxista, promova a
“coisificação” da economia, separando-a do mundo, delimitando fronteiras que
transformam o capital em um agente separado e independente da sociedade quando, na
verdade, trata-se de um aspecto dela.
A transposição do conceito de produção em massa para o de comunicação de massas
funda toda uma escola de pensamento sobre a comunicação social de orientação política
claramente delimitada, notadamente de esquerda, centralizada na academia européia e
voltada para o combate ao capitalismo. Mas será que o sistema teórico de Marx,
10
particularmente sob essa forma, é o destino inescapável de toda questão de
comunicação de massas e seus efeitos sobre a sociedade e a cultura?
No lado oposto, bebendo na fonte do pensamento econômico liberal, fundamentada no
empirismo britânico e instrumentalizada pelo todo estatístico da pesquisa de opinião
pública, está a “escola americana”: manancial e sustentáculo do pensamento de
mercado, filosoficamente darwinista e hoje identificada com o globalismo neoliberal.
Historicamente, desde a escola de Frankfurt, notadamente nas ciências humanas
européias, o discurso marxista sobre a ordem da produção e do consumo tem sido
transferido de forma análoga para as descrições da ordem da comunicação e da cultura.
Daí emerge a dicotomia entre mercado e sociedade, entre cultura e consumo, que divide
o espaço social em dois lados inconciliáveis: um economicamente mensurável,
pragmático, materialmente sustentável, mas vazio de sentido; e um outro social, cultural,
ecológico, ecumênico e aparentemente sem fins lucrativos.
A teoria marxista que move essa distinção pode ser resumida assim: a mercadoria ganha
valor de uso segundo dois princípios; primeiro, conforme suas propriedades e as
necessidades humanas que estas satisfazem; segundo, recebendo essas propriedades
como resultado do trabalho humano.
1
ainda o caráter místico da mercadoria (aquilo
que na publicidade chamamos de valor agregado). E esse valor abstrato não está no
“conteúdo das determinações de valor” porque o trabalho sempre foi algo perfeitamente
quantificável e essa quantificação resiste às diferenças qualitativas entre os diferentes
tipos de trabalho. Em alemão, um Morgen de terra equivale à área que um homem é
capaz de arar em um dia. Esse simples exercício de etimologia demonstra o empirismo
no papel do trabalho sobre as representações de mundo. Como os homens trabalham
1
Marx, Karl. “O Capital: Crítica da economia política” 1983 Ed. Abril. Tradução de Regis Barbosa e Flávio
R. Kothe (Coordenação e revisão de Paul Singer). Livro primeiro: o processo de produção do capital. Seção
I: mercadoria e dinheiro. Capítulo 1: a mercadoria. 4. O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo.
11
uns pros outros, o trabalho tem uma forma social, e o produto se torna mercadoria
quando assume esse caráter adicional.
O valor do trabalho humano é mensurado de forma tão objetiva quanto o valor do produto
deste trabalho. O trabalho é então medido pelo valor do produto desse trabalho. As
relações entre os produtores (onde percebemos as características sociais de seus
trabalhos) se projetam numa relação mercadológica entre os produtos do trabalho, que
agora estão convertidos em mercadoria dotada de valor metafísico (que transcende o
valor de uso).
Percebamos, então, que é fundamental no paradigma marxista o seguinte pressuposto: a
mercadoria reflete as características sociais do trabalho.
Mercadoria = Produto + Valor Social do Trabalho
As relações sociais entre os produtores se transformam em relações comerciais entre
mercadorias. A mercadoria é um objeto físico, com valor de uso, mas é também um
objeto metafísico, simbólico ou social porque assume e media relações sociais. Esse
valor subjetivo e social que é transferido para os produtos do trabalho transformando-os
em mercadoria é o que Marx chama de fetichismo e indica como, na economia de
mercado, o caráter social do trabalho se transfere das relações entre os produtores para
a relação entre as mercadorias. Essa relação (entre mercadorias) se expressa no valor
relativo de cada mercadoria quanto posta no mercado (espaço de todas as mercadorias).
Note-se que mercado e sociedade são vistos como espaços análogos, porém
separados. Vale também ressaltar que esses dois espaços, segundo a teoria marxista,
competem pelo poder de valoração. Onde o mercado atribui valor, a mercadoria rouba”
os atributos sociais do trabalho.
12
“Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus
produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos
privados só aparecem dentro dessa troca”. Com essa afirmação, Marx abre espaço para
a interpretação de que a relação entre as pessoas é reificada enquanto a relação entre as
coisas se culturaliza, herdando a propriedade social do trabalho.
O que não ficará claro jamais é essa “especificação social” (vide grifo acima). Embora a
lógica de valoração do produto no mercado esteja exaustivamente descrita na tradição
econômica, o atributo do valor social, supostamente perdido no processo, permanece
como resto da operação, indeterminado por si só. Por falta de mecanismo melhor, o
valor social (que em nosso trabalho surgirá como valor cultural) define-se simplesmente
como aquele que não é mercadológico. Essa forma maceteada de valoração sócio-
cultural é talvez o calcanhar-de-Aquiles do discurso de defesa da cultura ante a lógica do
mercado. Não conta de descrever objetivamente as positividades externas ao valor
mercadológico que pretende defender. Adiante veremos que essas positividades são
descritas principalmente como propriedades educativas ou de inovação. Por hora,
mantenhamos o foco na economia política propriamente dita.
Os produtos m características fisicamente diferenciadas devido à natureza diferente de
suas propriedades de uso e às diferentes quantidades de trabalho requerido para
produzi-los. No momento da troca, quando um produto é posto lado a lado com outros
produtos, este recebe um valor qualitativo comum, igual ao de qualquer produto. A
grandeza desse valor se estabelecerá sempre relativamente à de outros produtos. É o
valor monetário do produto no mercado.
Os trabalhos privados dos produtores adquirem então um duplo caráter social. Por um
lado, seu produto deve inserir-se no contexto do trabalho total, suprindo alguma demanda
13
e encontrando lugar na divisão social do trabalho. Por outro, para que o produtor tenha
acesso à diversidade de produtos produzidos por outros, seu trabalho particular deve ser
posto em equivalência com todo outro tipo de trabalho. Assim, o que possibilita a troca
de produtos é a tradução de suas grandezas de valor qualitativamente diferentes em um
denominador comum, um qualitativo único ao qual se aplicará alguma expressão
quantitativa. Diferentes trabalhos são reduzidos à categoria única de “trabalho”.
“O valor transforma muito mais cada produto de trabalho em um
hieróglifo social. Mais tarde, os homens procuram decifrar o
sentido do hieróglifo, descobrir o segredo de seu próprio produto
social, pois a determinação dos objetos de uso como valores,
assim como a língua, é seu produto social”.
2
O que Marx encontra aí é o fundamento materialista do processo social de valoração.
na forma de mercadoria tangível é que o trabalho, com sua singular capacidade de
transformar recursos do ambiente em produtos, consegue ser recompensado na forma de
riqueza. A materialização do caráter social do trabalho (cultura) na forma mercadoria
possibilita então a mais-valia, que é a acumulação da riqueza produzida pelo trabalho
passado em mais-riqueza.
No momento em que nos depararmos com os problemas típicos da produção e
comercialização do produto audiovisual, esse paradigma será determinante dos conflitos
entre sua dimensão cultural e a necessidade de sua inserção no mercado.
A questão que emerge dé a do valor comparativo das mercadorias acabadas, ou seja,
quanto vale um produto em relação a outro. O caráter de valor dos produtos de trabalho
2
Idem, pag. 72
14
apenas se consolida mediante sua efetivação como grandeza de valor”. Como a
grandeza de valor não é controlada por algum produtor, mas é resultante da atuação de
todos no jogo de oferta e demanda, os homens estão sujeitos ao valor quantitativo das
coisas em relação umas às outras. O trabalho é cotado segundo a relação de valor entre
seu produto e outros produtos. Nominalmente, o valor da mercadoria variará segundo a
quantidade de tempo trabalhado pra obtê-la.
Mais tarde veremos que precede o mercado de produtos audiovisuais um outro mercado
de grande importância estratégica para sua eficácia que é o mercado de projetos no qual,
entretanto, essa operação de valoração a posteriori não é possível. Esse é um problema
fundamental do marxismo: o mercado de trabalho, ou seja, a forma como se pode decidir
que trabalhos devem ser feitos e quais não devem.
Para entendermos a crise da noção de mais-valia num mundo cada vez mais voltado
para a economia da informação e o capital intelectual, Domenico De Masi, propõe
imaginarmos que, graças à tecnologia, uma única pessoa fosse capaz de produzir todo o
PIB da Itália: segundo o sistema social diagnosticado (e simultaneamente criado) pela
economia política, esta única pessoa deveria reter todo o trabalho e toda a riqueza dele
derivada, deixando o restante dos homens sem nada pra fazer nem nada pra comer.
3
“O tempo de trabalho socialmente necessário à produção do
produto se impõe com violência como lei natural reguladora da
grandeza de valor segundo a qual este é dado à troca. (...) É
exatamente essa forma acabada a forma dinheiro do mundo
das mercadorias que objetivamente vela, em vez de revelar, o
caráter social dos trabalhos privados e, portanto, as relações
sociais entre os produtores privados”.
4
3
De Masi, Domenico. “O Ócio Criativo” Rio de Janeiro : Sextante, 2000.
4
Marx, pág. 73
15
O valor é uma relação entre pessoas. É na formação da grandeza de valor da
mercadoria que se apresenta a interação social, já que esta é posta em relação ao
trabalho social total. O trabalho, apesar de sua natural particularidade, é avaliado na
produção de mercadorias exclusivamente em sua generalidade. “Em uma sociedade de
produtores de mercadorias, a relação social geral de produção consiste em relacionar-se
com seus produtos como mercadorias, portanto como valores”.
5
O produtor se relaciona
com o produto (seu e de outro) não segundo o valor de uso (sobre o qual atua a
necessidade sua ou do outro), mas segundo o valor de troca, sobre o qual atua toda e
nenhuma necessidade, e segundo o qual seu trabalho é quantificado objetivamente.
De mesma forma, embora a obra audiovisual, enquanto objeto de arte e produto da atual
cultura local, seja naturalmente particular (o que se deseja é sempre um outro filme, outro
capítulo, outro episódio, outra edição...), este pode ser avaliado no mercado em sua
generalidade como custo e receita, como produto substituível. Quando tratamos do
mercado de projetos, podemos dizer que um projeto de produto audiovisual pode ser
avaliado em sua generalidade como custo e receita potenciais, ou seja, como risco e
oportunidade para o capital investido.
Como estabelecer um valor de uso para o produto audiovisual? Valores sociais, como
propriedades educativas ou de inovação cultural (modernização) apresentam-se para
essa discussão. Esses valores podem substituir com sucesso o valor capital-fetichista na
regulação da produção de audiovisuais? Se valor é coisa que surge sempre numa
relação entre partes, isso vale pra quaisquer valores de um ou outro lado da equação
marcado versus cultura.
5
Idem, pág. 75
16
No diagnóstico de Marx, a sociedade capitalista os homens deixam que as mercadorias
decidam por eles que trabalho deve ser feito e quanto vale esse trabalho. Os limites do
mercado tornar-se-iam limites da humanidade. Como decidir, então, que filmes devem
ser feitos e quais não devem? Em um mercado de projetos, segundo seu valor genérico
de troca, na forma “mercadoria cultural” (avaliados risco e oportunidade econômicos); ou
em um sistema sócio-político racional, segundo sua particularidade social, na forma “obra
cultural” (avaliadas as particularidades envolvidas)?
Há aqui um problema teórico geral (do determinismo metodológico na produção de valor)
que deve ser transposto para o objeto de comunicação. A comunicação de massas como
objeto cultural é descrita pela crítica cultural marxista como tensão entre o caráter local,
comunitário e empírico da cultura e a dimensão comercial e metalocal dos meios de
comunicação de massas. Está aí presente a tensão entre público e privado, entre
sociedade e propriedade que problematiza a formulação de modelos eficazes de gestão
pública da produção cultural, em particular da produção audiovisual. O que tem ocorrido
na maioria das vezes é o transporte da oposição entre valor econômico e valor social
para o campo da comunicação e da cultura, onde se torna uma oposição entre valor
comercial e valor artístico-cultural. O objetivo desta incursão teórica é revelar essas duas
mentalidades. A concepção cindida dos aspectos materiais e imateriais da comunicação
está no núcleo do problema aqui abordado.
Entretenimento e arte:
17
“A tensão entre arte e industria traduz uma outra, entre arte e entretenimento e esta pode
ganhar maior escala no cinema”. Francisco Wefort.
6
Proponho uma construção ligeiramente diferente da frase do ex-ministro e intelectual
social-democrata Francisco Wefort: a tensão entre cultura e mercado traduz-se em uma
outra, entre arte e trabalho e esta pode ser particularmente problemática no cinema, por
ser uma atividade de grande custo material. Essa diferenciação por oposição foi
cristalizada pela escola de Frankfurt. Entretenimento e arte surgem naquele momento
como coisas fundamentalmente distintas, sendo entretenimento aquela obra de arte que
pode ser convertida em mercadoria e, ato contínuo, perde seu valor artístico-cultural (sua
aura).
Apesar da complexidade dos processos discutidos neste trabalho, encontrar e denunciar
a ação corrosiva da industria cultural é tarefa que a maioria das pessoas se julga apta a
fazer com acerto a partir da noção comum de senso crítico. Por isso, quando a
materialização da cultura (sua mercantilização) se apresenta nas manifestações artísticas
e culturais (as que, segundo aquela teoria, mais deveriam se afastar desse processo)
logo se tornam alvo fácil e muito visado por esse tipo de senso crítico. A própria noção
de “arte” muitas vezes vem acompanhada da idéia de que esta seria justamente uma
espécie de antônimo daquilo que seria a mercadoria. Posições ideológicas à parte, não
podemos negar que a orientação mercadológica passa a impregnar qualquer
manifestação artística desde o momento em que esta é reconhecida como tal, ou seja,
desde que esta possa oferecer um repertório passível de manuseio para a formação de
produtos culturais. A noção geral de indústria cultural ou de comunicação de massas
vem em grande parte associada à idéia de repetição, de reprodução em escala. Não é
6
Wefort, Francisco C. “Cultura, Cinema e Indústria” em Cardoso, Fernando Henrique, et al. “Cinema
Brasileiro. Serie Cadernos do Nosso Tempo, Nova Serie, 4”. Rio de Janeiro : Fundo Nacional de Arte e
Cultura : 2001.
18
por acaso, portanto, que os fenômenos mercadológicos e industriais nas artes tenham
sido alçados a esse papel vilanesco logo após as denúncias realizadas pela Escola de
Frankfurt. A Indústria Cultural, tal qual delineada por Adorno e Horkheimer na “Dialética
do Esclarecimento”, “levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o
que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social”
7
. Essa diferença, que
pode ser traduzida aqui na diferença entre a lógica da cultura e a do mercado é
justamente aquilo que a escola de pensamento alemã prematuramente cristalizou numa
dicotomia paradigmática em torno da qual cavaram-se as trincheiras da luta política entre
capitalismo e socialismo que até hoje permeiam o inconsciente político ocidental.
Para ilustrar essa mudança de foco, os dois pensadores da escola alemã utilizam um
exemplo experimentado pela sociedade de sua época sobre a mudança tecnológica:
“A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis.
Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda
desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio
transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los
autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das
diferentes estações. Não se desenvolveu nenhum dispositivo de
réplica e as emissões privadas são submetidas ao controle”.
8
Os dois teóricos revelam clara antipatia ao rádio e às suas mensagens padronizadas,
controladas e repetidas em massa. Essas denúncias pavimentaram o caminho de todos
aqueles que viriam posteriormente defender a negação e a rejeição da mercadoria
cultural, uma vez que esta estaria claramente relacionada à banalização realizada pela
Indústria Cultural, por sua vez, a maior de todas as vilãs da cultura. De certa forma, o
entretenimento passou a ser considerado como a mais visível das ferramentas utilizadas
pelo Leviatã que neutraliza a cultura comprando o ócio e a alma das pessoas
7
Adorno, T. e Horkheimer. “Dialética do Esclarecimento”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor : 1985. pág.
111.
8
Idem, pág 111-112.
19
entendiadas das sociedades modernas. Assim, o fenômeno da produção da mercadoria
cultural propriamente dita, dos processos que definem a construção e utilização destes
produtos pelos agentes culturais, jamais foram abordados com a isenção ou o
afastamento que sempre foram colocados como os primeiros requisitos da teoria crítica.
Dialogando com o exemplo de Adorno e Horkheimer, poderíamos objetar que, da mesma
forma que a técnica da Indústria Cultural resultou na padronização e na produção em
série, em um primeiro momento (do liberalismo do telefone à demagogia do rádio) essa
mesma técnica permite hoje a construção de ferramentas ainda mais engenhosas de
controle que superam, em certo sentido, os processos de padronização e repetição.
Hoje, a Indústria Cultural proporciona “os mecanismos de réplica” que tanto fizeram falta
aos frankfurtianos, mas fazem com que estes mecanismos continuem trabalhando da
mesma maneira que as antigas estratégias. Desse exemplo podemos retirar a lição de
que não é o desejo de padronização ou a realização da repetição que carregam em si o
pólen das flores do mal. A segmentação e a diferença também podem ser utilizadas
como estratégia das “Sociedades de Controle”
9
e das “máquinas de produção de
subjetividade capitalísticas”.
10
Ou seja, não é necessária nem produtiva a valoração
absoluta dos padrões de repetição/padronização (normalmente tidos como ruins) e
diferença/individuação (normalmente considerados desejáveis), e sim as formas como
estes padrões serão aplicados. A obra artística e cultural, fruto de processos elaborados
a partir da seleção e da repetição de determinadas significações em detrimento de
outras, pode e sempre foi muito utilizada com as más finalidades aqui demonstradas e
também denunciadas. Mas o processo de industrialização em si não pode e não deve
9
Segundo Deleuze, no “Post Scriptum” das suas “Conversações”, as sociedades de controle cada vez mais
substituem as sociedades disciplinares estudadas por Michel Foucault. Enquanto estas últimas seriam
marcadas pela padronização dos indivíduos ocupando lugares definidos numa massa, lugares separados dos
outros pelo confinamento e de onde só se sai a partir de exames, as sociedades de controle abdicam da
assinatura e do número posicional; em seu lugar, surgem senhas de identificação individual que não mais
definem o indivíduo pela posição na massa, mas o modula continuamente a partir da sua diferença ante os
demais. Os exames (estratégia de categorização e padronização) são substituídos pelo controle permanente,
que confere valor flutuante ao indivíduo em seu momentum continuum (segmentação e individuação levadas
ao extremo). Deleuze, G. “Conversações: 1972 – 1990”. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. pp. 219 – 224.
10
Guattari, F. “Micropolítica: Cartografias do Desejo”. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1986. pp. 16 - 18
20
ser condenado a priori, não antes de consideradas as intenções e os mecanismos que
gerenciam seu uso em uma dada circunstância.
O lado oposto dessa moeda está representado em uma visão diametralmente oposta da
comunicação, de fundamentação eminentemente empirista, que começa na segunda
década do século XXI na Escola de Chicago e atinge sua maturidade nos anos 40 na
forma de uma outra corrente: a Mass Communication Research, inaugurando um método
de abordagem científica das ciências sociais aplicadas, basicamente pela pesquisa
quantitativa, muito próxima a metodologia econométrica. Essa tradição norte-americana
tem orientação claramente darwinista e se desenvolve a partir de conceitos como
“ecologia humana”
11
, definindo a ordem social como uma “economia biológica” em que a
competição consiste em fundamento. Essa escola, influenciou a visão liberal, que se
estende aos dias atuais de uma aplicabilidade da seleção natural ao ambiente sócio-
cultural. Enfim, naturaliza o conflito político ideológico em termos de equilíbrio inevitável.
A Mass Communication Research propõe uma visão puramente instrumental da
comunicação.
“A audiência é visada como um alvo amorfo que obedece
cegamente ao esquema estímulo-resposta. Supõe-se que a mídia
aja segundo o modelo da agulha hipodérmica, termo forjado por
Lasswell para designar o efeito ou impacto direto e indiferenciado
sobre indivíduos atomizados”.
12
Este trabalho também deseja apontar uma melhor abordagem, preparando terreno para a
conjugação desses dois modelos que, a princípio seriam mutuamente excludentes, longe
de macetes ideológicos. Essas questões são expostas na parte final do trabalho. Nesta
primeira descreveremos os modelos de valoração ligados a esses dois aspectos do
universo sócio-cultural: cultura e mercado. Como método, representaremos cada modelo
11
Park, Robert Ezra e Burgess E. W. “Introduction to the science of sociology”, University of Chicago Press,
Chicago, 1921.
12
Mattelart, Michele e Armand. “História das teorias do Comunicação”. São Paulo, Edições Loyola : 1999.
Pág. 37. Obs: os autores referem-se a Harold D. Lasswell em seu livro “Propaganda Techniques in the
World War”.
21
com o cruzamento e tensão de dois eixos de oposição binária entre qualidades típicas,
como veremos de agora em diante.
22
1.1. O Modelo do Mercado:
O Mercado é um dos mais antigos lugares sociais que conhecemos. A história dos
mercados está intimamente ligada à história da civilização. Pode-se afirmar que não
civilização, como a definimos, sem que haja mercados os mais diversos. Se os
arqueólogos costumam dizer que cidade começa com a necrópolis, (cidade dos mortos),
as ruínas das primeiras cidades têm em comum os vestígios de mais duas estruturas: o
mercado (lugar do comércio) e o templo (lugar da Cultura?).
13
Desde o mercado como
lugar físico onde os homens da antiguidade se encontravam para fazer o escambo de
mercadorias até a noção contemporânea de mercado como algo tão onipresente quanto
imaterial, este vem mediando através dos tempos a relação dos homens com as
atividades produtivas que sustentam o desenvolvimento e a acumulação de riqueza
material. Hoje há muitos e diferentes mercados: mercado financeiro, mercado de futuros,
mercado de ações, mercado de trabalho, o supermercado do bairro... Essa expressão
passou a significar mais que um espaço singular de troca. Mercado é o sistema em que
todas as coisas se inserem economicamente.
Quando se fala em “leis do mercado”, essas leis não são exatamente do tipo sobre as
quais os homens legislam, nem tampouco são leis naturais, como as leis da física. São
antes um misto das duas coisas, umbral da porta entre natureza e cultura para assuntos
de produção, troca e cumulação de riqueza material. Isso fica claro quando vemos a
mídia repercutindo determinadas discussões acerca das taxas de juros. A naturalização
dos juros, convertidos em uma negociação material com o tempo, é um interesse
capitalista. A politização da economia, convertida em uma negociação ideológica com
tempo, é um interesse socialista.
13
Munford, em “A Cidade na História” atenta para os vestígios de áreas de sepultamento como primeiros
sinais de fixação do Homem. O elemento universal das cidades é, portanto o cemitério, ou “cidade dos
mortos”. Munford, Lewis. “A Cidade na História”. São Paulo, Maritns Fontes, 1998
23
O mercado dos produtos culturais, das expressões artísticas, intelectuais ou espirituais
do Homem implica em questões que não estão previstas na noção materialista de
mercado como espaço de comercialização de produtos do trabalho humano sobre os
recursos naturais. Muito antes de haver mercado ou civilização havia cultura,
linguagem e comunicação. A Comunicação é anterior ao processo de seis mil anos da
civilização de todos os homens e mulheres da Terra.
Ora, uma cultura construída pela linguagem através de processos comunicativos é pré-
requisito para a existência de algo como uma civilização. um Homem, na antiguidade
que é culturalmente rico e que decide civilizar-se. Dessa história que dividiu as
populações em civis e militares (de onde vem o nome “civilização”), também fazia parte o
nascimento do mercado. É natural, portanto, imaginar que por mais que a idéia de
mercado tenha se sofisticado e ganho abrangência fenômenos humanos tipicamente
culturais que não se converte facilmente em objetos de comércio. É exatamente esse o
ponto para o qual a escola empírica-capitalista de teoria da comunicação é míope,
conforme discutimos no capítulo anterior.
De uma forma ou de outra, a cultura materializa-se como mercadoria através dos meios
de comunicação de muitas maneiras, e uma delas é o produto audiovisual. Ao ser
industrializado até forma de mercadoria audiovisual (seja sobre o suporte que for) o
produto cultural submete-se aos modos de valoração do mercado, ou seja, é posto em
comparação com outros produtos de onde se estabelece seu valor de troca e se averigua
sua viabilidade econômica. No caso específico do audiovisual, o modelo de apreciação
do produto se articula a partir de dois eixos de valor: Lucro e Audiência.
24
Lucro
Audiência
O eixo do lucro é auto-evidente. Trata de comparar o custo material de produção do
audiovisual com o potencial capital excedente auferido pela comercialização deste. Isto,
comparado ao potencial de uma infinidade de outras oportunidades de investimento
financeiro.
Quando se trata de qualquer produto comunicativo inserido na indústria cultural, a
questão do lucro se articula obrigatoriamente com uma outra, da quantidade de público
atingido pelo produto. Essas duas variáveis não são diretamente proporcionais e as
forma de articulação de uma com outra constituem quase a totalidade da ciência da
indústria cultural. Um exemplo disso, que teremos a oportunidade de discutir com
detalhe mais tarde, é a infraestrutura de distribuição de música. Música não é, a priori,
mercadoria. Torna-se quando é reproduzida materialmente em um suporte que possa
ser quantificado e comercializado compondo assim uma audiência paga. Música
distribuída gratuitamente na internet gera uma enormidade de riqueza, mas não
possibilita o acúmulo de capital por parte do produtor (aquele cujo trabalho transformou
os recursos culturais comuns naquela música). Essa forma de produção de riqueza
cultural, embora possa trazer grandes resultados do ponto de vista da audiência, não
contempla o eixo do lucro, portanto não tem inserção mercadológica.
A balança dos valores de mercado é matemática. A avaliação do produto audiovisual em
temos de audiência e lucro não deixa muita margem à discussão. O mercado é o lugar
25
do pragmatismo, da objetividade e, portanto, dos números. É o rigor dessa avaliação que
permite a acumulação contínua de riqueza e infraestrutura e torna sustentável essa
atividade cultural em uma sociedade. Comecemos então a falar sobre a visão que o
mercado tem sobre o audiovisual brasileiro transcrevendo alguns números.
O Brasil ocupava em 2003 a 13ª posição mundial como mercado de cinema. Em 2003
foram vendidos 102,9 milhões de ingressos, sendo 22,5 milhões para filmes nacionais e
80,9 milhões para estrangeiros. Um market share de 21,4% para o filme nacional. A
somas das bilheterias de todos os filmes lançados nos cinemas brasileiros totalizou 647,5
milhões de reais (224,1 milhões de dólares). Os filmes brasileiros somados ganharam R$
134,1 milhões contra R$ 513,5 milhões dos filmes estrangeiros. Tínhamos 1.817 salas
de cinema. O Brasil vendeu 0,5 ingresso per capta em 2003. É um valor muito baixo,
que nos deixa na 45
a
posição no ranking mundial, atrás de países como Uruguai, Chile,
Argentina e Rússia. Também é fraca a relação de habitantes por sala. Temos uma tela
de cinema para cada 93.450 habitantes, o que nos deixa na 52
a
posição no mundo e nos
a dimensão do tamanho da exclusão social do país também no que se refere ao
acesso aos bens culturais.
14
Vejamos agora os números mundiais: segundo a publicação
Screen Digest, em 2003, a receita mundial dos cinemas foi de US$21,8 bilhões, pela
venda de 7,25 bilhões de ingressos. O público mantém-se estável nos últimos anos ao
passo que o preço médio do ingresso elevou-se até o patamar recorde atual de US$
3,00. o número total de salas de cinema (145.598 em todo mundo) está em queda,
principalmente na China, onde as salas de pequenas cidades dão lugar aos multiplex dos
grandes centros urbanos. Agora comparemos esses dados com os maiores mercados
nacionais de cinema em 2003 (em milhões de dólares):
1) EUA: 9.500
14
Fonte: Filme B “Database Mundo 2004” (www.filmeb.com.br)
26
2) Japão: 1.750
3) Reino Unido: 1.200
4) França: 1.000
5) Alemanha: 960
6) Espanha: 720
7) Canadá: 680
8) Índia: 640
9) Itália: 590
10) Coréia do Sul: 580
11) Autrália: 560
12) México: 430
13) Brasil: 220
14) Rússia: 190
15) Países Baixos: 180
“Exceção feita ao cinema de arte, o cinema poderá existir como
atividade continuada, na sua peculiar mistura de arte e
entretenimento, se transformar-se em indústria, se crescer para o
mercado. É aqui que topamos com as nossas maiores dificuldades
no setor. (...) Enquanto o cinema não se consolidar como industria,
não poderá ter, em nosso mercado, a presença que precisa para
ser tomado a sério como cinema nacional. Se fracassar neste
ponto, até mesmo seus compromissos artísticos estarão
ameaçados”.
15
Em 1998, a Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura
(SDA/MINC) realizou o estudo econômico oficial mais completo e abrangente feito até
então sobre o setor audiovisual no Brasil. Intitulado Economia da Cultura”, seu intuito
segundo os autores era “compilar evidências empíricas disponíveis e, dessa forma,
15
Wefort, Francisco C. “Cultura, Cinema e Indústria” em Cardoso, Fernando Henrique, et al. “Cinema
Brasileiro. Serie Cadernos do Nosso Tempo, Nova Serie, 4”. Rio de Janeiro : Fundo Nacional de Arte e
Cultura : 2001.
27
contribuir para o debate sobre os problemas e perspectivas econômicas para o cinema
brasileiro”. O estudo estava organizado em quatro partes: uma introdução aos conceitos
econômicos para a análise da estrutura e do comportamento da indústria
cinematográfica; uma análise da organização da indústria cinematográfica mundial,
resumindo-se, na verdade, na historia da emergência, consolidação e persistência da
hegemonia da indústria de audiovisual norte-americana e descrição das políticas
cinematográficas praticadas por dois dos principais países produtores – Inglaterra e
França para resistir à concorrência americana; uma análise estatística do mercado
brasileiro que caracterizou como problema principal a dominação do mercado pela
indústria norte-americana, tanto na capacidade competitiva como no controle sobre os
canais de distribuição; e, finamente, recomendações de políticas que levassem em conta
as “restrições advindas das estruturas dos setores de distribuição e exibição de filmes,
bem como aquelas decorrentes das peculiaridades da indústria de televisão no Brasil”.
Esse estudo, bem como grande parte da bibliografia a qual recorreu serão nossas
principais fontes de informação sobre a perspectiva econômica dominante a respeito da
atividade audiovisual, particularmente no que tange ao cinema brasileiro.
Quando usamos a perspectiva de mercado, um dos principais elementos determinantes
que devemos analisar é a concorrência entre os agentes econômicos envolvidos naquele
setor. Ao longo deste trabalho pretendemos deixar claro que o problema da equidade na
concorrência é nevrálgico para o a análise do cenário audiovisual brasileiro. O monopólio
quase total do meio televisivo por uma emissora, a Rede Globo de Televisão, é
equivalente ao desequilíbrio de forças na concorrência do produto nacional frente à
indústria norte-americana. Os dois casos estão interligados e deles depende a solução
dos problemas de sustentabilidade do setor, pois determinam as características básicas
da atividade audiovisual no Brasil.
28
Segundo o estudo do Ministério da Cultura, a capacidade de resposta de uma indústria
local ao dinamismo tecnológico do ambiente depende da capacidade criativa, adaptativa
e de absorção da matriz cultural de cada país”
16
. É interessante notar como a primeira
avaliação da capacidade de resposta à concorrência é de ordem cultural, e não técnica.
Mas em termos econômicos, essa capacidade de resposta depende da estrutura da
indústria audiovisual no país notadamente no que se refere a cinco elementos:
1. A base tecnológica da indústria audiovisual.
2. A organização empresarial do setor.
3. O controle do mercado.
4. A competitividade internacional das empresas locais.
5. As políticas cultural e industrial voltadas para a indústria audiovisual.
Ainda segundo o estudo, a televisão apresentaria “plenas condições artísticas, técnicas e
econômicas de se posicionar na vanguarda mundial”. É difícil avaliar condições
artísticas, mas quanto às técnicas e econômicas, apenas a Rede Globo de Televisão as
reúne de forma consolidada para concorrer internacionalmente, algo que ela faz
exportando principalmente produtos de ficção seriada para diversos países. Sendo
assim, neste estudo, como em grande parte da literatura sobre a Tv no Brasil nos últimos
30 anos, onde se lê televisão”, leia-se “Rede Globo de Televisão”. A omissão dessa
ressalva no estudo do ministério é digna de nota
17
e explicará grande parte dos
problemas que pretendemos diagnosticar. Se essa dominância a Globo boas
condições de competitividade internacional, não o faz sem um alto custo para o mercado
interno como, via de regra, ocorre sempre que um segmento é dominado por um único
16
Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura. “Economia da cultura” Brasília :
SDA/MINC : 1998.
17
É muito difícil aplicar as prescrições do estudo para o meio televisivo ao mesmo tempo à Rede Globo e aos
seus concorrentes nanicos: SBT, Bandeirantes, Record e Rede TV dividem juntos os 25% restantes da verba
publicitária descontado o market share da Globo. Há ainda as estatais Cultura e TVE, mas essas não
concorrem no competitivo mercado de espaços publicitários que define, pelo viés da audiência, as lideranças
desse mercado.
29
market player. Para se ter uma idéia objetiva do tipo de dominação a que nos referimos,
a Globo concentrou ao longo das últimas décadas cerca de 75% das verbas publicitárias
destinadas à televisão no Brasil, um valor muito próximo ao nível de preponderância dos
lançamentos norte-americanos em nosso mercado cinematográfico. Cinema que, por
sua vez, subsiste décadas sem, no entanto, estruturar-se como negócio. “O cinema
brasileiro carateriza-se do ponto de vista econômico como uma indústria artesanal e
fragmentada, carente de bases comerciais sólidas e, sobretudo, incapaz de subsistir sem
forte apoio governamental”. A interrupção desse apoio, no início da década de noventa,
pela política de orientação radicalmente liberal de Fernando Collor de Melo, levou o
segmento específico de produção cinematográfica à total falência. Vale lembrar o que
chamamos aqui de “segmento de produção” não correspondia a um setor produtivo
estruturado, mas resumia-se na prática a um punhado de diretores/produtores individuais
que tinham acesso privilegiado aos recursos da então extinta Embrafilme. Esse período
será abordado mais detalhadamente adiante. Com o retorno dos incentivos
governamentais, agora na forma de renúncia fiscal, a partir de meados da década de
noventa houve o que se convencionou chamar de “retomada” da produção
cinematográfica brasileira. Sobre a sustentabilidade dessa nova fase, os pesquisadores
do Minc são taxativos:
“A menos que haja mudanças drásticas na organização da indústria
e nas políticas setoriais, esse florescimento deve afigurar-se de
caráter efêmero. As razões são, por um lado, as restrições
orçamentárias e a inclinação liberal da política econômica que
tenderão, mais cedo ou mais tarde, a reduzir os incentivos
governamentais concedidos à indústria”.
18
O Estado é, na realidade, o único investidor da produção audiovisual doméstica (fora às
emissoras concorrentes e empresas anunciantes) alternativa à emissora líder de TV. Os
limites da sua capacidade e eficiência de investimento tornam-se limites do setor como
18
Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura. “Economia da cultura” Brasília :
SDA/MINC : 1998.
30
um todo. Hoje o único concorrente direto da Rede Globo exclusivamente no setor de
produção de conteúdo audiovisual nacional é o próprio Estado. Mas o estado não
concorre com a emissora por audiência televisiva e trabalha como parceiro e fomentador
desta na área cinematográfica (produtos orientados às salas de exibição). Além disso,
como o estado não tem orientação comercial ou industrial em seu investimento, a
dependência de recursos provindos diretamente do Tesouro (da arrecadação de
impostos) perpetua-se alimentando a indolência dos produtores, onerando o Estado e,
por conseqüência, o contribuinte. Como resultado dessa equação provinciana, poucos
produtos podem ser produzidos, por poucos realizadores, gerando um setor cartelizado e
dependente de subsídios que representam quase 100% de sua capacidade de existir.
Este setor, que produz potencialmente audiovisual para qualquer janela compradora, é
estratégico na composição de um ambiente empresarial capaz. Segundo a perspectiva
econômica, a estrutura e o desempenho da indústria audiovisual são os fatores
determinantes do ambiente mercadológico.
“A indústria mundial de produtos audiovisuais filmes, vídeos e
programas de televisão, entre outros possui uma estrutura sui
generis na qual conglomerados oligopolísticos na distribuição,
produção, financiamento dos investimentos e exibição, convivem
com um grande número de pequenas firmas operando em nichos
específicos de mercado”.
19
A tabela a seguir apresenta um panorama da presença dos grandes conglomerados de
mídia nos mercados nacionais.
19
Gleiser Globerman, S. e A. Vining. “Foreign ownership and Canada's feature film distribution sector: An
economic analysis”. Vancouver, Fraser Institute - 1987. Pág. 104.
31
Participação das maiores distribuidoras nas bilheterias dos principais mercados nacionais, 1996 (%):
França Alema-
nha
Itália
(6)
Espa-
nha
Reino
Unido
Eur.(7) Dina-
marca
Suíça EUA Austrá-
lia (8)
Japão
UIP 14,0 24,1 12,9 22,3 24,2 19,4 24,0 21,3 41,8 18,4
Buena Vista
(1)
19,8 17,0 12,6 20,1 15,6 16,0 15,8 21,0 13,3 6,8
Fox (2) 6,6 13,4 9,1 6,0 13,4 10,0 12,6 14,7 3,7
Sony
Pictures(3)
7,6 7,4 5,8 9,7 9,2 7,8 13,6 10,6 11,5 4,0
WarnerBros
(4)
6,7 8,8 5,8 6,2 10,1 7,7 21,0 7,1 15,7 10,2 6,1
Paramount 12,7
Universal 8,4
Total USA 54,7 70,7 46,2 44,2 77,0 60,5 61,0 57,8 81,0 91,5 39,0
Polygram(5)
6,4 8,8 7,1 4,2 1,5 2,1
Maiores
Locais
13,2
(a)
9,9
(b)
26,6
(c )
21,4
(d)
8,5
(e)
14,6 25,0
(f)
9,5
(g)
3,2
(h)
16,4
(i)
Fonte: Screen Digest, Agosto, 1997, a partir de CNC, EDI,AGIS,DFI, Procinema, Moving Pictures, MPAJ.
Notas: (1) Gaumont Buena Vista na França, distribuído pela Lauren Films na Espanha; (2) Distribuição UGC Fox na França; (3) Columbia- TriStar; Fox
e Sony aliadas na Suiça; (4) Warner Metronome na Dinamarca; (5) Gramercy nos EUA; Sogepaq na Espanha (50% dos interesses); (6) 1996/1997
apenas até o fim de Junho; (7) Cinco maiores mercados europeus; (8) Baseado apenas nos 50 filmes de maiores bilheterias.
(a) AMFL, a maior após a Gaumont Buena Vista; (b) Constantin; (c) Cecchi Gori Distribuzione; (d) Leuren Films; (e) Entretainment; (f) Nordisk; (g)
Monopole-Pathé; (h) Village Roadshow - sub-distribui para a Buena Vista e a Warner Bros.; (i) Toho.
A indústria organiza-se em três setores distintos e interdependentes - produção,
distribuição e exibição. A distribuição é o setor crucial, não por interligar os dois
outros, mas porque, “em termos econômicos, o objetivo da indústria é produzir
público ou audiência e não, como sugere o senso comum, filmes, vídeos ou
programas de TV”. Este conceito, fundamental para a lógica que rege o equilíbrio entre
audiência e lucro no mercado audiovisual é ignorado nos momentos, não raros, em que
determinado grupo de produtores ou intelectuais defende o patrocínio a fundo perdido no
produto do tipo “não-orientado ao mercado”. O mercado, segundo estes, seria “incapaz”
de absorver esse tipo de produção voltada mais para a prospecção estética e
experimentação de linguagem do que para o entretenimento do grande público.
Pressupõem que daí origina-se a impossibilidade desses filmes superarem o chamado
break even (ponto a partir do qual as receitas superam os custos gerando, portanto,
lucro). O discurso então é de que essa limitação no cenário mercadológico brasileiro não
32
poderia condenar à extinção um determinado tipo segmentado de cinema ou Tv da
mesma forma que a baixa popularidade da música sinfônica não é admitida como justa
condenação das orquestras à obsolescência. Tal linha de pensamento não leva em
conta, no entanto, a imbricação necessária dessa questão (do lucro) com outra que
também é determinante do valor cultural, que é a audiência. A difícil relação do modelo
de valor tipicamente cultural com a questão da audiência será estudada mais
detalhadamente adiante. Por hora, devemos nos concentrar no fato de que o
investimento do distribuidor é, primordialmente, em divulgação, publicidade e, portanto,
em formação de demanda. Aqui cabe mais um paralelo com a indústria fonográfica: sua
fragilidade econômica está na dependência em relação aos meios de produção, que se
popularizaram com a troca de músicas via internet e com o barateamento dos gravadores
de CD (mudança na base tecnológica), embora sua principal atividade seja a prospecção
e promoção de autores e intérpretes. O setor exclusivamente produtor brasileiro não
investe em produzir público, mas em produzir filmes, pelo que continua insustentável do
ponto de vista econômico. O Estado, maior investidor do setor, não busca corrigir essa
trajetória e condena-se a subsidiar indefinidamente uma produção incipiente, oligopólica,
e de limitado impacto social e cultural.
A produção existe para atender à demanda criada pelos mecanismos distribuição e não o
contrário. A distribuição de produtos audiovisuais é um oligopólio global. A Tabela
anterior mostra que, em nível mundial, as receitas do setor estão fortemente
concentradas em sete conglomerados norte-americanos:
1. The Walt Disney Company (Buena Vista, Touchstone, Hollywood Pictures e
Miramax)
2. Sony Pictures (Columbia e TriStar)
3. Paramount (Viacom Inc.)
4. Twentieth Century Fox (News Corp.)
33
5. Warner Bros. (AOL Time Warner Inc.)
6. Universal (Seagram)
7. Metro Goldwin Meyer (United Artists)
Essas empresas dominam a distribuição de filmes, vídeos e programas de televisão em
praticamente todos os mercados nacionais. Também por ser concentrado, o setor de
distribuição impõe dificuldades à entrada de novas empresas decorrentes das
economias de escala na comercialização e também do montante de capital requerido
para se manter um estoque adequado de filmes”.
20
A concentração de mercado gera esses dois problemas à manutenção de um ambiente
de livre concorrência e iniciativa. O primeiro é a capacidade das grandes empresas,
como a Rede Globo ou os grandes estúdios de Hollywood de gerar economia de escala.
Outro é a falta de estoques de conteúdo que possam dar lastro as empresas. Para se ter
uma idéia da importância desse ponto, a maior fusão empresarial dos últimos anos, entre
o gigante provedor de acesso à Internet America On Line e o grupo Time-Warner de
comunicação motivou-se pela necessidade dos últimos em ter acesso ao promissor meio
de distribuição da internet para seu gigantesco estoque de conteúdo, enquanto a AOL
necessitava justamente desse estoque de conteúdo para ter o que oferecer aos seus
clientes. Acessar, afinal, é um verbo transitivo.
Uma das maiores críticas feitas à organização do setor cinematográfico brasileiro do
ponto de vista industrial é a falta de uma carteira de projetos continuada. Os produtores
realizam um projeto de cada vez com grandes intervalos de tempo entre cada um,
impossibilitando a redução de custos sobre a escala, aumentando os riscos devido à
baixa diversificação e mantendo seu estoque de conteúdo muito baixo. A negociação
20
Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura. “Economia da cultura” Brasília :
SDA/MINC : 1998.
34
com o tempo que naturaliza a economia se mostra aí. O grande estoque das
distribuidoras internacionais produze coisas como os cinco canais do TELECINE, canal
de exibição de filmes 24 horas da Globosat, a um custo por produto impossível de se
competir já que o ambiente que possibilita a compra de pacotes desse porte construiu-se
ao longo de quase um século de produção em larga escala por parte da indústria norte-
americana.
Esse é o problema criado pela concentração excessiva do mercado audiovisual brasileiro.
Muito se fala sobre a necessidade de uma boa articulação entre cinema e Tv, que é um
meio de distribuição e exibição, um comprador de produção em potencial. Mas a Tv
Globo supre toda sua audiência com produção própria ou norte americana. A Tv por
assinatura compra na pequena medida de seu faturamento. Hoje a Globofilmes já detém
a maior parte da bilheteria do cinema nacional combinando as vantagens competitivas da
estrutura de divulgação onipresente das Organizações Globo com as facilidades
oferecidas e garantias pelas leis de incentivo. Nesse caso, as leis de incentivo fiscal,
sendo exclusivas para produtores independentes”, reservam a alguma bem-relacionada
empresa de produção “independente” a oportunidade de vender à empresa a vantagem
produzida pelo subsidio.
O setor de produção é menos concentrado, mesmo dentro de cada um dos mercados
nacionais e apesar da integração vertical dos grandes distribuidores com a produção.
o mercado de exibição é muito competitivo, que forte concorrência entre as várias
"janelas" ou veículos de exibição salas de cinema, locadoras de vídeos, canais de
televisão abertos e pagos e também entre empresas concorrentes em uma mesma
janela. Isso é válido mesmo quando o vel de concentração local é alto. “Em ambos os
setores, as barreiras à entrada de novas empresas (sejam elas oriundas de tecnologias,
35
vantagens absolutas de custos, diferenciação de produtos ou economias de escala) são
praticamente inexistentes”.
21
Quando se diz que produção e exibição são menos concentradas que a distribuição,
deve-se considerar algumas distorções típicas do modelo brasileiro. Aqui, a única grande
empresa produtora (Globo) é radicalmente verticalizada, produzindo quase a totalidade
de seu conteúdo na Tv Aberta e dando preferência ao conteúdo estrangeiro das grandes
distribuidoras internacionais para a Tv por Assinatura devido à grande vantagem de
custos. As outras Emissoras têm baixo retorno com a venda de espaços publicitários e,
com isso, sua capacidade de investimento em produção de conteúdo é bastante
reduzida.
Os demais produtores têm características quase amadoras, não contam com uma
estrutura empresarial e dependem de recursos públicos para produzir seus projetos, que
serão então oferecidos abaixo do preço de custo para a Tv ou fracamente distribuídos em
cinema e vídeo, salvo se forem divulgados pela emissora líder. Quando se trata do
conjunto de produtores independentes, cuja principal característica é depender do capital
do Estado, o cenário assume características provincianas. Os recursos para
investimento público são disputados de forma predatória, concentrando-se nas mãos de
um punhado de produtores tradicionalmente ligados às estruturas de Estado através do
trabalho de lobistas. Nesse lugar, que não é um mercado, capta-se recursos públicos
pelo tráfico de influência, cultiva-se práticas clientelistas e alternam-se projetos segundo
critérios nepotistas. Essa equação provinciana encontra motivação e justificativa no
domínio americano sobre os mercados audiovisuais de todo o mundo.
21
Idem.
36
“Os principais fatores subjacentes ao predomínio norte-americano
sempre foram o controle da distribuição nos mercados doméstico e
internacional que decorreu das economias de escala e escopo
propiciadas pela dimensão econômica do mercado americano (e
dos países anglófonos); a integração vertical e horizontal
precocemente realizada na indústria; e sua concentração
geográfica em Hollywood”.
22
Historicamente, o predomínio americano na indústria audiovisual estendeu-se à televisão,
ao home-video e à Tv por assinatura, que assumiriam importância crucial como mercado
para a produção cinematográfica. A distinção entre cinema e Tv pode ser diluída no que
se refere ao setor audiovisual como um todo. Na verdade, a melhor maneira de pensar a
indústria é pela divisão entre os segmentos de produção, distribuição e exibição,
independente da janela. A produção de audiovisual não é a priori cinematográfica ou
televisiva. Quanto mais integrada for a forma da indústria, mais saudável ela será. No
Brasil tendemos a ver o cinema como algo separado da televisão. Inclusive quanto se
pensa no intercâmbio entre os gêneros não se pensa nas produtoras como criadores de
conteúdo audiovisual, mas como produtoras de cinema. Essa maneira de entender o
mercado vem da distinção tradicional feita no Brasil entre cinema, que faz filmes para a
exibição nas salas de projeção e televisão, produzida pela emissora para exibição em
seu canal de concessão. Na indústria norte-americana, produtoras de diferentes
tamanhos produzem conteúdo para Tv, cinema ou qualquer outra tecnologia de exibição
disponível sem distinção prévia de atuação.
“A estratégia da indústria americana foi flexibilizar a estrutura de
custos por meio da terceirização de tarefas ao mesmo tempo que
aumentava os investimentos na produção e, sobretudo, nas
despesas com marketing tendo por finalidade garantir público e o
acesso aos mercados ancilares propiciados pela televisão”.
23
22
Ibidem.
23
Ibidem.
37
Essa terceirização de tarefas corresponde à infra-estrutura de produtos e serviços tais
como laboratórios, instalações de finalização de som e imagem, locação de
equipamentos, estúdios, etc., necessária tanto ao cinema das salas de projeção quanto à
produção de publicidade e conteúdo televisivo. No Brasil, essa infra-estrutura se
sustenta quase que exclusivamente no setor de produção de filmes publicitários, já que a
infra-estrutura de produção televisiva é integrada verticalmente às emissoras. A
emissora líder provê seus próprios meios de produção, da usina de geração de
eletricidade movida a gás até o house-organ (agência de publicidade própria). Os
produtores de cinema propriamente dito se beneficiam da estrutura comum às produtoras
de publicidade. Em alguns casos, como a Conspiração Filmes, e Tv Zero ou a O2
Filmes, as produtoras vivem da publicidade e fazem incursões no cinema por meio do
subsídio oficial.
A liderança norte-americana histórica na indústria audiovisual passou por uma série de
mudanças de paradigma tecnológico bem como desdobramentos de cenário. A
manutenção desse lugar de destaque deve-se principalmente ao papel de protagonismo
da indústria americana na maioria dessas transformações. Os produtores de audiovisual
americanos sobrevivem quase um século num mercado fortemente competitivo. Na
Tabela que fecha o capítulo, temos indicadores do valor bruto das receitas de bilheteria
que talvez sejam, em termos estritamente econômicos, o melhor indicador da força de um
mercado nacional, pois além de sintetizar informações sobre tamanho e poder aquisitivo
do mercado, indica a lucratividade e, portanto, o poderio econômico da indústria.
A lógica do mercado não atribui valor ao produto audiovisual que não seja aquele
determinado pela demanda. Os princípios básicos do Marketing explicam as relações
sociais mediadas pelo mercado como resultado da soma das necessidades, que
combinadas com a oferta de produtos que as suprem geram a energia que realmente
38
move as trocas materiais: a demanda. O mercado segundo a teoria econômica é o
regulador ótimo das atividades produtivas e, como resultado da atuação de todos, seria
um meio perfeitamente democrático de decisão coletiva, justamente porque não é
arbitrado por ninguém. A idéia perfeitamente racionalista do liberalismo econômico é que
a ética amoral e pragmática do mercado consiste numa forma perfeita e natural de
meritocracia. Nas palavra do guru do marketing, Philip Kotler, "Marketing é a atividade
humana dirigida para a satisfação das necessidades e desejos, através dos processos de
troca."
24
24
Kotler, Philip. “Marketing” São Paulo, Atlas, 1985.
39
Tabela: atividade cinematográfica em países selecionados, média 1994-96:
Bilheterias
Brutas
(US$M)
Público
(M)
Número
de
telas
Telas
p/
milhão
habit.
Numero
de
filmes
produ-
zidos
Investi-
mentos
médios
produção
filmes
(US$ M)
Número
de
Filmes
lançados
Receitas
aluguel e
vendas
de fitas
vídeo
(US$ M)
Países Média
94/96
Média
93/96
Média
93/96
Média
94-96
Média
91/96
Média
93/96
Média
93/96
Média
94/96
EUA 5.601 1.284 27.465 106,1 585 11,4 400 7.070,8
Com. Europ. 3.985 676 19.439 562 3,3
França 886 131 4.486 77,4 142 4,6 386
Alemanha 832 130 3.830 47,2 65 3,8 270
Inglaterra 661 120 2.032 35,4 68 5,4 316
Itália 535 94 3.624 63,6 105 2,4 338
Espanha 386 93 2.024 53,5 61 1,5 390
Suíça 154 16 467 68,3 35 0,2
Sué cia 129 16 1.167 132 25 2,3 203
Bélgica 122 20 423 42,2 7 3,3 480
Holanda 118 16 427 27,8 15 0,3 244
Japão 1.537 125 1.774 14.2 247 587 2.050,9
China 535 100.437 79,1 122 0,5 196
Hong-Kong 170 28 184 30,1 198 465 47,9
Taiwan 167 31 616 32,9 28 0,8 387 132,0
Índia 7.030 10.104 827 0,1 2,5
Rússia 318 2.177 14,3 170 0,2 1,0
Austrália 383 67 1.091 64,5 25 2,5 261 293,7
Canadá 103 81 1.768 61,4 31 532,2
Brasil 298 102 1.519 13 227 211,3
México 165 74 1.496 16,3 21 0,6 72,8
Fontes: Bilheterias brutas, público, telas e telas por milhões de habitantes -Screen Digest de agências nacionais e
outras fontes de comércio, Screen Digest, Agosto, 1997. Produção de filmes, investimentos na produção e lançamentos
- Screen Digest, Maio de 1997. *Brasil - Outras fontes. Valor das receitas de aluguel e venda de vídeo-cassetes Screen
Digest, Novembro de 1997, a partir de fontes da indústria.
Notas: O investimento médio na União Européia é o investimento dividido pelo total das produções, nos outros locais é
investimento médio por produção para os países em que os dados estão disponíveis.
40
1.1.1. O eixo do lucro:
O vetor do lucro é simples e sua apreensão pelo senso comum é bastante precisa. Trata
do objetivo básico do empreendimento econômico e se revela numa escala de valor em
que a atratividade de uma oportunidade ou decisão é diretamente proporcional à
possibilidade de acúmulo de capital. Seu antônimo, o prejuízo, é a valoração negativa do
mesmo vetor. Note-se, no entanto, que a idéia de prejuízo não aparece no nosso
diagrama. O motivo desta omissão revelar-se-á no desenvolvimento de ambos os
modelos, em que ficará claro que o eixo do lucro é o único em que se pode nomear
facilmente seu antônimo. Sendo assim, nos basta admitir que o modo de valoração
mercadológica do produto audiovisual compõe-se por dois vetores articulados sendo que
nomeamos um deles como o vetor do lucro. A simplicidade pragmática da dicotomia
entre lucro e prejuízo acaba por colocar esse eixo de valoração na alça de mira dos
discursos detratores da ética capitalista. A busca pura e simples do lucro torna-se uma
definição fácil do motor mercadológico enquanto outras forças atuantes são tratadas de
forma bem mais criteriosa. Veremos, no entanto, que, mesmo sob a ótica do capital, o
lucro é problematizado a partir de sua relação com outros vetores de valoração, sendo a
audiência uma preocupação igualmente típica do universo de afeições do mercado.
Com alguma boa vontade perceberemos que o eixo lucro-prejuízo trata de um aspecto
fundamental a sobrevivência de qualquer sistema: a relação entre recursos obtidos e
recursos consumidos. Lucro é uma negociação no tempo. Viabilidade e sustentabilidade
são aqui palavras-chave que mesmo artistas de vanguarda, que rejeitem frontalmente
preocupações comerciais na concepção da obra terão que levar em consideração por
uma questão de sobrevivência. Via de regra, as leis do marketing indicam que
empreendimentos com foco no mercado têm vantagens econômicas sobre aqueles com
foco no produto. Kotler usa um exemplo simples para defender essa prescrição: as
41
pessoas não precisam de furadeiras, elas precisam de buracos na parede.
25
Isso quer
dizer que uma demanda pode ser redirecionada a outro produto que supra as
necessidades subjacentes a essa demanda. Iniciativas focadas no produto buscam
produzir demanda para determinado produto, enquanto os empreendimentos focados no
mercado procuram desenvolver e oferecer produtos que atendam necessidades. Essa
diferença de aproximação, tema clássico da ciência mercadológica, é um foco de conflito
ideológico quando se trata da produção cultural. De um lado, o marketing não reconhece
um valor intrínseco ao produto que justifique partir deste para a demanda. De outro, a
crítica cultural parte da valoração do produto para então analisar seus efeitos de
recepção, as subjetividades que funda e as estratégias de fomento ou repressão ao
consumo. Em suma, enquanto a indústria opera sob o signo do entretenimento partindo
de modelos e perfis com características que seriam imanentes ao público para então
conceber produtos, a cultura se investe do sentido transcendente da arte, partindo de
modelos ideológicos para conceber blicos aptos a fruir das obras. Ambas levantam
forças positivas e negativas. O mercado flerta com a demagogia, enquanto ao ideal da
arte pode assumir feições autoritárias.
A diferença entre necessidade e demanda é talvez um dos pontos nevrálgicos de diálogo
entre as lógicas social e econômica. A noção de necessidade é traiçoeira tanto quanto
mais se afastar das necessidades mais óbvias e materiais (alimento, abrigo, etc.).
Portanto, quando aplicada ao produto cultural, essa noção materialista volatiliza o objeto
abrindo caminho para a produção tecnológica de demandas através das propriedades
formadoras de subjetividade dos meios de comunicação. Isto vai da discussão sobre a
oportunidade de consumo de produtos segmentados até a fantasia de geladeiras
vendidas a esquimós por meio de argumentos publicitários oblíquos. Por outro lado,
alternativas ao logaritmo cego das leis de mercado buscam tornar a decisão de produção
um trabalho intelectual e estratégico, ou seja, o modelo socialista de produção é
25
Kotler, Philip. “Marketing” São Paulo, Atlas, 1985.
42
totalmente focado no produto segundo concepções ideológicas de necessidade.
“Demanda” é um conceito de mercado, criado para afastar a decisão de investimento e
produção do problema claramente sócio-cultural que é o debate sobre a necessidade.
A ética capitalista recalca e manipula a relação entre necessidade e demanda por meio
das técnicas de promoção e distribuição. Desta forma, naturaliza a formação da
demanda pela publicidade (uma espécie de profecia auto-realizada). A ética socialista
procura politizar a questão da necessidade emprestando à demanda um caráter
transcendente. Na prática, as decisões de investimento e produção com essa orientação
se definem em processos político-representativos conforme o sistema vigente no local.
Em uma ditadura, o ditador decide quais são as necessidades da sociedade e dita a
distribuição do trabalho. Em democracias republicanas, serão criados órgãos,
representações de classe, comissões, assembléias deliberativas e uma infinidade de
outros mediadores políticos que, representando a segmentos sociais, definirão como
suprir determinadas necessidades que transcendam o jogo mercadológico de oferta e
demanda. A necessidade de lucro sobre o capital investido não está aí em questão.
Quando se trata de decisões de mercado, temos que analisar de forma fria como se
desenha uma relação custo-benefício no processo de decisão de investimento no
audiovisual, tanto por agentes privados quanto públicos, no Brasil ou em outros países.
Em 1997, o faturamento da indústria audiovisual no Brasil chegou a 5,5 bilhões de
dólares, representando cerca de 1,0% do PIB, equivalente ao resultado percentual da
Argentina. No México, o setor representa 0,5% do PIB nacional. Na Europa, 1,1% e nos
EUA, 2,7%. A publicidade na TV brasileira (aberta e paga) respondeu por 55% do total
das receitas do setor. Considerando que a emissora líder concentra 75% desse total,
conclui-se que esta fatura somente na operação de Tv, mais de 40% do total do capital
movimentado por todo o setor, que inclui Tv aberta e paga, vídeo doméstico e cinema.
43
As receitas de TV por assinatura corresponderam naquele ano a 26% do total setorial. O
crescente mercado de home-video, que começava ali a fazer uma mudança de
plataforma tecnológica do formato VHS para o DVD equivalia a 12% do bolo. O cinema
por sua vez ocupava a lanterna, com 6,5% do PIB do setor audiovisual brasileiro no
período. A balança comercial do setor audiovisual brasileiro apurou 40 milhões de
dólares de exportação e 606 milhões de dólares de importação. Um ficit de 1.500% no
valor de mais de meio bilhão de dólares.
26
“Apesar da aura artística, o capital constitui o fator de produção
básico da indústria audiovisual. A razão é a longa defasagem entre
desembolsos e receitas nos seus projetos de investimentos típicos.
Além disso, os investimentos são elevados, sobretudo tendo-se em
conta que os produtos, por seu ineditismo, não possuem qualquer
garantia de mercado, apresentando uma vida comercial
relativamente curta e imprevisível.”
27
Como havíamos dito, a tendência da ciência econômica é avaliar qualquer oportunidade
de investimento como uma negociação material no tempo. O fator complicador do
produto audiovisual é que seu principal diferencial mercadológico é o ineditismo. Após a
estréia de um produto em uma janela, seu preço por exibição adicional despenca ao
longo do tempo. A indústria cultural tem uma dominância atípica em seu negócio da
atividade de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos. O lançamento é o
combustível do setor. Portanto, o mercado audiovisual depende de um mercado anterior,
de roteiros ou de projetos audiovisuais.
“Os baixos custos de reprodução das cópias contrastam com os
altos custos de produção das matrizes originais dos produtos
audiovisuais que, como obras artísticas únicas, constituem casos
limites de diferenciação de produtos. Cada filme ou outro
26
MRC “La Industria Audiovisual Iberoamericana: datos de sus principales mercados.” Madri, Federacion de
Asociaciones de Productores Audiovisuales Españoles (FAPAE) e Agencio Española de Cooperación
Internacional (AECI) - 1998.
27
Vogel, H. L. “Entertainment Industry Economics: a guide to financial analysis”. Cambridge, Cambridge
University Press. 1998.
44
audiovisual é um produto novo feito por encomenda. (...) Devido a
isso, os investimentos possuem um caráter irreversível.”
28
A indústria cultural é, portanto, bem diferente da indústria de bens duráveis. Sua
capacidade de capitalizar o trabalho passado é limitada pela demanda insaciável do
mercado de comunicação pela variação na experiência de consumo. Enquanto uma
caneta Bic pode ser reproduzida com as mesmas características por décadas
amortizando continuamente o investimento, “os custos de produção cinematográfica são
difíceis de se prever e independem da escala de produção da empresa, ou seja, o
número de filmes por ano produzidos”
29
.
A base tecnológica é determinante nessa atividade. Nas últimas décadas, nenhum setor
passou por tantas mudanças de paradigma tecnológico quanto o de mídia e
comunicações. Em contrate com esse lado hiper-industrial, a produção audiovisual é
inevitavelmente fragmentada por se organizar em projetos fechados e tem características
de produção artesanal, uma vez que cada produto é único e exige estruturas singulares
de realização. Muito embora os métodos utilizados sejam padronizados, sua aplicação
em cada novo produto ou projeto é feita de forma irreversível, diferente, e única,
impossibilitando, portanto a exploração de economias de escala na produção”.
30
No meio televisivo o público acostumou-se a consumir produtos dentro de uma variação
muito menor quando comparada ao que é oferecido nas salas de exibição. Na produção
de telenovelas, programas de auditório e noticiários jornalísticos, a amortização de custos
resultante da reutilização de recursos e processos é levada até o limite de aceitação da
audiência que, por sua vez, acostuma-se com variações cada vez menores entre os
produtos. Uma mesma novela repete cenários atores e situações por uma quantidade de
28
Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura. “Economia da cultura” Brasília,
SDA/MINC : 1998.
29
Idem.
30
Vogel, H. L. Op. cit.
45
horas editadas incomparável ao produto cinematográfico. Além disso, as novelas são
iguais umas às outras, seguindo formulas muito bem definidas de narrativa, linguagem e
concepção artística. A “Central Globo de Produção”, estúdios de gravação da emissora
líder localizados no bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, mais conhecida como
“Projac” é uma instalação tipicamente industrial em que tudo é pensado para otimizar a
eficiência de custos de produção pelo reaproveitamento de estruturas e materiais. Cada
estúdio funciona como um grande estacionamento rotativo de cenários modulares que
são montados e desmontados segundo uma logística precisa. Os módulos são
reaproveitados para a construção de novos cenários em uma área de montagem na qual
até o de madeira resultante da serragem é reaproveitado para a produção de novas
placas de MDF, que se tornarão novas paredes, portas e outras peças de cenografia. As
toneladas de refletores que pendem sobre o teto dessa linha de montagem são
controladas por computador, o que possibilita o armazenamento de uma quantidade
ilimitada de esquemas de iluminação e sua reutilização a partir de um toque de botão.
Ali, a economia de escala tem efeito significativo. O formato da telenovela é
fundamental para viabilizar essa organização produtiva. Ao longo de alguns meses uma
trama é sustentada a partir de duas dúzias de personagens que dialogam em uma
dezena de cenários. Por sua vez, os programas de auditório, herdados pela televisão
após a era de ouro do rádio, são conhecidos como aqueles de menor custo por edição
que se resumem a um único cenário coberto ao vivo por uma quantidade de câmeras.
