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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Flash mob:
uma experiência dos meios de comunicação
como suporte para novas práticas subjetivas e sociais
Mônica Schieck Chaves Lopes
Rio de Janeiro
2006
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Flash mob: uma experiência dos meios de comunicação como suporte para novas práticas
subjetivas e sociais.
Mônica Schieck Chaves Lopes
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Comunicação e Cultura, da
Escola de Comunicação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do tulo de Mestre em
Comunicação Social.
Orientadora: Professora Doutora Ieda Tucherman
Linha de Pesquisa: Tecnologias da comunicação e
estéticas.
Rio de Janeiro, março de 2006.
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Lopes, Mônica Schieck Chaves.
Flash mob: uma experiência dos meios de comunicação
como suporte para novas práticas subjetivas e sociais. Rio
de Janeiro, UFRJ/ECO, 2006.
172f.
Orientadora: Ieda Tucherman
Dissertação (mestrado). UFRJ/ECO/ Programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Cultura, 2006.
Referência Bibliográfica: f.157-162.
1. Comunicação. 2. Novas tecnologias. 3. Espaço urbano.
4. flash mob. I. Tucherman, Ieda. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-
graduação em Comunicação e Cultura. III. Título.
4
Flash mob: uma experiência dos meios de comunicação como suporte para novas práticas
subjetivas e sociais.
Mônica Schieck Chaves Lopes
Orientadora: Professora Doutora Ieda Tucherman
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Comunicação e
Sistemas de Pensamento, Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do titulo de Mestre em
Comunicação.
Aprovada por:
__________________________________________
Professora Doutora Ieda Tucherman (orientadora)
Escola de Comunicação da UFRJ
__________________________________________
Professora Doutora Ivana Bentes
Escola de Comunicação da UFRJ
_________________________________________
Professor Doutor Erick Felinto
Faculdade de Comunicação Social da Uerj
Rio de Janeiro
Março 2006.
5
A Reinaldo Paes Leitão, meu amigo querido,
por ter acreditado ser possível num momento
que eu acreditava impossível.
6
Agradecimentos
É chegado o momento de agradecer a todos aqueles que, de alguma forma, colaboraram
para a realização de um sonho para lá de adormecido.
Um agradecimento muito especial a minha orientadora Ieda Tucherman, pela
competência, paciência, inteligência, e, principalmente, o carinho e a amizade que pontuaram
toda a trajetória, contribuindo de maneira eficaz para que chegasse até aqui.
Ao corpo docente da Escola de Comunicação da UFRJ, especialmente os professores
André Parente, Katia Maciel, Nízia Villaça e Paulo Vaz, com os quais tive a oportunidade de
compartilhar idéias durante seus cursos. Meu reconhecimento ao professor Henrique Antoun
por tudo, especialmente pela amizade conquistada.
Ao CNPq, por ter viabilizado a realização deste projeto.
Aos professores que compõe a minha banca, Ivana Bentes e Erick Felinto, pela
avaliação do meu trabalho. Não esquecendo os suplentes, Nízia Villaça e Ricardo Freitas.
Ao professor Vinicius Pereira pelo estímulo e pelas infinitas trocas durante o seu curso.
Aos meus amigos de mestrado, Aline Couri, Beatriz Martins, Myriam Pimentel, Rita
Leal e Wilson Oliveira, pessoas muito especiais em todas as etapas. Acredito (e espero) que a
amizade aqui iniciada consiga sobreviver aos nossos compromissos.
À minha mãe Magda e a minha filha Laís, pela compreensão, força, amor e apoio
incondicional. Ingredientes fundamentais que me fizeram acreditar ser possível seguir adiante.
À professora Alessandra Carvalho, que mesmo na virtualidade foi um apoio
fundamental e constante em todas as etapas, principalmente na final.
À Tânia Salomé e Renato Cassimiro, amigos essenciais que se fizeram presentes não
pela amizade como pelas discussões enriquecedoras.
Aos meus amigos orkutianos da comunidade de Ipanema pelos momentos de
desconcentração, pela compreensão e pelo estímulo constante.
E a todos aqueles que não citei, mas que não ficaram esquecidos, meus sinceros
agradecimentos!
7
Resumo
Lopes, Mônica Schieck Chaves. Flash mob: uma experiência dos meios de comunicação
como suporte para novas práticas subjetivas e sociais.
Orientadora: Ieda Tucherman. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO; 2006.
Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura)
A proposta deste trabalho é analisar o surgimento e a disseminação das flash mobs, um
movimento que ganhou notoriedade por marcar aparições instantâneas no circuito urbano das
metrópoles contemporâneas sem um propósito definido. Trata-se da culminância de um
processo articulado e organizado essencialmente no ambiente on-line. Identificando os meios
de comunicação como peça fundamental no processo de socialização da humanidade,
procuramos descrever como os atuais dispositivos de informação servem de suporte para uma
reformulação no modo como os indivíduos estabelecem relações interpessoais. A questão
abordada segundo o eixo sociedade, tecnologia, subjetividade nos permitiu analisar como o
conceito clássico de comunidade adquiriu novos contornos diante da inauguração do nculo
social proporcionado pelo ambiente on-line. Vistos como espaços sem conexão com o espaço
físico evidenciamos como os habitantes projetaram seu imaginário e experimentaram novas
identidades através de jogos interativos. Hoje, estamos presenciando uma constante conexão
entre o espaço virtual e o físico proporcionado, principalmente, pelas atuais tecnologias de
comunicação que vão permitir a experimentação de novas práticas sociais, tal como as flash
mobs. Sendo assim, pautamos nossa pesquisa em estudos teóricos e empíricos.
Palavras-chave: comunicação, novas tecnologias, espaço urbano, flash mob.
Rio de Janeiro
Março, 2006.
8
Abstract
Lopes, Mônica Schieck Chaves. Flash mob: uma experiência dos meios de comunicação
como suporte para novas práticas subjetivas e sociais.
Orientadora: Ieda Tucherman. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO; 2006.
Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura)
This work proposal is to analyze the up rise and dissemination of the flash mobs, a
movement that gained notoriety by making instant appearances into the modern metropolis
urban circuits with no defined purpose. This is the culmination of an essentially on-line
articulated and organized process. By identifying the communication system as a fundamental
part in the process of socialization, we try to describe how the current information devices act
as support to a reformulation in the way people establish interpersonal relationships.
Approaching the question in accordance to the society-technology-subjectivity axle, enabled
us to analyze how the classic community concept has acquired new contours before the
inauguration of the social bound presented by the on-line environment. Seen as spaces with
no connection to the physical space, we demonstrate how the inhabitants had projected their
imaginary, experiencing new identities through interactive games. Today we are witnessing a
constant connection between the virtual and the physical space, mainly furnished by modern
communication technologies that will enable the experimentation of new social practices, like
the flash mobs. Therefore, we have based our research both on theoretical and empirical
studies.
Palavras-chave: communication, new technologies, urban space, flash mob.
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Lista de ilustrações
Figura I: Flash mob # 2.
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000068.html>
Acesso: 10 nov. 2005.
Figura II: Flash mob # 2.
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000068.html>
Acesso: 10 nov. 2005.
Figura III: Flash mob # 2.
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000068.html>
Acesso: 10 nov. 2005.
Figura IV: Flash mob # 2.
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000068.html>
Acesso: 10 nov. 2005.
Figura V: Flash mob # 6.
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000068.html>
Acesso: 10 nov. 2005.
Figura VI: Flash mob # 6.
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000068.html>
Acesso: 10 nov. 2005.
Figura VII: Flash mob # 8.
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000068.html>
Acesso: 10 nov. 2005.
Figura VIII: Flash mob # 8.
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000068.html>
Acesso: 10 nov. 2005.
Figura IX: Bill – o idealizador das flash mobs em Nova York
Disponível em: < http://www.cheesebikini.com/cam/archives/cat_marin.html>
Acesso: 02 jan. 2005.
Figura X: Global Flash Mob # 2.
Disponível em: < http://www.sydmob.com/>
Acesso: 10 dez. 2005.
10
Sumário
Introdução ...................................................................................................................... 11
Capítulo I - Tecnologias de Comunicação e a Atualidade
1.1. A Revolução Industrial e a informação................................................................. 19
1.2. O surgimento da imprensa..................................................................................... 22
1.3. A Escola de Chicago.............................................................................................. 24
1.4. A imprensa e a formação da opinião pública........................................................ 27
1.5. A sociedade do espetáculo..................................................................................... 30
1.6. A mensagem televisiva........................................................................................... 31
1.7. Os computadores pessoais..................................................................................... 35
1.8. A chegada da Internet............................................................................................ 36
1.9. A ideologia da rede................................................................................................ 39
Capítulo II - Comunidades e comunidades virtuais
2.1. A comunidade clássica........................................................................................... 42
2.2. As comunidades virtuais......................................................................................... 49
2.3. Do espaço virtual ao espaço físico......................................................................... 55
2.4. Comunidades virtuais e o orkut.............................................................................. 58
Capítulo III - Novas subjetividades e novas sociabilidades
3.1. O eu descentrado – identidades na era da internet............................................... 62
3.2. O descentramento do sujeito ................................................................................. 63
3.3. Subjetividade: da interiorização a exposição........................................................ 69
3.4. A identidade na sociedade em rede........................................................................ 74
3.5. Múltiplas identidades na rede................................................................................ 79
Capítulo IV - Novas Geografias
4.1. O espaço urbano nas cidades modernas................................................................ 93
4.2. Modernidade e experiência subjetiva nas cidades................................................. 94
4.3. A espacialidade contemporânea.......................................................................... 107
4.4. Cibercidades........................................................................................................ 116
4.5. Cidade-ciborgue.................................................................................................. 119
4.6. Flash Mob............................................................................................................ 130
Considerações finais .................................................................................................... 150
Referências bibliográficas............................................................................................. 157
Anexo A ....................................................................................................................... 163
Anexo B ....................................................................................................................... 165
Anexo C ....................................................................................................................... 167
Anexo D ....................................................................................................................... 171
11
Introdução
“Acima de tudo, não há nenhum comprometimento do futuro,
nenhuma incursão em obrigações de longo prazo,
nenhuma admissão de alguma coisa que aconteça hoje
para se ligar ao amanhã “
Zygmunt Baumam
Esta dissertação tem por finalidade investigar as flash mobs, manifestações-relâmpago
que invadiram as principais capitais do mundo a partir de junho de 2003. Organizados por e-
mail, jovens marcavam aparições instantâneas num determinado local, executavam uma
encenação lúdica e sumiam na multidão com o propósito de não ter propósito.
O idealizador anônimo das flash mobs, conhecido apenas pelo nome Bill, relata que a
idéia principal era distribuir os convites por e-mail e entregar, em mãos, tiras de papéis com o
script a ser executado quando todos chegassem ao lugar previamente escolhido. “Nós nunca
usamos o telefone celular.”
1
No Brasil, a primeira flash mob aconteceu no dia 13 de agosto de 2003 na cidade de São
Paulo. Organizada por um grupo denominado Arac Arte Contemporânea, cerca de cem
pessoas tiraram seus sapatos e começaram a batê-los no chão em pleno cruzamento da
Avenida Paulista com a Rua Augusta. A diferença entre o grupo brasileiro e os que
aconteceram em Nova York, foi no final, quando todos deveriam ter dispersado o grupo
continuou no local conversando com a imprensa. O tempo médio de duração de uma flash
mob é de dez minutos onde no final do script pode-se encontrar a recomendação para não
permanecer no local passado o tempo estipulado. O artista plástico Eli-Goland, tido como o
principal articulador da manifestação, justificou: “É, as pessoas deviam ter dispersado, mas
tem muita mídia aqui, sabe como é, chama atenção, o pessoal gosta de aparecer.”
2
1
Disponível em <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 abr. 2004.
2
Disponível em <http://ultimosegundo.ig.com.br/paginas/cadernoi/materias/157001-157500/157374/157374_1.html>
Acesso: 20 out. 2003.
12
O estudante Leandro Meireles Pinto justificou sua presença: “O que fascina nesse tipo
de coisa é o inusitado, participar de algum movimento sem conotação política ou social
que é organizado com o simples objetivo de causar alguma surpresa em algum ponto da
cidade.”
3
No Japão, um grupo simulou uma das cenas do filme Matrix Reloaded. Em Roma, os
participantes ocuparam uma livraria e ficaram fazendo perguntas aos balconistas sobre um
livro inexistente. Em Londres, um grupo entrou numa loja de tapetes e com telefones
celulares em punho elogiavam as tapeçarias expostas no local. Em Berlim, as pessoas foram
convocadas para comer uma banana em uma loja de departamentos.
Sob o slogan “O vermelho é a cor do próximo verão”, a primeira flash mob carioca
reuniu cerca de trinta pessoas vestidas de vermelho em plena Avenida Rio Branco, às 13h,
cinco dias depois 18 de agosto de 2003 – da primeira manifestação realizada em São Paulo.
O organizador justifica o motivo da cor vermelha: “A idéia é fazer uma intervenção urbana. E
o vermelho é a cor da coca-cola, a cor do PT, a cor do comunismo, a cor do próximo verão.”
4
Começava assim um fenômeno que ficou conhecido globalmente, e que suscitou nossa
reflexão justamente por apontar a eficácia de uma manifestação essencialmente organizada
pela Internet. Sendo assim, ao longo desta dissertação procuraremos explorar como novas
formas de relacionamento interpessoal podem ser constituídas através do surgimento da
Comunicação Mediada por Computador (CMC) e de como essas práticas vem reescrevendo o
espaço urbano, tal como no caso das flash mobs.
Diante desse cenário atual buscaremos identificar como a sociedade ocidental, a partir
do século XVIII, experimentou uma nova configuração a partir do fluxo proporcionado pelo
advento das máquinas e dos transportes, contribuindo para geração de relações sociais mais
complexas. Com as funções mais definidas e as partes cada vez mais independentes, os meios
3
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/paginas/cadernoi/materias/157001-157500/157374/157374_1.html>.
Acesso: 20 out. 2003.
4
Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/08/261354.shtml>. Acesso: 19 out. 2003.
13
de comunicação tornaram-se um componente fundamental entre o distribuidor e o regulador,
onde a imprensa ganha destaque por possibilitar uma homogeneidade política ocasionada pela
divergência do movimento da informação. O autor Marshall McLuhan (2002) cunha o
conceito aldeia global para identificar essa experiência de reunificação instantânea atribuída
aos meios de comunicação.
Assim, ao longo do primeiro capítulo, estaremos analisando desde a circulação dos
pequenos jornais até o surgimento das mídias atuais, procurando identificar a formação do
conceito de opinião pública, tal como proposto por Gabriel Tarde (1992), e sua relação com a
esfera pública evidenciando a utilização dos meios de comunicação para disseminar sua
influência. Baseado em Jürgen Habermas, Howard Rheingold afirma: “Hoje em dia os jornais,
as publicações periódicas, a rádio e a televisão são os meios de comunicação da esfera
pública” (1996, p. 342). Desdobrando até o surgimento da televisão, nosso foco se volta para
sua influência sobre o comportamento social do indivíduo e sua utilização como um sistema
de comunicão de mão única. Entretanto, o destaque fica a cargo do advento da Internet, por
estarmos assistindo a inauguração de um novo modelo de vínculo social universal, bastando
um clicar de mouse para permitir a navegação por territórios onde é possível vivenciar esses
processos sociais comunicativos. Desse modo, podemos dizer que estamos presenciando a
transferência de um eixo vertical hierarquizado para um horizontal transitório nas mais
variadas relações humanas.
Diante dessas transformações, as modalidades de estar em conjunto e de pertencer a
uma comunidade são afetadas de forma intensa. No segundo capítulo observaremos o modelo
ideal de comunidade, tal como concebido na modernidade, onde a permanência passa a
prevalecer em contraposição ao transitório, a territorialidade e a existência de uma forma
própria de troca de informações valendo-se de veículos específicos, como jornais, murais,
boletins, rádios etc. No segundo momento, apoiaremos nosso trabalho na constituição das
14
comunidades virtuais e em como laços sociais podem ser constituídos nos ambientes on-line,
muitas vezes se concretizando num espaço físico. São essas transformações que pretendemos
examinar ao longo deste trabalho.
No terceiro capítulo propomos a análise da construção identitária desse usuário, que
durante o período moderno foi visto como um sujeito centrado, unificado e ancorado num
mundo estável. Neste sentido estaremos, num primeiro momento, explorando os conceitos de
subjetividade e o descentramento desse sujeito, utilizando o trabalho de Stuart Hall como
sustentação teórica. num segundo momento estaremos apontando os nexos entre
subjetividade, visibilidade e tecnologia, onde Michel Foucault argumenta que a subjetividade
não pode ser pensada em separado dos dispositivos de visibilidade onde a vigilância,
inaugurada na modernidade, ganha novos contornos com as atuais tecnologias
comunicacionais. Diante desse quadro, vamos analisar o reflexo da Internet na constituição da
subjetividade contemporânea e como a participação dos indivíduos constrói e modula uma
identidade a partir da relação com o olhar do outro. Sendo assim, vamos manter o foco sobre a
maneira como o nosso cotidiano vem sendo moldado pela atual revolução tecnológica e as
implicações que essa adesão representa para os processos de socialização na atualidade.
Para efeito desta dissertação, optamos por classificar as identidades em duas categorias:
as que se formam de maneira individual e as que possuem uma índole coletiva. A primeira, de
caráter individual, se expressa de uma forma mais voltada para si e para exposição do eu,
tornando-se mais complexas por se apresentarem, muitas vezes, com caracterizações fictícias
ou múltiplas, como nos caso dos Multi-User Dungeons (MUD’s). A segunda, de caráter
coletiva, normalmente se agrupa em torno de comunidades virtuais onde o(s) interesse(s)
comum(ns) são privilegiados gerando um sentimento de grupo. Destacamos, entretanto, que
tanto os MUD’s como os blogs, fotoblogs e o Orkut também podem constituir comunidades
virtuais, mas a principal distinção fica por conta da forma como os indivíduos se apresentam.
15
Entretanto, cabe destacar que nossa análise sobre a identidade na era da Internet está
centrada no livro a Vida no ecrã, de autoria da pesquisadora do Massachusetts Institute of
Technology (MIT), Sherry Turkle, por entendermos que o ciberespaço proporciona a vivência
de experiências individuais em mundos imaginados através da tela do computador e,
principalmente, por ser um importante referencial para os estudos da relação homem/máquina.
Conforme revela a autora, usamos a vida nos ecrãs do computador para nos habituarmos às
novas maneiras de pensar acerca da evolução, das relações entre as pessoas, da sexualidade,
da política e da identidade.
Na cultura da simulação o conceito de construção da identidade ganha destaque por
estarmos diante de um contexto cultural mais vasto, onde um desgaste progressivo e lento das
fronteiras entre o real e o virtual, o eu unitário e o eu múltiplo, ocorre tanto no âmbito da
investigação científica como nos padrões da vida quotidiana. Desde cientistas que pesquisam
novas formas de vida artificial até crianças transformando-se numa série de personagens
virtuais, iremos nos deparar com numerosas e fundamentais evidências de alteração na
maneira como criamos e vivemos a identidade. Esse novo mapa nos permitiu observar como o
advento da Internet possibilitou aos indivíduos a experimentação de uma nova dinâmica de
interação diante de múltiplos ambientes constituídos on-line, inclusive, algumas vezes, sendo
visto, como ambientes sem conexão com o espaço físico ou mesmo como um lugar ideal de
sociabilidade que culminaria no fim dos espaços físicos.
Assim, no quarto capítulo examinaremos outra mudança que ocorre no início do século
XXI com a emergência das novas formas de comunicação sem fio onde podemos perceber
uma constante conexão entre o espaço virtual e o real, proporcionado, essencialmente, pelas
novas dinâmicas de acesso e uso da rede nas metrópoles contemporâneas.
16
Entretanto, antes de investigarmos a atual geografia do espaço urbano retornaremos à
modernidade com o objetivo de analisar como os fenômenos da industrialização, do fluxo de
bens, de pessoas e de capital transformaram as cidades no seu principal palco.
Utilizando um cunho descritivo sobre o impacto das desordenadas metrópoles modernas
do século XX e a experiência subjetiva, nos apoiamos no autor Ben Singer a fim de
evidenciarmos a idéia de que a modernidade, também, deve ser pensada como um registro da
experiência subjetiva por ter sido caracterizada pelos choques físicos e perceptivos do
ambiente urbano moderno. Essa argumentação é um desdobramento da concepção
socioeconômica da modernidade por enfatizar a maneira pelas quais essas mudanças
alteraram a estrutura da experiência individual.
Em seguida, caminharemos em direção a análise sobre as novas práticas espaciais e os
fluxos subjetivos que atravessam o atual cenário das metrópoles contemporâneas. Diante de
tal paisagem, identificamos a célebre frase de Zygmunt Bauman “Hoje em dia estamos
todos em movimento” (1999, p. 85) a fim de pontuarmos o deslocamento das relões entre
o tempo e o espaço como a causa da inquietude presente. Para uma análise da forma social em
operação nos dias atuais, consultaremos um texto de Michel Foucault, “Outros espaços”, onde
enfatizamos o termo heterotopia para apontar “os lugares como tendo a curiosa propriedade
de estar em relação com todos os outros, mas sob um modo tal que eles suspendem,
neutralizam ou invertem o conjunto das relações que se encontram, para eles, previamente
designadas” (FOUCAULT, 2001, p. 414). Trata-se de uma interessante análise por
entendermos que o conceito de heterotopia pode contribuir para a compreensão do lugar onde
ocorrem as flash mobs. O espaço deixa de ser visto como uma mera coleção de coordenadas e
se transforma num local de confluência e convergência para tramas sociais diversas.
Nestas transformações, a lógica do espaço urbano passa a ser constituída pelo fluxo de
transmissão de informações e imagens, favorecendo a dissolução dos principais eixos de
17
referência que pontuavam a experiência da cidade, não em termos simbólicos e históricos
(com o declínio da centralidade), como também em termos geométricos (com a
desvalorização da antiga divisão das dimensões físicas). Então, passamos a pensar a
contemporaneidade como um conjunto de alterações que produzem uma forma de experiência
cultural qualitativamente distinta daquela que ilustrou os diferentes desdobramentos da
modernidade.
Em continuidade, vamos fundamentar no trabalho de André Lemos nossa análise sobre
o espaço urbano contemporâneo aliado as novas tecnologias da informação. Examinaremos a
cidade da cibercultura, ou cibercidades, como uma tentativa de conceituar o impacto das
novas redes telemáticas nos centros urbanos. É o que Lemos observa quando nos diz que as
redes estão alterando nossa vivência diante do espaço urbano através do teletrabalho, da
educação à distância, das comunidades virtuais, dos fóruns temáticos ao redor do mundo,
alegando que se encontra em jogo uma nova redefinição dos espaços públicos e privados.
“Trata-se de viver em uma nova cidade, em um novo espaço urbano, espos globais regidos
pelo tempo real, imediato do mundo globalizado” (LEMOS, 2004, p. 20).
Para termos uma idéia mais clara do amplo impacto das novas tecnologias,
continuaremos com o trabalho proposto por Lemos a fim de assinalarmos as transfigurações
das cidades contemporâneas proporcionadas pelas atuais tecnologias de comunicação e
informação, que colocam a nossa disposição uma nova rede técnica: o ciberespaço e uma
nova rede social (as várias formas de sociabilidade on-line), configurando as cibercidades
contemporâneas.
Voltando nossa pesquisa para o espaço urbano, hoje, retomamos uma questão principal:
a relação do sujeito com a produção comunicativa contemporânea. Para tanto, Lemos cunha o
termo cidade-ciborgue a fim de ressaltar as novas infra-estruturas digitais em sua interface
com o espaço urbano onde devemos compreendê-la como um híbrido, composto de redes
18
sociais, infra-estrutura e redes telemáticas, constituindo um organismo complexo, cuja
dinâmica está atrelada às novas tecnologias da cibercultura, próximo da metáfora do ciborgue.
A cidade sempre foi um artifício e hoje essa artificialidade está presa na intensidade do
digital. Veremos que, na prática cotidiana, o espaço de fluxos na cidade-ciborgue não se opõe
ao espaço de lugar, pelo contrário, ele reforça a relação entre os dois espaços. Os espaços de
lugar nas cidades, como as ruas, os monumentos e as praças passam a ser interfaceados pelo
espaço de fluxos através dos diversos dispositivos de conexão aliados às informações digitais.
Assim, examinaremos como os usuários atualmente utilizam a rede para agir sobre o
local focando nosso estudo no fenômeno das flash mobs como um exemplo dessa intensa
relação entre os espaços de fluxo e o de lugar. Assistimos assim, na época da cibercultura, o
experimento de novas formas de interação que, particularmente no episódio das flash mobs, se
apropriam de iniciativas artísticas com a finalidade de ocupar um espaço físico urbano. Ao
longo desse estudo descreveremos o surgimento e a disseminação das flash mobs, e a
conseqüente interação entre o espaço urbano, as tecnologias de comunicação e a sociedade, na
intenção de situar e analisar o fenômeno identificando suas particularidades.
Cabe-nos destacar que, por se tratar de um movimento recente e pela conseqüente
ausência de suportes referenciais analíticos tradicionais, utilizaremos recursos documentais
disponíveis em sites da Internet ocasionando um desvio nos padrões contemplados pela
academia. Por outro lado, entendemos que esta pesquisa atesta o momento atual por tornar
possível a busca de informações na rede sobre os mais variados assuntos. Como veremos, são
vários os artigos e publicações consultados no ambiente on-line a fim de elucidarmos as
questões propostas nesta dissertação.
19
1.1. A Revolução Industrial e a informação
“O pensamento da sociedade como organismo,
como conjunto de órgãos desincumbindo-se de
funções determinadas, inspira as primeiras
concepções de uma ‘ciência da comunicação’.”
Armand e Michèle Mattelart
As novas tecnologias de comunicação, destacando a Internet e atualmente os telefones
celulares, vêm reconfigurando a forma como os indivíduos interagem socialmente. Se no
século passado os meios de comunicação eram tidos como máquinas a serem utilizadas como
instrumento de dominação e consideradas um meio alienante das massas (TUCHERMAN,
2003, p. 60), na contemporaneidade estamos assistindo como novas formas de relacionamento
interpessoal podem ser constituídos com o surgimento da Comunicação Mediada por
Computador (CMC).
Diante deste cenário atual cabe-nos traçar a genealogia do que se entende pela palavra
comunicação através do esquadrinhamento de sua teoria. A fim de traçarmos seu perfil
retornamos ao século XVIII, mais precisamente, ao período da Revolução Industrial, onde o
salto tecnológico proporcionado pelo o advento das máquinas e dos transportes revolucionou
a forma de produção e, como conseqüência, trouxe para sociedade ocidental uma nova
configuração para o agrupamento social e urbano.
Se anteriormente o sistema de produção era artesanal, com o surgimento das máquinas a
vapor ficou mais fácil e rápido transportar não mercadorias como também a possibilidade
dos indivíduos se deslocarem num menor espaço de tempo a custos mais baixos, gerando,
assim, a chamada economia de fluxos. “A Revolução de 1789 libera esses fluxos a tomar uma
série de medidas, como a adoção do sistema métrico, destinadas a acelerar a unificação do
território nacional” (MATTELART, 2004, p. 15).
20
A expansão marítima aliada à Revolução passou a exigir uma padronização das medidas
estimulando os cientistas da Academia Francesa de Ciências a criarem um sistema novo
distinto dos costumes da população o sistema métrico decimal –, visando a aceleração da
unificação territorial. Em 1793, Claude Chappe inaugura o primeiro sistema de comunicação
à distância, o telegrafo óptico para fins militares.