Tudo isso são formas das empresas de audiovisual buscarem minimizar o caráter
inovador e irreversível dos investimentos no produto audiovisual. Mas essa característica
dominante ainda assim provoca incertezas sobre sua acolhida pela audiência.
46
Outra conseqüência dessa característica é a “pouca identificação ou lealdade do público
consumidor com as empresas produtoras, distribuidoras ou exibidoras”.
31
O
investimento em branding por parte das empresas traz poucos resultados, principalmente
quando analisamos o mercado norte-americano. Oferecendo produtos equivalentes, os
estúdios não conseguem criar uma identidade de marca. Na verdade, os diretores e
atores têm marcas muito mais consistentes que os próprios estúdios, motivo pelo qual
seus passes são negociados por grandes somas de dinheiro. No Brasil, a Rede Globo
tem uma marca extremamente forte. A emissora investe pesadamente em sua imagem
institucional. Uma vez que detém o monopólio do setor televisivo, precisa construir uma
imagem cívica, institucional e até mesmo ufanista. O mesmo ocorre com outros
monopólios como empresas de telefonia, a Petrobrás ou a companhia Vale do Rio Doce.
A imagem dessas empresas mistura-se a imagem do país e, no caso da Rede Globo, cria
e regula a imagem do país sobre si. O peso dessa responsabilidade, cristalizado na
noção de “quarto poder”, exige da emissora líder um trabalho de branding que não faria
sentido em um ambiente competitivo.
De toda forma, o foco de promoção eficaz na indústria audiovisual é aquele da marca de
produto, mais que o da marca fabricante. Na indústria cultural de forma geral a aceitação
de um novo produto é imprevisível. Produtos aparentemente equivalentes podem ter
resultados de mercado drasticamente diversos.
“Essas incertezas de demanda refletem-se nas oscilações de renda
dos exibidores e, sobretudo, dos distribuidores que, além da
volatilidade do público e dos preços de ingressos, dependem da
competitividade do mercado de lançamentos para exibição em
cinemas. A concorrência entre os lançamentos de filmes que se
sucedem constantemente dificulta a previsibilidade das receitas e
da duração da vida comercial dos mesmos”.
32
31
SDA/MINC. Op. Cit.
32
Idem.
47
O momento de maior risco para o capital em qualquer indústria é aquele do investimento
em um novo produto e seu lançamento no mercado. Na indústria cultural essa situação é
permanente. A diversificação de projetos e a busca por sócios buscam minimizar os
efeitos do risco sobre o negócio. O ambiente competitivo é volátil e de difícil previsão
uma vez que, em ciclos muito curtos, a total renovação dos produtos que concorrem
em um mesmo mercado. É preciso avaliar o potencial de todos eles em relação uns aos
outros para tentar projetar o potencial de retorno.
“Metaforicamente, o desempenho comercial é descrito como a
sobrevivência em um torneio por bilheteria ou público no qual novos
competidores estão sempre chegando e a incapacidade de atingir
uma bilheteria mínima significa a morte.”
33
Esse ambiente de competição produz grandes variações no market share entre os
competidores, principalmente no mercado voltado para a exibição cinematográfica.
Como citamos, a televisão tem meios de minimizar esses efeitos através da produção
em série e da fidelização da audiência. Ainda de forma geral “a indústria de produtos
audiovisuais caracteriza-se pela existência de incertezas significativas na demanda e por
economias de escala substanciais (altos custos fixos de produção e custos variáveis de
comercialização negligenciáveis)”
34
. Isto significa que o desequilíbrio de forças na
concorrência internacional e doméstica não só está presente como tende a se aprofundar
com o tempo.
“As economias de escala atuam como fortes barreiras à entrada de
novos concorrentes no setor de distribuição. Isso porque as
empresas já instaladas no setor fixam preços e quantidades com
base apenas em custos variáveis dados e os investimentos na sua
capacidade de distribuição (estoque de filmes e rede de serviços de
distribuição, etc.) já se encontram amortizados”.
35
33
DeVany, A. S. e Walls, W. D. "The Market for Motion Pictures: Rank, Revenue, and Survival." Economic
Inquiry n35 - 1997.
34
Idem.
35
SDA/MINC. Op. Cit.
48
O produto audiovisual norte-americano, por exemplo, é oferecido às diversas janelas
exibidoras brasileiras por preços que geram renda muito inferior ao custo de produção
dos originais. Isto se porque na indústria cultural o fator determinante da
discriminação de preços não é a produção do original, mas o custo subseqüente de
reprodução das cópias e sua promoção no mercado. Não podemos deixar de notar que
essa é justamente a razão pela qual a pirataria ameaça concretamente essa industria
através de mecanismos similares de atuação mercadológica. A vantagem financeira
depositada sobre a cópia e distribuição se popularizou devido à inovação na base
tecnológica da indústria. No fundo, a vantagem competitiva da produção pirata sobre a
grande indústria formal é a mesma da qual esta se vale para sobrepujar seus
concorrentes nos mercados locais. O que a pirataria faz é uma discriminação radical de
preços a partir do custo afundado do desenvolvedor. A pirataria faz um ataque predatório
ao mercado de reprodução que, a essa altura tem baixo valor agregado e fragiliza o
sistema produtivo principal. A pirataria é o feitiço da discriminação de preços voltando-se
contra o feiticeiro.
As decisões de investimento para quem entra na competição por mercado têm
obrigatoriamente que levar em alta conta os custos totais (variáveis e fixos) para chegar a
uma posição de distribuição competitiva. “Devido às incertezas da demanda, essa
capacidade mínima tende a aumentar significativamente”.
36
O mercado de distribuição é
muito arriscado, pois as flutuações na demanda oferecem grande incerteza ao
investimento. “Algumas grandes empresas, explorando economias de escala e seu
poder monopolístico, controlam e neutralizam os efeitos das incertezas da demanda
através de uma série de estratégias que impedem a emergência de novos
concorrentes”.
37
36
Perrakis, S. e Warskett, G. “Uncertainty, economies of scale, and barrier to entry” in Morris, D. J. et. al.
“Strategic Behavior and Industrial Competition”. Oxford, Clarendon Press, 1986.
37
Idem.
49
Quais seriam essas estratégias, usadas por empresas como as majors norte-americanas
ou a Rede Globo de Televisão, para evitar o fortalecimento da concorrência? O
investimento na capacidade de manipular a demanda é um fundamento mercadológico
que, no setor de produtos audiovisuais, torna-se vital para assegurar o lucro. Tendo foco
concentrado da produção de demanda, as estratégias de comercialização (distribuição e
promoção) são mais valorizadas pelas grandes empresas do ramo como forma de reduzir
os riscos do negócio do que uma ou outra orientação na concepção do produto em si.
Nesse mercado, por inquietante que seja a idéia, o produto é menos importante do que o
ambiente de consumo.
Um dos principais instrumentos de mais-valia neste mercado é a chamada “discriminação
de preços”. Discriminação é a prática de preços diferentes para uns e outros mercados.
Essa manobra é possível porque, a partir da produção dos originais (ou cópias máster) o
custo para oferecer o mesmo produto para mais consumidores ou a outros mercados é
desprezível. Isso quer dizer que, quando maior e mais abrangente for a colocação de
mercado do produto audiovisual, maior será a possibilidade de reversão de custos e
menor será o risco do investimento. Dito isto, fica claro que a competitividade de uma
cinematografia está condicionada ao seu grau de internacionalização.
Para reduzir incertezas e riscos associados à demanda a indústria audiovisual sempre
produziu altas concentrações de capital, principalmente no setor de distribuição. A partir
da concepção de marketing (foco no mercado) as distribuidoras assumiram um papel
central criando todo um setor de comércio movido à publicidade e assim financiando a
atividade cinematográfica. O que a distribuidora faz é produzir demanda para o
audiovisual e, assim, gerar uma fonte estável de receitas contra os custos de produção.
Do ponto de vista do produto (onde estão os custos mais altos e mais incertos) a
expectativa de que as pessoas continuarão a cultivar o hábito do audiovisual dissolve a
dúvida sobre o valor da obra na certeza sobre o valor da demanda. Um filme pode não
50
produzir demanda suficiente para corresponder ao investimento feito em sua produção,
mas um conjunto de centenas de filmes anuais gera lucro praticamente garantido. Uma
coisa é certa, no mundo da produção audiovisual, quem es em um segmento da
indústria, limitado, por exemplo, a uma tecnologia específica ou a um tipo singular de
produção, encontra riscos enormes em sua aposta. quem atua no mercado como um
todo, reunindo diferentes janelas, tecnologias, gêneros ou nichos de mercado, esses
riscos reduzidos drasticamente. O problema justamente é o gigantismo necessário para
obter esse grau de redução da incerteza.
A integração vertical entre produção, distribuição e exibição é praticamente universal,
embora difira na forma local. Apesar da regulamentação anti-monopólio ter feito parte
das discussões sobre o setor nos EUA, na prática, grandes conglomerados operam todas
as janelas de exibição, nesta e em outras mídias como imprensa, fonográfica, interativa,
etc.
51
Integração vertical na indústria do audiovisual:
Faturamento
1997
(US$
bilhões)
Prod.
progr.
TV
Prod.
e
dist.
de
filmes
Broad-
casting
Rede
TV
aberta
TV
a.
cabo
Internet
TV
por
satélite
Video-
cassete
e
discos
Time-Warner/Turner 24,6 X X X X X X X X
Disney/ABC/Capital Cities 22,5 X X X X X X X
Columbia/TriStar /Sony 15,9 X X X X X X X
Universal/Seagram/Polygram
15,4 X X X X X X
20thCent.Fox/ NewsCorp. 12,9 X X X X X X X X
Paramount /Blockbuster/
Viacom
3,2 X X X X X X X
MGM/UA/Orion/Pathe n.d. X X X X X
Fonte: Owen e Wildman “Video Economics”, Harvard University Press, 1992. Gazeta Mercantil,
23/12/97, pág. 5.
Como se vê, parece que o ranking das maiores empresas do setor corresponde ao
ranking daquelas que estão presentes em mais janelas, tecnologias e formatos. A única
exceção é a Fox, que embora figure nas oito colunas, aparece na quinta posição. Os
nomes despertam curiosidade. Vão-se tornando compostos conforme ocorrem fusões e
aquisições de marcas igualmente gigantes. O estudo produzido pelo ministério da cultura
explica que, para dominar o mercado, é preciso “identificar e influenciar as preferências
dos consumidores e mercados como forma de assegurar sua lealdade e a previsibilidade
da demanda”.
38
Identificar, através do marketing, padrões de comportamento e, a partir
disso, influenciar padrões através da publicidade tornando o público mais previsível.
Essa homogeneização reduz os acidentes ignorando particularidades, sublinhando
generalidades e criando a concepção de “comunicação de massas”. Os críticos da
38
SDA/MINC. Op. Cit.
52
cultura de orientação socialista partem daí para questionar a validade desse processo de
educação para o consumo que não discute justamente aquilo que é consumido. O
problema central é a possibilidade, perfeitamente aceitável para o mercado, de um
produtor que oferece ao mercado algo que ele mesmo não aprecia. Ou seja, que há uma
classe que, estereotipando as massas, produz massas estereotipadas, previsíveis e
controláveis, pois reproduzem subjetividades propositalmente limitadas. As decisões
estratégicas destes conglomerados de dia apresentam-se, no entanto como apolíticas,
desprovidas de ideologia, cientificamente democráticas. O socialismo seria subjetivo,
enquanto o capitalismo seria objetivo e pragmático, portanto previsível e neutro.
Hoje, no Brasil, ter co-produção da “Globo Filmes” é praticamente condição para que um
produto cinematográfico doméstico atinja seu break even. Mas existem outras
estratégias igualmente eficientes na garantia de mercados estáveis e livres de
concorrência como segmentação; serialização; merchandising; produtos derivados; e
programação de janelas. A discriminação de preços, no entanto é a mais importante e
disseminada delas. Consiste, enfim, em explorar a diferença significativa entre o baixo
custo de oferecer um produto em mercados adicionais e o alto potencial de receita para o
distribuidor em cada um desses mercados, especialmente quando contraposto ao alto
custo da produção de um substituto doméstico.
39
A necessidade de inserção internacional se deve à possibilidade de reduzir os preços
quando do lançamento no mercado externo. Hoskin interpreta a discriminação de preços
no mercado internacional como um desconto cultural. Uma dissonância cognitiva geraria
uma menor aceitação média do produto, exigindo redução de preços.
40
No Brasil, não
podemos concordar com Hoskin. O produto estrangeiro, à exceção da televisão, tem
aceitação até maior e mais fácil do que o nacional, principalmente devido ao período,
39
Idem.
40
Hoskins, C., Mc Fayden, S. and Finn, A. “Global Television and Film: an Introduction to the Economics of
the Business”. Oxford, Oxford University Press. 1997.
53
entre o fim dos estúdios nacionais (Vera Cruz e Cinédia) e a “retomadados anos 90, em
que a cinematografia brasileira experimentou um deslocamento estético radical em
relação à produção comercial norte-americana. Segmentando-se radicalmente, o cinema
nacional como um todo perdeu grande parte do público consumidor. Naquele período o
cinema brasileiro pôde ser radicalmente cultural e artístico com um viés particularmente
anticomercial. Os custos foram e têm sido arcados pelo Estado.
A discriminação de preços também é feita na passagem entre uma e outra janela de
exibição. Cada dia paga preços significativamente distintos para a exibição de um
mesmo produto audiovisual. É possível praticar preços diferentes mesmo dentro de uma
mesma janela exibidora, dependendo de outras variáveis de acesso como horário, dia da
semana, ocupação do espectador (desconto para estudantes) ou idade (desconto para
idosos).
“Diferentemente dos mercados de commodities, o de produtos
audiovisuais não é perfeitamente competitivo. Na verdade, os preços
pagos por um mesmo produto nos diferentes mercados variam
consideravelmente (...) Os exportadores são capazes de manter os
mercados segregados, podendo usar seu poder de mercado para
explorar as diferenças nas elasticidades, ou seja, a disposição em
pagar dos diferentes mercados”.
41
41
SDA/MINC. Op. Cit.
54
Preços mínimos e máximos dos programas de TV em países selecionados, 1995 (em US$):
Mercado Preços mínimos Preços máximos
Estados Unidos/ Principais redes de TV 100,000 2,000,000
Canadá/ CBC Inglês 12,000 60,000
Brasil 2,500 12,000
Nicarágua 140 350
Alemanha 15,000 80,000
Inglaterra/ BBC/ITV 20,000 100,000
Islândia 800 1,000
Albânia 200 300
CIS 800 4,000
Bangladesh 200 400
Japão / Comercial 25,000 120,000
Austrália / Comercial 20,000 100,000
Chipre 250 300
África do Sul 3,500 8,500
Zimbabwe 200 250
Porto Rico 1,500 7,000
Aruba 80 100
Fonte: Adaptado pelo Ministério da Cultura de Television Business International Yearbook
95 (London Media and Telecoms), p.282.
55
Valor médio do aluguel de filmes pelos distribuidores em países selecionados, 1994-1996 (em US$).
País 1994 1995 1996 Média 94-96
Alemanha 5,94 8,36 8,78 7.69
Austrália 7,45 7,38 7.42
Espanha 6,96 6.96
Suécia 4,75 5,23 5,50 5.16
Finlândia 2,28 2,64 2,37 2.43
França 2,07 2,37 2,32 2.25
Luxemburgo 1,96 2,15 2.06
Bélgica 1,98 2,04 1,81 1.97
Grécia 1,89 1.89
Holanda 1,88 1.88
Áustria 1,87 1.87
Noruega 0,00 2,34 2,43 1.59
Dinamarca 1,29 1,28 1,20 1.26
Portugal 1,17 1.17
Eslováquia 0,32 0,28 0,35 0.32
Fonte: Screen Digest, Maio de 1997 in SDA/MINC. Op. Cit.
A vantagem de dominar um mercado está na possibilidade de determinar preços. Na Tv,
o valor do produto vai depender do valor de mercado do total de espaços comerciais
vendidos aos anunciantes. O preço é calculado com base no número de espectadores e
no “valor do cada espectador”.
42
O valor de cada espectador depende diretamente de
sua renda média. Daí a caracterização clássica de público-alvo na publicidade, definido
por sexo, idade, e classe. Classes representadas por letras: A, B, C, D e E. O
consumidor da classe A tem maior renda e assim tem maior potencial de prospecção
como cliente, portanto custará mais caro acessá-lo pela compra do espaço comercial.
O limite da discriminação de preços está num conceito moderno de direito comercial
chamado Dumping.
“A prática de preços baixos tem ocasionando acusações de dumping,
o que nesta indústria não é fácil de ser determinado. Este ocorre
42
Idem
56
quando os preços cobrados nos mercados externos são menores do
que os custos; ou, quando os preços praticados pelo produtor
naqueles mercados são menores do que os praticados no mercado
doméstico. Em princípio ambas as condições estariam cumpridas.
Entretanto, quando se afirma que os EUA praticam preços abaixo do
custo, a referência é o (alto) custo de produção. Contudo (...) dadas as
características do produto, este custo não pode ser utilizado para a
venda para mercados adicionais de exportação. O custo relevante é o
custo marginal de copiar o produto e distribuí-lo naquele mercado.
Nos grandes mercados o preço pago excede amplamente este custo
marginal. Quanto à segunda condição, no caso de programas de
televisão, os preços externos são invariavelmente mais baixos que os
domésticos em virtude de o mercado americano ser singularmente
grande e rico e porque um desconto cultural aplicado à
programação americana nos mercados externos, mas não no
doméstico”.
43
está o “desconto cultural” de Hoskin usado como argumento de defesa da industria
audiovisual norte-americana na luta política pelo comércio global. Mas os exportadores
de outros países também cobram abaixo dos preços norte-americanos por produtos
similares. O audiovisual americano tem uma reputação que lhe agrega valor. Os preços
de exportação da teledramaturgia da Rede Globo, por exemplo, estão 70% abaixo de seu
custo.
Como se vê, o ambiente mercadológico brasileiro é marcado pelo oligopólio de duas
grandes forças: as distribuidoras internacionais norte-americanas e a emissora doméstica
líder de audiência. O estudo oficial de 1998 refere-se à exportação de novelas e a
concorrência que estas exercem sobre outras formas de dramaturgia audiovisual
doméstica. Jamais associa esses fenômenos ao nome da única emissora que os produz.
Causa espécie, ao longo da leitura, que o ministério aborde a situação da Emissora líder
como se fosse situação do meio televisivo como um todo, e que não faça menção ao
grau de concentração de mercado de que a emissora goza. O monopólio do mercado
43
Idem.
57
brasileiro de audiovisuais, tão claro quanto o dumping internacional das grandes
distribuidoras dos EUA, é inexplicavelmente omitido.
Exportadores de todos os países comercializam conteúdo audiovisual praticando preços
mais baixos do que aqueles do mercado interno. A vitória da tese do dumping, portanto,
afetaria o desempenho de empresas no mundo todo. No Brasil, a empresa nacional que
teria mais a perder seria a Rede Globo de Televisão, quinta maior empresa de televisão
do mundo. Na maioria dos países a dramaturgia local tem a preferência do público. Isso
ocorre no Brasil, com a televisão, assim como na Índia, que ainda o faz no cinema. A
discriminação de preços molda o mercado brasileiro de audiovisual. Francisco Wefort
dramatiza a situação do pequeno empreendedor cinematográfico, totalmente focado em
seu produto singular.
“Entre nós, produzir um filme é, em geral, um drama. Um drama que
começa com a decisão de um produtor de realizar uma obra de
dimensões maiores do que sua empresa. Isso para mencionar os
casos em que o produtor tem uma empresa, embora pequena, porque
também existem as situações em que a cria expressamente para
produzir o filme. Reconhecer que isso ocorre em geral com atividades
econômicas que funcionam por projetos ou por empreitadas, como a
construção civil ou, por exemplo, os projetos de estradas ou
hidroelétricas – não torna mais fácil a vida do cineasta”.
44
Ocorre algo na equação que não é considerado pelo discurso de mercado, mas ao
mesmo tempo caracteriza diversos mercados nacionais, muitos europeus, outros sul-
americanos. uma força política significativa que é zelosa do aspecto autoral do
produto audiovisual. Isso, que no mercado norte-americano aparece na forma do Star
System, é para esses mercados uma questão de concorrência cultural. A sociedade
44
Wefort, Francisco C. “Cultura, Cinema e Indústria” em Cardoso, Fernando Henrique, et al. “Cinema
Brasileiro. Serie Cadernos do Nosso Tempo, Nova Serie, 4”. Rio de Janeiro : Fundo Nacional de Arte e
Cultura : 2001.
58
Brasileira, ou pelo menos uma parte da “classe dominante”, produz historicamente
empreendedores audiovisuais singulares, que gozam de suficiente prestígio para
comprometer o Estado com alguma reserva de mercado. Como esse empreendedor está
focado no seu produto singular e não no mercado, ele se contenta com uma reserva de
patrocínio aos custos de produção. A questão da audiência é declarada preocupação
meramente comercial. No entanto:
A produção de um único filme toma, com freqüência, a dimensão de
uma empresa, mesmo que de existência transitória. Desde o roteiro
até a finalização, o filme se produz seguindo as regras de uma linha
de montagem, pedaço por pedaço, até a composição final do produto
que, porém, é único. Assim, a cópia de um filme não é exterior à obra
como poderia ser a reprodução de uma pintura, mas parte da sua
finalidade”.
45
Na contramão do liberal norte-americano Hoskin, o social-democrata brasileiro Wefort dá
um argumento pela caracterização do dumping. E não é um mau argumento:
“Digamos que a copiagem completa a linha de montagem. É
essencial ao filme que possa ser copiado tantas vezes quantas for
necessário para atingir o público mais vasto possível. Uma peça de
teatro também pode ser repetida, uma música pode ser repetida e
reproduzida. Mas teatro e música podem também ser concebidos
para um único espetáculo. Um filme concebido para um único
espetáculo estaria em contradição direta com o seu próprio processo
de produção. O filme tem sentido se puder ser copiado, repetido,
reproduzido”.
46
Não porque descartar o alto preço de produção da máster, uma vez que este custo
está no centro do processo é pode ser remunerado pela discriminação predatória de
preços. Predatória, porque sua eficácia está diretamente relacionada a uma deflação
artificial do valor de mercado do produto nacional que inviabiliza a concorrência mesmo
em patamares de custos reduzidos.
45
Idem.
46
Ibidem.
59
O profissional americano se refere ao negócio audiovisual como the industry”. “A
indústria” é uma rede de empresas fornecedoras de equipamentos, serviços, instalações,
recursos humanos e financiamento, que é acessada pelo projeto-cliente, ou seja, todos
os projetos audiovisuais em produção naquele momento.
"O conceito de indústria cinematográfica foi forjado em Hollywood a
partir dos anos vinte, com os grandes estúdios, etc. Na verdade, o
que escala econômica a esta indústria é o comércio. É exercido
nas salas, aonde (SIC) se dá o consumo, e pelos distribuidores que o
alimentam. É a partir daí que se cria a indústria, a produção, a
fábrica. Ao se referirem à indústria, por hábito ou habilidade, os
americanos se referem ao sistema inteiro: produção, distribuição,
exibição".
47
No setor das comunicações, a integração vertical é tão radical, e o produto é de tal forma
modular que essa verticalização desafia até mesmo as fronteiras econômicas entre
indústria, comércio e serviços.
“No Brasil, o que temos de semelhante é a produção de novelas para
TV. Quem for ao Projac, da TV Globo, no Rio, perceberá que es
diante de uma grande fábrica. Todos os estúdios de TV têm essa
característica, mesmo que não se dediquem a novelas, e trabalhem
numa escala menor. Como os estúdios de TV, os estúdios de cinema
são fábricas, embora não tratem com coisas materiais, como ferro e
aço, mas com imagens, sons, idéias e emoções. E o sistema que os
une é uma indústria, um setor industrial”.
48
Quando Wefort fala de estúdios de televisãoe “estúdios de cinema”, devemos entender
“empresas de televisão”, “empresas de cinema”. Essa nomenclatura vem da tradição
fundada por Hollywood em que as grandes distribuidoras começaram seu processo de
acumulação de capital formando grandes patrimônios na forma de meios físicos de
produção (galpões, estúdios de filmagem, maquinaria, equipamentos). Seu
47
Dahl, G. “O 'xis' do cinema”. Jornal do Brasil, 1998.
48
Wefort. Op. Cit.
60
desenvolvimento ocorreu num período de grande industrialização dos EUA. Era então
natural esse tipo de investimento em plantas de produção. Hoje, numa época que se diz
“pós-industrial” esse foco desviou-se para o controle de fatias de mercado nas diversas
mídias.
"A novela de televisão é uma forma de ficção dramática derivada de
um outro meio, o rádio. É constituída, portanto, em cima de diálogos
e da interpretação do ator. E estruturada dramaticamente em torno
de cenários fixos aonde se estabelecem os núcleos narrativos. (...)
(No cinema), desde os anos 50, a partir da evolução dos
equipamentos de registro de imagem e de iluminação, o estúdio não
é mais um insumo fundamental para a filmagem. Embora o seja para
a produção ficcional televisiva. O espetáculo cinematográfico é
visual, o televisivo é narrativo".
49
A tentativa de distinção de Gustavo Dahl é curiosa. É verdade que o processo de
produção do produto televisivo surgiu reproduzindo padrões do rádio, e não do cinema.
No momento de seu nascimento, a televisão era oferecida e consumida mais como um
rádio com imagem do que como um cinema em casa. Isto ocorreu porque até a década
de 60, quando o formato quadriplex inaugurou a era do video-tape, a televisão era um
meio de transmissão exclusivamente ao vivo, por meio da rádio-frequência; um meio sem
suporte. A idéia de um cinema em casa começa com o advento da tecnologia do video-
tape. então a teledramaturgia deixa de ser um teatro filmado, movimento que
havia sido feito pelo cinema 50 anos antes. Até hoje temos resquícios dessa história,
como os programas de auditório que hoje são praticamente o único gênero praticado
pelos concorrentes da Rede Globo.
Quando se trata da concorrência externa, Gustavo Dahl declara que nos Estados
Unidos, o cinema chegou ao que é na base do jogo do mercado, aqui (no Brasil) o
cinema precisa, como qualquer indústria nova, da ajuda da lei e do Estado para chegar
ao mercado”.
50
O cinema no Brasil, no entanto, não tem nada de novo. O país produz
49
Dahl, G. “Filme de ficção”. Jornal do Brasil, 1998.
50
Dahl, G. “O 'xis' do cinema”. Jornal do Brasil, 1998.
61
filmes e cineastas constantemente desde a década de 1910. Chegamos a ter dois
grandes estúdios (Vera Cruz e Cinédia) de perfil inequivocadamente industrial. O que
ocorre é que essa indústria não pode se manter sustentável concorrendo apenas no
mercado interno contra rivais transnacionais. Entretanto, a indústria audiovisual norte-
americana, que também não tem nada de novo, recebeu e recebe grande a ajuda da lei e
do Estado para chegar ao mercado. Nos anos 30, foi criada a mítica Motion Pictures
Association”, entidade que criava um nculo de cooperação entre o governo Roosevelt e
os conglomerados do setor audiovisual. Daí surgiram políticas de comércio exterior
fundamentadas nos preceitos de marketing. Mercados são conquistados por uma
associação de desenvolvimento de produtos com diferenciais técnicos, uma política de
preços competitivos, técnicas de distribuição em bloco, e grandes investimentos em
promoção. Dessa nova ideologia de comércio surgiu aquela frase incansavelmente
repetida: “Nossos produtos irão atrás dos nossos filmes”.
Um paradigma tipicamente industrial assombra o diagnóstico econômico do audiovisual
brasileiro: a falta de economias de escala.
“Nosso cinema é ainda, de modo predominante, o mundo da
pequena empresa, no mais das vezes familiar, nucleada em torno de
um diretor, às vezes de um produtor. Temos apenas umas poucas
empresas capazes de dar trabalho simultâneo a vários
produtores e diretores, com uma estratégia definida de conquista
de mercado. Temos um grande mercado. Temos bons produtores e
diretores, temos excelentes artistas. Precisamos de empresas.
Precisamos de mais empresas e de empresas maiores”.
51
Creio que exploramos suficientemente as questões que se apresentam à discussão
diante da principal estratégia competitiva no mercado mundial de audiovisuais: os ganhos
de escala. Seja pela discriminação de preços, verticalização das empresas, fusões e
aquisições e diversificação de atividades (tecnologia, conteúdo, meios, etc.), os ganhos
de escala são a mola mestra da desigualdade de oportunidades nesse mercado, mas
51
Wefort. Op. Cit.
62
também vale a pena abordar outras estratégias ligadas de forma mais indireta a esses
ganhos.
Uma delas é o chamado Star System. O Sistema Estelar é a mais eficaz ferramenta de
fidelização de público ao produto cultural. A fidelidade do espectador a determinados
autores e intérpretes é um critério valioso de apreciação de um determinado projeto. A
presença ou ausência de um nome estelar num filme americano leva a variação de até
15% no faturamento.
52
Grandes orçamentos são compensados com a contratação de
diretores e atores com alto valor agregado, minimizando os riscos. Em muitos casos, os
astros obtêm participação na renda do filme. O investimento no Star System pode
corresponder até 25% do orçamento, o que na indústria americana significa gastos de até
30 milhões de dólares apenas pela contratação de um ator ou diretor.
53
Fenômeno
similar só se vê no mundo dos esportes profissionais mais populares. No Brasil, uma das
estratégias na emissora der é ter uma folha de pagamento de atores e apresentadores
que não deixe oportunidade para a concorrência roubar parcelas de audiência através de
contratações de artistas cuja fama foi um investimento dela. Ao mesmo tempo, pratica
com freqüência cobertura de valores contratuais de autores e apresentadores de sucesso
das concorrentes menores mesmo que a contratação não tenha objetivo específico e o
contratado fique “na geladeira”, como se fala no meio.
Para minimizar as incertezas advindas do ineditismo inerente ao produto audiovisual é
praticada a extensão de marca, estratégica comum no marketing, que consiste em
adicionar produtos variantes a uma marca de produto criando assim uma linha, ou série.
No audiovisual, a extensão vem na forma de seqüências de filmes, divisão de um produto
extenso em episódios, ou a concepção de séries sem previsão de conclusão. No Brasil,
o formato da novela diária com cerca de 150 capítulos de meia-hora foi a forma mais
52
Finn, A. e Hoskins, C. et al. "Telefilm Canada Investment in Feature Films: Empirical Foundations for
Public Policy." Canadian Public Policy - 1996.
53
Idem.
63
bem-sucedida de ficção seriada, juntamente com as mini-séries, em que uma edição final
de 5 a 10 ou mais horas é apresentada semanalmente ou diariamente em 10 a 20
episódios. Nos EUA, fez sucesso principalmente a fórmula do seriado, apresentado
mensalmente ou semanalmente por uma ou mais temporadas anuais, dependendo de
seu sucesso. também se usa a criação de seqüências não-previstas para filmes de
grande sucesso, expediente que chegou ao auge na década de 80 com séries como
“Sexta-feira 13”, “Rocky”, e “A Hora do Pesadelo” que tiveram mais de cinco
continuações cada uma (A primeira teve mais de 13). Mesmo que as sequências tenham
rendas muito inferiores à primeira edição, as empresas vêem nelas menos riscos ao
investimento do que a concepção de um produto inédito. A extensão de linha aproveita a
aprovação de público conquistada pelo produto original para atrair boa parte dessa
massa para experiência similar. Na forma seqüencial, essa similaridade é consumida
como tal pelo público, que decide ser fiel à marca. na forma de formulas narrativas e
estéticas, tenta-se repetir a boa acolhida de um produto inédito inserindo elementos
reciclados deste em outro produto original. Nesse caso o público consome a repetição
involuntariamente. A extensão de linha também traz vantagens de custos principalmente
na etapa de prospecção e desenvolvimento de projetos que, nesse caso, é pulada.
Muitas vezes, é justamente o caráter de ineditismo que é supervalorizado pela promoção
para reduzir os riscos envolvidos em projetos com alto custo de produção. Nesses
casos, os filmes são lançados através de campanhas publicitárias de larga escala, às
vezes mundiais, tornando sua estréia um evento coletivo. Até por isso chamamos esses
filmes de “filmes-evento”, ou block-busters. A expressão, cuja tradução mais próxima é
“arrasa-quarteirão”, demonstra o poder de ocupação desses lançamentos e
principalmente seu efeito sobre os produtos concorrentes oferecidos no mesmo período.
O filme tido como inaugurador do gênero block-buster foi "Guerra nas Estrelas" e, não
atoa, produziu cinco seqüências. O filme-evento torna-se uma marca. Produz fidelidade
principalmente numa na faixa público majoritária nas salas de exibição americanas e
64
brasileiras: adolescentes e jovens das classes altas e médias com idade entre 12 e 24
anos. “Naturalmente, o valor dos investimentos na produção dos block-busters constitui
por si só uma barreira à entrada para os produtores fora de Hollywood”.
54
Como
conseqüência, os custos do negativo de reprodução e de publicidade das maiores
produções americanas inflacionou-se.
EUA: Custos dos lançamentos, 1970-95 (em milhões de US$, valores reais a preços de 1996):
Fonte: Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura. “Economia da cultura” Brasília : SDA/MINC : 1998.
O custo das compras de negativo, que dobraram nos últimos 25 anos, não são
significativamente pesados para um projeto comercial norte-americano, mas podem até
inviabilizar um projeto independente, principalmente no Brasil. No entanto, o gasto com
negativos é um bom indicador de duas coisas. Primeiro, da extensão do trabalho de
54
Idem. Pág. 121.
65
filmagem e, sim, entra a variável fundamental de um orçamento de produção: durante
quanto tempo se filmará, e o quanto se filmará. Segundo, da quantidade de cópias
lançadas simultaneamente. A duplicação do indicador assume então contornos
grandiosos. Significa um custo por produto completamente fora da realidade de todos os
mercados cinematográficos do mundo, exceto o norte-americano.
Para incrementar a renda potencial de uma marca forte criada em torno de um produto ou
linha de produtos de ancoragem audiovisual, nada melhor que mais extensões de linha,
agora não na forma de mais produtos audiovisuais, mas de uma diversidade de outros
produtos relacionados, das camisetas aos brinquedos, do jogo eletrônico à trilha sonora.
Trata-se da forma específica como se pratica na industria audiovisual o merchandising,
ferramenta clássica da publicidade que surge sob duas formas gerais: primeiro, através
da “exploração comercial de produtos, serviços e patentes baseados nos personagens ou
nos temas dos filmes vendas de licenças para exibição em redes de TV aberta e a
cabo, vendas de direitos para transformação em livros, trilhas sonoras, vídeos, e tie-ins
como camisetas, brinquedos, jogos, etc”
55
; segundo, pela comercialização de espaços
para inserção de produtos anunciantes em meio à trama do filme, também conhecido
como tie-in. De forma geral, merchandising é toda ação publicitária voltada para a
mercadoria, seja buscando expô-la no conteúdo editorial das diversas mídias, seja
criando mercadorias tangíveis para marcas intangíveis, ou mesmo pela propaganda
veiculada no local de consumo da própria mercadoria principal.
O desenvolvimento de produtos relacionados e licenciamento de outros se tornam fontes
suplementares receitas e funcionam como elementos promocionais em sinergia com o
próprio produto audiovisual. Como são desenvolvidos e produzidos simultaneamente aos
próprios filmes, os produtos relacionados o têm como propaganda de alto efeito ao
mesmo tempo em que ajudam a promovê-lo. “As grandes distribuidoras internacionais
55
SDA/MINC. Op. Cit.
66
são hoje melhor descritas como conglomerados no setor de diversão e lazer que
possuem divisões que exploram o potencial comercial dos filmes nos mais variados
mercados”.
56
Hoje, jogos eletrônicos e filmes têm receitas e custos equiparáveis e
surgem uns derivados dos outro de forma equilibrada. tantos jogos produzidos a
partir de filmes quanto filmes produzidos a partir de jogos de sucesso. Gera muita
preocupação hoje o impacto da indústria de jogos eletrônicos sobre a audiência dos
meios audiovisuais tradicionais.
A última estratégia de otimização das possibilidades de lucro praticadas no setor que vale
citar é a prática generalizada da co-produção. Para os países com indústrias nacionais
incipientes, como o Brasil, a co-produção internacional é a única forma de cesso aos
mercados externos. “Isso acontece por (...) evitar barreiras protecionistas comuns na
maioria dos países. (...) Além disso, as co-produções permitem que os produtores se
envolvam em maior número de projetos, reduzindo o risco com um maior portfolio”.
57
Diversificar para diluir os riscos: prescrição clássica da economia financeira.
O conjunto de estratégias exposto neste capítulo, além das considerações que o
precedem principalmente no tocante à questão da concorrência, nos dão uma noção do
que está em jogo quando dizemos que o universo de preocupações típico do mercado se
organiza em torno de dois eixos de tensão que se cruzam: lucro e audiência. Tudo o que
vimos aqui é como a questão do lucro se articula com o universo de fenômenos sociais e
econômicos que a cerca. Agora chegou a vez de nos postarmos a partir de uma outra
perspectiva: da audiência.
56
Moran, A. “Film Policy, National and Regional Perspectives”. London, Routledge. 1996. Pág.3.
57
SDA/MINC. Op. Cit.
67
1.1.2. O eixo da audiência:
O segundo vetor de valoração paradigmático para a lógica do mercado em relação ao
produto audiovisual é aqui definido como eixo da audiência. A principal diferença no
tratamento do eixo da audiência em relação ao do lucro é que a idéia de audiência não
tem um antônimo automático. Não se pode pensar a audiência em termos meramente
algébricos ou quantitativos. Isso fica claro principalmente quando buscamos relações de
função entre lucro e audiência. Sabe-se que maior audiência nem sempre significa maior
lucro da mesma forma que, em marketing, maior volume de vendas não significa
necessariamente maiores ganhos. Sendo assim, a primeira distinção que devemos
abordar no eixo da audiência está entre seus valores quantitativos e qualitativos.
As técnicas de veiculação consagradas por agências de publicidade com o objetivo de
maximizar o resultado obtido por determinado investimento em mídia o emblemáticas
da distinção simples e objetiva entre os aspectos quantitativos e qualitativos da
audiência. O alicerce dessa distinção reside na atenção que o planejamento de mídia
deve ter para um dado fundamental de toda mensagem: contido no conjunto do público
em geral está o público-alvo. O conceito de público-alvo estabelece a idéia de que a
mensagem não se dirige a todos ou a qualquer um, mas a um determinado tipo de
audiência, definido por um perfil social, econômico, cultural, psicológico, etc... Sendo
assim, o sucesso de uma veiculação não depende da quantidade bruta de audiência que
alcança, mas da precisão com que seleciona a audiência. Esse problema nos apresenta
duas questões muito importantes para esta tese. Primeiro: introduz no eixo da audiência
um critério qualitativo que terá implicações diversas entre elas o juízo de que um produto
audiovisual bem sucedido não é necessariamente aquele que atinge grandes volumes de
público. Se no entretenimento cinematográfico ou televisivo esse preceito é raramente
empregado, na publicidade é uma lei vital de eficácia. Segundo: o imperativo de definir
um público-alvo levantará um elenco de critérios de diferentes ordens que estabelece
68
categorias estereotípicas e que busca emular aspectos particulares antes velados pela
generalidade da idéia de Massa. As categorias qualitativas de definição do público-alvo
correspondem aos aspectos presentes em porções da audiência total que interessam ao
elaborador da mensagem. Assim, além do valor quantitativo, a audiência possui também
um valor qualitativo apurado principalmente pelo instrumental metodológico utilizado na
definição do público-alvo. Interessam-nos então, os estereótipos segundo os quais se
decalca a partir da massa a imagem de um público-alvo.
No “eixo do lucro”, quando descrevíamos os métodos de valoração dos produtos para
exibição na TV, discorremos sobre o a variável de “valor do público” para o anunciante.
Isso ocorre porque é possível aos meios de comunicação discriminar preços conforme a
precisão qualitativa do público que estes oferecem ao mercado anunciante. Alguns
meios têm nessa característica seu principal diferencial e estratégia de sobrevivência. As
revistas são exemplos acabados disto. Longe de oferecer as massas de audiência
disponibilizadas pela TV ou o Rádio, as revistas ou canais de TV por assinatura têm um
universo de público muito bem definido e, quanto maior for a relação entre base de
assinantes e universo total de consumidores, mais rica será a descrição de seu perfil.
Conforme a tecnologia da informação assume o centro das estratégias competitivas do
século XXI, cresce a gravidade do valor qualitativo das audiências. Veículos com
audiências segmentadas oferecem espaços publicitários segmentados. Para o
anunciante, isso significa o ensejo de alcançar públicos dispersos na massa, com uma
relação custo-benefício vantajosa. O artifício da comunicação segmentada reduz o que
chamamos na publicidade de “dispersão de mídia”. A dispersão de mídia é calculada
pela estimativa de público fora do perfil-alvo que é atingido pela mensagem em relação
aos impactos bem-sucedidos. Alcançar grandes massas de audiência é algo que sempre
terá custo elevado. Mesmo considerando-se uma maior dispersão dos esforços de
comunicação, os preços desses tipos de espaços permanecem elevados devido à
presença no mercado anunciante de grandes empresas interessadas em divulgar
69
produtos para um espectro amplo de consumidores. Produtos de massa estabelecem um
mercado de espaços de dia de massa e fomentam, portanto, a produção de conteúdo
audiovisual massificado. Por outro lado, anunciantes com marcas e produtos voltados a
públicos específicos fomentam um mercado de mídia segmentada, permitindo a produção
de conteúdo diferenciado.
Devemos notar que uma maior segmentação de público nos meios de comunicação
(revistas, TV por assinatura, etc.) leva a uma maior segmentação no mercado de espaços
publicitários. Esse é um processo que começa a tomar forma significativa em fins do
século XX e ainda está longe de atingir seu auge. O universo de técnicas que
possibilitam precisão e refinamento na especialização de mídia estará no centro das
atividades de comunicação no século XXI, possibilitando um acréscimo significativo no
valor agregado dos espaços publicitários segmentados e, portanto dos produtos
audiovisuais não-orientados às massas. Parte desse efeito é sentida no mercado de
TV por assinatura, embora isso ainda se mais pelo viés dos baixos custos de
veiculação dos acervos de conteúdo do que pelo valor (ainda reduzido) dessas
audiências particulares.
Hoje, a segmentação ainda não é considerada em toda sua potencialidade. Isso ocorre
em parte pela inércia produzida por um século de comunicação de massas. Muitos
anunciantes preferem pagar pelos custos de enormes taxas de dispersão ao anunciar em
meios de perfil superquantitativo. No Brasil, o melhor exemplo disso é o faturamento
publicitário da Rede Globo de Televisão. Embora tenha perdido grande parte da
audiência das classes A e B (de maior poder aquisitivo) para as televisões por assinatura,
ao longo da última década, a emissora nacional líder de mercado concentra ainda hoje
75% dos investimentos brasileiros em espaços publicitários (somados todos os meios).
Muitos dos anunciantes que hoje fazem vultosos investimentos comprando esses
espaços publicitários (os mais caros do mercado) para atingir as dezenas de milhões de
70
expectadores da emissora têm como público-alvo segmentos bastante especializados de
público e que poderiam ser recortados através de esquemas de mídia alternativos. O
anúncio de um carro de luxo do horário nobre da Rede Globo tem altíssimo custo por
GRP
58
, com grandes taxas de dispersão, atingindo uma maioria de audiência que apenas
sonha comprar o automóvel anunciado. Metaforicamente, é como usar um canhão para
matar uma mosca. Os efeitos sócio-culturais desse grau de dispersão de mídia, com
grande dissonância sócio-cultural, são muito discutidos. Em países com grande parcela
de população pobre, como o Brasil, essa configuração um tanto grosseira de
planejamento de mídia pode ter participação nas mais diversas doenças sociais, como
discutiremos mais tarde.
O fracasso dos veículos segmentados em atrair investimentos publicitários na mesma
proporção em que oferecem porções do seu público-alvo deve-se a duas razões básicas.
A primeira é que a infra-estrutura do mercado de mídia ainda não está preparada para
oferecer essas informações com a velocidade, precisão e confiabilidade necessárias para
que um anunciante possa trocar com vantagem absoluta de custos um plano de mídia
simples, caro e excessivamente abrangente, por um outro complexo, potencialmente
menos caro e altamente modular. A segunda razão é a própria cultura dos anunciantes,
que ainda consideram menos arriscado anunciar nos espaços arrasa-quarteirão do que
buscar composições fragmentadas de mídia. Por trás dessas duas razões está a
dissonância entre o discurso tecnocrático e a real crença das empresas nos mecanismos
de pesquisa de mercado. A complexidade das pesquisas, estatísticas e mecanismos de
fiscalização necessários a dar confiabilidade a um grande sistema de mídias
segmentadas tende a gerar incertezas no anunciante. Sabemos que incertezas e riscos
são exatamente o que o capital do século XXI procura evitar. Dessa forma, os
anunciantes limitam seus investimentos aos veículos com maior protagonismo de
mercado. Esse protagonismo não é conquistado apenas pelo oferecimento de grandes
58
Gross Rating Point: parcela da audiência total.
71
porções de audiência, mas por todo um conjunto de técnicas de marketing de
relacionamento que constroem a reputação de confiabilidade desses veículos junto ao
mercado anunciante. Como se vê, as mesmas técnicas usadas por anunciantes e
veículos para conquistar o público em geral são usadas nas relações entre eles com os
mesmos efeitos de fidelidade subjetiva e impulso de compra. Veículos altamente
segmentados têm dificuldade em construir a mesma estrutura de atendimento ao
anunciante proporcionada pelos grandes grupos de mídia que, por sua vez, vendem
pacotes casados de espaços em diversos veículos simultaneamente, embutindo na
venda parte do trabalho de planejamento de mídia. A ciência por trás do eixo da
audiência chama-se pesquisa de mercado e compõe-se dos elementos clássicos da
pesquisa de opinião pública, enriquecidos pela ciência estatística.
Do ponto de vista empírico, o público alvo não existe. Trata-se de uma abstração
estatística. Uma coleção de padrões categóricos que podem ser isolados numa
amostragem de pesquisa. Vale notar que, afora os casos de recenseamento, o modelo
que descreve as características de um público baseia-se em uma amostragem, ou seja,
numa parcela selecionada do público total, que julgamos ser representativa das
proporções totais dos acidentes que precisamente queremos aferir. Em suma: para
saber, dentro de uma população, as quantidades de diversos padrões (de renda,
consumo, comportamento, etc.), selecionam-se uma amostragem a partir de pesquisas
anteriores. É escusado dizer do grau de incerteza epistemológica que envolve os
métodos de pesquisa de mercado. Estudiosos cordatos em todo o mundo reconhecem
que as pesquisas estatísticas são ricas em oportunidades de deformação e manipulação,
falsas relações entre causa e efeito, omissões metodológicas entre outras interferências
sobre a desejável imparcialidade do procedimento. Não notícia alguma. Todo
método é o princípio usado para corroborar uma hipótese e pode ser desvirtuado para
isso. Exatamente por esse motivo, a ciência é cercada de regras processuais,
metodologias obrigatórias, regulamentos, entidades de fiscalização e, ainda assim, muita
72
controvérsia a respeito de resultados apresentados (principalmente quando há interesses
envolvidos).
Não obstante, do ponto de vista do mercado, não existe outra forma de representar a
audiência a não ser os perfis de público obtidos pelas pesquisas. Por falta de método
melhor de representação do real, o mercado fica com o jogo estatístico. Da pesquisa de
mercado surge um exemplar estereotípico. Uma espécie de indivíduo-modelo, hipotético,
dotado de todas as características mais corriqueiras do público e despojado de
irregularidade em relação ao padrão.
Explicado dessa forma, o público-alvo, torna-se uma espécie de letargo marxista. É o
próprio Homem do trabalho, despido inteiramente de sua singularidade e convertido em
moeda corrente no mercado de audiências. A partir desse modelo estereotípico, todas as
decisões são tomadas no sentido de amoldar o produto audiovisual (propaganda, novela
ou filme) ao “gosto” que se supõe subjacente ao expectador típico.
A dissertação de mestrado, “Narrativa e Eficácia: o Estereótipo na Cultura”
59
, trabalho
que apresentamos a esta escola anteriormente, dedica-se integralmente a problematizar
e desconstruir o trabalho de composição estereotípica, particularmente a distinção
política entre os estereótipos produzidos pela cultura popular e aqueles construídos
cientificamente. A relação de causa e efeito entre a realidade e sua representação
estereotípica é menos óbvia do que parece. Quanto se trata dos meios de comunicação
em massa isso fica ainda mais claro.
O dilema do ovo e da galinha se traduz aqui como deformação de um público pelos
instrumentos que deveriam representar sua forma imanente. O mercado entende que
deve abarcar seu público pelas ferramentas de pesquisa estatística e, assim, oferecer o
59
Mattos, Daniel. “Narrativa e Eficácia: o Estereótipo na Cultura”, 1999, ECO-UFRJ.
73
que ele necessita. Essa é a ética capitalista da relação com o público. A ética socialista
esse mesmo arrolamento como formação de subjetividade em massa, ou seja, a
manipulação psicológica de uma população, que a converte em um público previsível e
homogêneo, cujas preferências se tornam progressivamente mais convenientes para a
“classe” que opera os meios de comunicação. Esse último diagnóstico, embora rejeitado
universalmente pelo mercado, é o pensamento dominante entre acadêmicos, críticos,
formadores de opinião e por boa parte público de alta renda e escolaridade, pelo menos
no Brasil. A discussão se torna ainda mais complexa e polêmica quando se anseia
recomendar alternativas às decisões criativas sob critérios outros que não da pesquisa de
opinião e mercado. Outra vez percebemos que o problema crucial, campo de conflito
entre os diferentes grupos de pressão e facções ideológicas é a seleção, dentro de um
universo amostral de projetos, argumentos ou roteiros, quais serão produzidos e
receberão os grandes investimentos de promoção que tornam uma peça audiovisual item
da cultura de uma população. Não é primeira vez e não será a última em que
sublinharemos aqui a prevalência desta questão subjacente. A disputa política,
ideológica e criativa em torno da divisão do trabalho cultural, ocultada pela oposição
dicotômica entre mercado e cultura. O espaço em que incidem os principais fatos sociais
relativos ao audiovisual é esse, onde uma miríade de projetos de produto é submetida às
regras de uma ecologia cultural-mercadológica decorrendo em uma pequena fração
desse total que efetivamente embolsa a injeção de capital público, privado ou misto que a
transformará em produtos audiovisuais propriamente ditos.
A audiência, debatida de forma reducionista pelo mercado e de maneira hiper-ideológica
pela cultura, está no cerne do problema que tentamos diagnosticar. Afinal, toda a
discussão política sobre o papel dos meios de comunicação na sociedade passa pela
crise da representação que se faz presente tanto de um lado como de outro dessa
disputa. Podemos intuir que o mercado busca legitimar sua forma de representar as
necessidades culturais da sociedade pela estratégia demagógica dos ciclos de demanda.
74
Mais que isso: ideologicamente, o mercado reduz a demanda por cultura à necessidade
(economicamente reconhecível) de entretenimento ou lazer. O pensamento de esquerda
costuma pregar que a diversão é uma forma de ócio inócuo própria das massas
exploradas cujo tempo não trabalhado é investido na afasia. Para o Homem
revolucionário, a cultura não visa distrair, mas pelo contrário, desafiar, instruir e inspirar.
Temos forças políticas que exigem da cultura um papel que transcende o
entretenimento. Pelo contrário, ao invés de distração, espera-se que o produto cultural
promova a reflexão, a educação, o crescimento intelectual. Claro que com essa
exigência vem uma pergunta: quem decide o que deve ser refletido e ensinado? Para
onde cresce o Homem da Cultura? Justamente para evitar essa discussão, o sistema
capitalista cercou-se da lógica focada na demanda, e seguiu desdobrando-se sobre o
meio-ambiente cultural segundo esse darwinismo neutralista. A única maior preocupação
do agente de mercado é a manutenção da demanda, independente do conteúdo. Será
verdade?
Antes de voltarmos a debater as nuances qualitativas dos mercados de audiovisuais,
vamos entender o peso que o aspecto quantitativo tem nesse comércio. Como temos
verificado, a instabilidade da demanda por produtos audiovisuais dificulta o
desenvolvimento de projetos criativos e sua viabilização como produtos comercialmente
viáveis. As surpresas negativas e positivas são comuns nesse meio. O sucesso de
público é altamente lucrativo enquanto o fracasso de um único produto pode levar uma
grande empresa à bancarrota. Esses fatores levam aos altos índices de concentração
nesse cenário competitivo. A partir de um certo ponto (dada alguma maturidade no setor)
essa organização baseada na concentração estabeleceu-se como norma e, a partir disso,
novas estratégias de controle, típicas desse ambiente de oligopólio, surgiram tornando a
competição na área ainda mais difícil.
75
“Pelo lado da demanda, os produtos audiovisuais distinguem-se por
apresentarem características de um bem público (...) Como no caso
dos bens públicos, portanto, o consumo se de forma coletiva ou
não-exclusiva, sem rivalidade entre os consumidores. (...) Pelo lado
da oferta, esse caráter de bem público dos produtos audiovisuais é
reforçado pelos baixos custos de reprodução de cópias para
distribuição. Isso implica que, uma vez incorridos os custos de
produção da matriz original (master copy), os custos de se
acrescentar novos espectadores são insignificantes. O custo total
de oferta dos produtos audiovisuais praticamente não é afetado
pelo número de consumidores e, consequentemente, a
lucratividade é diretamente proporcional ao número de
espectadores”.
60
Essas duas características: consumo público e custos de reprodução reduzidos foram
determinantes para que o audiovisual tivesse êxito como meio de comunicação de
massas. Esse processo de massificação ocorreu sempre com mais força nos EUA.
Hoje, os EUA são o maior mercado mundial, quatro vezes maior que o segundo
colocado, o Japão, e vinte vezes maior que o mercado brasileiro.
Grandes massas de audiência sempre foram condição fundamental para o progresso da
industria cultural. Significa que um mercado nacional forte pressupõe uma grande
população. Países populosos como China ou Índia se impõe pelo número de
consumidores. mais expectadores de cinema em qualquer um desses dois países do
que no milionário mercado dos EUA. Como uma população total nada desprezível,
somada ao alto poder aquisitivo, o mercado americano vende mais de 1,2 bilhão de
ingressos de cinema por ano. A União Européia, toda somada, não passa da marca de
700 milhões (pouco mais que a metade), enquanto o Brasil tem um mercado anual de
100 milhões de expectadores em suas salas de exibição. A diferença de tamanho dos
mercados americano e brasileiro, quando comparada aos tamanhos absolutos dessas
populações mostra a real diferença entre os dois. Enquanto o americano médio vai ao
cinema quase cinco vezes por ano, o europeu vai duas, o japonês, uma e o brasileiro,
60
Duarte, L. e Cavusgil, S. "Internationalization of the Video Industry: Unresolved Policy and Regulatory
Issues." Columbia Journal of World Business, 1996.
76
pouco mais de 0,6 vez ao ano. Apenas o povo indiano vai ao cinema com mais
freqüência que o americano: 5,7 vezes por ano.
61
Fonte: Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura (SDA/MINC).
O gráfico acima, reproduzido do estudo do Ministério da Cultura, faz analogia entre
frequência per capita ao cinema e renda per capita em diversos países. É claro que os
números indicam que quanto maior a renda, maior a frequência e hábito de ir às salas de
exibição. É claro, também, que há desvios em relação à norma:
“A Índia é claramente discrepante em relação ao padrão
internacional o que se explica, por um lado, por suas barreiras
culturais e, por outro, pelo acesso restrito de sua população a
formas de lazer alternativas, em particular aquelas propiciadas pela
posse da televisão”. (Min.C., 1998)
61
Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura. “Economia da cultura” Brasília,
SDA/MINC : 1998.
77
Nos EUA, Singapura, Hong-Kong e Austrália, as populações vão com mais freqüência ao
cinema quando comparadas, por exemplo, aos europeus que, com rendas semelhantes,
freqüentam as salas mais raramente.
Se analisarmos o mercado dos EUA em busca de explicações para essa alta freqüência
relativa, encontraremos um significativo papel da grande estrutura de oferta,
principalmente a grande quantidade de telas. A oferta de salas de exibição é
particularmente alta nos EUA tanto em relação à população do país quanto se for levada
em consideração a renda per capita. Isso significa que o alto consumo de cinema por
parte do povo americano é também uma questão de cultura de consumo. “O predomínio
americano no mercado de audiovisuais não se restringe às dimensões do seu mercado
consumidor doméstico, mas está também fortemente ancorada na competitividade da sua
estrutura industrial”.
62
62
Idem.
78
Valor e participação das receitas da bilheteria do cinema americano em países selecionados, 1994-1996:
Participação Bilheteria
1994 1995 1996 1994 1995 1996
Países % % % $m $m $m
Bélgica 75,8 72,4 69,8 88,7 89,1 88,3
Dinamarca 67,0 81,1 67,0 44,1 54,3 50,3
Finlândia 66,0 76,5 26,3 35,3
França 60,9 53,9 54,3 488,0 506,5 498,1
Alemanha 81,6 87,1 75,1 642,3 740,0 645,2
Grécia 70,0 72,0 26,4 42,4
Itália 61,4 63,2 56,7 321,1 321,0 325,7
Holanda 89,2 82,1 90,0 95,9 104,1 105,9
Espanha 72,3 71,7 77,8 243,0 290,4 324,7
Suécia 67,5 68,5 80,2 89,6
Inglaterra 90,2 83,7 81,7 567,3 543,9 574,3
Noruega 58,4 55,9 53,5 38,1 39,9 39,9
Suíça 75,3 69,8 109,9 110,5
Total Europa 71,2 66,0 63,3 2.810,8 2.856,6 2.772,3
Bulgária 85,0 87,0 83,0 0,3 3,3 1,2
República Tcheca 70,0 78,0 7,5 7,6
Polônia 78,0 83,0 88,9 19,6 34,5 38,9
Romênia 47,0 68,5 78,9 3,5 5,8 5,6
Total CE 71,4 68,9 63,2 2.662,7 2.816,6 2.612,5
Total CEE 41,9 48,1 79,8 49,5 51,2 45,7
Total Europa 70,3 65,5 63,5 2.860,3 2.907,8 2.818,0
USA 96,0 96,0 96,0 5.180,4 5.273,8 5.675,0
Fonte: Screen Digest, Agosto 1997.
Não é apenas nas salas de exibição que a indústria norte-americana domina a maior fatia
da audiência nos mercados nacionais. “Estatísticas da OECD mostram que, em 1992,
apenas os EUA e a Inglaterra apresentaram superávits no comércio internacional de
filmes e programas de televisão, com valores de US$ 2 bilhões e US$ 25 milhões,
respectivamente” (Min.C., 1998).
79
Nos últimos anos, a Inglaterra tem tido dificuldade em manter essa marca superavitária.
Mesmo mercados fortes e protegidos como os europeus acumulam enormes déficits
comerciais com relação a cinema, TV e vídeo. O crescimento em todo mundo das TVs
por assinatura aumentou significativamente esse desequilíbrio na balança comercial de
produtos audiovisuais entre os EUA e o resto do mundo.
“Nos EUA, os filmes americanos foram responsáveis por 96% das
bilheterias (...) As evidências sugerem que o blico americano é
particularmente avesso e intolerante à programação e aos filmes
estrangeiros e ser esta uma característica real do mercado e não
apenas argumento para manter o produto audiovisual estrangeiro
fora do mercado doméstico americano”.
63
Esse último argumento pode muito bem ser incluído no hall dos dilemas entre o
ovo e a galinha, mas o fato é que se os EUA abastecem o mercado mundial de
audiovisual, naturalmente serão os maiores viabilizadores de projetos. Bom para
os criadores americanos.
Os EUA perdem para a Índia no ranking de produção. A média norte-americana entre
1991 e 1996 foi de 562 filmes por ano. a Índia vem produzindo cerca de 827 filmes
anuais no mesmo período. A França não ultrapassa 142 produções anuais, enquanto a
Inglaterra limita-se a colocar 65 novos filmes por ano no mercado, números não muito
superiores aos brasileiros, graças ao grande esforço financeiro do Estado por aqui.
Uma coisa curiosa é a crença geral de que filmes mais caros atraem mais público,
corroborada Ministério, quando diz que “um dos fatores de grande relevância para a
dominação do cinema americano, nos anos recentes, foram os orçamentos de produção
significativamente maiores que nos demais países”. O estudo revela um custo médio de
63
Ibidem.
80
mais 11 milhões de dólares por produção nos EUA, valor mais de três vezes superior à
média de custos de produção da Comunidade Européia.
“Através dos investimentos em blockbusters, a indústria americana
conseguiu sustentar vantagens competitivas inatingíveis para outros
países. Nesse sentido, o tamanho do mercado americano
desempenhou papel estratégico: quanto maior o mercado, maior o
orçamento necessário para alcançar o ponto em que cada dólar
extra acrescentado ao orçamento de produção deixa de gerar pelo
menos um dólar extra nas receitas”. (Min.C., 1998)
Como se percebe, existe uma tendência matematicamente comprovada de obtenção de
maiores audiências para filmes com custo de produção mais elevados até um limite
ótimo, a partir do qual essa tendência começa a se inverter. De certa forma, isso é uma
competição de custos invertida, na qual o inflacionamento histórico dos custos de
produção nos EUA funciona como barreira aos competidores.
Esse fenômeno é bastante estranho porque inverte uma máxima econômica na qual
menores custos aumentam a competitividade relativa. Pode-se argumentar que, neste
caso, maiores custos significam incrementos de qualidade no produto final que
representam para o público um diferencial poderoso na decisão de consumo, ou seja,
que as pessoas preferem programas super-produzidos. Isso também não é novidade.
Não faltam estudos que descrevam a experiência de consumo do audiovisual como algo
eminentemente voltado para as sensações. Filmes e programas visualmente
impressionantes, com variedade e riqueza de cenários e figurinos, grande quantidade de
ângulos, enquadramentos e movimentos de câmera, ação extraordinária de personagens,
somados a efeitos de som e pós-produção seriam uma fórmula eficaz de conquista de
grandes públicos. Ainda assim, é curioso que o indicador usado seja o custo dessa
parafernália e não um inventário dos elementos diferenciais. Mais uma vez, a grande
indústria audiovisual parece preferir um método reducionista de avaliação ancorado
naquele elemento que lhe é exclusivo: a disponibilidade de grandes volumes de capital.
81
Contundo, as constantes mudanças na base tecnológica da indústria, mais uma vez
desafiarão o consenso. A invasão do mercado de meios de produção pelas tecnologias
digitais derrubou os custos dos equipamentos de produção e pós-produção de tal forma
que hoje uma nova classe de produtores vem despontando. Esses produtores/criadores
artesanais usam de tecnologias digitais semiprofissionais para chegar a produtos que
soam e parecem produções de estúdio por custos insignificantes quando comparados
àqueles arcados pelas grandes companhias. Esses produtos m sido chamados de “no
budget features” (produções de nenhum orçamento) um trocadilho com o termo comum
“low budget features” (produções de baixo orçamento). A maioria desses produtos é o
que se costuma chamar de projeto de portfólio, ou seja: não visam competir no grande
mercado, mas demonstrar as habilidades técnicas e artísticas de seus realizadores e
aumentar suas chances de vender seus projetos à indústria. Isso ocorre porque embora
as tecnologias permitam fazer filmes extremamente baratos parecerem filmes muito
caros, ainda não possibilitam a promoção e lançamento em larga escala desses filmes
com grandes retornos financeiros.
Ora, se “mercados domésticos maiores conduzem a orçamentos ótimos de produção
também maiores para filmes e programas de televisão”
64
, ao mesmo tempo, produtos
equivalentes podem ser produzidos a custos menores, significando que, no Brasil, os
custos precisam e podem ser bem mais baixos do que se tem praticado gerando
vantagens competitivas reais. Discutiremos de forma mais detalhada o problema
brasileiro em relação aos custos de produção de filmes e sua relação com os
mecanismos nacionais de financiamento.
64
Ibidem.
82
O alto limiar de custos das produções dos grandes estúdios possibilita “uma escala de
operação que se reflete em lançamentos em 1300 telas simultaneamente, contrastando
com os demais países onde os lançamentos atingem no máximo 450 telas”.
Conseqüentemente o faturamento médio dos lançamentos beira os 5 milhões de dólares.
Em contraposição, a média do resto do mundo fica em 1,5 milhão de dólares.
“Note-se, en passant, que o número de lançamento por
distribuidora/ano era nos EUA, aproximadamente, 30 filmes, o que
não difere da maioria dos países. Uma exceção notável, nesse
sentido, é o setor de distribuição francesa que aparece
extremamente pulverizado e artesanal, com 160 distribuidoras
ativas lançando 2 filmes por ano”.
65
65
Ibidem.
83
Indicadores da atividade de distribuição cinematográfica em países selecionados, 1994-1996 (médias anuais):
Países Número de
Distribuidoras
Ativas
Renda média do
distribuidor por
lançamento
(em milhares de
US$)
Número de
telas em
lançamentos
típicos
Número médio
de lançamentos
por distribuidora
Receitas de
distribuição de filmes
(em milhões de US$)
USA 10 5.488,9 1300 30 2.166,95
França 161 919,5 350 2 362,4
Alemanha 50 1.389,2 450 6 374,9
Espanha 30 495,3 100 14 193,09
Reino Unido 34 616,7 180 n.d. 243,61
Holanda 25 198,3 40 10 48,88
Bélgica 29 116,3 55 16 55,61
Áustria 16 158,4 n.d. 13 37,93
Dinamarca 22 173,2 30 7 27,61
Suécia 10 246,9 60 20 51,6
Noruega 11 125,8 20 17 26,29
Finlândia 7 112,6 n.d. 21 17,79
Islândia 7 n.d. 28
Luxemburgo
1 13,5 n.d. 154 2,06
Portugal 24 113,9 n.d. 8 21,16
Grécia 8 91,4 n.d. 21 19,33
Eslováquia 8 18,1 n.d. 19 2,42
Brasil 13 497,2 80 20 113,51
Austrália 20 599,5 130 13 159,29
Japão 42 1.116,1 10 14 654,86
China,RPD 97 n.d. 2
Taiwan 28 n.d. 13
Fonte: Screen Digest, Maio de 1997. (Dados incompletos para muitos países. Flutuações cambiais podem ocasionar
distorções nos valores reportados. Nos USA as 10 maiores respondem por 97.5% do mercado).
A predominância americana no mercado escalcada na primazia da escala quantitativa
de seu mercado interno, o que vale para quaisquer mídias audiovisuais. Nas mídias que
vivem da venda de espaços publicitários, aspectos qualitativos tem grande peso,
principalmente a renda do espectador em geral.
84
“Com enorme população, falando a mesma língua e com elevada
renda per capita, os EUA são, de longe, o maior mercado nacional
de produtos audiovisuais. Para programas de TV, os indicadores
comumente utilizados para se aferir a importância da indústria são
o número de receptores e, talvez menos óbvio, o PIB que
determina o valor do blico (mercado) para anunciantes da TV
aberta ou para canais de TV por assinatura”.
66
Maiores mercados de TV do mundo, 1993:
Aparelhos de TV
(milhões)
PIB
(Bilhões de US$)
Países 1993 1985 1993
Estados Unidos 210.5 190.0 6.388
Japão 77.0 70.0 3.927
Rússia 55.0 348
Alemanha 45.2 25.1 1.903
China 45.0 10.0 581
Índia 36.5 10.0 263
Brasil 32.7 25.0 472
Inglaterra 25.2 24.5 1.043
Itália 24.5 23.6 1.135
França 23.7 21.5 1.289
Fonte: Hoskins, Collin et al. “Global Television and Film”, Clarendon Press, Oxford, 1997, pg. 38.
Número de Receptores de TV: UNESCO “Statistical Yearbook” 1995. tabela 9.2
PIB de 1993: “Britannica Book of the Year” Chicago, Encyclopedia Britannica, 1994.
Segundo pesquisadores, as vendas de audiovisuais americanos são também facilitadas
pelo fato de os programas de TV, filmes e deos serem produzidos em inglês que é, em
termos de mercado consumidor, o maior mundial. Grande parte do mercado consumidor
de audiovisual em língua inglesa é composta por populações que falam outras línguas. A
barreira da língua é talvez um dos fatores mais importantes no estudo das audiências
relativas. autores que identificam os diversos mercados de audiovisual usando como
critério a língua falada ao invés dos estados nacionais. Assim, no lugar de um mercado
brasileiro de audiovisual, poderíamos pensar em um mercado de ngua portuguesa e
assim por diante. Se por um lado, a preponderância do audiovisual falado em inglês
66
Ibidem.
85
mesmo em mercados de outras línguas desafia a noção de uma barreira lingüística de
mercado, por outro devemos tomar em conta que o Brasil tem a maior e mais competente
indústria de dublagem e legendagem do mundo, o que pode ser explorado
estrategicamente. Uma das maiores barreiras à entrada de audiovisuais em língua
estrangeira no mercado americano é o altíssimo índice de rejeição do blico doméstico
daquele país à legenda ou mesmo à dublagem. A dublagem competente do inglês para o
português é um fator agravante da penetração estrangeira no mercado de língua
portuguesa.
“O PIB dos mercados da comunidade de língua inglesa é muitas
vezes maior do que os demais. O inglês é a segunda língua mais
falada no mundo e, portanto, as produções de língua inglesa são
mais aceitas do que as produções em outras línguas mesmo nos
mercados que não são de língua inglesa. Outros produtores da
comunidade de língua inglesa beneficiam-se deste fato; acredita-se
que os australianos e ingleses, por exemplo, são mais bem
sucedidos do que deveriam ser pelos seus mercados domésticos”.
67
67
Ibidem.
86
PIB e dimensão das maiores comunidades lingüísticas do mundo, 1992:
Comunidade linguística PIB (US$ bilhões) Ordem/PIB População (milhões) Ordem/POP
Inglês 8.575 1 489 2
Japonês 3.508 2 125 7
Alemão 2.480 3 94 10
Francês 1.873 4 115 8
Italiano 1.436 5 59 12
Espanhol 1.317 6 322 4
Chinês 653 7 794 1
Português 510 8 177 6
Árabe 506 9 202 5
Hindu/Urdu 321 10 365 3
Malaio/Indonésio 223 11 33 13
Bengali* - - 115 9
Punjab* - - 88 11
Fonte: Hoskins, Collin et al. Estimativas construídas a partir de dados combinados do “Britannica Book of The Year
1995” Chicago: Encyclopedia Britannica. Nota: PIB para Bengali e Punjab não pode ser calculado porque são falados
em regiões da Índia e do Paquistão, e não em países.
A ampliação da oferta de canais de televisão, com o advento da TV por assinatura a
partir dos anos 80 levou ao aumento proporcional da programação importada que
muitos desses novos canais baseiam-se na oferta de programas americanos populares e
baratos que já haviam esgotado seu ciclo de vida no mercado. 75% do comércio
internacional de conteúdo televisivo corresponde a esse tipo de exportação norte-
americana. Não obstante, em quase todos os países, o espectador de TV prefere a
programação doméstica, mesmo entre os de língua inglesa. Diversas tentativas de
criação de serviços de TV via satélite transnacionais na Europa fracassaram devido a
grande fragmentação lingüística daquele continente. A Europa é culturalmente
fragmentada. A lógica econômica dos ganhos em escala, quando aplicada à cultura,
beneficia as super populações.
87
Há, ainda mercados regionais em que empresas ou grupos de determinado local são
comercialmente mais bem sucedidos do que os conglomerados de mídia norte-
americanos, como por exemplo, o Egito que domina a região árabe; o Brasil e o México
que dominam a América Latina; e Hong-Kong que domina o Sudeste Asiático.
No mercado de deo doméstico os dados são imprecisos, entre outras coisas devido ao
crescimento mundial descontrolado da pirataria. Nesse mercado, em lugar de números
oficiais refletindo uma liderança de mercado do produto americano, temos estatísticas
apontando para estes como maior alvo da pirataria. É uma forma diferente e bem menos
lucrativa de liderança em audiência.
Quando tratamos da dinâmica da audiência dos diversos meios audiovisuais percebemos
que as repetidas mudanças na base tecnológica colocaram sempre em crise os meios
preponderantes em cada época. De forma geral, da imprensa até hoje, ao longo de toda
a história dos meios de comunicação de massas, a cada vez que uma nova tecnologia
surge, alguém declara a morte iminente de todas as outras. Da perda da aura na era da
reprodutibilidade técnica até a convergência das mídias e o fim anunciado dos jornais de
papel com a internet, passando pela crise da pintura realista dado o surgimento da
fotografia, ou ainda a prescrição da morte do cinema e do rádio com a invenção da
televisão, apocalípticos e integrados formam seu coro jogral sempre que a indústria da
informação lança um produto sensacional. Hoje, o compartilhamento de arquivos na
internet, a digitalização de som e imagem, o mp3, os cd’s e dvd’s regraváveis e a
indústria de videogames são as novas Hidras que, anunciadas pelas Cassandras
midiáticas, ameaçam colocar em extinção a sétima arte e a indústria fonográfica.
É importante, para entendermos o mercado audiovisual brasileiro em termos de
audiência, conhecermos um pouco melhor como se comportou a mais antiga das dias
audiovisuais no país. O público de cinema no Brasil cresceu até o fim da década de
88
1950. O auge das salas de cinema ocorreu em 1957, quando se registrou 344 milhões
de espectadores de cinema.
Fonte: Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura (SDA/MINC).
“Dos anos cinquenta até os anos setenta, o crescimento
demográfico acelerado, sobretudo nas áreas urbanas, deve ter sido
um fator de aumento da frequência de cinema que, em certa
medida, compensou os efeitos da penetração da televisão (por sua
vez restringida pelos baixos níveis de renda per capita do país),
amortecendo assim a perda de público nos cinemas. Apesar disso,
a frequência anual per capita de cinema que era de 5.4, em 1957,
reduziu-se para 1.83, em 1975. A partir dos meados dos setenta,
contudo, a queda de público foi catastrófica: entre 1975 a 1985, a
contração foi de 67%, ou seja, 12% a.a. de taxa média de redução.
A partir de então constata-se ainda uma tendência ainda declinante
mas com intensidade menor e fortes oscilações”.
68
O fundo do poço para o gênero de entretenimento definido pelas salas de projeção no
Brasil foi o ano de 1994. Esse marco histórico estabelece o ponto mais baixo de
audiência dessa janela desde que se começa a ter dados confiáveis, em 1952. Quando
se fala em uma “retomada” do cinema no Brasil a partir de meados dos anos 90, isso não
se aplica somente à produção de filmes nacionais, mas a uma retomada de público
pagante de forma geral. Tanto a depressão quanto a retomada estão associadas a uma
mudança no modelo comercial do setor, primeiro com o envelhecimento, ostracismo,
68
Ibidem.
89
obsolescência e finalmente o fechamento das salas de cinema chamas “cinemas de
bairro” e, depois, com a criação de novas salas, com perfil atualizado, os multiplex,
conjuntos de pequenas e médias salas, em centros comerciais, tecnologicamente
atualizadas. A retomada de público do cinema também é atribuída ao comportamento da
macroeconomia brasileira a partir do “Plano Real”, em que se inaugura um novo modelo
macro-econômico de linha monetarista, reduzindo drasticamente a inflação no médio
prazo. Observe no gráfico uma linha ao fundo representando a taxa de crescimento do
PIB. Observa-se que o comportamento do público de cinema é diretamente proporcional
ao do produto interno bruto.
Um dos fatos mais importantes a ser analisado no estudo da janela cinematográfica no
Brasil é a perda em apenas dez anos de dois terços do público ocorrida entre as décadas
de 70 e 80. O que ocorreu no Brasil naquele período (e que não ocorreu, por exemplo,
na Índia) foi a popularização do aparelho receptor de televisão. A explosão do
entretenimento televisivo significou mais do que uma mudança no padrão de consumo de
audiovisual. Significou a transformação no modo do brasileiro consumir seu tempo
ocioso. E não é um evento isolado. Ocorre paralelamente à migração em massa das
populações dos campos para as cidades, onde o tempo livre terá que encontrar novos
espaços num ambiente em que o espaço é uma questão complexa e conturbada. Wefort
dá um tom globalista ao problema (dos cineastas):
“Estes esforços foram duramente afetados nos anos 80 pela
intensificação das transformações técnicas do setor (expansão da
comunicação por satelite, dos videos e das TVs a cabo), em um
processo que acabou por tornar o cinema americano que já era
hegemônico (de certo modo, sempre foi hegemônico), em um
monopólio em escala mundial. Na época da globalização e da
‘nova economia’, o cinema brasileiro se viu reduzido, como os
demais cinemas nacionais, à condição de marginal em seu próprio
mercado”.
69
69
Wefort, Francisco C. “Cultura, Cinema e Indústria” em Cardoso, Fernando Henrique, et al. “Cinema
Brasileiro. Serie Cadernos do Nosso Tempo, Nova Serie, 4”. Rio de Janeiro : Fundo Nacional de Arte e
Cultura : 2001.
90
Note-se que o impacto da televisão sobre a frequência às salas de cinema foi muito
superior àquela causada pelo advento de outras duas janelas nas décadas de 80 e 90
respectivamente: o reprodutor e gravador de vídeo para o usuário doméstico e os
serviços de televisão por assinatura. Ainda assim, O home-video é positivamente
associado a mais uma fatia de perda dos exibidores. a TV fechada não demonstrou
até 2005 produzir impacto significativo sobre as outras janelas, principalmente porque é
difícil medir o mercado de locação (provável maior prejudicado). Pelo curto prazo, muitas
variáveis exógenas pressionam essa análise. Embora a base de assinantes seja
pequena, está concentrada nas classes A e B. Mesmo assim, como discutimos, o
canais fechados não conseguem bons preços por seus intervalos comerciais. Isso ocorre
porque a já pequena base de audiência está fragmentada entre dezenas de canais
equivalentes uns aos outros. Existem talvez quatro ou cinco gêneros suficientemente
diferenciados para caracterizar um segmento. Em cada um desses poucos segmentos,
concorrem diversos canais. Um nível de concorrência diametralmente oposto ao que
ocorre na TV Aberta. O resultado em audiência de um determinado espaço nesse todo é
tão limitado, que deprecia o valor do tempo naquele veículo. Talvez devido ao grau de
obsolescência, redundância e obviedade da programação, o público não tenha ainda
adotado essa janela como substituto equivalente às salas. O fato é que a TV por
assinatura não impediu a recuperação e incremento do número de salas e total de
espectadores nos cinemas. O status do cinema como janela de estréia e como aquela
que oferece a melhor qualidade técnica de exibição vigente, permanecem como
poderosas ligações de fidelidade entre esse gênero de consumo audiovisual e o público.
Como explicar o não ostracismo do cinema? Desde os anos 50, o cinema viu-se
desafiado a continuar proporcionando uma experiência audiovisual insubstituível. Esse
espírito, presente na primeira sessão dos irmãos Lumiére, permanece até hoje. O
público ainda espera encontrar no cinema uma atmosfera de envolvimento com a obra
91
produzida por tecnologias que não pode ter em casa. A recuperação dos cinemas no
Brasil a partir da década de 90 é produto direto do surgimento de melhores salas, uma
reação ao home-vídeo que ocorreu com mais de uma década de atraso. Ao longo de
toda a história do cinema a partir da popularização da televisão, as salas de exibição
receberam up-grades tecnológicos para cada novo produto concorrente que surgia. O
desenvolvimento dos filmes coloridos garantiu ao cinema, por cerca de duas décadas,
uma vantagem muito clara em relação à televisão. Durante outro período, posterior a
esse, muitas experiências foram feitas para somar a dimensão de profundidade à
imagem cinematográfica. O “3D”, sistema que requeria óculos especiais para cada
pessoa na platéia causou sensação, mas infelizmente também causou nevralgia,
náuseas e provavelmente causaria problemas de vista se tivesse durado mais tempo no
mercado. Depois disso veio a evolução do som, com estéreo e depois o surround
(sistema com múltiplos canais de som independentes que cercam a platéia). Hoje o
surround é vendido também ao usuário doméstico, mas é justamente esse fluxo de
acesso que movimenta a cadeia econômica da indústria. Esse esquema está
reproduzido na ordem de estréia nas janelas: primeiro o cinema, depois vídeo, então a
TV paga e, finalmente, a TV gratuita. A TV gratuita sendo sempre a janela que aplica a
tecnologia mais antiga e produz a experiência audiovisual mais simples.
O que determina, então, a audiência do cinema no Brasil? Os dados de que dispomos no
país para estudar isso são poucos e pouco confiáveis, segundo a maioria dos estudiosos.
nos últimos dez anos passamos a contar com uma boa estrutura de pesquisa e
registros para o setor, com fácil acesso e constância metodológica.
Seria um engano imaginar que o principal fator determinante da freqüência do brasileiro
ao cinema seja o preço. O público suporta e absorve parte das variações de preço
mantendo a audiência sensivelmente mais estável que os preços. Quando se trata de
dinheiro o brasileiro privilegia o audiovisual em suas decisões de investimento no lazer.
92
“Um por cento de aumento na renda per capita do país
acarreta aumento de 1.6% na frequência anual per capita e um
por cento a mais de televisão per capita acarreta queda na
frequência per capita anual de 1.7%”.
70
Mas, como se vê, ao investir seu dinheiro em entretenimento audiovisual, o brasileiro
médio prefere comprar um televisor a ir ao cinema: “(...) de 1978 a 1995, constata-se uma
queda de 56% no público de cinema no Brasil. O PIB nesse período cresceu 17%
enquanto o estoque de TV per capita cresceu 98%”.
71
Finalmente, o que determina a audiência das produções nacionais? De forma geral, o
produto doméstico reage proporcionalmente às variações do mercado em geral, sempre
com alguma inércia. Esse momentum amortece a queda frente ao vídeo caseiro, mas
retarda e apequena a recuperação que ocorre logo depois.
A televisão não diminui a audiência do filme brasileiro mais do que do filme estrangeiro.
Ao que parece a posse de um televisor não altera a disposição do público brasileiro em
decidir por assistir um filme nacional no cinema. Ora, se a televisão brasileira oferece
audiovisual brasileiro e estrangeiro, é claro que concorre com os dois nas outras janelas,
o que desmente em parte a tese de que a telenovela sature a demanda por audiovisual
doméstico.
Outra variável que afeta o consumo do produto audiovisual assim como muitos outros de
diferentes categorias é o fator de sazonalidade que, por exemplo, faz o cinema brasileiro
perder terreno para o estrangeiro nas temporadas do verão americano, e na safra do
Oscar. As receitas dos filmes e programas de TV estão fortemente concentradas nos
períodos iniciais de sua vida e, devido à acirrada concorrência dos lançamentos,
70
SDA/MINC. Op. Cit. (Deve ser notado que o efeito do estoque de televisão sobre a demanda é mais
precisamente estimado e confiável que os demais).
71
Idem.
93
apresentam grandes incertezas. Isso faz com que os participantes da indústria estejam
continuamente empenhados na geração de produtos novos e inovadores cujos
orçamentos de produção podem alcançar dezenas de milhões de dólares desembolsados
apenas com base na avaliação de roteiros e na identificação de alguns dos participantes
(produtor, roteirista, diretor e atores). Grandes desembolsos são feitos sem se testar o
mercado e muito antes de se dispor de quaisquer informações quanto ao interesse dos
consumidores.
72
Brasil: Fatores sazonais na frequencia ao cinema, janeiro de 1983 a abril de 1987:
As duas altas de consumo no Brasil ocorrem nas férias escolares de inverno e de verão.
O pico ocorre em julho porque as outras atividades de lazer (viagens, praia, piscina)
concorrem menos. Pode parecer que o fator climático não faz tanta diferença no Brasil,
mas temos que levar em consideração que a região sul, onde os invernos são mais
rigorosos, é o segundo maior mercado regional do país. O mês de agosto tem uma alta
atípica relacionada ao contágio de público devido ao grande número de lançamentos
feitos em julho pelo mercado americano (lá, a temporada de verão é o auge do
72
Finn, A.. e Hoskins, C. et al. "Telefilm Canada Investment in Feature Films: Empirical Foundations for
Public Policy", Canadian Public Policy, 1996.
94
consumo). Mas o fator que obviamente está ligado de forma mais direta à audiência do
cinema é o número de salas de exibição no país:
“O apogeu do número de salas no Brasil se dá em meados dos
anos setenta, seguindo-se um período de acelerado declínio, até
1985, e posteriormente uma suave retomada de crescimento. As
taxas de crescimento médias do número de telas foram 8% a.a.,
de 1970 a 1976, 8% negativas, de 1977 a 1989 e 1.5% a.a., de
1989 a 1997”.
73
Brasil: Salas de cinema, 1930-97:
Fonte: Ministério da Cultura.
A seguir, temos um gráfico que demonstra que o cinema tornou-se um gênero de
entretenimento típico das grandes cidades. As maiores quedas e os menores
crescimentos em número de salas ocorrem nas cidades de menos de 50 mil habitantes.
73
SDA/MINC. Op. Cit.
95
Com vistas a garantir audiência para o produto cultural local, em 1939 começa no Brasil o
sistema de quotas, com a exigência da exibição de um filme brasileiro por ano em cada
tela do país. Desde então, essa reserva de mercado foi sendo ampliada até o ápice de
140 dias mínimos de exibição anual de filmes brasileiros nos cinemas. “A partir da
desregulamentação do setor, em 1990, as quotas, embora ainda legalmente vigentes,
deixam de ser implementadas na prática”.
74
74
Johnson, R. “Brazilian Cinema”. New Jersey, London, Toronto, Fairleigh Dickinson University Press e
London and Toronto Associated University Press. 1982.
96
Evolução das quotas de telas para filmes brasileiros, 1939-90:
Fonte: SDA / MINC.
“O sistema de quotas implantado no Brasil, diferentemente da
experiência francesa, não contemplou o ressarcimento de eventuais
prejuízos do exibidores. Uma consequência adversa disso foi, numa
época em que a exibição se encontrava premida pela
concorrência da televisão, afastar mais o espectador das telas de
cinema, nessa medida reduzindo os incentivos à expansão ou
renovação das salas de exibição. Outra consequência foi incentivar
os próprios exibidores a financiar e produzir pornochanchadas com
baixos orçamentos para dessa forma apropriar da renda gerada
pelo sistema de quotas. Os incentivos do sistema eram, portanto,
distorcidos para a produção de filmes de baixa qualidade técnica e
artística”.
75
Aqui temos um fato relevante para demonstrar nossa tese: o efeito das políticas culturais
é estatístico. Busca-se um bem cultural (a expressão genuína da cultura brasileira e seu
consumo pelo povo) por um viés econômico, quotas de tela. O mercado, por sua vez,
sempre encontra táticas de sobrevivência dentro das brechas da lei. As brechas são
produzidas no ato de tradução de uma lógica em outra. Preocupações ideológicas,
sociais, políticas que se traduzem em mecanismos burocráticos que por sua vez afetam
custos e faturamentos. O efeito estatístico se produz e a participação do filme brasileiro
cresce, mas para garantir que dias de exibição se convertam em ingressos vendidos, os
75
SDA/MINC. Op. Cit.
97
exibidores substituem por conta própria o filme de vanguarda dos artistas protegidos da
Embrafilme, por produtos baratos e de apelo universal. Mas énesse momento que se
revela o espírito da chamada “exceção cultural”. Não é qualquer filme brasileiro que seus
defensores querem. É algum tipo de filme brasileiro que julgam de “alta qualidade
técnica e artística” segundo critérios misteriosos.
“As quotas de tela subiram de 112 para 140 dias ao ano ou de 31%
para 38%, em termos percentuais. Apesar desse aumento nota-se
que a taxa de ocupação dos filmes brasileiros, ou seja, no
percentual de lugares ofertados aos filmes brasileiros declina a
partir de 1980 indicando que cada vez mais o Concine enfrentava
problemas para fazer cumprir a obrigatoriedade da quota”.
76
A queda na audiência dos filmes brasileiros aconteceu mesmo enquanto o
percentual de títulos brasileiros exibidos crescia, sinal patente da diluição de
público dos filmes brasileiros fomentada pelas próprias quotas. Em conseqüência
cinemas fecharam com velocidade superior a queda na demanda, isto é, o circuito
exibidor puxou a queda de público, não o contrário. Isso é um sinal claro das
dificuldades financeiras impostas pelo regime de quotas, e que só parou quando o
governo Collor desregulamentou o setor e extinguiu os órgãos de fomento, como
a Embrafilme. Ali nasciam as condições principais da retomada: o investimento
no mercado exibidor e distribuidor por empresas multinacionais.
“Não obstante as divergências de interesse e ideologia, pode-se
afirmar que boa parte dos debates resultam da carência de
informações e análises sistemáticas sobre aspectos econômicos
das indústrias cinematográfica e audiovisual no Brasil. Essa
carências em boa parte, consequencia da razzia do Governo
Collor nas instituições de política cinematográfica nacional --
constituem, a um só tempo, limitação e motivação do estudo”.
77
76
Idem.
77
Ibidem.
98
É politicamente correto no Brasil da virada do século, analisar as conseqüências da
desregulamentação e da extinção da Embrafilme sempre pelo viés da demonização. Mas
não faltam conseqüências e lados positivos na dita razzia. Como houve outras na
abertura indiscriminada do mercado. Se males que vem para bem, a política
cinematográfica do governo Collor (política nenhuma) foi fundamental para deixar
algumas coisas claras: a suspensão do financiamento público leva a atividade do setor a
zero imediatamente. Apesar disso, o cinema não é atividade essencial na economia
brasileira e isso nos dá noção da natureza clientelista das políticas. Essa noção é
suficientemente forte para ameaçar descontinuá-las dependendo do grupo político que
estiver no poder.
Além das políticas públicas, outras questões que influenciam a dinâmica da audiência
das diversas janelas audiovisuais. As inovações na base técnica da produção,
distribuição e do consumo do produto audiovisual estão no centro das mudanças da
informática e das telecomunicações. Em breve termos que incluir na lista de janelas, os
aparelhos móveis dos mais diversos tipos desde o telefone celular até os computadores
de bolso que estarão conectados as redes sem fio dissolvendo de vez a fronteira que
muito separou a telefonia das outras mídias.
“Download direto do anuncio para o celular: o novo álbum da banda
Coldplay, vai ser lançado usando painéis capazes de transmitir
conteúdo para celulares através da tecnologia Bluetooth. Na semana
que vem, painéis em estações do metrô de Londres vão exibir peças
anunciando o álbum. Fotos da banda, fundos de tela e algumas
faixas do CD estarão disponíveis para download nos celulares. O
sistema permite mensurar o numero de usuários que baixaram o
conteúdo”.
78
A nota de imprensa especializada em publicidade que acabamos de reproduzir descreve
uma peça de propaganda outdoor (mídia de ambientes externos e públicos) que
78
www.bluebus.com.br
99
transmite para aparelhos de reprodução pessoais (celulares multimídia) conteúdos de
áudio e imagem relacionados ao produto anunciado. Como um todo, a cena anuncia as
possibilidades de quebra de paradigma no consumo de audiovisuais e mais: desafia as
fronteiras entre conteúdo publicitário e editorial, entre promoção e vendas, entre produto
e anúncio e (por que não?) entre objeto e discurso. Essa indiferenciação potencial está
em cada novo desdobramento da tecnologia da informação. A tradição acadêmica da
Comunicação Social nos ensinou que essas mudanças determinam outras na cultura das
sociedades. A digitalização radical do meio, para usar um aspecto como exemplo,
democratiza a produção e o consumo. É claro que quando dizemos que democratiza,
não estamos dizendo que universaliza. Essa ampliação do acesso se dá num movimento
do topo para o centro-topo da pirâmide social incluindo a pequena burguesia num
mercado antes restrito as elites propriamente ditas.
Esse processo constante de inovação nos suportes técnicos do meio tende a ser
cumulativo, ampliando no todo a produção e consumo mundiais de audiovisual e, se
extingue diversas tecnologias ao longo do processo, por outro lado mantém janelas
abertas criando competição e ao mesmo tempo gerando sinergia entre elas. É dessa
forma que as salas de projeção, apesar de terem hoje diversos substitutos domésticos e
até mesmo pessoais, continuam a existir mesmo em países como o Brasil em que a
televisão assumiu papel protagonista no meio audiovisual em onde o cinema revelou-
se viável economicamente como extensão e complemento do mercado internacional
dominado pelos EUA. Novamente devemos fazer as perguntas: porque o Brasil ainda
acha que deve produzir e assistir cinema? no cinema algum valor intrínseco que
justifique sua sobrevida à televisão como substituto perfeito em termos de acessibilidade,
custos e dominância de programação doméstica? Em suma: quem precisa do cinema?
Se a preocupação é audiência, devemos nos preocupar com a audiência de uma janela
100
isoladamente ou apenas com a audiência geral do produto audiovisual distribuído nas
diversas janelas?
“As contínuas inovações tecnológicas nos produtos e veículos
audiovisuais juntamente com a capacidade de se adaptar a
inovações demonstrada por Hollywood indicam que a indústria
cinematográfica brasileira será exposta à concorrência ainda
mais intensa, no futuro próximo”.
79
A barreira da língua e a concorrência da indústria americana são os maiores obstáculos à
sustentação do audiovisual theatrical no Brasil. Chamamos aqui o cinema de audiovisual
theatrical porque mesmo que o cinema, como suporte, deixe de existir, a janela exibidora
tende a permanecer. A sala de exibição continuará a oferecer uma experiência única
para os sentidos pelo uso de tecnologia de ponta e apresentará os produtos audiovisuais
mais sofisticados com primazia sobre as outras janelas. O que está em discussão é que
forma terá essa sala e que tipo de produto exibirá.
“A demanda por lazer ou cultura pode ser satisfeita por um conjunto
de bens ou serviços que são escolhidos em quantidades que
dependem das características técnicas de cada um deles
incluindo-se aqui as próprias possibilidades de substituição entre
eles – além dos seus preços, da renda e das condições econômicas
e sócio-culturais (...) enquanto atividade cultural ou de lazer, a
televisão é um substituto quase perfeito para o cinema”.
80
Como demonstramos, a televisão supera o cinema, mas não é capaz de efetivamente
substituí-lo. A análise do ministério da cultura diagnostica:
“É problema peculiar da indústria cinematográfica no Brasil a
hegemonia da televisão brasileira no mercado de audiovisuais
que, devido ao excepcional sucesso das telenovelas enquanto
produto de divulgação da cultura brasileira exerce acirrada
concorrência ao cinema e, em particular, aos filmes brasileiros
com os quais compete como substituto nos mercados
consumidores e como concorrente nos mercados de fatores”.
81
79
SDA/MINC. Op. Cit.
80
Idem.
81
Ibidem.
101
Essa conclusão alimenta as idéias de determinados grupos de pressão que desejam
matar dois coelhos com uma só cajadada: fomentar o cinema brasileiro e penalizar o
monopólio televisivo da Rede Globo.
“Outra peculiaridade brasileira é que, diferente dos modelos liberal
americano e intervencionista europeu, a indústria da televisão
desenvolveu-se sem que regulamentações ou políticas a
vinculassem á indústria cinematográfica, seja como mercado de
produtos ou fonte de recursos para financiamento dos
investimentos”.
82
Tanto no mercado americano quanto no europeu, a televisão submete-se a restrições em
benefício da classe exclusivamente produtora. No Brasil, o projeto da ANCINAV propõe
em linhas gerais fazer isso. Entre os críticos da idéia estão os concorrentes da Rede
Globo que não suportariam os custos do subsídio.
“A capacidade do consumidor substituir veículos ou janelas é uma
característica fundamental do setor audiovisual, principalmente o de
exibição. O consumidor demanda determinada qualidade e
quantidades de informação audiovisual para satisfazer
necessidades afetivas ou cognitivas genuínas ou induzidas por
mecanismos propagandas e publicidade. O importante, contudo, é
que essa demanda pode ser alternativamente suprida por meio de
vídeos, filmes ou televisão”.
83
Para maximizar o potencial do produto nas diversas janelas evitando que uma canibalize
o público da outra e gerando assim um desempenho ótimo de audiência na cadeia como
um todo, o mercado audiovisual pratica um padrão de oferta conhecido como windowing
(de janelas). A base e começo desse processo é a preservação da primazia das salas de
cinema como janela de estréia. Ao longo da história do meio, a forma de lançamento dos
filmes foi mudando. Hoje, a duração da oferta de um filme no circuito exibidor depende
principalmente da quantidade de salas em que ele estará em cartaz simultaneamente.
Até meados da década de 70, a ocupação do circuito era ampliada conforme se
82
Ibidem.
83
Ibidem.
102
confirmasse a aceitação do produto. A estréia ocorria em uma única sala em cada
mercado regional, ampliando-se paulatinamente o número de cópias em exibição. Esta
estratégia de lançamento facilita a política de discriminação de preços. Nas estréias, em
pontos de maior consumo, os preços eram maiores. A promoção era reforçada pela
propaganda boca-a-boca otimizando os esforços de comunicação. Essa estratégia é
válida ainda hoje para lançamentos com baixo orçamento, mas até aquele momento era
uma prática universal. a partir da década de 80, os arrasa-quarteirões inauguraram
uma nova forma de lançar filmes no cinema. Agora, o lançamento é precedido por
intensa campanha publicitária, buscando gerar alto grau de expectativa pelo lançamento,
que passa a ser feito simultaneamente no número máximo de salas que esse filme terá
em todos os mercados locais previstos. Nesse caso, a quantidade de exibições declina a
partir da segunda semana conforme a demanda pelo produto comece a decair. “Na
medida em que as despesas de marketing crescem relativamente aos custos de
produção há vantagens em amortizá-las mais rapidamente num mercado mais amplo”. É
claro que esse estilo de lançamento está ao alcance de poucos distribuidores e é
usado para produtos muito custosos.
O cinema é a primeira de uma série de janelas de exibição pelas quais pode passar um
produto audiovisual. É claro que produtos feitos para estrear em algumas das outras
janelas, mas é justamente o produto cinematográfico que, devido ao status da janela de
estréia e reedição em todas as outras, torna-se produto emblemático do sistema.
O Windowing consiste no relançamento em mercados diferentes ao longo do tempo com
baixos custos adicionais e faz parte do processo discriminação de preços.
Existem no máximo cinco janelas de exibição audiovisual, na ordem de lançamento:
circuito exibidor, vídeo doméstico, canais pay-per-view da TV por assinatura, TV por
assinatura propriamente dita e TV aberta. A internet ainda não está incluída no universo
103
de canais de distribuição das empresas embora seja crescente a troca e
compartilhamento de filmes entre usuários de redes P2P.
84
Os canais de TV por
assinatura abrem oportunidades para a venda de direitos de exibição de séries antigas a
ampliando da demanda e gerando a valorização dos estoques dos distribuidores.
Aquilo que as diversas mídias oferecem ao mercado é prioridade de acesso a
determinado conteúdo. O papel dos canais de exibição é programar, ou seja, oferecer
um certo mix de produtos dentro de uma ordem hierárquica que pode ser um calendário,
horário ou canal técnico. Compreender isso é essencial para o entendimento dos muitos
fenômenos envolvidos na produção distribuição e consumo de produtos audiovisuais.
O vídeo doméstico e a TV são as janelas mais baratas para o consumo de audiovisual. É
exatamente por isso que essas janelas oferecem acesso ao produto depois que ele
passou pelo circuito exibidor. Os custos dessas janelas são mais baixos e isso implica em
baixa prioridade de acesso. O vídeo propicia ainda flexibilidade de local e horário do
consumo.
“Estimativas disponíveis mostram que no EUA os custos diretos, ou
seja, o preço cobrado por pessoa por cada hora de exibição nos
cinemas é de US$ 4,5 contra US$ 0,5 na TV a cabo, US$ 0,6 no
vídeo doméstico e US$ 0,06 nos canais comerciais de TV aberta
(estimando-se através da suas receitas de publicidade, ou seja, do
que os anunciantes pagam para exibir um filme). Um filme no
cinema custa, portanto, nove vezes mais que na TV a cabo e quase
noventa vezes mais que na TV aberta”.
85
As táticas de windowing tentam otimizar a inclusão, ordenamento e duração da oferta dos
produtos audiovisuais nas janelas de consumo. Alguns autores consideram os meios
como competidores, o que a princípio é verdade dada a possibilidade substituição, mas
84
Peer to peer (parceiro para parceiro): programas que permitem a usuários individuais compartilhar seus
arquivos sem necessidade de um servidor central que poderia ser responsabilizado judicialmente pela
distribuição dos conteúdos.
85
Vogel, H. L. “Entertainment Industry Economics: A guide to financial analysis”. Cambridge, UK,
Cambridge University Press. 1998.
104
com as estratégia de janela, os canis passam a se complementar e gerar sinergia para a
cadeia distribuidora como um todo. Hoje, o faturamento em vídeo doméstico pode muitas
vezes ser superior ao obtido nos cinemas. Isso não significa para o mercado produtor
que a janela mais tradicional do meio esteja esgotada como tal, mas que a produção e
distribuição devem, justamente, estar voltadas para todas as janelas possíveis.
A importância de compreendermos isso está ligada às formas como, no Brasil, o cinema
é tratado enquanto meio separado da TV e das outras janelas. Cineastas e críticos que
sustentam a proteção oficial à atividade a entendem como algo essencialmente diverso
das outras mídias. Parece que a sétima arte é o filme de acetato e não a linguagem
audiovisual. Quando a integração com a TV entra na discussão, esta última figura como
possível financiador ou como alvo de políticas de quota, mas nunca como mais uma parte
integrante no conjunto de canais de audiência.
A concorrência entre as janelas e as mudanças nos hábitos de lazer das populações
parecem ter relação co-sintomática. O paradoxo preferido da cultura racional, o dilema
do ovo e da galinha, não evita que ocorra a dúvida que assombra a imaginação dos
analistas de mercado: para onde irá a demanda?
No mercado americano, aquele que em quase tudo difere do brasileiro, o tempo ocioso
dedicado ao lazer concentra-se cada vez mais nas férias e feriados esticados, deixando
de aparecer disperso ao longo do ano. Cinema e televisão, formas de lazer dispersas no
tempo, tiveram quase 20% de aumento entre 1970 e 1995. Aumento este,
proporcionalmente menor do que o ocorrido nas demais formas de entretenimento
selecionadas pelo estudo. A leitura, sobretudo de jornais, foi o gênero de consumo
cultural do ócio que ficou com maior fatia da perda.
86
86
Idem.
105
Nos anos quarenta, o povo americano gastava 1.27% do seu poder de consumo indo ao
cinema. Nos anos 90, são 0.12%. A televisão causou o fenômeno, surgindo como
substituto gratuito. No entanto manteve as pessoas em casa por muitas horas de ócio. A
partir dos anos 80, a assinatura de serviços de TV fechada cresce (18% a.a.) em
participação nos gastos com o lazer. Hoje está em aproximadamente 0.5% do total.
Falaremos ainda sobre os números da indústria de Videogames. Na França a fatia de
mercado das salas de exibição cai de 0.14%, em 1985, para 0.10%, em 1995,
principalmente pela concorrência dos video-cassetes e da TV por assinatura, que não
sofrem intervenção do Estado.
“Para o Brasil, as esparsas evidências disponíveis nas Pesquisas
de Orçamento Familiar (POF) mostram que nas áreas
metropolitanas do país, em 1996, os gastos com lazer
representaram cerca de 3.5% dos gastos totais com consumo. A
comparação com as cifras observadas na economia americana
sugerem um enorme potencial de crescimento desses gastos na
medida em que melhorem as condições de vida no país”.
87
O que será que os economistas do ministério da cultura quiseram dizer com “na medida
em que melhorem as condições de vida no país”? As vozes do mercado global apontam
o Brasil como uma economia “emergente”, ou seja, o crescimento do PIB e da renda per
capita, leva inevitavelmente ao crescimento da demanda pelos produtos existentes. O
consumo brasileiro tem espaço para crescer mais do que a média mundial. As
oscilações na participação de cada gênero de consumo audiovisual, no entanto, vão
continuar.
“De forma mais rigorosa, o que o indivíduo consome é o serviço
propiciado pelo uso do produto audiovisual, ou seja, a vivência das
experiências afetivas ou cognitivas propiciada por sequências de
imagens e sons geradas pelo uso do produto. Em certa medida, a
não ser pelas diferenças de custos dos serviços, o consumidor é
87
SDA/MINC. Op. Cit.
106
indiferente entre veículos ou ‘janelas’ (televisão ou cinema) ou
produtos (filme ou novela) utilizados para obter esse serviço”.
88
Essa afirmação é uma tradução para o linguajar econômico da experiência cultural que é
a linguagem audiovisual. Uma linguagem baseada em seqüências de som e imagem que
gera experiências cognitivas, ou seja, que tem sentido. Do ponto de vista econômico, o
produto independe do suporte. Mas existe um determinante cultural que prende as
parcelas mais valorizadas do mercado consumidor fiéis àquelas mais caras e de difícil
acesso.
O grau de substituição entre produtos audiovisuais é inversamente proporcional ao grau
de educação do indivíduo. A predominância da audiência das telenovelas sobre todas as
outras formas de dramaturgia audiovisual ganha uma explicação cultural e econômica:
“Dado o nível educacional e sócio-econômico da população, a
necessidade de se vivenciar experiências dramáticas sobre a
realidade circundante é quase exclusivamente suprida pelas
novelas de TV que, em termos de custos incorridos pelo
espectador, são bem mais baratas que os filmes nacionais”.
89
Cultural, porque condiciona o comportamento à educação, que é um dos dois eixos
balizadores do valor cultural. Econômica, porque atribui a demanda por audiovisual a
uma necessidade. Cultural porque define essa necessidade em termos de identidade. A
dramatização e a realidade circundante são formadores do caráter. Realidade
circundante significa local, regional. Aponta para a comunidade, para a identidade e,
portanto, para uma cultura vernácula. Devido a esse apego, um dos fenômenos mais
estudados da economia audiovisual é o declínio da audiência dos cinemas.
Tendências de audiência dos cinemas nos países selecionados:
88
Idem.
89
Ibidem.
107
Fonte: www.ancine.gov.br/estudos
O apogeu do cinema ocorreu no começo do pós-guerra. Os primeiros a dobrarem a curva
do pico foram EUA e Inglaterra, em 1946. No ano seguinte veio a França. O processo
começa justamente nos países que fundaram e lideraram a indústria. na década de
50 é que Itália, Espanha e Alemanha param de ver o público dos cinemas crescer. No
Japão, o pico deu-se em 1960. Foram também os americanos que primeiro reverteram a
queda, na década de 70. Os cinemas do Brasil chegaram ao seu máximo de público em
1957 e passamos pelos anos 70 e 80 perdendo com ainda mais velocidade.
No final dos anos 30 a televisão entrou em funcionamento nos EUA, França, Inglaterra e
Alemanha. Como se vê, o meio levou mais de dez anos para começar a produzir impacto
significativo na audiência do seu predecessor. No começo dos anos 50, a TV atinge
metade dos lares nos EUA. Na Europa arrasada, esse processo demora mais. A
televisão é primeiro meio audiovisual financiado pela venda antecipada de intervalos
comerciais, minimizando os riscos ao evitar a defasagem que assola o investimento em
produção cinematográfica. Nos EUA, a demanda da TV por programação compensou o
108
setor de produção e ajudou a escoar projetos para o meio de produtos. Uma lei da
Federal Comunications Comission (FCC), vigente até 1993, proibiu as redes de televisão
de produzir mais de 30% da sua programação. Somente os conteúdos de jornalismo e
esportes, alcançavam esse limite. Surgiram assim os telefilmes, feitos especialmente
para estrear na janela. Os EUA superam dessa forma a era da televisão ao vivo,
inspirada no rádio, para começar uma outra era, da ficção seriada. A TV tornou-se um
importante mercado para os produtores de cinema por lá, e a produção deixou de ser
amarrada a uma janela. As emissoras limitam-se a produzir conteúdos de jornalismo,
esportes e performances, ou seja, se especializaram nas técnicas de transmissão ao
vivo, comprando da indústria cinematográfica toda a produção de ficção narrativa ou
documental. “A indústria de televisão dividiu-se em dois segmentos: o primeiro ligado às
grandes produtoras de cinema - e em alguns casos a produtores independentes na
Califórnia e outro, às grandes centrais de jornalismo, na Costa Leste”.
90
Foi a consolidação da TV que tornou o público adolescente principal sustentador dos
cinemas. As famílias que antes freqüentavam as salas passaram a sustentar o vídeo
doméstico e a televisão. A segmentação de mercado, portanto, torna-se uma estratégia
vital. Hoje, a grande maioria dos filmes é produzida e distribuída para segmentos
específicos, com destaque para os jovens. O cinema de arte pode ser visto como um
segmento específico de público que surge na década de cinquenta e chega ao ápice na
década de 1970. Nos EUA, corresponde a um mercado com público limitado, mas ainda
assim viável pelo baixo custo de produção e lançamento. Esses filmes dependem mais
de um trabalho de publicidade indireta junto à crítica. Originalmente dominado pelos
filmes europeus, o circuito de arte é hoje ocupado pelos americanos e ingleses
90
Ibidem.
109
independentes. Para o cinema francês, isso representou uma dura derrota comercial e
derrubou as exportações para o mercado americano”.
91
Não é de hoje que se prevê o fim do cinema em favor de outras plataformas técnicas e
comerciais. O prognóstico nos anos 60 era de falência das empresas em Hollywood. A
profecia falhou. A indústria mudou sua forma de organização concentrando-se nas
atividades de distribuição. A produção passou a ser financiada pelo mercado de
distribuição nas diversas janelas. A concentração econômica na forma de fusões e
aquisições criou grandes conglomerados multimídia voltados não para o audiovisual,
mas para toda a área de comunicações, lazer e entretenimento incluindo parques de
diversão, hotéis e empresas de turismo. Muitos desses conglomerados de hoje tem forte
participação acionária de corporações de fora dos EUA, principalmente japonesas, como
a SONY. “Hollywood não é mais só cinema e nem só americana”.
92
O ano de 1975 marcou o mundo do audiovisual com o lançamento de duas tecnologias
revolucionárias para o usuário doméstico: o vídeo-cassete-recorder (VCR) introduzido
pela Sony e a TV por assinatura via satélite, pela HBO. Isso, somado a
desregulamentação da televisão em diversos países do mundo (no Brasil ela nunca
chegou a sofrer forte regulação) fizeram do setor de dia a locomotiva do processo que
ficaria conhecido como globalização. A manutenção da liderança norte-americana está
ligada ao fato de que esse mercado não se adaptou rapidamente às mudanças, mas
liderou-as em quase todos os campos.
Hoje, a digitalização dos media deverá impor novas transformações na base da atividade.
A convergência entre TV digital, telefonia móvel e informática só vem reforçar a tendência
91
Martin, R. "The French Film Industry: A Crisis of Art and Commerce." Columbia Journal of World
Business, 1995.
92
Moran, A. “Film Policy, National and Regional Perspectives”. London, Routledge. 1996.
110
dos últimos 30 anos. Os EUA estão liderando essas transformações às quais o resto
do mundo precisará se adequar e seguir. A TV a cabo e o vídeo doméstico tornaram-se
mercados complementares e produziram como resultado consolidado uma expansão
significativa da demanda por conteúdo audiovisual, agregando valor aos estoques das
empresas. Primeiro, porque incentivou o público de televisão a consumir filmes;
segundo, porque a conveniência e flexibilidade de horário oferecidos, além do baixo
custo, funcionam como incentivos diretos ao consumo. Grande parte da demanda por
novas janelas foi roubada das salas de cinema e não resultaria, a princípio, em
incremento de receitas para a indústria como um todo. No entanto, a partir da década de
70, houve crescimento do público de cinema revertendo uma tendência declinante de
quase trinta anos.
93
A recuperação da audiência nos EUA, ocorrida mais cedo e mais
fortemente que nos outros países industrializados aumentou a participação do público
americano no total de 30%, em 1970, para mais de 60%, em 1995.
93
Vogel, H. L. “Entertainment Industry Economics: A guide to financial analysis”. Cambridge, UK,
Cambridge University Press. 1998.
111
Público de cinema em países selecionados, 1970 – 1995:
Fonte: SDA/MINC, Op. Cit.
O mercado de TV por assinatura multiplicou tão rapidamente a demanda dos canais de
mídia por conteúdo audiovisual que produziu como resultado um padrão de qualidade
muito menos rígido. A estratégia adotada desde então para maximizar os resultados dos
produtos lançados para toda a cadeia de consumo (aqueles que devem estrear com
grandes públicos de cinema) foi a redução no número total de projetos por temporada e
aumento significativo nos custos de cada um, notadamente os custos de publicidade. Em
conseqüência, uma fatia cada vez maior do mercado é disputada por uma pequena
quantidade de blockbusters enquanto o restante das produções disputa de forma cada
vez mais acirrada o mercado excedente e os segmentos especializados. Isso não ocorre
apenas com o produto norte-americano. No Brasil, nos últimos anos, o total das
bilheterias para filmes nacionais se concentra em dois ou três filmes por ano, restando
uma menor parte do mercado pulverizado por dezenas de outros lançamentos que
atingem bilheterias pífias. Na quase totalidade, os filmes nacionais de sucesso são co-
produzidos pela Globo Filmes, que oferece aos projetos acesso à publicidade indireta na
emissora líder de audiência, um toque de Midas indispensável ao sucesso financeiro de
112
qualquer filme produzido no mercado doméstico. Nos EUA, parte da expansão da
demanda gerada pelas novas janelas foi suprida pelas produtoras independentes e
estúdios de médio porte que se financiaram com as receitas de vendas para TV fechada
e vídeo. Embora pequenas para os padrões norte-americanos, essas receitas são
suficientes para cobrir os baixos custos dessas produções. Como as vendas aos canais
são antecipadas, amortizam os riscos de capital.
94
Ambos os mercados, de vídeo e TV fechada, tiveram um crescimento explosivo nas
últimas duas décadas do século XX. Hoje o mercado de vídeo doméstico, principalmente
com as vendas de DVD já responde por mais da metade da receita do setor. a
recuperação da audiência das salas de cinema foi bem mais suave. A estratégia de
windowing condiciona ao sucesso de um produto na janela de estréia o resultado que
este produzirá nas janelas subseqüentes. É claro que existem exceções, sendo as
principais nos gêneros de filmes eróticos e de terror.
Durante os anos em que os EUA foram governados por Ronald Reagan, as chamadas
majors, como Columbia (Sony), Paramount (Viacom Inc.), Time Warner, verticalizaram
definitivamente seus negócios investindo pesadamente no circuito exibidor. Esses
investimentos, feitos no mundo todo incluindo o Brasil, mais tarde, em salas multiplex,
respondem por grande parte do aumento no número de salas de exibição notado nos
últimos anos. Com a extinção pela Federal Communications Comission (FCC), em 1993,
cessando assim a proibição das redes de televisão produzirem e distribuírem seus
próprios programas e filmes, essa verticalização chegou à TV. Da mesma forma,
empresas de telefonia passarão a ter direito de distribuir conteúdo audiovisual, que no
Brasil encontra grande resistência principalmente por parte da emissora líder.
94
Turner, G. “Film as Social Practice”. London and New York, Rutledge. 1993.
113
O DVD fez na primeira década do século XXI o que se esperava de o vídeo fizesse desde
o seu surgimento na década de 70: superou o faturamento das exibições nos cinemas.
Em 2004, as vendas de DVD’s aumentaram em 33%, chegando aos 15 bilhões de
dólares. Nesse mesmo ano os cinemas arrecadaram 9 bilhões de dólares. “Ray”, filme
lançado em 2004, vendeu 80 milhões de dólares em DVD’s superando a receita de cinco
meses de exibição no circuito. Entre 2003 e 2004, os brasileiros compraram quase duas
vezes mais DVD’s. Em 2005, o mercado brasileiro de vídeo doméstico chegou perto de 1
bilhão de reais, acima do faturamento dos cinemas, de 760 milhões de reais em 2004.
Mas o faturamento dos cinemas, como no resto do mundo, não caiu e mantém-se estável
desde o início da década. Em nosso país, as bilheterias vêm crescendo acima da média
mundial, com 114 milhões de ingressos em 2004, contra 75 milhões em 2001.
95
Note-se que os números se compõem em grande parte de receitas advindas de vendas
(não de locações) de vídeos. O DVD, como todo novo formato, instaura uma mudança
de hábito, colocando em crise as locadoras. A partir de 2004, como nunca ocorreu até
então, o consumidor gasta mais comprando filmes do que alugando. Então, hoje,
somando aluguel e compra, o vídeo supera o cinema em faturamento, mas essa renda é
apropriada em grande parte pelo próprio usuário doméstico. As vendas mundiais de
DVDs saltaram de 34,7 milhões de unidades em 2001 para 106,1 milhões em 2003. Para
se ter uma idéia do que isso significa como mudança de comportamento do consumidor,
as vendas de CDs, nesse mesmo período caíram de 2,3 para 2,1 bilhões de unidades.
Muitas pessoas deixaram de comprar música e alugar vídeos, passando a copiar música
(baixando da internet ou reproduzindo discos) e comprar vídeo.
O DVD chegou ao Brasil em 1997. Três anos depois já se vendia 500 mil cópias para o
mercado doméstico. Em mais quatro anos esse mercado havia explodido, chegando a
95
Revista Veja, 13 de Março de 2005, Ed. Abril.
114
7,2 milhões de unidades vendidas. Enquanto isso as vendas de CDs despencaram de 93
milhões de discos para 53 milhões. As perdas no mercado fonográfico brasileiro estão
entre as maiores do mundo, graças à pirataria generalizada que acesso mesmo à
população de baixa renda a reprodução de discos por custos muito baixos. Como
resultado as gravadoras reduziram o número de contratos. Tentando pegar carona no
sucesso do DVD, a indústria fonográfica investe pesado nessa mídia, tentando faturar
com a venda de videoclipes e shows o que perde com a venda de álbuns. Por questões
circunstanciais, o audiovisual está em alta. Mas até que ponto o boom dos DVDs é a
redenção dessa industria? Assim como existem CDs piratas à venda nos camelôs de
todo o país, o mesmo acontece e acontecerá cada vez mais com o DVD. Da mesma
forma, o compartilhamento de arquivos de vídeo na internet tende a se simplificar e
baratear substancialmente com o alargamento das bandas de conexão (o que derruba o
preço por hora de acesso) e pelo desenvolvimento das tecnologias de compactação. Por
todos esses motivos, não razão para se imaginar que os efeitos causados por essas
tecnologias no mercado fonográfico não irão se repetir em breve no mercado de vídeo
doméstico digital. A música digital, com seus Mp3, Ipods e congêneres levaram milhões
de pessoas em todo o mundo a parar de comprar CDs, para compartilhar músicas.
Enquanto esse trabalho é escrito, mecanismos de compartilhamento de dados como o E-
Mule, Bit-Torrent, entre outros se especializam na distribuição de filmes pela Internet.
Talvez a alegria dos DVDs esteja perto do fim. Provavelmente está. A reação da
indústria é sempre o lançamento de uma nova tecnologia que oferece vantagens
competitivas em relação à reprodução doméstica, como aconteceu na passagem dos
aparelhos gravadores de VHS aos meramente reprodutores de DVD que hoje dominam o
mercado. Novos padrões de deo digital com melhor desempenho estão em estudo,
como, por exemplo, o Blue Ray. Resumidamente, a próxima geração de discos de vídeo
digital deverá ter capacidade superior de armazenamento. Somando essa pista à
implementação mundial da TV digital de alta definição (HDTV), pode-se prever um salto
no padrão técnico do vídeo doméstico. O formato HDTV altera algumas características
115
antigas da televisão, além da passagem do analógico ao digital. Aposenta
definitivamente o vídeo entrelaçado, muda a relação de aspecto das telas de 1,33 para
1,77 por 1, aumenta substancialmente a resolução de imagem e permite múltiplos canais
de som. A partir do momento em que esse padrão se estabeleça, o grau de exigência do
consumidor deverá aumentar. O novo padrão implicará em maior volume de informação
por minuto de audiovisual, que significa sobrecarga dos canais de distribuição da internet
e necessidade de upgrade na base industrial da pirataria. Ao menos no curto prazo, isso
garante sobrevida ao mercado Main Stream. Mais tarde, com a banalização de tudo isso,
ocorre uma nova crise e uma nova rodada de lançamentos de tecnologia audiovisual.
Assim a roda da fortuna do mercado continua a girar.
Nos últimos três anos a venda de ingressos nos cinemas americanos caiu e, como
sempre que isso acontece, o mercado discute as possíveis causas. O foco principal da
discussão está em duas hipóteses: ou isso é uma tendência de longo prazo ou o justo
resultado de safras medíocres de filmes. A primeira hipótese se apóia na constatação de
que os hábitos de lazer das pessoas estão mudando. É por conta disso que os estúdios
hoje faturam mais com a venda de vídeo doméstico e outros produtos associados do que
com a bilheteria do filme propriamente dito. Segundo Paul Dergarabedian, representante
da Exhibitor Relations Co., entidade que acompanha os resultados das bilheterias, a
constatação de uma mudança cultural radical seria muito pior que a hipótese da falta de
qualidade, que é um problema que pode ser resolvido. O público de hoje, segundo o
especialista, é muito mais difícil de estimular devido à riqueza de opções de
entretenimento.
Nos quatro primeiros anos deste século, houve um aumento de 53% no tempo gasto pelo
público americano diante de TV seja assistindo a programação das emissoras ou vídeos,
segundo a Motion Picture Association of America, toda poderosa entidade representante
da indústria cinematográfica dos EUA. As vendas e aluguéis de DVDs cresceram
116
676,5% nesse tempo e hoje 60% das famílias de têm um aparelho de DVD. A Digital
Entertainment Group divulgou que as vendas e aluguéis de DVDs renderam US$ 21
bilhões de dólares de 2000 para cá.
Segundo as estratégias de windowing praticadas hoje os DVDs são disponibilizados no
mercado quatro meses depois da estréia do produto na janela primeira exibidora. O
grande esforço de promoção que antecede e acompanha estréia nas salas cria grande
atenção e expectativa para o lançamento do produto em DVD. Nada disso impediu que o
público das salas de exibição sofresse um incremento de 8,1% durante o período. Isso
significaria que a tendência não poderia ser de queda, mas a baixa de audiência em três
anos coloca esse diagnóstico em questão.
Curiosamente, é nesses momentos de flutuação dentro de uma relativa estabilidade
que as pessoas param para discutir o papel dos filmes em si, suas qualidades e defeitos
intrínsecos, no resultado em audiência. Quando o cenário mostra tendências mais fortes,
o mercado tende a acreditar que o conteúdo efetivamente oferecido é problema
secundário. Isso ocorre dentro daquela lógica que vimos caracterizar o pensamento do
mercado sobre o meio: a estrutura de comercialização cria demanda por entretenimento
audiovisual. Os filmes simplesmente formam um conjunto sempre equivalente de
produtos que suprem essa cadeia. O grande aumento das bilheterias americanas em
2002 foi atribuído ao sucesso de "Homem Aranha" e "Star Wars: O Ataque dos Clones".
No Brasil o mesmo acontece quando grandes hits promovidos pela Globo Filmes ocupam
o mercado. Mas quando as bilheterias caem, o fenômeno não é associado à má
qualidade ou promoção incompetente dos filmes. Em lugar disso, prescreve-se a crise
dos cinemas e a hegemonia do DVD, da internet, dos jogos eletrônicos, da pirataria ou
outro Leviatã de ocasião. O tempo dedicado pelo americano médio na internet aumentou
76,6%, e no videogame 20,3%. Em 2004 a industria de jogos eletrônicos vendeu, nos
EUA, 6.2 bilhões de dólares segundo o NPD Group. Isso já corresponde a dois terços do
117
faturamento da indústria do cinema (US$ 9,5 bilhões). A tendência é que esses números
venham a convergir em algum ponto do futuro próximo, o que torna a sinergia entre
essas indústrias ainda mais vital.
96
Em 2005, o mercado observou uma queda significativa nas vendas de ingressos para os
cinemas no Brasil. Em junho daquele ano, o fosso se aprofundou com uma diferença de
40% em relação ao mesmo mês do ano anterior.
“Valmir Fernandes, presidente da Cinemark, diz que ‘a queda é
muito grande’, mesmo se considerado que 2004 foi ‘um ano muito
forte’. O exibidor diz que, entre as razões da queda, ‘o impacto da
pirataria não deve ser desprezado’. A maioria dos analistas explica
o fenômeno da diminuição de espectadores no cinema (que está
ocorrendo também nos EUA) como resultado do aumento do
consumo de filmes em DVD e da fraca temporada de títulos. (...)
Fernandes teme que ‘a inundação de cópias piratas no mercado’
enxugue definitivamente as cifras de frequência de salas. ‘Do jeito
que está indo, nunca mais teremos um filme de 5 milhões, de 8
milhões de espectadores no Brasil. Não haverá outro ‘Carandiru’
nem outro ‘Titanic’”.
97
Se em um mercado gigante como o americano o desempenho da safra de filmes carro-
chefe influencia no desempenho total da indústria, no Brasil esse efeito é ainda mais
forte. Nenhum dos dez filmes mais vistos no Brasil em 2004 teve menos de 3 milhões de
espectadores. Desempenho que não se repetiu em 2005. Até o meio do ano, o filme de
maior bilheteria tinha chegado a 2,5 milhões de expectadores. Aquele foi o momento de
pânico. A tendência se inverteu com os lançamentos do segundo semestre,
principalmente do brasileiro “Dois Filhos de Francisco” que ultrapassou os cinco milhões
de ingressos vendidos, mas com ajuda de outros dois filmes que naquele momento não
amenizavam os maus presságios do exibidor. Fernandes afirma que a tendência de
queda não deverá ser revertida em julho, apesar da exibição de potenciais sucessos
96
Holson, Laura M. “Redução de bilheterias preocupa Hollywood” em The New York Times, 7/05/2005
Tradução: Deborah Weinberg.
97
ARANTES, Silvana “Público deve cair 40% em junho” Folha de São Paulo, 29 de Junho de 2005.
118
populares, como Guerra dos Mundos e Madagascar. ‘Não haveinversão da tendência,
porque julho passado foi muito forte’, diz o exibidor”.
98
“O diretor da Warner Bros. nos Estados Unidos Dan Fellman acha
que ainda é cedo para culpar o DVD. Até mesmo para concluir que o
comportamento do público está passando por uma mudança
definitiva. ‘Certamente devemos prestar atenção nisso. Mas creio
que você não pode fazer isso (concluir que o espectador prefere o
DVD ao cinema) observando seis meses de resultado. Precisaremos
de alguns anos’”.
99
Os filmes brasileiros, até o meio de 2005, tiveram 30% menos público do que em 2004
segundo a consultoria Filme B. Mas no mercado nacional a qualidade dos filmes é
encarada mais diretamente como responsável pelo resultado. No que se faz bem, uma
vez que essa queda reverteu-se radicalmente com o lançamento do blockbuster “Dois
Filhos de Francisco”. É característica de mercados limitados e pequenos, que seus
números sejam fortemente influenciados pelo desempenho de produtos isolados.
Ironicamente, isso leva mercados menores a terem maior preocupação com a qualidade
dos lançamentos uma vez que os investimentos (e, portanto, os riscos) estão menos
pulverizados. Enquanto o mercado massivo global dilui o problema da qualidade na
escala da oferta, mercados e empresas menores dependem enormemente desse fator
subjetivo para alcançar os resultados esperados.
De forma geral, vimos nesse capítulo que a questão da audiência é o principal vetor
articulador do lucro quando se trata dos interesses de mercado envolvidos na atividade
audiovisual. A distribuição, modulação e qualidade da audiência determinam fortemente
as estratégias de mercado do setor. Mas o comportamento da audiência não é obra
dessas estratégias, tendo com elas uma relação co-sintomática. Assim como o capital
98
Idem.
99
ARANTES, Silvana “Diretor da Warner no Brasil afirma que queda de público é reacomodação e que o
DVD não ameaça a sala escura” Folha de São Paulo, 25 de junho de 2005. Copyright Empresa Folha da
Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer
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Agência Folha.
119
precisa estar em movimento para gerar mais-capital, a audiência está em constante fluxo
migratório entre as diversas dias e tecnologias oferecidas pelo mercado. Do ponto de
vista capitalista que rege as decisões e o discurso de mercado, as inovações
tecnológicas e as estratégias de marketing tais como a concentração empresarial,
verticalização e windowing são mais importantes como fatores determinantes da
audiência do que critérios de qualidade focados no produto. A partir do próximo capítulo
nos voltaremos para o modo de valoração da cultura sobre o meio audiovisual e
perceberemos mais claramente essa diferença de fundamento.
120
1.2. O Modelo da cultura:
"O artista é o criador de coisas belas.
Revelar a arte e ocultar o artista é a finalidade da arte.
O crítico é aquele que pode traduzir, de maneira diferente ou em um
novo material, a sua impressão das coisas belas.
A mais elevada, como a mais baixa, forma de crítica é uma espécie de
autobiografia.
Os que encontram significações feias em coisas belas são corrompidos
sem ser encantadores. Isso é um erro.
Os que encontram belas significações em coisas belas são os cultos.
Para estes há esperança.
Existem os eleitos, para os quais as coisas belas significam unicamente
beleza.
Não existe algo como um livro moral ou imoral. Livros são bem ou mal
escritos. Eis tudo.
A aversão do século XIX ao Realismo é a cólera de Calibã por ver seu
rosto num espelho.
A aversão do século XIX ao Romantismo é a cólera de Calibã por não
ver seu próprio rosto num espelho.
A vida moral do homem faz parte do tema para o artista, mas a
moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito.
O artista nada deseja provar. Até as coisas verdadeiras podem ser
provadas.
Nenhum artista tem simpatias éticas. A simpatia ética num artista
constitui um maneirismo de estilo imperdoável.