O movimento atrelado à velocidade acaba por constituir uma organização trabalhista
que vai desencadear na idéia de organismo social, nesse primeiro momento ligado à noção das
ciências biológicas. Ao conceber a sociedade como um corpo humano, parte-se do princípio
que existe um órgão regulador e várias artérias que o alimentam.
A sociedade é concebida como sistema orgânico, justaposição ou tecer de redes, mas
também como “sistema industrial”, gerado por e como indústria. Em estreita filiação
ao pensamento dos engenheiros e obras públicas de então, ele concede um lugar
estratégico à administração do sistema das vias de comunicação e ao
estabelecimento de um sistema de crédito. Do mesmo modo que a imagem do
sangue em relação ao coração humano, a circulação do dinheiro à sociedade-
indústria uma vida unitária (MATTELART, 2004, p.16).
Retomando a descoberta precursora de William Harvey, onde “o coração bombeia
sangue através das artérias do corpo, recebendo-o das veias, para ser bombeado” (SENNETT,
2003, p. 215), a cidade moderna passa a ser entendida como uma sociedade-organismo, onde
tudo está integrado, interligado com funções cada vez mais definidas. Nesse sentido, Harvey
deu o ponto de partida para um novo entendimento da estrutura corporal, principalmente no
que diz respeito à separação corpo/alma.
5
A descoberta revolucionária de Harvey vai coincidir com o nascimento do capitalismo
moderno, onde os novos ideais capitalistas vão contribuir para locomoção individual na
sociedade. “O homem moderno é, acima de tudo, um ser humano móvel” (SENNETT, 2003,
p. 213).
5
“Até o século XVII, os médicos cristãos travavam debates sobre a localização da alma, se o contato entre ela e o corpo seria
via cérebro ou coração, ou se o cérebro e o coração eram ‘órgãos duplos’, contendo ambos matéria corpórea e essência
espiritual. (...) Alguns dos seus adversários, como Descartes, acreditava que o corpo funcionava como o Divino atuando por
uma espécie de mecanismo celestial. Deus é o princípio da máquina. Baseado na ciência, Harvey disse não. Do seu ponto de
vista, embora o animal humano possuísse uma alma imaterial, a presença de Deus no mundo não explica de que modo o
coração faz o sangue circular” (SENNETT, 2003, p. 216).
21
O economista e autor do clássico A riqueza das nações, Adam Smith, citado por Sennett
como primeiro a reconhecer as descobertas de Harvey, imaginou um mercado livre, de
trabalho e mercadorias, operando de modo parecido à circulação do sangue e capaz de
produzir idênticas conseqüências.
Observando o frenético comportamento dos negociantes do seu tempo, ele
identificou um esquema. A circulação de bens e dinheiro era mais lucrativa que a
propriedade fixa e estável, que significa apenas um prelúdio para a troca, pelo menos
no que diz respeito aos que conseguiam aumentar o seu quinhão (SENNETT, 2003,
p. 214).
Os autores Armand e Michèle Matellart, destacando a principal obra do naturalista
britânico Charles DarwinA origem das espécies nos apontam que, na sociedade orgânica,
a hipótese da continuidade entre a ordem biológica e a ordem social caminha lado a lado com
as divisões fisiológicas do trabalho e do progresso. Assim a sociedade industrial encarna a
sociedade orgânica.
Uma sociedade-organismo cada vez mais coerente e integrada, onde as funções são
cada vez mais definidas, e as partes cada vez mais interdependentes. Nesse sistema
total, a comunicação é componente básico dos “dois aparelhos orgânicos”, o
distribuidor e o regulador. À imagem do sistema vascular, o primeiro (estradas,
canais e ferrovias) assegura o encaminhamento da substância nutritiva. O segundo
assegura o equivalente da função do sistema nervoso. Torna possível a gestão das
relações complexas entre um centro dominante e sua periferia (MATTELART,
2004, p.17).
A informação surge como a principal gestora dessas relações complexas e passa a ser
distribuída através de um centro regulador que se apropria dos meios de comunicação,
passando a funcionar como um distribuidor de normas para a periferia. Diante das
divergências ocasionadas pelo movimento das informações, a unidade política pela
homogeneidade se torna possível, pela primeira vez, com a imprensa.
Para Marshall McLuhan, qualquer novo meio de informação altera qualquer estrutura.
Onde grande discrepância nas velocidades do movimento como entre as
viagens aéreas e terrestres ou entre o telefone e a máquina de escrever sérios
conflitos podem ocorrer. A metrópole moderna se tornou um caso típico dessa
discrepância. Se a homogeneidade das velocidades fosse total, não haveria rebeliões
nem rupturas. A unidade política pela homogeneidade se tornou possível pela
primeira vez com a imprensa (MCLUHAN, 2002, p.110).
22
A idéia de um mundo unido como um todo orgânico nos remete a teoria de “aldeia
global”
6
cunhada pelo autor. Segundo McLuhan, a civilização, naquele momento, estava
vivenciando uma experiência de reunificação instantânea proporcionada pela aceleração dos
meios de transportes e pela velocidade atribuída aos meios de comunicação.
1.2. O surgimento da imprensa
Anterior ao surgimento da imprensa, o livro, considerado marco de passagem da
tradição oral para a escrita, caracteriza-se por levar a informação ao homem alcançando um
maior número de pessoas a longa distância.
Contrária a tradição oral, onde a história se perpetuava através da apropriação do
discurso reproduzido por nossos ancestrais, a leitura de um livro proporciona ao indivíduo a
possibilidade de se fechar em si próprio passando a pertencer, hierarquicamente, a categoria
mais elevada dos letrados.
O alfabeto fonético, sozinho, é uma tecnologia que dispõe dos meios de criar o
“homem civilizado”, indivíduos separados que são iguais perante a escrita. A
separação do indivíduo, a continuidade do espaço e do tempo e a uniformidade dos
códigos são as primeiras marcas das sociedades letradas e civilizadas (MCLUHAN,
2002, p. 103).
A entrada da imprensa na rotina do indivíduo moderno vai contribuir para um
movimento inverso; a informação, nesse caso por ser menos dispendiosa, vai colocar a cultura
à disposição de um maior número de leitores, ou seja, deixa de ser um privilégio das elites
passando a ser disseminada para um público mais geral, constituindo o que Gabriel Tarde
conceitua como opinião pública.
A idade moderna, desde a invenção da imprensa, fez surgir uma espécie de público
bem diferente, que não cessa de crescer e cuja expansão indefinida é um dos traços
mais marcantes de nossa época. Fez-se a psicologia das multidões; resta fazer a
psicologia do público, entendido nesse segundo sentido, isto é, como uma
coletividade puramente espiritual, como a disseminação de indivíduos fisicamente
separados e cuja coesão é inteiramente mental (TARDE, 1992, p. 29).
6
“(...) nossa civilização está experimentando uma reunificação instantânea de todas as suas partes mecanizadas num todo
orgânico. Este é o mundo da aldeia global”. (MCLUHAN, 2002, p. 112)
23
O prestígio da imprensa, segundo o autor, está na força de aproximar interesses comuns
e na possibilidade da formação de novos agregados sociais. A leitura de assuntos relacionados
ao poder judiciário ou a indústria atrai menos atenção que a leitura cujo foco principal seja os
ideais teóricos: “os partidos, religiosos ou políticos, são os grupos sociais sobre os quais o
jornal tem mais influência e que põe em maior destaque” (TARDE, 1992, p. 47).
Para o autor, a imprensa também é tida como fator determinante para formação de uma
opinião pública. A leitura do mesmo jornal gera um vínculo social de afinidades e de
pensamento onde o “verbo alado do jornal” é capaz de vencer, sem dificuldade, fronteiras
anteriormente nunca ultrapassadas pela voz do orador e líder de um partido.
Apesar das divergências e da multiplicidade dos públicos que coexistem e se
misturam numa sociedade, tais públicos parecem formar juntos um único e mesmo
público, por seu acordo parcial em alguns pontos importantes, e é isso o que
chamamos de opinião, cuja preponderância política não cessa de crescer (TARDE,
1992, pp. 48-49).
Assim vimos surgir um grupo social que se transforma como todos os outros em leitores
apaixonados, obstinados pela leitura dos impressos noticiosos. Em função da leitura desses
textos a participação do público nas reuniões públicas tende a diminuir ou se manter. As
grandes conversações de massa são os jornalistas que promovem. “A maioria dos que antes
estariam apaixonadamente curiosos por ouvir um discurso pondera hoje: Eu o lerei em meu
jornal” (TARDE, 1992, p. 50). É assim que, na concepção do autor, pouco a pouco, os
públicos aumentam.
Destacamos aqui que o século XVIII e XIX foi determinante na forma como o homem
se relacionava na sociedade ocidental. Novas experiências surgem a partir da invenção de três
aparatos tecnológicos considerados fundamentais até os dias de hoje: a prensa de tipos
móveis, descoberta pelo alemão Johann Gutemberg, possibilitando a disseminação da
informação através da impressão de livros; as máquinas e os meios de transporte que
trouxeram velocidade para produção de mercadorias e movimento para as pessoas; e,
finalmente, a imprensa, onde a informação distribuída de forma menos dispendiosa através
24
dos jornais servia como ordenadora e formadora de opinião. Adiante veremos isso mais
detalhadamente.
1.3. A Escola de Chicago
No início do século XX a Escola de Chicago inaugura um pensamento inédito ao
apresentar o espaço urbano como objeto privilegiado de investigação. Tratando a cidade como
um aspecto isolado, a Escola cria o conceito de Sociologia Urbana. A cidade sob o efeito da
industrialização, de mudanças na ordem econômica, das alterações demográficas e espaciais,
torna visível a formão de novos fenômenos sociais. Entendida como lugar de mobilidade, a
cidade passa a ser estudada como um “laboratório social” pelos membros da Escola onde
destacamos o jornalista Robert Ezra Park e seu colega E.W. Burgess.
A cidade como “laboratório social”, com seus signos de desorganização, de
marginalidade, de aculturação de assimilação; a cidade como lugar da “mobilidade”:
tal é o terreno de observação privilegiado pela Escola de Chicago. Entre 1915 e
1935, as contribuições mais importantes de seus pesquisadores são consagradas à
questão da imigração e da integração dos imigrantes na sociedade americana
(MATTELART, 2004, p. 30).
Park e Burgess, guiados pelo pensamento do biólogo alemão Ernest Haeckel, utilizam a
definição do termo ecologia, identificado aqui como a inter-relação entre o organismo e seu
meio físico, para entender a relação do imigrante com a sociedade americana nos bairros
periféricos. Os pesquisadores, através da utilização de uma pesquisa empírica, tentam
entender como publicações em outra língua podem ser assimiladas por essa comunidade
étnica. Aplicando conceitos ecológicos e humanos, os dois montam um esquema teórico que
define as comunidades humanas como uma população que se organiza dentro de um território.
É a luta pelo espaço que rege as relações interindividuais. Essa competição é o
princípio de organização. Nas sociedades humanas, competição e divisão do
trabalho resultam em formas não-planificadas de cooperação competitiva, que
constituem as relações simbióticas, ou o nível “biótico” da organização humana
(MATTELART, 2004, p. 31-32).
25
Destacamos que a modernidade implicou um mundo especificamente urbano,
marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador. Como veremos mais
adiante, a metrópole sujeitou o indivíduo a um “bombardeio de impressões, choques e
sobressaltos, acabando por transformar a vida diária mais frenética” (SINGER, 2004, p. 96).
A modernidade urbana foi concebida pelo sociólogo alemão Georg Simmel como um
bombardeio de estímulos, onde a intensificação da estimulação nervosa alterou os
fundamentos fisiológicos e psicológicos da experiência subjetiva.
A adaptação do indivíduo nesse novo contexto social foi analisada por Simmel em seu
ensaio de 1902 “A metrópole e a vida mental”. Nela, o autor investiga a transformação do
sujeito primitivo, considerado, até então, como possuidor de uma natureza “originalmente boa
e comum a todos” em um indivíduo solitário, onde a exigência de uma “consciência elevada”
(entendida aqui como intelectualidade) é exigida a fim de que sua subjetividade seja
preservada.
Por outro lado, a metrópole, vai conferir ao indivíduo “uma qualidade e quantidade de
liberdade pessoal que não tem qualquer analogia sob outras condições” (SIMMEL, 1967, p.
18). A liberdade de deslocamento possibilita ao homem a qualidade de mover-se dentro de
círculos muito singulares. Nesse caso, o fenômeno social que chama atenção de Simmel é a
ampliação dos círculos em que cada indivíduo passa a se inserir.
O indivíduo ganha liberdade de movimento, muito para além da primeira
delimitação ciumenta. O indivíduo também adquire uma individualidade específica
para a qual a divisão de trabalho no grupo aumentado dá tanto ocasião quanto
necessidade. O Estado e o cristianismo, corporações e partidos políticos e inúmeros
outros grupos se desenvolveram de acordo com essa fórmula, por mais que,
naturalmente, as condições e forças especiais dos respectivos grupos tenham
modificado o esquema geral (SIMMEL, 1967, p. 19).
Diante das novas situações que o homem passa a experimentar na metrópole, torna-se
ímpar que ele preserve sua particularidade a fim de provar que “nosso modo de vida não foi
imposto por outros” (SIMMEL, 1967, p. 21). Essa hipótese levantada por Simmel vai de
encontro ao pensamento de outro membro da Escola de Chicago, o pedagogo John Dewey,
26
citado por Mattelart, onde ele nos aponta que
o indivíduo é capaz de uma experiência singular, única, que traduz sua história de
vida, sendo ao mesmo tempo submetido às forças de nivelamento e homogeneização
do comportamento. Essa ambivalência da personalidade urbana volta a aparecer na
concepção de mídia da Escola de Chicago, simultaneamente fator de emancipação,
de aprofundamento da experiência individual e precipitador da superficialidade das
relações social e dos contatos sociais, da desintegração (MATTELART, 2004, p.
36).
Simmel, ao final de seu ensaio, descreve que no século XVIII o indivíduo se encontrava
atrelado a vínculos históricos e o século XIX, através da divisão econômica do trabalho,
garante ao indivíduo o sentimento de liberdade desses vínculos, passando a adquirir o desejo
de distinguir-se uns dos outros. A escala dos valores humanos passa a ser constituída pela
unicidade e pela característica insubstituível do homem, sendo na metrópole que esse
indivíduo vai desenvolver sua existência psíquica.
A metrópole se revela como uma daquelas grandes formações históricas em que
correntes opostas que encerram a vida se desdobram, bem como se juntam às outras
de igual direito. Entretanto, neste processo, as correntes da vida, quer seus
fenômenos individuais nos toquem de forma simpática, quer de forma antipática,
transcendem inteiramente a esfera para a qual é adequada a atitude de juiz. Uma vez
que tais forças da vida se estenderam para o interior das raízes e para o cume do todo
da vida histórica a que nós, em nossa efêmera existência, como uma célula,
pertencemos como uma parte, não nos cabe acusar ou perdoar, senão compreender
(SIMMEL, 1967, p. 25).
A divisão econômica do trabalho vai dividir a metrópole em grupos sociais de acordo
com sua função. O trabalhador assalariado garantirá seu sustento e sua moradia num território
onde seja possível sobreviver com a quantidade de moedas que possuir. A constituição de
territórios separados para cada grupo social reorganiza, também, o espaço de moradia. O lar
como domínio de vida privada se organiza sob a proteção da intimidade. Isso implica uma
“micropolítica” familiar totalmente nova e ao mesmo tempo significa uma redefinição da
relação espaço privado/público na cidade. A vida social burguesa se retira da rua para se
organizar a parte, em um meio homogêneo de famílias iguais a ela (ROLNIK, 2001, p. 49).
Na visão do filósofo alemão Jürgen Habermas, a cidade não é apenas o centro
econômico vital da sociedade burguesa, mas uma oposição política e cultural à corte, que vai
caracterizar uma primeira esfera pública literária que encontra seu abrigo nos cafés, salões e
27
nas comunidades de comensais.
1.4. A imprensa e a formação da opinião pública
A imprensa encontra na propaganda não uma fonte de arrecadação de recursos, mas
também uma técnica a ser utilizada para promover a adesão das massas em torno de uma
idéia. Sendo o homem médio um ser essencialmente influenciável, mudar suas idéias e
opiniões através da publicidade se torna menos dispendioso do que utilizar outras técnicas
persuasivas utilizadas pelo governo para o mesmo fim.
O filósofo Jürgen Habermas nos aponta que a imprensa foi inicialmente organizada
como uma empresa de caráter artesanal onde sua atividade era limitada à organização da
circulação das notícias. Diante das necessidades econômicas, o jornal, deixa de ser uma
imprensa voltada para informação e passa a ser uma imprensa de opinião, abandonando assim
seu caráter inicial de simples redator de avisos passando a ser qualificado como um jornal
literário. Ao citar o autor alemão K. Bücher, Habermas aponta que os jornais deixam de ser
meras instituições publicadoras de notícias passando a ser porta-vozes e condutores da
opinião pública e um meio de luta da política partidária.
Isso teve, para a organização interna da empresa jornalística, a conseqüência de que,
entre a coleta de informações e a publicação de notícias, se inseriu um novo
membro: a redação. Mas, para o editor de jornal, teve o significado de que ele
passou de vendedor de novas notícias a comerciante com opinião pública
(HABERMAS, 2003, p. 214).
Ao falarmos de opinião pública torna-se ímpar estabelecer sua relação com a esfera
pública. Em princípio, a esfera pública, como uma esfera de reprodução social, é aberta à
participação de qualquer cidadão e constitui-se cada vez que os indivíduos se reúnem para
falar e abordar assuntos de interesse geral sem estarem sujeitos aos poderes dominantes,
garantindo, assim, a liberdade de expressão e a propagação de idéias durante a reunião.
28
A esfera pública depende da discussão de idéias e da livre comunicação, portanto,
quando uma entidade política se torna maior do que a capacidade de ocupação de um espaço
público, torna-se necessário a utilização de um meio de comunicação para disseminar sua
influência. Segundo Howard Rheingold, numa alusão a Habermas,
quando o público é grande, esta comunicação exige meios de disseminação e
influência; hoje em dia os jornais, as publicações periódicas, a rádio e a televisão são
os meios de comunicação da esfera pública. A expressão opinião pública refere-se às
funções de crítica e controle ou à autoridade organizada do Estado que o público
exerce informalmente, ou mesmo formalmente por ocasião de eleições periódicas. A
regulamentação da publicidade das atividades do Estado, como por exemplo, o
acesso público aos procedimentos legais, está igualmente relacionada com esta
função da opinião pública. A esfera pública situa-se entre o Estado e a sociedade e é
onde o público serve de veículo de publicidade (RHEINGOLD, 1996, p. 342).
No princípio do século XIX, o vínculo entre editor e redator não mais se restringia a
uma relação empregatícia; o redator começa, muitas vezes, a participar dos lucros da empresa.
A concorrência dos jornais politicamente ativos levou essas empresas a se consolidarem
estabelecendo, a partir de então, relações profissionais e autônomas.
Com a nova figura do jornalismo literário, ou de opinião, o artigo diário passa a se
impor como uma autonomia da redação. O espírito de lucro sobre a consciência começa a
prevalecer através da publicidade. A empresa jornalística, solidificada editorialmente, trás
para si a liberdade que até então era uma característica da comunicação entre pessoas privadas
enquanto público. Habermas é quem melhor descreve o desenvolvimento da imprensa a partir
do público ativo politicamente.
Uma imprensa que se desenvolvia a partir da politização do público e cuja discussão
ela apenas prolongava continuou a ser por inteiro uma instituição deste mesmo
público: ativa como uma espécie de mediador e potenciador, não mais apenas um
mero órgão de transporte de informações e ainda não um instrumento da cultura
consumista (HABERMAS, 2003, p. 215-216).
O estabelecimento do Estado burguês e a legalização da esfera pública politicamente
ativa vai permitir que a imprensa crítica se desvincule das pressões sobre a liberdade de
opinião, podendo agora assumir sua posição polêmica de uma empresa geradora de lucro. A
evolução da imprensa politizante para uma imprensa comercializada, principalmente na
Inglaterra, França e Estados Unidos, ocorre simultaneamente nos anos 30 do século XIX.
29
A colocação de anúncios possibilita uma nova base de cálculos: com preços bem
mais baixos e um número muito maior de compradores, o editor podia contar com a
possibilidade de vender uma parte proporcionalmente crescente do espaço de seu
jornal para anúncios (HABERMAS, 2003, p. 216-217).
O controle totalitário da tecnologia de comunicação não é, contudo, a única forma do
poder político neutralizar a capacidade de livre expressão dos cidadãos. Também é possível
alterar a natureza do discurso através da invenção de uma espécie de imitação paga. Se o
conteúdo das reportagens noticiosas cotidianas for controlado por um reduzido número de
indivíduos, que também se dedicam ao negócio publicitário, tudo se torna possível para quem
dispuser de meios. “A publicidade, como auxiliar das políticas de grupos de interesse, confere
atualmente prestígio público a pessoas e coisas e as torna passíveis de aclamação num clima
de opinião não pública” (RHEINGOLD, 1996, p. 343).
Conforme os Estados Unidos foram se desenvolvendo e, paralelamente, a tecnologia
evoluindo, a discussão sobre esses assuntos foi se alterando. A imprensa escrita que servia
como canal para opinião pública foi ganhando cada vez mais poder para modificar a natureza
dessa opinião.
Os meios de comunicação do século XIX eram os jornais, ou folhetos, que
constituíram a primeira geração dos então chamados meios de comunicação social.
Ao mesmo tempo, o surgimento da publicidade e o começo da indústria de relações
públicas começaram a minar a esfera pública através da invenção de um discurso
falso, que podia comprar-se e vender-se, em substituição do discurso real
(RHEINGOLD, 1996, p. 345).
A idéia de manipulação da opinião pública junto ao fato dos espetáculos eletrônicos
prenderem a atenção da maioria dos cidadãos põe em risco os fundamentos da democracia.
Afinal, a esfera pública e a democracia nascem juntas, são originárias da mesma fonte.
Quando a esfera pública parece definhar, a democracia passa a correr risco. Aqui o
conceito de democracia está ligado à idéia de indivíduos circulando livremente e participando
da vida pública voluntariamente. A opinião pública, nesse caso, é gerada através da reunião de
indivíduos envolvidos num discurso racional onde a livre expressão está relacionada com a
possibilidade de debater assuntos relacionados ao poder do Estado.
30
Rheingold ressalta que a conseqüente destruição do discurso autêntico (simulação),
surgindo primeiro nos Estados Unidos e depois se espalhando pelo resto do mundo, é o que
Guy Debord chamaria de primeiro passo para sociedade do espetáculo.
1.5. A sociedade do espetáculo
O aparecimento da televisão junto à colonização da sociedade civil pelos mass media
torna-se uma política de promoção da própria tecnologia, onde a idéia de progresso era o
produto mais importante a ser comercializado.
No transcorrer do século XX o telefone, o rádio e a televisão tornam-se veículos do
discurso público onde a natureza da oração política atravessa alterações acabando por se
transformar em algo imprevisível para os poderes reguladores do Estado. O político passa a
ser visto como uma mercadoria, os cidadãos como consumidores potenciais e as questões
passam a ser resolvidas através da montagem e edição de encenações e imagens.
Em seu livro A sociedade do espetáculo, publicado em 1967, Guy Debord marca o
ponto extremo da sociedade de abundância. O momento culminante da crítica às mídias
acontece em maio de 1968, onde o movimento estudantil se alia ao movimento contestatório.
As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo
comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A
realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como
um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das
imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o
mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da
vida, é o movimento autônomo do não vivo (DEBORD, 2002, p. 13).
Howard Rheingold, enfatizando o pensamento de Debord, alega que a câmara de
televisão é o único espectador que conta numa manifestação ou comício político.
A título de exemplo, citamos três aforismos do livro de Guy Debord 4, 5 e 17 –, que
se encontram listados nas páginas 14 e 18, respectivamente:
31
“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
mediada por imagens.”
“O espetáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o
produto das técnicas de difusão maciça das imagens. Ele é uma Weltanschauung que
se tornou efetiva materialmente traduzida. É uma visão de mundo que se objetivou.”
“A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou, no modo
de definir toda realização humana, uma evidente degradação do ser para o ter. A
fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados
da economia, leva a um deslizamento generalizado, do ter para o parecer, do qual
todo ‘ter’ efetivo deve extrair seu prestígio imediato e sua função última. Ao mesmo
tempo, toda realidade individual tornou-se social, diretamente dependente da força
social, moldada por ela. Só lhe é permitido aparecer naquilo que ela não é.”
7
A sociedade de consumo tornou-se o verdadeiro modelo para o comportamento
individual e para decisão do critério político. O discurso perde suas qualidades ao se
transformar em publicidade e esta, por sua vez, utiliza o crescente poder dos meios de
comunicação para alterar as percepções e fabricar opiniões, tornando-se um veículo poderoso
para gerar riqueza através da generalização da idéia de que ser é comprar. O antigo canal de
comunicação transforma-se num canal para atualizão do desejo comercial. Com isso o
discurso racional, que ajusta a sociedade civil, passa a ser substituído pelos desejos não
satisfeitos.
1.6. A mensagem televisiva
A cultura de massa surge a partir do jornal e de seus coadjuvantes, o telégrafo e a
fotografia, mas se acentua com o aparecimento do cinema, uma mídia feita para recepção
coletiva. Mas só com o aparecimento da televisão a idéia do homem de massa se conectou
com a idéia do mass media. Através da lógica da televisão como uma audiência que emana
informação sem obtenção de resposta, passa-se a cogitar a idéia de que existem coisas como
consumo de massa e psicologia de massa, onde a televisão faz delas seu próprio conteúdo.
No livro História da Teoria da Comunicação, Mattelart, citando o trabalho de Stuart
Hall, nos faz entender o papel ideológico da mídia e a natureza de sua ideologia, fundando
7
Todos os grifos são do autor.
32
uma forma diferente de pesquisa crítica sobre os meios de comunicação. Hall, em seu clássico
artigo “Encoding/Decoding”, examina o processo de comunicação televisiva segundo quatro
momentos distintos:
produção; circulação; distribuição/consumo; reprodução que apresentam suas
próprias formas e condições de existência, mas articulam-se entre si e são
determinadas por relações de poder institucionais. A audiência é ao mesmo tempo o
receptor e a fonte da mensagem, pois os esquemas de produção momento de
codificação respondem às imagens que a instituição televisiva se faz da audiência
e a códigos profissionais (MATTELART, 2004, p. 109).
Dando continuidade a sua análise, Stuart Hall, no mesmo artigo, define audiência
através de ts tipos de decodificação: dominante, oposicional e negociada. O dominante,
como o próprio nome nos remete, corresponde ao hegemônico, que vai aparecer como natural,
legítimo, inevitável, o senso comum de uma ordem social e de um universo profissional. O
oposicional decifra a mensagem a partir de um outro quadro de referência, ou seja, nos
apresenta uma visão de mundo contrária, onde o interesse nacional passa a ser visto como um
interesse de classe. O terceiro e último é uma miscelânea de oposição e de adaptação, uma
mistura de lógicas contraditórias que subscreve em parte as significações e valores
dominantes, buscando em situações vividas por uma classe argumentos de contestação
geralmente aceitas.
Destacamos que o referido artigo norteou várias pesquisas do Centre of Contemporary
Cultural Studies (CCCS), da Universidade de Birmigham, relacionadas à televisão até o ano
de 1978, quando uma pesquisa financiada pelo British Film Institute (BFI) sinaliza uma
virada na produção desses media studies. Após a análise dos programas de informação geral
dirigidos a um público de elite, a atenção se volta para as emissões destinadas a um público
mais vasto e heterogêneo em termos de classe e sexo. A análise desses programas de diversão
de massas exploram as contradições da vida e a experiência individual de homens e mulheres
que participam na construção de um senso comum popular. “No centro dessa linha de
pesquisa, estão o estudo das representações de gênero feminino/masculino, de classe social,
33
de grupos étnicos” (MATTELART, 2004, p. 111).