O artista jamais é mórbido. O artista tudo pode exprimir.
Pensamento e linguagem são, para o artista, instrumentos de uma arte.
Vício e virtude são, para o artista, materiais para uma arte.
Do ponto de vista da forma, o modelo de todas as artes é do músico. Do
ponto de vista do sentimento, é a profissão do ator.
Toda arte é ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Aqueles que vão
abaixo da superfície fazem-no por seu próprio risco.
Aqueles que interpretam o símbolo o fazem por seu próprio risco.
É ao espectador, e não à vida, que a arte realmente reflete.
A divergência de opiniões sobre uma obra de arte indica que a obra é
nova, complexa e vital.
121
Quando os críticos divergem, o artista está de acordo consigo mesmo.
Podemos perdoar um homem por haver feito uma coisa útil, contanto
que não a admire. A única desculpa de haver feito uma coisa inútil é
admirá-la intensamente.
Toda arte é completamente inútil."
Oscar Wilde, no prefácio de "O retrato de Dorian Gray".
Esse texto, talvez o mais famoso de Wilde, reflete de forma singularmente precisa a
oposição exercida pela ética romântica ao aparelhamento da arte sob quaisquer
justificativas. Nem sempre a arte foi entendida dessa forma. Na verdade, o romantismo,
é um fenômeno cultural relativamente novo, característico do período marcado pelos dois
últimos séculos e chamado também de modernidade tardia.
O romantismo inventou o amor romântico e também a mistificação da arte, emprestando-
lhe valor transcendente. Foi um movimento natural que buscava religar uma arte que
não é mais religiosa. Se antes era a religião de dava aura à arte, então será a inspiração,
o poder criativo e a imaginação que restaurarão esse valor na ausência de um mediador
religioso. A idade média, em sua milenar duração e seu estranhamento, nos ensinou que
a arte e a transcendência estão inevitavelmente ligadas. o que muda é que, na
modernidade racionalista, a transcendência não é mais um monopólio da igreja ou das
igrejas, mas um projeto humanista. A transcendência pode ser até mesmo dionisíaca e,
no centro desse processo de superação do Homem pelo Homem está a arte e o artista.
Na modernidade racionalista o valor da eficácia sobrepõe-se a todos os outros
atropelando inclusive a religião, que durante milênios amalgamou a sociedade e a cultura
criando a noção de Humanidade. É contra esse condicionamento pragmático que se
rebela o espírito romântico. Está a fonte em que bebem os movimentos
122
questionadores da razão, da ciência, da economia, do capital, da ordem estabelecida e
outros símbolos do status quo, que povoaram os últimos dois séculos, da revolução
burguesa aos movimentos jovens dos anos 60.
É esse o motor do discurso da cultura que pressiona e epistemologia do pensamento de
mercado. O mercado exige da arte função e eficácia. A função é o entretenimento, e a
eficácia no cumprimento dessa função é medida pela demanda. A arte, segundo o
mercado, deve ser útil como mercadoria. Essa exigência se justifica tão mais quanto
mais recursos materiais devam ser consumidos na realização da obra. Não existe
almoço grátis” diz o primeiro mandamento da economia de mercado. Isso quer dizer que
o custo material e humano da obra deve justificar-se na disposição das pessoas de arcar
com esse custo para ela exista. Alguém pagará pela obra, de uma forma ou de outra, e a
economia capitalista não encontrou melhor forma de resolver essa questão do que
criando meios de reproduzir e multiplicar a experiência de fruir da obra. Multiplicada, a
arte se torna mercadoria e seus custos se diluem a ponto de viabilizar seu consumo por
muitas pessoas. Essas pessoas então, através do mercado, pagam pelo trabalho do
artista.
Tudo estaria resolvido se não fossem limitados e permeados por interesses os métodos
do mercado para fazer essa radical mediação de todos os trabalhos. Então vem a
pressão romântica, exigindo a restauração da liberdade da arte, seu compromisso com o
significado sendo mais importante que seu desejo de sobrevivência. O artista não quer e
não admite produzir com foco no mercado, orientado à demanda, mesmo interessado em
suprir alguma necessidade. O artista quer desafiar a função pela forma enquanto o
mercado quer dar, até à forma, função.
Para libertar-se dos grilhões mercadológicos e reaver sua aura perdida num mundo
movido pelo capital, a arte precisa de financiamento alternativo. O mercado está preso
123
às suas próprias variáveis determinantes e não é capaz de absorver uma grande fatia da
produção artística das populações humanas. Mais grave que isso, essa grande fatia se
compõe de uma enorme variedade estética e cultural enquanto a produção absorvida
pelo mercado obedece a padrões determinados. É tão padronizada e tão determinada a
fatia da arte que o mercado é capaz de absorver que o contraste com tudo mais que fica
fora torna-se constrangedor e indisfarçável. Por mais que o mercado seja hoje um
sistema social em seu auge e por mais que se confunda com a própria idéia de
democracia e de justiça coletiva, alternativas se fazem necessárias por pressão de tudo
que está fora dessa noz de razão.
É aí que entra o Estado. Tão antigo quanto o mercado e tão onipresente quanto este, o
Estado é a única instituição social com poder equivalente de regulação e mediação do
trabalho e seus resultados materiais. Onde o mercado não controlar os fluxos de riqueza
o Estado o fará. Num mundo democrático, as maiorias prevalecem sobre as minorias. O
Estado, de certa forma, vem cumprindo o papel de proteger os privilégios de algumas
minorias. Umas vezes isso significa dar amparo àqueles que não encontram
oportunidades de mercado. Em outras, implica em perpetuar oligopólios. Não faltam no
mundo contemporâneo, Estados que abracem o mercado como se quisessem se diluir
nele. Mas também os que o vigiam com desconfiança. Esses se dedicam a ser tudo
que o mercado não é e fazer tudo que o mercado não faz.
O mercado tal qual o conhecemos hoje é uma obra do capitalismo. Onde se buscou
instalar o socialismo o Estado substituiu o mercado em tudo. Embora nunca se tenha
experimentado o escambo altamente tecnológico que os marxistas contemporâneos
julgam ser o substituto ideal do capital, a idéia de uma divisão do trabalho que anule o
problema do dinheiro atrai muitos artistas excluídos do mercado. De forma geral, exige-
se do Estado, enquanto representante dos interesses não-capitalistas da sociedade,
124
soluções que viabilizem tudo isso que se julga necessário, mas que não tem viabilidade
comercial.
Ocorre que o estado, assim como o mercado, está enraizado na razão e defende
interesses, não estando livre para financiar o inútil a partir de suas virtudes amorais.
Quando se pede ao estado que financie a cultura segundo critérios diferentes dos de
mercado este responderá, não com valores românticos, mas de estado. Políticas de
preservação da cultura em um ambiente capitalista se pautarão naquilo que se considerar
estratégico. Como os estados são, pelo menos por enquanto, estados nacionais, seus
valores são valores nacionalistas. Será considerado culturalmente desejável aquilo que
for estratégico para a cultura nacional. Sendo o estado um espaço político, uma série de
interesses de grupos de pressão deverá ser acomodada no seio desse valor primordial,
inclusive interesses de mercado. Isso será importante porque, assim como o mercado, o
estado não absorverá todos os projetos artísticos que desejam se viabilizar. Precisará
selecionar projetos a partir de critérios culturais, não mercadológicos. Por outro lado, a
classe artística é o principal núcleo de pressão para a interferência do estado nessa
atividade social e econômica. Sua ética, representada aqui no texto de Wilde, será um
dos principais ingredientes do discurso da cultura em oposição ao mercado.
Cultura nacional e valor criativo formarão cada um, assim como uma infinidade de outras
semioses, dois eixos de valores em tensão articulados entre si.
Educação
Inovação
125
Cultura é o conjunto das crenças, linguagens, técnicas, obras e comportamentos da
Humanidade. uma noção geral de que a cultura evolui provavelmente provinda da
crença científica de que a vida evolui. Para evoluir, ou pelo menos desdobrar-se, a
cultura precisa fazer duas operações básicas: reproduzir e diferenciar. Diferença e
repetição, para usar termos conhecidos de nós, são elétrons e prótons da cultura. Mas
em termos sócio-políticos, para evoluir, a cultura precisa produzir educação e inovação.
Educar significa universalizar idéias. Inovar significa criar idéias universais. Pela
perspectiva da cultura, a obra audiovisual pode ser valorada segundo duas cordas
suficientemente tencionadas para emitir acordes de apreciações.
“Os valores que permitem reconhecer uma obra de arte são muito anteriores à indústria e
à economia de mercado e, provavelmente, estarão por aqui quando estes tiverem
desaparecido”. Francisco Weffort.
100
Educação e Cultura são valores mais antigos que Lucro e Audiência, sem dúvida. Pelo
menos com esses nomes. Não que esteja implícito aí que os valores de esquerda sejam
mais antigos que os de direita. Mas é bastante marxista a profecia sobre o
desaparecimento da indústria e do mercado. De toda forma, o valor da citação está no
que ela nos diz sobre o discurso que desconstruímos a partir de agora. A constatação de
que valores que nos permitem reconhecer uma obra de arte, independentes de seu
valor como mercadoria, nos será fundamental para isso.
“Se insisto em falar das condições sociais da cultura, isso não
significa que a recuse como algo que vale em si. Algo que, na sua
melhor expressão, permanece para além das circunstancias que
lhe deram origem. E isso é verdade também para o cinema: os
filmes de arte, documentários culturais, etc., sempre terão sua
100
Wefort, Francisco C. “Cultura, Cinema e Indústria” em Cardoso, Fernando Henrique, et al. “Cinema
Brasileiro. Serie Cadernos do Nosso Tempo, Nova Serie, 4”. Rio de Janeiro : Fundo Nacional de Arte e
Cultura : 2001.
126
justificativa, no Brasil ou onde quer que seja, do mesmo modo que
peças de teatro e sinfonias”.
101
Numa coisa cultura e mercado concordam: uma vez abertas, as janelas não devem se
fechar. A mesma ética aqui aplicada leva ao tombamento de construções e à proteção
contra sua atualização mercadológica. Onde quer que a cultura busque preservar, ela
estará educando. Preservar é um trunfo de valor cultural.
Assim como o mercado cria mecanismos de preservação do cinema (windowing) a
cultura o faz com o cinema que o mercado não deseja preservar. Mas no Brasil o estado
não entrou no mercado exibidor. Entrou no mercado produtor por conta da força desse
grupo de pressão na cultura, onde tem o status de “artistas” (aquilo mesmo que se quer
preservar). Investir em salas é política industrial. Política cultural é investir em artistas.
Mas no momento de falar em critérios segundo os quais essas obras serão avaliadas, a
arte começa a submeter-se à utilidade. Uma utilidade de Estado-nação:
“Assim como o surgimento e a consolidação do capitalismo não
diminuíram o interesse do mundo moderno pela arte da Antigüidade
Clássica ou da Renascença, sempre será necessário, a quem queira
aprender alguma coisa sobre a nossa cultura, ver, por exemplo,
exposições de arte barroca, ouvir musica brasileira, de qualquer
época, rever filmes como ‘O Limite’ e documentários sobre as
esculturas de Brennand ou de Amilcar de Castro ou, mais antigo, do
Aleijadinho. É evidente, no Brasil como em qualquer parte, que obras
de informação cultural desse tipo necessitam de subsídios de
Estado”.
102
O então ministro da cultura de orientação social-democrata globalista mostra que o
estado tem interesses específicos e claros sobre que tipo de arte gostaria de financiar.
Em linhas gerais os valores que ele utiliza são o histórico e o educacional. Obras de arte
educativas do ponto de vista da cultura nacional são aquelas que tenham valor histórico
101
Idem.
102
Ibidem.
127
ou que tenham como tema a História (com agá maiúsculo). Wefort percebe: É curioso
notar que agencias internacionais de financiamento têm manifestado mais disposição em
apoiar o patrimônio do que o cinema”. Isso configura a consciência política dos objetivos
educacionais do Estado (seja nacional ou global) para os quais espera que a arte seja
útil. A razão por trás do investimento deve ficar bem demarcada:
“Não são poucas as manifestações culturais que o mercado não
paga inteiramente. São inúmeras as que o mercado nem é capaz de
perceber. A circunstância de que, por exemplo, alguns quadros
possam valer em dinheiro mais do que outros, e que algumas
orquestras ou peças de teatro tenham mais público pagante que
outras, prova apenas que, em nossa época, o mercado está à volta
de tudo. Isso não pode ser desprezado mas não muda o essencial.
Sempre se pode, por exemplo, conseguir algum dinheiro
organizando visitas a museus e a monumentos históricos. Mas o que
atrai as pessoas a museus e monumentos históricos são valores de
outra ordem. Ninguém espera que o que ali se possa ser
produzido industrialmente. Se assim fosse, museus não precisariam
existir e a própria noção de patrimônio desapareceria”.
103
Da mesma forma, é claro que se pode conseguir milhões com filmes, mas o que atrai as
pessoas para o cinema são valores de outra ordem e o fato daquilo ser produzido
industrialmente não muda isso. No entanto, quando Wefort fala da ordem de valores a
que pertence o objeto histórico (dotado de originalidade) se refere aquela em que não
pode ser reproduzido sem perder sua aura.
A História é um valor cultural. E para o Estado-Nação, a História Nacional é objeto
privilegiado de valoração cultural. A idéia geral é de que a História confere ao povo uma
identidade nacional. Seria papel do Estado brasileiro, portanto, preservar e difundir a
cultura brasileira, ou seja, aquela que é endêmica ao território nacional. Então o estado
seleciona obras, lugares, costumes que considera patrimoniais e subsídios aos
discursos que os exaltem, descrevam ou popularizem.
103
Ibidem.
128
Aquele que estuda a cultura deve compreender os fundamentos de sua própria ética; a
linguagem em que ela está escrita. Quando falamos na relação entre cultura e ética, nos
deparamos com signos políticos: poder, democracia, direito, etc. As formas como o
poder se exerce através do discurso são determinantes dos fenômenos culturais que
compõem tal universo de preocupações. A relação entre discurso e poder foi por
demais destrinchada pela tradição semiológica desde Barthes. O próprio, em seu
discurso inaugural da cadeira de semiologia do Colège de France afirma taxativamente
que todo discurso é exercício de poder.
104
Discursos de qualquer ordem, verbal ou não
verbal, artística, científica ou religiosa são cúmulos de artifício, representação da
representação, instauradores de realidades.
Mas nós vimos que a arte, essa que alimenta, excede e pressiona o mercado, se
pretende livre de intencionalidade e, portanto rejeita essa função. Ocorre que artistas
que não desejam produzir obras na forma como exige o mercado, mas desejam produzir
as obras que o Estado aprecia. Houve tempo em que produzia quem produzisse ao
gosto da Igreja ou dos Médici.
Antes de buscar a crítica tópica do fenômeno, deve-se definir claramente o contorno
conceitual que delimita sua inteligibilidade. Por esse motivo, partiremos agora da análise
de premissas contidas no texto “Quem precisa da identidade?”, de Stuart Hall, para então
reencontrá-las agindo coerentemente em outros dois textos: “O que é esse ‘negro’ na
cultura negra de massa?”, do mesmo Stuart Hall e “O desprezo das massas”, de Peter
Sloterdijk.
105
104
Barthes, Roland. “Aula”. São Paulo, Cultrix, 1987.
105
Hall, Stuart. “Quem precisa da identidade?” In: “Identidade e diferença”. (Tomas Tadeu da Silva,
org.). Petrópolis, Vozes. 2000.
Hall, Stuart. “O que é esse ‘negro’ na cultura negra de massa?” in: “Pensando a Diáspora: etnia,
mídia, cultura”. (Liv Sovik, org. e apres.). Belo Horizonte: Editora UFMG. 2003.
Sloterdijk, Peter. “O desprezo das massas”. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
129
A questão central é, sem dúvida, o poder de legitimação na cultura de massa, mas é
inevitável que, primeiro, se delimite claramente os pressupostos que a compõem. O
discurso alimenta sujeitos (subjetividades, arquétipos) e a cultura se desdobra
continuamente na forma de uma multiplicidade de discursos em diversas linguagens,
entre elas o audiovisual. Os meios de comunicação de massa surgem como arena, na
qual as relações de poder presentes na sociedade se realizam em seu aspecto simbólico
e dialógico. A cultura é, podemos intuir, uma construção coletiva e, portanto política.
Nela atuam grupos de pressão, minorias, maiorias, marginais, marginalizados, exóticos e
genéricos.
Nesse turbilhão simbólico, deve haver dinâmicas dominantes. Que leis as regem? Quais
são seus agentes? São perguntas que desejamos ver respondidas. Uma crítica da
cultura de massa, em seu viés político tem como problema a distribuição do poder
legitimador e como hipótese, a distribuição deste, resultando naquilo que chamamos
hegemonia cultural. Para fazer justiça ao caráter ético desta questão temos que definir
aquilo que se distribui e aqueles que competem. É aí que surge a necessidade de definir
uma posição sobre os conceitos de identidade, subjetividade e individualidade. É por
esse esforço inicial que reproduzo um painel do que se tem pensado sobre tais conceitos.
a) Identidade
Diversas áreas disciplinares vêm criticando a idéia de uma identidade integral, originária
e unificada; uma identidade em si mesma, transcendente. Há o esforço teórico de
esvaziar de essência tal idéia diante da constatação tardia de que a identidade não
corresponde integralmente ao objeto, nem lhe pertence exclusivamente, assim como os
objetos assumem mais de uma identidade ou a mudam ao longo do tempo. Desta forma,
identidade é um conceito que opera sob rasura: na falta de substituto, é usado ainda de
130
forma ambivalente. Está de toda forma descartada a idéia do sujeito como autor
centrado da prática social.
106
A partir dessa constatação o papel de agente se dispersa em categorias materiais, como
corpo (o real do indivíduo); e imateriais, como identidade e subjetividade. Se o signo é
arbitrário, qual desses arbitra sobre o signo? A importância disso é, mais que jurídica,
ontológica. A lacuna deixada por esta pergunta é reconhecida por Foucault quando diz
que o que nos falta, neste caso, não é uma teoria do sujeito cognoscente, mas uma teoria
da prática discursiva. Quando repensamos a relação entre sujeitos e práticas discursivas
a identidade surge como problema.
Numa aboradagem pierciana do signo a tríade será: corpo = objeto, sujeito = referente, e
identidade = signo.
Para ilustrar melhor a mudança no sentido do termo podemos ler “identidade” e entender
“identificação e, nesse caso, o termo composto “práticas discursivas” se traduz em
“processos de subjetivação”. Então, a identificação se num processo de subjetivação.
a identidade aparece permeada, invadida por processos de subjetivação que a
reconstituem sempre provisoriamente, num turbilhão que oculta (e por isso sugere) no
fundo, a possibilidade de um sujeito contínuo agindo por trás desses processos. O limite
atingido aqui é a fronteira até hoje murada entre a psicanálise e a sociologia; a incômoda
impossibilidade de afirmar a coincidência das fronteiras subjetivas com as de identidade
ou do corpo. É possível pensar a identidade e seu papel na cultura sem as barreiras
impostas pela noção de que esta corresponda a uma subjetividade individual e contínua.
Para as ciências sociais, importa menos quem é o Humano ontológico do que as formas
como ele se manifesta na cultura. Aquilo sobre o que se debruça o estudo crítico da
106
Hall, Stuart. “Quem precisa da identidade?” In: “Identidade e diferença”. (Tomas Tadeu da Silva, org.).
Petrópolis, Vozes. 2000.
131
cultura são as identidades e sujeitos, não as pessoas em si. O modelo que usamos para
descrever a rede de trocas simbólicas não coincide ponto a ponto com aquele que
descreve o tecido social e é por esse motivo que a noção de identidade perde sua
materialidade e sua neutralidade, o que nos remete ao problema da descrição do público-
alvo. É perfeitamente possível pensar a identidade sem que necessariamente esta
corresponda a um corpo ou tipo de corpo. Pode ser estudada como uma prática
discursiva, como um fenômeno intersubjetivo (sociologicamente falando) e intrasubjetivo
(psicologicamente falando).
b) Identificação
“A identificação é condicional, está alojada na contingência e uma vez assegurada não
anulará a diferença”.
107
Desta forma Hall descreve a identidade envolvendo um trabalho
discursivo, o fechamento e a demarcação de fronteiras simbólicas.
Em Freud a identificação se descreve como uma “moldagem de acordo com o outro”,
estando fundada na fantasia e na ideação. O modelo de Freud é o da fase oral do
desenvolvimento psicológico: o objeto que prezamos é assimilado pela ingestão e dessa
maneira aniquilado como tal. O que isso quer dizer? A identidade vem como alteridade,
como diferença, mas ao ser assumida se integra à psique como se fosse algo imanente a
ela. O objeto de estudo de Freud, é o indivíduo dividido, habitado por diversas
identidades, dotado de múltiplas subjetividades e, o que é fundamental, uno mesmo que
paradoxal ou contraditório.
108
107
Idem.
108
FREUD, Sigmund. “O Mal-Estar na Civilização”. Rio de Janeiro, Editora Imago, 1997.
_______________. “O Futuro de uma Ilusão”. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1998.
132
O verso dessa moeda é o espaço da identidade na coletividade. É questionável a
definição de identidade cultural como um eu coletivo capaz de estabelecer critério para
um pertencimento social.
“As identidades parecem invocar uma origem que residiria
em um passado histórico com o qual elas continuariam a
manter uma certa correspondência. Elas têm a ver,
entretanto, com a questão da utilização dos recursos da
história, da linguagem e da cultura para a produção não
daquilo que nós somos, mas daquilo em que nos
tornamos”.
109
A identidade não é mérito exclusivo da experiência. A identidade negra não se justifica
pela experiência comum de uma determinada tradição singular. Na Jamaica, no Rio de
Janeiro e na Bahia, “negro” alavanca repertórios discursivos bastante diversos. Hall
ilustra a idéia com um trocadilho: a identidade se compõe mais de routes (rotas,
caminhos), do que de roots (raízes).
c) Diferença
A identidade é constituída pela diferença. Forma-se a partir daquilo que exclui e delineia-
se aí, como um decalque. Diz muito mais sobre o que não é do que sobre o que é. É,
portanto, um recurso discursivo analítico, não sintético, pelo que não pode produzir
unidade, a não ser naquilo que provisoriamente tolera. É por esse motivo que
dificilmente se poderá apreciar a legitimidade de uma manifestação cultural através de
critérios sociológicos, a partir de uma tradição e uma experiência comuns. A identidade
como mecanismo discursivo furta-se a esse papel agregador. Sua forma é a de um fluxo
109
Hall, Stuart. “Quem precisa da identidade?In: “Identidade e diferença”. (Tomas Tadeu da Silva, org.).
Petrópolis, Vozes. 2000. pág.108-109.
133
estilístico e seus desdobramentos estéticos.
110
Os critérios de legitimação de um discurso
identitário devem, portanto, ser normalmente estéticos.
Pensemos na cultura de massa como um espaço de luta por hegemonia simbólica. Se
virmos as práticas discursivas e as identidades que transportam como ações sectárias,
isto não ocorre porque estas sejam feitas de diferença, mas porque vemos o diálogo
como competição. O fazemos porque nos formamos em um ambiente cultural peculiar,
que é o da modernidade: uma cultura a que chamamos de individualista” por ter como
pressuposto os indivíduos iguais entre si e de livre arbítrio.
Ao analisar o pensamento de Hobbes sobre a massa, Peter Sloterdijk chama atenção
para o colateral pessimista da idéia de absoluta igualdade: a natureza egoísta do
indivíduo. Do egoísmo como pressuposto evoluímos à competição como propósito único
de toda ação discursiva. Assim, o Homem do iluminismo não percebe que os objetos
imateriais da cultura (como identidades e subjetividades) o compõem, mas também o
atravessam, excedem, superam, dividem e unem a corpos materiais e imateriais. A
individualidade é uma política de sujeito que tenta agregar objetos imateriais em torno
de um objeto material (o corpo). Para fazê-lo lança mão de artifícios de identidade e
diferença.
Estendemo-nos mais que suficientemente na digressão filosófica proposta pelo texto. O
ponto verdadeiramente importante se revela na pergunta de Avtar Brah: “De que forma se
deve teorizar o vínculo entre a realidade social e a realidade psíquica?”.
111
110
O objeto cultural é um objeto imaterial; como as idéias que compõe a cultura. Mas a cultura se compõe
também de objetos materiais. A arqueologia e a medicina, por exemplo, estudam objetos materiais da cultura
(utensílios e corpos). O problema abordado por Hall se origina das incompatibilidades sentidas nas fronteiras
entre as disciplinas que estudam os objetos materiais da cultura (economia, medicina, arqueologia) e aquelas
que estudam seus objetos imateriais (antropologia, psicologia, sociologia, comunicação).
111
BRAH, Avtar. “Cartographies of diaspora, constesting identities”. London, Routledge, 1996.
134
d) Sujeito
As identidades são pontos de apego temporário a posições-de-sujeito que as práticas
discursivas constroem para nós e que nos aproximam do coletivo.
112
A subjetividade é
uma proposta do discurso, um chamamento. Quando o indivíduo (conceito agora
operando também sob rasura) atende a essa interpelação, dizemos que se deu o
processo de identificação. Esta última se na forma de um falso reconhecimento. O
problema da identidade agora passa pela relação entre os campos que mutuamente a
constituem: o campo psíquico e o campo social. Este é precisamente o problema
conceitual que Hall identifica na chamada teoria da interpelação, citando Heath:
“O indivíduo é identificado como sujeito para a formação
discursiva por meio de uma estrutura de falso
reconhecimento (o sujeito é, assim, apresentado como
sendo a fonte dos significados dos quais, na verdade, ele
é um efeito)”.
113
O falso reconhecimento é o mecanismo pelo qual uma subjetividade é confundida com
aquele que a encarna (como no exemplo do bebê na fase oral, de Freud, citado acima).
A conclusão que tal perspectiva precipita é de que determinado discurso produz
determinada subjetividade. Esta é a solução de Foucault, a que chamou de formação
discursiva. O problema da tese de Foucault é a falta do reconhecimento daquilo, seja o
que for, que é interpelado. O objeto que incorpora a subjetividade já deve estar e ser
capaz de reconhecer um chamamento. Teríamos que pressupor um sujeito
constituído, só que é paradoxal explicar a formação de algo a partir de sua preexistência.
112
Hall, Stuart. “A identidade cultural na pós-modernidade” Rio de Janeiro, LP&A. 2000.
113
Hall, Stuart. “Quem precisa da identidade?” In: “Identidade e diferença”. (Tomas Tadeu da
Silva, org.). Petrópolis, Vozes. 2000. pág. 114-15.
135
Hall explica o sujeito segundo Foucault, dividindo sua obra em três fases. Em um
primeiro momento Foucault ataca o que chama de o “grande mito da interioridade” e
radicaliza. Para ele o sujeito é um efeito-discurso, não tem existência própria. Resume-
se a posições-de-sujeito que se alternam. A partir desse pressuposto teórico, Foucault
se propõe fazer uma arqueologia de categorias do discurso: loucura, normalidade, saber,
sujeito, etc. O que ele não explica é porque um indivíduo ocupa certa posição de sujeito
em detrimento de outras ou, para nos dar um gosto do nosso objeto de estudo, por que
um indivíduo assiste um canal de TV em detrimento dos outros.
Na fase seguinte o termo arqueologia é substituído por genealogia, em respeito ao
caráter estritamente imaterial dos objetos que estuda. Inclui na discussão a variável
Poder e o discurso assume então uma forma regulada e reguladora. O discurso e,
portanto, as subjetividades e as identidades, são determinadas pelas relações de poder
no meio social ao mesmo tempo em que constituem tais relações. Foucault é radical
quando faz genealogia com a categoria de corpo e afirma que “nada no homem nem
mesmo seu corpo é suficientemente estável para servir de base para o
autoconhecimento ou para a compreensão de outros homens”.
114
É difícil abrir mão do
corpo como base para a cartografia das fronteiras do indivíduo. É ao indivíduo que as
relações sociais e as relações de poder se dirigem. Dessa forma, fica garantido um
referente mínimo ainda que reconhecidamente instável.
algo, fora da ordem da disciplina, que move os corpos; algo mais que pressiona esse
sistema. As posições-de-sujeito podem ser assumidas, mas também podem ser
rejeitadas, negociadas ou pervertidas. Foucault visa desvendar as práticas pelas quais o
indivíduo emerge reflexivo, crente de uma condição desejante. Passam a existir como
objetos de estudo as formas, práticas e modalidades que caracterizam a relação com o
114
FOUCAULT, M. “A Ordem do Discurso”, São Paulo: Loyola, 1995.
136
eu, a que Foucault chama “tecnologias do eu”. Estas seriam aquilo que constitui as
subjetividades e é aí que retorna a questão da identidade.
Os procedimentos para além da obediência ou adesão à regra, mas que ainda assim são
manifestações de subjetividade, se explicam por critérios éticos ou estéticos de
autoprodução simbólica. Se a dança de quadrilha das posições-de-sujeito não extingue o
eu transcendente ou a crença que temos nele, então é preciso saber como esse sujeito
se constitui. Não basta saber que ele assume posições-de-sujeito através de dinâmicas
discursivas.
Hall quer entender a articulação do sujeito com as formações discursivas, ou seja: das
representações de interioridade com as representações de exterioridade. Para tal recorre
à psicanálise, passo que Foucault não pode dar por divergência teórica. A principal
contribuição de Foucault para a problematização do sujeito é a idéia radical de que o
discurso produz os corpos que nomeia. Ao desenhar seu contorno, o sujeito cria a
diferenciação dentro/fora. O discurso controla porque funda o objeto a partir das
regras que o regem. Produz, funda, materializa, como efeito de poder do discurso e das
subjetividades que produz, não por intenção ou vontade singular. O discurso materializa-
se para reiterar-se, num processo similar ao jogo da profecia auto-realizada. O poder
produz os sujeitos que controla.
“Butler apresenta o convincente argumento de que todas
as identidades funcionam por meio da exclusão, por meio
da construção discursiva de um exterior constitutivo e da
produção de sujeitos fora do campo simbólico, do
representável”.
115
115
Hall, Stuart. “Quem precisa da identidade?” In: “Identidade e diferença”. (Tomas Tadeu da Silva, org.).
Petrópolis, Vozes. 2000.
137
É a partir deste comentário que a noção de desprezo, estudada por Sloterdijk, contribui
para entendermos como a massa compõe esse fundo exterior na representação da
sociedade. Como verso da moeda, singuralizado, surge o “negro” da cultura negra de
massas, identificando o acidente (mulher, negro, homossexual). As lutas travadas no
campo da cultura de massa têm esse duplo registro. A falta de identidade por um lado (a
massa) e o estigma da identidade por outro (o negro). O discurso racial, por exemplo,
funda determinados sujeitos raciais e regula sua capacidade de reproduzir-se como
discurso, tudo em uma mesma operação de formação discursiva. A identidade feminina,
por exemplo, é um sujeito que se afirma na exclusão de sua alteridade. Cria uma
unidade fictícia “produzida e constrangida pelas mesmas estruturas de poder por meio
das quais a emancipação é buscada”.
116
e) Política de identidade
Nossas últimas conclusões estabelecem um limite político para a identidade, que esta
jamais poderá se emancipar daquilo que a determina sem ao mesmo tempo
extinguir-se como tal. Por esse motivo, a tese do modo especular da identidade tem
profundas implicações políticas, já que precisamos ter em mente todo o tempo que as
identidades com as quais nos deparamos são um fluxo intersubjetivo, aberto, modular, e
que não logrará êxito nenhuma busca pelo seu fundamento natural, pois que são puro
artifício. Hall conclui esse ensaio sobre a identidade com o trecho que segue transcrito:
“Esse inconcluso e enredado argumento demonstra, sem
qualquer sombra de dúvida, que a questão e a teorização
da identidade é um tema de considerável importância
política, que poderá avançar quando tanto a
necessidade quanto a impossibilidade da identidade, bem
116
Idem.
138
como a suturação do psíquico e do discursivo em sua
constituição, forem plena e inequivocadamente
reconhecidos”.
Para explorarmos tais implicações políticas, procedemos à leitura de “O desprezo das
massas ensaio sobre as lutas culturais na sociedade moderna” de Peter Sloterdijk.
Neste, o autor aborda a história moderna da categoria de massa começando pelo projeto
moderno de desenvolver a massa como sujeito. Sem demora conclui: quem desenvolve
condescende e, portanto despreza. Ou isso ou a massa é exatamente aquilo que deve e
quer ser, pelo que é perfeita como tal. Entre educar e mimar o gênero humano em sua
natureza, pendulam os discursos da cultura e do mercado. “A modernidade é a arena de
um conflito, em princípio interminável, entre evolucionistas, que prometem esforços, e
sedutores, que doutrinam o fim do esforço”.
117
Quem pensa a massa ou quer desenvolvê-
la e ofendê-la ou quer adulá-la e seduzi-la.
O modelo da cultura quer duas coisas: educar e inovar. Representa o lado dos que
desejam melhorar o povo segundo seus valores. O modelo do mercado representa os
que desejam induzir o comportamento das massas (produzindo audiência) segundo seus
valores (lucro). O cenário de nossa dicotomia, olhado por esse ângulo não é alentador.
Estamos entre a demagogia e o totalitarismo.
A massa não é posição de sujeito porque é genérica demais. Um estereótipo que exige
muita tolerância cognitiva e que inclui e exclui todos ao mesmo tempo. A massa é a tela
em branco sobre a qual a sociedade pinta seu retrato político. Antes de ter qualquer
outra identidade, o homem é parte da massa. No entanto, quem nomeia a massa não se
identifica com ela, portanto a exclui e, assim, a despreza. Desprezo é o reconhecimento
117
Sloterdijk, Peter. “O desprezo das massas”. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. pág.38.
139
que é recusado. O que não se pode destacar toma parte do fundo massivo cujas
particularidades são desprezíveis.
Os Hegelianos dirão que o mundo moderno é uma arena de lutas generalizadas por
reconhecimento; a constante busca da legitimação identitária. O efeito é uma economia
simbólica rica em exclusão (combustível da identidade) e na qual o reconhecimento vale
tanto mais quanto menos for concedido. A identidade precisa desprezar para existir e a
luta generalizada é pelo reconhecimento de alguma identidade. O que Sloterdijk chama
de reconhecimento, equivale ao que Hall descreve como identificação: o momento em
que o chamamento a uma posição de sujeito é atendido. Se não é atendido é porque
não foi reconhecido (foi desprezado, como algo insuficientemente diferenciado para
merecer denominação) e, portanto, deve ser modelado.
Uma a uma, as coletividades (e seu projetos de identidade) embarcam na luta pela
dignidade e pelo direito de reproduzirem-se como discurso. Primeiro a burguesia, então
o trabalhador e, finalmente, as chamadas minorias.
f) Sujeição.
Hobbes concebe a massa súdita, homogeneamente submissa. Sujeitada ao chamado
dessa subjetividade específica que é a massa súdita. O lugar de sujeito, ao contrário do
que parece na interpretação do senso comum, não é lugar do livre-arbítrio, mas de
sujeição ao discurso. Se usarmos a macumba como metáfora, o sujeito é a entidade que
baixa no cavalo (como é chamado o incorporado). Vejamos a que posição-de-sujeito
está determinando o componente da massa.
O cidadão, em troca da paz pública, abre mão de suas aspirações à soberania ou à
transcendência. Torna-se sujeito (por identificação), mas não um sujeito transcendente
140
como o soberano, que Sloterdijk apelida de superego dos súditos. Para explicar porque a
massa se identifica com seu perseguidor, Hobbes parte do pressuposto que o homem
enquanto espécie possui variações de capacidade desprezíveis a priori. Por essa
igualdade natural, é absolutamente, irredutivelmente egoísta e sua cupidez é um impulso
que só encontra rival no medo, que por sua vez é produto do egoísmo inicial, com fins de
auto preservação.
Por tudo isso, o estado natural é, para Hobbes, a guerra perpétua de todos contra todos,
movidos pelo egoísmo e detidos pelo medo. Para erigir uma sociedade é preciso forjar
um medo maior que qualquer outro através da ameaça absoluta de um soberano.
118
“A
fonte mais efetiva da consciência de igualdade é a ameaça, igual para todos, feita por um
Estado potencialmente assassino de todos”.
119
É nesse momento que a idéia de um Estado que intervém no campo da cultura com
propósitos de reforçar uma identidade nacional pode ser entendida como a ascensão de
uma força potencialmente assassina de toda diferença. Explica-se e justifica-se a
preocupação em discutir bem direitinho toda e qualquer interferência do Estado na
cultura.
Vemos que o antropocentrismo funda uma ética utilitarista. Sloterdijk chama atenção
para a visão negativa que ela cria do homem. Se a tudo compreender é a tudo perdoar,
a tudo conhecer é a tudo desprezar. Eis o “selvagem aprisionado no interior de nosso
inconsciente político” de que fala Hall. O sujeito egoísta que vive em nós foi produzido
pela cultura em que vivemos, e junto com ele foram produzidas as estratégias de controle
que o mantém sociabilizado.
118
HOBBES, Thomas. “Leviatã ou matéria, Forma e poder de um Estado eclesiástico e civil”. São Paulo,
Editora Abril Cultural. 1984. (Coleção Os Pensadores).
119
Sloterdijk, Peter. “O desprezo das massas”. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. Pág.47.
141
Do interesse pela subjetividade uniforme do súdito surge diretamente o interesse por uma
base confiável de vilania generalizada. Hobbes faz a abolição teórica da nobreza e
fundamenta a idéia da igualdade psicológica criando, assim, uma humanidade
intermediária, fundada na aliança por interesse entre razão, medo e autoconservação.
Sloterdijk declara que “a sociedade moderna investe em normalidade e por essa razão
quer ver em toda parte pessoas em cujos motivos egoístas se pode confiar”.
120
g) Imaginação
A massa de Hobbes é chamada por Espinosa de vulgus (traduzida normalmente como
multidão). O vulgus orienta-se não pelo impulso egoísta”, mas também por impulsos
culturais, morais, imaginados. parecem estar as subjetividades e identidades como
sentido positivo. Importante: o vulgus não se move pela razão.
121
Espinosa não
desdobra a massa como sujeito. Para ele o esquema seria algo assim:
Sujeito = vulgus + imaginações.
“O sapiens apenas se trata de fazer justiça à característica essencial da multidão, a vida
em imaginações”. Mas, como seria possível o autogoverno dos muitos, baseado em
imaginações? pergunta Sloterdijk. Mesmo a mais abrangente pedagogia de massas
sempre somente poderia substituir aquelas imaginações pelas outras”.
122
120
Idem. Pág 52.
121
Espinosa, Baruch. “Os Pensadores: Espinosa”. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (3a edição). Inclui as
seguintes obras: “Pensamentos Metafísicos”, “Tratado da Correção do Intelecto”, “Ética”, “Tratado Político”,
“Correspondência”. Inclui também “Espinosa: Vida e Obra”, de Marilena de Souza Chauí (ensaio).
122
Sloterdijk, Peter. Op. Cit. pág.53.
142
Espinosa mostra que as pessoas não apenas podem ofender-se com o reconhecimento
recusado, mas também podem embaraçar-se com o reconhecimento concedido. O
desprezo é descrito por ele como o fracasso do objeto em conquistar reconhecimento.
Eis o destino da massa. é imaginada por aquilo que não lhe é característico. É
avaliada em sua generalidade, nunca em sua particularidade. Similar ao problema que
Marx isola no Capital.
Ato contínuo, a cultura de massa apresenta objetos saturados de vulgaridade porque
busca recursos que potencializem a abrangência de identificação. Baseia-se
principalmente na repetição, na captação de padrões no fluxo e no fomento de
tendências. Produz subjetividade em massa. Novamente a cultura parece produzir um
sujeito a partir dos instrumentos que o controlam.
h) Legitimidade
Percebe-se no teorema da transformação de impotência em mérito de Nietzsche, a
confirmação na necessária revisão ética da categoria de sujeito. Neste, Nietzsche critica
a moral que condena o forte, a priori em favor do fraco. Segundo ele, o ressentido tenta
transformar a impotência (a que está sujeito) em mérito, através do mito de que é autor
de sua identidade. É o que ele chama de moral escrava. Poderíamos dizer que
transforma subjetividade em legitimação de uma identidade.
123
Como última grande contribuição para a compreensão do desprezível, surge Martin
Heidegger, que afirma: “A substância do homem não é o espírito, mas a existência”.
Segundo o filósofo, o impessoal é o domínio dos outros. Naquilo em que não se possa
caracterizar o si mesmo, vive o outro impessoal. O Man (equivalente de Heidegger para
o vulgus de Espinosa) é o conceito que opera neste sujeito lacunar onde não uma
123
Nietzsche, Friedrich Wilhelm. “Genealogia da Moral”, São Paulo, Companhia da Letras, 1998.
143
identidade reconhecida como própria dele. “Estamos mesmo a tal ponto infiltrados pelos
outros, de sua parte minados, que sob nenhuma circunstância estamos em condições
de ir ao encontro de nossa ‘própria’ existência”.
124
Estes dois problemas, um proposto por Nietzsche e outro por Heidegger, estão ainda
longe de esgotar as questões relativas a como se distribui o poder legitimador na cultura
de massa, mas mostram claramente que, primeiro, esta não pode advir da mera
afirmação da posição de sujeito e, segundo, que não pode ser reconhecida ou rejeitada
por critérios de integralidade ou preservação.
i) Hegemonia
Vamos agora nos concentrar no texto “O que é esse ‘negro’ na cultura negra de massa?”
de Stuart Hall, naquilo que ele é capaz de demonstrar acerca do que viemos abordando.
Hall pede que levemos algumas circunstâncias históricas em consideração: a perda
Européia do monopólio sobre o poder legitimador na cultura e, com isso a crise da
chamada alta cultura, é uma dessas circunstâncias. “A distinção entre erudito e popular é
precisamente o que o pós-moderno global está deslocando”, afirma Hall.
125
Outra é uma “mudança hegemônica na definição de cultura” na passagem da Alta Cultura
para o Mercado Cultural. Isto corresponde à ascensão dos EUA como potência mundial.
Surge daí uma relação ambígua de coexistência entre a alta cultura e a cultura de massa.
Essa ambigüidade se refere às posições de desprezo condescendente da alta cultura
versus a adulação sedutora da cultura de massa. É notável por si que, na língua
inglesa não existam expressões distintas para a cultura popular e a cultura de massa.
124
Heidegger, Martin. “Os pensadores: Martin Heidegger”. São Paulo, Abril Cultural, 1973.
125
Hall, Stuart. “O que é esse ‘negro’ na cultura negra de massa?” in: “Pensando a Diáspora: etnia, mídia,
cultura”. (Liv Sovik, org. e apres.). Belo Horizonte: Editora UFMG. 2003.
144
Sob o signo único da popular culture estão abrigados produtos culturais produzidos em
dinâmicas sociais muito diversas. Já isso deve querer dizer algo.
Considere-se também a descolonização do Terceiro Mundo e “a emergência das
sensibilidades descolonizadas” que sugere um tipo de retorno do recalcado. Hall que
a etnicidade re-emerge em uma “cultura rumo ao popular”. A partir de tais peças pode
surgir a oportunidade de se ganhar espaços não para contestação, mas também para
uma “intervenção no campo da cultura de massa”, ou seja, uma brecha pela qual a
experiência possa se reproduzir como discurso.
A fascinação do pós-modernismo pelas diferenças, no entanto, pode produzir armadilhas
como a postura Benetton: uma “diferença que não faz diferença alguma”, o fetiche pela
diferença. A cultura pós moderna é um ambiente em que se tem dominantemente uma
relação de alinhamento com a norma e, por outro lado, de fetiche pela diferença.
Aquilo que chamamos de cultura ocidental se construiu a partir de influências que, em
algum momento eram exteriores à identidade ocidental. Na versão global dessa cultura,
em um ambiente de aceleração tecnológica e superabundância de informação os
grandes conflitos (como os conflitos de classe) se pulverizaram em miríades de micro-
conflitos. O poder legitimador se fragmentou. “As lutas em torno da diferença” ganharam
apelo e visibilidade. O espaço criativo da marginalidade é tão produtivo quanto a cultura
de massa industrial. A marginalidade não é só um espaço de contestação, mas também
de intervenção no senso comum. A forma da luta é a produção de estereótipos
identitários lançados pela comunicação no ambiente da cultura de massa. A produção e
circulação de interpelações.
145
O movimento artístico conhecido como Cinema Novo surge e se afirma no rastro dessa
mudança no ambiente cultural. E o faz num momento eufórico: os incríveis anos 60.
Filho pródigo da arte romântica em seu casamento com a ideologia marxista, que o
cinema novo trouxe do neo-realismo italiano, esse movimento teve um símbolo
personalista: Glauber Rocha. O cineasta e o movimento são talvez o exemplo mais
acabado da anti-mercadoria. Não pela motivação socialista, mas por uma
característica que só poderia surgir no Brasil: a estética da fome. Como forma, o cinema-
novo contraria a noção de qualidade técnica. Desobedece as mais enraizadas regras de
decupagem, montagem, continuidade e sonorização. É tão defeituoso do ponto de vista
da qualidade industrial do audiovisual que o defeito torna-se efeito. ali um
questionamento não da forma do filme, mas da técnica de produção e dos padrões de
orçamento. Como resultado, o cinema novo aparece como um discurso emblemático,
retrato de uma certa identidade marginal criada e mediada por ele. Esse movimento,
como diversos outros, nasce da circunstância vital daquele tempo e lugar. Naquele
momento, essa mistura de vanguarda artística, comunismo e miséria exótica excitava o
paladar das elites Européias que consumiram o cinema novo e a tropicália com avidez.
Nesse ambiente convém evitar o movimento pendular entre as duas grandes contra-
narrativas: vitória total ou total cooptação de uma determinada identidade cultural
minoritária face à hegemonia da cultura dominante. Nenhuma das duas hipóteses é
possível por todos os motivos que vimos anteriormente. Como sabemos que os sujeitos
existem em função das ferramentas de controle que os regem, a diferença tem então um
espaço limitado e controlado para aparecer, geralmente como objeto de consumo.
Espetacularizada é a condição de sua forma como mercadoria cultural. “Eu sei que o que
substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e
segregada. Mas simplesmente menosprezá-la chamando de ‘o mesmo’ não adianta”,
argumenta Hall. Faminto de diferença, no entanto, o chamado pós-moderno global vai se
146
contaminando e deslocando o centro de sua própria identidade. Como reação vêm o
radicalismo e o fundamentalismo de todos os lados. Uma súbita gana de afirmar
identidades seja como hegemônicas ou de resistência.
Ao afirmar que é necessário desconstruir o popular de uma vez por todas, pois não
como retornar a uma visão ingênua do que ele consiste, Hall admite que o importante é
entender o ordenamento das diferentes morais estéticas, das estéticas sociais. “É
sobre o senso comum que a hegemonia cultural é produzida, perdida e se torna objeto de
lutas”. Isto ocorre por causa da natureza especular da subjetividade de que falamos a
pouco. A identidade cultural brasileira é produzida e reformulada na cultura e na forma
discursiva sem relação essencial com alguma experiência particular ou tradição. Sua
função é política.
A cultura é sobredeterminada não pela sua herança, mas também pelas vicissitudes
do ambiente social no qual sobrevive. Por isso Hall afirma que não existem formas puras
na cultura negra do ponto de vista etnográfico. É como o reggae do Maranhão. O
Reggae é uma expressão artística de origem jamaicana, mas o maranhense não está
condenado ao maxixe e por cultivar o reggae o torna objeto de culto local. Então, que
não se ouça a música popular negra como uma manifestação “de raiz”, mas como um
produto híbrido e político, uma ação de política estética, como o cinema novo. Apesar
de estratégico, o essencialismo de identidade (uso da tradição como marco de
identidade) cria a falsa oposição entre a tradição deles” e a “nossa”. Essa é uma
demarcação política que visa abrir espaço à circulação de um discurso. De certa forma
algo parecido com as ações de marketing que garantem a audiência das mercadorias
audiovisuais.
“Tendemos a privilegiar a experiência enquanto tal como
se a vida fosse uma experiência fora da representação.
147
(...) É somente pelo modo no qual representamos e
imaginamos a nós mesmos que chegamos a saber como
nos constituímos e quem somos”.
126
Concluímos que a identidade nacional, como a identidade negra em suas múltiplas
facetas, é dialógica e esem aberto. Esta lição, vale para o debate de qualquer política
cultural e mostra que estamos em constante negociação com o mundo que nos cerca. E
o mais fascinante: nessa negociação o que é posto em jogo consiste naquilo mesmo de
que somos feitos, nossas identidades, nossas subjetividade. Nós.
Tudo o que o mercado deseja é evitar essa discussão. Se o objeto cultural se torna
mercadoria passa a ser entendido exclusivamente por suas propriedades de lazer,
entretenimento ou diversão. A única exceção é o produto audiovisual educacional, no
qual o mercado trafega com facilidade.
O consumo de audiovisuais é definido pela economia como o tempo dedicado à
contemplação dos produtos. Se o audiovisual supre a necessidade de lazer, seu
consumo não se diferencia de qualquer outro em que o indivíduo investe tempo e outros
recursos necessários para se apropriar do benefício oferecido de forma privada. A
princípio, o consumo de produtos audiovisuais está condicionado às preferências
individuais dos indivíduos. Não se justifica, portanto, qualquer intervenção ou restrição
governamental a essas decisões. “Essa concepção economicista, individualista e
cosmopolita está na base da visão norte-americana do cinema como entretenimento”.
127
Nos EUA, o modelo de mercado é hegemonicamente dominante no que se refere ao
meio audiovisual. O modelo culturalista tem sua força concentrada na Europa,
126
Idem.
127
Walsh, M. "Fighting the American Invasion with Cricket, Roses, and Marmalade for Breakfast." The
Velvet Light Trap (Numer 40, Outono, 1997). Págs. 3-15.
148
especialmente na França, e de se difundiu para outros países também na América
Latina. No Brasil, um equilíbrio frágil e sempre provisório entre os dois discursos.
Análoga a esta constatação está a dominância de diferentes correntes teóricas da
comunicação. Enquanto o modelo europeu combina diferentes correntes de pensamento
das humanidades, do estruturalismo aos estudos culturais, nos EUA, o estudo da
comunicação é dominado pela pesquisa de opinião pública. Os acadêmicos norte-
americanos passam grande parte de seu tempo envoltos em pilhas de questionários e
planilhas de dados. Isso não quer dizer que as escolas européias tenham um viés mais
ideológico que as americanas. Por trás do pragmatismo cientificista da escola americana
está, sim, uma corrente política definida.
A ideologia capitalista dominante nos EUA estabelece como fundamento para a atividade
audiovisual a máxima: "moviemaking is show business: no business, no show".
128
Sendo
os EUA os maiores agentes econômicos, determinando a realidade dos fluxos materiais
no mapa geopolítico do planeta, os reflexos dessa concepção se fazem sentir no mundo
todo.
129
A concepção européia, de certa forma uma reação à dominância norte-americana, define
o audiovisual, particularmente o cinema, como atividade essencialmente cultural. Essa
corrente fundamenta as políticas cinematográficas em países como Canadá, Austrália e
Brasil. Os países que tem uma política de contraponto à concepção mercadológica do
audiovisual o fazem quase que exclusivamente em relação à produção de ficção e
documentários concebidos para exibição nas salas de cinema. A Televisão entra
como investidor ou exibidor compulsório dessa produção não-mercadológica sustentada
pelo Estado.
128
Martin, R. "The French Film Industry: A Crisis of Art and Commerce." Columbia Journal of World
Business, 1995.
129
Duarte, L. e Cavusgil, S. "Internationalization of the Video Industry: Unresolved Policy and Regulatory
Issues." Columbia Journal of World Business, 1996.
149
Segundo a visão culturalista, o tempo consumido em audiovisuais tem características de
acesso aos bens públicos, ao contrário da visão individualista da escola norte-americana.
Ocorre o rebatimento da clássica dicotomia entre o individualismo característico das
ideologias políticas de direita e o coletivismo que marca as concepções de esquerda.
Segundo o modelo socialista, o produto audiovisual, enquanto formador, informador, e
deformador de mentalidades, é um elemento estratégico de interesse social, podendo
produzir tanto cidadania e consciência social como alienação e desenraizamento cultural.
Do ponto de vista da ciência econômica, o produto audiovisual tem características de
um bem público pelas externalidades positivas que implicam seu consumo, ou seja, sé há
benefícios para a sociedade no consumo de determinado tipo de audiovisual tipicamente
cultural (independente do método pelo qual seria identificado), esses benefícios não
podem ser apropriados pelo espectador individual e, por isso, não incrementam o preço
que ele se dispõe a pagar. De forma geral, as políticas nacionais de subsídio ao setor
audiovisual consistem na cobertura, por parte do Estado, dessa diferença entre preço de
mercado e custo de oferta. Em alguns casos esse custo pode atingir níveis tão altos que
o subsídio é colocado em questão até mesmo do ponto de visto de política cultural.
Em maio de 2005, a Ancine (Agência Nacional de Cinema), ligada à Casa Civil da
Presidência da República, divulgou um relatório comparando os valores investidos pelo
Estado em 207 produções cinematográficas de ficção entre 1995 e 2000 com o blico e
a renda obtidos por esses filmes. O déficit de renda gerado é tão alto que, em muitos
casos, o custo por cada espectador supera em mais de mil vezes o preço médio do
ingresso. Por exemplo, a Nova Era Produções de Arte, que realizou o filme Lara, de Ana
Maria Magalhães captou por meio das leis de incentivo 3,9 milhões de reais para esse
projeto. Tendo sido assistido por dois mil espectadores e obtido uma renda de 14 mil
reais, “Lara” teve um custo por ingresso de 1,7 mil. Isso significa que o Estado pagou mil
150
e setecentos reais por cada espectador do filme. O problema aí, do ponto de vista de
política industrial, é o alto investimento na produção em contraste com investimento
nenhum na promoção e distribuição. Do ponto de vista cultural, é impossível calcular a
relação custo-benefício que seria satisfatória. Quando vale, em termos de investimento
em cultura, cada exibição individual comparada a outros possíveis investimentos?
Essa, que em economia é chamada de “externalidade positiva”, é um benefício externo à
transação de mercado que ocorre em sua decorrência. “As decisões do consumidor
individual não garantem a igualdade entre custos e benefícios sociais do consumo”. A
maioria das políticas culturais se fundamenta no pressuposto de que isso é “uma falha do
mercado enquanto mecanismo de alocação que justificaria a intervenção do governo para
estimular o consumo desses bens”.
130
Ora, a posição norte-americana não poderia ser diferente. Essas externalidades
positivas ou já estão resolvidas na precificação a mercado ou não chegam a entrar em
questão. De toda forma, a política cultural de outros países será entendida pelos Estados
Unidos como mecanismo protecionista de mercado. Uma reação à competitividade do
produto audiovisual americano. O produto cujo consumo se pretende estimular é o
produto nacional (cultural) posto em contraposição ao produto americano (comercial).
uma ordem dicotômica que tem natureza epistemológica assume propriedades
geopolíticas.
“Outra hipótese amplamente aceita é que o efeito de um filme ou
qualquer outro produto audiovisual sobre capacidade decisão do
espectador é maior quando o mesmo contém e transmite mais e
melhores informações sobre sua realidade imediata. O produto
audiovisual que suscita e possibilita ao espectador refletir sobre sua
própria realidade e identidade seria mais eficaz e efetivo para ampliar
130
Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura. “Economia da cultura” Brasília,
SDA/MINC : 1998.
151
sua capacidade de decisão e, portanto, traria maiores benefícios para
o espectador e para a sociedade”.
131
O valor estratégico da cultura residiria em seu papel no condicionamento das decisões
individuais. Se aquilo que se deseja é fomentar conteúdos identificados com
determinada concepção de identidade nacional, então a política cultural é uma ação de
promoção da categoria de Nação, e pouco mais que isso. Ou seja, o critério balizador da
política cultural é a aferição de sua utilidade na construção de uma massa pronta a tomar
decisões patrióticas.
“Da perspectiva política, o audiovisual cujo objeto ou temática é a
nação ou país do espectador ocupa posição privilegiada, pois é de se
esperar que contribua para a formação de uma identidade nacional e,
consequentemente, para reduzir os custos sociais das decisões
coletivas”.
132
Conforme vimos, isso pode ser perfeitamente interpretado como uma organização social
na qual uma classe produtora, escolhida pelo Estado, se ocupada de instruir uma classe
consumidora, “corrigindo” o rumo do seu senso estético no sentido de produzir uma
subjetividade nacionalista. O “custo social” das decisões coletivas, tem um sentido
peculiar, em que subjetividades importadas causariam prejuízos sociais. Esse arcabouço
teórico conduz, ainda que intuitivamente, as políticas de cultura. Advém desse cenário a
necessidade da produção doméstica de filmes. Os temas nacionais devem ser
preferencialmente abordados por autores nacionais, dotados assim de brasilidade.
“Implícita ou explicitamente, a caracterização do consumo de
produtos audiovisuais como uma atividade cultural nos moldes acima
é o rationale básico das políticas de incentivos tanto ao consumo
como à produção doméstica de filmes e audiovisuais postas em
prática pela grande maioria dos governos nacionais e inclusive
locais. De fato, o protecionismo, nas mais diversas formas, tem sido
a tônica das políticas cinematográficas de países tão diversos como
França, Brasil e Canadá”.
133
131
Idem.
132
Ibidem.
133
Ibidem.
152
algo que precisa ser posto em evidência. O benefício social gerado pelo bem coletivo
imanente ao audiovisual acontece no ato de consumo, não no de produção. O bem
cultural, segundo essa concepção (e contrariando Oscar Wilde), não se produz durante o
processo criativo do autor, mas na experiência da obra obtida pelo expectador. A obra
audiovisual se torna um bem cultural exclusivamente quando é assistida.
Desse ponto de vista, o incentivo ao meio deve focar-se no consumo e não a produção.
Isso talvez evitasse constrangimentos como o desempenho de “Lara” em custo-benefício
seja social ou financeiro. Isso prova que audiência deveria ser (mas não é) uma
preocupação básica das políticas nacionais de cultura. Se o que os Estados nacionais
desejam é aculturar suas populações segundo uma identidade cidadã, seria mais eficaz
investir na formação de demanda e não de oferta.
Ao avaliar políticas públicas de cultura voltadas ao incentivo da atividade audiovisual, o
alcance do produto é uma dimensão a destacar. A produção existe para alimentar o
consumo. O mero de títulos nacionais produzidos importa menos que o número de
espectadores ou horas de consumo por parte da população. “Essa deve ser a dimensão
utilizada na avaliação da eficácia ou benefício dos incentivos, ou seja, o numerador da
relação benefício/custo”.
134
Os economistas do ministério da cultura sugerem que o
Estado pesquise seu mercado:
“Outro corolário é a necessidade de se conhecer os determinantes
da demanda por produtos audiovisuais. Ou seja, dos fatores que
determinam o número de espectadores e o tempo que eles dedicam
ao consumo de audiovisual; como se faz a escolha entre os
audiovisuais nacionais e estrangeiros; qual a sensibilidade dessas
escolhas a fatores como preços e outras características dos
produtos, bem como aos condicionantes sócio-econômicos e
134
Anderson, C. Swimmer, G. et al. "An Empirical Analysis of Viewer Demand for U.S. Programming and
the Effect of Canadian Broadcasting Regulations." Journal of Policy Analysis and Management #16, 1997.
153
culturais dos consumidores, são alguns dos aspectos que devemos
conhecer para avaliar as possibilidades das políticas setoriais”.
135
Fica aí indicada a tensão provocada pelo poder educacional do audiovisual. A disputa,
ocorrida entre elites nacionais e estrangeiras ligadas ao capital de mercado ou aos
poderes de Estado, pelo poder de educar populações. E, transversalmente, a demanda
irrefreável da criatividade humana, reivindicando o direito à inovação cultural, mola mestra
de todo o sistema da comunicação. Diferença e repetição.
135
SDA/MINC. Op. Cit.
154
1.2.1. O eixo da inovação:
Surgiu um novo mito: o da economia da informação. Ele chega como um desafio à
economia baseada na produção de mercadorias, ou seja, coloca as questões levantadas
por Marx no centro da mesa. Principalmente a questão da dimensão social, singular e
qualitativa do trabalho. Isso nos leva a querer estudar mais a fundo como funciona o
trabalho intelectual, como se produzem as inovações, que impacto elas têm sobre a
cultura (levantando então a questão da distinção entre cultura material e imaterial), e que
forma de distribuição de riqueza está aí implícita. As respostas apontam para um sistema
de produção e troca simbólica cuja inteligência e ação inovadora é intersubjetiva e social.
As idéias e o conhecimento têm autores indeterminados e são produzidos e reproduzidos
durante os processos de comunicação significando que a capacidade criativa não
pertence a nenhum indivíduo, mas é fruto de uma relação ética e política, pessoal e
social.
O que percebemos é que tanto o modelo do mercado quanto o da cultura estão
orientados segundo uma lógica perfeitamente darwinista. A concepção darwinista explica
cultura e mercado em termos de escassez, competição, seleção e adaptação. Adaptação
é um diferencial que potencializa a seleção, num ambiente de competição, devido à
escassez. Para ilustrar essa a concepção do que seja a cultura e a forma como se
transforma, lancemos mão, com fins metafóricos, da teoria dos Memes, proposta por
Richard Dawkins num livro chamado “O gene egoísta”. Basicamente, é um ensaio numa
área interdisciplinar entre a antropologia cultural, a psicologia e a filosofia da mente. O
curioso é que ele é escrito por um biólogo evolucionista que decide procurar o genoma da
cultura por métodos análogos, exceto experimentos em laboratório.
136
136
DAWKINS, Richard. “O gene egoísta”. São Paulo, EDUSP, 1989.
155
O gene egoísta tem importância por propor formalmente que “a seleção natural acontece
não segundo o interesse das espécies envolvidas, nem dos grupos, ou ainda dos
indivíduos, mas, simplesmente, segundo o interesse dos genes”.
137
aí, implica em
uma mudança na micro-política da espécie e até do indivíduo.
Daniel Dennett propõe a existência universal de um algoritmo evolucionista: onde houver
variação, transmissão da variação e seleção, haverá evolução. Isso significa que se
pode projetar adaptação fora do caos sem o auxílio da mente (ou intelecto).
138
Assim, o
mesmo modelo analítico usado para representar o fluxo histórico de caracteres físicos
dos vivos, poderia ser usado para representar a história natural dos signos e das
linguagens. O perigo na idéia de Darwin é que dispensa o projeto. A vida não é a
realização de um projeto. As mudanças ocorrem por acaso ou necessidade. Não há uma
inteligência por trás da mudança. Não há, portanto, uma competência criativa individual.
Estaria descartada a possibilidade do artista inspirado.
Dawkins pergunta-se se existem outros replicadores, como os genes, fora da cadeia
biológica. O sistema imunológico consiste num exemplo. Um replicador é uma unidade
de imitação. No ambiente cultural o equivalente ao gene seria o meme. Derivado do
grego antigo significa aquilo que é imitado, e que na dissertação de mestrado é chamei
de Estereótipo. Como exemplos, Dawkins lembra das melodias chiclete-de-orelha,
provérbios populares ou receitas.
139
137
Blackmore, Susan. "A evolução das máquinas de memes”. Translated from The Evolution of Meme
Machines Paper presented at the International Congress on Ontopsychology and Memetics, Milan, May 18-
21 2002. This translation is provided by the International Ontopsychology Association and was published in
the Portuguese edition of their magazine. http://www.susanblackmore.co.uk/Conferences/OntopsychPort.htm
138
Dennett, Daniel Clement. “A perigosa idéia de Darwin: a evolução e os significados da vida”. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998. (Capítulo 2)
139
DAWKINS, Richard. Op. Cit. 1989.
156
As idéias e representações podem ser decompostas, recompostas e finalmente (no ato
comunicativo) reproduzidas. Na dinâmica desse fluxo idéias são selecionadas ao
produzirem ou não um consenso em torno delas, ou seja, ocorrem dinâmicas dominantes
nas idéias. Caberia aqui o exercício metalingüístico de perguntar por que Darwin é um
produto cultural dominante. Mas, por hora, vamos pular esse paradoxo e seguir adiante.
Retornamos aqui ao tema da dissertação de mestrado: o estereótipo.
140
Assim como o
meme (versão mental do gene), o estereótipo é uma figura que ilustra a idéia de uma
substância genérica de composição da cultura, como tijolos de construção. Podem ser
complexos como proteínas ou simples como moléculas de água. Assim como a água se
compõe de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, pode-se dizer que certo filme
tem duas pitadas de romance e uma de humor. Romance e humor, como oxigênio e
hidrogênio, uniram-se de forma estável por afinidade e contato, criando um equilíbrio
provisório. Até que um acontecimento os lançará na direção de outras afinidades e
outros contatos.
“Certa vez perguntaram a um compositor popular americano de onde
ele tirava inspiração para tamanha riqueza de produção, e ele
respondeu que sempre ouvia com muita atenção, dois ou três
músicos eruditos. É verdade que os diluidores da arte alimentam a
indústria do entretenimento, mas sua tarefa seria impossível se não
tivessem algo a diluir, seja de criação própria ou alheia. Além disso,
existem os bons e os maus entretenimentos. Existem, por exemplo,
os filmes que esquecemos quinze minutos depois de vistos. Aliás, as
TVs a cabo estão cheias de coisas desse tipo. E existem também as
peças que provocam tédio, as músicas de elevador, etc. Mas seria
possível o bom entretenimento sem nenhuma gota de arte?”.
141
140
Mattos, Daniel. “Narrativa e Eficácia: O Estereótipo na Cultura”. ECO-UFRJ, aprovada em fevereiro de
2000.
141
Wefort, Francisco C. “Cultura, Cinema e Indústria” em Cardoso, Fernando Henrique, et al. “Cinema
Brasileiro. Serie Cadernos do Nosso Tempo, Nova Serie, 4”. Rio de Janeiro, Fundo Nacional de Arte e
Cultura, 2001.
157
O então ministro da cultura Gilberto Gil, artista tropicalista de esquerda formado na
contra-cultura sessentista, reproduz esse modelo ao falar do gênero artístico em que
atua: "Uma canção inteira tem um desenho completo, outra coisa são fragmentos que
são utilizados como tijolos nas construções de novas configurações estéticas".
142
Nessa
passagem, Gil falava sobre a necessidade de flexibilização dos direitos autorais usando
como exemplo a técnica de sampling (edição e reprodução de pequenos trechos de
músicas usados como elementos em novas músicas).
Signos, idéias, memes... São de toda ordem e recobrem todo os tipos de conteúdos
mentais: imagens, sons, sistemas de interpretação, etc. O que determina a
preponderância de determinado padrão? Essa é uma pergunta importante. As respostas
variam ao longo do tempo, como vimos na dissertação. Para os gregos platônicos, a
verdade tende a se estabelecer a partir de sua imutabilidade. Para os homens de hoje,
descendentes do empirismo, pode vir de seu grau de eficácia em tornar o comportamento
da matéria previsível. Para ambos, importa a potência de produzir performances
lingüísticas e religar sujeito e objeto.
Se o produto cultural imaterial é produzido socialmente e tudo o que existe em nossas
mentes é produto cultural imaterial então a subjetividade é produzida socialmente com
tudo que a compõe. Exemplo: as noções de realidade, identidade, individualidade são
produtos sociais. Produtos de ações comunicativas. O real (um nome para mundo social)
é produto da ação comunicativa.
Devemos atentar para a compatibilidade na concepção de cultura defendida pelos
Estudos Culturais, e aquela descrita pelos cartesianos Daniel Dennett e Richard Dawkins.
142
Gilberto Gil, citado por: Alvarenga, Darlan. “Gilberto Gil defende nova legislação de propriedade
intelectual e circulação de bens culturais” São Paulo, www.ig.com.br, 07/03/2005.
158
Parece estratégico, na atualidade, esse esvaziamento do arbítrio individual e do sentido
da identidade em favor daquilo em que podem ser analisados.
O que faz um meme funcionar é o fato dele embutir sempre uma promessa ou ameaça
que significam, em suma: “copia-me”. O meme é a imagem mais particularizada da
repetição no universo cultural. Meme é educação. O acidente em sua reprodução
produzido pelas incertezas e complexidades do ambiente proporciona a inovação.
O desejo do meme de se replicar também justifica a crise da indústria da comunicação
diante da popularização dos meios de reprodução. A pirataria e o compartilhamento são
estratégias que dão aos sons e imagens exatamente o que querem: corações e mentes a
colonizar. Enfim, produz audiência sem produzir lucro. Conforme dissemos
anteriormente, a digitalização radical do meio democratiza a produção e o consumo num
movimento do topo para centro-topo da pirâmide social e provê maior alcance e poder ao
conteúdo sem incrementar substancialmente a possibilidade de seu controle privado.
Vamos agora testar o poder retroativo dessa teoria. Os primeiros equivalentes aos livros,
as lajotas de barro da civilização Mesopotâmia, trazem tanto a epopéia de Gilgamesh, a
primeira odisséia heróica de que se tem registro, até miríades de recibos e notas cuja
função está associada às trocas materiais daqueles povos. Temos presente, num
meio de comunicação pioneiro, tanto a regulação das trocas de valores quanto o culto à
narrativa que nos atrai atenção neste trabalho.
O texto tem a função de estabilizar o sentido, aproximar as interpretações sobre o objeto
e registrar esse entendimento com vista à reprodução desse sentido. Lembro do conto
de Garcia Marques em que é preciso anexar às coisas o registro escrito de seu nome.
159
Muito pouco se especulou até hoje sobre a função, o impacto cultural ou os processos de
trabalho social envolvidos na produção do Gilgamesh.
Na escrita ideográfica egípcia, um pictograma que consiste do jarro d’água e da
paleta, prováveis instrumentos de trabalho dos escribas e, dessa forma, os representa e
ao ato de escrever. O instrumento, ou seja, a cultura material denomina o sujeito. Os
instrumentos que materializam a produção de sentido personificam o conhecimento e o
ato de comunicação. Como, em diferentes momentos, a imprensa, o rádio, a televisão,
receberam toda a carga da dinâmica de trocas culturais do tempo em que surgiram e
como agora, quando a internet pictografa uma ordem social que está sendo construída
nos múltiplos atos de comunicação usados por todos em toda parte.
A todo momento surgem evidências de que as formas de representação se originam do
valor de uso de seus suportes e se desenvolvem nas possibilidades e limitações desses
mesmos suportes. Por volta de 600 a.C. o Rei Josias mandou que se lesse em público o
“Livro da Lei”. O livro registra as regras de conduta e dessa forma as torna estáveis. O
pergaminho substituiu o papiro por sua maior resistência e durabilidade. Suas
características como objeto material e tecnológico determinaram a migração para o
formato atual do livro: páginas empilhadas e amarradas em um dos lados. Os chineses
escreviam sobre tiras de bambu e até hoje, em seus livros ou em suas telas de
computador os textos se apresentam em colunas. A corrente do determinismo
tecnológico verá nesse fluxo de evidências algo mais que um equivalente da substituição
da lata de aço pela de alumínio. Se o meio é a mensagem, a cultura do século XXI
parece determinada (em ambos os sentidos da palavra) em tornar-se uma sombra da
infraestrutura de telecomunicações e informática global. A inovação comunicacional não
tem apenas impacto quantitativo, mas altera qualitativamente as relações sociais. Todo o
processo de inovação material também parte de uma inovação simbólica, surgida
160
arbitrariamente em algum processo de interpretação. Quem é o sujeito dessa inovação?
Como ela se dá? O que a determina? Qual o seu impacto sobre a cultura e a
sociedade? Em que atividades humanas ela ocorre? São apenas algumas das muitas
perguntas que daí surgem.
O tipo móvel, inovação que corresponde ao coração do que é a imprensa e a
comunicação social, definiu uma série de coisas comentadas por diversos autores.
Determinou uma tipologia mais homogênea, por exemplo, e a divisão em linhas, páginas,
capítulos. Especula-se que tais caracteres produzam os mais variados e controvertidos
efeitos sobre o comportamento humano. quem defenda que o produto audiovisual é
capaz de induzir alguém ao crime. O problema precisamente é que nunca se pode
explicar exatamente como isso ocorre, salvo na interpretação do caso particular. Isto
porque é muito mais simples captar padrões no fluxo de informação sobre a circulação de
coisas do que fazer o mesmo no fluxo caótico da informação livre e circulante que
caracteriza o corpo etéreo da cultura.
Quanto vale a idéia de tirar uma azeitona de cada prato servido por uma companhia
aérea? A resposta vem da simples comparação dos custos dessas mesmas refeições
antes e depois da implementação desta inovação. Quanto vale um quadro? Agora fica
mais difícil responder. Deixamos então que o mercado (esse ser transcendente) decida.
Mas o mercado resolve o problema do valor de troca do quadro enquanto mercadoria.
Mas não resolve o problema fundamental.
A base de todo valor agregado é o trabalho. O trabalho é replicação da técnica. Toda
técnica nasce como inovação. A inovação se no trabalho de interpretação simbólica
161
(de decomposição e recomposição de signos circulantes). A inovação surge na
reprodução imperfeita da técnica no ato do trabalho.
Uma empresa como a Rede Globo de Televisão, cujo produto é a atenção à mercadoria
cultural, precisa da inovação tanto no processo produtivo quanto no produto propriamente
dito. Para resolver o primeiro problema o trabalho intelectual criou um complexo de
estúdios cujo mérito está em seu sistema logístico. Diariamente centenas de cenários
são montados, iluminados, gravados e depois desmontados para serem novamente
utilizados quando necessários. Esta complexa logística é viável graças à administração
de informação. Todo o parque de luz, pendurado no teto do estúdio, é gerenciado por
software. O iluminador cria meia dúzia de settings de luz para um determinado cenário
que podem estar prontos para uso com o clique de um mouse. Com isso a empresa
multiplica a capacidade de produção de seus estúdios. Estas são inovações tipicamente
industriais que agregam necessariamente valor à mercadoria audiovisual. E para
resolver o segundo problema? Pois é, parece que ainda não inventaram tal matemática.
Como medir o valor de uma idéia que não tomará forma material (seja forma de mais
matéria ou menos matéria)? Como medir a eficiência, a qualidade ou o potencial de um
produto puramente simbólico? Essa pergunta tem muito a ver com aquela feita pelo
preservacionismo ambiental: quanto vale um floresta preservada? Enquanto essa
pergunta não for respondida, as áreas selvagens da Terra continuarão a ser destruídas.
Fala-se muito que estamos na era da informação porque o setor da economia que leva
esse nome cresce muito. Então partimos para ver o que foi contabilizado: redes,
equipamentos, computadores, satélites... Tudo financiado pelo mercado publicitário.
Publicidade de mercadorias da indústria manufatureira. Os meios não se integram. Vale
lembrar que a publicidade foi a solução para que se pudesse financiar de alguma forma a
circulação de mercadoria cultural. Se não estiver atrelada a algum produto manufaturado
162
(livro, cd, etc) não se consegue vendê-la. A atual crise da indústria fonográfica prenuncia
uma crise da indústria audiovisual. Qualquer indústria é corroída naturalmente pela
popularização de seu meio de produção e está a evidência cabal de que
aparentemente ninguém pagaria por informação pura e simples. Por quê?
Para romper essa dependência será necessário integrar melhor as mídias da
comunicação entre si e com os setores de informação e telecomunicações. uma
preocupação e ansiedade a respeito de que tipo de conteúdo deverá ser criado e,
principalmente, como se extrairá receita deste modo de produção. E aí está uma questão
premente deste trabalho: como atribuir valor de troca à mercadoria cultural mesmo
quando ela está desatrelada de algum produto manufaturado?
A crise da indústria fonográfica advém do fato de os selos fonográficos executarem
trabalho puramente intelectual: selecionar informação quando forma seu elenco; gerir
informação quando contrata uma produtora para criar um clipe ou quando aprova uma
campanha publicitária. No entanto sua receita advém de um trabalho industrial que está
ultrapassado e condenado: a reprodução em massa de cópias materiais sobre um
suporte. Uma mercadoria física, portanto a qual se pode atribuir valor de troca. As
gravadoras e, por conseqüência os músicos, precisam urgentemente de uma nova forma
de distribuição que contemple outras formas de valor agregado a seus respectivos
trabalhos intelectuais. A economia, por enquanto, continua míope para essa faixa do
espectro cultural. Trata-se da crítica inicialmente proposta: do prejuízo causado pela
dissociação entre os modos de valoração cultural e mercadológico. O caso é que o
trabalho que executam os músicos, os produtores, os publicitários e os diretores de
videoclipes, está diluído na vaga noção de “serviço”.
Enquanto isso a inovação puramente intelectual do MP3 (cortar do som todas as
freqüências que só um cão pastor pode escutar) gera um impacto bilionário em termos de
163
acesso direto à riqueza. Seu criador não cobra nem um tostão pela mercadoria, nem é
alvo de processos como o napter, audiogalaxy, Kazaa e congêneres que se multiplicam.
Apoiado por Darwin, o código memético desse invento se exprime no puro valor de uso
do produto: banalizar a circulação de música pela Internet. Dito e feito. E a fábrica de
discos hoje é responsabilidade do usuário, que a compra por R$ 200,00 (pela internet, se
preferir). Como o alargamento da banda de circulação de dados na rede das redes, tal
impacto tecnológico não tardará a bater às portas da indústria audiovisual com
conseqüências muito similares. Dentro do processo de digitalização a forma comercial (a
forma comunicação) predomina porque absorve a forma produtiva. “O consumo da rede
cria riqueza, a transação se transforma no produto”.
143
Resta saber como é que ela vai
“absorver” a forma produtiva. Giuseppe Cocco propõe uma solução pelo menos para a
internet:
As redes não funcionam como as infra-estruturas rodoviárias que
sustentaram o desenvolvimento fordista. As infovias não são um
espaço de circulação de produtos produzidos pela indústria ou pelo
setor terciário, mas o próprio espaço de constituição de relações de
serviço, isto é, de bens imateriais nos quais produção e consumo
coincidem. Mais que uma infra-estrutura, elas constituem a própria
estrutura produtiva ou, com outras palavras, podemos dizer que a
passagem para o paradigma pós-industrial torna produtivas as infra-
estruturas e as relações sociais por elas vertebradas. (...) Os
executivos insistem sobre o fato de que não é mais suficiente pôr no
mercado bens mais performances (isto é, incorporando saber e
conhecimento). O que é fundamental é a criação e gestão da relação
com a clientela.
144
Capital intelectual que se transforma em ativo de produção é a forma mais primitiva de
incluir a inovação e a criatividade como valores do trabalho. A gestão de uma relação é
um trabalho de pura interpretação simbólica que não se torna mercadoria no sentido que
nunca se separa do trabalho que a produz nem do uso que se faz dela. Como queria
143
Scher, L. “La Dêmocratie virtuelle”. Paris, Ed. Minuit, 1994.
144
Cocco, Giuseppe. “As dimensões produtivas da comunicação no pós-fordismo” in: Revista Comunicação
& Política, Volume III, nº 1, Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos – CEBELA, janeiro-abril,
1996.
164
Marx, a dimensão produtiva não se separa da dimensão social, constitui valor em sua
singularidade e produz riqueza sem produzir valor.
Para ter rentabilidade, o produto cultural imaterial teria que se apoiar na propriedade
intelectual, mas esta é corroída pela pirataria, pelo plágio, pela mudança da moda.
Enfim, o produto intelectual é um agregado de partes de trabalho intelectual anterior, uma
composição de produtos intelectuais à qual se agrega o valor da atualização ou edição.
Sendo assim, ao ser posto em disponibilidade é imediatamente canibalizado, e tanto
mais se tal produto atingir seu objetivo sendo este se reproduzir na cultura. Um filme de
sucesso funda clichês cinematográficos. O clichê cinematográfico pode ser
perfeitamente entendido como um bem de produção ou pelo menos como recurso
cultural público. Se cada produto, em seu processo ideativo é produzido pela
decomposição e recomposição das propriedades de outros produtos gerando inovação
com algum valor qualitativo agregado, como é possível que a rentabilidade de tal ordem
de produtos possa advir da propriedade intelectual? Continuamos encontrando
respostas radicalmente darwinistas a partir de questões levantadas por Marx. A
produção é socializada. O consumidor desenvolve e inova o produto ao se relacionar
com o produtor por meio da demanda. Mas ainda não temos uma resposta quanto ao
destino da renda advinda dessa ordem de trabalho intelectual.
Usemos como exemplo o mercado de softwares para o usuário comum. Ele os obtém
em sua maioria de forma totalmente gratuita. Seja através da pirataria ou por meios
legais. A estratégia de difusão do produto software é banalizar-se a ponto de se tornar
um padrão e isso pode ser verificado pela profusão de demos e trials dos mais diversos
programas. Um músico como João Gilberto ou Bob Marley tornam seus estilos pessoais
tão marcantes e populares que fundam gêneros (bossa nova e reggae). É um valor que
se agrega a toda uma geração futura de bens culturais. Como os programas para
Windows que tornaram esse sistema operacional um paradigma para quem possui um
165
PC. O Linux é um aprofundamento radical disso. De onde vem a renda do Linux? Não
vem da comercialização do produto, mas de seu uso e do relacionamento que ele funda.
“O termo contábil valor agregado responde à transformação da forma
do comando na passagem do fordismo para a economia da
informação: à medida que a produção é socializada, podemos dizer
que todos participam da produção de tudo e que não é mais possível
separar de maneira clara e precisa o tempo de trabalho do tempo da
vida. (...) A perda de um padrão objetivo o tempo de trabalho
torna tautológica toda unidade de medida, mero instrumento
subjetivo de controle cujos parâmetros não têm mais legitimação
científica, objetiva. As redes são consideradas como estoques,
elementos naturais e, no máximo, como elementos técnicos dados e
não como o que eles são, o fruto de fluxos de cooperação cuja
dinâmica produtiva é tão estruturalmente socializada que dificulta as
formas mais modernas de acumulação privada”.
145
“404 not found”. Essa mensagem surge na tela do software navegador de ambientes
web sempre que um endereço não é encontrado, lembrando ao usuário que a internet
não é um estoque, é um mercado. Quando se trata da produção de bens culturais no
século XXI, o ativo produtivo deixa de ser a condição para a produção. um exemplo
que torna essa sugestão bastante compreensível: o artigo “Parceiros na Inovação”, de
Stefan Thomke e Eric von Hippel.
“Ao estudar o processo de inovação dos produtos em diversas
indústrias, descobrimos que muitas delas abandonaram o esforço
para compreender com exatidão o que seus clientes desejam. Em
vez disso, deram a eles ferramentas para que desenvolvessem seus
próprios produtos por meio de pequenas modificações ou inovações
de peso. Essas ferramentas de fácil utilização, normalmente
integradas a um pacote que batizamos de ‘kit de ferramentas de
145
Idem.
166
inovação do cliente’, consistem em novas tecnologias, como
simulação computadorizada e estruturação rápida de protótipos, que
agilizam e barateiam o desenvolvimento do produto. (...) O
desenvolvimento de um produto normalmente apresenta dificuldades
porque os dados relativos à necessidade (o que o cliente deseja)
encontram-se com o cliente, ao passo que os dados essenciais para
a solução da questão (como satisfazer essas necessidades)
encontram-se com o fabricante. Tradicionalmente, cabe ao fabricante
o ônus de colher as informações necessárias, o que ele faz de
diversas maneiras (com pesquisa de mercado e coleta de
informações no campo, por exemplo). Esse processo costuma ser
dispendioso e demorado, uma vez que as necessidades dos clientes
são geralmente complexas, sutis e dadas a variações extremamente
rápidas. Assim, o processo tradicional de desenvolvimento de um
produto caracteriza-se por um modelo moroso de tentativa e erro
num zigue-zague em que se alternam as intervenções do fabricante
com as do cliente. (...) Várias indústrias decidiram adotar essa
prática. A Bush Boake Allen (BBA), fornecedora mundial de sabores
especiais para a Nestlé, desenvolveu ferramentas que permitem a
seus clientes criar os sabores de sua preferência. Na área de
materiais, a General Electric (GE) fornece a seus clientes
ferramentas eletrônicas disponíveis na internet que lhes permitem
projetar produtos de plástico com muito mais qualidade”.
146
Hoje, qualquer um pode entrar em uma loja de tintas e criar uma cor personalizada a
partir de pigmentos sicos oferecidos pelo fabricante. Está claro agora o que Giuseppe
Coco quer dizer com a tautológica “produção de comando por meio de comando”. Essas
empresas estão administrando acima de tudo os fluxos de informação e os sujeitos de
sua inovação são os clientes. O trabalho intelectual que cria o bem vem da relação entre
produtor e consumidor. O bem cultural é necessariamente um bem comum e público.
Essa é a natureza do trabalho imaterial. Sua dinâmica é comunicativa, intersubjetiva
146
Thomke, Stefan e Hippel, Eric Von. “Parceiros na Inovação”. In: Revista Exame:
http://portalexame.abril.com.br/pgMain.jhtml?ch=ch05&sc=sc0501&pg=pgart_0501_160802_34750.html
167
como queria Habermas.
147
Evidências conspiram para a noção de que o bem intelectual
é produto das relações comunicativas e não de um sujeito do conhecimento.
“Quando no fordismo a extração do valor se articulava a partir do
salário, enquanto elemento de controle da relação entre trabalho
necessário e mais-trabalho, no pós-fordismo, na falta de poder medir
‘trabalho necessário’ e ‘mais-trabalho’, é o controle da comunicação
que permite a captura de valor gerado pela cooperação social
produtiva”.
148
O espantoso é que essa percepção se evidencie apenas quando o fenômeno está
associado à produção de algum bem material. No caso do artigo de Stefan Thomke e
Eric von Hippel, os exemplos vão das fábricas de chips à indústria de sabores. Nesses
casos, o valor agregado pela inovação no uso do trabalho intelectual pode ser calculado
pela economia no custo de pesquisa e desenvolvimento. O trabalho de inovação é
dividido com o cliente que recebe como remuneração um produto com maior valor de uso
e menor custo.
Este processo tautológico é base do modo de produção capitalista. Produção e divisão
do trabalho são regulados de forma cega pela interação entre mercado consumidor e
produtor. De forma darwinista, não um projeto de mercado ou de sociedade por trás
das decisões. O público espectador é tão co-autor das novelas quanto for convencido de
que está efetivamente desempenhando esse papel. “Ajuda” a decidir que músicos serão
147
Habermas, J. “Técnica e ciência como ideologia”. Lisboa, Edições 70, s.d.
__________. “Théorie de l’agir communicationnel”, Paris, Fayard, 1987, 2 vols.
__________. “L’Espace public, Archeologie de la publicité comme dimension constitutive de la
société bourgeoise”, Paris, Payot, 1978.
148
Cocco, Giuseppe. Op. Cit.
168
contratados pelas gravadoras e determina que tipo de estrutura narrativa deve ter um
filme porque responde de uma forma ou de outra às decisões autorais.
Jean Claude Carrière descreve o processo histórico de inovação no produto
cinematográfico segundo este mesmo modelo. O autor desenvolve artifícios de
linguagem para transmitir sua mensagem. O público precisará primeiro compreender o
sentido daquele elemento novo, e então aprová-lo para que se integre ao repertório de
recursos narrativos da linguagem audiovisual.
149
A inovação de linguagem (produto
cultural e imaterial), para ser bem sucedida, deve escapar ao controle do produtor, que
não regula sua reprodução. A riqueza obtida em tal trabalho vem pela relação
comunicativa que se estabelece quando o público assiste à obra e não pelo controle de
sua reprodução. As redes de comunicação interativa não inventam tal relação produtiva,
mas apenas as tornam evidentes em sua inconsistência para distribuir a riqueza
produzida pelo trabalho. A forma inevitavelmente social do trabalho de produção da
inovação cultural coloca em cheque a viabilidade do modelo de acumulação,
paradigmático na produção de bens materiais, paradoxal na produção de bens culturais.
O único sentido do bem cultural é sua livre reprodução. A interatividade aparece desde o
momento da produção e na superação da divisão tradicional que opõe a figura do autor
às figuras de execução técnica.
“Na medida em que o recurso mais precioso da economia da
informação é constituído pela relação com o cliente e se, ao mesmo
tempo, as mudanças tecnológicas assim como os comportamentos
de consumo não são mais padronizáveis, o trabalho de interface
entre os homens e a máquina; o que assegura a integração dos
momentos de consumo nos de produção, torna-se o elemento central
da economia da informação. Os custos de concepção das interfaces
149
Carrière, J.C. “A linguagem secreta do cinema”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
169
absorvem os três quartos do trabalho de desenvolvimento dos
produtos eletrônicos”.
150
Como a interface é interativa, ela pode ser modificada e aperfeiçoada pelo usuário dentro
da flexibilidade permitida pelo produto. Equivale a dizer que em comparação a um
produto televisivo, uma interface interativa produz novas gerações de si mesma em um
ritmo vertiginoso. Como se a história natural acelerasse, as mutações passam a ocorrer
muito mais freqüentemente e livremente. Tanto a morfologia quanto fisiologia do produto
cultural atualizam-se na medida que varia o comportamento dos usuários (seja o usuário
produtor ou o usuário consumidor). Se não em tempo real pelo menos com muito menor
defasagem do que se observa nos processos de produção da cultura material. É como
uma casa, por exemplo, que vai sendo reconstruída por dentro enquanto gerações de
moradores adaptam-na às suas necessidades.
O trabalho intelectual é sempre interpretativo e é sempre um exercício de interferência,
portanto é produtivo. O produto do trabalho intelectual é público porque o intelecto é
coletivo. O que gera a preponderância de uma idéia é a sua manipulação política, ou
seja, a riqueza que se extrai dela no ato de comunicação.
Emerge daí uma questão filosófica sobre o papel do homem na construção da cultura
(material ou não). Se este papel é ativo ou passivo, reflexivo ou caótico. Enfim se é
possível fazer uma ontologia do sujeito criativo. Em Capital Intelectual”, Thomas A.
Stewart afirma que “é difícil acompanhar como o conhecimento modifica a economia
devido às diferentes formas que ele assume”.
151
Texto, audiovisual, música, interface,
código de conduta, fundamento, moda, boato, modelo, sistema, conceito, gênero
150
Cocco, Giuseppe. Op. Cit.
151
STEWART, Thomas. “Capital intelectual: A nova vantagem competitiva das empresas”. Rio de Janeiro,
Campus, 1998.
170
estético, verdade científica e opinião pública são apenas algumas dessas formas. É
muito difícil comparar atualizações tão díspares de uma mesma potência.
Em 1994, a Business Week propôs um novo sistema estatístico destinado à era da
informação que dividia a economia em três setores: bens (...), serviços (empresas
voltadas para pessoas, como mecânicas de automóveis, bancos, ensino primário e
secundário, assistência médica, hotéis, etc.) e informação (publicidade, comunicações,
computadores e software, ensino universitário, entretenimento, etc.). Repare que o
segundo grupo, de serviços, que segundo Stewart mascarou por muito tempo o setor da
informação consiste naquele gênero de trabalho que Marx classificava como improdutivo.
Marx considera improdutivo todo trabalho cujo produto é inseparável do ato de produzir,
como é o caso do trabalho empregado na manutenção de ativos, por exemplo, ou como é
o caso do instrumentista virtuoso. Trabalhos exclusivamente executivos, redundantes
como o de sifo, da mitologia grega. A “Odisséia” conta que ele foi condenado por
Hades, deus dos mortos, a empurrar uma grande rocha até o alto de uma montanha.
Sempre que Sísifo chega ao cume, a rocha rola de volta a base e o trabalho recomeça.
Abismo dos existencialistas, esse relativismo radical destrói o sentido de deixa em seu
lugar o acaso.
Quero agora apontar um exemplo metalingüístico do que é um produto intelectual
imaterial. O novo sistema estatístico proposto pela publicação americana é um exemplar
genuíno. Não tem dimensão tangível a não ser que se torne texto (momento em que
passa a ser reconhecido como economicamente existente), é produzido através da
decomposição e recomposição de outros produtos da mesma natureza acrescidos de
uma variante. Esta variante que pode ser como uma mutação se tomarmos emprestada
novamente a analogia de Dawkins entre genética e cultura. A utilidade e o valor do
produto são políticos e emergem do ato comunicativo que pressupõe o trabalho imaterial.
171
Se tal produto é bom ou não, é um julgamento que será extraído no ato de comunicação.
E este julgamento se atualiza constantemente a partir daí. Entram novos jogadores,
saem outros, o próprio sistema vai se transformando e torna-se um corpo informacional
cuja composição é dinâmica e formada pelos fluxos comunicacionais. Como um pai que
cria seus filhos para o mundo, e não para si, o trabalho intelectual tem exatamente essa
ética e dela depende sua capacidade de inovar-se.
Algo que deve ser levado em consideração para entender o impacto de uma inovação
simbólica: a comunicação interpessoal. A dispersão de uma informação pela oralidade e
as formas próprias de edição geradas pela circulação oral. Aqui extrapolamos o mero
wetware. O telefone, o e-mail e grupos de discussão, os chats, potencializam a
comunicação interpessoal assim como a escrita o fez ao consolidar as línguas.
“Ambas as funções, a de conservação e a de difusão, dão
aos textos um caráter concreto fazendo com que possam
circular no contexto de uma determinada cultura como
quaisquer outros objetos”.
152
Os textos põem-se então em movimento, mas os signos culturais estavam e
permanecem em intenso movimento, em ritmo muito mais rápido que na cultura material
(mais rápido, portanto, que na cultura textual) e sofrendo mutações (inovações) em
número infinitamente maior que o objetivo da materialização da informação em um
registro é justamente tornar o signo estável e reproduzível com o mínimo de ruído. Ora, é
claro que toda inovação na cultura se dá nesse contexto. Somente parte dessa produção
se materializa em produto e desta, apenas uma fração reúne as características típicas de
uma mercadoria eficiente. Não obstante, o valor social dessa produção está em ação
todo tempo, exerce uma pressão cada vez maior sobre a economia (até sob a forma do
152
BRANDÃO, Jacyntho Lins . “Poesia grega e mercadoria fenícia”. In: Reinaldo Marques; Lúcia Helena
Vilela. (Org.). “Valores: arte, mercado, política". Belo Horizonte, 2002, v.1. (págs. 117-133).
172
desemprego, da informalidade, da pirataria) e influi decisivamente na variável mais
dramática da economia: o comportamento do mercado.
A mercadoria cultural é destinada à difusão. O livro é o artifício técnico empregado pelo
editor para que a difusão da informação se atualize na comercialização de uma
mercadoria. Para o processo de produção tudo começa a partir do primeiro manuscrito e
termina nos exemplares dos livros. Para o processo de comunicação tudo começa na
coleta, seleção e interpretação da informação que está disposta no livro e termina bem
depois do livro, depois da leitura, na subjetividade produzida pela informação.
“Como no caso do artesão e do pintor de vasos, a assinatura
acrescenta um valor suplementar à obra, o que estaria em
conformidade com o fato de através da escrita, esta adquirir a forma
concreta de um objeto cuja circulação é necessária para o alcance
de sua finalidades”.
153
Eis aí a definição de Marx para a mercadoria. Mas será que o produto cultural precisa
mesmo converter-se em mercadoria para alcançar sua finalidade, isto é, reproduzir-se?
Quando usamos essa palavra, “reproduzir-se”, é inevitável fazer analogia com um
objetivo darwinista do produto cultural. Justamente, a discussão é atraída para dois
pólos, Marx e Darwin, justamente por seu caráter emblemático. A princípio, Marx
fundamenta o discurso cultural enquanto Darwin, ao caracterizar a seleção natural,
subsídio à ética mercadológica, mas logo perceberemos que as coisas não são tão
simples. vai um exemplo de problema de comunicação explicado segundo o sistema
de interpretação darwinista:
153
Idem.
173
“É esse desejo de ajuntar valor a um objeto cultural cujo fim é o
máximo de circulação, que seria também em parte responsável
pela pseudepigrafia, num processo aparentemente inverso ao
que motivou os registros iniciais de autoria, já que o autor
verdadeiro se oculta intencionalmente atribuindo sua obra a
autores reconhecidos e renomados, geralmente antigos. (...) Se
do ponto de vista da afirmação da individualidade e da
identidade do autor trata-se de uma real inversão, do ponto de
vista da produção do texto, visando sua reprodução e difusão,
trata-se de um valor que se acrescenta à obra e facilita sua
função comunicativa”.
154
Hoje circulam por todo mundo milhares de Spams supostamente assinados por
jornalistas ou escritores conhecidos. Ao invés de tomar a idéia de um terceiro e assiná-la
como sua, para receber os louros, a operação é oposta: rouba-se o nome de outro para
agregar valor ao produto intelectual. O mérito parece então residir no nome e não no
produto, o que evidencia uma crise da capacidade crítica da sociedade em relação ao
produto cultural. O que parece natural no tênis Mike”, soa deslocado na produção
intelectual. A eficiência deste produto depende da habilidade do autor em transmitir sua
mensagem e ao mesmo tempo acreditar que pode mimetizar o estilo, o vocabulário ou as
opiniões do autor cujo nome é plagiado, como o público que acredita influenciar nos
rumos da trama de uma novela. Para ser verossímil a pseudepigrafia deve plagiar não
o nome, mas também parte do conteúdo simbólico daquele autor sem perder de vista
o objetivo de embutir seu próprio conteúdo, como faria um vírus. Mesmo que uma
vacina possa identificar a replica (ou os críticos ou a memória do próprio autor plagiado)
esta não é mais a questão. Não se trata de verdade, mas dos critérios que estamos
assumindo neste trabalho como fundamentais para a valoração de um produto. Se neste
caso os resultados obtidos não vêm na forma de livros vendidos, que forma então eles
tomam? Ou então: sob que máscara retornará o recalcado?
154
Ibidem.
174
Algo pode ser designado como criativo, original ou autêntico por oposição ao
hegemônico. embutida, está a oposição entre a sociedade cidadã e o mercado de
consumo muito embora estas sejam duas identidades de uma mesma sociedade. Não
dúvida de que por trás de tudo isso está um debate de valores. E o melhor que pode
ser feito é definir e comparar padrões típicos das atribuições de valor econômico e de
valor cultural. O valor cultural está ligado à diversidade. O fomento da diversidade é a
ação cultural por excelência. A hegemonia, império do mesmo, é inimiga natural da
diversidade e, portanto, uma ameaça à potência adaptativa da cultura. Seguindo esse
raciocínio, a descapilarização da economia, promovida pela tendência inata do capital à
concentração é percebida como um obstáculo à competitividade e uma ameaça à
potência da cultura. As pequenas empresas geradoras de emprego, as relações
pessoais formadoras do capital social das comunidades, estão sitiadas pelo estigma do
Golias corporativo.
Ao transpor esse problema para o setor de comunicação audiovisual brasileiro vemos,
por exemplo, que a Globofilmes detém mais de 90% do faturamento total dos filmes
domésticos. A tendência de um sistema comandado por tal algoritmo seria reduzir
radicalmente sua variedade qualitativa criando cada vez mais concentração em menos
centros concorrentes. Segundo essa ótica do fomento à diferença, mais de acordo com
Oscar Wilde, as vanguardas e experimentalismos são o material mais estratégico da
cultura. Na vanguarda se origina a evolução da arte. A arte melhor, a arte que supera,
não faz concessões, não barateia a linguagem para agradar aos simplórios e não visa
fazer dinheiro.
Muitas vezes, o cinema de vanguarda reproduziu o discurso anticapitalista. Antes,
contudo, o artista de vanguarda deverá arranjar quem lhe dinheiro para que ele faça
uma crítica à necessidade de dinheiro. O conceito de vanguarda deu valor
175
mercadológico à resistência ao mercado. “Quando você pirateia MP3 você está baixando
comunismo", diz cartaz do movimento cibercomunismo.
Estar na vanguarda é rejeitar sistematicamente o popular, ou seja, o que se estabeleceu
como norma, e buscar algo novo que, ato contínuo, será rejeitado ao banalizar-se. A
única forma de sobrevivência da vanguarda, que não se dobra aos interesses do
mercado nem do estado, é a rede de relacionamento do artista, que lhe possibilita acesso
às benesses do mecenato público ou privado. Ou isso, ou a produção legitimamente
independente, em regime de cooperativa, com recursos próprios e em condições de
marginalidade.
Esse radicalismo é inverso àquele da educação para a identidade nacional. Vamos
chamá-lo de virtuosismo cultural. Seu pressuposto é a resistência ao Mainstream. Seu
espírito é de permanente revolução. O arquétipo da contra-cultura rejeita os cânones,
desqualifica a cultura erudita, prega a contestação. Ignora, portanto o eixo da educação.
O eixo da educação é o eixo do mito, da tradição e das raízes culturais. Exprime o valor
da cultura como reprodução de um sentido em contraposição ao valor anteriormente
descrito da inovação cultural. O que está jogo na cultura o tempo todo é o que deve ser
tombado e o que deve ser demolido. Ruído e redundância são os opostos elementares
176
da comunicação. O que possibilita a atribuição de um sentido inédito a um padrão inédito
é a redundância que os cerca. Estamos diante de uma moeda que tem de um lado o
mercado, lugar das trocas materiais, e de outro a cultura, lugar das trocas imateriais.
A Linguagem Cinematográfica, como qualquer produto cultural ou bem imaterial é uma
obra do intelecto coletivo. O Estado não pode arbitrar legitimamente sobre o conteúdo, a
forma ou a prioridade de produção, circulação e consumo dos materiais audiovisuais
porque não tem meios de identificar origem, propriedade ou legitimidade de um conteúdo
cultural. Conclui-se que o Estado não pode legitimamente lançar mão de idéias como
“qualidade artística”, “importância cultural” ou “identidade nacional ou regional”.
177
1.2.2. O eixo da educação:
Se o produto cultural transforma o caráter dos indivíduos, questiona-se então se essa é
uma formação ou uma deformação de personalidades. Se voltarmos a Foucault, vemos
que esse julgamento é feito segundo uma escala de valores médios que estabelece uma
norma fora da qual comportamentos passam a ser diagnosticados como sintomáticos de
alguma patologia física, psicológica, política, econômica, social ou cultural. O eixo da
educação é o lugar onde o juízo de valor moral e ético é aplicado ao objeto cultural.
Formação e deformação são questões ideológicas.
A valoração das propriedades educacionais dos produtos audiovisuais tem uma nota
moral. Quando se discute a qualidade do conteúdo audiovisual da TV, por exemplo,
vemos que estão em questão a persuasão ou dissuasão exercidas pelo conteúdo sobre
os costumes e a construção de mentalidades a partir das micro-narrativas incluídas no
produto. O medo, numa escala psico-social, motiva esse movimento de regulação do
fluxo de informações para o grande público. Os valores da família, a admoestação da
infância e a agenda da cidadania estão entre as receitas prescritas pelos grupos de
pressão para garantir um papel formador positivo ao meio audiovisual. Auto-
regulamentação e livre expressão são pré-requisitos democráticos desse processo.
Conhecemos a máxima da liberdade com responsabilidade que estabelece limites
subjetivos pela educação e evita limites objetivos pela repressão. Esses são os
pressupostos que fundamentam a intervenção social sobre a circulação dos objetos
culturais. E quando se fala em intervenção social, fala-se numa feroz competição por
posições de poder sobre essas decisões.
O marketing e a construção de marcas consistem no principal vestígio de reconhecimento
por parte das ciências econômicas da existência de algo como subjetividade, pelo que a
178
propaganda traz a economia para dentro da escola de comunicação. A propaganda é a
educação para o consumo. Nessa pirueta cognitiva o objeto de comunicação (digamos, o
rótulo da sopa Campbell) integrou-se à categoria de mercadoria tornando-se, desde
então, objeto do mesmo aparato cognitivo que estuda a fábrica e suas relações de
trabalho. A propaganda tornou-se a prova laboratorial da existência da mercadoria
cultural, algo como a alma penada de um produto que um dia teve valor de uso. Uma
cultura que se perverte. Esse jogo de designação do produto cultural é o tema deste
capítulo.
O chamado controle de qualidade do conteúdo também compõe o caldo desta discussão.
Quanto mais monopolizado for o espaço de mercado mais facilmente essa prática se
instala. Quanto mais dominante é a presença de determinado agente de dia, mais
responsabilidade recai sobre ele que, segundo a descrição tradicional da comunicação de
massas informa, forma e deforma a opinião pública. Um veículo dominante significa um
padrão dominante de influência sobre a cultura. Em nome desta responsabilidade, o
agente de mídia arvora-se como juiz da circulação cultural e dirige sua pauta temática em
consonância com os valores que julga adequados. Nesse momento o agente de
conteúdo abandona a lógica comercial e segue critérios éticos e morais. O mercado
chama isso de “responsabilidade social” tentando faturar alguma vantagem comercial
com esse limite auto-imposto. A discussão é velha conhecida da academia e se
desenrola sobre a polêmica insolúvel da qualidade da programação da TV. Como não há
consenso sobre os critérios que estabelecem essa qualidade, recaímos na mesma
armadilha sempre: a falsa oposição entre interesses comerciais e valores cívicos. Esse
esquema reducionista condena a programação dita grotesca, que exploraria o imaginário
cultural com fins exclusivamente comerciais, e pressiona os órgãos de mídia a se
comprometer com a tarefa paternalista de fomentar valores elevados”, como se estes
também não lograssem êxito mercadológico. Não é necessário dizer do caráter
179
pusilânime desse modo de gerir o risco político na comunicação. Indispensável a essa
fórmula é o conceito de “massa” embutido no termo “meios de comunicação de massa”.
A massa, informe e plástica, está aí para ser educada pela mídia. A empresa de
comunicação, movida pelo valor da condescendência, responsabiliza-se pela adequada
formação da cultura de massa através dos meios de comunicação.
Nada é mais característico do nosso caso. A onipresença da Rede Globo na tevê
brasileira leva a empresa a carregar o fardo de ser responsabilizada por qualquer
fenômeno possivelmente ligado às atividades de mídia. Desconfia-se da influência da TV
em tudo que ocorre, dos crimes hediondos aos resultados das eleições presidenciais
passando pela iniciação sexual dos adolescentes. Diante disso a empresa de
comunicação assume uma postura conservadora e defensiva. Orienta seu conteúdo para
a construção de um discurso chapa-branca”, oficialista, cívico, educativo, democrático,
enfim: comprometido com uma agenda positivista de evolução civilizadora. O grotesco é
censurado em favor da catequese do politicamente-correto que estiver na moda naquela
década. Historicamente, a TV Globo passou por diversas fases cívicas, incluindo-se aí o
combate à ameaça comunista e o apoio à ditadura militar. O ponto é o mesmo: trata-se
de uma condescendência imaginária, fruto da marca evolucionista da cultura moderna
diante desse amorfo conveniente que é a massa. A massa, com a qual o roteirista de
telenovelas Manoel Carlos se preocupa ao incluir em seus produtos temas vicos como
a condição do idoso ou do deficiente visual. A mesma com que ele se preocupa, de uma
forma bem diferente, criando a cena de um tiroteio no Leblon. A posição pusilânime da
emissora der está intimamente ligada ao seu monopólio, levando-a a responder pela
formação cultural do brasileiro. Colateralmente a empresa converte-se em trincheira do
politicamente correto, permeada por moralismo e acusada permanentemente das mais
perversas práticas de poder.
180
Esse enredamento se realiza a partir do conceito malicioso de entretenimento familiar
criado pela crítica cultural norte-americana. A presença de crianças entre a audiência
justifica todo tipo de interdito à liberdade de expressão. A sexualidade é particularmente
reprimida. A criança funciona como modelo ideal de receptor indefeso e passivo,
totalmente suscetível ao discurso, o que justifica o controle externo do fluxo de
informação. Sabemos que essa exacerbada condescendência em relação à criança é
relativamente nova na História, data mais ou menos da mesma época do romantismo nas
artes que também inventou o amor romântico. Nas sociedades cosmopolitas urbanas
contemporâneas o culto à inocência é generalizado, de forma que tudo quanto for
assunto controvertido entre adultos torna-se coisa imprópria para menores. O conteúdo
da mídia americana é permanentemente controlado segundo esse traço cultural
tipicamente puritano. Mas enquanto característica geral da cultura cristã moderna, a
admoestação infantil encontra ressonância na relação do brasileiro com o conteúdo de
mídia.
Esse conflito se soma àquele, já exposto no capítulo que introduz o modelo da cultura, de
formação da identidade nacional fomentada pelo Estado como resistência à dominação
cultural estrangeira. Ambas, ajudam a compor o painel da relação do culturalismo com
as propriedades de educação do produto audiovisual.
Podemos também estabelecer um diálogo entre o audiovisual e a educação formal, ou
seja, ao ensino institucional. Em seus primórdios, o cinema começou a ser explorado
comercialmente na França, na Inglaterra e nos EUA. Em três décadas, o cinema tinha se
tornado um negócio milionário, atraindo multidões de expectadores. Um dos maiores
trunfos do cinema como meio de comunicação de massas no início do século XX foi o
fato de ser uma mídia que não requer alfabetização para seu consumo. O audiovisual
181
como meio de entretenimento e instrução de massas iletradas era a mais poderosa
ferramenta de comunicação que já havia sido criada.
Em 1900, os irmãos Lumière venderam sua companhia cinematográfica a Charles Pathé.
Isso marcaria a massificação do cinema na França onde, ao contrário dos EUA e da
Inglaterra, o cinema era um hábito de todas as classes sociais e não do proletariado
analfabeto. O cinema tornou-se então o primeiro entretenimento de massas do século
XX, equivalente Coliseu para a sociedade romana clássica. No fim da década de 1910,
Nova York já tinha seiscentas salas de exibição que atraíam mais de trezentos mil
expectadores. Esses cinemas primitivos eram chamados nikel theatres (teatros de um
tostão), pois o preço do ingresso era muito baixo e o público era composto pela
população mais pobre e menos educada. O público fazia uma verdadeira algazarra na
sala, antes, durante e mesmo após o fim da projeção. O cinema surge, então, sob o
desdém das elites e da burguesia, que o consideravam um entretenimento boçal. Sendo
o cinema iletrado e mudo, não havia a barreira da língua para sua distribuição e consumo
globais. Durante duas décadas a Pathé foi a maior empresa de cinema do mundo. 40%
dos filmes lançados na Inglaterra tinham a marca Pathé. Apenas 30% dos títulos eram
americanos.
“Com a eclosão da I Grande Guerra, as indústrias francesa, italiana,
inglesa e a alemã se viram forçadas a reduzir sua produção,
abrindo espaço para a penetração americana não apenas na
Europa, mas também da América Latina (antes dominada pelos
franceses) e do Japão (antes dominado pelos italianos). Estima-se
que ao fim da guerra os Estados Unidos já produziam 85% do
número de filmes exibidos no mundo e 98% daqueles exibidos no
seu mercado doméstico”.
155
Como vemos, a absoluta falta de necessidade de qualquer competência educacional para
o consumo do produto audiovisual, somado ao fato dos primeiros filmes serem mudos e
155
Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura. “Economia da cultura” Brasília :
SDA/MINC : 1998.
182
não trazerem as cartelas de texto que logo depois surgiriam, determinou a rápida
popularização do meio e permitiu o fortalecimento de sua base produtiva
independentemente da comunidade lingüística. Foram as circunstâncias geopolíticas e
econômicas que levaram essa linguagem a se transformar a partir da indústria norte-
americana. A evolução da linguagem narrativa, que exigiu a inserção de cartelas de
texto, e posteriormente a sonorização, ocorreram num momento em que a hegemonia
americana estava consolidada, por volta da década de vinte. Nessa época, outras
inovações tecnológicas determinaram mudanças nos hábitos de lazer, como o rádio e o
automóvel. O rádio e o carro compartilhavam com o cinema a não exigência da
educação formal para o seu consumo.
O lançamento do filme, The Jazz Singer (O cantor de Jazz) em 1927, marca o início do
cinema falado. Como nesse momento o mercado consumidor de língua inglesa (Estados
Unidos e Inglaterra) era o maior do mundo para o cinema, o predomínio dos estúdios
americanos se ampliou. Outros importantes centros de produção perderam
competitividade por esses mercados devido à barreira da língua. A introdução de
fronteiras culturais tende a colocar a atividade audiovisual em crise, inclusive financeira.
O upgrade de toda a cadeia de produção, distribuição e exibição de cinema para um
sistema que inclui o som é, mais que um mero incremento técnico, a fundação de uma
mídia. Devemos lembrar que o cinema é inventado na última década do século
dezenove, mas o audiovisual, que caracteriza hoje não cinema, mas também TV,
vídeo, interface interativa e mais, surge no fim da década de 1920. Fazer essa mudança
paradigmática custou esforços, algum tempo e muito, muito dinheiro. Mas logo depois
veio a “Grande Depressão”, um período de penúria material que se abateu sobre a
sociedade americana em parte devido à imaturidade dos mercados de capitais. As
dificuldades exigiram das empresas práticas mais agressivas de mercado, e isso ocorreu
nos contratos de exibição. As duas práticas que ali se inauguram são conhecidas como
blind-booking (programação às cegas) e block-booking (programação em bloco). Em
183
bloco, porque o exibidor podia comprar pacotes de filmes. Às cegas, porque adquiria
filmes sem saber quais eram. Em suma, os riscos e incertezas da demanda eram
transferidos ao exibidor.
Vinte anos depois, num processo jurídico envolvendo a empresa Paramount Pictures, a
suprema corte de justiça dos Estados Unidos tomou uma decisão que criou
jurisprudência à abolição dessas práticas naquele mercado. Além disso, os distribuidores
foram obrigados e desfazer-se de grande parte de sua participação no mercado exibidor.
O famoso caso Paramount mudou, entre outras coisas, a maneira dos estúdios gerirem
recursos humanos, descrito como “o abandono do modelo fordista de organização
industrial praticado nos grandes estúdios pelo qual artistas e técnicos firmavam contratos
exclusivos e de longo prazo com um único estúdio”.
156
A partir da década de cinqüenta, os contratos passaram a ser por projeto e uma série de
serviços foi terceirizada acabando com o tempo das fábricas de sonhos onde tudo era
feito do começo ao fim, modelo que ainda hoje é praticado pela Rede Globo no Brasil.
Lá, os Estúdios livraram-se de seus estúdios e concentraram-se na distribuição.
157
Não
podendo mais vender aos pacotes, as distribuidoras reduziram drasticamente sua oferta,
o que elevou os preços dos filmes no mercado e, em consequência, o preço do ingresso
nos cinemas. Aí, estamos no final da década de cinqüenta, vivendo o declínio de
audiência de que já falamos no “eixo da audiência”.
Apesar dessa digressão econômica ao final, dedicamos este capítulo a descrever os
cenários com os quais o audiovisual brasileiro contemporâneo se defronta quando o que
está em questão é o valor da Educação. Vimos que educação é repetição, ou seja, é a
156
DeVany, A. e Eckert R. "Motion Picture Antitrust: The Paramount Cases Revisited." Research in Law and
Economics #14, 1991. (págs. 51-112).
157
Hoskins, C. Finn, A. et al. "Telefilm Canada Investment in Feature Films: Empirical Foundations for
Public Policy." Canadian Public Policy #22, 1996.
184
reprodução do estabelecido. Vimos que o Estado está interessado em estabelecer a
educação do povo para a cidadania. Vimos também que diversos grupos de pressão
desejam regular ou manipular a formação da opinião usando valores morais como
argumento. E entendemos que a condescendência pela massa é uma forma de ética
oligárquica. Isso, porque toda educação parte do princípio fundamental da desigualdade
de mérito. Educação só existe onde existe a convicção na desigualdade de mérito. Jung
disse que algumas consciências brilham com mais intensidade que outras. Afirmações
como essa lhe custaram até fama de nazista. Politicamente correta é a igualdade, não a
diferença. O fato é que o gosto da audiência nem sempre combina com o do autor. A
classe que faz, gosta de um audiovisual diferente da classe que assiste. O que fazer
então? Se a resposta for “educar”, o autor, julgando que sua afeição tem mais mérito que
a da massa, ensinará a massa a gostar do que é melhor. Soa como uma decisão
prepotente, mas se usamos uma criança como exemplo, a desigualdade de mérito soa
óbvia e a condução do outro, necessária. Não nos esqueçamos também, acaso se opte
pela via da igualdade presumida, que a demagogia é uma forma (ainda que dissimulada)
de condescendência. Seria o caso do autor que oferece ao público algo que ele mesmo
despreza. Condicionar ou adular? Não me cabe fazer essa escolha pelo leitor. Talvez
nem haja diferença. Devemos seguir adiante.
185
2. Os entrecruzamentos dos modelos:
No começo deste trabalho afirmamos, como pressuposto fundamental, que cultura e
mercado não são entes autônomos, mas aspectos da sociedade. Cada um forma um
campo discursivo em que os mesmos objetos podem ser representados. Para efeito
desta tese especificamente, no centro da dicotomia entre cultura e mercado, está o
produto audiovisual. Este, por sua vez, quando descrita sua biografia, alavanca
discursos de valoração mercadológica, assim como de natureza cultural. Por mais que
este ou aquele produto, conjunto de obras, ou fonte autoral possam ser
predominantemente identificados como de natureza mercadológica ou cultural por
determinados discursos, já sabemos que não se trata da natureza do produto, mas das
estratégias discursivas que buscam para ele espaços de disseminação.
Até agora, analisamos separadamente algumas das mais relevantes questões
associadas a cada um desses dois modelos isoladamente. Mas sabemos que a inserção
de um produto audiovisual não pode ser entendida através de um único modelo.
Devemos, então, nos lançar ao exercício de descrever as formas de diálogo entre os dois
modelos nos moldes do cenário recente do audiovisual brasileiro. Perceberemos que
valores de um modelo de confundem com valores do outro, com conseqüências às vezes
positivas, outras negativas.
O método que utilizaremos para percorrer transversalmente esses espaços será o
cruzamento entre os quatro eixos paradigmáticos de ambos os modelos em análise
combinatória. Se já vimos como se a articulação entre audiência e lucro no modelo
mercadológico e entre inovação e educação no modelo cultural, agora colocaremos
frente a frente, nos próximos quatro capítulos:
186
1. Audiência e educação
2. Audiência e inovação
3. Educação e lucro
4. Inovação e lucro
Com esse exercício, visamos demonstrar a inevitabilidade da associação entre
propriedades mercadológicas e culturais para a constituição do produto audiovisual e, por
conseqüência, as limitações paradigmáticas impostas à produção cultural pela
construção histórica da dicotomia entre mercado e cultura.
Devemos admitir que a dicotomia entre cultura e mercado, ao mesmo tempo em que não
é imanente ao ambiente social, também não é uma ordem meramente arbitrária, que
possa ser facilmente substituída por outra epistemologia. Por trás dessa oposição, estão
outras, mais profundas e antigas, de tal forma arraigadas ao espírito da sociedade
humana, que não se pode simplesmente propor sua superação sem ao mesmo tempo
colocar em questão temas profundamente filosóficos. A tensão entre mercado e cultura
descende daquelas entre capitalismo e socialismo, público e privado, individualidade e
coletividade, e, finalmente, na distinção seminal entre imanência e transcendência,
natureza e sociedade.
Não nos propomos, portanto, a prescrever uma terceira via de abordagem do meio
audiovisual. Nos parece impossível neutralizar a oposição entre cultura e mercado, sem
com isso demolir a base ontológica da civilização. Se ensaiarmos o desenvolvimento de
uma equação na qual mercado é igual à cultura, faremos recuos sucessivos até um
campo de abstração que torna o objeto de comunicação audiovisual completamente
irrelevante. Do ponto de vista filosófico, o audiovisual é verdadeiramente irrelevante, uma
vez que o Homem tem infinitas outras possibilidades de expressão cultural. Mas uma
187
abordagem com esse grau de proximidade dos abismos do pensamento não é nosso
objetivo aqui. Para demonstrar essa delimitação cognitiva, concluiremos essa introdução
à segunda parte da tese com um esboço de como se daria a decomposição da equação:
Cultura = Mercado.
Do lado do mercado, as teorias mais atuais de aproximação ao modelo cultural estão no
estudo da economia pós-industrial e seu estatuto como economia da informação.
Contemporaneamente, o trabalho intelectual é posto no centro da economia do
conhecimento. Desse ponto de vista, o produto do trabalho intelectual é entendido como
produto imaterial, base da mercadoria cultural.
O estudo da inovação do produto cultural e seu modo de produção passam pela
adequada compreensão do tipo de organização social do trabalho que produz essa
inovação. O que o estudo da cultura nos revela é a dimensão política e comunicacional
dessa organização.
Em Marx, o mercado é diagnosticado como um sistema de interpretação e ordenação da
realidade material das sociedades que não enxerga a natureza social do trabalho.
Quando lidamos com o trabalho intelectual, podemos traduzir natureza social como
natureza intersubjetiva do trabalho. Marx aborda principalmente a produção de bens
materiais e isola aí o mecanismo da mais-valia. Se a máquina é trabalho passado
captado e reproduzido, qual a natureza do trabalho que idealiza a máquina? A resposta
é o trabalho intelectual.
No entanto, do ponto de vista marxista, o trabalho intelectual tem o mesmo destino do
outro. Mais que isso, parece ser ainda mais difícil conceber o valor social de uma idéia.
A produção de valor ocorre exclusivamente na troca de mercadorias (materiais
processados pelo trabalho não-intelectual de homens e máquinas). A mercadoria tem
188
seu fetiche, segundo Marx, pois assume as propriedades do trabalho e dessa forma
assume seu valor. Se não é possível agregar valor ao produto imaterial em si ou a
qualquer outro trabalho em sua singularidade isso ocorre porque o sujeito do trabalho é
indefinido. O que trocamos na comunicação não são apenas idéias, mas trabalho.
O trabalho, por ser social, é intersubjetivo. A sociedade, por ser uma organização
cultural, é fruto de trabalho intelectual. Sociedade é intelecto, e o intelecto é algo
intersubjetivo. Exemplo: a razão, base da cultura moderna, pode existir como coisa
intersubjetiva. Razão é um produto sócio-político. Isso explica porque é tão difícil
determinar os critérios de distribuição do trabalho e da riqueza produzida por ele, seja
material ou não. A crítica de Marx faz todo sentido quando aprendemos que o valor de
troca é determinado pela demanda, ou seja, segundo um valor qualitativo genérico que
só varia em sua expressão quantitativa.
A demanda é determinada pela natureza, ou pela cultura? Pela humanidade ou pelos
indivíduos? Se determinada pela natureza, ou seja, pelo ambiente, adotamos um
Darwinismo agnóstico, onde o intelecto é irrelevante. Se determinada pela cultura, é
porque determinar valor é um trabalho interpessoal ainda que na forma não-intelectual da
bolsa de valores (oferta x demanda). Não nos esqueçamos: valor é uma idéia, e como
tal, é resultado de um trabalho intelectual. Somente as idéias (pela inovação intelectual)
são capazes de agregar valor, seja a priori (na invenção) ou na posteriori (na atribuição
de valor).
Se o trabalho é inevitavelmente intersubjetivo, então as idéias são intersubjetivas. A
dissertação de mestrado versa justamente sobre a natureza intersubjetiva das idéias. A
189
forma como elas são estabelecidas todas em ações de troca simbólica.
158
As idéias,
como produto do trabalho, existem quando estão sendo comunicadas, assim como o
produto do trabalho físico se realiza enquanto valor quando é trocado na forma de
mercadoria. Portanto, a comunicação é o único espaço de inserção econômica das
idéias. Trabalho é aplicação de uma força no tempo. A César o que é de César, a Deus
o que é de Deus.
Se o indivíduo é composto de idéias e as idéias são produto de trabalho intersubjetivo
então o indivíduo é fruto de um trabalho intersubjetivo tanto na sua formação como em
ato. As idéias compõem o sujeito (ou arquétipo), mas elas não são próprias nem
originárias de nenhum indivíduo. Assim: a existência do sujeito não implica na existência
do indivíduo. A dissociação entre subjetividade e individualidade que caracterizam os
instrumentos metodológicos tanto do mercado (perfil de público) quanto da cultura
(identidade) emerge e se verifica segundo diversas experiências teóricas. Em Freud, por
exemplo, formaliza-se a constatação de que o indivíduo é, na verdade, divisível.
159
E
revela-se efetivamente dividido. rios sujeitos habitam o indivíduo. Em Jung, segundo
a teoria da psicologia arquetípica, um mesmo sujeito habita uma multiplicidade de
indivíduos.
160
Para a filosofia oriental, particularmente a budista, não indivíduo.
161
Ou
pelo menos não deveria haver. Se o rompimento dessa corda de tensão se pela
diluição do eu no mundo (agnosticismo, mergulho na imanência) ou pela absorção do
mundo pelo eu (gnosticismo transcendente), o fato é que por trás dos conflitos
discursivos sobre a divisão do trabalho criativo está a dicotomia entre indivíduo e
coletividade.
158
Mattos, Daniel. “Narrativa e Eficácia: O Estereótipo na Cultura”. ECO-UFRJ, aprovada em fevereiro de
2000.
159
Freud, Sigmund. “O Ego e o Id” in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud Vol.XIX. Rio de Janeiro. IMAGO, 1974
160
Jung, C. G. “Obras Completas Vol. 9: Tomo 1 - Os arquétipos e o inconsciente coletivo” Petrópolis, ed.
Vozes - 1990.
161
Percheron, Maurice. “Buda e o Budismo”. São Paulo, Ediouro, 1998.
190
Se pudéssemos todos atingir o nirvana eliminando o indivíduo, ou se o brilho de nossas
consciências individuais pudesse, pelo exercício do livre-arbítrio, eliminar o mundo de
forma edipiana, nossos problemas de gestão cultural estariam resolvidos. Mas na
impossibilidade desse movimento nos resta buscar uma melhor compreensão da maneira
como os interesses individuais e as relações interpessoais se articulam com as
subjetividades, discursos e valores coletivos interferindo assim na distribuição do trabalho
imaterial e na distribuição da riqueza por ele produzida.
No caso do atual cenário audiovisual brasileiro, procuramos entender o jogo político que
envolve artistas e empresários individuais, detentores de cargos públicos e outros
personagens num ambiente de valores, discursos e leis da coletividade. De forma geral,
todos conhecemos, ao menos intuitivamente, a manipulação dos valores e critérios da
coletividade por ações de troca política entre indivíduos. Esse será o cenário no qual
conduziremos a análise combinatória dos valores do mercado e da cultura.
191
2.1. Audiência e Educação:
© Luis Fernando Veríssimo: As Cobras
Audiência é uma preocupação tipicamente mercadológica. Assegurar quantidade e
qualidade de público independente de como, é o objetivo do agente de mercado. A
princípio, o audiovisual comercial não busca desafiar e instruir seu público. O objetivo é
inverso. Busca-se adular as sensibilidades mais comuns ao público alvo e repetir
elementos cognitivos que já sejam aceitos por ele. No entanto, ao oferecer grandes
quantidades de audiovisual a grandes populações que passam muitas horas por dia
diante de alguma de suas janelas, o mercado de audiovisuais educa (porque determina)
o senso ético, estético e lógico dessas populações.
Educação é uma preocupação da cultura. É perfeitamente possível falar “a cultura” com
o mesmo sentido de quando se fala “o mercado”, embora o senso comum leia “o
mercado” como um personagem e “a cultura” como um cenário. A cultura e seus
agentes, buscam ativamente educar com diversos propósitos que vão de sociabilizar até
redimir os indivíduos segundo seus valores. Fala-se muito da cultura como uma espécie
de mata nativa e do mercado como um conjunto de moto-serras. Mas como íamos
dizendo, a cultura é ao mesmo tempo produto e produtora de ações educativas. Embora,
a princípio, a popularidade seja uma preocupação vaidosa do audiovisual mercadológico,
ao fim educa-se tanto mais quanto maior ou mais precisa for a audiência de um produto
cultural.
192
Audiência, entretanto, não assegura eficácia e, portanto, não assegura o sucesso
comercial ou cultural de um produto audiovisual. Tal afirmação vale mesmo se
considerarmos a definição precisa de um público-alvo e o recorte eficaz de uma
veiculação quando mira esse público. O produto audiovisual busca produzir efeitos. A
audiência não teria nenhum valor se não fosse possível nela produzir efeitos. Então o
valor da audiência depende do valor da eficácia comunicativa ou (podemos dizer)
educativa. O exemplo emblemático disso é a propaganda. Muito embora não se possa
excluir nenhum outro produto audiovisual dessa ética, mesmo os filmes que querem
vender muitos ingressos lançam mão da educação do público alvo. A produção do efeito
pretendido não depende apenas de uma representação metodológica eficaz do público-
alvo, mas principalmente da formulação de um conteúdo que produza o efeito de
recepção pretendido. É importante considerar que existem grandes diferenças entre
definir características estereotípicas de um público alvo e estabelecer fórmulas eficazes
para reproduzir determinada subjetividade nesse mesmo público. Se nos interessa
entender como se formulam os estereótipos que dão forma ao nicho de audiência,
também nos fazem questão os critérios usados na escolha da forma e do conteúdo das
mensagens a ele destinadas. E essas decisões são tomadas tanto na criação de
audiovisual comercial quanto artístico.
O pensamento de mercado é cartesiano por definição e assim como usa da tabulação de
dados para chegar à definição das características de um público alvo, também se valerá
de um método similar para orientar o processo criativo. Em linhas gerais, sua
metodologia se baseia na consideração do resultado passado como fundamento para a
expectativa de resultado futuro. Bastante empírico, (no sentido que Hume dava ao
termo) e que também discutimos na dissertação de mestrado.
162
A repetição é um
importante valor mercadológico e educacional. Daí vêm as “fórmulas” comerciais do
162
Hume, David. “Investigação Acerca do Entendimento Humano”. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1989.