A análise do mecanismo pelo qual a televisão e outros tipos de mídia influenciam o
comportamento social passa pela questão principal que a grande mídia é um sistema de
comunicação de mão-única, mas o processo real de comunicação não o é, depende da
interação entre o emissor e o receptor, na interpretação da mensagem. Considerando que as
pessoas têm algum vel de autonomia para organizar e decidir sobre seu comportamento, as
mensagens enviadas pela mídia deverão interagir com seus receptores, assim o conceito de
mídia refere-se a um sistema tecnológico e não a uma forma de cultura de massa.
A autonomia da mente humana e dos sistemas culturais individuais na finalização do
significado real das mensagens recebidas não implica que os meios de comunicação
sejam instituições neutras, ou que seus efeitos sejam desprezíveis. Pelo que mostram
os estudos empíricos, a mídia não é uma variável independente na indução de
comportamentos. Suas mensagens, explícitas ou subliminares, são trabalhadas,
processadas por indivíduos localizados em contextos sociais específicos, dessa
forma modificando o efeito pretendido pela mensagem. Mas os meios de
comunicação, em especial a mídia audiovisual de nossa cultura, representa de fato o
material básico dos processos de comunicação (CASTELLS, 2003, p. 421).
A indiscutível adesão do espectador ao aparecimento da televisão não é por acaso.
Conforme evidencia a autora Cecília Tichi, “a difusão da televisão ocorreu em um ambiente
televisivo, ou seja, a cultura na qual os objetos e símbolos se voltam para a televisão, desde as
formas dos móveis domésticos até modos de agir e temas de conversas” (TICHI apud
CASTELLS, 2003, p. 421). Com base nos pensadores Umberto Eco e Neil Postman, Castells,
acrescenta que o poder real da televisão “é que ela arma o palco para todos os processos que
pretendem comunicar a sociedade em geral, de política a negócios, inclusive esportes e artes.
A televisão modela a linguagem de comunicação societal” (ibid., id.).
Os indivíduos são informados basicamente pelos meios de comunicação, principalmente
pela televisão. O impacto social da televisão funciona como no modo binário: estar ou não
estar. Estando uma mensagem disponível na televisão, ela poderá ser modificada,
transformada ou mesmo reformulada. Em uma sociedade ordenada em torno da grande mídia,
a existência de mensagens fora da mídia fica reduzida a redes interpessoais, assim,
34
conseqüentemente, desaparece do inconsciente coletivo. Entretanto, o valor a ser pago para
divulgação de uma mensagem na televisão representa mais do que dinheiro e poder, significa
estar de acordo com a mistura de um texto multissemântico, cuja construção gramatical é
extremamente imprecisa.
Assim, informação e entretenimento, educação e propaganda, relaxamento e
hipnose, tudo isso está misturado na linguagem televisiva. Como o contexto do ato
de assistir é controlável e familiar ao receptor, todas as mensagens são absorvidas no
modo tranqüilizador das situações domésticas ou aparentemente domésticas
(CASTELLS, 2003, p. 422).
Conforme podemos observar, a mídia tende a afetar não o nosso consciente como
também o nosso comportamento, pois a informação aliada ao entretenimento, proposta pela
televisão, transfere para o nosso consciente a capacidade de selecionar, recombinar e
interpretar as imagens e os sons desenvolvidos por meio de nossas práticas coletivas ou
preferências individuais. Assim, a dia passa a ser uma representação de nossa cultura,
disseminada, principalmente, pela distribuição da informação através da mídia.
Entretanto, o fato de a audiência não ser objeto passivo, mas sujeito interativo, abriu
o caminho para sua diferenciação e subseqüente transformação da mídia que, de
comunicação de massa, passou à segmentação, adequação ao público e
individualização, a partir do momento em que a tecnologia, empresas e instituições
permitiram essas iniciativas (CASTELLS, 2003, p. 422).
Ao longo dos anos 80, testemunhamos o início de um processo progressivo de
convivência da televisão com o surgimento de novas máquinas, equipamentos e produtos
midiáticos que aparecem com uma lógica distinta dos meios de comunicação de massa. Para
citarmos alguns: as máquinas de xerox e de fax, o videocassete e os videogames, a
segmentação das revistas e programas de rádio para públicos específicos, a TV a cabo etc.
Segundo Santaella, é bem verdade que nessa época os meios de comunicação de massa
cresceram como novas formas de transmissão televisiva ampliando ainda mais a difusão. As
revistas especializadas, os videocassetes e as TVs a cabo passaram a atender grupos
populacionais menores, como também passaram a atender uma audiência mais segmentada e
diversificada. Para concluir, a autora menciona que não uma “linearidade na passagem de
35
uma era cultural para a outra, pois elas se sobrepõem, misturam-se, criando tecidos culturais
híbridos e cada vez mais densos. Essa densidade estava fadada a intensificar-se com a
chegada da cultura digital” (SANTAELLA, 2003, p. 81).
1.7. Os computadores pessoais
A partir dos anos 80 vamos testemunhar a introdução dos computadores pessoais (PC)
no mercado doméstico. Acostumados a uma mídia receptiva onde a televisão foi seu marco
principal, os telespectadores passam a se defrontar com uma tela que vai demandar uma
necessidade de interação. “As telas dos computadores estabelecem uma interface entre a
eletricidade biológica e tecnológica, entre o utilizador e as redes” (SANTAELLA, 2003, p.
81).
Conforme os usuários foram se tornando aptos a interagir com as telas, por intermédio
de computadores, gravadores de vídeo ou câmeras caseiras, seus hábitos de consumo
espontâneo passaram a conviver com hábitos mais independentes, de discernimento e
escolhas próprias. Afinal, não estávamos mais nos relacionando com um computador por
meio de uma interface, e sim executando várias tarefas em um ambiente natural que nos
fornecia sob demanda diferentes recursos de criação, informação e comunicação. Surgia assim
a cultura da velocidade e das redes acoplada à necessidade de sincronia, aceleração e
humanização de nossa interação com as máquinas.
Contudo, compete enfatizar, esses novos hábitos foram sendo incorporados na medida
em que passamos a conviver com as mídias interativas, onde a centralização, sincronização e
padronização, características dos meios de massa, foram substituídas por uma maior
diversidade e liberdade de escolha.
36
Na visão de Lucia Santaella, cada indivíduo tornou-se disseminador dos seus próprios
produtos. “Com isso, uma sociedade de distribuição piramidal começou a sofrer a
concorrência de uma sociedade reticular de integração em tempo real. Isso significa que
estamos entrando numa terceira era midiática, a cibercultura” (SANTAELLA, 2003, p. 82).
A cibercultura, de acordo com André Lemos, está vinculada ao processo técnico-social
da cultura contemporânea, onde as tecnologias de comunicação e informação estão alterando
experiências sociais, formas de produção e consumo midiáticas, o entretenimento, a educação
e a economia neste começo de século XXI (LEMOS, 2004, p. 151).
1.8. A chegada da Internet
A história da Internet, como já foi amplamente divulgada e publicada em vários livros e
artigos, surge na Agência de Projetos de Investigação Avançada do Departamento de Defesa
norte-americano (ARPA) como uma necessidade de desenvolver um sistema de comunicação
interligado capaz de defender os Estados Unidos de um possível ataque nuclear. Numa
política muito mais voltada à auto-organização do que concentrada nas grandes empresas, a
Internet foi sofrendo constantes transformações e se adaptando às necessidades de jovens
cientistas, conhecidos aqui como hacker
8
, que acreditavam poder mudar o mundo.
Mais uma vez, as alterações de concepção e utilização dos computadores
conduziram ao aumento da população dos utilizadores dos mesmos, passando de um
grupo pequeno de iniciados, em 1950, para uma elite, nos anos 60, para uma
subcultura, nos anos 70 e para uma parte significativa e crescente da população, nos
anos 90. Uma vez mais, não foi a tendência dominante na indústria dos
computadores a criar a computação a baixo custo, mas sim alguns adolescentes a
trabalhar em garagens (RHEINGOLD, 1996, p. 90).
A tulo de ilustração citamos o exemplo de dois estudantes da Universidade de
Chicago, que em 1978, por uma necessidade climática, acabaram por inventar o modem – um
computador ligado a outro através de uma linha de telefone com a finalidade de trocar
8
O termo hacker aqui utilizado é o conceito que Howard Rheingold utiliza no seu livro Comunidade virtual, citando o livro
Hackers: heroes of the computer revolution, de Steven Levy.
37
arquivos sem passar por um sistema central e, principalmente, para evitar o deslocamento
durante o inverno.
No ano seguinte três alunos da Duke University e da Universidade da Carolina do
Norte, não pertencentes a ARPANET, inventam uma versão modificada do protocolo UNIX,
que possibilitava a interligação de computadores através de uma linha telefônica comum. Os
três amigos tinham como finalidade criar um fórum on-line para manter conversas sobre
informática. A Usenet tornou-se o primeiro sistema de conversas em larga escala onde cada
membro era um editor em potencial.
O artifício da contracultura de utilizar a tecnologia inspirada na estratégia militar das
redes horizontais acabou viabilizando meios tecnológicos a qualquer pessoa que possuísse
conhecimentos técnicos e um PC, dando início a uma progressão espetacular de força cada
vez maior a custos cada vez mais baixos. O aparecimento da computação pessoal aliada à
comunicabilidade das redes incitou a criação dos sistemas de quadros de avisos (bulletin
board systems – BBS), primeiro nos Estados Unidos e depois no mundo inteiro.
Os BBS não precisavam das redes sofisticadas de computadores, só de PCs, modems
e linha telefônica. Assim, tornaram-se os fóruns eletrônicos de todos os tipos de
interesse e afinidades, criando o que Howard Rheingold chamava de “comunidades
virtuais”. Em fins da década de 1980, alguns milhões de usuários de computador
estavam usando as comunicações computadorizadas em redes cooperativas ou
comerciais que não faziam parte da Internet (CASTELLS, 2003, p. 87).
Os responsáveis pelo desenvolvimento dos sistemas de comunicação mediada por
computadores (CMC) queriam, na realidade, se comunicar com um grande número de
pessoas; a importância que buscavam não era o valor comercial a ser cobrado pelo acesso à
comunidade, mas sim o valor intelectual adicionado aos bens coletivos passíveis de serem
criados por uma comunidade.
Por volta de 1990 a capacidade de transmissão de gráficos era muito limitada, como
também, era muito difícil receber e localizar informações. Foi quando assistimos um novo
salto tecnológico, o surgimento de um novo aplicativo, a World Wide Web (WWW),
38
responsável pela organização do conteúdo informacional dos sítios na Internet, oferecendo
aos usuários um sistema de fácil pesquisa e procura das informações desejadas. Baseado no
trabalho dos hackers
9
da década de 70, Tim Berners Lee, chefe do Centre Européen pour
Recherche Nucleaire (CERN), idealizou um novo sistema para organizar as informações que
batizou de “hipertexto”. A essa idéia pioneira, Lee e seus colegas adicionaram novas
tecnologias adaptadas do mundo da multimídia para oferecer uma linguagem audiovisual ao
aplicativo.
A equipe do CERN criou um formato para os documentos em hipertexto ao qual
deram o nome de linguagem de marcação de hipertexto (hypertex markup language
HTML), dentro da tradição de flexibilidade da Internet, para que os computadores
pudessem adaptar suas linguagens específicas dentro desse formato compartilhado,
acrescentando essa formatação ao protocolo TCP/IP. Também configuraram um
protocolo de transferência de hipertexto (hypertex transfer protocol HTTP) para
orientar a comunicação entre programas navegadores e servidores WWW; e criaram
um formato padronizado de endereços, o localizador uniforme de recursos (uniform
resource locator – URL) que combina informações sobre o protocolo do aplicativo e
sobre o endereço do computador que contém as informações solicitadas. O URL
também podia relacionar-se com uma série de protocolos de transferência, e não só o
http, o que facilitava a interface geral (CASTELLS, 2003, p. 87).
O CERN disponibilizou o software WWW gratuitamente pela Internet, e os primeiros
sítios da web foram criados por grandes centros de pesquisa científica difundidos pelo mundo.
Até que, no final de 1992, um estudante universitário “entediado” resolveu tentar dar uma
face gráfica a web, e o resultado foi o navegador conhecido por Mosaic, criado para funcionar
em computadores pessoais. Logo surgiram novos navegadores e o mundo inteiro abraçou a
Internet.
Nos Estados Unidos, segundo dados fornecidos pelo autor Manuel Castells, nenhum
outro meio de comunicação teve uma expansão tão rápida quanto a Internet: o rádio levou 30
anos para alcançar 60 milhões de pessoas, a TV alcançou esse mesmo número em 15 anos,
enquanto a Internet alcançou esse patamar apenas três anos após a criação da “teia mundial”.
9
O termo aqui utilizado é o mesmo conceito utilizado por Rheingold.
39
Não deixa de ser importante quem teve acesso primeiro, e a quê, porque, ao
contrário da televisão, os consumidores da Internet também são produtores, pois
fornecem conteúdo e dão forma a teia. Assim o momento de chegada tão desigual
das sociedades à constelação da Internet terá conseqüências duradouras no futuro
padrão da comunicação e da cultura mundiais (CASTELLS, 2003, p. 439).
A Teia de Alcance Mundial, ou Rede, conforme menciona Rheingold, é um termo
informal que designa as redes de computadores interligados, empregando a tecnologia de
comunicação mediada por computador (CMC) para pessoas do mundo todo na forma de
debates públicos. Em qualquer lugar, sempre que a tecnologia das CMC se torna acessível, as
pessoas organizam comunidades virtuais.
Suspeito de que uma das explicações para esse fenômeno seja o desejo de
comunidade que cresce em toda parte no interior dos indivíduos, à medida que
desaparecem cada vez mais espaços públicos da vida cotidiana. Também suspeito
que estes novos meios de comunicação atraiam colônias de entusiastas porque a
CMC lhes permite interagir de uma forma inovadora, fazendo coisas novas em
conjunto tal como o permitiam os telégrafos, os telefones e as televisões
(RHEINGOLD, 1996, p. 19-20).
Apesar de todos os esforços para regular, privatizar e comercializar a Internet e seus
sistemas tributários, as redes de CMC, dentro e fora da Internet, têm como características
principais: penetrabilidade, descentralização multifacetada e flexibilidade. Crescem como
colônias de microorganismos. Para Rheingold, o futuro da Rede está ligado ao futuro da
comunidade, da democracia, da educação, da ciência e da vida intelectual.
1.9. A ideologia da rede
Atualmente a rede absorve a questão da mudança social. Ela é a prótese técnica da
utopia social onde as revoluções verdadeiras são as possíveis rupturas das relações sociais
oferecidas pelas tecnologias de comunicação, começando pela Internet. A rede sempre leva a
um imaginário de transição, entre a libertação de um sistema piramidal e hierárquico onde o
estado é o protótipo, e o compromisso de um sistema futuro, o da associação universal,
prenunciando um novo tipo de relação igualitária.
40
Internet, rede de redes planetárias, reativa os mitos recorrentes veiculados pela idéia de
rede.
Suas duas imagens originais são redescobertas: a que agita seus bajuladores, da livre
circulação generalizada das informações, significando democracia e transparência da
“sociedade da informação”, e a evocada por seus detratores, do controle e da
vigilância generalizada (MUSSO, 2004, p. 34).
Hoje, para alguns pensadores, a teia mundial desempenha o papel de prótese que se
apresenta de várias maneiras: as redes de informação habitam o lugar da nova relação social e
servem de instrumento para uma nova “democracia eletrônica”, direta, interativa e
instantânea. Essa vertente otimista da rede técnica, que a considera um novo vínculo social
universal, sentido a atividade e aos propósitos dos “irmãos internautas conectados” que se
comunicam e comungam numa visão partilhada anti-hierárquica, de tipo liberal-libertária.
“Com efeito, essa teologia dos evangelistas da rede vai de encontro à dos empresários que
vêem ali um mercado para um comércio eletrônico ao mesmo tempo mundializado,
personalizado e acessível a domicílio” (MUSSO, 2004, p. 35).
O simbolismo da rede permanece ainda apresentando duas faces: o tormento do controle
pode virar seu contrário, o paraíso da circulação. Os internautas vão defender o poder
periférico, descentralizado que ela concede; já os descrentes criticarão a oportunidade que ela
oferece ao poder central de controlar o planeta.
A rede parece, nos nossos dias, indicar o significado, não mais o da verticalidade da
torre da catedral esticada em direção ao supranatural, mas o da interconexão e da
ligação, sem limite. A rede é comparável a uma catedral cuja torre indicaria não
mais o além, senão o futuro terrestre prometido (MUSSO, 2004, p. 36).
Citando o antropólogo e pensador francês Gilbert Durand, Pierre Musso nos diz que o
conceito de rede sempre esteve, em parte, ligado ao tecido, pois os instrumentos e os produtos
da tecelagem e da fião são universalmente mbolos da transformação. Aqui o sentido de
rede aponta para uma sociedade envolvida numa trama em cuja malha já caímos: ela se tornou
numa espécie de templo da religião comunicacional mundial.
41
Onde a catedral conectava céu e terra, esse novo templo conecta o presente e o
futuro prometendo paz e democracia pela circulação e pela conexão generalizadas.
Assim como a catedral é a encarnação do mistério, a rede é presença do futuro: ela
faz passar, definindo nosso lugar como uma passagem. Atualmente, a rede encarna a
passagem ou a rapidez da passagem. (MUSSO, 2004, p. 36)
A rede nos transforma em seres “passantes”, por estarmos sempre mergulhados nos
fluxos do movimento contínuo. O presente é a passagem, transição, movimento. Não temos
necessidade de operar a mudança social, ela se faz permanente.
A rede tornou-se o fim e o meio para pensar e realizar a transformação social, ou até
mesmo a revolução de nosso tempo. Ela passou do estágio de conceito ao de percepto, ou
mesmo de preceito.
42
2.1. A comunidade clássica
“O vínculo social penetra na máquina”
Armand e Michèle Mattelart
A comunicação mediada por computador (CMC), conforme visto anteriormente, nos
permite examinar com um novo olhar o entendimento do conceito de comunidade. Por ser
um conceito ligado à forma como o ser humano se agrega socialmente, a noção de ocupação
de um espaço físico geográfico e a sensação de pertencimento a uma estrutura social se altera
com o incremento das novas tecnologias de comunicação.
O conceito de comunidade, embora não haja um consenso entre os cientistas sociais,
sempre esteve relacionado à idéia de que os indivíduos tendem a se associar em torno dela. A
dificuldade em instituir um significado preciso ao conceito faz com que ele sempre seja usado
como sinônimo de sociedade, associação de bairro, conjunto habitacional, coletividade
religiosa, trabalhos em grupo ou mesmo clube esportivo; nos sugerindo o sentimento de
proximidade e aconchego.
Segundo o sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, “as palavras têm significado: algumas
delas, porém, guardam sensações”. A palavra comunidade é uma dessas. “Ela sugere uma
coisa boa: o que quer que comunidade signifique, é bom ‘ter uma comunidade’, ‘estar numa
comunidade’” (BAUMAN, 2003, p. 7).
O cientista social Max Weber parte da premissa que a comunidade tem como base uma
relação social onde exista qualquer espécie de ligação emocional, afetiva ou tradicional. O
próprio autor nos aponta:
Chamamos de comunidade a uma relação social na medida em que a orientação da
ação social seja no caso individual, na média ou no tipo ideal baseia-se em um
sentido de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos
participantes (WEBER, 2003, p. 77).
43
Por outro lado, Weber analisa que a relação social em sociedade é o “resultado de uma
reconciliação e de um equilíbrio de interesses motivados por juízos racionais, quer de valores,
quer de fins” (WEBER, 2003, p. 77).
Para o autor, a comunidade tem como base qualquer valor emocional ou familiar, mas
defende que a grande maioria dos relacionamentos sociais compartilha tanto da comunidade
quanto da sociedade não importando a conveniência ou a sobriedade que possam predominar
numa relação.
Alex Primo, no artigo “A emergência das comunidades virtuais” (1997), apresenta o
pensamento pioneiro do sociólogo alemão Ferdinand Tönnies que, no século XIX, estabeleceu
uma distinção mais específica para descrever dois tipos de organização social: a comunidade e
a sociedade.
Gemeinschaft (ou comunidade) e gesellschaft (ou associação). O primeiro conceito
descreve uma sociedade tradicional, de cultura homogênea, onde os indivíduos m
relacionamentos interpessoais e valorizam as relações sociais. o segundo
conceito, caracterizado pela sociedade urbana industrializada, descreve o conjunto
de indivíduos com relações impessoais, distantes, individualizadas e que usam as
relações sociais como meios para um fim (PRIMO, 1997, on-line).
10
A idéia ou o conceito de comunidade, tida como a essência da sociologia clássica, é
concebido na modernidade. Diante da manifestação das novas formas de organização social
foi possível observar a formação das modalidades anteriores, ou seja, os indivíduos
abandonaram as velhas rotinas e os antigos laços de interação para se adaptarem a uma nova
rotina de trabalho acarretada pela industrialização e governada pelo desempenho de tarefas.
Os futuros trabalhadores, a fim de se adaptarem a nova situação, precisavam ser
transformados em uma massa, abandonando assim a rotina e os hábitos comunitários. O
conflito contra a comunidade surge em nome da liberação do indivíduo da inércia da massa.
Entretanto, Bauman, analisa que a aversão ao trabalho, considerada uma característica inata
das massas, não passou de uma desculpa para inaugurar a idéia de uma ética do trabalho.
10
Disponível em: <http://usr.psico.ufrgs.br/~aprimo/pb/espiralpb.htm>. Acesso: 05 jul 2005.
44
No início da era industrial foi uma tentativa desesperada de reconstituir, no ambiente
frio e impessoal da fábrica, através do regime de comando, vigilância e punição, a
mesma habilidade no trabalho que na densa rede de interação comunitária era
alcançada de modo “natural” pelos artesãos e outros trabalhadores (BAUMAN,
2003, p. 31).
Continuando com a análise de Bauman, o desmantelamento das comunidades foi um
lento processo de esvaziamento da definição do significado da palavra trabalho. Se nas
comunidades o trabalho era dotado de sentido, ou seja, uma ação com objetivo, no capitalismo
moderno o instinto do trabalho bem-feito começa a ser entendido como uma labuta sem
qualquer relão com os valores comunitários, passando a ser percebido como um esforço
fútil.
Baseado no pensamento do cientista social Thorstein Veblen, Bauman, descreve:
O que costumava ser um esforço virou labuta. não era claro para os artífices e
artesãos de ontem o sentido do “trabalho bem-feito”, e não havia mais “dignidade,
mérito e honra” que decorressem dele. Seguir a rotina sem alma do chão da fábrica,
sem ser observado pelo companheiro ou vizinho, mas apenas pelo desconfiado
capataz, obedecer aos movimentos ditados pela máquina sem chance de admirar o
produto do próprio esforço, e muito menos de apreciar sua qualidade, tornavam o
esforço “fútil”; e um esforço fútil era o que o instinto do trabalho bem-feito levava
os humanos a detestarem todo o tempo. E esse tão humano desgostar da futilidade e
da falta de sentido é que era em realidade o alvo da acusação de preguiça formulada
contra os homens, mulheres e crianças, afastados de seu ambiente comum e sujeitos
a um ritmo que não determinavam nem ao menos compreendiam (BAUMAN, 2003,
p. 32).
Visando a repressão de qualquer manifestação de livre-arbítrio dos atuais operários das
fábricas, as classes mais altas ou os donos e gerentes da nova indústria entenderam ser
necessário estabelecer um poder de vigilância contínuo, ao estilo panóptico
11
, garantindo
medidas imprescindíveis para assegurar a disciplina. Assim, subordinados e supervisores
ficaram presos ao lugar, um sendo vigiado e punido e o outro vigiando e administrando a
punição.
Nas palavras de Bauman, esse foi o período de engajamento, onde “os governados
dependiam dos governantes, mas estes não deixavam de depender daqueles. Para o bem ou
11
Segundo Michel Foucault, o efeito mais importante do modelo panóptico “é induzir no detento – louco, doente, condenado,
operário, ou mesmo um escolar – um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento
automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação”.
(FOUCAULT, 2003, p. 166)
45
para o mal, os dois lados estavam amarrados entre si e nenhum deles podia com facilidade sair
do impasse” (BAUMAN, 2003, p. 35).
Quando a relão de interdependência, ou engajamento, entre patrões e empregados fica
caracterizada constata-se que o modelo panóptico, além de muito dispendioso, não era
funcional. Depois de muitas batalhas e tentativas de tréguas chega-se a um conjunto de regras
aceitáveis para ambas as partes numa tentativa de humanizar as relações de trabalho, assim o
sentido de comunidade é levado para dentro das fábricas.
Podemos dizer que a modernidade ao longo de sua trajetória foi marcada por duas
tendências: a primeira foi a substituição do trabalho artesanal por uma rotina artificialmente
imposta e monitorada e a segunda foi a tentativa de fazer ressurgir dentro da nova estrutura de
poder o sentido de comunidade.
Marcos Palacios (1998) apresenta algumas características que representaram o modelo
ideal de comunidade na modernidade: a permanência em contraposição ao transitório, à
territorialidade, e à existência de uma forma própria para troca de informações valendo-se de
veículos específicos, como murais, boletins, jornais, rádios etc.
Dadas a permanência, a ação organizada e a existência do projeto comum, a
comunidade teria então a tendência a se estabilizar e se institucionalizar, tomando
uma forma mais consolidada, com uma organização visível, hierarquia formal,
delegação de responsabilidades e poderes, personalidade jurídica etc. Em resumo,
teríamos como constituintes de uma comunidade clássica, os seguintes elementos: o
sentimento de pertencimento; uma territorialidade (geográfica e/ou simbólica); a
permanência; a ligação entre sentimento de comunidade; caráter cooperativo e
emergência de um projeto comum; a existência de formas próprias de comunicação
e a tendência à institucionalização (PALACIOS, 1998, on-line).
12
Conforme observado, o conceito de comunidade passou por sucessivas transformações,
surgindo como um ideal familiar e fraterno, regulado pela natureza e pela tradição que, com o
passar do tempo, passou a integrar um número maior de grupos humanos. O advento da
modernidade e a conseqüente urbanização contribuíram para o desaparecimento das
comunidades rurais, cedendo espaço para o surgimento das grandes cidades. “Com isso, a
12
Disponível em: < http://web.archive.org/web/20010217070329/http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/palacios/
cotidiano.html>. Acesso: 10 jul 2005.
46
idéia de ‘comunidade’ como a sociologia clássica a concebia, como um tipo rural, ligado por
laços de parentesco em oposição à idéia de sociedade, parece desaparecer, não da teoria, mas
da prática” (RECUERO, 2001, on-line).
13
Raquel Recuero, numa alusão ao cientista social Ray Oldenburg, nos apresenta o texto
“The great good place” (1999, on-line)
14
, onde o autor descreve sobre a necessidade da
utilização dos espaços públicos como um lugar informal que tem por finalidade a interação
social.
Segundo Oldenburg, existem três tipos de lugares essenciais no cotidiano das pessoas:
o primeiro seria a vida familiar, o segundo nosso trabalho e o terceiro equivaleria aos lugares
de convivência onde os laços sociais seriam revigorados, como, por exemplo, a igreja, a praça
pública ou o bar. Esses “terceiros lugares”, identificados pelo autor como “lugares da vida
pública informal”, seriam os lugares de lazer, cuja característica primária é a conversação.