193
audiovisual. Combinações artificiais de memes vulgares que dão origem aos gêneros
audiovisuais. Gêneros são estereótipos, mecanismos de reprodução. As fórmulas são
receitas criativas, estruturas narrativas que determinam limites de linguagem à
performance cognitiva. Quando Josef Campbell escreveu “O Herói de Mil Faces” lançou
as bases para uma série de incursões formais sobre esses padrões ficcionais. Sua obra,
inspirada na psicologia arquetípica de Carl Gustav Jung, busca descrever a espinha
dorsal do mito universal do herói, que estaria presente no ethos de toda ficção narrativa
da história da civilização, do Gilgamesh ao Rambo, passando por Cristo.
163
Sid Field,
ficou conhecido por estabelecer formalmente que filmes de sucesso tendem a contar
histórias organizadas em três atos divididos por dois pontos de virada dramática (plot
points).
164
O valor eficaz das narrativas é explorado também por Daniel Dennett em seus
trabalhos de filosofia da consciência.
165
Enfim, também no fluxo das narrativas, a razão é
capaz de isolar padrões. Mas será que o uso dessas fórmulas ou estereotipias (ou
padrões meméticos) é exclusivamente uma manipulação demagógica do mercado em
busca de corações e mentes?
© Luis Fernando Veríssimo: As Cobras
163
Campbell, Joseph. “O Herói de Mil Faces”. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995.
164
Field, Syd. “Manual do roteiro”. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1994.
165
Dennett, Daniel C. “Tipos de Mentes: Rumo a uma Compreensão da Consciência”. Rio de Janeiro,
Rocco, 1997.
_______________. “Consciouness Explained”. Penguin Books, 1999.
_______________. “Brainchildren: essays on designing minds”. Cambridge, MIT Press, 1998.
194
“Alguns, de viés especialmente catastrofista, afirmam que o mercado
contamina tudo. E dizem que contamina a tal ponto que existe quem
escreva livros e faça filmes seguindo formulas de sucesso (sexo,
violência, etc.). Não é tão simples. Tais fórmulas existem, aliás são
muito divulgadas. Todo o problema, porém, está em que o mero
conhecimento das fórmulas não garante a ninguém a química entre
arte e entretenimento que faz um bom livro ou um bom filme, tenham
ou não sucesso de público. Se é certo que a indústria se alimenta do
entretenimento mais do que da arte, também é certo que não haveria
bom entretenimento sem arte”.
166
A formulação de Wefort demonstra o modo peculiar como a social-democracia tenta
conciliar ao mesmo tempo que polariza. A social-democracia é aqui entendida como a
mais difundida interface entre socialismo e capitalismo. No Brasil da virada do século, a
social-democracia pode ser definida de duas formas: do ponto de vista da direita, a
fórmula social-democrata se resume ao “capitalismo para os amigos e socialismo para os
outros”. Nas palavras de um formador de opinião ultraconservador:
“O projeto neoliberal que se diz estar em curso de implantação no
mundo não é liberal. É uma fusão de elementos neoliberais e
socialistas, destinada a fazer microcosmicamente, no seio de cada
sociedade que governa, uma divisão territorial entre esquerda e
direita similar àquela que dominou o mundo desde o acordo de Yalta:
a economia fica para os capitalistas, a cultura e a política para os
socialistas. À liberdade de mercado, no setor econômico, se alia o
dirigismo socialista em tudo o mais - na educação, na formação
psicológica das massas, nas relações de família, na ecologia, na
moral pública e privada, em tudo, enfim, que não interfira nas
decisões econômicas das grandes empresas. Desviando para esses
setores extra-econômicos o clamor reivindicante que antes
ameaçava desaguar numa economia socialista, os poderes
multinacionais dividem o mundo segundo a mais confortável das
repartições: liberdade para o dinheiro, burocracia estatal para os
seres humanos. (...) Num futuro breve, os parlamentos nacionais
legislarão sobre trânsito e sobre uso dos banheiros públicos, mas
não sobre economia ou política externa”.
167
166
Wefort, Francisco C. “Cultura, Cinema e Indústria” em Cardoso, Fernando Henrique, et al. “Cinema
Brasileiro. Serie Cadernos do Nosso Tempo, Nova Serie, 4”. Rio de Janeiro : Fundo Nacional de Arte e
Cultura : 2001.
167
Carvalho, Olavo de. “Entrevista ao Embaixador Caius Traian Dragomir”
www.olavodecarvalho.org/textos/dragomir.htm
195
O controvertido comentarista de direita toca num ponto verdadeiro do problema e ajuda a
evidenciar a difusão da dicotomia de que trata este trabalho. Vista da esquerda, a social-
democracia sedefinida ao contrário daquilo: “socialismo para os amigos, e capitalismo
para os outros”. No caso do meio cinematográfico, aqueles que tiverem bons amigos nas
estruturas de Estado, terão oportunidade de produzir filmes que não dão lucro. Aos
outros, resta lutar na arena do mercado contra o Golias nacional e os Titãs internacionais.
Como vimos no capítulo em que definimos o modelo cultural, a educação das massas,
seja com vistas à mediocridade ou à elevação espiritual, é um sintoma de distribuição
oligárquica de poder. A preponderância das redes de política interpessoal sobre as
orientações ideológicas nas decisões de Estado no Brasil permanece recalcada enquanto
se discute o significado político de palavras em subitens de editais de acesso a dinheiro
público.
Quando o gênero discutido é o tele-jornalismo ou mesmo o cine-documentário, o senso
comum não vai além da procura sempre interessada de legitimidade objetiva. A
discussão sobre a validade do audiovisual como reprodução do real foi ultrapassada
pela forma documentário, mas está absolutamente arraigada na forma jornalismo onde,
reza a lei, não há espaço para ficção (denotativa ou conotativa).
Em seus primeiros filmes, os irmãos Lumière usavam a câmera escondida no intuito de
que a cena não perdesse a naturalidade. Auguste Lumière chegou a declarar que eles
haviam inventado a máquina que “transferiria a História”, ou seja, acreditava que o
cinema era o documento definitivo do Real. O ideal do audiovisual foi, por muito tempo
que ele se configurasse como esses primeiros filmes da história, quando não havia
nenhuma linguagem a recorrer e o analfabetismo audiovisual fazia com que a ação
precedesse a intenção. Ainda assim é arriscado afirmar que não intenção quando se
coloca uma câmera em determinado lugar para registrar determinado acontecimento. O
196
simples enquadramento já se configura como intenção, ainda que seja totalmente
espontâneo.
Na perspectiva deste trabalho é impossível afirmar se a imagem virtualmente em
movimento do cinema é produto ou produtora de uma ilusão. Não como valorar a
representação usando como parâmetro o Real, a não ser que se esteja disposto ao
exercício da metafísica e a sua fatal inconclusão. Nossos objetivos específicos nos
impedem de seguir nessa linha. Quando, afinal, julgamos a representação em sua
manipulação precisamos, antes, estabelecer a essência daquilo que é passível de ser
manipulado. Desse esforço se extrai o objeto, sempre descrito numa linguagem, enfim,
numa representação. O problema se desdobra assim, infinitamente. O tempo do filme é
virtual. Uma ilusão (e sempre ilude) possibilitada pela predisposição da mente em iludir-
se em meio ao movimento, criando assim tempos e temporalidades.
168
Se não foi isso
que a objetividade sonhou para a linguagem científica (causalidade, dedução e indução)
trata-se de outro problema, que seria abordado na dissertação de mestrado “Narrativa e
Eficácia”.
A modernidade caracterizou-se pelo projeto de construção da ordem. A própria idéia de
“projeto” ou de que a ordem pode ser construída caracterizam a cultura moderna. Em
seu aspecto mais radical a cultura moderna se apresenta na forma do positivismo. Essa
forma comodamente ancorada de pensar permeia os pressupostos de julgamento dos
produtos culturais. A modernidade positivista é uma cultura que quis produzir um espaço
seguro e previsível para a vida social. Um espaço ordenado, a salvo dos perigos do
acaso e do inesperado. Este projeto apoiou-se sobre dois pressupostos: a razão é
absoluta e constitui um fundo comum e universal para a humanidade e; a construção final
uma sociedade completamente baseada nos ideais da ordem e da harmonia dá fim à
168
Mattos, Daniel. “Cinema e temporalidade” (orientador: Paulo Vaz). Monografia de graduação. ECO-
UFRJ, aprovada em 1998.
197
História. Segue-se uma existência contínua, linear, sem sobressaltos e sem novas
mudanças. Mas até que essa sociedade perfeitamente ordenada possa ser alcançada, a
ordem é a da reforma permanente. A razão moderna não respeita nenhum dogma a não
ser seu próprio projeto. Exige o questionamento de toda diferença e de todo acidente em
nome da adoção de uma forma sintética, única, definitiva, ainda que sempre por alcançar.
A modernidade é uma utopia em permanente construção. A única coisa fora de
questionamento é o projeto em si. Este está fechado, precede sua construção e deve ser
respeitado e seguido ao longo de todo processo. Os obstáculos por vencer nos projetos
modernos (muitos) são as particularidades. Elas precisam ser absorvidas, anuladas ou
destruídas para que o espaço caótico da natureza lugar a um espaço simples plano e
simétrico, passível de gestão. São objetivos da modernidade: a unificação dos valores,
das normas, das mensurações, das categorias, dos comportamentos e das idéias. Por
que não dizer: o fim da alteridade. A transformação de todas as identidades em uma
única identidade de abrangência absoluta. Diluição de todos os entes no Ser. E, na
física, a síntese das leis em um campo unificado.
169
As estratégias de controle da
modernidade foram bem retratadas na imagem do panóptico, por Foucault.
170
Aqueles
sob controle devem viver sob vigilância ou sob a contínua possibilidade da vigilância.
Enquanto o poder ordenador está sempre invisível, fortuito.
Há, hoje, um contraste acentuado entre a natureza extra-territorial do poder e a contínua
territorialidade da vida cotidiana. O poder contemporâneo escapa totalmente a esse
confinamento, não reconhecendo fronteiras ou separações. Consequentemente, também
não reconhece diferença e abre mão do diálogo com a alteridade. O poder
desterritorializado não assume compromisso algum com o local ou com quem viva nele.
169
Einstein, Albert. “Como vejo o mundo”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
_____________. “Pensamento político e últimas conclusões” (Seleção de Mário Schenberg). São
Paulo: Brasiliense, 1983.
170
Foucault, Michel. “Vigiar e punir: nascimento da prisão”. Petrópolis: Vozes, 1987.
198
Não surge para essa forma de exercício do poder a escolha entre reduzir toda diferença
pela força” ou lançar-se ao “desafio da comunicação” que existia como condição para o
exercício do poder. A cultura moderna não se questiona, define-se como natural e
inevitável. Sua base epistemológica é perfeitamente Darwinista.
Para modernizar as sociedades e dar prosseguimento ao processo civilizador a educação
é fundamental. Estado e Capital são aliados nesse processo. Como abordamos, o
Estado investe grandes esforços no sentido da educação em massa que produz
populações intelectualmente homogêneas, integradas ao sistema de trabalho, irmanadas
em ngua e pátria. Filho pródigo da modernidade, o Estado nacional opera segundo
seus métodos cartesianos e os aplica à linguagem da cultura para julgá-la segundo sua
utilidade para propósitos de cidadania.
De nossa parte, parece mais preciso afirmar que o método não tem autoridade sobre a
linguagem, mas antes oposto. É pela linguagem que se toma um caminho. É preciso
desconstruir a metodologia adotada pelo Estado para definir e administrar as atividades
produtivas ligadas ao campo da cultura de forma geral e da comunicação audiovisual
especificamente. O que se precisa evidenciar na cultura é aquilo que o método da
objetividade não é capaz de identificar. O método a ser utilizado para esse fim costuma
ser o da crítica da cultura. Comparando o texto metodológico das políticas públicas com
o texto político das polêmicas, poderemos extrair padrões estereotípicos desta mediação
sócio-cultural. O aparelho de Estado define a cultura tentando dar conta de seu
compromisso com a objetividade. O método, além de incoerente, é praticado como
discurso de justificativa, pois esse compromisso é traído pela corrupção em todas as
suas formas, do estelionato propriamente dito até o mero tráfico de influência. Está claro
que é preciso pensar como o Estado não pensa. Sim, pois não podemos utilizar um
método para analisar esse mesmo método, sob pena de confundir método e objeto.
199
Segundo as regras da produção de conhecimento, a clara diferenciação entre método e
objeto é algo fundamental.
O Estado interfere no campo da cultura através da regulação legal. Uma lei cria, extingue
ou reforma procedimentos burocráticos. E é isso que a lei é. Uma lei não pode, por
exemplo, produzir igualdade de condições de acesso ao ensino superior. Mas uma lei
pode estabelecer quotas, descontar impostos, conceder benefícios. O aparelho de
estado responde a uma narrativa política tal como “é preciso preservar e fomentar a
cultura local e regional” com uma política pública: um conjunto de transformações
metodológicas no próprio aparelho de estado, visando provocar um efeito. O efeito é, em
todos os casos, um efeito estatístico, que o aparelho oficial de apropriação da
realidade usado pelo estado é a geografia estatística. Por exemplo: o uso da
classificação étnica na elaboração de uma política de quotas de vagas preferenciais
numa universidade é uma interferência que busca provocar uma correção estatística para
uma escolha de recorte que não provém de um consenso. Ao contrário, é arbitrária. Não
obstante, esta correção objetiva, publicada nos jornais, fica valendo como resposta à
narrativa política da igualdade racial. De toda forma, a tese o busca comprovação
matemática ou estatística, pois está concentrada nas escolhas que antecedem os
métodos de verificação. Não importa o efeito que as quotas provoquem nas matrículas
escolares, importa que o Estado se proponha a definir, um a um, a cor de seus
habitantes. Importa que a diferenciação étnica em massa não pode lograr êxito como
política de igualdade étnica. Toda a metodologia empregada pela cultura positivista
como forma de garantir objetividade nas interpretações está aqui sob suspeita, por tanto,
não pode estar em ação.
que estamos falando sobre educação, o exemplo oferecido pela polêmica em torno
das políticas de quotas raciais é emblemático. Nos EUA, essas políticas são chamadas
200
de affirmative actions, mas se analisadas para além do campo da geografia estatística,
consistem na substituição do mérito pelo privilégio como valor social.
“‘Não preencham raça humana tampouco raça brasileira: podem ser utilizadas as
categorias do IBGE’. Assim dirigiu-se uma orientadora educacional aos alunos numa
escola da periferia do Rio de Janeiro”.
171
Como queríamos demonstrar, a base da
verdade científica está na cuidadosa exclusão de todas as categorias que não ajudam a
conclusão do problema. Para corrigir o privilégio de que gozam os brancos numa
sociedade racista é preciso, antes de tudo, definir quem é branco e quem é negro,
desenhando de forma definitiva uma linha de exclusão étnica na população, por bem ou
por mal.
“Em colégio da Zona Sul, a diretoria e o conselho de pais recusaram
dar, sobre seus alunos, qualquer informação referente ao quesito
raça/cor do Censo Escolar do MEC 2005. Situação distinta ocorreu
em Belo Horizonte, onde uma diretora de escola resolveu alterar
todas as fichas dos estudantes que optaram pela cor parda,
convertendo-os em pretos”.
172
A capa do censo escolar editado em 2005 pelo governo federal, traz uma ilustração com
uma criança de traços orientais, uma branca, uma indígena e uma negra. A criança
negra segura um livro em cuja capa se lê: História da África. A ilustração parece ser
muito sintomática daquele problema que isolamos com Stuart Hall no capítulo “O Modelo
da Cultura”. O negro parece não ser brasileiro, mas pertencente a uma raiz africana que
define, essa sim, sua identidade. É paradoxal que a classificação dos indivíduos de uma
população pelo critério de raça ou cor possa visar à igualdade racial.
171
Maio, Marcos Chor e Schwarcz, Lilia Moritz “Distorções no Censo Escolar brasileiro” em O Globo,
2005. Obs: Marcos Chor Maio é sociólogo e pesquisador da Fiocruz. Lilia Moritz Schwarcz é professora do
Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.
172
Idem.
201
“Há entre geneticistas largo consenso que raça é um conceito pouco
consistente. Por outro lado, o abuso, mais do que o uso, tornou a
máxima de que raça é uma construção social moeda corrente das
políticas racialmente orientadas no país. Crianças e adolescentes, que
devem ser guiadas pelo princípio da universalidade e da cidadania,
poderiam estar apreendendo que raça é um produto do racismo:
conforma um conceito tóxico, como afirma Paul Gilroy, pois contagia o
tecido social. Esperamos que os tempos da racialização que vem
acometendo o Brasil tenham vida curta”.
173
Soluções são variáveis condicionadas, problemas são variáveis condicionantes. A forma
como o Estado monta o problema da cultura e do audiovisual tem ascendência sobre a
forma de verificação das soluções. Uma vez representado de forma específica e
arbitrária, o objeto responderá apenas dentro dos limites do método. Isso não nos
interessa. Esta escolha metodológica simples é possível porque embora o estado até
hoje se utilize exclusivamente de métodos cartesianos, as ciências humanas mantêm
alternativas abertas. Não vamos analisar o desempenho do estado usando seus próprios
métodos, como faz o terceiro setor, mas antes realizar uma descrição crítica desses
métodos. As questões que nos interessam estão entre a objetividade das forças
históricas e a subjetividade dos agentes, como descreveu Habermas.
174
O consenso
pode ser resultado de uma “comunicação sistematicamente deformada”. Dada a
desigualdade de posições na sociedade, o consenso nunca pode aparecer como
premissa ou pressuposto, nomeando a priori categorias de objetos. A intenção
universalista do iluminismo não é emancipadora, mas repressora. O método cartesiano
tem como função impor uma concepção monológica do objeto. Esta concepção imposta
é paradoxalmente identificada como uma confirmação verificada pela ação do método
apropriado. O Estado jamais logrará êxito em constituir políticas culturais a partir da
categorização de arte, cultura, lazer e entretenimento. A criação dessas opções
173
Ibidem.
174
Habermas, J. “Técnica e ciência como ideologia”. Lisboa, Edições 70, s.d.
__________. “Théorie de l’agir communicationnel”, Paris, Fayard, 1987, 2 vols.
__________. “L’Espace public, Archeologie de la publicité comme dimension constitutive de la
société bourgeoise”, Paris, Payot, 1978.
202
identitárias será sempre explorada e manipulada na proporção em que os agentes
envolvidos tiverem privilégios de acesso às redes sociais dentro do sistema de
classificação e consequentes concessões de privilégios.
Como criar condições de diversidade na produção audiovisual? A questão da
hegemonia, como sabemos, não é típica do capitalismo. A progressiva inclusão de todos
os aspectos da cultura no campo de interesse da economia é interpretada como um
avanço colonialista do capital privado sobre espaços em que sua presença não é
desejável. O que ocorre, no entanto, é um processo de ampliação da complexidade e
alcance de um gênero de mediação sócio-cultural; similar ao que ocorreu, por exemplo,
com a metodologia das ciências naturais. A melhor maneira de evitar que suas
limitações tornem-se limitações da humanidade é problematizar o método, e não através
dele. Esse é o papel das Ciências Humanas.
A dicotomia que separa os mecanismos de geração de valor econômico daqueles que
geram valor cultural é motor de alguns conflitos do mundo contemporâneo. Apenas
pensando além dos métodos da objetividade podemos perceber que Cultura e Economia
não são coisas, mas aspectos da dinâmica social. Estudados e administrados
separadamente respondem um e outro de forma distinta, aparentemente autônoma. O
Estado monta o problema quando organiza atribuições disciplinares em pastas públicas.
Comunicação e Cultura são objetos para os métodos do Estado como são Fazenda e
Planejamento. Comunicação e Cultura, no entanto, recebem descrição estatística, já
Fazenda, Planejamento e Comércio têm descrição contábil. A mídia, por sua vez,
decanta o senso comum em descrições narrativas. O aparelho de Estado conta com
seus métodos objetivos para dar conta dessas três variáveis: estatística, contábil e
política.
203
Nos últimos anos, as teorias econômicas ganharam poder legitimador e sua crescente
visibilidade nos meios de comunicação é sintomática disso. Os discursos econômicos
embasam decisões e estabelecem limites para a ação dos agentes sociais. A produção
de teorias econômicas influentes foi arma fundamental de afirmação global do modo de
vida capitalista e continua sendo seu principal modo de pressão geopolítica. O debate
sobre os fundamentos da macroeconomia é uma disputa política e ideológica, não
ontológica. A crença dos participantes nas regras é o que possibilita a existência do jogo.
Agência Nacional de Cinema esteve ligada à pasta de Indústria e à Casa Civil. Esta
mesma agência terá agora suas atribuições ampliadas rebatizando-se Ancinav. Um
movimento que busca unir todo o audiovisual em um só mapa estratégico. está o
Estado, a reformar seu organograma em busca de fazer-se um retrato da realidade, como
o mapa sufocante do conto de Borges, que representa tudo e a tudo inviabiliza. Uma
dúvida está automaticamente lançada. Como conciliar, em uma política pública comum,
as necessidades comerciais e culturais que cercam cinema e tevê? Certamente que não
é lançando mão do pressuposto que define a cultura como algo necessariamente distinto
da mercadoria (sob pena não ser cultura). A descrição legal das atribuições da pasta de
cultura vai exatamente nessa direção.
Hoje, o principal mecanismo de financiamento da cultura é a renúncia fiscal, consistindo
em dispositivos legais que devolvem integralmente às corporações o dinheiro empregado
em projetos culturais. Mas o que devemos perguntar é como essa política define
“Cultura” e que todo é aplicado pelo órgão competente para verificar a “culturalidade”
de um projeto cultural.
O método aplicado tem três fases distintas. Na primeira, o Ministério da Cultura verifica
se o projeto é cultural o suficiente para merecer o subsídio. Na segunda, um contribuinte
privado ou público aloca recursos no projeto de sua preferência. Na terceira, o estado
204
concede desconto no imposto do agente privado ou público no valor de grande parte ou
mesmo de todo o investimento. A crítica questiona se esta iniciativa pode ser definida
como investimento privado. A única mudança em relação ao modelo anterior (da
Embrafilme e do patrocínio exclusivamente estatal) é o fato de o Estado isentar-se da
tarefa de decidir onde investir sua verba de cultura, uma vez que aprovação de um
projeto não garante o interesse da iniciativa privada. O Estado desenvolve métodos e
critérios generosos ao atribuir valor cultural. Como resultado são aprovados para
captação muitos mais projetos do que os que efetivamente conseguem se viabilizar
financeiramente. Os investidores contemplados pela benesse fiscal se encarregam da
seleção. O custo, no entanto, é subsidiado pelo Estado. O objetivo desta política oscila
entre o fomento da cultura por seu valor intrínseco e o reconhecimento de que o produto
cultural deve viabilizar-se como mercadoria.
A partir de 2003, com a esquerda no governo federal, o modelo se volta naturalmente
para as decisões de Estado, a partir da acomodação de interesses e privilégios
consolidados, e revestido por um discurso nacional-culturalista que caracteriza os
interesses do Estado sobre o campo da cultura. O meio cultural cumpre o papel de
aplicar a eficácia publicitária à mentalidade social criando uma tensão entre autoritarismo
e cidadania. Isso não é invenção dos governos de esquerda. Nos EUA, a indústria
audiovisual exerce uma forma de auto-censura que transforma a esmagadora maioria
dos produtos audiovisuais daquele país em peças de publicidade moral e cívica. O
ufanismo que caracteriza essa orientação aparece também em regimes autoritários
desde o nacional-socialismo alemão (que produziu a genial obra de Leni Riefenstahl) até
a o cinema revolucionário soviético (com Dziga Vetov e Eisenstein, entre outros). Na
verdade, os artistas m sendo imemorialmente adotados e sustentados pelo poder e
pelos poderosos e produzem nessa relação algumas das mais belas e importantes obras
culturais da história. Durante um milênio inteiro não havia arte que não sacra. E isso
sequer estava em questão.
205
Na estrutura local, do Brasil, o que se constrói a toda hora, seja no jornalismo e
dramaturgia da TV Globo ou no cinema produzido quase que exclusivamente pelo
Estado, é o estereótipo do brasileiro. Mais precisamente, o que se discute em teoria são
modelos de identidade nacional e sua apropriação pelo meio audiovisual, hora como
forma de publicidade social (Globo) hora como critério de investimento (Estado). A
preponderância disto, embora vulgar em todo mundo, não é natural nem necessária. O
fator determinante do “padrão Globo de qualidade”, como discutimos é o monopólio
cultural que a emissora exerce no audiovisual em todas as janelas e sua relação carnal
com o situacionismo político. O modelo desse padrão é parecido com o dos produtos de
entretenimento norte-americanos, uma auto-censura baseada na responsabilidade do
monopólio comunicacional sobre a forma da cultura. A reação conservadora e a adoção
de uma postura paternalista como forma de preservar-se da acusação de deformação”
da audiência, dão espaço à formação deliberada de audiência, ou seja, sua educação por
meio de audiovisuais.
No dia 10 de março de 1993, estreou no canal BBC4 de Londres, um documentário
produzido por Simon Hartog intitulado “Brasil: Beyond Citizen Kane”. A fama desse
documentário supera de longe seu número objetivo de expectadores, pois nunca foi
executado comercialmente no país. Visivelmente detrator, o documentário foi atacado
pela emissora nacional por todos os meios, inclusive jurídicos. A Globo perdeu o
processo, mas o especial caiu na obscuridade do mito e tornou-se o arauto mudo da tese
da “Globo como o grande satã” que teve muitos seguidores, entre eles o político populista
Leonel Brizola, e continuará os tendo.
206
O filme é valorizado pela crítica pelo que traz de denúncia à forma como se faz política
nacional de comunicações no Brasil, expondo as relações pelas quais se concedem,
mantém e renovam as concessões de canais de rádio e televisão.
“O que se pretende é denunciar a maneira palaciana pela qual
Marinho ou Bloch, Sílvio Santos ou Saad, cada um pegou a sua
fatia. Mais que isso, e certamente os livros que se têm lançado
recentemente sobre Samuel Wainer e Assis Chateaubriand bem o
evidenciam, Marinho não agiu diferentemente de como agiria
qualquer um dos outros dois. Acontece que Marinho foi menos
amador que os demais ou, quem sabe, o sistema capitalista no qual
se acha hoje inserido o Brasil é mais cínico e eficiente do que
aquele, ainda primário, experimentado pelas duas outras
personagens. Portanto, o que se deve ter claro, desde logo, é que
Marinho não é nem pior nem melhor que Wainer, Chateaubriand,
Saad, Bloch ou qualquer outro. Foi, apenas, mais competente e
eficiente, alcançando melhores resultados em suas manobras”.
175
A TV Tupi entrou no ar em 1950. A TV Excelsior em 60. A Tupi saiu de operação em
1980, parte do processo de falência dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. A
Excelsior perdeu sua concessão por ter feito oposição ao governo “revolucionário” de 64.
A TV Excelsior foi absorvida pelo grupo Bloch, de onde surge a TV Manchete e por Sílvio
Santos e o SBT. A Rede Globo de Televisão entrou no ar em 26 de abril de 1965. Em
1969 um incêndio nas instalações da emissora em São Paulo leva suas operações para o
Rio de Janeiro. Hoje a Rede Globo tem seis estações retransmissoras afiliadas, cobrindo
99% do território brasileiro. Concentra três quartos de todas as horas de televisão vistas
por 150 milhões de brasileiros.
A Rede Globo não é uma emissora de TV der de mercado, é um instrumento de
Estado. A Globo tem o poder de agendar as preocupações nacionais. Se a mídia educa,
a Globo é mais eficiente que as redes de ensino público e privado juntas. O slogan
"Globo: a gente se vê por aqui" passa a idéia de que a Globo é um espelho do Brasil, de
que o brasileiro se representado no conteúdo audiovisual da emissora. Ela é o maior
175
Antonio Hohlfeldt, “Muito além da Tevê Globo”. www.pucrs.br/famecos/pos/revfamecos/5/hohlfeldt.pdf
207
mecanismo de construção da cidadania brasileira, amalgamando uma identidade comum
a todas as diferenças entre os brasileiros. A Rede Globo consolida o território, a língua e
a noção de pertencimento do brasileiro. A Copa do Mundo, o Governo Federal, a língua
portuguesa, o Brasil são instituições fomentadas e sustentadas pela emissora. Mais que
um “grande irmão”, um Leviatã de manipulação informacional, a Rede Globo transcende
o conceito de credibilidade. Não está em questão se ela é fiel aos fatos, pois é ela que
elenca e hierarquiza os fatos nacionais. A organização que a controla compõe-se de
cerca de cem empresas com mais de 20 mil funcionários. Uma história que começou em
1926, quando Irineu Marinho fundou o jornal O Globo.
176
A cumplicidade entre a emissora líder e o estado nacional pela educação em larga escala
do povo brasileiro não pára no posicionamento radicalmente situacionista da primeira. O
conceito de formação de audiência também é praticado no reforço das tradições
vernáculas, no culto ao cânone, na valorização da erudição formal. De toda forma, duas
boas questões se manifestam quando evocamos audiência e educação. Primeiro, que o
valor de algo como cultura passa necessariamente por eficácia e por alcance. E
segundo, que a presença das duas coisas juntas (repetição e massa) é uma fórmula
econômica e política.
176
MELLO, Geraldo Anhaia. “Muito além do cidadão Kane”. São Paulo: Scritta Editorial, 1994.
208
2.2. Audiência e inovação:
"O que está em ação é uma relação circular e oculta entre aqueles
que fazem filmes e aqueles que assistem filmes, uma região que
nunca é vista por ninguém, mas que é uma província de muitos
olhos. Os cineastas, que são eles próprios espectadores de filmes
feitos por outros, têm uma vaga idéia sobre se serão ou não
compreendidos por seus contemporâneos. Estes últimos, por sua
vez, se adaptam (involuntariamente e com frequência de modo
inconsciente) a formas de expressão que por um breve período
parecem ousadas, mas logo se tornam lugar comum. Todo tipo de
expressão pictórica, teatral ou meramente social vive de
memórias reconhecidas ou não reconhecidas, uma fonte de
conhecimentos, pública ou privada, que brilha com maior
intensidade para uns e com menor para outros. E todo mundo
encontra sua voz, sua postura, seu caráter, nesse denso labirinto
em que todos habitamos uma postura e um caráter que
outros, um dia, irão redescobrir e lembrar".
177
A lingüística define como língua viva, aquela na qual ainda se pode cometer erros. Uma
linguagem perfeita é uma linguagem morta. O latim permanecerá tal como é enquanto
não for esquecido, a não ser que volte a ser falado. Neste caso os falantes vão errar e
vão gostar de alguns erros que serão incorporados à língua. Com o audiovisual não é
diferente. É uma linguagem viva e em movimento ininterrupto. Desde o primeiro filme
até hoje, ela fez multiplicar as possibilidades de sua gramática. E, tanto aqueles que
fazem os filmes como os que assistem, foram aprendendo e desenvolvendo juntos essa
linguagem. Ainda há todo o espaço da mente humana para que ela cresça. A linguagem
audiovisual, como todas as linguagens, nasce da relação entre audiência e inovação. A
matéria da cultura é diferença e repetição, que em nosso trabalho se projeta de forma
análoga em inovação e educação. Deleuze explica o mesmo com outras palavras.
"(...) Idéias justas são sempre idéias conformes a significações
dominantes ou a palavras de ordem estabelecidas, são sempre
idéias que verificam algo, mesmo se esse algo está por vir,
177
Carrière, J.C. “A linguagem secreta do cinema”. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995. pág. 20
209
mesmo se é o porvir da revolução. Enquanto que 'justo idéias' é o
próprio devir-presente, é a gagueira nas idéias; isso pode se
exprimir na forma de questões, que de preferência fazem calar as
respostas. Ou mostrar algo simples, que quebra todas as
demonstrações".
178
Exatamente, mas não se pretende aqui tomar partido de um dos dois lados como se isso
se tratasse de uma partida de futebol. É o abismo de razão entre as duas coisas
(diferença e repetição) que nos desperta para o milagre da cultura. E a forma misteriosa
como pulamos de um lado para o outro desse abismo. Hora defendemos e pregamos a
consistência do mesmo, ora desejamos e fomentamos a criação do diferente, mas sequer
imaginamos o quanto a consciência (trunfo maior do Homo Sapiens) está comprometida
com os limites desta dualidade. Impregnada por ela a ponto de arriscar não ser outra
coisa que não seus desdobramentos internos. No centro deste problema (identidade e
diferença) está o tempo. O Tempo, algoz do filósofo, que se submete docilmente às
vontades do cineasta. Sacha Guitry, dramaturgo russo, tem uma frase que exprime bem
esse sentimento: "O concerto que vocês acabaram de ouvir é de Wolfgang Amadeus
Mozart, e o silêncio que veio depois também é de Mozart". Uma última digressão
filosófica sobre diferença e repetição: o tempo emerge de um paradoxo. O movimento
que escapa dos sentidos decalca um objeto que, indiferente, dura. O “Eu” surge da
limitação cognitiva dele mesmo, que ao não perceber que morreu, dura. Como pode algo
estar antes de si para fundar-se? Deu pelo menos um bom sofisma.
No capítulo anterior estabelecemos uma relação entre os eixos de valoração da
audiência e da educação entrecruzando valores que a princípio pertenceriam às
diferentes esferas do mercado e da cultura. Vimos que não se atinge grandes audiências
sem o uso de recursos educacionais. Por outro lado, não se pode chegar a resultados
educacionais sem preocupação com o acesso a audiências significativas. No presente
178
Deleuze, G. “Conversações”. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. apud. Peter Pál Pelbart. Pág. 53
210
capítulo, a questão da audiência será posta em contato com o outro eixo paradigmático
da cultura: inovação. Precisamos entender como se pode compatibilizar o valor da
audiência com a necessidade cultural da inovação. Quando falávamos tão somente
sobre a inovação como um valor cultural, vimos que o conceito romântico da arte
deposita sobre o processo criativo do artista, livre de qualquer intencionalidade, a
atribuição dessa diferenciação fundamental na cultura. Concordamos que a constante
inovação é o sustentáculo da continua produção e consumo de audiovisuais. O
audiovisual caracteriza-se por sua novidade. Ineditismo é o nome da inovação na
comunicação. Vimos também que o meio cultural na inovação a possibilidade da
evolução cultural, ou seja, que o rompimento com o padrão estabelecido também é um
projeto para a cultura. Se a cultura precisa repetir os cânones à exaustão visando
garantir a adequada e homogênea educação das massas, por outro lado, deve inovar
seus conteúdos e processos para evoluir. Romper com sigo é, também, compromisso da
cultura como modelo de valores.
O cinema de arte o cinema visto como arte em contraposição à mercadoria de certa
forma também rompe com o grande-público e, por conseqüência com a necessidade da
sustentação econômica. Esta última, pelo menos no presente capítulo, não nos
interessa. Mas a inovação (e concordamos que sem ela não há cultura) cria uma
experiência que antes de poder ser fruída por muitos, poderá sê-lo justamente por
poucos. Essa idéia implica em duas coisas: primeiro, que toda inovação, apesar de
surgir como ruído, é potencialmente um futuro instrumento de educação. O que surge
como monótipo, torna-se estereótipo. Segundo, que na vanguarda vivem as
possibilidades do futuro cultural. Dela emergem o porvir do status-quo e também todas
as idéias que “fracassam” e que são esquecidas.
Em suma, na relação entre inovação e audiência está claro que, a princípio, as idéias que
determinarão o futuro da cultura são para poucos. Isso é o que sustenta e produz o
cinema de arte dentro e fora do mercado.
211
© Luis Fernando Veríssimo: As Cobras
A oposição entre cinema de arte e cinema de entretenimento, no Brasil e na Europa,
confunde-se com a competição entre esses cinemas nacionais e o cinema americano por
seus mercados internos. O cinema iraniano, por exemplo, ou o europeu, são recebidos
com entusiasmo nas salas dos centros culturais brasileiros. Por que a cultura e os
valores iranianos ou europeus são vistos como arte e a cultura e os valores americanos
como mercadorias? A resposta esnuma mistura do valor capitalista de “competição” e
na denúncia socialista contra a hegemonia. A cultura mercantilizada representa um bem
público convertido em privado, ou antes, em algo que ao ser convertido em mercadoria
perde sua essência comunitária. A mercadoria cultural não se produz espontaneamente,
do ato inovador da criação artística e cultural. Ela é composta sistematicamente a partir
das técnicas do marketing, reciclando elementos de ampla aceitação e familiaridade,
gerando um ambiente cultural que tenderia à redundância e a banalidade. Ao adquirir
função econômica, a produção cultural é desvirtuada em seu significado intransitivo. Tal
concepção se deixa entrever na recorrência de termos como “apropriação” e “cooptação”
quando um produto cultural nascido na marginalidade passa a ser comercializado pelos
meios de comunicação visando grandes audiências. Surge daí uma tendência erudita de
proteção contra a mais-valia nos ciclos de produção artísticas e culturais de uma
sociedade. Tal valor torna-se problemático quando usado como método de diferenciação
daquilo que é público do que é privado, daquilo que é artístico do que é comercial, aquilo
que é cultural do que é econômico. As incoerências e inconsistências dos pressupostos
212
que usamos quando julgamos e avaliamos os produtos culturais faz saltar aos olhos a
problemática relação das ciências humanas, especialmente das ciências sociais, com o
papel do capital na sociedade e na cultura. Deste julgamento emerge o sentido que
damos à economia, ao trabalho e à dimensão produtiva das relações sociais.
Nenhum outro movimento poderia ilustrar melhor o que estamos dizendo do que o
cinema-novo. O cinema novo é fruto de um momento histórico de culto à inovação
cultural, os anos incríveis da contra-cultura. A geração da contra cultura, da luta armada,
da bossa nova, que um dia foi vanguarda para poucos e hoje é o estereótipo oficial, o
status-quo em pessoas: de Gilberto Gil a José Dirceu, de Fernando Henrique Cardoso a
Luiz Inácio Lula da Silva, o poder de hoje, nasceu na contra-cultura de ontem. A contra-
cultura amadureceu para tornar-se cultura dominante, que sustenta e faz necessária uma
política cultural de Estado que eduque (segundo seus princípios) a inove (a partir destes).
Pois bem, entendamos a relação do cinema-novo com a audiência e entenderemos a
relação do meio cultural com o mercado.
“Dizimada esteticamente pelo Cinema Novo nos anos 60, a
cinematografia da Vera Cruz, primeira grande produtora de cinema
do Brasil - instalada em 1949 em São Bernardo do Campo (SP) (...)
até 1954 quando a empresa foi extinta, depois de realizar 18 filmes.
(...) A principal crítica formulada por Glauber Rocha - um dos pais do
Cinema Novo -, de que os filmes da Vera Cruz não seguiam uma
gramática brasileira, mas americana”.
179
Mais do que sentimentos antiamericanos, isso nos revela duas coisas: primeiro, a
mentalidade representada por Glauber Rocha, que considera que a linguagem
audiovisual tem um caráter nacional imanente, ou seja, que cada nação deve estabelecer
uma gramática própria (mais que um vocabulário); segundo, a associação direta entre o
adversário nacional (os EUA) e o inimigo capital (o capital). Uma pesquisa da unicamp
179
Caldeira, João Bernardo. “Nos tempos da Vera Cruz” Copyright © 2000, Jornal do Brasil.
http://www.jb.com.br/jb/papel/cadernob/2005/06/29/jorcab20050629001.html
213
defende que o estúdio Vera Cruz usou em suas trilhas sonoras diversos instrumentos
musicais tipicamente brasileiros e os cita: cavaquinho, pandeiro, ganzá e zabumba. Ela
nos apresenta aí um critério de identificação cultural objetivo para a música.
180
Pergunto-
me qual será a nacionalidade legítima do violão ou se a guitarra poderá um dia ganhar
cidadania brasileira assumindo uma escala diferente, como fez o cavaquinho. Vejamos:
o que está em jogo aí, no ataque desferido por Glauber Rocha e na defesa da
pesquisadora é a prova de procedência cultural, num formato que é essencialista e ao
mesmo tempo superficial. O Jazz pode ser usado no Brasil no estilo Bossa Nova.
Quem não gosta de samba bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé.
Podemos dizer que a Companhia Vera Cruz, fundada por Franco Zampari, era de certa
forma o oposto do cinema-novo no que se refere à relação entre inovação e audiência. O
objetivo do estúdio era reproduzir o padrão técnico internacional para competir no
mercado global. Como na época não existia esse know-how no mercado interno, a
empresa formou seus quadros com técnicos vindos principalmente da Europa.
“Houve uma onda migratória dos italianos para o cinema e o teatro. E
depois da Semana de Arte Moderna houve a procura por brasilidade.
Mas a Vera Cruz fez parte de um fenômeno universal: a Itália criou a
Cine Cittá, o Japão tinha sua grande produtora e a Alemanha
também. É claro que o cinema americano influenciou a todos”.
181
A Vera Cruz fez, de certa forma, o mesmo exercício de inovação formal do cinema novo,
apenas com um viés diferente. Enquanto o estúdio incorporou à linguagem do cinema
comercial estrangeiro temas e elementos locais com objetivos de mercado, o cinema-
novo construiu-se sobre as bases do neo-realismo italiano acrescentando a ele o
exotismo histriônico de Glauber Rocha e sua estética da fome com a câmera na mão e
uma idéia na cabeça. Ambos compõe seus produtos a partir de elementos nacionais e
internacionais, ambos representam, de certa forma, uma vontade de independência na
180
Onofre, Cíntia Campolina. “O zoom nas trilhas da Vera Cruz - A trilha musical da companhia
cinematográfica Vera Cruz”. Dissertação de mestrado defendida na Unicamp, 2005.
181
Braz Chediak, em: Caldeira, João Bernardo. Op. Cit.
214
produção cultural. A diferença está no fato da Vera Cruz ter sido um empreendimento
capitalista, enquanto o cinema-novo foi um movimento socialista. A oposição sustentada
por Glauber Rocha à Vera Cruz está muito mais ligada a esse fato do que a essa questão
de identidade cultural.
“Glauber criticava muitas coisas que sequer conhecia. Esta era na
verdade uma visão mais dele, que exercia a função de líder e
influenciava os mais moços, como eu. E cada geração sempre reage
para se impor. O próprio Cinema Novo se impôs não pelos filmes,
mas também pelos gritos do Glauber. Em seguida as coisas foram
relativizadas, e a Vera Cruz teve seu valor reconhecido”.
182
Como vemos, a idéia de identidade cultural nacional serve como pretexto para disputas
no campo da produção cultural que englobam interesses simultaneamente
mercadológicos e culturais. O que estava em jogo nos anos 60 não era o colonialismo
cultural, mas o modelo de produção audiovisual do país. Ao fim e ao cabo, a Vera Cruz
perdeu a batalha tanto para o cinema novo quanto para os estúdios internacionais. Dos
espólios dessa disputa política surgiu o atual modelo de produção cinematográfica
brasileiro, altamente centralizado nas redes de relações do Estado e sustentado pela
ideologia nacionalista de esquerda que ali fincou raízes.
Até hoje, os cineastas remanescentes desse tempo usam do mesmo tipo de discurso
para garantir acesso privilegiado ao subsídio estatal. O Modelo do patrocínio privado
com incentivo fiscal foi colocado em quarentena no início de 2003 pelo governo recém-
eleito que, até certo ponto, representava outros grupos e interesses. Foi algo parecido
com o que ocorreu no governo Collor, porém com viés inverso. Naquele momento, por
diversas questões entre elas a inoperância burocrática, houve suspensão dos
investimentos de companhias estatais no mercado de projetos audiovisuais pela primeira
vez desde a retomada dos 90. O fato chegou ao conhecimento público em uma
182
Eduardo Escorel em: Caldeira, João Bernardo. Op. Cit.
215
entrevista arranjada entre o cineasta Carlos Diegues e o jornalista de O Globo, Arnaldo
Bloch, sobrinho-neto do fundador do Grupo Bloch, Adolfo Bloch. A entrevista, dada logo
nos primeiros meses do novo governo, tinha a forma de veemente protesto contra novos
critérios de verificação da “culturalidade” dos projetos. Um desses critérios, denominado
“contrapartida social” foi o alvo principal da denúncia. O cineasta descreveu o modelo
como “dirigismo ideológico” e “trotskismo” e defendeu que “a contrapartida social da obra
de arte é a obra de arte em si”. Afirmou também que o único critério para a concessão de
recursos financeiros deveria ser a “capacidade de produção”. O problema é que há muito
mais capacidade de produção cultural do que de comercialização e consumo. Existe
uma enorme capacidade represada de realização audiovisual. A polêmica gerou uma
série de outras reportagens sobre o assunto em que ele e alguns outros produtores de
cinema eram identificados como “a classe artística”. O governo promoveu uma reunião
em Brasília com alguns produtores e atores selecionados por critério de notoriedade. Em
um debate público ocorrido duas semanas depois no Teatro Leblon, no Rio de Janeiro,
compareceram este grupo de interlocutores e Juca Ferreira, representando o Ministério
da Cultura. Questionado sobre os critérios que levaram o governo a escolher aqueles
indivíduos como representantes da classe artística, Juca Ferreira declarou que os artistas
famosos têm um capital social natural que os leva a ser escolhidos. O representante do
ministério concluiu declarando: “Isso é assim mesmo, vocês tem que se conformar”.
Esse episódio nos permite destacar algumas coisas interessantes para nossa discussão.
Embora o discurso da classe artística representada pelo cineasta bem na direção
daquela visão romântica da arte que apresentamos nas palavras de Oscar Wilde, esse
discurso serve claramente a outros propósitos, muito mais pragmáticos. Temos no Brasil
um conjunto cada vez maior de cineastas assediando as estruturas de política cultural do
Estado em busca de financiamento segundo um modelo culturalista. O acirramento da
competição por espaços de realização no mercado de projetos culturais cria a tensão
216
política que explode aí, na mudança radical de quadros nas estruturas federais que
mediam a liberação dos recursos financeiros. O Governo, por sua vez, também usa o
discurso culturalista, que pelo viés da educação cultural, para interpor barreiras de
critério ao fluxo de capital historicamente injetado nas atividades desses grupos desde a
década de setenta. um descolamento entre os discursos, que tem fundamento nos
modelos que abordamos nesta tese, e os interesses, que estão longe de ser ideológicos.
Os valores, tanto do mercado como da cultura prestam-se como artifícios de discurso
para uma disputa que é política e visa a apropriação de recursos de capital e de infra-
estrutura de promoção e exibição. Hoje, estuda-se mudar a política pública de patrocínio
à cultura. Ato contínuo, o Estado necessita descobrir o que, no meio de uma miríade de
protótipos de mercadoria, é expressão genuinamente cultural. Além disso, precisa criar
critérios para decidir, em meio a toda demanda de expressão cultural, que projetos
devem ser agraciados com o mecenato oficial. São muitos os brasileiros que produzem
projetos para obras audiovisuais. Poucas o as obras efetivamente realizadas e
distribuídas. É muito difícil explicar, dentro da lógica da cultura, porque determinados
autores são continuamente apoiados em detrimento de uma miríade de outros. Já
citamos algumas vezes a existência e importância do mercado de projetos tanto para o
mercado audiovisual quanto para esse meio enquanto cultura. Os erros ou acertos na
produção e distribuição de audiovisuais, avaliados pelo modelo do mercado ou da cultura,
nascem na seleção de projetos para investimento. Nos vemos mais uma vez em um
cenário darwinista: o fato fundamental para a atividade audiovisual como mercado ou
cultura é a seleção e reforço de determinados padrões e, conseqüentemente a exclusão
e morte de todos os outros.
Um dos critérios mais comuns em editais públicos de fomento à cultura é a cuidadosa
exclusão de tudo que pareça remotamente comercial e isso exclui a possibilidade do
produto cultural ser competitivo frente aos similares estrangeiros. O produto cultural,
segundo esse critério, precisa se diferenciar formalmente ou esteticamente do tipo de
217
produto dominante, ou seja, precisa trazer inovação cultural. Tal engessamento criativo
se reflete nos critérios de concessão de benesses expressos nos editais públicos,
incentivos fiscais, etc. Os editais citam critérios como “qualidade artística”, “importância
para a cultura regional”, “apoio expresso da comunidade” e bizarrices do tipo “garantia de
acesso por comunidades carentes”. O diagnóstico das recentes políticas públicas de
cultura está montado. Segundo a fórmula dicotômica da economia política, a cultura não
pode ser legitimamente apropriada pela finalidade econômica. Segundo o modelo de
valoração cultural que considera a inovação, a cultura tampouco pode ser cooptada pela
ideologia política. Oscar Wilde ficaria satisfeito. Toda arte é inútil.
Toda a discussão sobre o aparelhamento político e ideológico da cultura no projeto da
ANCINAV (Agência Nacional de Cinema e Audiovisual) passa pelo entendimento das
estruturas de administração pública. Agências costumam ser criadas como órgãos de
Estado com independência em relação aos governos. Visam regular segundo critérios
perenes concessões públicas ou monopólios estruturais e preservar esses contratos, no
longo prazo, da ação partidária dos governos. Se o motivo que justifica a existência de
uma agência é controlar a concessão pública de um monopólio concedido, a Ancinav se
iguala às outras, pois a radiodifusão é uma concessão e a Rede Globo detém o
monopólio do meio televisivo no Brasil. Mas o contratos a garantir. A não ser
que consideremos o contrato social muito firmado entre as o tesouro nacional e
aqueles membros da elite que decidem se dedicar apenas às artes, apenas consumindo
as riquezas produzidas pelo trabalho exclusivamente econômico do povo. O povo” fica
com a tarefa inglória de produzir a riqueza a ser consumida em atividades “elevadas”.
Esse contrato é precisamente aquele que o governo da coalizão encabeçada pelo Partido
dos Trabalhadores tentou romper com uma parte dos cineastas mais influentes do país
nas últimas décadas, representados por Carlos Diegues. O plano desse governo de
mudar uma estrutura política (de Estado) fracassou por três razões fundamentais.
218
Primeira: o discurso que embasava essa mudança era voltado de forma unilateral para o
aspecto educacional da cultura, especialmente no sentido da formação de determinada
identidade nacionalista. Isso por si não justificaria a derrota do governo, pois esse
discurso “chapa-branca” nos critérios de fomento precede em muito a ascensão desse
grupo político ao poder. As profundas incoerências e sombras de autoritarismo da
concepção social-democrata de cultura estavam latentes e eram suportadas porque
na prática ainda não havia significado uma barreira à continuidade do financiamento
público daquela produção cinematográfica cartelizada. Segunda: a mudança de rumos
nas políticas de audiovisual esboçadas pelas ações do governo no ano de 2003 não
significavam uma alteração significativa na qualidade dos critérios e das metodologias de
seleção de projetos, mas apenas um redirecionamento dos subsídios de um cartel
anteriormente privilegiado para um novo, alinhado aos interesses do novo grupo no
poder. Terceira: as "agências" (estruturas de poder arraigadas no estado e resistentes às
mudanças de governo) estavam lá para garantir que os velhos "contratos" do Brasil
colonial, continuassem a atravessar os séculos, mantendo a bica aberta para os
caprichos artísticos da elite burguesa.
A escolha de Gilberto Gil para ocupar a posição máxima na política cultural nesse
período mostra mais que a simples tendência contemporânea de dar aos cargos ápices
função simbólica e marqueteira. É a sinalização de que os movimentos artísticos
nacionais dos anos 60 seriam, a partir de então, a referência oficial do que deve ser
fomentado como cultura. Em suma: ficava definida a forma específica de inovação
cultural que o Estado pretendia fomentar e permitir.
A confusão entre a concepção dos projetos audiovisuais como produto mercadológico ou
como obra cultural se evidencia a todo momento nas declarações um tanto cínicas dos
produtores nacionais aos meios de comunicação. Em 2005, em entrevista ao semanário
219
Época (pertencente ao grupo Globo), a produtora de cinema Paula Lavigne falava sobre
seu último filme, “O Coronel e o Lobisomem” que custou algo em torno de R$ 7 milhões
captados por leis de incentivo fiscal.
”Não me interessa fazer filmes de mais de R$ 10 milhões, como
Casa de Areia, de Andrucha Wadington, porque não esse
dinheiro no mercado (...) Cacá Diegues e Luiz Carlos Barreto, por
exemplo, tiram o deles na produção, porque, se forem correr o risco
de esperar a bilheteria, vão morrer de fome. Por isso os orçamentos
deles são grandes. Eu vivo da comercialização. Não me beneficio
do dinheiro captado, e sim da nossa aposta no retorno. Mas quem
mais ganha é a multinacional, a Fox (...)”.
183
Essa fala é marcadamente política e, por isso mesmo nos revela algumas estratégias
discursivas. Paula Lavigne teve uma ascensão meteórica como produtora de cinema.
Infelizmente é muito difícil estabelecer claramente as razões de seu sucesso empresarial.
Poderíamos associá-lo ao fato de ser esposa de Caetano Veloso, amiga de Gilberto Gil, e
ter parentes próximos em posições de destaque nas Organizações Globo e nos mais
altos postos do Estado. Todas essas evidências de nepotismo e tráfico de influência são
ao mesmo tempo bastante comuns aos produtores e diretores de cinema e muito difíceis
de caracterizar como relação de causalidade. Dito isso, vale ressaltar que o orçamento
de sete milhões de reais do filme lançado por ela não tem nada de baixo. Entrevemos no
discurso de Lavigne, alguma disposição para caracterizar-se como produtora de
mercado, diferenciando-se de Carlos Diegues e Luis Carlos Barreto que lucrariam,
segundo ela, a partir de recursos públicos. Essa frase por si caracteriza o grau de
competitividade predatória entre os produtores e também a presença dos discursos que
temos abordado em suas argumentações. Mas, ao mesmo tempo em que se
descaracteriza como agente subsidiado, ela denuncia a preponderância da distribuidora
sobre o produtor doméstico. Embora argumente que “vive” da renda em bilheteria, a
produtora se beneficia como todos da radical redução de ricos obtida pelo sistema de
renúncia fiscal. O que lemos é puro artifício político, pois de fato seu padrão
183
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT1049678-1661,00.html
220
orçamentário e meios de articulação política em nada se diferenciam daqueles praticados
pelos produtores que pretende difamar. Isso significa que posicionar-se do lado do
mercado jogando pedras na estatização do cinema ou no lado oposto, bombardeando o
mercado são táticas meramente discursivas. Paula Lavigne apenas adota como
estratégia uma postura mercadológica que lança uma cortina de fumaça sobre sua
produção profundamente arraigada na dependência em relação ao Estado. Isso também
fica claro em outro trecho da entrevista, em que ela declara, em sintonia com a visão
econômica do setor que “diversão de brasileiro é televisão, pois o povo não tem R$ 15
para ir ao cinema”. Ao mesmo tempo, defende mecanismos altamente protecionistas:
“Sou a favor de cota de tela, sim. O cinema brasileiro precisa ser protegido. Mas temos
de ter fundos de financiamento para tipos de filmes diferentes. Está todo mundo indo ao
mesmo guichê e entrando no mesmo edital. A turma do cinema precisa se organizar”.
184
© Luis Fernando Veríssimo: As Cobras
Na mesma entrevista, a bem-relacionada produtora diz que não pretende mais fazer
filmes sofisticados, pois o público não é capaz de absorvê-los. Essa mistura de
proselitismo e ética capitalista não aparece no discurso de Ruy Guerra, cineasta ícone do
cinema-novo, embora Glauber Rocha, líder do movimento o acusasse de pirataria e
considerasse que, como moçambicano, Guerra não tinha direito de filmar no Brasil.
Declara Ruy Guerra:
184
Idem.
221
”Tenho vontade de rodar em preto-e-branco. Mas se meus filmes já
são para um gueto, daqui a pouco vou fazer filmes para dez
espectadores. (...) Tem um certo deslumbramento filmar nos
Estados Unidos. Mas não liberdade para fazer este filme que eu
fiz nos Estados Unidos. Aqui (no Brasil), pode-se fazer coisas
contra a corrente e lá você é obrigado a se moldar”.
185
Representante do culturalismo marxista mais radical, Ruy Guerra opta por se alienar
completamente da pressão exercida pelo fator econômico na produção cinematográfica.
Sua relação com a audiência é passiva. Seu compromisso é exclusivamente com a
inovação do produto cultural.
No lado oposto da moeda, o artífice da maior vilania liberal jamais praticada contra o
cinema brasileiro estatal, Ipojuca Pontes, ex-titular da Secretaria de Cultura no governo
Collor, extinguiu a Embrafilme e é hoje uma espécie de marginal proscrito aos guetos da
direita, como o site de opinião “Mídia Sem Máscara”. Em texto publicado naquele
espaço, Ipojuca desanca Carlos Diegues e companhia:
“O Sinhozinho do Cinema, consciente do poder retórico do cinema
da vitimização mercadológica, reafirma, ainda uma vez, com uma
ponta de sofisticado populismo intelectual, que não se interessa ‘pelo
Brasil como nação, mas como povo’. Mas Diegues não reflete (ou
não quer refletir) que o dinheiro sacado das estatais brasileiras para
ele (e aliados) fazer filmes milionários decorre precisamente de
dispositivos fiscais criados pela ‘nação’ elitista, dispositivos que,
caracterizados como um privilégio, originam-se e ajudam a alastrar a
miséria do povo pelo qual ele diz se ‘interessar’”.
186
O ressentimento de Ipojuca Pontes nos revela de forma radical as fragilidades da relação
entre os valores da culturalidade e a audiência do audiovisual. Fragilidade essa que
mantém todo o discurso do valor social da arte refém do tráfico de influência que permeia
as relações entre elite erudita e Estado. Isso é reforçado pela história recente dos
movimentos artísticos e culturais no Brasil e no mundo. Sua orientação privilegiadamente
185
O Globo. 13 de janeiro de 2005.
186
Pontes, Ipojuca. “Arte/manha da era Lula” 26 de outubro de 2005. © 2005 MidiaSemMascara.org
http://www.midiasemmascara.org/artigo.php?sid=4234
222
marxista, quando posta em paralelo com as relações oligárquicas pelas quais se
perpetuam, fundamentam o retrato constrangedor de uma “elite esclarecida” porém
pusilânime e que pode ser associada àquela caricatura do “socialista de mesa de bar”.
Cacá Diegues conta saudoso de quando fazia parte de um grupo de jovens cineastas que
nos anos 60 subiu os morros com o desejo de transformar a sociedade. Hoje, lembrando
saudoso daqueles tempos de esperança na revolução comenta: “Depois de 30 anos,
nada mudou”. Pois é. Na mesma matéria, Diegues demonstra a alienação econômica de
que vínhamos falando:
”É preciso multiplicar os meios de produção, além dos que
existem; isso é, consolidar os artigos primeiro e terceiro da Lei do
Audiovisual e, ao mesmo tempo, viabilizar funcines, linhas de crédito,
fundos públicos, prêmio adicional, editais de fomento, etc., para que
todo o filme encontre seu nicho de produção sem inviabilizar o do
outro. Não temos que escolher entre isso e aquilo: queremos isso e
aquilo também. Quanto mais filmes melhor”.
187
Diegues tenta resolver de forma pueril o dilema da escolha entre o filme comercial ou
de arte. Acredito que ninguém discorde da ultima frase do cineasta, mas podemos prever
que os custos disso seriam talvez altos demais para um Estado que tem tantos
problemas a resolver. A razão do recalque da questão econômica no discurso do
cineasta talvez se explique na própria forma do texto quando ele diz “para que todo o
filme encontre seu nicho de produção sem inviabilizar o do outro”. O pronome
possessivo tem um sentido especial. A atenção do emissor não está no produto, mas
no produtor ou, quem sabe, num universo restrito de produtores.
“O milionário cinema brasileiro patrocinado pelo estado não é
indústria, comércio, arte ou ‘cultura’, não é sequer propaganda
bolchevista. É o saque de uma corporação altamente articulada
aos cofres públicos de um país repleto de miseráveis (são 53
milhões, segundo dados estatísticos fornecidos pelo próprio
governo)”.
188
187
O Globo, 16 de outubro de 2005.
188
Pontes, Ipojuca. Op. Cit.
223
Como se nota, a problemática relação entre cultura e mercado se reproduz de certa
forma numa relação igualmente problemática entre os cineastas que disputam território
em um campo de batalha que impõe escolhas que vão da reprodução de clichês ao
rompimento com a linguagem comum, muito embora a venalidade da disputa por capital
propriamente dito venha velar essa outra, de caráter ideológico e filosófico.
“(...) O cinema inteiro vale pelos circuitos cerebrais que ele
instaura, justamente porque a imagem está em movimento.
Cerebral não quer dizer intelectual: existe um cérebro emotivo,
passional... os circuitos podem fazer triunfar os reflexos
condicionados mais rudimentares, tanto quanto dar uma
oportunidade a traçados mais criativos, a ligações menos
'prováveis'”.
189
Cito novamente Deleuze para caracterizar um dos principais vetores ideológicos que
municiam essa disputa e que nomearemos aqui de “virtuosismo cultural”. Uns traçados
são rudimentares, prováveis, outros mais criativos, pois improváveis. Como uma mão o
intelectual acaricia a diferença e a produção da diferença às expensas da reprodução do
sentido. Com a outra mão moraliza a cultura querendo protegê-la da barbárie. Os
críticos da cultura de massa tendem a usar a glorificação hora da diferença, da
vanguarda; hora do tombamento patrimonialista dos cânones. As escolhas daquilo que
será glorificado ou demolido é tão arbitrária quando previsível a partir de seu
engajamento político. Demolem os estereótipos da TV e defendem entrincheirados
aqueles da música embalsamada das orquestras filarmônicas. Esse julgamento do que é
“original” e o que é “fórmula” demonstra involuntariamente que o dito cinema de arte é,
também ele, cheio de clichês e estereótipos próprios. O princípio que defendemos ao
falar de estereótipos é justamente da criação como decomposição e recomposição de
signos (ou símbolos, sinais, memes, arquétipos...). Não espaço para essencialismos
quando se trata da disputa política por sentidos preferenciais. Não pode haver critério
objetivo para julgar uma composição arbitrária de signos. Não indivíduo que possa
189
Deleuze, G. op.cit. p.78-79
224
reivindicar autoria ou propriedade de uma coisa assim. Eis o ponto em que esta
abordagem serve para acercar-se dos problemas do capital intelectual, da circulação de
bens culturais, da crise da indústria fonográfica, do plagio, da pirataria... Eis o nó que liga
nosso problema ao da economia política. Marx ajudaria a levantar tais questões na
ordem da produção de valor. É uma porta que se abre para um tema muito grande, mas
como resistir à maçaneta reluzindo?
"O cinema sempre contará o que os movimentos e os tempos da
imagem lhe fazem contar. Se o movimento recebe sua regra de
um esquema sensório-motor, isto é, apresenta um personagem
que reage a uma situação, então haverá uma história. Se ao
contrário, o esquema sensório-motor desmorona, em favor de
movimentos não orientados, desconexos, serão outras formas,
devires mais que histórias".
190
está Deleuze não resistindo a fazer o que é a obsessão da teoria crítica e da elite
cinematográfica européia: querendo muito que o cinema não queira contar uma história.
Até que faz sentido, se lembrarmos que Deleuze é filósofo e a filosofia é uma literatura
que não quer contar uma história. Mas o problema é justamente este: por trás de todos
os mais elaborados argumentos racionais, Deleuze se limita a combater o Main Stream
em favor de uma proposta de cinema não-narrativo. Os circuitos estão , concordo. O
cinema interfere neles, sim. O sensório-motor (linha de causa e efeito) não é a única
ferramenta de construção de uma narrativa. Sim, mas nem em Hollywood. Nunca foi.
Tudo indica que a montagem sempre instaurou novos circuitos como quer o filósofo.
Então não se entende o porquê da discussão a não ser como ação política de virtuosismo
cultural. Os circuitos a que Deleuze se refere são metáforas de uma característica básica
da relação da consciência com os fluxos de signos sejam quais forem.
O confuso enredamento ideológico e pragmático em que nos vimos neste capítulo ajuda
a esclarecer o rompimento, cada vez mais importante para nosso estudo, entre discurso
190
Idem p.77
225
e prática no meio audiovisual. Parece cada fez mais claro que a dicotomia entre cultura e
mercado que na primeira parte deste texto estava assepticamente definida, se transforma
em um emaranhado indistinto de artifícios políticos, discursos de fachada e métodos não
praticados quando se procura entrecruzar os eixos de valoração de ambos os modelos a
partir de polêmicas comuns ao meio. Estar lado a lado com o mercado ou com a cultura,
com o capital privado ou com as tetas do tesouro nacional, com a linguagem popular ou
erudita são posições-de-sujeito modulares e extremamente volúveis de que se servem os
diversos personagens envolvidos na atividade audiovisual brasileira. E ainda mais,
como veremos.
226
2.3. Educação e Lucro:
Para o alcance dos objetivos deste trabalho, cuja petulante abrangência está registrada
no título mesmo da tese, não é possível se esquivar da aplicação dos conceitos e
modelos aqui estudados à produção audiovisual da TV brasileira. Isso porque nenhum
outro meio audiovisual no país associa de forma tão direta os efeitos educacionais da
produção e consumo de audiovisuais com o valor mercadológico da lucratividade.