Howard Rheingold, aludindo ao mesmo autor, descreve que o modo de vida urbano
baseado no automóvel, no hipermercado e no fast food estariam contribuindo para eliminação
dos terceiros lugares nas grandes metrópoles ocidentais, principalmente na sociedade
americana. A rede social que esses terceiros lugares proporcionam constitui, no entender de
Oldenburg, o lugar onde o sentimento de comunidade se estabelece e se mantém.
O caráter dos terceiros lugares é majoritariamente determinado pela clientela
habitual e caracteriza-se por um ambiente divertido, em contraste com o ar mais
sério de outras esferas. Embora constituam um cenário radicalmente diferente do lar,
os terceiros lugares assemelham-se notavelmente a um “doce lar”, pelo conforto e
apoio psicológico que proporcionam. Estas são as características dos terceiros
lugares, aparentemente universais e essenciais a uma vida pública informal
(Oldenburg, In: RHEINGOLD, 1996, p. 42).
A conseqüência do desaparecimento desses terceiros lugares, de acordo com
Oldenburg, estaria contribuindo para o declínio do capital social
15
gerando uma tensão maior
13
Disponível em: <http://www.pontomidia.com.br/raquel/teorica.pdf>. Acesso: 25 jun 2005.
14
Disponível em: <http://www.montclair.edu/pages/ics/Oldenburg.html>. Acesso: 01 jul 2005.
15
Capital social pode ser entendido como o conjunto de normas de reciprocidade, informação e confiança presentes nas redes
sociais informais desenvolvidas pelos indivíduos em sua vida cotidiana, resultando em numerosos benefícios diretos ou
indiretos, sendo determinante na compreensão da ação social. (LIMA, Carlos Jacob. Disponivel em:
<http://www.cchla.ufpb.br/ppgs/politica/17-lima.html#EndNote1>. Acesso: 19 jul 2005).
47
nas relações mais íntimas. Na ausência de uma vida pública informal, a perspectiva das
pessoas com relação ao trabalho e a vida familiar acenderam além da capacidade de
compreensão dos membros que compõe essas instituições.
Bauman, corroborando com o pensamento de Oldenburg, observa que nada mais dura
o tempo suficiente para ser assimilado, tornar-se familiar ou transformar-se no que as pessoas
buscam em uma comunidade. Os mercadinhos da esquina não sobreviveram à competição dos
supermercados; o banco local e os escritórios da construtora foram substituídos por vozes
anônimas e impessoais; as lojas de departamento trocam de pessoal numa velocidade tal que
se torna impossível encontrar o mesmo vendedor duas vezes. Em casa e na família as coisas
não estão diferentes, uma criança média tem vários avós e diversos lares para escolher, mas
nenhum deles se parece com o verdadeiro e único lar.
Em suma: foi-se a maioria dos pontos firmes e solidamente marcados de orientação
que sugeriam uma situação social que era mais duradoura, mais segura e mais
confiável do que o tempo de uma vida individual. Foi-se a certeza de que “nos
veremos outra vez”, de que nos encontraremos repetidamente e por um longo porvir
(BAUMAN, 2003, p. 47).
Na concepção do autor, nenhum agregado de seres humanos é sentido como
comunidade; o que falta, nos dias de hoje, é a experiência da sensação de laços bem tecidos e
de uma interação mais freqüente e intensa entre as pessoas. A incerteza, o medo do futuro, o
ambiente fluído em constante transformação não une as pessoas, ao contrário, contribui para
que elas se separem e se dividam.
Sem a união dos indivíduos numa espécie de junção de forças por uma causa comum a
decadência do sentimento de “comunidade se perpetua e uma vez instalada, cada vez
menos estímulos para deter a desintegração dos laços humanos e a procura de meios para unir
de novo o que foi rompido” (BAUMAN, 2003, p. 48).
48
Numa visão menos desanimadora, Richard Sennett (1977), citado por Jan Fernback e
Brad Thompson (1995, on-line)
16
, evidencia que o culto exacerbado ao individualismo acaba
abalando as relações sociais estabelecidas em torno de sentimentos pessoais que são
substituídos por sentimentos mais racionais e objetivos.
A comunidade, ou o senso comum, não abraça mais o público, pelo contrário, passam a
valorizar a personalidade espetacular e a credibilidade individual em substituição ao discurso
coletivo. O compromisso social passa a ser centrado no individualismo onde as pessoas
buscam o “sentir” ao invés do “pensar”.
Um dos pontos centrais na discussão de Sennett é que a idéia de comunidade evoluiu de
Gemeinschaft comunidade essencialmente pública para Gesellschaft comunidade
essencialmente privada quando, no século XIX, as pessoas passaram a considerar a ação
pública como a expressão da psique individual. Com a ascensão da industrialização e o
surgimento do conceito de sociedade de massa as pessoas foram atomizadas e a ordem social
passou a ser caracterizada por uma anomia, ou seja, por uma ausência de normas.
Os autores Fernback e Thompson, continuando a citar Sennett, ilustram o caráter
problemático da noção de comunidade nos apontando que:
O conceito de comunidade geralmente recorre a um jogo de relações sociais que
operam dentro de limites específicos ou locais, mas a comunidade tem um
componente ideológico, um senso de caráter comum, identidade ou interesses
(Sennett, apud FERNBACK; THOMPSON, 1995, on-line).
17
Finalmente, observa Sennett, o ideal de comunidade como um território limitado foi
substituído pela noção de comunidade como a de mentes iguais ou indivíduos com
pensamentos semelhantes.
16
Acesso: <http://www.rheingold.com/texts/techpolitix/VCcivil.html> em: 12/07/05.
17
Acesso: <http://www.rheingold.com/texts/techpolitix/VCcivil.html> em: 12/07/05.
49
2.2. As comunidades virtuais
A comunicação mediada por computador (CMC) é um fenômeno social recente, surge
na década de 70 quando os primeiros computadores ligados em rede passaram a agregar no
seu entorno indivíduos on-line conforme valores e interesses em comum. Nesse primeiro
momento, o acesso a Internet ainda se encontrava restrito às universidades, aos centros de
pesquisa e aos alunos.
Conforme apresentado no capítulo anterior, a os anos 90 a capacidade para
transmissão de dados via Rede era muito limitada. Com a instauração da World Wide Web
(WWW), um recurso hipertextual de viabilização multimediática da rede, os adeptos
abraçaram o mundo. André Lemos nos aponta que:
O ano é 1989, e a junção de imagem, sons e texto, acessados de maneira mais
simples do que os antigos programas, começa a atrair indivíduos das mais diversas
áreas e interesses. A partir de então, a palavra comunidade tem sido utilizada de
forma corriqueira no ciberespaço
18
(LEMOS, 1999, on-line).
19
Sherry Turkle, no seu livro A vida no ecrã (1997), cita que o ciberespaço, atualmente,
faz parte da rotina diária das pessoas, onde a oportunidade de edificar novos tipos de
comunidade as comunidades virtuais possibilita os indivíduos estabelecerem diálogos
diariamente ao redor do mundo muitas vezes gerando relações bastante íntimas, que, talvez,
nunca se concretizem num encontro físico pessoal.
A utilização de computadores para trocar informações surgiu como uma forma de
explorar a capacidade de comunicação mediada pelas redes de computadores visando
construir relações sociais que atravessariam as barreiras espaço-temporais.
Segundo Howard Rheingold (1996), em 1968 a existência de comunidades virtuais foi
prevista por J.C.R. Licklider e Robert Taylor, criadores da ARPANET, como pessoas
18
O termo ciberespaço surgiu originalmente no livro de ficção cientifica Neuromancer, de autoria de William Gibson, para
designar o espaço conceitual onde se manifestam palavras, relações humanas, dados, riqueza e poder dos utilizadores da
tecnologia CMC.
19
Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/agregacao.htm#_ftn1>. Acesso: 20 jul 2005.
50
agrupadas em pequenos aglomerados que compatilhariam interesses em comum sem
necessariamente partilharem um mesmo espaço geográfico.
O autor Márcio Gonçalves, numa alusão ao pensamento de Claude Cadoz, define as
comunidades virtuais como comunidades humanas nas quais cada indivíduo pode estar com
todos os outros sem estar corporalmente. São comunidades sem geografia. E esses para
poderem existir, dependem da ajuda dos computadores e das redes que interligam
computadores. São as tecnologias digitais do virtual que libertam as comunidades virtuais da
geografia.
Essas comunidades podem ser mais ou menos estáveis, dependendo da constância e
da fidelidade de seus membros. Podem ser igualmente mais ou menos abertas.
Usualmente se definem e se constituem a partir de um tema ou interesse, que
congrega os indivíduos que a compõem. Não é preciso destacar a variabilidade tanto
de indivíduos que participam dessas comunidades quanto dos temas em torno dos
quais se formam (GONÇALVES, 2000, p. 188).
Howard Rheingold, tido como pioneiro no debate sobre comunidades virtuais, as define
como: “Agregados sociais surgidos na Rede, quando os intervenientes de um debate o levam
por diante em número e sentimento suficientes para formarem teias de relões pessoais no
ciberespaço” (RHEINGOLD, 1996, p. 18).
Um dos aspectos interessantes de sociabilidade proporcionada pelas comunidades
virtuais é que o processo de formação do laço de afinidades sociais sofre uma inversão. De
acordo com Marcos Palacios:
Nos processos sociais da vida social estamos acostumados a encontrar fisicamente
as pessoas, conhecê-las pouco a pouco e, na medida em que aprofundamos tal
conhecimento, vamos, cada vez mais, intercambiando informações, identificando
áreas de interesse comum e interagindo em função delas e, nesse processo,
conhecendo-as. Nas comunidades virtuais, o processo parece inverter-se:
interagimos inicialmente, de maneira muitas vezes profunda, em função de
interesses comuns previamente determinados, conhecemos as pessoas e, então, e
quando possível, encontramos fisicamente tais pessoas (PALACIOS, 1998, on-
line).
20
Tendo observado essa inversão, Rheingold, nos faz a pergunta: como fazemos amigos?
O próprio autor nos responde quando observa que nas comunidades tradicionais buscamos
20
Disponível em: <http://web.archive.org/web/20010217070329/http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/palacios/
cotidiano.html>. Acesso: 10 jul 2005.
51
estabelecer relações com vizinhos, colegas de trabalho, entre amigos dos nossos amigos,
enfim, com alguém que desejamos compartilhar nossos interesses e valores. Depois de
trocarmos informações e conversamos sobre interesses em comum às vezes nos tornamos
amigos. Vejamos a descrição do próprio autor:
Numa comunidade virtual podemos ir diretamente ao lugar onde os assuntos
preferidos são discutidos e ficamos conhecendo alguém que partilhe dos mesmos
gostos ou use as palavras de uma maneira atraente. Como tal, o assunto de discussão
é o endereço: não podemos simplesmente pegar no telefone e pedir para ligar a
alguém interessado em falar sobre arte islâmica ou vinhos da Califórnia, mas
podemos participar de uma conferência por computador sobre quaisquer desses
tópicos e depois estabelecermos uma troca de correspondência com participantes até
então desconhecidos (RHEINGOLD, 1996, p. 44).
O autor continua destacando que a forma de fazer amigos no ciberespaço aumenta
consideravelmente se formos comparar a forma tradicional de estabelecermos amizades
dentro do nosso universo de referência. Sem podermos nos ver fora do ciberespaço, o sexo, a
idade, a nacionalidade e o aspecto físico não se revelam num primeiro momento, só se
revelam se optarmos por tornar públicas algumas dessas características.
Quem tem dificuldades em fazer novas amizades devido a deficiências físicas
descobre que nas comunidades virtuais é tratado como sempre desejou: um ser
racional, capaz de transmitir idéias e sentimentos, e não como um corpo que tem
essa ou aquela aparência ou deficiência (RHEINGOLD, 1996, p. 43).
As considerações levantadas por Rheingold nos remetem ao autor Manuel Castells
quando este se refere à pesquisa empírica realizada pelo sociólogo Barry Wellman sobre o
surgimento das comunidades virtuais. Wellman e seus colaboradores analisaram os resultados
da pesquisa e publicaram uma série de artigos entre os anos de 1996 e 1999. Num desses
artigos, o sociólogo nos faz lembrar que “as ‘comunidades virtuais’ não precisam opor-se às
‘comunidades físicas’: são formas diferentes de comunidade, com leis e dinâmicas
específicas, que interagem com outras formas de comunidade” (CASTELLS, 2003, p. 444).
Entretanto, explica Wellman, as comunidades virtuais, por não adotarem o mesmo
modelo de comunicação e interação de uma comunidade física real, não devem ser
consideradas imaginárias elas funcionam num plano intermediário ao da realidade. São
redes sociais baseadas em laços fracos diversificados e especializados, capazes de gerar
52
reciprocidade e apoio através de uma interação dinâmica. Segundo o autor, as comunidades
virtuais têm sua própria dinâmica: a Rede é a Rede.
Transcendem a distância, a baixo custo, costumam ter natureza assincrônica,
combinam a rápida disseminação da comunicação de massa com a penetração da
comunicação pessoal, e permitem afiliações múltiplas em comunidades parciais.
Ademais, não existem no isolamento de outras formas de sociabilidade. Reforçam a
tendência de “privatização da sociabilidade” – isto é, a reconstrução das redes
sociais ao redor do indivíduo, o desenvolvimento de comunidades pessoais, tanto
fisicamente quanto on-line (CASTELLS, 2003, p. 446).
Barry Wellman, assim como Rheingold, acredita que as relações estabelecidas através
do ciberespaço oferecem a oportunidade de vínculos sociais para pessoas que, caso contrário,
viveriam vidas sociais mais limitadas, em função de seus vínculos estarem cada vez mais
dispersos espacialmente.
Os internautas, sendo seres sociais, muitas vezes acessam a Internet não para buscar
informação, mas também para buscar companhia, apoio social e um sentimento de pertença.
Por exemplo, enquanto a maioria dos usuários mais idosos da “SeniorNet” relataram ter
entrado na Internet para buscar informação, perto da metade (47%) também entra para obter
companhia. A atividade mais popular é o chat. Por um período de quatro meses, as atividades
mais intensas foram: o e-mail, os fóruns, as conferências para uso pessoal; enquanto que o
acesso às notícias, aos boletins informativos, as bibliotecas e aos bancos de dados foram os
menos utilizados. Além disso, a “SeniorNet” fornece o apoio de conselheiros para pessoas
deprimidas, que de outra forma seria inacessível (WELLMAN; GULIA, 2000).
21
Um membro da comunidade relatou que quando tem insônia acessa a Internet e logo
encontra alguém para conversar, rir ou mesmo trocar idéias. Existem outros exemplos de
possibilidades on-line além da busca por informação: apoio emocional, obtenção de
companhia, conselhos etc. Howard Rheingold descreve sua experiência na rede WELL
(Whole Earth ‘Lectronic Link) que, a partir do verão de 1985, passou a reunir pessoas na
frente da tela do computador a fim de contar anedotas, discutir, trocar experiências e
21
Disponível em: <http://members.fortunecity.com/cibercultura/vol6/comucomo.html>. Acesso: 15 jul 2005.
53
conhecimentos, negociar, desenvolver amizades, namoros, paqueras, jogar e também produzir
muita conversa fiada.
As pessoas das comunidades virtuais fazem tudo o que as pessoas na vida real
fazem, mas estão desprendidas dos seus corpos. Claro que não se pode nem beijar
nem esmurrar o nariz de ninguém, embora muito possa acontecer dentro desses
limites. Milhões de pessoas sentem-se atraídas, mesmo viciadas, pelas comunidades
unidas por computador (RHEINGOLD, 1996, p. 16).
Nas comunidades virtuais as pessoas estão mais interessadas em estabelecer uma
proximidade intelectual e emocional do que numa proximidade física. As relações entre as
pessoas numa sala de chat são mantidas enquanto os participantes se sentem fazendo parte de
um grupo e responsáveis pela sustentação de suas relações. No tipo ideal de comunidade
clássica – fundamentada geograficamente e caracterizada pela proximidade física – essa
noção pode passar muitas vezes despercebida por, muitas vezes, não precisar de qualquer
aproximação emocional.
A ausência de corpo e a possibilidade de invenção de identidades, sem levar em conta
que essas relações são mediadas por uma tela e por um teclado que servem às vezes de
interface, superfície de comunicação, possibilita aos seus participantes o anonimato. Segundo
Márcio Gonçalves, esse anonimato funciona por tornar mais fácil a entrega e a troca de
confissões por serem impessoais. “A experiência de revelar segredos para um desconhecido
que não sabe quem somos pode ser mais fácil de ser realizada do que a de relatar segredos e
fantasias pra pessoas conhecidas e com as quais convivemos fora do ciberespaço”
(GONÇALVES, 2000, p. 206).
Wellman e seus colaboradores entendem que o impacto da comunicação via Internet
sobre a intimidade física e a sociabilidade, bem como os temores do empobrecimento da vida
social, estão fora de contexto. Em suas pesquisas o autor constata, em algumas redes
estudadas, que o uso mais intenso da Internet leva a mais vínculos sociais, inclusive físicos.
Apontando que a Internet favorece a expansão e a intensidade dessas centenas de laços fracos
54
gerando uma camada fundamental de interação social para as pessoas que vivem num mundo
tecnologicamente desenvolvido.
Ao analisarmos a sociabilidade na Rede torna-se necessário estabelecermos uma
distinção entre os laços fracos e os laços fortes. Castells, continuando a citar o estudo de
Barry Wellman, afirma que uma das vantagens da Rede é a possibilidade da criação de laços
fracos com desconhecidos, num modelo igualitário de interação, no qual as características
sociais são menos influentes na estruturação, ou mesmo no bloqueio da comunicação.
Parece que as comunidades virtuais são mais fortes do que os observadores em geral
acreditam. Existem indícios substanciais de solidariedade recíproca na Rede, mesmo
entre usuários com laços fracos entre si. De fato, a comunicação on-line incentiva
discussões desinibidas, permitindo assim a sinceridade (CASTELLS, 2003, p. 445).
Para elucidar um pouco melhor o entendimento de laços fracos e laços fortes
apontamos a análise proposta por Raquel Recuero onde ela assinala como os laços sociais
podem ser percebidos como fracos e fortes:
Os laços fortes são aqueles que se caracterizam pela intimidade, pela proximidade e
pela intencionalidade em criar e manter uma conexão entre duas pessoas. Os laços
fracos, por outro lado, caracterizam-se por relações esparsas, que não traduzem
proximidade e intimidade. Laços fortes constituem-se em vias mais amplas e
concretas para as trocas sociais, enquanto os fracos possuem trocas mais difusas.
(RECUERO, 2005, on-line).
22
Recuero chama atenção que a divisão entre os laços sociais em fortes e fracos é uma
denominação reducionista, embora amplamente utilizada e popular. Isso porque nos levam a
acreditar que um determinado laço seria sempre forte ou fraco, quando, na realidade,
dependendo do tempo e da quantidade de interação investida na conexão, um laço pode ter
diferentes gradações.
22
“Um estudo do capital social gerado a partir de redes sociais no orkut e nos weblogs”. Trabalho apresentado na XIV
Compós / 2005.
55
2.3. Do espaço virtual ao espaço físico
Na conferência Parental da rede WELL, dezenas de pessoas espalhadas pelas cidades
americanas discorrem sobre um interesse comum – a condição de pai e mãe – apesar de nunca
ou raramente terem se encontrado fisicamente. Segundo Rheingold, a conferência passou por
alguns momentos de crise que acabaram servindo de suporte para ampliar a união e preparar
seus membros para acontecimentos mais sérios, aproveitando para citar como exemplo o caso
de uma menina japonesa que passou por momentos delicados ao enfrentar uma traqueotomia.
Passadas algumas semanas de sua recuperação, o pai descreveu sua experiência numa
publicação do magazine Whole Earth Review:
Antes disso ter acontecido, o écran do computador nunca tinha sido um lugar onde
procuraria consolo, pelo contrário. Pois é, mas naquelas noites que ficava até tarde
ao pé da minha filha sentava-me em frente do computador, ligava para WELL e
começava a divagar. (...) Qualquer dificuldade é mais difícil de ultrapassar quanto
estamos sozinhos; não companhia, não apoio. Ao escrever o meu diário num
computador ligado à linha telefônica, encontrei solidariedade e conforto neste meio
inesperado (RHEINGOLD, 1996, p. 36).
Os participantes da conferência Parental, muitas vezes separados geograficamente,
conseguiram estabelecer uma relação próxima e sincera passando a sentir necessidade de se
encontrar pessoalmente. Desse encontro, originalmente organizado no âmbito da conferência,
surgiu a idéia do piquenique anual de Verão da Rede WELL, marcado para acontecer numa
área próxima à baia de São Francisco.
Durante o ano todo tínhamos estado envolvidos em intensas conversas on-line e,
quando veio o verão, começou a falar-se em fazermos algo em conjunto para
descontrair, como fazer um churrasco e levar as crianças. Como é típico na WELL, a
coisa rapidamente atingiu as proporções de uma festa geral da rede, organizada pela
conferência Parental (RHEINGOLD, 1996, p. 36-37).
Continuando a citar o autor, destacamos seu entusiasmo ao descrever o desenrolar do
piquenique num domingo ensolarado de verão:
Foi um piquenique de uma comunidade americana normal pessoas que gostam da
companhia uma das outras, levando seus filhos para participar de uma reunião, jogar
softball e fazer um churrasco. Podia ser qualquer grupo de igreja ou da associação
de pais e professores; neste caso, era o lado inquestionavelmente material de uma
comunidade virtual (RHEINGOLD, 1996, p. 37).
56
O primeiro piquenique da conferência Parental obteve um saldo tão positivo que acabou
se tornando um acontecimento anual de verão com a participação das crianças em todas as
outras festas da WELL. Pouco tempo depois do piquenique ter se transformado num evento
tradicional, instituíram um outro ritual de encontro no inverno, os interessados se deslocavam
até uma cidade próxima a fim de participar de uma festa beneficente anual no circo da família
Pickle. Um dos diretores do circo, considerado um membro estimado na rede WELL, sempre
acomodava seus convidados em lugares privilegiados. Ao final do espetáculo, quando o
público se retirava, todos se reuniam em torno dos artistas e dos empregados para bebericar e
comer uns petiscos.
Ao citar as comunidades virtuais, Manuel Castells, descreve que tanto off-line quanto
on-line, os laços fracos tornam mais fácil a ligação das pessoas com diversas características
sociais, aumentando assim a sociabilidade para além dos limites socialmente demarcados do
auto-reconhecimento. Finalizando sua análise, Castells, lança a pergunta: as comunidades
virtuais são comunidades reais?
Sim e não. São comunidades, porém não são comunidades físicas, e não seguem os
mesmos modelos de comunicação e interação das comunidades físicas. Porém não
são “irreais”, são redes sociais interpessoais, em sua maioria baseadas em laços
fracos, diversificadíssimas e especializadíssimas, também capazes de gerar
reciprocidade e apoio por intermédio da interação sustentada (CASTELLS, 2003, p.
446).
Voltando a análise proposta por Rheingold e pontuando suas experiências pessoais
ante a conferência Parental da rede WEEL, propomos questões a serem observadas pelo que
entendemos por comunidade virtual e citamos uma nova experiência descrita pelo autor para
apontar um momento de crise na conferência que acabou por se transformar numa fonte
geradora de reciprocidade e apoio.
Um dos freqüentadores mais assíduos e queridos, Phil Catalfo dispôs um tópico com o
nome Leucemia e no corpo do tópico descreveu que seu filho Gabriel de sete anos era
portador desta doença. Rheingold nos descreve:
57
Indivíduos que nunca tinham contribuído para a conferência Parental começaram a
fazer-se ouvir, como é o caso de um enfermeiro e de um casal de médicos que
ajudaram o Phil e o resto do pessoal a interpretar os relatos diários sobre contagens
sanguíneas e outros diagnósticos, tudo isto para além do contributo de duas pessoas
com conhecimento de causa, elas próprias vítimas da mesma doença
(RHEINGOLD, 1996, p. 39-40).
Passadas algumas semanas, depois de todos os participantes da conferência estarem
“peritos em doenças sanguíneas”, a leucemia do pequeno Gabe começou a regredir com a
utilização de quimioterapia.
Não nos cabe o julgamento se a utilização da Internet em busca de apoio emocional
é positiva ou negativa, acreditamos na possibilidade de estarmos presenciando um
novo formato de interação social sem nos esquecermos de levar em consideração
suas armadilhas e limitações. Alguns críticos apontam as comunidades virtuais
como desprovidas de calor humano, mas não se referem, por exemplo, ao apoio e a
informação recebidos por Phil e outros membros da conferência Parental quando
mais necessitavam (RHEINGOLD, 1996, p. 41).
Sendo a Internet um fato inegável e uma realidade que, ao que tudo indica, veio para
ficar, Gonçalves nos aponta:
Talvez devamos nos perguntar não se ela aproxima ou distancia os indivíduos,
pergunta sem sentido na medida em que excessivamente genérica, mas antes como a
Internet ao mesmo tempo favorece a redução de algumas distâncias criando outras.
A Internet não sendo nem absolutamente boa nem absolutamente má, devemos nos
perguntar como e onde é ao mesmo tempo boa e má, referindo esses adjetivos às
situações locais que lhes dão sentido. Devemos igualmente levar em conta novos
modos de se relacionar e não apenas melhoria ou destruição de modos antigos
notadamente a idéia de comunidade virtual, amor virtual, sexo virtual etc.
(GONÇALVES, 2000, p. 204).
Os aspectos positivos mencionados provocam certo fascínio, entretanto, as pessoas, na
busca do exercício das trocas, relacionamentos e seus conhecimentos com os suportes de rede,
não perderão o equilíbrio da sua vida real e concreta. Esses indivíduos procuram, não a
competição entre o real e o virtual, mas o melhor proveito de ambas as formas para efetivação
de suas vidas. (FONSECA; COUTO, 2004)
58
2.4. Comunidades virtuais e o orkut
A fim de atualizar nossa análise não podemos deixar de citar o site de relacionamentos
Orkut, apresentado em janeiro de 2004 por Orkut Buyukkokten, programador do site de busca
Google, que trouxe de volta o interesse pelo debate sobre a formação de comunidades
virtuais.
Esse importante tema da cibercultura freqüentemente trata com alguma paixão a
característica gregária desses grupos, a possibilidade de fazer novos amigos e
reencontrar antigos conhecidos, de trocar idéias, além do intercâmbio sobre os mais
diversos assuntos. (PRIMO, 2005, on-line).
23
O funcionamento do Orkut é simples. Para participar é necessário receber um convite,
via e-mail, de alguém conhecido, onde um link que viabiliza o acesso ao
<http://www.orkut.com> vem relacionado no corpo da mensagem. Ao acessar a página, o
novo membro da comunidade encontra disponível um perfil do seu anfitrião com seus
dados pessoais, profissionais e indicações de preferências, inclusive sua foto e a de seus
amigos. Destacamos que as fotos pessoais podem ser trocadas no momento que o usuário
assim desejar, podendo ser armazenado em seu álbum até doze fotos.
A autora Crislaine Coscarelli, em seu artigo disponibilizado on-line “O fenômeno
Orkut” nos responde a pergunta sobre a diferença do site para as outras comunidades
virtuais e o motivo de tanto sucesso. Segundo as palavras da autora a explicação é simples:
Ele possibilita ao usuário criar uma página personalizada na qual exibe fotografias e
dados pessoais, ou seja, ele dá uma "cara" ao participante, dando um charmoso ar de
intimidade à comunidade. Outro diferencial é que ele permite que você navegue pela
rede de relacionamento de seus amigos ou conhecidos, uma forma um pouco mais
palpável de comprovar a famosa teoria de six degrees(que defende que com seis
relacionamentos você pode ter acesso a qualquer pessoa no mundo) ou aquela piada
de “que todo mundo conhece alguém que conhece alguém que conhece o Kevin
Bacon”. (COSCARELLI, 2004, on-line).
24
A base de funcionamento do Orkut são os perfis e as comunidades. Os perfis são
criados pelas pessoas ao se cadastrar e indicam também quem são seus amigos e as
23
“Conflito e cooperação em interações mediadas por computador”. Trabalho apresentado na XIV Compós / 2005.
24
Disponível em: <http://www.universia.com.br/html/materia/materia_eeab.html>. Acesso: 06 ago. 2005.
59
comunidades são criadas por indivíduos que agregam grupos com interesses comuns e
funcionam como fóruns, com tópicos e mensagens.
Atualmente existem aproximadamente nove milhões
25
de pessoas cadastradas no
Orkut e o sucesso entre os brasileiros foi tanto que a linguagem principal, o inglês, foi
redirecionada para o português em abril de 2005. Na matéria “Maioria brasileira no Orkut
irrita americanos”, publicada no Jornal do Brasil em agosto de 2004
26
, o repórter nos aponta
que, segundo estatísticas divulgadas pelo site, dos 1.085.542 de usuários, 50,94% são
brasileiros contra 18,92% de americanos. A insatisfação fica, principalmente, por conta da
invasão dos brasileiros nos fóruns de discussão criados por eles.
Na mesma matéria, podemos observar o comentário do professor Henrique Antoun
que descarta a possibilidade de modismo e explica o motivo de tanto sucesso. “No Brasil, não
existe a tradição de interação em rede. Deve ser por isso que o Orkut avança de forma
avassaladora. Se ele fosse estendido para celulares, a disseminação seria ainda mais rápida.”
Cabe destacar que na mesma velocidade com que o site ganha adeptos, as críticas em
relação a sua utilidade prática começam a pipocar. Alguns, como o jornalista Rafael Rigues,
apontam que o Orkut não deve ser considerado como uma espécie de brincadeira.
O site é viciante e cresceu em uma velocidade tão absurda que mostrou para o
próprio Google uma regra básica que se aprende em um bom curso de marketing, ou
seja, tenha um “plano B” para o fracasso, mas tenha também um “plano B” para o
sucesso. Mas o que o Google ganha com isso? Simples, basta ligar as duas bases, o
que pode ser feito facilmente, que ele passa a contar com uma base de dados
riquíssima e incrivelmente completa sobre todos os usuários do Orkut que visitem o
Google. E estamos falando de informações muito mais valiosas do que os outros
portais possuem como data de nascimento, opção sexual, desejos e muitas outras
além do tradicional nome, e-mail e endereço. (RIGUES, 2004, on-line).
27
Outros, como o também jornalista Marcelo Coelho, admitem que o Orkut tem por
objetivo o mesmo tipo de acontecimento em curso na Internet e explica:
25
Dados de 03 set. 2005, tirados do meu perfil: <http://www.orkut.com/Home.aspx?xid=11310165035775887222>.
26
Disponível em: <http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/internet/2004/08/01/jorinf20040801006.html>. Acesso: 11
ago. 2005.
27
Disponível em: <http://www.magnet.com.br/bits/especiais/2004/03/0001>. Acesso: 20 ago. 2005.
60
Explicaram-me uma vez que a principal preocupação de provedores, sites e
congêneres resume-se apenas numa coisa: importa conseguir que o usuário passe
cada vez mais tempo diante do computador. As salas de chat, os blogs, as
enciclopédias, horóscopos on-line... Tudo, enfim, que é oferecido na rede e aqui o
termo “rede” é bem apropriado destina-se a produzir um público virtual cativo,
grudado ali, exposto à publicidade, pronto a consumir num clique (COELHO, 2004,
on-line)
.
28
Além desses aspectos, deve-se também refletir sobre o crescimento vertiginoso de uma
rede de relacionamentos e as razões, na contemporaneidade, que levam pessoas a assumirem a
necessidade de estabelecer elos, fazer amigos ou fixar nculos afetivos. Assim, o Orkut
expõe uma importante e necessária característica do homem na sua condição de se relacionar,
ouvir, fazer crítica e elogios. Citando mais uma vez o jornalista Marcelo Coelho, destacamos
sua conclusão sobre a utilização do site para estabelecer relacionamentos interpessoais
possibilitados pela Internet.
Na vida cotidiana é sempre assim e o Orkut simplesmente digitalizou a lógica que
ordena as relações de qualquer pessoa com seus semelhantes. (...) Amizades
legítimas podem ser alimentadas via Orkut, como pelo telefone ou pelas cartas
manuscritas; mas tamm se pode buscar no site apenas a estrelinha, a cifra, o
distintivo – as fichas de plástico da amizade (COELHO, 2004, on-line).
Para dar um exemplo empírico de que é possível estabelecer amizades a partir da
participação em comunidades no Orkut, destaco a comunidade “Ipanema”
29
(bairro localizado
na zona sul do Rio de Janeiro), onde há, mais ou menos, um ano seus integrantes promovem
encontros da comunidade em lugares públicos previamente selecionados,
30
batizados com o
nome de “orkontros”.
Tomada por misto de experiência e curiosidade, fui ao encontro dos meus conhecidos
virtuais. Não estive no primeiro nem no segundo, mas no quinto marquei presença no bar
Irish Pub
31
, na Praça General Osório. O que encontrei? Pessoas muito simpáticas que criam
um ambiente muito favorável para estabelecer novos conhecimentos. Apesar de uma das
características do local ser a música alta, não foi difícil estabelecer uma boa conversa com
28
Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=284ASP020>. Acesso: 27 ago. 05.
29
Disponível em: <http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=51614 >.
30
Disponível em: <http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=51614&tid=8368708>.
31
Disponível em: <http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=51614&tid=8117596>.
61
quem estava mais próximo. A troca de lugares foi estimulada para conhecermos os mais
distantes.
A comunidade, criada no dia 2 de maio de 2004, atualmente conta com 13,5 mil
membros dos quais uma média de vinte pessoas participam dos encontros semanais.
Destacamos a importância da atuação do dono da comunidade, Edgard Bernardino e de sua
amiga Angelita A.A., que estão sempre relacionando tópicos para estimular a presença dos
mais tímidos. Aliás, a maioria dos tópicos da comunidade está relacionada aos encontros. Por
exemplo: no mês de agosto foram postados vinte e seis tópicos
32
, dos quais dez estão entre os
convites e as impressões depois dos encontros. No mesmo período seis tópicos foram criados
por membros da comunidade e não obtiveram resposta.
Minha freqüência nos encontros é muito esporádica, mas todas as vezes que participo
me sinto como se estivesse indo ao encontro de velhos amigos. Com alguns dos participantes
estabeleci um relacionamento mais próximo e no intervalo da minha ausência trocamos e-mail
ou rápidas mensagens através do MSN. Chamo atenção para o fato de que dificilmente
travaria algum relacionamento com os mais próximos se não fosse através da intermediação
da comunidade.
Concluímos esse capítulo utilizando um relato entusiasta do autor Howard Rheingold:
Tenho bons amigos nos quatro cantos do mundo que nunca teria conhecido sem a
intermediação da Rede, e um círculo alargado de conhecimentos pode fazer uma
enorme diferença quando se decide fazer a experiência de visitar uma cultura
estranha. Sempre que tenho viajado fisicamente nos últimos tempos, encontrei
comunidades sólidas que conheci on-line meses antes de partir (RHEINGOLD,
1996, p. 23).
32
Disponível em: <http://www.orkut.com/CommTopics.aspx?cmm=51614>.
62
3.1. O eu descentrado – identidades na era da internet
“Nestes últimos tempos, o computador tornou-se algo mais
do que um misto de ferramenta e espelho: temos agora a
possibibilidade de passar para o outro lado do espelho.
Estamos aprendendo a viver em mundos virtuais.”
Sherry Turkle
No capítulo anterior, ao analisarmos as comunidades virtuais, focamos nosso interesse
na sua constituição como uma organização social e em como as pessoas, atualmente,
estabelecem laços sociais e afetivos ao interagirem no espaço virtual. Observamos que, em
algumas situações, o vínculo emocional estabelecido on-line acaba por levar essas
comunidades a migrar para fora dos limites da Rede, o grupo sai do virtual e vai para o espaço
físico real ocupar lugares onde se torna possível o prolongamento dessa ligação afetuosa
estabelecida no ciberespaço.
O constante desenvolvimento da Internet e sua conseqüente popularização m
possibilitando às pessoas a experimentação de novos processos sociais comunicativos, como
no caso das comunidades virtuais. Entretanto, é através da navegação em novos territórios
existenciais que os usuários vêm experimentando a possibilidade de vivenciar novas e
diversas identidades. Neste capítulo estaremos propondo uma análise da construção identitária
desse usuário que por tanto tempo foi visto como um sujeito centrado, unificado e ancorado
num mundo estável. Embora estejamos focados na questão do “eu”, não temos a pretensão de
traçar um recorte psicanalítico desse indivíduo e seus infinitos desdobramentos; por esse
motivo estaremos voltando nossa abordagem para interação do sujeito com os planos internos
e externos da existência.
63
3.2. O descentramento do sujeito
As transformações na concepção da subjetividade estão relacionadas ao surgimento de
uma vivência individual num mundo desvinculado de uma ordem secular e divina. No século
XX, sedimentou-se uma concepção mais sociológica, mais relacional, onde o indivíduo se
assume como criação da sociedade. Atualmente estamos assistindo a substituição de uma
identidade concebida de uma forma clara e homogênea por um descentramento do sujeito que
define a identidade através da convicção numa narrativa pessoal. Na sociedade moderna e
complexa, a construção da identidade é feita dentro de um contexto onde diferentes esferas da
vida social se misturam e se sobrepõe, resultando algumas vezes em conflito.
33
A propósito da identidade, falar de uma oposição substancialismo/construtivismo
que chega até hoje sem que a questão esteja satisfatoriamente resolvida. De um lado,
temos o Eu como unidade essencialmente inalterável emergente no pensamento
ocidental desde Descartes a Husserl. Do outro, a identidade vista como uma
construção relacional aonde intervém a sociedade ou até o próprio poder de escolher
e decidir em nome de uma liberdade a qual estamos fatalmente condenados pela
contingência que modernidade introduziu (CORREIA, 1999, on-line).
34
Na contemporaneidade, ou pós-modernidade, como prefere Zygmunt Bauman e outros,
podemos dizer que estamos assistindo a prevalência desta última tendência: a identidade
como criação de uma individualidade própria e particular, um eu singular e único, com
possibilidades de realização aparentemente ilimitadas. Mas aqui uma pergunta se faz
pertinente: como entender a chamada “crise de identidade”? Utilizando a análise de Stuart
Hall, apontaremos algumas importantes rupturas tanto em nível teórico quanto político que
colaboraram para o surgimento da idéia de identidade enquanto algo não definível e não
fixado.
De acordo com Hall, o primeiro grande descentramento refere-se à releitura do
pensamento de Karl Marx. A partir da afirmação de que os “homens fazem a história, mas
33
O termo conflito traduz os movimentos estéticos e culturais relacionados à modernidade.
34
Disponível em: <http://www.labcom.ubi.pt/agoranet/03/correia-joao-carlos-alice-nas-janelas-do-ecra.pdf>. Acesso: 26 set.
2005.
64
apenas sob as condições que lhes são dadas”, os novos intérpretes do pensamento marxista
leram isso como os indivíduos não podendo ser os “autores” ou os agentes da história, uma
vez que agiam apenas sob as condições históricas e culturais fornecidas pelas gerações
anteriores. O estruturalista marxista Louis Althusser afirma que Marx expulsou as categorias
filosóficas do sujeito do empirismo, da essência ideal, de todos os domínios em que os
indivíduos tinham reinado de forma suprema. Embora Althusser tenha sido amplamente
criticado, sua teoria teve um impacto considerável sobre muitos ramos do pensamento
moderno (HALL, 2003, p. 36).
O segundo momento do descentramento pode ser observado com a descoberta do
inconsciente por Freud, onde Hall nos aponta que, de acordo com a teoria freudiana, nossas
identidades, nossa sexualidade e a estrutura dos nossos desejos são formadas com base em
processos psíquicos e simbólicos do inconsciente. Tomando como base a lógica proposta por
Freud, Hall argumenta que essa teoria põe em xeque o conceito do sujeito racional provido de
uma identidade fixa e unificada “penso, logo existo”, de Descartes. O psicanalista Jacques
Lacan, numa leitura do pensamento de Freud, nos diz que “a imagem do eu como inteiro e
unificado é algo que a criança aprende apenas gradualmente, parcialmente, e com grande
dificuldade” (HALL, 2003, p. 37). A criança, segundo Lacan, não se desenvolve a partir do
seu núcleo interior mas sim através das complexas negociações psíquicas inconscientes que
estabelece, principalmente na primeira infância, com as figuras paternas e maternas. Nessa
fase, identificada pelo psicanalista como a “fase do espelho”,
A criança que não está ainda coordenada e não possui qualquer auto-imagem como
uma pessoa inteira, se ou se “imagina” a si própria refletida seja literalmente,
no espelho, seja figurativamente, no “espelho” do olhar do outro – como uma
“pessoa inteira” (Lacan apud HALL, p. 37).
Segundo o psicanalista, a constituição do eu no olhar do Outro é o início da relação da
criança com os sistemas simbólicos exteriores a ela, destacando ser esse o momento da sua
entrada nos vários sistema de representação simbólico onde estão incluídos a língua, a cultura
65
e a diferença sexual. Os sentimentos contraditórios que acompanham essa complexa entrada
são aspectos chave para formação do inconsciente do sujeito. Sentimentos como amor e ódio,
bondade e maldade, desejo e sua negação, são aspectos que deixam o sujeito dividido e que
vão permanecer com ele para o resto da vida. Entretanto, conforme nos aponta Hall, mesmo o
sujeito se sentindo dividido ele vai vivenciar sua identidade como se fosse unificada e,
seguindo essa linha de pensamento psicanalítico, é nessa divisão que se encontra a origem
contraditória da identidade.
A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos
inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento.
Existe sempre algo “imaginárioou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece
sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada” (HALL,
2003, p. 38).
Assim, ao invés de tratarmos a identidade como um processo acabado, devemos
enxergá-la como um processo em andamento sob o ângulo da identificação. A formação da
identidade, conforme nos aponta o autor, não acontece somente a partir dessa plenitude que se
encontra dentro de nós como indivíduos, devemos também percebê-la através de um processo
de identificação com o nosso exterior, principalmente pela forma como imaginamos ser
percebido pelos outros. “Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a ‘identidade’ e
construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade
porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude” (ibid.,id., p. 39).
As leituras posteriores identificam que os processos inconscientes não podem ser
facilmente vistos ou examinados, precisam ser interpretados por técnicas psicanalíticas e não
simplesmente colocadas à prova. De acordo com Hall, grande parte do pensamento moderno
sobre a vida subjetiva e psíquica é “pós-freudiana”, no sentido da utilização do trabalho de
Freud sobre o inconsciente ser incontestável, mesmo que algumas de suas hipótese sejam
rejeitadas. Novamente identificamos um abalo no entendimento do sujeito como um ser
racional constituído por uma identidade fixa e estável.
66
O terceiro momento proposto por Stuart Hall é o pensamento do lingüista Ferdinand
Saussure, onde este afirma que a língua está no campo social e o ato da fala (ou discurso)
encontra-se na esfera individual. Segundo Saussure, ao falarmos uma língua não significa que
estamos somente expressando nosso pensamento mais interiorizado, significa, também, que
estamos colocando em prática um ilimitado número de significados embutidos em nossa
língua e em nossos sistemas culturais (ibid., id., p. 40).
Os significados das palavras não são fixos, surgem das relões de similaridade e
diferença que as palavras têm com outras palavras no interior do código da língua. Por
exemplo, identificamos que é o dia por sabermos que não é a noite, eu sei quem eu sou em
relação ao outro que não sou eu. Numa referência ao trabalho de Lacan, Hall nos aponta que
“a identidade, como o inconsciente, está estruturada como a língua” (HALL, 2003, p. 41).
Influenciado por Saussure, o filósofo francês Jacques Derrida, argumenta que as
palavras são “multimoduladas”, não podendo o indivíduo fixar um significado final, um
significado de sua identidade. Nossas afirmações estão calcadas em proposições e premissas
das quais não temos consciência, elas são governadas pelo movimento da nossa língua. De
acordo com o filósofo, tudo o que dizemos tem um antes e um depois e esse espaço livre entre
os dois pode ser preenchido por outras pessoas. “O significado é inerentemente instável: ele
procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença)”
(ibid, id., p. 41). Ou seja, sempre existem significados suplementares diante dos quais não
temos qualquer ingerência, eles surgirão e subverterão nossas tentativas de criar mundos fixos
e estáveis.
O quarto e principal descentramento do sujeito e, conseqüentemente, de sua identidade
acontece no trabalho do filósofo francês Michel Foucault. Através de seus inúmeros estudos
sobre a genealogia do sujeito moderno, Foucault chama atenção para um novo tipo de poder,
o poder disciplinar, que no transcorrer do século XIX tem seus olhos voltados para regulação
67
e vigilância da espécie humana e que, num segundo momento, esses mesmos olhos se
voltarão para o indivíduo e o seu corpo.
Como nos aponta Focault, “a disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos
indivíduos no espaço. Para isso utiliza diversas técnicas”. Estando os vagabundos e os
miseráveis encarcerados nas prisões e nas clínicas, outros encarceramentos mais discretos,
porém não menos insidiosos e eficientes, aconteceram. O colégio, seguindo o modelo do
convento, impõe um regime interno de educação perfeito. Os quartéis, por sua vez, isolados
com suas grandes muralhas servem para fixar o exército e manter a tropa disciplinada e em
ordem (FOUCAULT, 2003, p. 122). Entretanto, destaca Foucault, o princípio de clausura não
é constante, nem indispensável, nem suficiente nos aparelhos disciplinares, o espaço é
esquadrinhado de forma mais flexível e elaborada. “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada
lugar, um indivíduo.” O que importa na distribuição do espaço disciplinar é “estabelecer as
presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as
comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de
cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou méritos” (ibid., id., p. 123).
O poder disciplinar, segundo Foucault, é um poder que tem como função maior
“‘adestrar’ as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade
de elementos individuais pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e
continuidades genéticas, segmentos combinatórios”. A disciplina fabrica indivíduos (ibid., id.,
p. 143). Ao considerarmos o poder disciplinar um ponto de extrema importância no que tange
a produção de subjetividade, adiante faremos uma abordagem mais detalhada dos seus
desdobramentos.
Retomando o quinto e último descentramento proposto por Stuart Hall, analisaremos o
impacto do feminismo tanto como uma crítica teórica, quanto um movimento social. Segundo
o autor, a década de 60 foi marcada pelo surgimento de novos movimentos sociais, como a
68
revolução estudantil, os movimentos juvenis da contracultura e antiarmamentista, as lutas
pelos direitos civis e pela paz, assim como todos os movimentos associados ao ano de 1968
afirmaram tanto as dimensões subjetivas quanto as dimensões objetivas da política.
De acordo com Hall, cada um desses movimentos sociais evocava a proteção dos seus
sustentadores. Em oposição ao individualismo, esses movimentos das chamadas “minorias”
mulheres, gays, negros instaurava o nascimento histórico do que veio a ficar conhecido
como a política de identidade – uma identidade para cada movimento social.
O feminismo, dirigindo sua contestação à sujeição ao qual as mulheres eram mantidas e
tendo sua manifestação estruturada numa composição social dominada pelos homens, foi o
movimento social que proporcionou uma relação mais próxima com o descentramento do
sujeito cartesiano e sociológico, quando questionou a distinção entre dentro e fora, entre
privado e público, cunhando a proclamação do slogan: o pessoal é político (HALL, 2003, p.
45).
Enfatizando a questão política e social, o feminismo politiza a subjetividade através do
questionamento da forma como somos formados e produzidos como sujeitos generificados,
criando espaço para questão das diferenças que existem além da sexual, como, por exemplo,
homens/mulheres, mães/pais, filhos/filhas.
Ao longo da análise, foi possível observar mudanças conceituais de como o sujeito com
sua identidade fixa e estável passou a ser entendido como um sujeito descentrado com
identidades mais abertas, contraditórias, inacabadas e fragmentadas que fundam a
conceituação do sujeito contemporâneo. Entretanto, a fim de entendermos melhor a
constituição do sujeito reflexivo, retomaremos a questão do poder disciplinar, conforme
concebido por Foucault, onde o filósofo nos aponta como os dispositivos de vigilância
contribuíram para produção de subjetividades e identidades. A fim de atualizarmos nossa
análise, utilizaremos como suporte o artigo da autora Fernanda Bruno, “Máquinas de ver,
69
modos de ser: visibilidade e subjetividade nas novas tecnologias de informação e de
comunicação”, onde ela apresenta um estudo detalhado de como os dispositivos de vigilância,
inaugurados na modernidade, ganham novos contornos com as atuais tecnologias
comunicacionais.
3.3. Subjetividade: da interiorização a exposição
No referido artigo, Fernanda Bruno (2005, on-line)
35
nos aponta os nexos entre
subjetividade, visibilidade e tecnologia argumentando que, uma das definições do projeto
Vigiar e punir proposto por Foucault, é que a subjetividade não pode ser pensada em separado
dos dispositivos de visibilidade. As instituições disciplinares, encontrando seu modelo ideal
no panóptico, são máquinas de ver que produzem modos de ser. O moderno modelo de poder
ganha notoriedade por “induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade
que assegura o funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, 2003, p. 166), fazendo
com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo estando desconstituída de sua
ação. Num jogo de olhares e luminosidade o poder se torna uma coerção claramente visível
sobre quem se aplica, cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente
visível” (ibid., id., p. 167).
reside uma das principais características da tecnologia disciplinar e sua diferença
frente ao modelo de poder que a precede, baseado na soberania: a inversão do foco
de visibilidade no exercício do poder. O olhar não mais se volta para aqueles que
exercem o poder e sim para aqueles sobre quem o poder é exercido. Para o indivíduo
comum, ordinário e, ainda mais para os que estão aquém do comum e mediano o
desviante, o anormal. Trata-se de fato de um olhar individualizante, de um poder que
individualiza pelo olhar, tornando visível, observável, analisável, calculável o
indivíduo comum (BRUNO, 2005, p. 03, on-line).
36
Seguindo com a argumentação, Fernanda Bruno destaca que a astúcia panóptica
pretende que os próprios indivíduos, submetidos à visibilidade, se tornem ao mesmo tempo o
35
Disponível em: <http://www.ull.es/publicaciones/latina/bienaldecomunicacionmesa2.pdf>. Acesso: 14 out. 2005.
36
Disponível em: <http://www.ull.es/publicaciones/latina/bienaldecomunicacionmesa2.pdf>. Acesso: 14 out. 2005.
70
efeito e o instrumento do poder, passando a funcionar de maneira automática e quase
espontânea sobre aqueles mesmos a que se pretende sujeitar. Sendo esse um dos principais
motivos pelo qual o dispositivo moderno de vigilância e de visibilidade não opera na escala de
“cima para baixo” ou “de fora para dentro”, depende mais de todo um processo de
interiorização.
A eficácia do poder, sua força limitadora, passaram, de algum modo, para o outro
lado para o lado de sua superfície de aplicação. Quem está submetido a um campo
de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder, fá-las
funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscrevendo em si a relação de poder na
qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua
própria sujeição. Em conseqüência disso mesmo, o poder externo, por seu lado,
pode-se aliviar de seus fardos físicos; tende ao incorpóreo; e quanto mais se
aproxima desse limite, mais esses efeitos são constantes, profundos, adquiridos em
caráter definitivo e continuamente recomeçados: a vitória perpétua que evita
qualquer defrontamento físico e está sempre decidida por antecipação
(FOUCAULT, 2003, p. 168).
Assim, o olhar do outro deve constituir um olhar sobre si, abrindo todo um outro
campo de visibilidade que agora se situa no interior do próprio indivíduo através do seu
pensamento, desejos e paixões, devendo ser observado os vários sentidos da palavra, por ele
mesmo (BRUNO, 2005, p. 4). Somente assim pode-se perceber todo o processo de
transformação dos indivíduos previsto na máquina panóptica. Destaca a autora que uma certa
dose de sofrimento deve ser somada à visibilidade, fundamental para a requerida reforma que
deve ser na própria alma, mais do que nos corpos e comportamentos. E o próprio sofrimento
também deve encontrar sua sede não mais no corpo e sim na alma: a culpa. “Fazer sofrer a
alma, e não o corpo – eis a lógica de um poder que em vez de negar e reprimir uma
individualidade ou subjetividade constituída, produz uma subjetividade que julga e condena a
si mesma” (ibid., id., p. 4).
Segundo Fernanda Bruno, é a partir deste desdobramento incorpóreo introduzido pelo
mecanismo de adestramento, vigilância e observação dos corpos que podemos entender como
Foucault concebe a alma moderna ou, como efeito, qualquer outro nome que lhe tenha sido
atribuído – psiquismo, subjetividade ou consciência. É também a partir da célebre frase
71
cunhada por Foucault “Dar ao espírito poder sobre o espírito” (Foucault In: BRUNO, 2005,
p. 5) que devemos entender o funcionamento e o efeito desejado pelo panóptico. Ou ainda
na referência que Foucault faz a Julius
37
em sua descrição do panóptico: “bem mais que um
talento arquitetural: um acontecimento na ‘história do espírito humano’” (BRUNO, 2005, p.
5).
De todo modo, esse “espaçoprofundo e interior é concebido como uma realidade
mais autentica e verdadeira, que pode se distinguir ou mesmo se opor à
exterioridade, ainda que se constitua numa íntima relação com esta. E mesmo que os
princípios disciplinares prevaleçam no interior da relação consigo, eles estão neste
caso fundados num processo de identificação e não tanto de coerção (ibid., id., p. 5).
Diante da análise proposta por Fernanda Bruno, observamos o quanto a subjetividade e
o “espírito” moderno estão vinculados a um modo de exercício de poder que tem entre suas
principais táticas a exposição do indivíduo comum à visibilidade. Tal exposição, caminhando
junto com a subjetividade interiorizada, se afirma como dimensão ao mesmo tempo secreta e
verdadeira.
Na passagem da modernidade para contemporaneidade, olhando sob o foco das
tecnologias de comunicação, o indivíduo comum permanece no centro da visibilidade, mas
segundo outros formatos e com diferentes implicações na subjetividade. Fernanda Bruno,
considerando a trajetória destas tecnologias, da TV até a Internet, e comparando ao modelo
panóptico, nos aponta que é possível visualizar uma série de inversões, desvios e
deslocamentos na relação entre o indivíduo e visibilidade. Os argumentos com relação ao
advento dos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, são conhecidos por
serem interpretados como um novo dispositivo de poder e vigilância onde muitos vigiam
poucos, diferente do modelo panóptico, onde poucos vigiavam muitos (Bauman In: BRUNO,
2005, p. 6). Este novo dispositivo de poder, batizado por Thomas Mathiesen como Sinóptico,
promove mais uma vez uma inversão no foco de visibilidade. “O ato de vigiar desprende os
vigilantes de sua localidade, transporta-os pelo menos espiritualmente ao ciberespaço, no qual
37
JULIUS, N.H. Leçons sur les prisions. v.1. 1831, p. 384-386. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro:
Vozes, 2003.
72
não mais importa a distância, ainda que fisicamente permaneçam no lugar” (BAUMAN, 1999,
p. 60). Não importa mais se os alvos do Sinóptico, que agora deixaram de ser vigiados e
passaram a ser vigilantes, se movam ou fiquem parados.