Desfrutando de muito mais importância no cenário cultural mundial do que o tão
combalido cinema nacional, a TV brasileira nem por isso (ou talvez mesmo por isso,
como diria Tom Jobim) encontrou alguma espécie de conforto ou boa acolhida por parte
da crítica, especialmente aquela dita mais especializada. Por isso mesmo, trata-se de
território especialmente perigoso de um assunto já espinhoso, repleto de nuances e
complexidades, que certamente mereceria um trabalho à parte. Muito por algumas
características culturais particulares, pelas circunstâncias voluntárias de seu
desenvolvimento e o contexto de extrema influência deste veículo no país, a produção da
TV brasileira rompe o século XXI com um mercado interno consolidado e potencial
internacional crescente. Guardando alguma cautela exigida pela imensidão do campo, o
panorama da última década serve de guia para a reconstituição e avaliação dos
mecanismos que orientaram a criação, a produção e a distribuição desse produto
audiovisual nas telinhas do Brasil e do mundo.
Driblando qualquer resistência moral ou material, os ingredientes desta cautela
metodológica acabam se impondo pela própria estruturação do mercado de TV no Brasil.
Nesse sentido, a presença prioritária e ressaltada dos empreendimentos de TV aberta,
cuja cobertura geográfica alcança índices surpreendentes de mais de 90% do território
nacional, superando há décadas os números de penetração de todos os demais meios de
comunicação disponíveis, aparece como uma primeira exigência de foco. Além disso,
a enorme audiência relativa desse veículo no país, muito mais do que comprovar uma
227
tendência tecnológica ou comportamental mundial, acabou se tornando um fator decisivo
para a construção de uma auto-imagem brasileira, com todas as doses excessivas de
autocrítica, autocomplacência e considerável auto-engano. Ao mesmo tempo, garante a
reprodução e divulgação massiva dessa imagem entre os diversos agentes culturais,
provocando uma espécie de círculo vicioso/virtuoso, moto perpétuo desse processo.
Sempre desejada, por mais que esteja errada. Com alguma licença poética, os versos de
Gonzaguinha podem funcionar como uma primeira idéia do tipo de relacionamento que o
público brasileiro desenvolveu com sua grande companheira, a telinha doméstica. Dos
primeiros aparelhos monocromáticos distribuídos por Assis Chauteabriand, passando
pelas segundas intenções e enormes investimentos em infra-estrutura realizados pelos
governos militares, até a circulação e integração de tecnologia e conteúdo dos novos
mercados globalizados, a televisão sempre esteve nos holofotes da opinião pública,
acostumando-se ao papel de palco, púlpito, parlatório e saco de pancadas da
representação cultural brasileira. Principalmente nos círculos acadêmicos e demais
esferas de sofisticação intelectual, a inequívoca vocação e orientação comercial da TV,
desde as suas origens, foi sempre apontada (ou pelo menos atacada) como o seu maior
calcanhar-de-aquiles. Uma denúncia repetida e responsável por esse clima local de
rejeição cuja força só pode ser comparada aos já citados índices de penetração e
audiência do veículo.
Mais do que uma contradição, essa combinação supostamente esdrúxula de grande
audiência pelas massas e grande rejeição política por parte dos formadores de opinião ao
veículo TV e, por extensão, aos produtos audiovisuais destinados à distribuição neste
meio, pode e deve ser entendida como um primeiro reflexo psicológico daquela
interferência dos modelos de valoração audiovisual de que trata esse trabalho. Se
podemos coletar diversas estatísticas para comprovar o poder de atração das novelas,
telejornais e demais programas da telinha, trabalhos adaptados à lógica do mercado,
228
àquele plano de valoração que justapõe os resultados de audiência aos níveis crescentes
de lucratividade de cada produto, também não é difícil arranjar argumentos para justificar
a condenação da TV, a partir de uma abordagem fundamentada naqueles valores de
educação e inovação, ou seja, segundo o modelo cultural anteriormente delimitado.
Também não é difícil perceber, mais uma vez, as nuances mais importantes para o
esclarecimento dessa contradição. Dessa forma, qualquer identificação de padrões de
rejeição-adesão aos produtos televisivos por parte de grupos específicos, sejam estes
etários, sócio-econômicos, educacionais, ideológicos, etc., pode oferecer dados
relevantes para este estudo. Nenhum dado poderia ser mais significativo, no entanto, do
que a constatação mais ou menos genérica de que matizes sociais bem definidas
acabam funcionando como fatores de aglutinação e alinhamento para a manifestação
pública de opiniões particulares convergentes. Tal como na análise mais basilar do
fenômeno comunicacional, o compartilhamento do repertório é vetor decisivo para a
eficácia da recepção controlada. Dessas muitas particularidades da apreensão do
conteúdo audiovisual televisivo nasce uma formidável relação sujeito-(tel)espectador,
inédita em relação a seus pares midiáticos, singular pela reunião de caracteres
psicológicos, inadvertidamente levianos e corriqueiros, embora (ou por isso mesmo,
como numa revelação lacaniana) potencialmente expressivos e representativos para a
formação ou desconstrução (o que faria pouca diferença nesse caso) desse tipo
específico de eu-sujeito-moderno.
Do acontecimento para a experiência, essa relação de telespectação se traduz
imediatamente numa função de especulação projetiva, consciente ou não. Podemos
dizer que assistimos TV como quem assiste ao próprio reflexo assistindo TV. Projetamos
nesse telespectador-modelo nossas próprias crenças, expectativas, frustrações e
certezas na esperança de receber um feedback redentor a respeito de nós mesmos e dos
outros. Numa relação de comunicação que se torna mesmo íntima, os critérios de
229
julgamento sobre o conteúdo das mensagens recebidas se deturpam, oscilando da
severidade à complacência de acordo com afinidades emocionais. Questionado sobre a
beleza da mocinha da nova novela, o telespectador viaja pelo signo de meio-século de
mocinhas (e espectadores ávidos por mocinhas), para emitir um juízo que pode até se
sustentar em relação a outras mocinhas, mas certamente revelará algum desvio
contextual (a tal relação projetiva), caso confrontado com os critérios usados pelo mesmo
telespectador para julgar a beleza de alguma mulher de seu círculo social imediato. Esse
comportamento também acaba se refletindo naquela reconhecida demanda pela
exposição pública da vida das chamadas celebridades e outras espécies midiáticas que
habitam esse universo mágico.
Mais do que os outros suportes recentes do fazer artístico, como o cinema e a fotografia,
a televisão enfrenta desde o seu nascimento o fantasma supostamente esterilizante de
seu caráter utilitário. Se decidimos relacionar esta janela ao entrecruzamento específico
de educação e lucro é justo pela orientação eminentemente pragmática de ambos eixos
de valoração, um no modelo do mercado e outro no da cultura.
É certo que também poderíamos discorrer sobre a TV ao associar audiência e educação
ou mesmo em outros enquadramentos aqui apresentados. Devemos lembrar que a
forma de organizar o conteúdo desta pesquisa não tem caráter essencialista e não
pretende fundar um sistema de mapeamento do lugar de cada expressão ou problema
sócio-econômico relacionado ao tema, aos moldes de um esquema freudiano do tipo
ego-id-superego. Desde sempre, a TV ocupou o seu lugar de eletrodoméstico na sala de
estar das famílias, substituindo o rádio nesse papel centralizador do entretenimento
caseiro. Esse fator exemplar de fragilidade enquanto meio de fruição artístico-cultural
sempre atuou de forma determinante para a desmistificação do conteúdo da TV como
obra-de-arte, naquele sentido frankfurtiano do termo. No mundo da televisão, a aura já
não existe de fato, pois está diluída no todo. Aqui, o sentido inato de massificação,
230
duplicação, replicação, estereótipo, ultrapassa a importância cognitiva do veículo como
arte-em-si, criação, formação ou arquétipo. O sentido educacional da televisão é muito
mais aquele de uma formação para o consumo e a cidadania do que o sentido
emancipador que a educação tem em uma interpretação mais transcendente.
Ao mesmo tempo, a TV utilitária se transforma na principal companhia do espectador
caseiro, “a melhor amiga do homem”, tal como interpretada pela anedota popular e
capitalizada pelas campanhas de final de ano da Rede Globo. Um teórico daquela linha
radical tribalista pós-moderna pode continuar denunciando: “não tenho paciência pra
televisão, eu não sou audiência para a solidão”, mas na prática a teoria é outra. Nas
engrenagens daquele processo de subjetivação dissecado em outra parte desta tese, a
TV assume um papel bem maior do que simples ferramenta de emissão, mecanismo de
massificação ou agente de influência. Para a legitimação mesma do processo, ela
também precisa assumir o papel do outro, o inimigo número um da solidão. Aquele sem
o qual qualquer tentativa de subjetivação não passaria de devaneio individual auto-
limitado e inócuo, ou mesmo um paradoxo monológico kantiano. Para o bem ou para o
mal, e talvez seja essa a verdadeira questão do colega tribalista, essa presença acaba se
revelando nos flagrantes da vida real, na paixão adolescente pelo galã da novela ou no
educado “boa-noite” devolvido ao âncora do telejornal.
231
2.3. Educação e Lucro:
Para o alcance dos objetivos deste trabalho, cuja petulante abrangência está registrada
no título mesmo da tese, não é possível se esquivar da aplicação dos conceitos e
modelos aqui estudados à produção audiovisual da TV brasileira. Isso porque nenhum
outro meio audiovisual no país associa de forma tão direta os efeitos educacionais da
produção e consumo de audiovisuais com o valor mercadológico da lucratividade.
Desfrutando de muito mais importância no cenário cultural mundial do que o tão
combalido cinema nacional, a TV brasileira nem por isso (ou talvez mesmo por isso,
como diria Tom Jobim) encontrou alguma espécie de conforto ou boa acolhida por parte
da crítica, especialmente aquela dita mais especializada. Por isso mesmo, trata-se de
território especialmente perigoso de um assunto já espinhoso, repleto de nuances e
complexidades, que certamente mereceria um trabalho à parte. Muito por algumas
características culturais particulares, pelas circunstâncias voluntárias de seu
desenvolvimento e o contexto de extrema influência deste veículo no país, a produção da
TV brasileira rompe o século XXI com um mercado interno consolidado e potencial
internacional crescente. Guardando alguma cautela exigida pela imensidão do campo, o
panorama da última década serve de guia para a reconstituição e avaliação dos
mecanismos que orientaram a criação, a produção e a distribuição desse produto
audiovisual nas telinhas do Brasil e do mundo.
Driblando qualquer resistência moral ou material, os ingredientes desta cautela
metodológica acabam se impondo pela própria estruturação do mercado de TV no Brasil.
Nesse sentido, a presença prioritária e ressaltada dos empreendimentos de TV aberta,
cuja cobertura geográfica alcança índices surpreendentes de mais de 90% do território
nacional, superando há décadas os números de penetração de todos os demais meios de
comunicação disponíveis, aparece como uma primeira exigência de foco. Além disso,
a enorme audiência relativa desse veículo no país, muito mais do que comprovar uma
232
tendência tecnológica ou comportamental mundial, acabou se tornando um fator decisivo
para a construção de uma auto-imagem brasileira, com todas as doses excessivas de
autocrítica, autocomplacência e considerável auto-engano. Ao mesmo tempo, garante a
reprodução e divulgação massiva dessa imagem entre os diversos agentes culturais,
provocando uma espécie de círculo vicioso/virtuoso, moto perpétuo desse processo.
Sempre desejada, por mais que esteja errada. Com alguma licença poética, os versos de
Gonzaguinha podem funcionar como uma primeira idéia do tipo de relacionamento que o
público brasileiro desenvolveu com sua grande companheira, a telinha doméstica. Dos
primeiros aparelhos monocromáticos distribuídos por Assis Chauteabriand, passando
pelas segundas intenções e enormes investimentos em infra-estrutura realizados pelos
governos militares, até a circulação e integração de tecnologia e conteúdo dos novos
mercados globalizados, a televisão sempre esteve nos holofotes da opinião pública,
acostumando-se ao papel de palco, púlpito, parlatório e saco de pancadas da
representação cultural brasileira. Principalmente nos círculos acadêmicos e demais
esferas de sofisticação intelectual, a inequívoca vocação e orientação comercial da TV,
desde as suas origens, foi sempre apontada (ou pelo menos atacada) como o seu maior
calcanhar-de-aquiles. Uma denúncia repetida e responsável por esse clima local de
rejeição cuja força só pode ser comparada aos já citados índices de penetração e
audiência do veículo.
Mais do que uma contradição, essa combinação supostamente esdrúxula de grande
audiência pelas massas e grande rejeição política por parte dos formadores de opinião ao
veículo TV e, por extensão, aos produtos audiovisuais destinados à distribuição neste
meio, pode e deve ser entendida como um primeiro reflexo psicológico daquela
interferência dos modelos de valoração audiovisual de que trata esse trabalho. Se
podemos coletar diversas estatísticas para comprovar o poder de atração das novelas,
telejornais e demais programas da telinha, trabalhos adaptados à lógica do mercado,
233
àquele plano de valoração que justapõe os resultados de audiência aos níveis crescentes
de lucratividade de cada produto, também não é difícil arranjar argumentos para justificar
a condenação da TV, a partir de uma abordagem fundamentada naqueles valores de
educação e inovação, ou seja, segundo o modelo cultural anteriormente delimitado.
Também não é difícil perceber, mais uma vez, as nuances mais importantes para o
esclarecimento dessa contradição. Dessa forma, qualquer identificação de padrões de
rejeição-adesão aos produtos televisivos por parte de grupos específicos, sejam estes
etários, sócio-econômicos, educacionais, ideológicos, etc., pode oferecer dados
relevantes para este estudo. Nenhum dado poderia ser mais significativo, no entanto, do
que a constatação mais ou menos genérica de que matizes sociais bem definidas
acabam funcionando como fatores de aglutinação e alinhamento para a manifestação
pública de opiniões particulares convergentes. Tal como na análise mais basilar do
fenômeno comunicacional, o compartilhamento do repertório é vetor decisivo para a
eficácia da recepção controlada. Dessas muitas particularidades da apreensão do
conteúdo audiovisual televisivo nasce uma formidável relação sujeito-(tel)espectador,
inédita em relação a seus pares midiáticos, singular pela reunião de caracteres
psicológicos, inadvertidamente levianos e corriqueiros, embora (ou por isso mesmo,
como numa revelação lacaniana) potencialmente expressivos e representativos para a
formação ou desconstrução (o que faria pouca diferença nesse caso) desse tipo
específico de eu-sujeito-moderno.
Do acontecimento para a experiência, essa relação de telespectação se traduz
imediatamente numa função de especulação projetiva, consciente ou não. Podemos
dizer que assistimos TV como quem assiste ao próprio reflexo assistindo TV. Projetamos
nesse telespectador-modelo nossas próprias crenças, expectativas, frustrações e
certezas na esperança de receber um feedback redentor a respeito de nós mesmos e dos
outros. Numa relação de comunicação que se torna mesmo íntima, os critérios de
234
julgamento sobre o conteúdo das mensagens recebidas se deturpam, oscilando da
severidade à complacência de acordo com afinidades emocionais. Questionado sobre a
beleza da mocinha da nova novela, o telespectador viaja pelo signo de meio-século de
mocinhas (e espectadores ávidos por mocinhas), para emitir um juízo que pode até se
sustentar em relação a outras mocinhas, mas certamente revelará algum desvio
contextual (a tal relação projetiva), caso confrontado com os critérios usados pelo mesmo
telespectador para julgar a beleza de alguma mulher de seu círculo social imediato. Esse
comportamento também acaba se refletindo naquela reconhecida demanda pela
exposição pública da vida das chamadas celebridades e outras espécies midiáticas que
habitam esse universo mágico.
Mais do que os outros suportes recentes do fazer artístico, como o cinema e a fotografia,
a televisão enfrenta desde o seu nascimento o fantasma supostamente esterilizante de
seu caráter utilitário. Se decidimos relacionar esta janela ao entrecruzamento específico
de educação e lucro é justo pela orientação eminentemente pragmática de ambos eixos
de valoração, um no modelo do mercado e outro no da cultura.
É certo que também poderíamos discorrer sobre a TV ao associar audiência e educação
ou mesmo em outros enquadramentos aqui apresentados. Devemos lembrar que a
forma de organizar o conteúdo desta pesquisa não tem caráter essencialista e não
pretende fundar um sistema de mapeamento do lugar de cada expressão ou problema
sócio-econômico relacionado ao tema, aos moldes de um esquema freudiano do tipo
ego-id-superego. Desde sempre, a TV ocupou o seu lugar de eletrodoméstico na sala de
estar das famílias, substituindo o rádio nesse papel centralizador do entretenimento
caseiro. Esse fator exemplar de fragilidade enquanto meio de fruição artístico-cultural
sempre atuou de forma determinante para a desmistificação do conteúdo da TV como
obra-de-arte, naquele sentido frankfurtiano do termo. No mundo da televisão, a aura já
não existe de fato, pois está diluída no todo. Aqui, o sentido inato de massificação,
235
duplicação, replicação, estereótipo, ultrapassa a importância cognitiva do veículo como
arte-em-si, criação, formação ou arquétipo. O sentido educacional da televisão é muito
mais aquele de uma formação para o consumo e a cidadania do que o sentido
emancipador que a educação tem em uma interpretação mais transcendente.
Ao mesmo tempo, a TV utilitária se transforma na principal companhia do espectador
caseiro, “a melhor amiga do homem”, tal como interpretada pela anedota popular e
capitalizada pelas campanhas de final de ano da Rede Globo. Um teórico daquela linha
radical tribalista pós-moderna pode continuar denunciando: “não tenho paciência pra
televisão, eu não sou audiência para a solidão”, mas na prática a teoria é outra. Nas
engrenagens daquele processo de subjetivação dissecado em outra parte desta tese, a
TV assume um papel bem maior do que simples ferramenta de emissão, mecanismo de
massificação ou agente de influência. Para a legitimação mesma do processo, ela
também precisa assumir o papel do outro, o inimigo número um da solidão. Aquele sem
o qual qualquer tentativa de subjetivação não passaria de devaneio individual auto-
limitado e inócuo, ou mesmo um paradoxo monológico kantiano. Para o bem ou para o
mal, e talvez seja essa a verdadeira questão do colega tribalista, essa presença acaba se
revelando nos flagrantes da vida real, na paixão adolescente pelo galã da novela ou no
educado “boa-noite” devolvido ao âncora do telejornal.
236
2.4. Inovação e lucro:
Propriedade Intelectual é o problema característico do ambiente de produção, distribuição
e consumo de audiovisual que melhor define o entrecruzamento entre o eixo de
valoração tipicamente mercadológico do lucro com aquele próprio da cultura que é a
inovação. Ao mesmo tempo em que a inovação, como concluímos é a mola mestra da
manutenção da demanda por produtos audiovisuais, é essa mesma inovação que desafia
a toda hora os mecanismos de acumulação de capital envolvidos nas atividades
audiovisuais. Em “o eixo da inovação” vimos a importância da inovação para o processo
basilar de mais-valia ou, como queira, de agregação de valor em uma atividade produtiva.
Essa mesma inovação, como também discutimos, quando vulgariza a tecnologia de
produção e reprodução dos objetos culturais, ameaça as bases industrialistas da
economia audiovisual tradicional.
A cultura, definida como um espaço público, é posta em conflito com a noção de
propriedade intelectual, essencial para a gestão pública da economia. Emergem para
discussão, sob observação do mesmo método, questões sobre direitos autorais,
reprodução e exibição pública, e também patentes tecnológicas (métodos podem também
ser alvos propriedade privada). A economia começa a chamar esta mercadoria cultural
de capital intelectual, num esforço de interface com a realidade própria dos recursos
imateriais do meio-ambiente social. Retomando nosso exemplo mais evidente, a
indústria fonográfica, acuada pela vulgarização dos meios de (re)produção, clama por
uma espécie de polícia internacional que reprima as pessoas que baixam músicas na
Internet e pressione governos nacionais a coibir a pirataria. A propriedade intelectual é
um dos temas centrais de discussão na ALCA (acordo de livre comercio das Américas),
sempre presente no noticiário econômico, mas raramente no cultural. O
acompanhamento da mídia fornece outros casos: a indústria pressiona os governos a
coibir a pirataria de produtos de grifes. Os argumentos favoráveis a esse esforço
237
redundante de contenção vão da perda de arrecadação por parte do Estado até a
ameaça causada à segurança do consumidor pela falta de um controle estatal da
qualidade dos produtos piratas. Diariamente vemos notícias de camelôs sendo
reprimidos pelo aparato policial do Estado nacional por estarem ferindo tais direitos.
Propriedade intelectual, como objeto dos métodos do Estado é algo que inclui CDs
piratas, filmes piratas, etiquetas piratas, mas também remédios genéricos, transgênicos e
biodiversidade.
O repertório noticioso ilustra o determinismo epistemológico que viemos apontando.
Embora o produto motivador da industria fonográfica seja a música (mercadoria imaterial
produzida pelo trabalho intelectual a partir de recursos culturais), a forma como a
reprodução do produto remunera seus proprietários depende de um processo material. O
que as pessoas desejam é a música, mas o que a indústria produz (e pelo que pode
cobrar) é a cópia em suporte produzida em uma fábrica por proletários e máquinas, tudo
muito emblemático do objeto de dissecação do Capital. A corporação proprietária de
uma marca ou detentora dos direitos de reprodução de uma mercadoria cultural acaba
por reivindicar controle sobre a dinâmica das trocas culturais. Uma companhia, detentora
de uma patente, direito autoral ou copyright, seria como que a proprietária dos direitos de
reprodução de uma determinada seqüência de DNA cultural. Assim, esta companhia
exigirá ser paga toda vez que tal padrão for duplicado e desejará ter alguma autoridade
sobre qualquer “cromossomo” que contenha, em sua longa seqüência, o pedacinho
privado que lhe pertence. Este metafórico cultural equivalente da genética tem exemplos
bem concretos: a Walt Disney Company comprou os direitos de Happy birthday to you” e
passou a cobrar um pedágio cada vez que a musica é usada na cena de aniversário dum
filme de Hollywood.
238
O problema que se apresenta é a compatibilidade da idéia de propriedade intelectual, tão
cara ao sistema capitalista, com a definição de cultura como um recurso público,
defendida pela ideologia socialista. Esse debate encontra paralelo em temas que vão
desde a patente de medicamentos até a permissão do uso de loops e samples na música
popular. O debate se complica sempre que aborda as grandes corporações de mídia,
que sua mercadoria é exclusivamente cultural e resiste à análise redutivista, aquela que
conclui facilmente que um tênis é um tênis, e a logomarca da Nike é tão somente um
fetiche, um artifício psicológico projetado sobre um objeto utilitário. Esse movimento leva
a duas conclusões manjadas: primeiro, que a brica não é determinante da acumulação
de capital; segundo, e importante para nossa questão, que o objeto simbólico, sem a
mediação do suporte material, desafia o controle privado de sua reprodução.
Se a produção se culturaliza, o mesmo ocorre com o consumo. A própria distinção entre
produtores e consumidores é desafiada pela dimensão simbólica da troca de
mercadorias. O status de dimensão simbólica per se das trocas culturais através da
comunicação sintetiza esse choque. Fica ilustrada uma disputa em torno do poder de
conferir significado, entre a tendência pública (liberal socialista) e a privada (liberal
capitalista). Essa linha que divide ideologicamente a sociedade em dois é fruto de uma
limitação metodológica-epistemológica.
um absurdo que daqui a 100 anos meus bisnetos e tataranetos
vivam com os direitos de Aquele Abraço, Palco e Realce. É
preciso que haja leis que garantam essa livre circulação e uma
diminuição da detenção do direito de comercialização por parte
dos membros da família. E ainda assim é preciso proteger as
nossas obras. É preciso que Aquele Abraço, Palco e Realce
continuem sendo canções íntegras".
191
Essa declaração foi feita em uma mesa redonda com a participação de John Perry
Barlow, co-fundador da Electronic Frontier Foundation dos EUA, e de Richard Barbrook,
191
Gilberto Gil, em: Alvarenga, Darlan. “Gilberto Gil defende nova legislação de propriedade intelectual e
circulação de bens culturais” São Paulo, www.ig.com.br, 07/03/2005.
239
coordenador do Hypermedia Research Centre da University of Westminster e autor do
Manifesto Cyber-Comunista, para quem, em termos de livre circulação de informação, a
forte presença da pirataria no País seria um avanço em relação aos Estados Unidos e
Europa.
“‘A pirataria que é um meio alternativo de comercialização está
impondo mudanças nos métodos e conceitos da própria indústria.
Tudo está tendo de ser rediscutido’, disse Gil. O ministro lembrou
que para uma corrente de pensamento a livre circulação de bens
culturais e simbólicos através de cópias não autorizadas trata-se
de algo diferente de pirataria. ‘Me parece que a indústria
fonográfica reage ao fenômeno da pirataria no sentido de que se
trata apenas da negação de seus direitos e de uma questão de
política de policiamento e repressão, quando na verdade a própria
indústria está sendo questionada’, frisou. Gil afirmou que, como
ministro, tem de defender a lei e o Estado de Direito, mas disse
que a questão dos direitos adquiridos tão debatida na reforma da
Previdência Social também precisa ser rediscutida no caso da
propriedade intelectual. ‘Como sociedade não podemos ignorar
que as coisas encaminham numa outra direção histórica’”.
192
Quando abordamos o eixo da inovação do modelo de valoração tipicamente cultural
abordamos inevitavelmente uma série de implicações econômicas da inovação, além da
questão da propriedade intelectual. Para o capital, mesmo do ponto de vista estritamente
materialista da otimização de custos ou do aperfeiçoamento tecnológico e processual, a
inovação é está no âmago de todo o processo que, afinal, culmina num valor de
conotação bastante espiritual que é o “desenvolvimento”. Essa visão da economia como
192
Idem.
240
algo que está envolvido, emaranhado e que, segundo um processo que é natural,
desenovela-se (desenvolve-se) é transcendental. Ao mesmo tempo podemos dizer que é
darwinista, embora a evolução das espécies seja uma filosofia científica comumente
identificada com o conceito de imanência. Digo isso porque a mutação é precisamente
análoga à inovação (diferença), enquanto reprodução equivale à educação (repetição). A
grande questão por trás da dificuldade que temos em relacionar essas coisas
adequadamente está na fé que podemos ter ou não de que a inovação seja um processo
de transcendência formal e simbólica do élan vital ou de que seja um mecanismo
imanente de diferenciação randômica que produz resultado por simples insistência.
Ficamos mais uma vez diante de uma questão que excede em muito o campo objetivo de
nosso estudo. E mais uma vez isso vem demonstrar que a cuidadosa dissecação
epistemológica que extirpou cultura e economia um do outro, como fez com ciência e
religião, nos impede de superar a incoerência de reclamar à inovação sentidos
conflitantes dependendo de se estamos fazendo isso pela ótica do mercado ou da
cultura.
241
3. Perspectivas para o audiovisual brasileiro no século XXI:
© Luis Fernando Veríssimo: As Cobras
Quando falamos em perspectivas devemos superar aquela polarização apontada por
Umberto Eco entre profecias apocalípticas e a adesão pueril a um futuro que substituiria
como um todo o presente.
193
A tira de Luis Fernando Veríssimo que aparece acima,
ilustra muito bem a forma apocalíptica das perspectivas que essa tese aponta. O
Mercado é como uma máquina de imanência. Independente da necessidade de arbítrio,
o mercado regula a tudo. O mercado substituirá o Homem? Por outro lado, a cultura é
um grande espaço transcendente de atuação subjetiva, política, narrativa ou mitológica.
Sua forma é tão confusa e volúvel que na forma de organização e atuação social, o
campo da cultura oferece incontáveis exemplos de falsidade ideológica, corporativismo
oligárquico e manipulação política dos valores culturais pelo exercício do poder pelos
grupos sociais. A manipulação dos valores culturais pelo poder continuará?
Todos admitem que a produção de audiovisual no Brasil é dependente do Estado, exceto
onde a produção está verticalmente integrada às estruturas de distribuição e exibição.
Aparentemente dois problemas: o monopólio da Rede Globo na produção para TV e
das distribuidoras internacionais em cinema, vídeo e TV por assinatura. Podemos
traduzir esses dois problemas fundamentais na relação, que pode ser reconhecida tanto
na cultura quanto na economia, entre monopólio e concorrência.
193
Eco, Umberto. “Apocalípticos e integrados”. São Paulo: Perspectiva, 1993, 5ª ed.
242
Para atacar esse problema temos que mudar um pouco a perspectiva. É preciso parar
de resumir tudo a uma inevitável dependência do Estado e não mais acomodar
determinados setores (especialmente o de produção cinematográfica) nessa teoria
estatizante. Esse processo, mediado pelo aparelho governamental, ocorre
historicamente da mesma forma como todas as outras atividades típicas do Estado no
Brasil: corroído pela incompetência e pela corrupção epidêmica. Se pudéssemos,
proporíamos como solução para os problemas do audiovisual brasileiro a instauração
efetiva da República do Brasil. O povo brasileiro, e se inclui a classe formadora de
opinião, desenvolveu uma tolerância abjeta a contumaz inépcia das classes dirigentes,
assim como sua pulsão pela usurpação. E é por essa razão que o Brasil adentra o
vigésimo primeiro século da era cristã, organizado nominalmente numa república
democrática, mas conduzido, na prática, segundo uma ordem social e política feudal.
Enquanto investimos nosso tempo e trabalho no estudo conseqüente e apaixonado dos
valores entrevistos nos discursos sobre o meio audiovisual no Brasil de hoje, a prática
social que envolve sua efetiva existência como produto cultural é cinicamente conduzida
segundo critérios exclusivamente corporativos, através do tráfico de influência e coroado
por um nepotismo insultuoso à idéia mais desassombrada de meritocracia. Mérito é
talvez a palavra fundamental que ainda não havia aparecido nesta tese. Afinal, modelos
de valoração existem exclusivamente para avaliar, conceder ou cassar o mérito de algo.
A crise maior da sociedade brasileira não está em seus valores, sejam ou não
dicotômicos, mas na fé que não temos nesses valores. Se acredito que este trabalho não
é vão é porque tenho na relação vital, escondida em algum lugar desta e de outras
discussões, entre o forma dicotômica desses modelos de valoração e o descompromisso
ético coletivo em relação a eles. Se esses valores são mentiras, somente a dissecação
de nossas falsidades poderá nos colocar no doloroso caminho de busca da verdade.
Isso, que vale para os mais diversos campos de interesse coletivo da sociedade
243
brasileira, aparece muito claramente no meio audiovisual porque este é um campo que
une economia e cultura, capital privado e estado, sociedade e indivíduo.
Para que possamos vislumbrar uma mudança qualitativa no setor audiovisual brasileiro
são necessárias mudanças não na estratégia das políticas públicas, mas também na
estratégia dos empreendedores audiovisuais. Se por um lado o Estado deve romper com
o padrão complacente que alimenta sua relação atávica com elites improdutivas, os
empreendedores de audiovisual, por sua vez, devem buscar minimizar custos, obter
economias de escala e alcançar abrangência de público nacional e estrangeiro. Mais que
isso, suas estratégias devem deixar de resumir-se ao aproveitamento oportunista de
todas as facilidades produzidas pelas políticas públicas equivocadas que têm
caracterizado os esforços do Estado em preservar o ambiente cultural. Esse equívoco
não é motivado apenas pelas segundas intenções dos agentes sociais, mas também pela
tentativa de integração polarizada promovida pela ideologia social-democrata conforme já
apontamos anteriormente. Essa fórmula ambígua revela-se exemplarmente no ensaio de
Francisco Wefort que viemos citando ao longo do trabalho, como a seguir.
“Porque é uma necessidade cultural, o cinema cria também uma
necessidade econômica: o que não produzirmos aqui, teremos que
importar. Não é preciso derrubar os argumentos em defesa da
liberdade de mercado para aceitar esta exigência da realidade.
Basta um mínimo de bom senso, para se perceber que, como
qualquer industria nova, o cinema necessita de incentivos e de
apoio do Estado para se consolidar e crescer. Quero sustentar,
neste ensaio, o argumento de que isso será possível com uma
parceria entre Estado e empresas. no ano passado, em 1999,
gastamos 650 milhões de dólares importando filmes”.
194
Essa fórmula, de encarar o audiovisual como indústria capitalista, mas ao mesmo tempo
querer intervir na economia; de ver na importação de quaisquer coisas pela fronteira a
necessidade de substituição por uma produção doméstica segundo princípios de
194
Wefort, Francisco C. “Cultura, Cinema e Indústria” em Cardoso, Fernando Henrique, et al. “Cinema
Brasileiro. Serie Cadernos do Nosso Tempo, Nova Serie, 4”. Rio de Janeiro : Fundo Nacional de Arte e
Cultura : 2001.
244
independência, soberania ou auto-sustentação; de propor como solução para tudo a
fórmula mágica das parcerias público-privadas; isso tudo são cacoetes característicos do
discurso social-democrata da virada do século, que anestesia a tensão entre mercado e
cultura ao mesmo tempo em que permite a perpetuação do aparelhamento cínico de tudo
isso em nome de interesses particulares, como vemos:
“Evidentemente, não é meu propósito defender os eventuais desvios
e distorções destes incentivos, coisa que tanto preocupam os seus
críticos. Desvios e distorções, quando constatadas, devem ser
simplesmente suprimidas. Mas não vejo porque jogar a criança com
a água do banho. Precisamos de um esforço extra para criar o que
não temos e que o mercado, por si só, não pode nos oferecer. Os
europeus aplicam o mesmo raciocínio com algo que querem
preservar, a agricultura”.
195
Como dissemos a pouco, do ponto de vista econômico um dos maiores problemas do
audiovisual brasileiro está no déficit entre altos custos de produção e o tamanho do
mercado doméstico. Se por um lado não é viável no curto prazo mudar
significativamente o potencial de receita do mercado nacional, por outro, a adequação
dos custos de produção é prerrogativa exclusiva do produtor, que tem a seu favor o
barateamento dos meios em consequência da digitalização. No entanto, isso não vem
ocorrendo no ambiente da produção brasileira, onde os orçamentos tendem a ser
inflacionados pelo subsídio estatal, que não exige nenhum patamar de desempenho ou
reembolso mesmo parcial.
Em 1996, o filme "Guerra de Canudos", de Sérgio Rezende, estabeleceu um recorde de
custo para produções brasileiras com um orçamento de seis milhões de reais. Foi
considerado uma superprodução. Em 2005 "Olga", de Jayme Monjardim, dobrou essa
marca com um orçamento de 12 milhões. Isso significa um incremento de 100% no teto
de custo de produção no país em menos de uma década. Hoje, o custo médio de
produção para filmes de ficção de longa-metragem no país é de R$ 2,8 milhões, ou
195
Idem.
245
US$1,3 milhão.
196
Esse valor médio dos orçamentos das produções brasileiras equivale
ao do mercado espanhol. A diferença fundamental está no fato dos filmes espanhóis
alcançarem médias de público doméstico e estrangeiro muito maiores que os filmes
brasileiros. Se a tendência permanecer, em 2006, o orçamento médio dos projetos
concorrendo por verbas públicas nos diversos editais chegará aos quatro milhões de
reais. Para termos uma noção comparativa, na Alemanha as produções de longa
metragem custam em média 950 mil dólares, ou seja, metade do que custam os filmes
brasileiros, feita a conversão cambial. A Argentina, que tem uma produção equivalente à
brasileira em termos de penetração internacional e número de lançamentos, tem uma
média de orçamento de apenas 500 mil dólares, obtendo, portanto o mesmo resultado
por 25% do custo. O cineasta Murilo Salles denuncia segundas intenções por trás desse
processo inflacionário em matéria sobre o assunto publicada em O Globo: “Acho que o
que falta é ética, uma discussão moral sobre a pertinência dos orçamentos aos projetos.
Além da questão real do aumento dos custos em dólar e da esperteza de certos
realizadores em inflacionar seus orçamentos”.
197
Um dos itens que mais tem inchado os orçamentos são os salários dos diretores,
fotógrafos e diretores de arte, que hoje chegam a extravagantes R$ 8 mil por semana de
trabalho, o que perfaria um rendimento mensal de 32 mil reais, muitas vezes acima da
média salarial do brasileiro de forma geral, mesmo se considerarmos trabalhadores
qualificados e especializados. Na mesma matéria, Leonardo Monteiro de Barros, um dos
vários sócios com sobrenome de pedigree da Conspiração Filmes, defende os altos
salários e os justifica segundo regras de oferta e demanda. Mais produção a partir da
“retomada”, igual à maior demanda por profissionais. Os filmes produzidos até hoje pela
Conspiração tiveram custo médio de seis milhões de reais cada um. Todos foram
196
Filme B. “Database Brasil 2004” www.filmeb.com.br
197
Biaggio, Jaime “O preço que se paga pelo cinema: filme brasileiro já custa o mesmo que o espanhol, que
tem bem mais penetração” O Globo, Segundo Caderno, 07 de outubro 2005.
246
financiados com dinheiro público. As regras de mercado que valem para justificar
salários altos, não valem para o financiamento desses salários.
“Flávio Tambellini, da Ravina Filmes, identifica os custos de equipe
no Brasil como no máximo 20% menores que os da França. - Sou a
favor de que todo mundo ganhe bem, mas estamos vivendo uma
dicotomia. Na hora de produzir, somos indústria. Na hora de lançar
os filmes, não temos mercado”.
198
Como queríamos demonstrar, o desencontro com o mercado justifica o financiamento
público. Mas, a partir do financiamento público, as leis do mercado tratam de servir como
pretexto para a acumulação de capital diretamente no orçamento, sem os riscos
envolvidos nas bilheterias, na forma de salários generosos para os membros mais
proeminentes da equipe. Se a argumento neoliberal do produtor mauricinho da
Conspiração não for suficiente temos o bom e velho discurso corporativista de classe:
“Os profissionais querem manter o padrão de vida que tinham.
Há, em todas as áreas da vida brasileira, uma tentativa de conter
salários numa faixa que não para conter - defende o diretor de
fotografia Lauro Escorel, que presidiu a entidade de classe da
categoria, a ABC. - Mesmo na publicidade, os cachês estão
congelados dois anos. Quando Carla Camurati fez "Carlota
Joaquina" em 1994, foi em regime quase de cooperativa. Na
medida em que o cinema vai se reinstalando, esse formato vai
sumindo. Ele não é possível para quem vive de cinema”.
199
Escorel parece achar natural que o Estado sustente o desejo dos diretores de fotografia
de manter um padrão de vida de R$ 32 mil reais por mês. Já o bem-nascido produtor da
Conspiração Filmes lança mão daquela nossa conhecida equação de falsidade em que
maior custo significa necessariamente maior competitividade em relação ao produto
estrangeiro:
198
Idem
199
Ibidem
247
“A gente compete no mesmo cinema, com o mesmo preço de
ingresso, com Guerra dos Mundos - diz Leonardo Monteiro de
Barros. - Entre R$ 05 milhões e R$ 08 milhões, você entrega um
produto de qualidade internacional. Abaixo disso, vai precisar de
muita ajuda. Casa de areia, de Andrucha Waddington, a produção
mais cara da Conspiração, custou R$8 milhões. É um filme
declaradamente autoral, com expectativa de público de 500 mil
espectadores, mas que, indicam os cálculos da companhia, deverá
encerrar carreira com cerca de 200 mil”.
200
Seria o caso de se avaliar seriamente a validade como produto cultural de uma obra que
custa 10 milhões de reais e atinge 200 mil pessoas de classe média alta, com curso
superior nos cinco maiores centros urbanos do país. Ainda que consideremos algum
acréscimo nesse número obtido nas outras janelas, e a relação entre custo econômico e
benefício cultural não tem um regime de câmbio estabelecido, o investimento é
intuitivamente apreendido como supérfluo. Se o valor (R$ 10 milhões) está na obra em
si, o que explica a escolha desse projeto em detrimento de tantos outros? Inclusive a
hipótese de financiamento de 10 diferentes projetos ao custo de 1 milhão cada um
obtendo bilheteria média de 20 mil espectadores por filme? Ao invés de uma obra para
um pequeno segmento de audiência, teríamos dez obras para dez diferentes minorias do
tipo que se queira (políticas, sexuais, religiosas, étnicas...). Se o prejuízo financeiro
está assumido, a diversidade é um critério objetivo de decisão. Segundo a produtora,
Conspiração Filmes, “Casa de Areia” conseguiria se pagar ao ser vendido para o
mercado externo. A justificativa contábil para uma debilidade cultural é uma forma
maliciosa de entrecruzamento de modelos. O sucesso no mercado externo, além de não
significar incremento na riqueza cultural nacional, produzirá tão somente lucro (ademais
com a renda dos 200 mil ingressos vendidos no mercado doméstico) uma vez que os
custos, cobertos pelo investimento público direto ou indireto, não serão ressarcidos. Ora,
é possível sim articular em um mesmo julgamento valores mercadológicos e culturais,
200
Ibidem
248
mas isso costuma ser feito com a intenção de confundir e não esclarecer, de omitir e não
revelar.
O discurso é bem mais claro quando parte de alguém comprometido exclusivamente com
um dos dois modelos. Diler Trindade, produtor dos filmes protagonizados pela estrela de
TV Xuxa ou com temas religiosos populares, colabora com essa discussão ao lançar mão
de uma visão puramente econômica e desmascarar a malícia de que falávamos.
“O que ocorre é que não se deve orçar um roteiro, mas roteirizar de
acordo com o orçamento que um estudo de viabilidade aponte
como possível - aponta Diler Trindade, que também se opõe a
cachês milionários. - Nunca pago mais de R$100 mil para um
diretor, e já acho um supercachê. As colocações de Diler vêm de
encontro à noção, bastante comum no mercado, de que
determinados roteiros pedem necessariamente um número x de
dias de filmagem, bem como à realidade das produções mais ricas,
em que os diretores ganham cachês de R$500 mil a R$600 mil: - O
dinheiro é incentivado, mas não é para fazer uma festa com isso”.
201
O desempenho econômico da produção cinematográfica nacional, seu custo para os
cofres públicos em comparação aos ganhos de produtores e seus benefícios como obras
culturais entraram na pauta das políticas de audiovisual brasileiras muito
recentemente. O Próprio Estado, apesar de ter esboçado alguma preocupação de
análise qualificada com o estudo de 1998, não tinha o hábito de controlar a qualidade dos
seus investimentos na área. A Ancine, ao longo de sua operação produziu seqüências
de relatórios com níveis muito baixos de autocrítica e que apresentavam de maneira
muito pouco objetiva os resultados das políticas de cinema na forma de listas e mais
listas de filmes brasileiros lançados ano após ano. Novamente, as obras pareciam ser
um fim em si mesmas, como gostaria Wilde, mas isso colocaria em obscuridade todos
aqueles projetos encalhados no mercado de projetos, aqueles artistas excluídos da
democratização do acesso público aos meios de criar arte, enfim, os “sem-tela”.
201
Ibidem
249
Pensamos muito no cinema do ponto de vista do produto. Pensamos nos brasileiros que
verão filmes brasileiros. Os mecanismos de investimento público são orientados a
projetos. Então não exatamente o investimento em uma estrutura, o Cinema ou o
Audiovisual brasileiros, mas em projetos de obras para autores específicos. Podemos
dizer que as políticas públicas do audiovisual no Brasil ao invés de orientadas à
democratização do acesso ao consumo de audiovisual cinematográfico nacional, são
orientadas à promoção de acesso aos meios de realização do produto cinematográfico
nacional. De maneira geral, nossas políticas são respostas às demandas dos cineastas,
e não da sociedade. Os cineastas, como classe, buscam através de suas redes de
relacionamento interpessoal garantir privilégios que lhes garantam acesso aos meios de
produção artística audiovisual. Então, se quisermos discutir a democratização dessas
políticas, deveremos nos preocupar com a igualdade de oportunidades no mercado de
projetos. Citamos esse mercado em diversos momentos até aqui. É nele que estão
todos os brasileiros que foram capazes de planejar uma produção audiovisual. Como
negar que dar oportunidade de produção artística seja uma política cultural? É, talvez, a
única que não é nem uma política industrial, econômica ou comercial, nem é uma
tentativa deliberada do estado de intervir na cultura. O problema está na seleção dos
projetos. E sempre estará aí, pois esse é o problema principal também para a indústria
cinematográfica e televisiva norte-americana ou de qualquer outro país do mundo. Como
o artista individual pode fazer valer a legitimidade de seu projeto audiovisual? Isso
poderia ser problema dele, mas a partir do momento em que o Estado passa a investir
diretamente em projetos como política nacional de cultura, isso passa a ser problema de
todos.
Como sabemos, a solução apresentada nos anos 90 foi uma lei de incentivo fiscal
indireto que, na prática, simplesmente retirou do estado a fardo da escolha e o transferiu
para a iniciativa privada. Não demorou para que as grandes empresas percebessem as
250
vantagens embutidas nesse filão e deturpassem suas intenções criando projetos
milionários de marketing social travestidos em projetos culturais. No fim, como
investidores significativos do mercado de projetos, restaram as empresas estatais. O
feitiço voltou-se contra o feiticeiro. O controle estatal do acesso aos meios do fazer
audiovisual voltou à carga por meio dos rocambolescos critérios dos editais de patrocínio
e pelas manipulações políticas e trocas de favores por estes permitidos. Somos
novamente confrontados pela necessidade de discutir um método que possibilite critérios
aceitáveis na teoria e incontornáveis na prática para o adequado ajuizamento dos méritos
de um projeto audiovisual.
Por tudo isso, apenas no começo de 2005, a Agência Nacional de Cinema divulgou seu
primeiro relatório consequente sobre o setor, buscando cruzar dados econômicos e
geográficos no sentido de ao menos esboçar uma preocupação com a performance
daqueles produtos no mercado e na cultura. O relatório da agência mapeou dados
contábeis de todos os 207 filmes financiados pelo Estado entre 1995 e 2004. Nesse
período, o país investiu através da renúncia fiscal R$ 393 milhões. 74 milhões de
pessoas pagaram em média R$ 5,51 por cada ingresso para assistir esses 207 filmes,
totalizando um faturamento em bilheterias de R$ 408 milhões. O leitor incauto do
relatório pode ver na diferença de 15 milhões entre custo e faturamento o sinal de que,
pelo menos como um todo, a produção nacional teria dado lucro. Vale lembrar, no
entanto, que a renda das bilheterias não se reverte exclusivamente para o produtor. Dela
temos antes que subtrair as fatias do distribuidor e do exibidor (um terço para cada).
Assim, do ponto de vista contábil, o break even para a reversão dos 393 milhões de
investimento direto na produção desses filmes não seria atingido antes de se alcançar
1,17 bilhão de reais de faturamento nas bilheterias, ou seja, com um público médio de um
milhão de espectadores por filme. Isso porque o custo médio desses filmes foi de 1,9
milhão de reais. Alterações nesses custos moveriam proporcionalmente o patamar de
break even. Longe disso, os filmes produzidos no período tiveram em média 357 mil
251
espectadores gerando R$ 1,967 milhão de renda por filme. Essas médias são
aritméticas, mas a distribuição dos resultados entre os filmes foi bastante desigual como
ademais ocorre em qualquer mercado. Os dez maiores produtores (aqueles que
conseguiram os maiores faturamentos com seus filmes no período) obtiveram juntos 235
milhões de reais nas bilheterias, 60% do total do faturamento dos filmes nacionais.
Somente a Diler & Associados produziu 12 filmes no período e faturou cerca de R$ 87
milhões. No outro oposto, quatro filmes lançados no período não alcançaram sequer a
marca dos mil espectadores, o que indica que provavelmente não conseguiram sequer
ser lançados comercialmente. Fato como esse jamais ocorre na indústria, onde é
conhecida a máxima que manda lançar qualquer filme a qualquer custo, pois mesmo um
centavo que entre na bilheteria pelo menos amortizará o prejuízo. Mas o Estado
brasileiro é um produtor amador e incompetente, gerando os mais variados vexames. O
exemplo que ficou famoso foi o da Nova Era Produções de Arte, que realizou o filme
“Lara”, de Ana Maria Magalhães. Tendo captado R$ 3,9 milhões e obtido 2 mil
espectadores gerando um renda de R$ 14 mil, “Lara” teve um custo médio por ingresso
de 1,7 mil reais. É como se o Estado tivesse pagado mil e setecentos reais por cada
espectador que esse filme obteve no circuito exibidor. Esse é mais um número
econômico que provoca aquela nossa reflexão crítica do ponto de vista cultural. Dos 207
filmes incluídos no estudo, 73 captaram mais de um milhão de reais pelas leis de
incentivo fiscal. Destes, 40 não conseguiram passar dos 100 mil espectadores.
202
Por essas e outras razões devemos admitir que tanto a concorrência externa do cinema
americano quanto aquela exercida internamente pela telenovela que fazem do
investimento oficial condição para a sobrevivência dos realizadores nacionais “não devem
se restringir ao subsídio à produção cinematográfica tal como hoje ocorre no Brasil”.
203
202
www.ancine.gov.br/relatorios
203
Secretaria de Desenvolvimento Audiovisual do Ministério da Cultura. “Economia da cultura” Brasília :
SDA/MINC : 1998.
252
É curioso que hoje o cinema brasileiro dependa de subsídios estatais de tal natureza que
não exijam nenhum tipo de retorno dos empreendedores beneficiados e que ao mesmo
tempo não exista nenhuma linha de crédito com a mesma finalidade. A substituição
ainda que parcial do financiamento direto pelo regime crédito (que inclui inevitável
responsabilidade sobre a sustentabilidade do produto) incutiria algum interesse por parte
dos realizadores no sentido de obter um desempenho mínimo em audiência para seus
filmes. Além disso, parece claro que os investimentos do Estado devem também se
voltar para a infra-estrutura de mercado que produz demanda por audiovisual. Esse tipo
de investimento tem outras características, mais típicas das políticas de subsídio
industrial e comercial e deveria fugir, de preferência, de soluções economicamente
míopes como a fracassada política de quotas de tela. “Para viabilizar fontes
sustentáveis de financiamento é necessário que as atividades de distribuição e exibição
participem da produção, dessa forma contribuindo para reduzir riscos e incertezas
inerentes aos investimentos na atividade cinematográfica”.
204
A Compra de participação
no resultado do filme pelo exibidor ou distribuidor ainda na fase de projeto seria uma
forma de reduzir o risco do investimento na produção. Um filme que não tem distribuidor
comprometido dificilmente conseguirá alguma outra fonte de financiamento. A
participação deste diminui consideravelmente os níveis de incerteza tanto para o próprio
distribuidor ou exibidor quanto para outros possíveis investidores.
O estudo do Minc aponta “a necessidade de maior integração com a televisão, sobretudo
pelas novas oportunidades e desafios que se abrem com a TV a cabo”.
205
Mas essa
prescrissão é muito vaga. Integrar como? A TV a cabo, por si, já tem grandes problemas
de sustentabilidade. Até hoje todos os estudos apontam para a TV como solução para o
cinema, mas nenhum sequer alguma pista de como fazê-lo. O melhor incentivo à
exibição de filmes brasileiro nos cinemas será sempre um bom respaldo de divulgação,
204
Idem.
205
Ibidem.
253
que garanta bilheteria. O problema maior é a relação custo/receita que o produto
concorrente é oferecido a preços muito inferiores ao custo. O concorrente consegue isso
porque tem mais mercados, portanto a solução passa necessariamente pela conquista de
mercados interno e externo. O baixo custo de importação de cópias de produtos
audiovisuais derruba as chances do produto nacional. Há três caminhos para equilibrar a
concorrência entre a produção nacional e o similar importado:
1) Aumento do custo de importação pela adoção de barreiras comerciais justificadas
na prática de dumping.
2) Diminuição do custo do produto nacional pela responsabilização financeira do
produtor, evolução tecnológica, desoneração da cadeia produção-distribuição-
exibição e qualificação profissional.
3) Penetração e ocupação no mercado internacional através do incremento de
competitividade e pela orientação ao mercado externo como ocorre com a
telenovela.
Num mundo dominado pela idéia da globalização, propostas de natureza protecionista
podem parecer anacrônicas, mas simultaneamente ao crescimento do projeto global,
encabeçado pelos Estados-nação mais poderosos econômica e militarmente e pelas
corporações multinacionais, ocorre o acirramento de práticas que reforçam o status
nacional de setores produtivos em diversos países, inclusive naqueles em que a ideologia
da globalização é mais fomentada. A lógica da globalização propõe que uma divisão
internacional do trabalho, voltada para as aptidões locais em contribuição com um mapa
macroeconômico global resultaria em uma maior eficiência da economia mundial como
um todo. Isso faz sentido se imaginarmos que, em oposição a esse cenário, todas as
nações deveriam produzir todas as coisas de consomem, independente de suas
254
características geográficas, sociais ou econômicas. Por outro lado, está claro para todos
os participantes nesse processo que nem todo produto importado supre integralmente as
demandas locais e o melhor exemplo disso é o produto cultural. Ninguém se opõe à idéia
de dirigir carros estrangeiros, mas a perspectiva de consumir música ou literatura
exclusivamente estrangeiras causa incômodo imediato. Essa distinção subjetiva é talvez
a mais acentuada linha de fronteira entre os universos da produção material e imaterial
das sociedades. A globalização, como modelo econômico, tem um sentido pragmático
que pode ser discutido do ponto de vista das trocas comerciais e das diferenças de
enriquecimento das diferentes nações de forma suficientemente objetiva. Mas como
modelo cultural, ela soa como uma hegemonia aterradora.
No cenário contemporâneo, os países chamado de “primeiro mundo”, deixam cada vez
mais de ser identificados como “os países industrializados”. A indústria, paradigma da
hierarquia mundial no século XX, está cada vez mais se tornando uma característica
econômica dos países “emergentes” ou “em desenvolvimento”, tais como Brasil, China,
Índia, Rússia e África do Sul. O paradigma do século XXI é o da economia do
conhecimento. Os países que lideram o processo de globalização transferem suas
indústrias para esse grupo de segunda linha e o processo civilizador mantém seu padrão.
Antes os abastados tinham indústrias alimentadas pelos recursos naturais dos pobres.
Hoje, os ricos produzem o conhecimento que será aplicado materialmente na forma de
estruturas produtivas instaladas nas nações “emergentes”. A distribuição dos privilégios
de acesso às atividades de maior valor agregado permanece desigual. Está claro que os
campos de maior interesse estratégico para as nações hoje são os do desenvolvimento
científico e tecnológico, da informação e da cultura. O embate hoje empreendido pelas
nações emergentes no sentido de abrir os mercados mundiais aos produtos agrícolas e
industriais em troca da abertura para serviços e propriedade intelectual é uma flagrante
miopia histórica e econômica que tende a perpetuar as mesmas desigualdades
segundo diferentes arranjos formais. O potencial do Brasil para suceder nas áreas mais
255
promissoras é enorme como ademais o tem sido desde o período colonial. O patrimônio
intelectual e cultural, de biodiversidade e áreas selvagens, de recursos turísticos e outros
colocam o Brasil numa posição privilegiada para fazer escolhas comerciais melhores que
a disputa pelo mercado europeu de produtos agrícolas. A importância estratégica da soja
e do minério de ferro como produtos nacionais é sintoma de um grande risco existencial
para o povo brasileiro, fruto de um projeto de desenvolvimento absolutamente
anacrônico. Se algo que deve ser alvo de políticas protecionistas e de subsídios no
Brasil, é o capital intelectual nacional. O Brasil deve preservar seus recursos de
diversidade biológica e cultural. A França, por exemplo, não protege apenas sua
agricultura incompetente, mas tem uma política cultural muito forte e dura. Inglaterra,
Canadá e Itália, igualmente protegem de forma veemente sua produção audiovisual.
A hegemonia da indústria audiovisual americana foi decisiva na origem das
cinematografias nacionais do ocidente. Motivadas pelo desejo de produzir cinema as
classes artísticas locais pressionaram seus estados a adotar políticas oficiais de subsídio
à produção doméstica e, em grau bem menor, à distribuição e exibição dos filmes
nacionais.
206
Essas políticas são praticamente uma norma no cenário internacional atual
onde as indústrias nacionais de cinema caracterizam-se como sistemas duais nos quais
interesses privados associados às companhias norte-americana controlam a distribuição
e exibição enquanto a produção depende quase que exclusivamente do apoio
governamental.
207
“Como já mencionado, o rationale econômico para o apoio
governamental à produção e consumo domésticos de audiovisuais é
a existência de externallidade no consumo desses produtos. Assim,
a justificativa mais sólida para o apoio governamental à indústria
cinematográfica é, em geral, de caráter cultural, baseada em
argumentos de diversidade, especificidade e identidade nacional,
muito embora a defesa de interesses econômicos emprego,
206
Moran, A. (ed.) “Film Policy, National and Regional Perspectives”. London, Routledge, 1996.
207
Johnson, L. L. “Toward Competition in Cable Television”. Cambridge, Mass. MIT Press and The
American Institute Enterprise for Public Policy Research. 1994.
256
balança comercial, etc. seja também utilizada com frequência nos
discursos oficiais”.
208
Existem duas formas mais comuns de fomento governamental à produção audiovisual: a
produção por empresas públicas (tais como estúdios de TV de propriedade estatal a
exemplo da TVE no Brasil), ou pelo financiamento direto e indireto à produção local por
meio da renúncia fiscal ou crédito dirigidos principalmente ao setor de produção, mas
também à distribuição e exibição.
A produção de conteúdo audiovisual diretamente pelo estado por meio de empresas
públicas ocorre quase em sua totalidade no meio televisivo e muito raramente no cinema,
pelo menos nos países do ocidente. A Embrafilme, produtora estatal brasileira extinta em
1992 pelo governo Collor, era uma das poucas exceções. na televisão, o monopólio
estatal durou até a década de 1980 como regra para todos os países Europeus, com
exceção da Inglaterra e da Itália. Atribui-se principalmente à chegada dos sistemas de
TV por assinatura na Europa a mudança nesse panorama. As televisões públicas
perderam grande parte de sua audiência e tiveram que escolher entre a produção de
programação popular, que comprometia seus objetivos culturais educacionais, ou a
absorção de grandes prejuízos financeiros, que não puderam ser bancados em tempos
de liberalismo econômico além de significar perda de ineficiência cultural por falta de
audiência. Alguns canais de TV fechada assumiram nichos antes atendidos pela
produção estatal valendo-se de incentivos para esse fim. No Brasil esse tipo de
programação feito pelas empresas privadas mira o subsídio estatal anulando a iniciativa
puramente estatal. Como exemplo, o canal educativo Futura atua no mesmo segmento
da TVE ou TV Cultura e é financiado por mecanismos de parceria público-privada.
208
Walsh, M. "Fighting the American Invasion with Cricket, Roses, and Marmalade for Breakfast." The
Velvet Light Trap, Number 40, 1997.
257
“Os recursos para o financiamento são obtidos de formas várias:
impostos, na Austrália e no Canadá, loterias, na Inglaterra, taxas
sobre as bilheterias ou broadcasters de TV, na França, renúncia
fiscal, no caso brasileiro. A forma de concessão dos financiamentos
também varia, sendo com base em projetos selecionados, em
alguns casos, e automaticamente distribuídos, em outros. Na
grande maioria dos casos, contudo, esse financiamento é
concedido na forma de participação acionária da agência
governamental nos projetos individuais, subsidiando parte, quando
não totalmente, dos riscos dos investidores privados”.
209
O estudo do ministério trás para a discussão o tema relevante que abordamos, sobre o
lugar das externalidades positivas à produção de audiovisual doméstico. Só para que
fique claro o conceito: externalidade positiva é um conceito econômico que define uma
vantagem não econômica de uma decisão. Por exemplo: hoje, no Brasil, o valor médio
do aluguel mensal de um imóvel residencial nos grandes centros urbanos corresponde a
uma fração do valor total do imóvel substancialmente menor do que os rendimentos da
maioria dos investimentos financeiros disponíveis. Isso significa que, do ponto de vista
exclusivamente econômico, vale mais a pena pagar o aluguel de um imóvel do que
comprá-lo. No entanto a maioria dos consultores de finanças pessoais não desaconselha
a compra da casa própria justamente pelas externalidades positivas ao investimento (de
ordem psicológica, por exemplo).
210
Pois bem, o estudo do Minc, de 98, considera que “o
subsídio à produção é criticável pelo fato das externalidades mais relevantes ocorrerem
no consumo e não na produção de audiovisuais”.
211
Os benefícios culturais ocorreriam
por meio do consumo massivo de audiovisual doméstico, e não pelo simples fato desses
serem produzidos. O argumento faz todo sentido uma vez que concordamos que para
ter valor cultural, um produto audiovisual deve alcançar um público minimamente
significativo. Por outro lado, vimos também que a demanda por essa produção não vem
do consumidor, mas do produtor aspirante e é estranho que se considere um ganho
cultural o consumo da expressão cultural, mas não o acesso mesmo a essa expressão.
209
SDA/MINC. Op.cit.
210
Halfeld, Mauro. “Seu Imóvel: como comprar bem” São Paulo, Editora Fundamento Educacional, 2002.
211
SDA/MINC. Op.cit.
258
“Com efeito, nada garante que filmes subsidiados consigam sucesso
de exibição nas salas de cinema. Dadas as incertezas da demanda é
pouco provável que o subsídio ao consumo por si seja capaz de
expandir significativamente o consumo sem investimento em
marketing. Em alguns países o foco das políticas públicas na
exibição nas salas de cinema pode ser mesmo inadequado uma vez
que por meio da televisão aberta ou por assinatura pode-se alcançar
um público muitas vezes maior, embora as salas de cinema sejam as
janelas adequadas para o lançamento e criação de demanda
inclusive nas demais”.
212
O que dizer então da justificativa dada por muitos produtores para a manutenção do
subsídio baseada justamente no fracasso sistemático de seus filmes nas bilheterias? A
dicotomia entre cultura e mercado permite também essa deformidade, em que o combate
ao fracasso em audiência é associado a uma política industrial, enquanto esse mesmo
fracasso apresenta-se como critério de identificação do produto cultural, definido aí como
aquele especificamente não-orientado ao mercado.
As formas mais comuns de incentivo ao consumo são a imposição de quotas
quantitativas de exibição do produto doméstico nos cinema e na TV (praticados
principalmente na França e no Canadá) e a sobretaxa ou limitação quantitativa da
importação de audiovisual. Esta última tem como principal defeito impedir justamente
entrada de produtos diferenciados no mercado, que importará exclusivamente os
produtos mais populares que apresentam menores custos e riscos. Como resultado
negativo, a restrição quantitativa à importação pode impedir o contato do público nacional
com qualquer outra classe de produto que não seja aquela produzida pelas grandes
distribuidoras americanas. os sistemas de quotas trazem aqueles problemas que já
discutimos, entre eles a transferência dos riscos financeiros aos exibidores com
consequências imprevisíveis, desde a contestação judiciosa até fenômenos como a
pornô-chanchada, abordado por nós anteriormente. Em última análise não se pode
obrigar o consumidor a gostar do produto nacional. O próprio espectador trata de driblar
212
Idem.
259
esses mecanismos para buscar os produtos de sua preferência. Todos nos lembramos
de uma época em que a exibição obrigatória de filmes de curta-metragem criou o hábito
entre os espectadores de entrar nas salas de exibição com um atraso pontual de cerca
de 15 minutos em relação ao horário da sessão com o objetivo deliberado de evitar os
enfadonhos curtas-metragens da Embrafilme. Esse tipo de política autoritária somente
contribuiu para a formação de uma imagem negativa do cinema nacional no público
doméstico que agora começa a se reverter. Não cabimento, portanto, no uso de
mecanismos de imposição com vista à ampliação do consumo por uma simples questão
de coerência democrática.
Não exemplo mais radical de interferência estatal na atividade audiovisual nas
democracias ocidentais do que o exemplo francês. Naquele país, a política de quotas
atinge todos as janelas de exibição e sustenta-se numa paquidérmica estrutura cartorial,
burocrática e de fiscalização. Os canais de televisão são obrigados por lei a investir 3%
do seu faturamento em co-produções cinematográficas ou na aquisição dos direitos de
difusão de filmes franceses. O modelo francês traz os mesmos tipos de problemas
metodológicos que discutimos sobre o ambiente brasileiro:
“O CNC está agora tentando criar mecanismos para obrigar as
televisões a destinarem parte dos investimentos às produções
independentes, com o objetivo de defendê-los e fortalecê-los. A
implementação dessa política esbarra, contudo, no problema de
definição de produtor independente, bem como suas relações com
produtores de televisão, entre outras questões”.
213
No Brasil, a Globo Filmes, não estando licenciada a usufruir os benefícios fiscais
destinados ao cinema, estabelece parcerias com produtores privados que captam
recursos incentivados e são co-produzidos pela empresa. Em alguns casos, como nos
filmes “Os Normais” e “Casseta & Planeta”, está claro o protagonismo da emissora
nessas produções, que representam extensões de marca de seus produtos televisivos,
213
Ibidem.
260
mas são incentivados pela renúncia fiscal por intermédio de produtoras “independentes”.
O conceito de independência nesse mercado é bastante problemático. Os produtores de
cinema que se financiam no guichê do Estado são, dependentes deste e, portanto não
podem ser classificados como independentes. Mas o termo costuma ser associado ao
empreendimento autoral ou de pequeno porte que não tem chancela das grandes
corporações atuantes no setor.