Onde quer que estejam e onde quer que vão, eles podem ligar-se e se ligam na
rede extraterritorial que faz muitos vigiarem poucos. O Panóptico forçava as pessoas
à posição em que podiam ser vigiadas. O Sinóptico não precisa de coerção ele
seduz as pessoas à vigilância. E os poucos que os vigilantes vigiam são estritamente
selecionados (BAUMAN, 1999, p. 60).
O argumento proposto por Bauman, segundo Fernanda Bruno, é pertinente no que diz
respeito às novas formas de relacionamento entre o poder, os dispositivos de visibilidade e os
indivíduos. Entretanto, destaca que tal relação vem conquistando novos contornos tanto no
interior da TV quanto nas atuais tecnologias de comunicação e de informação, como a
Internet e os diversos dispositivos que vigoram no ciberespaço.
Nos dispositivos de vigilância contemporâneos a subjetividade não é imediatamente
exteriorizada, mas ainda assim se faz presente. Os indivíduos sob vigilância no ciberespaço,
particularmente nos bancos de dados eletrônicos, não são num primeiro momento pessoas
com uma identidade, uma personalidade que se conheça anteriormente. Só num segundo
momento, conforme destaca a autora, é que esta identidade passa a ser concebida através do
processamento e do cruzamento de vários dados e informações impessoais.
A subjetividade é exteriorizada na medida em que o que a caracteriza, o que a
“constitui” e a “compõe” são menos inclinações e desejos reclusos numa
interioridade que deve ser trazida à luz, do que um campo superficial de ações,
hábitos e transações eletrônicas dispostos em bancos de dados que, uma vez
analisados e classificados, irão projetar criminosos, consumidores, doentes,
trabalhadores, atuais ou potenciais. É da exterioridade da ação e do comportamento
que se extrai ou se projeta a subjetividade, com uma identidade e individualidade
que não estavam previamente pressentes (BRUNO, 2005, p. 8).
O ato de vigilância projetado e antecipado pelos atuais dispositivos de vigilância não se
interessa pela interioridade dos indivíduos e sim pela exteriorização dos comportamentos
potenciais. Aqui podemos notar um antagonismo com relação à modernidade: o foco de
intervenção não é mais a interioridade, o psiquismo, mas o comportamento, o campo de ações
exteriores e visíveis.
73
Outro aspecto analisado por Bruno é o “olhar” do outro e o seu papel na constituição de
subjetividades e identidades. Alegando que o estatuto deste outro faz jus a uma análise mais
aprofundada, a autora destaca que algumas hipóteses, mesmo que provisórias, merecem ser
consideradas. A primeira hipótese estaria relacionada ao olhar do outro que deixa de ser uma
demanda do coletivo, da sociedade, passando a ser uma conquista do próprio indivíduo, ou
seja, o olhar do outro passa a ser individualizado. O olho central do modelo panóptico
representava o Olho do poder normalizador, o grande Olho público, onde a ordem social e
coletiva se inscrevia através de suas normas e leis e eram anteriores a qualquer indivíduo da
qual ninguém estava livre plenamente.
Segundo o digrama moderno, não indivíduo e identidade que se constitua fora
deste Olhar, ainda que se lhe possa resistir ou opor num segundo momento. O
pertencimento necessário a um coletivo, a uma instituição, ao olhar do Outro, enfim,
garantia o processo identitário (BRUNO, 2005, p. 10).
Atualmente podemos observar que este olhar público parece não mais ser dado, ele
precisa ser produzido pelos próprios indivíduos. As atuais práticas de exposição de si na
Internet (blogs, fotoblogs, orkut) podem ser entendidas como uma necessidade de busca pelo
olhar do outro, tornando assim uma conquista individual e privada, não mais um dado
público. Entretanto, destaca Bruno, que essa hipótese somente faz sentido no cerne de um
cenário de individualização da existência e radicalização da responsabilidade por si mesmo
nos vários setores da vida privada e pública contemporâneas, da progressiva privatização das
trajetórias individuais e do paralelo declínio do encargo coletivo dos destinos individuais,
antes atribuído a instituições e atores sociais organizados (ibid., id., p. 10).
Após analisarmos o reflexo dos novos dispositivos de visibilidade e vigilância na
constituição da subjetividade contemporânea e de como a participação dos indivíduos nesses
dispositivos, principalmente a Internet, constrói e modula uma identidade a partir da relação
com o olhar do outro, voltaremos nossa observação para maneira como a nossa vida vem
sendo moldada pela atual revolução tecnológica e as implicações que essa adesão representa
74
para os processos de socialização na atualidade. Através da expressão identidade coletiva que
utiliza a Internet como instrumento, exploraremos o poder da identidade em alguns contextos
culturais e institucionais tomando como base o autor Manuel Castells.
3.4. A identidade na sociedade em rede
O sociólogo Manuel Castells, em seu livro O poder da identidade, define identidade
como a fonte de significado e experiência de um povo, entretanto, no que diz respeito a atores
sociais, argumenta que seu processo de construção está baseado em um atributo cultural ou,
ainda, num conjunto de características culturais inter-relacionadas que tem prioridade sobre
outras fontes de significado. “Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode
haver identidades múltiplas” (CASTELLS, 2002, p. 22). Essa multiplicidade pode ser
percebida como origem de tensão e contradição tanto na sua auto-representação quanto na
ação social. Por isso torna-se necessário estabelecer uma distinção entre identidade e o que,
tradicionalmente, os sociólogos designam por papéis e conjuntos de papéis.
Papéis (por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista, sindicalista,
jogador de basquete, freqüentador de uma determinada igreja e fumante, ao mesmo
tempo) são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da
sociedade. A importância relativa desses papéis no ato de influenciar o
comportamento das pessoas depende de negociações e acordos entre os indivíduos e
essas instituições e organizações. Identidades, por sua vez, constituem fontes de
significado para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de
um processo de individuação (ibid., id., p. 22-23).
Entretanto, destaca o autor, as identidades também podem ser formadas a partir das
instituições dominantes e que somente assumem tal condição quando e se os autores as
internalizam, construindo seu significado com base nessa internalização. Em função desse
processo de autoconstrução e individuação, as identidades se tornam mais importantes em
termos de fonte de significado do que os papéis. Colocando de uma forma mais generalizada,
é possível se dizer que identidades organizam significados enquanto papéis organizam
75
funções a serem representadas. Castells define significado como a identificação simbólica
utilizada pelo autor social ao praticar uma ação.
Apesar de se concentrar mais na identidade coletiva, o autor concorda com o ponto de
vista sociológico quando afirma que toda e qualquer identidade é construída. Entretanto,
destaca que a questão principal se refere mais a como, a partir de quê, por quem, e para quê
isso acontece. A construção de identidades se através da matéria-prima fornecida pela
história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e
por fantasias pessoais, como também pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso.
Esses materiais, ao serem processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades,
reorganizam seu significado de acordo com as tendências sociais e os projetos culturais
enraizados na sua estrutura social, bem como através da sua visão de tempo/espaço.
Sugerindo a possibilidade que a constituição da identidade coletiva é estabelecida pelo
conteúdo simbólico e pelo significado gerado por aqueles que se identificam ou não com esta
identidade, Castells acrescenta que essa construção social sempre ocorre num contexto
marcado por relações de poder e propõe uma distinção entre três formas e origens de
construção dessas identidades: a primeira, identificada como Identidade legitimadora, seria
introduzida pelas instituições dominantes da sociedade com a intenção de expandir e
racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais; a segunda, classificada como
Identidade de resistência seria criada por atores que se encontram desvalorizados e/ou
estigmatizados dentro da lógica da dominação, que constroem trincheiras de resistência e
sobrevivência calcadas em princípios diferentes aos impostos pelas instituições da sociedade;
a terceira e última, designada como Identidade de projeto, estaria diretamente vinculada aos
atores sociais que utilizam qualquer tipo de material cultural ao seu alcance para construir
uma nova identidade capaz de redefinir sua posição perante a sociedade e através dela
transformar a estrutura social vigente. Citando como exemplo (também) o feminismo, o autor
76
nos aponta a importância desse movimento social por sua capacidade de abandonar as
trincheiras de resistência da identidade e dos direitos da mulher para fazer frente ao
patriarcalismo, à família patriarcal e toda a estrutura de produção, reprodução, sexualidade e
personalidade sobre a qual as sociedades historicamente se constituíam.
Obviamente, diz o autor, que essa seqüência de identidades não é fixa podendo a cada
momento uma assumir o papel da outra, transformando esse jogo num processo dinâmico
onde, sob o ponto de vista da teoria social, “nenhuma identidade pode constituir uma essência,
e nenhuma delas encerra, per se, valor progressista ou retrógrado se estiver fora de seu
contexto histórico” (CASTELLS, 2002, p. 24).
Dentro do processo de construção de identidade, no que diz respeito à constituição da
sociedade, cada uma vai levar a um resultado diferente, mas essa análise exigiria uma
abordagem mais específica e aprofundada por estarem diretamente relacionadas à um
contexto social, o que poderia contribuir para um desvio do nosso foco de interesse: a
dinâmica da identidade na sociedade em rede.
Segundo Castells, essa dinâmica da identidade poderia ser compreendida à luz da
caracterização teórica proposta pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, quando este afirma
que a “auto-identidade não é um traço distintivo apresentado pelo indivíduo. Trata-se do
próprio ser conforme apreendido reflexivamente pela pessoa em relação à sua biografia”. De
fato, “o que define um ser humano é saber tanto o que se está fazendo como por que se está
fazendo algo. No contexto da ordem pós-tradicional, o próprio ser torna-se um projeto
reflexivo” (Giddens In: CASTELLS, 2002, p. 27).
O projeto reflexivo do eu, conforme assinala Giddens, consiste na manutenção de
narrativas biográficas coerentes que, embora estejam continuamente sendo revisadas,
possuem lugar dentro do contexto da múltipla escolha filtrada por sistemas abstratos. A noção
de estilo de vida, na vida social moderna, assume um significado particular.
77
Quanto mais a tradição perde seu domínio, e quanto mais a vida diária é
reconstituída em termos do jogo dialético entre o local e o global, tanto mais os
indivíduos são forçados a escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade de
opções. Certamente existem também influências padronizadoras particularmente
na forma da criação da mercadoria, pois a produção e a distribuição capitalistas são
componentes centrais das instituições da modernidade (GIDDENS, 2002, p. 13).
Entretanto, Giddens nos aponta que em função da “abertura” da vida social atual com a
pluralização dos contextos de ação e a diversidade de “autoridades”, a opção por um estilo de
vida se torna cada vez mais importante para constituição da auto-identidade e da atividade
diária. Planejar a vida dentro de um contexto reflexivamente organizado, onde se pressupõe
uma análise dos riscos através do conhecimento especializado, torna-se uma característica
central na estruturação da auto-identidade.
Corroborando com o pensamento de Giddens, Castells acrescenta, baseado nas análises
apresentadas no volume A sociedade em rede, que o surgimento dessa sociedade traz à tona
processos de construção de identidade que acabam induzindo novas formas de transformação
social. Isso ocorre porque a sociedade em rede está fundamentada na separação generalizada
entre o local e o global para maioria dos indivíduos e grupos sociais, acrescentando também, a
separação nas diferentes estruturas de tempo/espaço e entre o poder e a experiência.
Portanto, exceto para elite que ocupa o espaço atemporal de fluxos de redes globais
e seus locais subsidiários, o planejamento reflexivo da vida torna-se impossível.
Além disso, a construção de intimidade com base na confiança exige uma
redefinição da identidade totalmente autônoma em relação à lógica de formação de
rede das instituições e organizações dominantes (CASTELLS, 2002, p. 27).
Diante dessas novas condições as sociedades civis se retraem e se desarticulam em
função da descontinuidade entre a lógica da criação de poder na rede global e a lógica de
associação e representação nas sociedades e culturas específicas. Assim, a busca pelo
significado vai ocorrer no âmbito da reconstrução de identidades de resistência, que, segundo
a análise proposta pelo autor, leva a formação de comunidades onde a maior parte das ações
sociais se organiza em torno da oposição entre os fluxos não identificados e as identidades
marginalizadas.
78
Quanto ao surgimento de identidades de projeto, Castells apresenta a hipótese de que a
constituição de sujeitos, dentro do processo de transformação social, toma um rumo
diferenciado do apresentado durante a modernidade clássica e em períodos mais recentes, ou
seja, “sujeitos, se e quando construídos, não são mais formados com base em sociedades civis
que estão em processo de desintegração, mas sim como um prolongamento da resistência
comunal” (CASTELLS, 2002, p. 28). Enquanto na modernidade a identidade de projeto foi
constituída a partir da sociedade civil, na sociedade em rede, a identidade de projeto, “se é que
se pode desenvolver”, tem sua origem na resistência comunal. “Esse é o significado real da
nova primazia da política de identidades na sociedade em rede” (ibid., id., p. 29).
Para efeito dessa dissertação, optamos até aqui por classificar as identidades em duas
categorias: as que se formam de maneira individual e as que possuem uma índole coletiva. A
primeira, de caráter individual, se expressa de uma forma mais voltada para si e para
exposição do eu, tornando-se mais complexas por se apresentarem, muitas vezes, com
caracterizações fictícias ou múltiplas como nos caso dos MUD’s. A segunda, de caráter
coletiva, normalmente se agrupam em torno de comunidades virtuais onde o(s) interesse(s)
comum(ns) são privilegiados gerando um sentimento de grupo. Destacamos, entretanto, que
tanto os MUD’s como os blogs, fotoblogs e o orkut também podem constituir comunidades
virtuais, mas a principal distinção fica por conta da forma como os indivíduos se apresentam.
Considerando os MUD’s um importante momento da história da Internet, apontaremos
a seguir, como o homem, na década passada, desenvolveu um espaço de liberdade para
brincar de construir espaço e identidades, funcionando como um lugar para projeção do seu
imaginário.
38
38
O termo imaginário aqui utilizado vai de encontro ao utilizado por Erick Felinto quando diz que “a presença da imaginação
em nossas relações com as máquinas é tão significativa que permitiria falar em algo como um ‘imaginário tecnológico’, um
conjunto de representações sociais e fantasias compartilhadas que informam nossas concepções sobre as tecnologias”
(FELINTO, 2005, p. 7).
79
Entretanto, cabe destacar que nossa análise estará centrada no livro a Vida no ecrã, da
pesquisadora do Massachusetts Institute of Technology (MIT) Sherry Turkle, por
entendermos que o ciberespaço proporciona a vivência de experiências individuais em
mundos imaginados através da tela do computador e, principalmente, por ser uma importante
referência para os estudos da relação homem/máquina. Conforme revela a autora, usamos a
vida nos ecrãs do computador para nos habituarmos às novas maneiras de pensar acerca da
evolução, das relações entre as pessoas, da sexualidade, da política e da identidade.
3.5. Múltiplas identidades na rede
A psicóloga e socióloga Sherry Turkle, utilizando o conceito cunhado pelo psicanalista
Jacques Lacan sobre a fase do espelho
39
, faz uma reflexão sobre as transformações que o
computador vem proporcionando na maneira como nos vemos diante do espelho das
máquinas”. Entretanto, destaca a autora, essa época era a década de 80 e a identidade se
moldava do tipo um-para-um, melhor dizendo, era uma pessoa solitária diante de uma
máquina.
Mais ou menos uma década depois, Turkle nos aponta a rápida expansão da Internet
como um espaço capaz de conectar milhões de pessoas ao redor do mundo, o que teria a
capacidade de “alterar a forma como pensamos, a natureza da nossa sexualidade, a
organização das nossas comunidades e até mesmo a nossa identidade” (TURKLE, 1997, p.
11).
O computador, mesclando sua funcionalidade entre ferramenta e espelho, proporciona o
exercício para novos modelos não só da nossa mente como também a possibilidade de pôr em
prática nosso imaginário. Quando atravessamos o espelho estamos aprendendo a viver em
39
Lacan chama de fase do espelho quando a criança ainda não está coordenada e não possui qualquer auto-imagem como
uma pessoa inteira, se vê ou se imagina a si própria refletida – seja literalmente, no espelho, seja figurativamente, no espelho
do olhar do outro – como uma pessoa inteira (Lacan In: HALL, 2003, p. 37).
80
mundos virtuais e, ao navegarmos sozinhos nesse oceano, nos deparamos com outras pessoas
com as quais podemos conversar, trocar idéias e, principalmente, nos apresentarmos com uma
identidade construída por nós mesmos.
Howard Rheingold, reconhecendo que se apresenta em comunidades virtuais distintas
com três ou quatro alteregos diferentes, nos diz que algumas pessoas se utilizam do
descentramento proporcionado pelos meios de comunicação mediados por computador
(CMC) para se relacionarem com outras pessoas na intenção de se tornarem próximas.
Entretanto, destaca que a autenticidade dessas relações estabelecidas no ciberespaço sempre é
questionada devido à dissimulação e ao distanciamento que o meio proporciona, criando um
contexto, até então, nunca experimentado na vida real.
A dissimulação e a auto-revelação fazem parte da gramática do discurso do
ciberespaço, como os cortes rápidos e as imagens intensas fazem parte da gramática
do discurso televisivo. A gramática dos meios de CMC envolve uma sintaxe de jogo
de identidade: podem encontrar-se identidades novas, falsas, múltiplas e
exploratórias em várias manifestações do meio (RHEINGOLD, 1996, p. 186).
Na cultura da simulação o conceito de construção da identidade ganha destaque por
estarmos diante de um contexto cultural mais vasto, onde um desgaste progressivo e lento das
fronteiras entre o real e o virtual, o animado e o inanimado, o eu unitário e o eu múltiplo,
ocorre tanto no âmbito da investigação científica como nos padrões da vida quotidiana. Desde
cientistas que pesquisam novas formas de vida artificial até crianças transformando-se numa
série de personagens virtuais, iremos nos deparar com numerosas e fundamentais evidências
de alteração na maneira como criamos e vivemos a identidade.
É na Internet que as nossas confrontações com os aspectos da tecnologia que ferem a
nossa concepção de identidade humana são mais acessas, cruas até. Nas
comunidades em tempo real do ciberespaço, encontramo-nos no limiar entre o real e
o virtual, inseguros da nossa posição, inventando-nos a nós mesmos à medida que
progredimos (TURKLE, 1997, p. 13).
Utilizando como exemplo o jogo interativo Star Trek: A Geração Seguinte, projetado
com o objetivo de ser uma representação do mundo explorado na clássica série televisiva de
ficção científica, a autora descreve que milhares de pessoas passam horas do seu quotidiano
81
explorando guerras interplanetárias através do teclado do computador. Utilizando comandos
escritos por personagens fictícios, os jogadores mantêm encontros sexuais românticos e
casuais, se apaixonam, se casam, desempenham profissões, participam de festas, enfim, criam
um mundo fascinante que pode ser mais real do que a vida real, conforme atesta um dos
participantes. Neste jogo, onde um homem constrói uma personagem feminina que se faz
passar por homem, observamos que o eu é construído e as regras de interação social, ao invés
de recebidas, são planejadas.
Ao citar outro exemplo de jogo interativo, também baseado em texto, a autora chama
atenção para possibilidade de se construir um mundo virtual onde os participantes não
definem suas regras como também, dentro do espaço do jogo, podem criar uma sala
detalhando a composição dos objetos e sua funcionalidade.
Uma jogadora de onze anos de idade concebeu uma sala a que chama “o
condomínio”. O mobiliário é belíssimo. Ela criou maquiagem e jóias mágicas para o
seu toucador. Quando visita o condomínio, convida os seus ciberamigos a juntarem-
se-lhe, tagarela, encomenda uma pizza virtual e namorisca (TURKLE, 1997, p. 13-
14).
Os jogos relacionados como exemplo na análise da autora o Star Trek (TrekMUSE) e
o LambdaMOO são programas de computador onde a participação se torna possível
através do acesso à Internet. Por serem jogos que tem como característica a utilização de
diferentes softwares, as siglas MUSes, MOOs ou MUSH tem a finalidade de nomear
essencialmente os ambientes de multiusuários sociais, que diferem um dos outros dependendo
de certas permissões concedidas aos usuários, como, por exemplo, a interação com o
programa ou com outros jogadores. Sendo assim, os jogos TrekMUSE e o LambdaMOO
ficaram conhecidos pelo nome de MUD’s – Multi-User Dungeons.
Os Multi-User Dungeons (ou Dimension) são originários do jogo Dungeons and
Dragons D&D (Calabouços e Dragões), quando, quase uma cada depois, partindo do
surgimento da Internet e da possibilidade de conectar computadores ao redor do mundo, Roy
Trubshaw e Richard Bartle, acrescentaram a característica de multiusuários ao D&D. Num
82
primeiro momento os autores tinham como proposta os jogos de aventura, onde os jogadores
deveriam se reunir com a intenção de participar de alguma missão específica, como matar um
dragão ou encontrar um mago. Mesmo não sendo o objetivo do jogo, os personagens podiam
morrer se os jogadores responsáveis não “cuidassem” deles. “Personagens em MUD’s de
Aventura
40
passam fome, precisam dormir e beber” (SOUZA E SILVA, 2004, p. 86-87).
Em agosto de 1989, o então estudante de pós-graduação Jim Aspnes, escreveu o que ele
próprio chamou de Tiny MUD. Parecido com o MUD tradicional, o jogo também era aberto
ou sem fim, podendo comportar múltiplos usuários. Entretanto, o Tiny MUD era
essencialmente um ambiente social, onde os jogadores ao invés de matar dragões buscavam
conectar outros usuários a fim de estabelecer uma proximidade através da cooperação, da
solução de problemas e das interações sociais proporcionadas por tal ambiente. O enfoque na
sociabilidade aliado ao fato do programa funcionar em vários sistemas Unix
41
ajudou a
popularizar os MUD’s ao redor do mundo. Assim, esses jogos, em contraste com os MUD’s
de Aventura, ficaram conhecidos por MUD’s Sociais tornando-se bastante populares e
passando a ser considerados importantes lugares de sociabilidade (ibid., id., p. 88).
Uma vez ultrapassado os limites de um MUD, a primeira atitude a ser tomada é a
escolha de uma identidade (ou avatar).
42
Depois de batizar com um nome esta identidade
personagem na linguagem dos MUD’s –, torna-se necessário fazer uma descrição das suas
características para que os outros habitantes do MUD tomem conhecimento. Rheingold
destaca que ao se criar uma identidade
ajuda-se a criar um mundo, e ao criá-lo, o papel que vai desempenhar em conjunto
com outros intervenientes desempenha parte da estrutura de faz-de-conta utilizada
para sustentar a ilusão perante todos de ser um mago num castelo ou um navegador
40
Ainda é possível ser jogado na Internet através do site: <http://www.ifiction.org/games/play.phpz?cat=&game=1&mode
=html>. Acesso: 21 out. 2005.
41
Ao contrário de um sistema MS-DOS tradicional, onde todos os usuários podem enxergar, alterar e instalar os arquivos que
quiserem ao seu belprazer, no Unix isto não é possível, salvo poucas exceções. Existem dois tipos básicos de usuários: o
administrador e o usuário normal (JÚNIOR, Agostinho de M. Brito, 2000). Disponível em: <http://www.dca.ufrn.br/~ambj/
linux/node9.html>. Acesso: 21 out. 2005.
42
Na mitologia hindu, Avatar é a reencarnação de uma divindade (Vixnu). No ciberespaço, amplia-se seu sentido original e
passa a representar corpos virtualizados que assumem múltiplas identidades na interação homem-mundos virtuais (Venturelli,
Suzete). Disponível em: <http://wawrwt.iar.unicamp.br/anpap/anais99/linguag26.htm>. Acesso: 04 out. 2005.
83
a bordo de uma nave estelar: os papéis dão às pessoas outros palcos para
representarem novas identidades, as quais atestam a realidade do cenário
(RHEINGOLD, 1996, p. 186).
Os participantes dos MUD’s, assim como os da WELL, podem se comunicar através de
canais públicos ou privados. No formato privado, os habitantes dos MUD podem trocar
correspondências eletrônicas particulares, ficando a cargo do destinatário o momento da
leitura bem como o da reposta. No formato público, os participantes estabelecem diálogos on-
line, descrevendo suas ações depois de digitar o comando <<dizer>>. Na tela de todos os
jogadores aparece, depois do nome da personagem, o comando <<exprimir>>, <<acenar>> ou
<<gargalhar>>, como também é possível <<sussurrar>> para um determinado personagem
sem que outros participantes possam ler as palavras escritas. Em alguns MUD’s, segundo
Turkle, os personagens utilizam ícones gráficos avatar para representar a si mesmo do
outro lado da tela; mas a maioria dos MUD’s é essencialmente estruturada em texto.
Tal como em outras formas de comunicação eletrônica, convenções tipográficas
conhecidas como emoticons (ícones emocionais) também são utilizadas para expressar gestos
físicos e expressões faciais. Por exemplo: :-) indica um rosto sorridente, enquanto :-( indica
um rosto triste. Explicativos que imitam o significado do que se quer dizer e uma atitude
descontraída em relação às frases incompletas e aos erros tipográficos sugerem que a nova
escrita se situa entre as normas clássicas de comunicação escrita e oral.
Através dessa interação social em tempo real, os jogadores, na medida em que vão
participando vão construindo não a narrativa do jogo, mas também seguem construindo
suas identidades. Um jogador diz: “Eu sou a personagem e não sou a personagem, ambas as
coisas ao mesmo tempo”. Outro diz: “Somos quem fingimos ser”. O anonimato permite que
cada pessoa construa seu personagem o mais próximo ou o mais distante possível da sua
“identidade real”.
84
Dado que a participação num MUD implica o envio de textos para um computador
que alberga o programa e a base de dados desse MUD, as identidades-MUD são
constituídas em interação com a máquina. Se esta desaparecer, as identidades-MUD
deixam de existir: <<Uma parte de mim, uma parte de mim muito importante,
existe dentro do PernMUD>>, diz um jogador (TURKLE, 1997, p. 15).
No ambiente MUD, o corpo de cada pessoa é a representação da descrição textual que
ela faz de si mesma, podendo um feio se tornar belo, um gordo se apresentar como esbelto,
um simples comerciante se tornar um afortunado empresário, enfim, a possibilidade de
criação de identidades fluídas e múltiplas acaba por desafiar os limites do próprio conceito de
identidade. “Afinal de contas, a identidade refere-se a uma semelhança rigorosa entre duas
qualidades, neste caso entre uma pessoa e a sua máscara. Porém, nos MUD’s, uma pessoa
pode ser várias” (TURKLE, 1997, p. 16).
A maioria dos apaixonados pelos MUD’s são trabalhadores que muitas vezes utilizam
computadores nos seus empregos. O desenvolvimento das suas tarefas na rotina da vida real,
ou RL (real life), exige que eles abandonem o jogo e coloquem seus personagens para
<<dormir>>. Entretanto, os mais aficionados utilizam pequenos programas de inteligência
artificial, conhecidos por bots (derivado da palavra robot), para navegar como uma espécie de
alterego, pelo ambiente dos MUD’s. No decorrer de um dia de trabalho, os jogadores
intercalam diversas vezes o mundo real com uma série de mundos virtuais. Citando o exemplo
de um estudante de 18 anos que se encontra diante de um computador numa sala do MIT
(Instituto de Tecnologia de Massachusetts), às duas horas da manhã, a autora utiliza a
descrição do depoimento do estudante para nos mostrar como é estar em vários mundos
virtuais ao mesmo tempo:
Neste MUD estou a descontrair-me, a fazer conversa de chacha. Neste outro MUD,
entrei numa guerra de lança-chamas. Neste último, estou numa de sexo da pesada.
Ando a viajar entre os MUD’s e um trabalho de casa de física que vou ter de
entregar amanhã de manhã, às 10 horas (ibid., id., p. 17).
A alternância entre a vida real e os MUD’s é possível devido à existência daquelas
conhecidas áreas que delimitam a tela do computador, ou seja, as janelas. Através das janelas
as pessoas podem estar em vários contextos ao mesmo tempo. Um indivíduo pode ter a sua
85
presença sentida em todas as outras janelas do ecrã mesmo estando atento a apenas uma
janela. Ao desenvolver múltiplas atividades diante da tela do computador, a identidade de
uma pessoa passa a ser percebida como um somatório da distribuição da sua presença.
Em um dos seus exemplos, Sherry Turkle nos apresenta Doug, um estudante
universitário do meio-oeste americano que interpreta quatro personagens em três MUD’s
diferentes. Em um ambiente ele se apresenta como mulher sedutora, em outro faz o estilo
machão do tipo caubói que usa um maço de cigarros Marlboro preso na manga de sua t-shirt;
no terceiro ele se apresenta como um o coelho chamado Cenoura que, sem uma definição
sexual, vagueia pelo seu MUD apresentando as pessoas umas as outras. “O Cenoura é tão
cinzentão que as pessoas deixam-no andar por perto enquanto tem conversas privadas. De
maneira que eu penso no Cenoura com a minha costela passiva, voyeurista”, diz Doug.
Quanto a sua quarta personagem, o estudante revela que a apresenta nos MUD’s onde
todos os outros personagens são animais peludos. “Preferia nem falar sobre essa personagem,
porque o meu anonimato nesses jogos é muito importante para mim. Digamos apenas que nos
FurryMUD’s sinto-me como um turista sexual.” Sobre o fato de interpretar suas personagens
em janelas, Doug afirma que isso tornou possível “ligar e desligar partes da minha mente”,
conforme podemos observar no seu depoimento:
Consigo desdobrar minha mente. Estou a ficar perito nisso. Vejo-me a mim próprio
como duas ou três ou mais pessoas. E limito-me a ligar uma parte da minha mente e
depois outra, à medida que viajo de janela em janela. Estou a ter uma discussão
qualquer numa das janelas e a tentar engatar uma miúda num MUD noutra janela,
numa terceira pode estar a correr uma folha de cálculo ou outra coisa técnica para
universidade... E de repente recebo uma mensagem em tempo real [que surge no
ecrã assim que é enviada por outro utilizador do sistema], e calculo que isso seja a
vida real. É mais uma janela. A vida real é mais uma janela e, normalmente,
não é a que mais me agrada (TURKLE, 1997, p. 18).
As janelas, consideradas naquela época como uma inovação técnica, foram
desenvolvidas com a finalidade de agilizar o trabalho permitindo uma alternância na execução
de diferentes tarefas. No entanto, a prática quotidiana transformou sua utilização numa
importante metáfora para se pensar no eu como um sistema múltiplo e fragmentado. Segundo
86
a autora, o eu não se limita mais a desempenhar papéis em cenários e momentos diferentes e
cita como exemplo as funções de uma mulher que acorda como amante, faz o almoço e dirige
o seu carro até o trabalho como uma advogada. O desempenho de papéis num espaço físico
concreto permite aos atores sociais jogar com suas personagens alternadamente enquanto num
MUD’s, pelo contrário, através de um eu descentrado, é possível desempenhar muitos papéis
ao mesmo tempo em mundos paralelos. “As experiências na Internet ampliam a metáfora das
janelas – agora, a própria vida real, como disse Doug, pode ser ‘só mais uma janela’”
(TURKLE, 1997, p. 19).
Podemos dizer que os MUD’s são exemplos de como a CMC possibilita a construção e
a reconstrução da identidade. Porém, na Internet, existem outros ambientes onde é possível
brincar com a identidade como, por exemplo, no Internet Relay Chat (IRC). O IRC é um
fórum amplamente difundido que encontra no diálogo a permissão para qualquer utilizador
abrir um canal e convidar outros usuários para um bate-papo como se ocupassem uma sala.
Esses locais de conversa on-line se parecem com os MUD’s por permitirem a interação com
outras pessoas em tempo real, a possibilidade do anonimato e a adoção de uma identidade
próxima ou não do seu verdadeiro eu.
Um fervoroso jogador de MUD’s e utilizador do IRC nos diz que “afinal de contas,
porque é que havemos de atribuir um estatuto superior ao eu que tem o corpo quando os eus
que não tem corpos conseguem alcançar os mais diversos tipos de experiência?”. Após
destacar esse comentário, Turkle coloca que as pessoas podendo fingir que possuem
diferentes sexos e diferentes vidas, não é de se estranhar que, para algumas delas, este jogo se
torne tão real “como aquilo que convencionamos chamar de vida, embora para elas esta
distinção já não seja válida”. (ibid., id., p. 19).
Em um ambiente MUD a rotina do jogo, muitas vezes, passa a fazer parte da vida real
dos jogadores. O estudante universitário Morgan, numa das várias entrevistas apresentadas
87
pela autora, explica como alterna essa rotina entre os jogos e a vida real: “Quando estou
chateado, pego em mim... salto para a minha nave [a nave espacial que ele comanda num
MUD] e vou a procura de alguém”. Juntando-se aos outros “vestido” de seu personagem,
Morgan envia mensagens de chamada para os seus amigos dentro do ambiente do jogo.
Depois, sem desligar o jogo, assiste a uma aula. Quando retorna ao MUD os amigos que
chamou através da mensagem se encontram no jogo prontos para conversar. Segundo
Turkle, o estudante é um caso notável da utilização do MUD como complemento psicológico
da vida real. Vejamos o que nos diz Morgan:
Durante meu período como calouro eu adorava armar cenas de pancadaria nos
MUD’s. Lembro-me de fazer isso antes dos exames. Entrava num MUD provocava
as pessoas, gritava com elas, partia meia dúzia de coisas, ia fazer o exame e depois
saía para ir tomar um copo (TURKLE, 1997, p. 279).
Nesse caso, interpreta a autora, o estudante utilizava seus MUD’s preferidos como uma
válvula de escape para a ansiedade e a raiva que, devido as suas conseqüências perigosas, não
podiam ser praticadas na vida real.
Em um outro exemplo de alternância entre a vida real e uma série de mundos virtuais,
Turkle, segue nos apresentando um trabalhador responsável pelo desenvolvimento de
software que diz estar sempre jogando num MUD e descreve sua rotina diária da seguinte
maneira:
Num MUD, gosto de me pôr na pele dum herói, normalmente com poderes mágicos,
encetar algumas conversas, lançar uma ou duas perguntas sobre assuntos do MUD, e
pedir às pessoas que deixem as respostas numa caixa especial para correspondência
que criei no meu escritório” do MUD. Depois ponho a minha personagem a dormir
e vou trabalhar um bocado. Navegar no MUD ajuda-me, particularmente quando
entro em conflito com alguém no trabalho, porque sei que quando regressar ao MUD
é bem provável que tenha algumas mensagens elogiosas à minha espera. Noutras
alturas, uso alguns dos meus triunfos no MUD como munições para ganhar alento
antes duma conversa com o meu patrão (ibid., id., p. 280).
O ato de jogar nos MUD’s revela que ao criarmos identidades fictícias podemos, de
uma maneira mais controlada, realizar experiências com várias características e ver por onde
elas podem nos conduzir. É mais fácil para um homem se fazer passar por mulher num
ambiente MUD do que seria na sua vida real. Entretanto, destaca a autora, cada uma das
88
múltiplas identidades virtuais possui sua própria independência e integridade, estabelecendo
assim uma relação entre as diferentes personagens interpretadas pelo jogador.
Matthew, um jogador universitário de 19 anos, também utiliza o MUD’s para fazer uma
auto-análise, mas diferente dos outros, prefere interpretar um único personagem. O estudante
usa os MUD’s para desempenhar o papel de um pai idealizado demonstrando em seus jogos
uma tendência a encenar versões melhoradas de acontecimentos ocorridos na vida real.
Matthew nos diz:
vários anos que o seu pai se tem mostrado distante, muitas vezes ausente,
exclusivamente preocupado com a sua carreira de advogado. Desde a escola
prepararia, Matthew foi o companheiro e confidente da mãe. Ele sabe que o seu
pai é alcoólico (sic) e por várias vezes foi infiel à sua mãe. Porém, devido à
posição que o seu pai ocupa no seio da comunidade, a falia apresenta uma fachada
pública sem mácula (TURKLE, 1997, p. 282).
Continuando com sua análise, a autora nos aponta que depois de uma decepção
amorosa, o então aluno universitário começou a participar em MUD’s dedicando-se
especialmente a um, onde, tal como na cidadezinha em que vivia com seus familiares, tornou-
se um cidadão dos mais conceituados. Neste MUD, Matthew construiu para si próprio um
papel especial ficando com a incumbência de recrutar e exercer junto aos outros jogadores as
funções de conselheiro e ajudante. Com vergonha das atitudes de seu pai na vida real, ele
usava o MUD para se apresentar como um homem que gostaria que seu pai fosse. Rejeitado
pela namorada na vida real, a sua personagem cavalheira no MUD acabou promovendo um
grande sucesso junto às mulheres tanto no ambiente virtual como fora dele. Matthew, segundo
seus cálculos, passava de quinze a vinte horas por semana conectado a este mundo alternativo
e altamente satisfatório.
Diante dos exemplos citados podemos observar que as fronteiras entre eu e jogo, eu e
personagem, eu e simulação ficam atenuados. Conforme atesta um jogador, “somos aquilo
que quisermos ser... somos aquilo que fingimos ser”. Mas, segundo a autora, as pessoas
89
não apenas se transformam em quem fingem ser, fingem ser quem são ou quem
gostariam de ser ou quem não gostariam de ser. Os jogadores falam por vezes do seu
verdadeiro eu como uma mescla das suas personagens, e por vezes falam das suas
identidades do ecrã como meios para transformar a sua vida real (ibid., id., p. 284).
Observamos, até aqui, como os indivíduos, na década passada, brincaram de
experimentar novas práticas sociais interpretando diferentes papéis através da interação com
outras pessoas em ambientes on-line. É a partir desta interação estimulada pela troca contínua
de declarações e respostas no formato textual que vai permitir aos participantes a construção
da existência dessas identidades criadas. Podemos pensar que elas não são apenas arquitetadas
diante dessas trocas comunicacionais estabelecidas no ambiente, mas também como um
conjunto de elementos que vai do processo interacional efetivado com os outros participantes,
as interações efetuadas com as máquinas (os computadores) e com os respectivos programas
tecnológicos (os softwares) (RIBEIRO, 2005, p. 5).
Mesmo diante da presença de uma maior flexibilidade e de um conjunto ampliado de
possibilidades de experimentação, “a identidade construída virtualmente também necessita de
reconhecimento por parte dos outros para que exista de fato” (ibid., id., p. 6). Ou, dizendo
melhor, o usuário precisa da cooperação e da cumplicidade dos seus interlocutores para que
sua identidade criada ou papéis representados possa se tornar quem ele deseja ser naquele
momento e naquele ambiente. Entretanto, a questão se torna mais complexa quando
reconhecemos que esse outro não é um simples complemento passivo, mas um sujeito ativo
que provavelmente também está exercitando e explorando novas possibilidades existenciais
de forma lúdica.
Segundo Ribeiro, sem o aporte físico dos contatos tácteis, os usuários das plataformas
interacionais on-line vivenciam um espaço de possibilidades, “de quebra das ‘amarras’
derivadas da presentificação do corpo real” (ibid., id., p. 6).
Estando com um grande leque de opções de experimentação de outras formas de
construção de seus contatos sociais em uma “cultura de simulação”, têm a faculdade
de poder criar de forma fragmentada vários sujeitos imaginários, potencializando a
expressão “descentrada” de configuração identitária, tornando-se ainda mais
distantes das referências que os sustentavam anteriormente, tais como a mesmice, o
90
caráter contínuo e evolutivo da identidade única e a construção gradativa desta
baseada na história pregressa do sujeito a partir de uma perspectiva linear. (ibid., id.,
p. 6-7).
Ieda Tucherman, em seu artigo “Navegar é preciso. Viver é impreciso”, nos aponta que
aprender a viver em um mundo virtual indica nossa adesão a uma cultura de simulação que
afeta nossas idéias não só sobre nosso corpo e nossa mente como também afeta a relação entre
o nosso eu e a máquina. A autora destaca que essa experiência vai contribuir para erosão entre
as fronteiras do mundo real e do virtual, do animado e do inanimado, do eu unitário e do eu
múltiplo, transformando nossas modestas práticas cotidianas num processo inseguro onde
precisamos nos inventar constantemente diante deste umbral entre real e virtual.
Significa abrir mão do conceito mais longevo da cultura ocidental: o do corpo, como
instância imediata de materialidade, suporte do jogo da identidade e diferença,
matriz da ação e experiência de distinção eu-mundo, privado-público, visível-
invisível e todo o resto que nos serviu tão longamente para ser, viver e pensar. Tão
produtivo que gerou as metáforas de corpo-social, corpo-político e levou as teorias
de urbanismo e econômicas a dele se servirem para pensar a cidade ou a saúde dos
processos geopolíticos e econômicos (TUCHERMAN, 2005, p. 2).
Dando seqüência a sua análise, a autora nos aponta que, como era de se esperar, serviu
também, para estabelecer uma separação entre a vida corporal e a vida mental, assim como
para distinguir, classificar e remunerar de uma maneira diferente o trabalho manual da
atividade intelectual, ligada ao espírito (ibid., id., p. 3). Os livros, embora nos oferecessem
figuras imaginárias com as quais era possível identificar nossa aparência ou mesmo nos
causar horror através dos monstros o corpo do Outro e o Outro do corpo –, funcionavam
como alimento para o espírito. O ato da leitura de um livro coloca o corpo como numa espécie
de ilha em repouso, concentrado num encontro imaterial.
Arriscando-se em afirmar que o livro foi a primeira materialização da virtualidade por
permitir encontros fisicamente impossíveis no tempo e no espaço, pela possibilidade de
imaginarmos realidades paralelas e nos desligarmos das categorias de classe, gênero e idade,
Tucherman assinala, assim, a construção de outros mundos possíveis.
91
Com isso concordariam pensadores como Gilles Deleuze, que dedicou parte
importante de sua obra ao pensamento sobre o virtual e sobre a literatura, e Janice
Radaway em Reading the Romance argumentando que, quando as mulheres lêem as
“novelas rosasnão escapam da realidade, ao contrário, as constroem com menos
limitações do que as suas próprias realidades e, neste sentido, a leitura é uma forma
de resistência e reação (ibid., id., p. 2).
A literatura sempre teve conhecimento deste poder e dos seus riscos quando seus
autores criam personagens como Dom Quixote, onde Miguel Cervantes nos apresenta um
pequeno fidalgo castelhano que perde sua razão pela leitura assídua dos romances de
cavalaria. O personagem, ao pretender imitar seus heróis prediletos, acaba se envolvendo
numa série de aventuras fantasiosas que diante da dura realidade são sempre desmentidas. Ou
mesmo Gustave Flaubert, que no seu romance Madame Bovary nos conta a história de Emma,
uma mulher bonita e sonhadora criada no campo que aprendeu a ver a vida através da
literatura sentimental. Emma, ao casar-se com o apaixonado médico Charles Bovary, passa a
sentir-se presa a um casamento entediante. Na tentativa de dar vida e paixão à sua existência
comete uma sucessão de erros por ter lido muitos romances.
43
Conforme destaca Tucherman, o que assistimos hoje, e que foi particular da
experiência literária, é a possibilidade de que os novos meios técnicos, especialmente os
computadores e a WWW (World Wide Web), tem de banalizar a virtualização do nosso
mundo cotidiano.
Qualquer um de nós, frequentando um ou vários MUD’s (Multiple User Domaine)
ou Chats, pode, sem sair da proteção dos muros familiares da velha casa-de-família
ou no novo ambiente de um cyber-café, “viver” no presente todas as aventuras que
custaram séculos ao Orlando de Virginia Woolf, sendo ao mesmo tempo, homem em
um deles, mulher no outro, um homem que finge que é uma mulher que finge que é
um homem num terceiro e um animal, nos MUD’s onde esta presença é corriqueira.
Desnecessário dizer que esta multiplicidade possível põe em jogo e em cheque os
limites e a coerência da nossa identidade (TUCHERMAN, 2005, p. 2).
Não podemos desprezar o presente, mas devemos ser, segundo a lição do poeta lírico
Charles Baudelaire, irônicos em relação a ele. Sabendo que encontrar nosso “abrigo no
mundo” é buscar um lugar gregário, antes do geográfico, Ieda Tucherman nos diz que esta
possibilidade parece se realizar nas comunidades virtuais que tornam possíveis na sociedade
43
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Madame_Bovary>. Acesso: 28 out. 2005;
92
tecnológica das redes a realização técnica que a filosofia pós-moderna não cansa de
problematizar.
93
4.1. O espaço urbano nas cidades modernas
“O homem só existe na cultura e a cidade
é um dos seus principais artefatos, morada dos
agrupamentos sociais, palco da cultura humanista e
berço das artes e espetáculos”.
André Lemos
Nos capítulos anteriores observamos como o advento da Internet possibilitou aos
indivíduos a experimentação de uma nova dinâmica de interação diante de múltiplos
ambientes constituídos on-line. Vistos como ambientes sem conexão com o espaço físico,
destacamos alguns estudiosos que consideraram o ciberespaço como um lugar ideal de
sociabilidade chegando mesmo a vislumbrar o fim dos espaços físicos.
No início do século XXI, devido à emergência das novas formas de comunicação sem
fio, podemos perceber uma constante conexão entre o espaço virtual e o real, proporcionado,
principalmente, pelas novas dinâmicas de acesso e o uso da rede nas metrópoles
contemporâneas. Vimos surgir, assim, uma nova fase da sociedade da informação que teve
seu início na década de 80 com a entrada no mercado doméstico dos computadores pessoais
(PC) seguidos pela popularização da Internet.
Entretanto, antes de tentarmos mapear a atual geografia do espo urbano,
essencialmente marcado pelo constante fluxo das tecnologias móveis de comunicação,
entendemos ser necessário voltarmos um pouco no tempo, mais precisamente à modernidade,
onde os fenômenos da industrialização, do fluxo de bens, de pessoas e de capital
transformaram as cidades no seu principal palco.
Conforme acentua Ieda Tucherman, foi no contexto da cidade que a cultura moderna
encontrou seu abrigo, a cidade fornecendo o lugar para circulação dos corpos e mercadorias,
para as trocas de olhares e os exercícios de consumo. A vida moderna pode ser definida como
essencialmente urbana, mas, para que isto se consolidasse, as “transformações sociais e
econômicas do capitalismo impuseram uma remodelação à cidade na mesma segunda metade
94
do século XIX que viu surgirem as condições de possibilidade e depois o cinema
propriamente dito” (TUCHERMAN, 2005, on-line).
44
Se a Paris do século XIX tão bem descrita por Walter Benjamin em seu clássico
ensaio “Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo” foi apresentada como a
primeira capital simbólica desta modernidade por ter iniciado o processo de exibição de
visibilidade e distração, de “construção de eternidade na efemeridade”
45
; Nova York, na
virada do século XX, herdou e complementou esse projeto passando a lidar com a
superestimulação e com o choque, “transformando-se num caldeirão transbordante de
distração, sensação e estímulo, vendo surgir, materializada pelo crescimento do capitalismo
industrial, a sociedade de massa” (TUCHERMAN, 2005, on-line).
A fim de registrarmos mais detalhadamente esse momento da nova experiência
subjetiva, na primeira parte deste capítulo, estaremos voltando nosso foco para o
envolvimento do cidadão com as desordenadas metrópoles modernas do começo do século
XX, onde o autor Ben Singer, em seu interessante artigo “Modernidade, hiperestímulo e o
início do sensacionalismo popular”, retrata a vulnerabilidade física do indivíduo diante do
ambiente moderno através de matérias e cartuns publicados nos jornais sensacionalistas da
época.
4.2. Modernidade e experiência subjetiva nas cidades
No supracitado artigo, Ben Singer chama atenção para as muitas idéias que se
sobrepõem ao termo modernidade e destaca que possivelmente três dominaram o pensamento
moderno. A primeira idéia estaria vinculada ao conceito moral e político, onde o indivíduo
desamparado ideologicamente em “um mundo pós-sagrado e pós-feudal” (SINGER, 2004, p.
44
Disponível em: <http://www.ull.es/publicaciones/latina/bienaldecomunicacionmesa2.pdf>. Acesso: 14 out. 2005.
45
Charles Baudelaire, ao descrever a modernidade no seu célebre ensaio “O pintor da vida moderna”.
95
95) vê as normas e os valores tradicionais serem questionados. A segunda estaria vinculada ao
conceito cognitivo que aponta para o nascimento da perspectiva racional onde o indivíduo
percebe e constrói o mundo a sua volta. A terceira, relacionada ao conceito socioeconômico,
reflete o das grandes modificações tecnológicas e sociais, principalmente, no final do século
XIX com o advento da industrializão, da urbanização e do conseqüente crescimento
populacional seguido pela propagação das tecnologias, dos meios de transportes, do
capitalismo avançado e do surgimento da cultura de consumo de massa. Singer, ao citar,
ainda, uma quarta grande definição da modernidade nos aponta os teóricos sociais Georg
Simmel, Siegfried Kracauer e Walter Benjamin, como os teóricos da concepção neurológica
da modernidade. Segundo o autor, esses três importantes pensadores consolidaram a idéia de
que a modernidade também deve ser entendida como um registro da experiência subjetiva
essencialmente diferente por ter sido caracterizada pelos choques físicos e perceptivos do
ambiente urbano moderno. Essa argumentação é um desdobramento da concepção
socioeconômica da modernidade por enfatizar a maneira pela quais essas mudanças alteraram
a estrutura da experiência individual.
A modernidade implicou um mundo fenomenal especificamente urbano que era
marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases
anteriores da cultura humana. Em meio à turbulência sem precedentes do tráfego,
barulho, painéis, sinais de trânsito, multidões que se acotovelavam, vitrines e
anúncios da cidade grande, o indivíduo defrontou-se com uma nova intensidade de
estimulação sensorial (SINGER, 2004, p. 96).
Segundo o autor, a metrópole sujeita o indivíduo a um bombardeio de impressões,
choques e sobressaltos que alteram seu ritmo de vida, podendo a modernidade ser pensada
como transformadora dos fundamentos fisiológicos e psicológicos da experiência subjetiva.
Georg Simmel, no seu citado ensaio de 1902, descreve que a experiência da vida
metropolitana implica uma consciência elevada e uma predominância da inteligência, ficando
a intelectualidade responsável pela preservação da vida subjetiva contra o poder avassalador
da vida metropolitana.
96
O rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade acentuada ao
alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas: essas
são as condições psicológicas criadas pela metrópole. A cada cruzar de rua, com o
ritmo e a multiplicidade da vida econômica, ocupacional e social, a cidade cria um
contraste profundo com a cidade pequena e a vida rural em relação aos fundamentos
sensoriais da vida psíquica (Simmel In: SINGER, 2004, p. 96).
Até a virada do século XX as cidades nunca tinham sido tão movimentadas como se
tornaram com o repentino aumento da população urbana. Nos Estados Unidos, por exemplo,
entre os anos de 1870 e 1910, essa população mais do que quadruplicou
46
, ocasionando uma
intensificação da atividade comercial, uma nova densidade e complexidade no trânsito das
ruas e uma proliferação dos sinais, principalmente depois da chegada dos bondes elétricos. As
cidades tornaram-se assim ambientes abarrotados, caóticos e muito mais estimulantes como
jamais havia sido visto no passado. As imagens dos primeiros filmes que retrataram a
atualidade de Manhattan, Berlim, Londres, Paris ou mesmo as cidades menores, funcionaram
como uma síntese da afirmação de Simmel sobre os aspectos da experiência moderna.
Visando contextualizar as concepções da modernidade em Kracauer e Benjamim, faz-se
necessário voltarmos nosso olhar para os períodos que antecederam e os que se seguiram ao
das formulações de suas idéias. Por um lado, evidencia Singer, essas concepções anteciparam
o que os teóricos contemporâneos descreveram como a condição da pós-modernidade ao
definirem suas urgências, intensidades, sobrecarga sensorial, desorientação, a profusão de
sinais e imagens muitas vezes se aproximando da concepção neurológica da modernidade.
Por outro lado, quando Kracauer e Benjamim observam as idéias das décadas próximas
ao início do século XX enfatizam que a modernidade havia sido responsável pelo aumento
radical da estimulação nervosa e do risco corporal. Essa preocupação pôde ser notada nos
ensaios publicados em revistas acadêmicas e em manifestos estéticos como os de Filippo
Tommaso Marinetti responsável pelo manifesto fundador do movimento Futurista na Itália ou
por um dos mais destacados pintores cubista, Fernand Leger. Também sendo ressaltada em
46
Dados disponíveis no referido artigo na p 96.
97
comentários leigos e em cartuns publicados nas revistas cômicas e em jornais populares
sensacionalistas que circulavam na época.
O historiador Henry Adams, no seu clássico livro da literatura americana, The
Education of Henry Adams, datado de 1905, descreve a vida urbana moderna utilizando a
narrativa característica do período a fim de delinear as reviravoltas sensoriais ocasionadas no
indivíduo:
Forças agarravam seus [do homem moderno] pulsos e o arremessavam como se ele
estivesse segurando um arame eletrizado... Todos os dias a Natureza violentamente
revoltada causava supostos acidentes com enorme destruição de propriedades e
vidas, enquanto nitidamente ria do homem, que gemia e clamava e estremecia
impotente, mas nunca por um único instante podia parar. As estradas de ferro
sozinhas aproximaram-se da carnificina da guerra; os automóveis e as armas de fogo
devastaram a sociedade, até que um terremoto tornou-se quase um relaxamento
nervoso (Adams In: SINGER, 2004, p. 98).
Continuando com sua análise, Singer nos apresenta Michael Davis, um nova-iorquino
partidário do movimento da reforma social, como o autor do termo apropriado e
surpreendentemente na moda para descrever o novo ambiente metropolitano. Davis, em
1910, declara que a modernidade era definida pelo hiperestímulo (SINGER, 2004, p. 98).
Ao retomar a questão da imprensa ilustrada, o autor nos informa que as revistas cômicas
e os jornais sensacionalistas, ao observarem de perto o caos do ambiente moderno, acabaram
por fornecer um amplo e particular registro de fixação da cultura aos ataques sensoriais da
modernidade. Muitos cartuns reproduziram a nova paisagem do assédio comercial como
sendo um estímulo terrível e agressivo, outros, ao retratarem os aglomerados caóticos de
pedestres ilustraram o que o filósofo Walter Benjamin sugeriu como sentimento de medo,
repulsa e horror, o que a multidão da cidade grande causava naqueles que a observavam pela
primeira vez. Ao destacar uma ilustração de 1909, publicada na revista Life, sob o título
“Cidade de Nova York: ela vale a pena?”, o autor nos revela que ela não só marcou a
representação da metrópole como uma investida violenta e frenética de choques sensoriais
como também a combinação de perspectivas espaço-temporais marcou um campo visual
98
único e instantâneo nos transmitindo a intensidade e a fragmentação das percepções da
experiência urbana.
Utilizando como exemplo um outro cartun, publicado na mesma revista nove anos
antes, intitulado “Broadway Passado e Presente”, Singer descreve a ilustração como um
contraste entre uma cena pastoril e outra de um bonde que se aproxima de maneira veloz
diante de pedestres apavorados. Ao nos apontar esse exemplo o autor aproveita para acentuar
que diversas ilustrações retrataram a colisão da experiência pré-moderna onde vigorava o
equilíbrio, a estabilidade e a serenidade para o da crise moderna onde se configurava o
transtorno, o choque e a selvageria. Era comum ver estampado em diversas imagens o embate
entre carras puxadas por cavalos o meio tradicional de transporte e o seu substituto
moderno, o bonde elétrico.