Um dos mecanismos de financiamento mais interessantes da política francesa de
audiovisual é a garantia de empréstimos bancários, que reduz o risco do crédito
concedido ao empreendedor audiovisual. A vantagem desse tipo de mecanismo é que,
apesar de absorver o risco do investimento mantém um mínimo compromisso com
desempenho coibindo assim a irresponsabilidade fiscal que caracteriza, como vimos, o
modelo de produção brasileiro. Da mesma forma, a política de estímulo à distribuição e
promoção lá praticada, parte de uma parcela da receita, ou seja, está atrelada ao
histórico de resultados do candidato ao incentivo.
As fontes dos recursos do CNC incluem impostos com alíquotas de 11% sobre o valor
dos ingressos de cinema, 5,5% sobre o faturamento das emissoras de TV (2%
efetivamente destinados ao cinema), e 2% sobre as receitas advindas do setor de vídeo
doméstico. O total arrecadado com esses impostos chega a dois bilhões de francos
anuais, a maior parte proveniente da taxação sobre as emissoras de TV. O setor público
francês é célebre por ser um dos mais caros e com maiores gastos de natureza social. E
com essa disposição vem a curiosidade das normas:
“Controles quantitativos sobre exibição de filmes e programação nas
televisões constituem elemento fundamental da política
cinematográfica francesa. Assim, para proteger o cinema francês e,
em particular, as salas de exibição, os canais de televisão devem
obrigatoriamente: exibir filmes três anos (dois, se forem co-
produtores) após o lançamento no cinema; não exibir filmes nos
261
"dias sagrados" (fins de semana e nas noites de quartas e sextas);
respeitar as quotas de difusão, programando 60% de filmes
europeus, dentre os quais 50% devem ser falados em francês; exibir,
no máximo, 192 filmes por ano (que podem ser acrescidos de 52
filmes de arte) dos quais apenas 104 podem ser exibidos no horário
nobre. O Canal Plus apresenta, nesse caso, algumas regalias em
função de seus maiores investimentos”.
214
Podemos dizer que modelo francês é o estereótipo do modelo regulado. é possível
em um país muito rico, como a França, que não tem grandes lacunas a preencher em
termos de serviços públicos universais. Além disso, o modelo francês não pode se
provar eficiente uma vez que a audiência de obras produzidas internamente naquele país
vem diminuindo significativamente ao longo das últimas duas décadas. Mas também não
se pode calcular qual teria sido a perda caso não houvesse todo esse sistema caro de
apoio. Portanto não nos cabe corroborar ou condenar o modelo daquele país, mas
apenas, como temos feito, ressaltar alguns aspectos que nos são oportunos ou
arriscados. A experiência francesa aponta para a televisão como fonte de financiamento-
por-taxação da produção audiovisual restante. Considerando-se a dominação de
mercado exercida pela emissora líder brasileira, o sistema parece sedutoramente justo.
O problema, mais uma vez, é que no Brasil televisão é uma coisa e Rede Globo de
televisão é outra. Os poucos concorrentes da emissora líder não suportariam os custos
dessa carga fiscal e o saldo poderia ser o agravamento do monopólio. Além disso, a
França também nos ensina que as tentativas de controlar e direcionar a demanda a partir
de meios externos às obras, além de insinceros (do ponto vista cultural) e autoritários (do
ponto de vista social), são ineficientes (do ponto de vista técnico). Insinceros, porque a
cultura só tem valor no culto, e se um povo não cultua (ou cultiva) algo por suas
propriedades intrínsecas, então esse algo não faz parte (nem fará) de sua cultura.
Autoritários, porque não consideram a apreciação positiva do povo pelo produto de
mercado como fruto de seu arbítrio, desejam a reversão dessa apreciação, e buscam
fazê-lo independentemente daquele arbítrio. Ineficientes, porque incapazes de conter o
214
Ibidem.
262
consumo dos produtos que pretendem escassear, nem incentivar o daqueles que
pretendem promover, frente à diversificação e popularização das tecnologias que
promovem o acesso a ambos os tipos de produtos.
o panorama da relação entre mercado e cultura mediada pelo estado na Inglaterra é
bem diferente. Como no Brasil, a cultura inglesa passou por um assolamento liberal.
que no Brasil isso ocorreu nos anos 90 e durou tão pouco quanto o governo Collor,
enquanto na Inglaterra começa no início dos anos 80 com o governo Thatcher e se
estabelece por completo desde então.
“A orientação do governo Thatcher, que assumiu em 1979, foi
radicalmente liberal e pró-mercado. Coerente com essa postura, o
governo aboliu por completo as quotas de tela, em 1983, e a taxação
das bilheterias, em 1985, argumentando que esses não eram
‘mecanismos eficientes para se estimular atividades econômicas que
deveriam ser essencialmente orientadas pelo mercado’ além de
representarem ‘ônus exagerado para os exibidores de cinema”.
215
Como se antevê pelo texto oficial, a política liberal beneficiou o setor de exibição,
aumentando o número, qualidade e frequência às salas de cinema. A produção
doméstica, contudo, viu-se drasticamente reduzida nesse primeiro momento. Na década
seguinte o crescimento do trabalhismo reverteu parcialmente essa tendência através de
grandes investimentos da televisão pública em produtores independentes. Além disso, o
exagerado inflacionamento dos custos de produção nos EUA levou os estúdios norte-
americanos a operar grande parte de suas produções em solo britânico. Embora se diga
que a política liberal fracassou levando à queda na produção local, do ponto de vista
liberal isso não pode ser entendido como um fracasso. De toda forma, grupos de
pressão internos usaram a televisão pública para garantir a produção de filmes
domésticos. O Channel 4 driblou as orientações liberais da política audiovisual britânica
215
British Department of Trade. apud. SDA/MINC. Op.cit.
263
e comprou praticamente toda sua programação de produtores independentes, além de ter
produzido muitos filmes para lançamento nos cinemas. Essa orientação não rendeu bons
resultados comerciais à emissora que o pôde fazer a partir de sua dotação
orçamentária como empresa pública. O Canal 4 produziu 264 filmes nos 12 primeiros
anos e fez escola. A BBC e a ITV passaram também a investir em cinema. Hoje, metade
dos filmes ingleses tem participação direta de alguma emissora de TV.
O Brasil tem um mercado cinematográfico mundialmente significativo. Mas é um
mercado mais forte como consumidor do que como produtor. Veja as posições que o
país ostenta no ranking mundial em quantidades de público, renda das bilheterias,
quantidade de salas de exibição e, em contrapartida, o número de filmes produzidos:
Público: 8
o
Bilheteria: 10
o
N
o
de telas: 12
o
N
o
de filmes: 18
o
A diferença de dez posições entre a posição brasileira em termos de público de cinema e
seu volume de produção, é sintomática do desarranjo no setor, principalmente se
levamos em consideração a baixa eficiência econômica dessas produções conforme
demonstramos anteriormente.
“A produção cinematográfica brasileira é bastante instável e
dependente dos recursos governamentais. Por fim, a participação
dos filmes brasileiros nas receita de bilheterias domésticas é
relativamente pequena e, nas internacionais, insignificante. Até o
momento, portanto, o cinema brasileiro mostrou-se incapaz de
explorar em bases sustentáveis a dimensão do seu mercado interno
e, a partir disso, tornar-se competitivo no mercado internacional”.
216
216
SDA/MINC. Op.cit.
264
Vivemos em busca de razões para isso, mas a principal delas é óbvia e está implícita na
posição mundial do país como economia, seus indicadores sociais e de distribuição de
renda. Não se poderia esperar de um país com os problemas que temos um resultado
melhor que esse. A maior parte da grande população brasileira está excluída do
consumo de produtos e serviços bem mais essenciais que o audiovisual pago.
Entre as outras razões que determinam nosso desempenho relativamente fraco, a mais
relevante parece ser o processo histórico de implementação da TV no Brasil, que seguiu
uma trajetória diferente da maioria dos países. Entre outras peculiaridades, nunca houve
uma regulamentação ou incentivo da relação entre a televisão e as demais janelas
audiovisuais levando à concorrência entre esses meios. Não se pode deixar de
considerar também a má atuação dos maiores interessados, os cineastas, no fracasso do
cinema nacional.
“Há que se ter em conta dos equívocos nas doutrinas e concepções
dos setores artísticos e empresariais nacionais ligados à produção
de audiovisual que se refletem tanto na suas decisões estratégicas
como na influência que esses setores possuem nas escolhas de
políticas públicas para o setor”.
217
Já estabelecemos a origem, na própria classe artística, dos esforços nacionais por manter
uma cinematografia própria. Formada por indivíduos de origem social nas classes mais
privilegiadas do povo brasileiro, esse grupo de pressão poderoso determinou, não a
existência de políticas culturais no país, mas também a forma dessas políticas e a
maneira como os empreendedores se relacionam com elas. Os raros empreendimentos
de produção audiovisual que se orientavam para uma certa independência em relação ao
estado (tais como Vera Cruz, Cinédia e Atlântida) foram dizimados pela concorrência
estrangeira e por grupos rivais que sempre preferiram a inviabilidade mercadológica como
217
Idem.
265
instrumento de chantagem política. Deixada essa lacuna, a televisão devorou todo o
mercado audiovisual ajudando a sedimentar a cisão entre os meios.
“A carência de políticas audiovisuais mais amplas combinadas com
os baixos níveis de renda e de educação da população possibilitou
a hegemonia da televisão brasileira que, através do excepcional
sucesso das telenovelas enquanto produto de divulgação da cultura
brasileira, exerce acirrada concorrência ao cinema e, em particular,
aos filmes brasileiros com os quais compete como substituto nos
mercados consumidores e como concorrente nos mercados de
fatores. O cinema brasileiro encontra-se, portanto, espremido entre
o filme americano e a novela brasileira”.
218
A falta de regulamentação da televisão, em parte devido ao desinteresse dos produtores
independentes em ocupar essa janela (pelos motivos que apontamos em “audiência e
educação”), levou à situação que temos hoje, em que as emissoras produzem a quase
totalidade do conteúdo exibido e concentram toda a receita do setor. As únicas
produtoras de porte menor que alcançam sustentação financeira são aquelas voltadas
para o mercado de filmes publicitários. O setor audiovisual responde por 1% do PIB
brasileiro. Comparado com o grau de participação na economia de atividades de
baixíssimo valor agregado como por exemplo a monocultura da soja, ou a pecuária, esse
número revela uma temeridade em termos de desenvolvimento nacional a longo prazo.
Esse 1% está divido da forma como se no gráfico abaixo, feito a partir de dados de
1997:
218
Ibidem.
266
Publicidade
55%
Assinaturas
26%
Vídeo
12%
Cinemas
7%
Dados: MRC, 1998.
Os gastos dos anunciantes com a produção e veiculação de publicidade audiovisual
responde por mais da metade do produto bruto do setor, o que nos uma noção da
preponderância da televisão (e mais ainda da Rede Globo) na atividade audiovisual
nacional. Em segundo lugar, vem a receita obtida pelo pagamento de assinaturas de TV
fechada. A publicidade veiculada nas TVs fechadas está computada no item anterior,
juntamente com os valores da TV aberta. Em seguida, temos o segmento de vídeo
doméstico e, por último, com metade da participação deste, vem a renda das bilheterias
dos cinemas. Está clara a dominação absoluta da TV aberta, que atinge, segundo dados
do IBGE de 1996, 84,3% dos domicílios do país. A participação das emissoras nesse
bolo se dá conforme ilustra o gráfico a seguir.
267
Globo
57%
SBT
21%
Outras
16%
Band.
6%
Com 92 emissoras filiadas e 1500 estações repetidoras (mais que o dobro do segundo
colocado), a Rede Globo tem penetração em 98% de todo o território brasileiro e ainda
em parte do território de países vizinhos. Com essa enorme abrangência de dia, a
emissora torna-se opção preferencial para os planos de veiculação de qualquer grande
anunciante. Em termos de ocupação desse mercado, a emissora detém sozinha 70% de
todas as receitas publicitárias para a televisão gratuita. Esse valor corresponde à cerca
de 60% dos gastos somados de todos os anunciantes do país, representando uma
receita de aproximadamente dois bilhões de dólares no ano de 1997. Esses números
fazem da Rede Globo a quinta maior emissora de televisão aberta do planeta.
219
Para calcularmos a grandeza de valor do mercado de produção envolvido e que não
absorve os pequenos empreendedores nacionais deixando-os a cargo do Estado, basta
registrarmos que a Rede Globo e do SBT gastaram juntos, em 1996, US$ 800 milhões
219
Fonte dos dados: MRC. “La Industria Audiovisual Iberoamericana - Datos de sus principales mercados –
1998”. Madrid, Federación de Asociaciones de Productores Audiovisuales Españoles - FAPAE y Agencio
Española de Cooperación Internacional - AECI. 1999.
268
produzindo seus próprios conteúdos e US$ 100 milhões comprando programação de
outras empresas. A maior parte dos gastos com a compra de conteúdo foi faturada pelas
grandes distribuidoras americanas, mas esse alto percentual de investimento em
produção própria é raro no meio televisivo mundial.
A produção simultânea de quatro telenovelas mantida pela Central Globo de Produção
consome US$ 45 milhões por ano. Como resultado, a CGP entrega à emissora 560
horas de dramaturgia de ficção por ano, resultando num custo de US$ 80 mil por hora de
material editado. Em termos de substituição no consumo, é como se a emissora líder
provesse os mercado com 280 filmes de longa metragem por ano ao custo de 160 mil
dólares cada um. É, sem dúvida, um cenário difícil para a concorrência. E não ra por
aí: por deter quase 60% da audiência, a emissora líder tem poder de determinar os
preços para compra de programas no mercado brasileiro. Como é uma emissora
radicalmente vertical, a Globo procura depreciar ao mínimo possível o valor de mercado
desses produtos. Um filme de ficção em longa metragem tem preço médio de US$ 50 mil
no mercado brasileiro, um valor muito baixo mesmo consideradas as proporções entre os
diferentes mercados nacionais.
220
As Organizações Globo dominam também o mercado de TV por assinatura através de
sua operadora, a NET, que detém 60% do mercado na janela e tem como principal
concorrente o Grupo Abril, controlador da TVA, com 30% do mesmo mercado. O único
canal independente de TV por assinatura que produz a maior parte de sua programação
é a MTV, também ligada ao grupo Abril, que trouxe a franquia norte-americana ao Brasil
no início dos anos 90. Os canais do grupo Globosat (Globonews, Multishow, GNT e
Sportv) também produzem parte significativa de seu material ou reciclam o conteúdo da
TV aberta. Afora essas exceções, 90% dos 250 a 300 milhões de dólares gastos pela TV
220
Idem.
269
fechada brasileira com conteúdo vêm na forma de importação de programas das
distribuidoras dos Estados Unidos. Temos um mercado de mais de US$ 250 milhões
no qual as produtoras brasileiras ainda não competem. Nossas pequenas produtoras
continuam obcecadas pela idéia de produzir exclusivamente filmes de longa-metragem
para exibição nos cinemas. Mas seu desempenho nesse mercado segmentado não se
compara ao de seus concorrentes. Enquanto os filmes nacionais têm média de público
de 250 mil espectadores, os filmes europeus vendem 300 mil ingressos em média e os
americanos 500 mil. Claro que grande parte do desempenho superior do produto
estadunidense nas salas se dá pelos altos investimentos em promoção. Os filmes
americanos são lançados no Brasil com aproximadamente 40 cópias e US$ 200 mil em
publicidade. Como resultado, a bilheteria média dos filmes lançados pelas principais
distribuidoras multinacionais no país passa dos 120 mil ingressos vendidos enquanto os
lançamentos independentes têm dificuldade em ultrapassar uma audiência de 20 mil
espectadores. O distribuidor nacional mais bem sucedido é o Grupo Severiano Ribeiro,
principalmente pelo fato de também ter uma das maiores redes exibidoras.
Mas talvez não haja ambiente de concorrência mais cruel do que o das produtoras
independentes que buscam recursos públicos para realizar seus projetos. Em 1998, o
mercado oficial de projetos contabilizava 495 produtoras aprovadas pelo ministério para
beneficiar-se dos incentivos fiscais da Lei do Audiovisual (8685/96) e da Lei Rouanet
(9323/96). No total, aquele ano produziu 927 projetos que disputavam 790 milhões de
reais em renúncia fiscal federal. O resultado desse processo demonstra a corrosão do
potencial criativo dos realizadores audiovisuais brasileiros. Somente 24% dessas
produtoras conseguiram captar recursos no mercado de mecenato incentivado. Do total
de 790 milhões de reais reservados ao investimento público, apenas 150 milhões foram
efetivamente aplicados em projetos audiovisuais, ou seja, menos de 19% do montante
total.
270
“A ocorrência de 927 projetos e 500 empresas produtoras
candidatando-se aos benefícios fiscais sugere uma concorrência de
natureza predatória seja pelas condições de oferta ou demanda do
mercado brasileiro. Note-se, nesse sentido, que apesar do mero
excessivo de projetos, o valor médio dos orçamentos e das
captações autorizadas e realizadas foram de 1.56, 0.85 e 1.25
milhões de dólares, respectivamente. Não obstante as possíveis
superestimações de orçamentos, em termos de padrões
internacionais, essas cifras sugerem custos bastante elevados,
sobretudo tendo-se em conta a dimensão restringida do mercado
para filmes brasileiros. Utilizou-se o valor dos orçamentos das
empresas embora pareçam superestimadas para fins de aumentar a
captação autorizada”.
221
Como se é o próprio ministério responsável pela condução dessas políticas
que classifica a concorrência pelos recursos delas advindas como predatória e os
orçamentos como artificialmente altos com vistas à reversão dos custos de
contrapartida. Em média, 50% dos realizadores reconhecidos oficialmente jamais
se beneficiaram de recursos públicos para seus projetos. O apoio incondicional
do Estado brasileiro a uma parte limitada e bem definida dos cineastas do país
vem gerando distorções ao longo das últimas três décadas. E é novamente o
próprio órgão oficial que admite isso ao declarar que “nas décadas de setenta e
oitenta, o generoso apoio governamental mascarou os desafios da televisão,
enquanto as pornochanchadas driblaram as regulamentações da exibição”.
222
Existe um outro dado particularmente interessante sobre o cenário brasileiro do
audiovisual e que pode ser útil na análise de suas perspectivas para este novo
século. O Brasil é o país do mundo, de língua não-inglesa, em que o cinema
americano tem a maior participação na audiência total. Em apenas oito países do
globo o cinema americano representa mais de 75% da audiência total, o Brasil é
221
SDA/MINC. Op.cit.
222
Idem.
271
um deles. Somente no Reino Unido e na Austrália, nações de língua inglesa, o
cinema americano tem ocupação de mercado superior àquela observada no
Brasil. Seria o caso de se estudar a fundo as razões que levariam o cinema
americano a ter particular predominância no Brasil. Maior aque em mercados
mais submissos ao americano, como é o caso do México. A explicação para esse
fenômeno pode estar nas próprias políticas adotadas pelo país.
“Na tentativa de sobreviver à hegemonia do cinema americano, a
política governamental brasileira para o setor de cinema foi sempre
de caráter protecionista, quando não paternalista e, nesse sentido,
não diferiu daquelas praticadas na grande maioria dos países
produtores. O objetivo quase exclusivo da política brasileira foi
sempre o estímulo à produção doméstica, com pouca atenção dada
às atividades de distribuição e quase nenhuma para o setor exibição.
Essa ênfase excessiva na produção difere das experiências de
política cinematográfica nacional mais bem sucedidas”.
223
O foco no apoio a produção (de um certo grupo de produtores) tem sido o erro histórico
característico das políticas públicas de audiovisual brasileiras. Não obstante a riqueza de
dados que comprovam esse diagnóstico, essa linha de ação continua a ter fervorosos
seguidores.
“Não creio que possamos resolver de modo definitivo o problema da
distribuição sem resolvermos, no mesmo passo, os da produção. Se
produzimos apenas 10% dos títulos de filmes que se oferecem ao
mercado, seria razoável esperar muito mais do os 11% que temos
em presença de público? A solução dos problemas da distribuição
terá que acompanhar o crescimento da produção. virá se formos
capazes de fazer a produção crescer”.
224
Enquanto a aproximação teórica da economia liberal sobre o mercado de audiovisuais
define a produção como oferta, conseqüente da geração de demanda criada pelas
estruturas de promoção, distribuição e exibição, as teses de viés mais social tendem a
223
Ibidem.
224
Wefort, Francisco C. Op. Cit.
272
definir o audiovisual a partir da produção. Wefort, como representante de uma linha
social-democrata recusa-se a definir posição e mantém-se em cima do muro, definindo a
relação em termos de ovo e galinha.
“Os instrumentos básicos para estimular a produção cinematográfica
doméstica no Brasil foram a imposição de quotas de telas para filmes
brasileiros; os investimentos diretos na produção e; mais
recentemente, os incentivos fiscais aos investimentos privados na
atividade cinematográfica. Até meados dos anos sessenta, o papel
do governo foi tímido, restringindo-se à implementação de um
sistema de quotas de tela. A falência dos grandes estúdios
brasileiros no início dos anos cinquenta trouxe o reconhecimento da
carência de políticas setoriais mais abrangentes e incisivas, mas
medidas mais efetivas aguardariam ainda mais de uma década”.
225
A política de quotas falhou também no sentido de defender a posição do cinema
comercial brasileiro que os estúdios Vera Cruz, Cinédia e Atlântida representavam. As
novas regulamentações que vieram depois não tinham, entretanto, nenhum viés
industrial, tanto que não possibilitaram o surgimento de novas empresas desse tipo. Pelo
contrário, foram políticas alinhadas exclusivamente com o modelo cultural. Em 1966, foi
criado o Instituto Nacional do Cinema (INC), que inaugura o subsídio direto à produção
por projetos através de prêmios e complementações de renda para filmes específicos.
Em 1969 o INC se torna a Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME) e passa a
produzir diretamente os filmes nacionais. Em 1976 surge o Conselho Nacional de
Cinema (CONCINE) como órgão regulador do setor, na verdade para arbitrar as disputas
internas pelas prioridades de investimento da Embrafilme, que apesar de surgir como
agência financeira vai se tornando cada vez mais uma produtora estatal até que no final
de década de 70, já arca com 100% dos custos das produções.
“O investimento direto da Embrafilme trouxe estímulo significativo à
produção, mas teve como conseqüência adversa negligência com
os aspectos comerciais dos filmes. Além do generoso esquema de
225
SDA/MINC. Op.cit.
273
financiamento destaca-se a partir os anos setenta, o crescimento
significativo das quotas de telas para filmes brasileiros”.
226
Típico empreendimento da ditadura militar, a Embrafilme decidia autoritariamente que
projeto produzir e garantia sua exibição por imposição legal. O Concine funcionava mais
ou menos segundo os mesmos princípios expostos na reunião pública sobre a Ancinav
no teatro Leblon, no Rio de Janeiro, de que já falamos. Tratava-se, no fundo, de um
fórum no qual os produtores com boas relações com o governo militar negociavam a
divisão dos recursos públicos entre si. Em mais esse aspecto, as políticas públicas da
redemocratização reproduzem os vícios anti-republicanos que vem sendo perpetuados
desde o Brasil-colônia. Não falta quem, ainda hoje, esteja saudoso desse tipo de arranjo
produtivo para o cinema brasileiro. Enquanto isso, o restante dos empreendedores
nacionais continua aguardando a efetiva instauração da República no país. Os prejuízos
das políticas da época da Embrafime à cadeia econômica do cinema foram incalculáveis,
principalmente para os exibidores, contribuindo para o enfraquecimento da estrutura
industrial e comercial do setor.
“O apogeu das políticas protecionistas ocorre no final dos oitenta
quando, além das garantias de 100 por cento de financiamento
subsidiado e a exigência de 140 dias, no mínimo, para exibição de
filmes brasileiros, as políticas governamentais asseguravam ainda
que os filmes brasileiros continuassem sendo exibidos enquanto o
público médio de duas semanas consecutivas fosse maior ou igual
a 60% dos espectadores da semana prévia, além de exigir dos
exibidores uma pagamento de 50% da renda líquida de bilheteria
para filmes brasileiros, além da compra de tickets e borderaux
padronizados aos preços fixados pela Embrafilme”.
227
Dizem que males que vêm para o bem. A dissolução do Concine e da Embrafilme
pelo governo Collor em 1990, pode ser considerado um desses casos. Essa afirmação
com toda certeza encontrará resistência e até mesmo ódio no meio cinematográfico
nacional. O senso comum construído sobre aquele breve período de três anos, nos
226
Idem.
227
Johnson, R. “Brazilian Cinema”. New Jersey, London, Toronto, Fairleigh Dickinson University Press e
London and Toronto Associated University Press. 1982.
274
ensinou a demonizar tudo que venha dali, independente do quê. Mas agora que
conhecemos todos os malefícios das políticas que aquele governo extinguiu, podemos
dizer que a tese de que o cinema foi destruído por Fernando Collor e Ipojuca Pontes
interessava e ainda interessa principalmente aos cineastas que se locupletavam no
dinheiro fácil da Embrafilme. Entre os exibidores, por exemplo, o fim dessas políticas foi
uma bênção, e possibilitou a grande ampliação no número de salas que se observou ao
longo dos anos 90 e que continua até hoje, depois de um período de três décadas de
queda vertiginosa. Durante os três anos do governo Collor, o setor de produção, inepto
para qualquer outra forma de sustentação que não o paternalismo estatal, simplesmente
parou enquanto o cinema comercial se recuperava movido pelo conteúdo importado
principalmente dos EUA. Entretanto, o lobby de produtores trabalhou nos bastidores até
conseguir, do mesmo governo tão demonizado, a cabeça de Ipojuca Pontes e o esboço
de uma política substitutiva. Mas foi somente no governo seguinte que as leis de
renúncia fiscal, como a Rouanet e a lei do audiovisual, repuseram indiretamente o capital
público no setor de produção. O setor do audiovisual foi finalmente reconhecido com um
setor econômico estratégico e incluído no Programa Brasileiro de Qualidade e
Produtividade – PBPQ.
228
Pouco a pouco, iniciou-se a escalada de gastos públicos diretamente em projetos de
produção partindo de R$ 27 milhões, em 1995, chegando a R$ 112 milhões em 2001 e
em trajetória ascendente até hoje. Na verdade, pouquíssimos setores da economia
conseguiram ao longo dos últimos dez anos ver sua participação nos gastos públicos
crescer na proporção que ocorreu na produção cinematográfica, particularmente se
considerarmos a completa ineficiência econômica desse conjunto de empreendedores.
De certa forma, a trajetória da relação entre estado e produtores de cinema na última
década vai na contra-mão das reformas de gestão pública, impostas até mesmo a
228
Vide site do Ministério da Cultura (www.minc.gov.br), Relatórios e Pesquisas.
275
setores vicerais como saúde e educação ou de maior fundamentação econômica, como
infraestrutura. Se fizermos uma analogia, a forma como está novamente estruturado o
setor de produção cinematográfica é totalmente contrária aos conceitos de
desenvolvimento sustentável ou de responsabilidade fiscal, tão ferozmente defendidos e
impostos à sociedade nesse período. O governo Fernando Henrique Cardoso gastou em
8 anos 50% mais dinheiro na produção de filmes do que a Embrafilme ao longo de seus
12 anos de existência.
229
Por isso é estranho notar que a escalada no gasto público com
o cinema seja exibida, por si só, como um resultado positivo das políticas setoriais. A
avaliação da eficiência ou qualidade desses gastos, sob quaisquer aspectos ou critérios,
passa ao largo dessa discussão demonstrando a imaturidade administrativa das
instituições brasileiras, pelo menos no que se tange à gestão da cultura.
Em julho de 1993 começa a vigorar a Lei do Audiovisual, de investimento por meio de
renúncia fiscal, Em 1997, o incentivo fiscal foi estendido também a investimentos no setor
exibidor, distribuidor e na infra-estrutura técnica, porém com pouco sucesso. A lei do
audiovisual foi criada com um discurso que previa, a partir dela, a sustentação industrial
do audiovisual brasileiro e o fortalecimento da parceria entre o capital privado e os
produtores. Segundo a fantasiosa (e talvez maliciosa) previsão, o tempo demonstraria
aos agentes financeiros a viabilidade econômica da produção nacional e, num prazo
relativamente curto, o incentivo fiscal poderia ser reduzido gradativamente. O prazo de
vigência da lei era de dez anos e deveria expirar em 2003, mas a falta de uma cultura
voltada para a responsabilidade econômica no setor de produção levou ao fracasso da lei
que, incoerentemente, determinou sua prorrogação indefinida até os dias de hoje. Na
prática, perpetuou-se a dependência irresponsável dos produtores em relação à máquina
pública e transferiu-se às empresas, algumas privadas e a maioria estatais, a
229
SECAV. Relatório de Atividades da Secretaria do Audiovisual: Cinema, Som e Vídeo: 1995-2002”.
Coordenação Geral: José Álvaro Moisés, Edição e Texto: Sandra Cipriano Chaves, Sheila Cataldo Sterf e
Verônica Lima. Secretaria do Audiovisual, Ministério da Cultura. 2003.
276
responsabilidade de selecionar os projetos. O Ministério da Cultura explicava a lei da
seguinte forma:
“O mecanismo de renúncia fiscal, na verdade, restaurou o subsídio
governamental à atividade, mas retirou das autoridades do setor o
poder de decisão sobre os projetos cinematográficos que seriam
financiados. Além de descentralizar a decisão, evitando os
problemas de favoritismo tão criticados no caso dos investimentos
diretos da Embrafilme, esse mecanismo pretende introduzir a
lucratividade privada como critério de escolha dos projetos
cinematográficos que recebem financiamento”.
230
O objetivo do governo era claro: livrar-se do descrédito ocasionado pela corrupção
sistêmica transferindo a decisão de investimento para outrem. Na prática, como já
sabemos, os favoritismos, a troca de favores, o tráfico de influência, o nepotismo e a
corrupção ativa e passiva que caracterizavam o arranjo político da Embrafilme
transferiram-se, tais e quais, para as políticas de investimento cultural das grandes
empresas estatais. Quanto à lucratividade, é absolutamente irrelevante diante do apelo
fácil da renúncia fiscal e a flagrante insolvência dos orçamentos aprovados.
“Como se trata de recurso a fundo perdido, a exigência de
rentabilidade comercial dos projetos torna-se apenas virtual, pois o
fracasso comercial não implica, em geral, qualquer perda para o
produtor ou o investidor. Em termos mais específicos, a Lei do
Audiovisual, no seu Artigo 1º, permite às pessoas jurídicas deduzir do
Imposto de Renda devido (até o limite máximo de 3% desse valor) o
montante dos investimentos realizados na produção de obras
audiovisuais cinematográficas brasileiras de produção independente
credenciados pela Secretaria de Audiovisual do Ministério da Cultura
(hoje, pela ANCINE). Permite, adicionalmente, que esse montante
seja abatido como despesa operacional para fins de declaração do
Imposto de Renda. Para cada projeto os recursos assim obtidos estão
limitados em 3 milhões de dólares e devem responder por, no
máximo, 80% do orçamento, sendo os 20% restantes a contrapartida
mínima dos produtores na forma de serviços técnicos e artísticos ou
de aporte financeiro. A captação de recursos junto às pessoas
jurídicas é efetuada por meio da venda de quotas representativas de
direitos de comercialização, caracterizadas por Certificados de
Investimentos emitidos e registrados na Comissão de Valores
Mobiliários (CVM). Os investidores tornam-se, portanto, sócios dos
230
SDA/MINC. Op.cit.
277
resultados comerciais do filme. O processo burocrático é complexo e,
dependendo do projeto, as taxas de intermediação financeira podem
ser elevadas. Além disso, o mecanismo é facilmente utilizável para
fins de evasão fiscal”.
231
A contrapartida de 20% que deveria recair sobre os produtores foi sempre driblada
através de alguns artifícios como o superdimensionamento orçamentário. Além disso, as
empresas viam vantagens comparativas no fracasso comercial dos projetos, uma vez que
poderiam lançar sua participação mobiliária como prejuízo conseguindo assim uma
vantagem fiscal de valor superior ao investido. Em resumo: o investidor poderia lucrar
mais com o prejuízo provável do que com o lucro improvável dos projetos. Temos aí,
uma política de investimento que premia a ineficiência.
A forma peculiar de organização do setor de produção audiovisual brasileiro, exceto
aqueles das redes de televisão (em especial a Globo), explica em parte a dominação
exercida pelo entretenimento televisivo na sociedade brasileira. Não sugerimos com isso
que a organização corporativa e estatizante dos demais produtores seja causa da
hegemonia exercida pela telinha, mas também queremos desmentir a crença corrente de
seja, ao contrário, consequência desta. A posição e as vicissitudes dos padrões de
produção da tevê e do cinema são co-sintomáticas. Em parte porque no Brasil está
arraigada a idéia de uma separação em termos entre cinema e televisão, como se
tratassem de processos de produção audiovisual completamente diferentes quando na
verdade têm muito mais em comum do que se prega. Essa distinção tática se reflete até
mesmo na apreciação formal dos produtos. Um dos melhores exemplos disso é o diretor
Jaime Monjardim, atuante em ambas as mídias. No meio televisivo ele é tido como um
diretor com idéias demasiadamente cinematográficas, cujos projetos trazem incertezas
com relação à audiência e riscos à lucratividade. quando se aventura no cinema,
como no longa-metragem “Olga”, o diretor é estigmatizado pela crítica como portador de
231
Idem.
278
cacoetes de linguagem televisiva. Aplicam-se indiscriminadamente os termos “linguagem
televisiva e “linguagem cinematográfica” como houvesse fronteiras entre uma e outra,
absolutamente claras. Ao contrário, pouco se fala sobre uma “linguagem audiovisual”.
De maneira geral, essa distinção serve ao propósito político de colocar sob suspeita o
produto televisivo. O que queremos sugerir é que alguma participação da malícia de
alguns cineastas nessa distinção que coloca o cinema no lado da cultura e a TV no do
mercado.
Cerca de 80% dos brasileiros não têm nenhuma outra atividade de entretenimento ou
lazer cultural além da televisão gratuita. Essa massa populacional não vai ao cinema,
não aluga vídeos, não freqüenta o teatro nem apresentações musicais ou de dança, não
entra em museus e, acima de tudo, nada (livros, jornais, revistas, nada). Essa imensa
população passa quatro horas diárias na frente da telinha e tem como modelo
dramatúrgico exclusivamente a telenovela e somente os telejornais como fonte de
informação documental (ou não assumidamente ficcional).
232
“A importância da televisão deve-se a uma conjugação ímpar de
fatores, destacando-se, pelo lado da demanda, o acesso da
população de baixos níveis de renda e educação à posse da
televisão e, pelo lado da oferta, a concentração de recursos
técnicos e econômicos em algumas poucas empresas de
teledifusão na verdade, o virtual monopólio da Rede Globo que
além de possibilitar ao setor excelência tecnológica, capacidade de
modernização e competitividade internacional, fez emergir uma
dramaturgia de alto padrão artístico”.
233
A história da televisão no Brasil começa em 1950, com a entrada no ar da TV Tupi. Foi a
Tupi que cultivou pouco a pouco uma audiência que saiu de praticamente zero em sua
inauguração. A partir da década de 60 havia outras emissoras na concorrência e o
rápido crescimento da audiência da TV foi tirando o público das salas de cinema. Em
232
Florisbal, O. “O Negócio da Televisão”. In: Almeida, Cândido José M. e Araujo, Maria Elisa. (org.) “As
Perspectivas da Televisão Brasileira ao Vivo”. Rio de Janeiro. Imago Ed. Centro Cultural Cândido Mendes,
1995.
233
SDA/MINC. Op.cit.
279
1960, 4,6% dos 13 milhões de domicílios brasileiros tinham aparelhos de TV. Em 1996,
são 84,3% de um total de 38 milhões de domicílios, o quarto maior mercado de audiência
televisiva do mundo. Até a década de 60, as emissoras são regionais, depois começam
a ser implantadas as redes nacionais, como a Rede Globo, que entra no ar em 1969. A
mudança de estrutura, que extinguiu as emissoras regionais substituindo-as pelas redes,
atendeu aos interesses do governo por maior domínio político, e das grandes
corporações e agências de propaganda por maior homogeneidade do mercado
consumidor.
“Durante os anos quarenta e cinquenta, o crescimento do público e
da produção dos filmes brasileiros foram expressivos. Esse
crescimento foi em grande parte devido à proteção natural ao cinema
brasileiro conferida pelas barreiras culturais então existentes, em
especial o alto grau de analfabetismo da população. (...) As
diferenças culturais somadas à inexistência de dublagem fazia os
filmes estrangeiros inacessíveis ao entendimento de boa parte da
população brasileira, garantindo a competitividade do filme nacional.
Essa competitividade e a exploração do prestígio e penetração dos
artistas de rádio explicam boa parte do sucesso das chanchadas em
seu período áureo”.
234
Num cenário como esse, a popularização do aparelho receptor de televisão alterou
naturalmente, e de forma profunda, os hábitos de lazer, entretenimento, cultura e
informação da população. Se a televisão surgiu no mundo todo como um substituto do
cinema e outras formas de informação e cultura, no Brasil da década de 60, com suas
taxas alarmantes de analfabetismo, essa substituição se deu de forma quase totalitária,
sob os auspícios de governos e elites empresariais. É improvável que algum tipo de
regulamentação tivesse impedido esse processo de substituição devido às características
sócio-culturais da população. Além do mais, não era interesse de ninguém, naquele
momento, evitar a ocorrência desse fenômeno, que era entendido como parte integrante
do desenvolvimento tecnológico do país. Os recursos humanos e artísticos do rádio, que
antes eram aproveitados em sinergia pelo cinema, foram absorvidos pelo novo meio.
234
Idem.
280
Em 1962, um decreto tornou obrigatória a dublagem de toda programação estrangeira
exibida na tevê, o que já era praticado de forma espontânea, absorvendo assim o público
analfabeto negligenciado pelo cinema, onde nunca houve esse hábito por resistência dos
produtores nacionais. E foi assim que a televisão popularizou o cinema americano no
Brasil. Esse efeito, somado a bem sucedida e experiência da ficção seriada, foram
determinantes da marginalização da produção audiovisual nacional de outra ordem.
235
Se num primeiro momento a telenovela é simplesmente uma versão com imagem das
novelas do rádio, com o tempo esse produto evoluiu e sofisticou-se como o faz
continuamente até hoje. O incremento cnico das cores, no início dos anos 70, apenas
aumentou a susbstitubilidade da TV em relação ao cinema e, conseqüentemente, da
telenovela em relação aos filmes brasileiros de ficção. Como observamos em outro
momento, são as diferentes gerações tecnológicas das diversas janelas audiovisuais que
sustentam sua sobrevida paralela. O impacto sensorial da experiência pela qual o
expectador paga na sala de cinema, determina a sobrevida dessa janela ante a TV.
“Para a vasta maioria do público brasileiro, a televisão praticamente
satura, ou seja, supre quase integralmente a demanda por
experiências cognitivas e afetivas audiovisuais sobre sua realidade
imediata ou circundante. É surpreendente, nesse sentido, a
capacidade do público brasileiro de consumir duas ou três horas
diárias de temas culturais eminentemente brasileiros. Poucas são as
sociedades ocidentais que consomem tanta dramaturgia nacional.
Menos ainda aquelas que ocupam parcela tão grande do horário
nobre (prime time) da televisão com programas dramatúrgicos
versando sobre sua própria cultura”.
236
O trecho acima, extraído do texto do estudo da secretaria de audiovisual do ministério da
cultura, apresenta uma predeterminação natural da nacionalidade da cultura como fator
de implicação nas escolhas de fruição do público. Mas as teorias da comunicação não
nos dão razão para que acreditemos numa necessidade de “experiências cognitivas e
235
Simis, Anita. “Estado e Cinema no Brasil”. Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Filosofia,
Letra e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 1992.
236
SDA/MINC. Op.cit.
281
afetivas audiovisuais sobre sua realidade imediata ou circundante”. Da mesma forma, há
ali o preconceito que leva à noção de que a telenovela é consumida pelo brasileiro
porque “versa sobre sua própria cultura”. Novelas apresentam romances, conflitos
familiares, pobres e ricos, heróis e vilões, ou seja, micro e macro-narrativas cujas
estruturas são universais. Se há algo de local ali, é meramente a ambientação. Não se
quer aqui desqualificar as temáticas intrageográficas ou sua validade como conteúdo
psicossocial. Narrativas preparam para a vida e isso é uma verdade transdisciplinar.
Mas a idéia de que as telenovelas “saturam” a demanda do brasileiro por Brasil nos
parece equivocada. As telenovelas, principalmente por sua homogeneidade temática, de
estrutura narrativa e classes de personagens e situações, configuram na verdade, um
universo extremamente limitado para o imaginário do espectador brasileiro. Não existe
nenhuma razão para imaginar que não há enormes lacunas cognitivas, afetivas e
temáticas deixadas por esse produto e que podem ser exploradas. É muito mais seguro
dizer que a telenovela, por sua distribuição massiva e gratuita, satura o tempo dedicado
pelos brasileiros (particularmente a maioria pobre) à fruição de narrativas ficcionais.
Desse ponto de vista, a concorrência da telenovela tem um registro mais econômico do
que cultural. O motivo que leva ao julgamento aí analisado é o fato de que na grande
maioria dos países, o consumo de dramaturgia nos horários nobres da TV é dominado
por filmes e seriados norte-americanos enquanto, no Brasil, a telenovela empurra essa
produção estrangeira dominante para horários menos privilegiados. Essa é uma
característica atípica do mercado brasileiro de audiovisuais e tem sim alguma implicação
cultural. Mas tudo nos leva a crer que esse fato é um sinal positivo, e não negativo, para
a produção de audiovisual doméstico de qualquer natureza. É o que podemos perceber
pelo enorme sucesso dos filmes brasileiros que são bem produzidos, promovidos e
distribuídos. Se a telenovela tornou-se onipresente na televisão brasileira é em parte
porque a indústria de produção audiovisual não quis ou não foi capaz de suprir essa
demanda. Por tudo isso, no Brasil e, em menor escala, no México e na Venezuela, as
emissoras de televisão tiveram que fazer grandes investimentos em uma base produtora
282
de conteúdo audiovisual. Mas, como dizíamos, a culpa não é apenas dos produtores fora
do sistema televisivo:
“A insuficiência de oferta não é, contudo, a única explicação para a
dissociação dos interesses comerciais do cinema nacional e da
televisão. O modelo institucional de televisão comercial implantado
no Brasil desempenhou papel crucial, nesse sentido. Esse modelo
foi bastante peculiar pela carência total de legislação restritiva à
concentração da propriedade e controle nas atividades de
teledifusão. Isso possibilitou, apesar das dimensões continentais do
país, a hegemonia de poucas redes de TV abertas e, em particular,
o virtual monopólio da Rede Globo. O Brasil aparece, portanto,
como um caso ímpar, no qual a programação televisiva é
controlada pelas grandes redes sem a interferência do Estado ou a
participação da sociedade”.
237
Vale aqui uma ressalva sobre a frase final da citação. “Interferência do Estado” e
“participação da sociedade” embora façam toda diferença em termos de teoria política
são, na prática, a mesma coisa. O governo de coalizão de centro-esquerda que
administra o país desde 2003 usa com freqüência o segundo termo, inclusive com uma
construção um pouco mais rígida: “controle social”. Se sublinhamos aqui o uso da
expressão, é para demarcar sua legitimidade epistemológica. Afinal, como é que a
sociedade poderia “participar” da programação televisiva, se não através de instrumentos
criados e mediados por agentes do Estado? Da mesma forma, como se o “controle
social” de alguma atividade? Essas expressões maliciosas costumam cumprir a função
de velar o descompasso entre ação de Estado, e a idéia muito abstrata de uma vontade
da sociedade”. Se o sistema político da democracia republicana precisa discutir sua crise
de representatividade que o faça. Mas não devemos de nossa parte permitir que termos
politicamente perversos passem em branco. Na Europa, por exemplo, a televisão é
entendida e gerenciada em termos de “serviço público” e, portanto, controlada de forma
totalitária pelo Estado em nome dessa participação da sociedade”.
238
Podemos dizer
que o modelo europeu de televisão é socialista, estatizante, nacionalista e,
237
Idem.
238
Leal Filho, L. “A Melhor TV do Mundo: O Modelo Britânico de Televisão”. São Paulo, Summus
Editorial. 1997.
283
inevitavelmente, focado no dirigismo cultural. o modelo brasileiro, assim como o
americano, é capitalista, liberal, mercadológico e focado no audiovisual como
entretenimento de massas. Mesmo assim, até a década de 90, a legislação americana
interferiu no mercado de Tv protegendo o setor de produção ao limitar em 30% a porção
de conteúdo que poderia ser produzido pelas próprias emissoras. Na prática, isso
limitava a produção própria das redes ao telejornalismo diário e transmissão de eventos
esportivos.
239
Toda a dramaturgia e demais programas tinha de ser comprada de
produtoras independentes.
240
no Brasil, uma legislação anacrônica, de 1962,
estabelece a obrigatoriedade da apresentação de duas horas e meia de programação ao
vivo por período além de 25 minutos semanais de filmes brasileiros. Em conseqüência,
as redes nacionais de televisão brasileiras produzem em média 85% do seu conteúdo,
num caso, raro no mundo, de verticalidade audiovisual.
“A Rede Globo, pela liderança de audiência, dita as regras do
mercado e raramente adquire produções independentes, optando por
produzir toda a programação que exibe segundo critérios
exclusivamente comerciais, ou seja, os produtos são selecionados
segundo sua capacidade de gerar receitas, devendo gerar nos
intervalos comerciais de exibição mais recursos do que os gastos na
sua produção”.
241
A Rede Globo tem por política não comprar produção independente por diversos motivos.
Primeiro, porque dificilmente um produtor independente conseguirá atingir o nível de
eficiência de custos da emissora e, portanto, não conseguirá oferecer conteúdo a ela por
um preço competitivo. Segundo, porque o famigerado “padrão Globo de qualidade”
estabelece regras técnicas estéticas e de linguagem tão rígidas que só a produção
homogênea da própria casa é capaz de seguir. E, finalmente, porque a compra de
239
Marinho, E. “TV para Adolescentes – Um Público em Expansão”. In: Almeida, Cândido José M. e
Araujo, Maria Elisa (org.) “As Perspectivas da Televisão Brasileira ao Vivo”. Imago Ed. Centro Cultural
Cândido Mendes, Rio de Janeiro. 1995.
240
O termo “independente”, na produção de audiovisuais refere-se àquela produção que não é feita por um
canal exibidor, seja uma emissora de Tv, distribuidor ou exibidor de cinema e vídeo.
241
Torres, C. e A. “Fontes Produção Independente – Projetos e Possibilidades”. In: Almeida, Cândido José
M. e Araujo, Maria Elisa (org.) “As Perspectivas da Televisão Brasileira ao Vivo”. Imago Ed. Centro
Cultural Cândido Mendes, Rio de Janeiro. 1995.
284
material de produtores de fora seria de certa forma um incentivo à concorrência. As
emissoras concorrentes da principal, por sua baixa audiência e valor agregado de
intervalos comerciais, têm poder de compra reduzido, inviabilizando a aquisição de
conteúdo sob custos aceitáveis.
É costume no meio acadêmico, concluir que a orientação exclusivamente comercial das
emissoras de televisão brasileiras, aliada à sua estrutura verticalizada, limitariam a
produção nacional de audiovisuais aos produtos de entretenimentos das próprias redes,
relegando à marginalidade a produção independente e o cinema nacional. Faltariam
mecanismos de estado que obriguem a televisão a comprar o produto cultural. E ,
pressupõe-se que produção independente é igual à cultura. Da mesma forma pode-se
dizer que a ineficiência comercial da produção independente e a falta de mecanismos de
estado que obriguem os produtores à sustentabilidade relativa, cria barreiras à sua
penetração no mercado.
A entrada em cena da televisão por assinatura no Brasil na década de 90 trouxe grandes
expectativas em relação a uma maior diversidade de conteúdo, segmentação,
democratização e aumento da demanda por produção. Ao contrário das previsões mais
otimistas, a TV fechada levou principalmente a um aumento significativo de preços do
audiovisual norte-americano devido à ampliação na demanda por conteúdo,
particularmente por filmes.
242
Tanto na América latina como na Europa esperava-se que
esse aumento na demanda e nos preços de mercado significasse novas oportunidades à
produção independente doméstica. A tevê a cabo revelou-se uma grande decepção
nesse sentido, convertendo-se numa janela de acesso aos arquivos e acervos
gigantescos de produção acumulada, principalmente das distribuidoras americanas. Para
242
SD. “Television Film Rights: The European market heats up”, Screen Digest. 1997.
285
os detentores de grandes bibliotecas de conteúdo, essa janela significava um meio de
reciclar produção passada gerando renda adicional por custos desprezíveis.
A barreira da língua é um dos principais fatores de empecilho à exportação de
audiovisual não aglófono, que o maior mercado consumidor é a comunidade de ngua
inglesa, que é também o maior mercado produtor. Em conseqüência, os consumidores
desse mercado são extremamente resistentes à dublagem e ainda mais à legendagem.
As produções da BBC de Londres encontram mais mercado que as do Canal Plus
francês, embora ambas sejam estúdios de tevê estatais com temáticas e qualidade
técnica similares. A diferença é que o inglês é uma língua de maior penetração
mercadológica internacional. Por esse ponto de vista peculiar poderíamos dizer que
certas especificidades culturais podem prejudicar a abrangência e penetração
mercadológica de uma produção nacional.
“A peculiaridade da musica clássica, é a de sugerir que certos
segmentos culturais podem tomar significação nacional não apenas
no quadro de sociedades rurais, mas mesmo dentro de paradigmas
internacionais. Villa-Lobos, um dos grandes do nacionalismo na
música, se irritava, com razão, quando diziam dele nos EUA que era
um ‘musico brasileiro’. ‘Ninguém apresenta Bach dizendo ‘Bach, um
musico alemão’’. Villa se considerava, e era de fato, um grande
músico e, como tal, se submetia a paradigmas internacionais em seu
trabalho, por mais que seus temas fossem nacionais. O mesmo se
diga de Carlos Gomes e de todos os outros mestres da música
erudita no Brasil, sejam compositores, maestros ou instrumentistas.
Pelo menos desde o barroco, a música erudita brasileira é
internacional, como qualquer música erudita de qualidade. Músicos
eruditos brasileiros circulam pelas grandes orquestras do mundo. O
que ocorre também na área da dança. Temos brasileiros em
algumas das melhores companhias da Europa”.
243
Por quê razão a produção audiovisual independente brasileira é tão refratária a lançar-se
nessa busca por uma comunicação universal? A TV por assinatura é um mercado
243
Wefort, Francisco C. Op.cit.
286
milionário em nível mundial, mas muito reduzido dentro das fronteiras nacionais. Isso
porque não mais que 15% dos brasileiros podem arcar com os custos da assinatura.
Enfim, o proverbial isolamento entre televisão e cinema no Brasil é fruto de circunstâncias
históricas que diferenciam nosso setor audiovisual tanto do modelo cultural europeu
quanto daquele liberal americano. A base de produção diversificada no Brasil viu-se
espremida entre as distribuidoras dos EUA e a televisão nacional. Soma-se a reação
equivocada desse setor, que vestiu a túnica da marginalidade como estratégia de
sobrevivência puramente moral, aprofundando o fosso entre as diferentes janelas. A tão
falada dicotomia entre TV e cinema no Brasil arraigou-se por confundir-se com aquela,
entre mercado e cultura, objeto de estudo desta tese. Não fosse essa justificativa de
moral escrava, que transforma a impotência mercadológica em mérito cultural, esse muro
de separação não poderia ter-se sustentado por tanto tempo.
O Estado, cooptado pelo aparelhamento político da classe cinematográfica (e vice-versa)
optou por tornar o cinema um compartimento estanque do setor, encarando os projetores
e os rolos de película como patrimônio cultural e buscando tombá-los na forma de quotas
de tela e financiamento de projetos ao invés de tentar romper os diques que separavam o
cinema da tevê. Sem incomodar as emissoras de televisão nem as distribuidoras
multinacionais o Estado procurou assegurar a continuidade da produção por parte de um
número reduzido de cineastas, mesmo na ausência de audiência para essas obras.
“Esse foi talvez equívoco fundamental da política cinematográfica
brasileira, que não conseguiu reconciliar as responsabilidades
culturais e industriais do governo com o cinema e levou à queda
meteórica da indústria cinematográfica do Brasil”.
244
Para romper essa distinção falsa e daninha entre mercado e cultura, da mesma forma
que sua reprodução política na partilha das janelas entre uma e outra, é preciso romper
244
Johnson, L. L. Op.cit. 1994 (Pág.141).
287
de forma radical com os embasamentos metodológicos que levam a critérios de fomento
e política regulatória comprometidos com tal definição do produto e do ambiente de
produção, distribuição e consumo de audiovisual. Está claro que políticas de natureza
comercial devem equilibrar a oferta de preços no mercado interno. O que hoje é
praticado na importação de produtos audiovisuais pode ser por diversos meios
caracterizado como dumpping. São preços tão desatrelados dos custos que inviabilizam
qualquer chance de competição. A boa luta nas instituições multilateriais de comércio é
essa, e não a busca de uma inserção internacional do país como economia agro-
exportadora, uma posição que perpetua uma identidade nacional de colônia. Da
mesma forma, um ambiente de iguais oportunidades competitivas deve ser garantido no
mercado interno. O Estado deve romper com o padrão histórico complacente que
remenda desigualdades causadas por privilégios privados através da concessão de
privilégios públicos segmentados e deve ter a coragem para descontinuar as políticas de
mecenato orientadas a projetos específicos desse ou daquele autor-personalidade. Da
mesma forma, o nível de concentração nos meios de comunicação no Brasil é tão
alarmante quando negligenciado pela academia. Tanto uma como outra frente de ação
concentra-se em um pressuposto simples: a defesa da livre concorrência estimula a
diversidade e a diversidade estimula a eficiência. Esse é um valor o mercadológico
quanto cultural e está velado por uma cortina de fumaça composta por interesses
corporativistas de todas as partes envolvidas.
O Estado é hoje, do ponto de vista econômico, o único autêntico produtor cinematográfico
do Brasil. E, como não poderia deixar de ser, é um produtor incompetente. A vocação
dos estados nacionais não é a produção cinematográfica, mas a provisão se serviços
públicos essenciais, tais como justiça, saúde, educação, saneamento e infra-estrutura. A
história da Embrafilme demonstra de forma cabal esse deslocamento de função.
288
“De 1969 a 1990, a Embrafilme funcionou com um orçamento anual
de cerca de 12 milhões de dólares, dos quais 70% a 80% eram
destinados à investimentos na produção de filmes de longa
metragem. Esses recursos produziram cerca de 25 filmes por ano,
com orçamentos de produção que se situavam, na média, entre 500
e 600 mil dólares por filme”.
245
É praticamente universal a opinião de que os filmes produzidos pela Embrafilme eram de
qualidade. Essa opinião se verifica pela imagem negativa que o cinema nacional
adquiriu durante o reinado da estatal. Apesar da produção barata, a Embrafilme jamais
conseguiu ser lucrativa. A tônica dominante era a da absoluta falta de transparência nos
critérios de seleção de projetos. No final da década de oitenta, quase nenhum filme
produzido pela estatal atingia seu break-even, que na época correspondia a um milhão e
oitocentos mil expectadores em noves meses de exibição.
246
O padrão de produção do cinema americano criou no Brasil a idéia de que grandes
orçamentos causam grandes públicos. Na verdade, essa crença alimenta a indústria do
superfaturamento orçamentário, que garante a remuneração dos produtores mesmo
diante de retumbantes fracassos em audiência. De forma geral, orçamentos devem ser
adequados ao mercado a que se dirigem. Orçamentos baixos não significam baixa
competitividade nem nos EUA, como demonstram sucessos como “A Bruxa de Blair” e
“Mar Aberto”, filmes de fundo de quintal que arrecadaram milhões em renda ao caírem
nas graças de grandes distribuidores. Blockbusters de Hollywood o fazem grandes
bilheterias por custarem caro aos estúdios, mas pelo contrário, uma série de outros
fatores que garantem altos níveis de audiência permite a prática de grandes orçamentos.
O gráfico reproduzido a seguir demonstra que, pelo contrário, maiores orçamentos
implicaram em desempenhos econômicos piores para filmes brasileiros na década de 80.
245
Nogueira, R. “Qualquer coisa é melhor que a Embrafilme”. São Paulo, Folha de São Paulo, Caderno.
1998.
246
CONCINE. “Relatório de Atividades Primeiro Semestre de 1989”. Rio de Janeiro, Concine - Conselho
Nacional de Cinema. 1989.
289
Fonte: SDAV-MINC.
Segundo os autores do estudo do próprio Ministério da Cultura, os critérios de seleção de
projetos da Embrafilme não causaram prejuízos financeiros ao Estado, como não
traziam nenhuma outra vantagem. Mais que isso: eram selecionados, como hoje, por
meio da prática de tráfico de influência.
“Finalizando, mais importante talvez é o fato que o fracasso
comercial dos produtores não impediam seu acesso a novos
financiamentos por parte da própria Embrafilme, demonstrando
portanto a ausência de critérios comerciais na concessão dos
financiamentos que, nas mais das vezes, eram obtidos na base de
prestígio artístico dos diretores ou do acesso dos produtores às
esferas de decisão”.
247
Os cios da época da Embrafilme permanecem hoje de forma praticamente inalterada.
As mudanças nas políticas públicas do audiovisual foram meramente cosméticas. As leis
Rouanet e do Audiovisual vieram acudir o lobby de produtores prejudicados pela
247
SDA/MINC. Op.cit.
290
liberalização irracional da passagem do cometa Collor. Os custos não são desprezíveis,
mas a grande maioria dos empreendedores de projetos audiovisuais continua
marginalizada na festa dos recursos públicos.
“40% dos projetos autorizados jamais captaram qualquer recurso.
Dos 60% dos projetos que captaram algum recurso, um terço, ou
seja, 20% captaram menos de 60% dos recursos autorizados e,
portanto, não podem nem ao menos desembolsar e fazer uso desses
recursos. Em termos do volume de recursos captados, contudo,
esses projetos respondem por cerca de 21 milhões de reais para um
total de 140 milhões, o que representa cerca de 15% do total”.
248
É flagrante a carência de um modelo de financiamento de projetos audiovisuais baseado
na concessão de crédito. O mesmo montante que hoje representa custo afundado de
financiamento direto poderia compor um ou mais fundos com vistas à diminuição
significativa dos riscos de crédito a projetos dessa natureza. A vantagem do crédito é,
obviamente, a obrigatoriedade de retorno dos recursos ao fundo, o que amortizaria
enormemente o custo público dessas políticas ou permitiria a ampliação de seu alcance.
O histórico de relacionamento dos produtores com o fundo determinaria seus privilégios
de acesso de forma objetiva e o acervo de obras configuraria um ativo dado como
garantia. Enquanto política industrial, os investimentos do estado deveriam se voltar para
a infra-estrutura de distribuição e exibição ampliando os mecanismos que fomentam a
demanda por audiovisual de maneira geral e diminuindo seu custo ao consumidor.
Quanto ao problema de manipulação dos processos pelo tráfico de influência, configura
parte do problema maior da corrupção que não se refere apenas à atividade audiovisual,
mas à coisa pública como um todo. Nesse ponto, reafirmamos que apenas a efetiva
implementação de um Estado Republicano no Brasil, com uma máquina pública
racionalmente projetada para a segurança institucional, poderão minimizar os
248
Idem.
291
incalculáveis prejuízos sociais, culturais e econômicos impostos ao povo Brasileiro pela
perversão sistemática do espaço público por interesses privados.
292
4. Epílogo:
Não gosto de alguns filmes, nem de muitos programas de tevê. Mas tolero porque, na
apreciação da arte, intolerância é analfabetismo e total desencontro com o significado da
arte. Música popular, por exemplo, seja de raiz ou não, tocada por uma filarmônica ou
com sintetizadores bregas, é arte. Mas não faltam janotas eruditos que se arvorem juízes
da arte e queiram cassar a legitimidade imanente à apreciação popular. Dentre esses
os capitalistas cínicos: praticantes do populismo mercadológico, eles oferecem ao
mercado de massa algo que não consideram suficientemente bom para seu próprio
consumo. Como alguém que oferece aos porcos aquilo que não quer comer. Essa moral
cínica é o lado mais sombrio do Mercado. também os marxistas reacionários, que
usam o artifício de trocar o sinal da arte que não lhes agrada denominando-a "produto",
em contraposição a "verdadeira arte". Transformam a obra em um objeto de disputa
política ou em mais um dos infinitos campos de batalha para a luta classes. Trata-se do
grupo mais perverso da crítica social. Ervas daninhas nos jardins da cultura.
Por trás do preconceito artístico do erudito (seja de que orientação política for) contra a
cultura de massas está um preconceito de pior motivação, que é social e econômico.
Questiona-se se o Brasil está bem representado no Cinema e na TV. É uma tendência
da intelectualidade dominante querer que a produção cultural seja um mapa político da
sociedade brasileira. Mas não serve qualquer mapa. Querem um que confirme suas
teses classistas e seus ressentimentos políticos. Essa é uma herança maldita do
cinema-novo e da Rede Globo. Fórmulas dos ricos para representar os pobres. “É gente
humilde que vontade de chorar”, diria Chico Buarque. Eis a condescendência (e por
tanto o desprezo) de uma elite populista em relação a um brasil-maquete de suas
intenções políticas.
293
São duas as reivindicações básicas da intelectualidade de classe alta: primeira, que toda
obra de arte tenha obrigação de representar um avanço para a arte como um todo ou que
todo produto tenha que representar um avanço para o mercado; que toda obra tenha que
ter uma suposta e auto-evidente “originalidade” de vanguarda que confirme sua
“criatividade” ou que o produto ganhe a popularidade” que comprova sua “eficácia”.
Segundo: o exercício autoritário de estabelecer critério objetivo para aprovar ou
desaprovar obras de arte ou produtos de mercado conforme interesses políticos,
transformando suas limitações como expectador em limitações da linguagem como um
todo. Essa inteligência de estufa forma os comitês e comissões que decidem a
pertinência cultural ou mercadológica de tudo e todos e que, invariavelmente, produzem
uma estranha coincidência: seus amigos sempre passam nos testes.
Os artistas da vanguarda socialista abominam o mérito comercial com uma paixão quase
religiosa. Para esses adeptos do virtuosismo cultural, o povo não é capaz de apreciar a
boa arte e, portanto, o gosto popular é irrelevante nos seus planos oligárquicos de
construção de uma cultura de cinemateca. Em última análise, o audiovisual não
precisaria do expectador e a arte produzida de maneira hermética seria um valor em si
mesma, passível de investimento público a fundo perdido sobre uma base de valoração
calcada nas suas teorias insondáveis sobre a qualidade da arte.
Os executivos da retaguarda capitalista desqualificam o mérito cultural com uma razão
quase científica. Para esses adeptos do vício demagógico, o povo é capaz de apreciar o
mau produto e, portanto, o gosto popular pode ser feito joguete nos seus planos
oligárquicos de construção de um mercado de quinquilharias. Em última análise, o
audiovisual não precisaria do autor e a arte reproduzida de maneira banalizada, não
passaria de uma reserva de valor, passível de exploração privada sem limites sobre uma
base de valoração calcada nas suas teorias vulgares sobre a eficiência da economia.
294
Penso, ao contrário, que esses artistas e tecnocratas da alta-burguesia, entrincheirados
no mercado e na cultura, querem transpor as águas do rio vizinho às suas terras sem
irrigação. A perversidade do capital transforma toda experiência em consumo e
esvaziando-a de sentido. A da economia política transforma experiência em conflito, com
o mesmo resultado. Capitalizado, o sentido não passa de informação. Politizado, não
foge da deformação. O capital pensa que os seres humanos querem sobreviver. O
comunal quer que os seres humanos só pensem em servir.
Queremos mais. Queremos o sentido mesmo que isso signifique a morte e a rebelião.
lugares do Humano que nem o mercado, nem a cultura enxergam, alcançam ou
controlam. algo que transcende a distinção entre mercado e cultura; direita e
esquerda; público e privado; socialismo e capitalismo; diferença e repetição.
Agora concordando com Chico Buarque: é o que anda nas cabeças, anda nas bocas, que
gritam nos mercados e que, com certeza, está na natureza. É algo que não tem certeza
nem nunca terá, que não tem conserto nem nunca terá, e que não tem tamanho. É o que
vive nas idéias dos amantes, que cantam os poetas delirantes, que juram os profetas
embriagados, está na romaria dos mutilados, na fantasia dos infelizes e no dia-a-dia das
meretrizes. Está no plano dos bandidos, em todos os sentidos. É o que não tem
decência nem nunca terá. O que não tem censura nem nunca terá. O que não faz
sentido. Nem todos os avisos vão evitar, porque todos os risos vão desafiar e todos os
destinos irão se encontrar. É o que não tem governo nem nunca terá. O que não tem
vergonha nem nunca terá. É o que não tem juízo.
É precisamente aquilo que não podemos falar.
Mas poderemos.
295
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