O jornal The Standard, publicado no ano de 1895, ganha destaque do autor por nos
apresentar um texto exasperado que segue logo abaixo da ilustração intitulada O horror do
Brooklyn!”:
O carro de bonde implacável acrescentou outra vítima à sua lista de inocentes
massacrados e continua sem controle. Milhares de cidadãos protestaram e uma
imprensa unida atacou, sem resultado, o monopólio impiedoso do bonde. Até o
prefeito está fraco e sem apoio. A mortandade continua. O que o Brooklyn fará?
(SINGER, 2004, p. 104)
Todas essas figuras tinham em comum a peculiaridade de comunicar a ansiedade dos
cidadãos com relação aos perigos da vida na cidade moderna, mas também tinham como
característica a representação dos tipos de choques e sobressaltos nervosos pelos quais os
indivíduos passaram a ficar submetidos diante do novo ambiente urbano.
Os terrores do trânsito da cidade grande foi o tema dominante da virada do século,
principalmente com relação aos riscos dos bondes elétricos. Uma abundância de imagens
representando “torrentes de pedestres feridos, pilhas de ‘inocentes massacrados’ e figuras de
esqueletos regozijados personificavam a morte focando os novos perigos do ambiente urbano
tecnologizado” (id., ibid., p. 103). O autor nos chama atenção para o fato da morte não natural
99
ter sido uma fonte de preocupação dos tempos pré-modernos, especialmente as relacionadas
com as doenças epidêmicas e as ocasionadas pela falta de alimento, mas a morte na metrópole
ganha um caráter acidental, violento, repentino e aleatório, contribuindo para intensificação e
focalização desse temor. Num artigo, publicado em 1894, no jornal Newark Daily Advertiser,
Singer descreve um texto sobre a morte do cidadão Isaac Bartle para nos apontar como o seu
fantasma penetrou a consciência moderna:
Issac Bartle, um cidadão proeminente de New Brunswick, foi morto
instantaneamente na estação da rua do mercado da Ferrovia Pensilvânia nesta
manhã. Seu corpo foi terrivelmente mutilado e os restos mortais tiveram que ser
recolhidos com uma e levados embora em uma cesta... Ele foi reduzido a uma
massa irreconhecível debaixo das rodas de uma locomotiva de carga pesada. A
locomotiva golpeou Mr.Bartle por trás e o arrastou diversos metros ao longo do
trilho, mutilando seu corpo de um modo horrível. Praticamente cada osso foi
quebrado, a carne feita em pedaços e distribuída ao longo do trilho, e o corpo foi tão
completamente dilacerado que as moedas e a faca no bolso das calças foram
entortadas ou quebradas, e o talão de cheques, a carteira e os papéis foram
despedaçados (SINGER, 2004, p. 106).
Sem dúvida, afirma o autor, essas descrições foram motivadas em grande parte pelo fato
de o sensacionalismo grotesco vender jornais. Mas podemos observar que, mais do que uma
simples manifestação de curiosidade mórbida e oportunismo econômico, essa minuciosa
descrição dos detalhes corporais na morte acidental de Isaac Bartle parece uma tentativa de
comunicar uma hiperconsciência da vulnerabilidade física frente ao novo ambiente.
O caos da cidade moderna parece ter alterado a experiência subjetiva do indivíduo não
quanto ao seu impacto visual e auditivo, mas também quanto a sua carga de ansiedade e
suas tensões mais profundas. Utilizando-se de uma descrição de Walter Benjamin, Singer nos
diz que a experiência moderna, “como a energia de uma bateria”, acionou um constante
estado de reflexos e impulsos nervosos que passaram a fluir por todo corpo. Interessante notar
que as ilustrações de acidentes quase sempre utilizaram um esquema de representação
particular: “Elas eram obrigadas, é claro, a mostrar a vítima no instante do choque mais
intenso, pouco antes da morte, mas junto com isso elas quase sempre mostravam um
espectador assustado, assistindo a tudo horrorizado, seu corpo retesado num ato reflexo” (id.,
100
ibid., p. 107). Desse modo, podemos dizer, que essas imagens não realçaram os perigos da
vida na cidade moderna como também enfatizaram as conseqüências dos choques nervosos
sem trégua.
Por outro lado o autor Leo Charney vai nos apontar que diante desse ambiente de
sensações fugazes e distrações efêmeras, críticos e filósofos procuraram identificar a
possibilidade de se experimentar um instante. Conforme nos aponta Charney, o instante existe
na medida em que o indivíduo experimenta uma sensação imediata e palpável,
proporcionando uma sensação tão intensa e tão fortemente sentida que se esvaece assim que é
conhecida pela primeira vez.
A experiência da sensação forte possibilita a vivência de um instante, tanto por meio
de uma intensidade de sensação que indica uma presença imediata, quanto por meio
da diminuição de intensidade pela qual o instante contrasta com aquele menos
intenso que o sucede (CHARNEY, 2004, p. 317).
Citando pensadores como Walter Pater, Walter Benjamin, Martin Heidegger e Jean
Epstein, que através da categoria do instante buscaram resgatar a possibilidade da experiência
sensorial diante do caráter efêmero da modernidade, o autor observa que o conceito do
instante possibilitou a fixação do momento da sensação, entretanto, destaca, que esse esforço
de estabilidade se defrontou com o fato inevitável de que nenhum instante pode permanecer
fixo. Tal dilema levou esses pensadores a definirem o moderno como momentâneo e para isso
traçaram dois conceitos interligados: o primeiro estaria ligado ao esvaziamento da presença
estável pelo movimento e o seguinte pela conseqüente separação entre a sensação que se sente
o instante no instante e a cognição, que reconhece o instante somente depois dele ter
acontecido. Juntos, enfatiza o autor, esses dois aspectos do instante moderno criaram uma
nova forma de experiência no cinema.
Enfatizando o pensamento de Heidegger, Charney vai nos dizer que esse esvaziamento
do presente teve conseqüências de longo alcance para a experiência do tempo na
modernidade. Porque, segundo o autor, se a sensação e a cognição não podem habitar o
101
mesmo instante, então o presente está perdido. Na medida em que a presença contextualiza
uma categoria da consciência, ela só existe pela capacidade de reconhecê-la.
O presente, de fato, não pode ocorrer, uma vez que a mente pode reconhecer o
presente somente depois que ele não é mais presente; o presente pode ser
reconhecido somente depois de ter se tornado passado. Não podemos nunca estar
presentes em um presente (id., ibid., p. 320).
Ressaltando o pensamento de Heidegger, o autor nos aponta que o filósofo alemão, ao
classificar esse “estar-perdido”, inscreveu uma alienação fundamental na estrutura da vida
diária. Simultaneamente com a modernidade surge a consciência de que as pessoas estavam
presentes, de antemão, alienadas do tempo em que estavam vivendo. Entretanto, essa
sensação de mudança na concepção do presente podia ser parcialmente resgatada caso fossem
valorizadas as respostas sensoriais, corporais e pré-racionais por possuírem o privilégio de
ocupar um instante no presente. Conforme destaca o autor, “dizer que não podemos
reconhecer o presente no instante da presença não é dizer que o presente não pode existir,
simplesmente é dizer que ele existe como sentido, experimentado, não no reino do catálogo
racional, mas no reino da sensação corporal” (CHARNEY, 2004, p. 320).
Retomando nossa contextualização sobre o ambiente urbano e seu reflexo na
experiência subjetiva, voltamos nosso olhar para o período que compreende os anos de 1903 e
1904, onde Ben Singer nos aponta uma considerável queda do interesse por parte da imprensa
sensacionalista aos acidentes ocasionados pelos bondes elétricos. Entretanto, quando o
público parecia estar mais adaptado ao seu tráfego surge outro perigo, o automóvel, que,
assumindo uma posição equivalente, passa a ser o tema central da imaginação distópica da
modernidade. Em uma ilustração datada de 1913, intitulada “Quando os motoristas sem
habilitação estão à solta”, o autor utiliza uma observação proposta por Benjamin para nos
resumir o momento: “Mover-se pelo tráfego envolve o indivíduo em uma série de choques e
colisões” (Benjamin In: SINGER, 2004, p. 107).
102
Na virada do século, além dos perigos do tfego, outros temas ganharam destaque nas
principais páginas da imprensa sensacionalista. Um primeiro estaria relacionado à retratação
da morte de trabalhadores mutilados pelas máquinas das fábricas, onde Singer nos aponta dois
exemplos de títulos utilizados pelo jornal Newark Daily Advertiser em 1894: “Arremessado
para a morte instantânea: corpo é preso em rápidas correias giratórias e esmagado contra o
teto a cada volta” e “Morte terrível de um gari: sua cabeça quase foi arrancada por uma
máquina de varrer” (SINGER, 2004, p. 107). A atenção exacerbada à morte acidental e
impressionante no local do trabalho como as várias histórias sobre as mortes no tnsito
colocou a tecnologia moderna como uma ameaça monstruosa à vida e ao corpo, enfatizando
uma dimensão arriscada da experiência da vida moderna vivenciada, principalmente, pela
classe trabalhadora que, não por acaso, constituía o principal leitor desse tipo de notícia.
Outro tema que também ganhou evidência na experiência moderna da classe
trabalhadora foi a abordagem das mortes relacionadas aos riscos das moradias populares, que
variavam de ataques brutais de vizinhos enlouquecidos a mortes relacionadas com a nova
arquitetura das habitações populares. Muitas vezes essas histórias ressaltavam a impressão de
que perigos incontroláveis estavam por toda parte no ambiente moderno. Destacando como
exemplo a morte de uma menininha que teve o crânio perfurado por uma vara de ferro
enferrujada, Singer descreve o relato publicado no jornal New York World em 1896:
De onde a vara surgiu ou como teve força suficiente para ferir é um mistério. A
criança estava brincando no quintal quando a vara, propelida por uma força
invisível, forçou caminho no meio dos galhos de uma cerejeira, penetrando o crânio
da menina. A menininha morreu em grande agonia esta manhã (SINGER, 2004, p.
110).
Uma outra questão observada pelo autor como sendo uma preocupação da imprensa
sensacionalista na época foram as quedas de grandes alturas. Embora possa parecer que esse
tema não tenha uma relação com as ansiedades da vida moderna, cabe-nos apontar que,
exceto quando a queda não era por suicídio, as ilustrações representavam acidentes de
trabalho, transmitindo, num sentido mais amplo, os perigos do trabalho proletário. Algumas
103
quedas ressaltavam a opressão do acaso no ambiente moderno e os perigos casuais da vida nas
habitações populares. É o caso de outra ilustração apontada por Singer, “Homem em queda
mata um menino”, publicada no mesmo jornal, onde a imagem retrata um menininho prestes a
morrer esmagado por pintores caindo de um andaime que acabara de se quebrar (id., ibid., p.
110).
Os retratos da modernidade urbana tão bem ilustrados pela imprensa oscilavam,
paradoxalmente, entre uma crítica social por parte das imagens do fenômeno do hiperestímulo
moderno e o interesse comercial de retratar o realismo cotidiano num tom mais drástico.
Afinal, em conformidade com o pensamento do autor, clamor público e emoções fortes
promovem as vendas de jornais.
A preocupação da imprensa ilustrada com os riscos cotidianos refletia as ansiedades de
uma sociedade que ainda se encontrava num processo de adaptação à modernidade urbana.
Embora tivessem passado cem anos do início do projeto moderno, a vida nas grandes
metrópoles ainda era tida como opressiva, estranha e traumática. Segundo Singer, a
modernidade transformou não apenas a estrutura da experiência diária como também a
experiência programada, na medida em que o ambiente moderno ficava cada vez mais
intenso.
No final do século XIX os entretenimentos comerciais ganharam expressão com o
aumento da quantidade de diversões e da ênfase dada ao espetáculo, ao sensacionalismo e a
surpresa. Esses elementos, numa escala mais modesta, tinham feito parte das diversões
voltadas para platéias proletárias, mas a nova prevalência e o poder da sensação imediata e
emocionante definiram uma era essencialmente diferente no entretenimento popular. A
modernidade inaugura, também, o comércio de choques sensoriais, fazendo emergir o
suspense como a tônica da diversão moderna.
104
Por volta de 1895 o suspense assumiu várias formas. Conforme vimos, os jornais
sensacionalistas encheram suas páginas com ilustrações impactantes que envolviam qualquer
episódio estranho, sórdido ou chocante. Após a inauguração, no mesmo ano, do parque de
diversões em Coney Island
47
, outros parques especializados em vistas exóticas, espetáculos de
desastres e passeios mecânicos emocionantes se proliferaram por todo país. Para Singer, essas
concentrações de sensação visual e cinética resumiram uma intensidade distintamente
moderna do estímulo fabricado e destaca a proeminência das exibições mecânicas como o
“Redemoinho da Morte” e “O Globo da Morte”, onde era possível assistir um carro dando
uma cambalhota no ar depois de descer uma rampa de doze metros (SINGER, 2004, p. 112).
A espetacularização do divertimento comercial encontrou no final do século o
melodrama como uma forma de garantir uma série de emoções que utilizava ações violentas,
acrobacias e espetáculos que envolviam catástrofe e risco físico. Ao nos apontar o melodrama
Bertha, the Sewing Machine Girl, de 1906, de autoria de Theodore Kramer, como um
exemplo característico deste tipo de melodrama, Singer descreve suas cenas como sendo uma
corrida de quatro sentidos entre dois automóveis, uma locomotiva e uma bicicleta, e também
uma corrida de barco a motor, carros de bombeiros apressando-se na direção de um edifício
em chamas, várias cenas de tortura e um clímax feito de um ciclone no qual o vilão fora morto
por um raio (id., ibid., p. 114).
O surgimento do cinema, segundo o autor, culminou com esta tendência de sensações
vívidas e intensas marcando o início de um sentimento de excitação que predominou no
cinema das atrações
48
e nos vigorosos melodramas de suspense como, por exemplo, os
thrillers de D.W. Griffith, produtor da Biograph entre 1908 e 1909. Os filmes seriados The
Perils of Pauline e The Exploits of Elaine, do início da década de 10, tiveram como
47
Lugar muito antigo ainda preservado da Velha Nova York. No século XIX, milhares de turistas iam visitar Coney Island
buscando sossego, praia e alguns parques de diversão como o Luna Park, o Dreamland e o Steepplechase. Hoje em dia esses
parques pouco são visitados e alguns brinquedos estão construídos, mas nunca funcionando. Disponível em:
<http://www.guianyc.hpg.ig.com.br/coney.htm>. Acesso: 11 nov. 2005.
48
Segundo Ben Singer, o termo “cinema das atrações” foi cunhado pelo historiador de cinema Tom Gunning para definir
filmes centrados no espetáculo, antes do surgimento da integração narrativa, por volta de 1906 (SINGER, 2004, p. 114).
105
característica o aperfeiçoamento de todas as formas de perigo físico e espetáculo sensacional
ao exibir cenas de explosões, colisões, engenhocas de tortura, encenações elaboradas de lutas,
perseguições e resgates no último minuto. A vanguarda modernista, seduzida pelas intensas
emoções da modernidade, se apossou dessas séries e do cinema em geral, como um emblema
da descontinuidade e da velocidade modernas. Ao citar Marinetti e outros futuristas, Singer
vai nos dizer que eles celebraram a agitação do cinema como uma mistura de objetos e
realidade reunidos aleatoriamente. para os surrealistas franceses, essas séries
sensacionalistas foram o marco de uma época por anunciarem as reviravoltas do novo mundo.
Esses autores reconheceram a marca da modernidade tanto como conteúdo
sensacionalista do ciné-feuilleton (“crimes, partidas, fenômenos, nada menos do que
a poesia da nossa época”) quanto no poder do cinema como veículo para transmitir
velocidade, simultaneidade, superabundância visual e choque visceral (como
Eisenstein, Vertov e outros cineastas/teóricos iriam em breve reelaborar) (SINGER,
2004, p. 115).
Voltando a citar Kracauer e Benjamin, o autor nos aponta que na concepção desses
pensadores essa ampla escalada do divertimento sensacionalista foi visivelmente um sinal dos
tempos, podendo ser compreendido como uma contrapartida estética às transformações
radicais do espo, do tempo e da indústria. Evitando uma explicação estritamente
socioeconômica, esses autores conceberam a comercialização do suspense como um reflexo e
um sintoma da modernidade neurológica acrescentando que o crescimento e a intensidade dos
entretenimentos populares corresponderam a uma nova estrutura da vida diária.
Em 1926, Kracauer argumentava que os divertimentos fundamentados na distração
fortes impressões desconectadas, atropeladas e intensas eram tão expressivas que serviram
como reflexo da anarquia descontrolada do novo mundo. A platéia, segundo Kracauer, se
reconhece na pura exterioridade onde sua realidade particular se vê revelada na seqüência
fragmentada de esplêndidas impressões. “Os espetáculos que visam à distração são compostos
da mesma combinação de dados exteriores que caracteriza o mundo das massas urbanas”
(Kracauer apud SINGER, 2004, p. 115). Kracauer, ao concluir sua citação, nos afirma que a
106
estética da excitação superficial e da estimulação sensorial assemelhou-se ao tecido da
experiência urbana e tecnológica.
Quase uma década depois, Benjamin revê esse conceito em dois ensaios de sua autoria:
um publicado em 1936 sobre a obra de arte e um outro, de 1939, sobre Baudelaire, onde
afirma que o “cinema corresponde a mudanças profundas no aparelho aperceptivo
mudanças que são experimentadas, em uma escala individual, pelo homem na rua, no tráfego
da cidade grande e, em uma escala histórica, por qualquer cidadão dos dias de hoje”
(Benjamin apud SINGER, 2004, p. 115). O ritmo rápido do cinema e sua fragmentação
audiovisual de alto impacto constituíram um paralelo aos choques e intensidades sensoriais da
vida moderna. Segundo Benjamin “em um filme, a percepção na forma de choques foi
estabelecida como um princípio formal. Aquilo que determina o ritmo de produção em uma
esteira rolante é a base do ritmo de recepção no cinema” (id., ibid., p. 115).
De acordo com Singer, a argumentação que o cinema era a principal expressão da nova
experiência metropolitana foi amplamente analisado por críticos da época, chegando a
alcançar o discurso acadêmico. Em um ensaio datado de 1912, publicado no American
Journal of Sociology, o professor do City College de Nova York, Howard Woolston, ressaltou
a conexão entre a experiência moderna e a predileção pelos choques intensos proporcionado
pelo entretenimento. Catalogando uma série de barulhos da cidade e de situações com a
multidão, Woolston observa que
a vida urbana é marcada por sua estimulação acentuada... Essa excitação instiga
profundamente o sistema nervoso. O resultado natural da vida na cidade é um
nervosismo crescente. A corrente agitada na qual os homens ficam imersos produz
indivíduos alertas, ativos, prontos para buscar novas satisfações. A recreação dos
moradores da cidade é talvez o índice mais fiel de suas reações características. O
divertimento mais popular das grandes cidades hoje é fornecido por tavernas, salões
de dança, teatro de variedades e exibições de imagens em movimento. Coney Island,
com suas “cachoeiras” e “solavancos”, “acrobacias aéreas da morte” e “balanços
circulares”, “aparelhos que fazem cócegas”, peep shows, bares e maravilhas
gastronômicas diversas, é a estação de lazer favorita de milhares de jovens nova-
iorquinos. “alguma coisa acontecendo a cada minuto”... Tudo isso tende a
estimular uma atenção esgotada, por meio de uma sucessão de choques curtos e
intensos que reavivam o organismo cansado para atividades renovadas (Woolston
apud SINGER, 2004, p. 116).
107
Esse amplo e diversificado discurso em torno do sujeito da modernidade que vai das
inúmeras representações do choque urbano às múltiplas tentativas para compreender o
sensacionalismo popular como um sintoma do hiperestímulo moderno apresenta uma
fixação crítica no sentido de uma urgência ansiosa para documentar e analisar
minuciosamente uma transformação social temerosa. No cerne dessa fixação, segundo o
autor, encontravam-se importantes observadores da modernidade que sentiram o choque do
novo em primeira mão por vivenciarem uma cultura que ainda não tinha se ajustado
completamente às transformações repentinas da experiência. “A fixação crítica na
modernidade e no sensacionalismo ressalta, se não a angústia, pelo menos a ansiedade de uma
geração que podia ainda sentir tal desequilíbrio” (SINGER, 2004, p. 119).
Cabe-nos destacar que diante dessa longa, porém oportuna análise sobre o cenário
empírico da modernidade, “nosso mais próximo passado”, como nos aponta Ieda Tucherman
(2005), tentamos traçar um paralelo entre o desenvolvimento dos grandes centros urbanos e a
experiência subjetiva e social do início do século XX. A fim de atualizarmos nosso debate
estaremos voltando nossa pesquisa para nova dinâmica espaço-temporal e as configurações da
vida subjetiva diante do atual cenário contemporâneo.
4.3. A espacialidade contemporânea
Pensar a contemporaneidade é refletir sobre as novas práticas espaciais e os fluxos
subjetivos que atravessam o atual cenário das metrópoles, diante de tal paisagem não
podemos deixar de citar a célebre frase do sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, quando ele
nos diz que “hoje em dia estamos todos em movimento” (BAUMAN, 1999, p. 85).
Tomando como base essa afirmação, a socióloga Maria Isabel Mendes de Almeida e a
antropóloga Kátia Maria de Almeida Tracy apresentam no livro Noites nômades uma ampla
108
pesquisa realizada com a população jovem freqüentadora da night do Rio de Janeiro
inaugurando uma reflexão sobre as práticas comportamentais e discursivas que vêm
reescrevendo o espaço urbano.
Diante das espacialidades contemporâneas, as autoras apontam o artigo pioneiro do
filósofo francês Michel Foucault, “Outros espaços”, para assinalar que o deslocamento das
relações entre o tempo e o espaço é a causa da inquietude presente. Se no século XIX a grande
obsessão foi pensar a história abordando temas como o desenvolvimento e a estagnação, a
crise e o ciclo, a acumulação do passado e a grande sobrecarga de mortos, podemos dizer que
na época atual encontramos o pensamento voltado para o espaço. Essa experiência pode ser
observada numa série de transformações que configuram a produção social em substituição a
localização física. Foucault, segundo as autoras, não estaria interessado apenas em apontar
para a centralidade do espaço, mas para sua flexibilização, por entender que a
contemporaneidade estaria proporcionando uma experimentação de dessacralização prática do
espaço, assim como ocorreu com o tempo durante a modernidade (ALMEIDA; TRACY,
2003, p. 26).
A partir desse interesse, Foucault dedicou-se a pensar os lugares como tendo “a curiosa
propriedade de estar em relação com todos os outros, mas sob um modo tal que eles
suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto das relações que se encontram, para eles,
previamente designadas” (Foucault In: ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 26). Ao cunhar o termo
heterotopia, em oposição às utopias, o filósofo destaca que esses espaços seriam diferentes
dos espaços culturais ordinários que habitamos por serem lugares efetivamente realizados,
enquanto as utopias são um posicionamento sem lugar real. Assim, as heterotopias podem ser
consideradas lugares outros em relação aos espaços culturais habituais.
Michel Foucault, ao propor um mapeamento dos espaços heterotópicos, consolida o
termo heterotopologia nos enumerando alguns de seus princípios: o primeiro seria que não
109
sociedade sem heterotopias e que ela é uma constante em qualquer grupo humano; o segundo
seria que o funcionamento das heterotopias pode variar historicamente; o terceiro estaria
relacionado a capacidade que as heterotopias têm de justapor vários espaços em si mesmos
incompatíveis; o quarto estaria associado as freqüentes rupturas com o tempo tradicional
(“heterocronias”); e finalmente o último traço é que as heterotopias supõem um sistema de
abertura e fechamento espacial que as isola e as torna penetráveis simultaneamente (id., ibid.,
p. 27)
A particularidade desses espaços é a sua alteridade, é a relação de diferença que
estabelece com outros espaços produzindo uma desestabilização nas relações espaciais em
torno de práticas sociais e discursivas. Segundo Almeida e Tracy, desde que Foucault
conceituou a heterotopia, diferentes autores têm utilizado o termo, principalmente no âmbito
das culturas jovens, para pensar as formações identitárias e os atos de resistência vinculados a
lugares tidos como alternativos. Nos apresentando o sociólogo inglês Kevin Hetherington
como um dos autores que melhor interpretou a dimensão relacional dos espaços heterotópicos,
as autoras nos apontam que
nenhum espaço pode ser descrito de modo fixo como heterotópico, pois estes m
significados múltiplos e variáveis para os agentes sociais, dependendo de sua
situação específica. Além do mais, não dizem respeito, a priori, à resistência ou à
ordem, mas podem estar relacionados a um ou a outro, que envolvem o
estabelecimento de modos alternativos de organização (ALMEIDA; TRACY, 2003,
p. 27).
Corroborando com o pensamento de Hetherington, Almeida e Tracy, destacam que
dessa combinação heterogênea entre materialidade, práticas sociais, eventos situados e o que
eles representam em oposição a outros espaços é que vamos poder classificá-los como
heterotópicos. Apontando que as heterotopias, ao envolverem novos modos espaciais de
interação social e discurso, acabam por promover a sociabilidade. Entretanto, ao discordarem
da afirmativa que os espaços heterotópicos podem ser definidos por uma diferença de
representação em torno de formas alternativas de organização espacial, as autoras assinalam
110
que as heterotopias podem ser definidas, principalmente, por práticas espacializantes, a um
tempo concretas e simbólicas, que não se encontram necessariamente localizadas e nem
sempre estão condicionadas a variáveis ideológicas ou movimentos de resistência.
Dialogando com o pensamento de Michel De Certeau, as autoras utilizam o clássico
conceito de diferenciação entre espaço e lugar, como também a definição do espaço como
“lugar praticado”, para argumentar que o “lugar é a ordem segundo a qual os diferentes
elementos (tanto volumes quanto superfícies) que compõem materialmente a realidade
organizam-se uns em relação aos outros, segundo eixos precisos (ordenadas e coordenadas)”
(De Certeau apud ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 28). O lugar, como proposto pelo autor,
compreende uma configuração instantânea de posição implicando uma indicação de
estabilidade, que os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um
situado num lugar ‘próprio’ e distinto” (id., ibid., p. 28). Aqui, o espaço, diferente do lugar,
não possui unicidade e estabilidade, pelo contrário, o espaço existe sempre que se leva em
consideração vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. Nesse sentido,
o espaço é constituído pelo cruzamento do movimento de corpos ou fragmentos, e animado
pelo conjunto de deslocamentos que aí se desdobram. Portanto, o espaço “é o efeito produzido
pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em
torno da unidade polivalente de programas conflituosos” (De Certeau, apud ALMEIDA;
TRACY, 2003, p. 28).
Dando prosseguimento as análises propostas por Foucault e De Certeau, as autoras
voltam seu argumento para os movimentos contemporâneos enquanto sua capacidade de
reescrever o espaço como resultado de práticas históricas e eventuais, para além das
coordenadas estáticas que demarcam a ordem dos lugares. Trata-se, assim, de pensar o tempo
e o espaço simultaneamente, e a ambos como produtos de inter-relações. Segundo as autoras:
Uma vez superada a hipótese de que espaço e tempo são categorias mutuamente
exclusivas, uma vez admitido que o espaço é composto por uma multiplicidade de
histórias, percebe-se que nada poderia ser a um tempo mais ordenado e mais
111
caótico que o espaço, com todas as suas justaposições inusitadas e efeitos
emergentes involuntários (ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 29).
Desse modo, o aspecto político-cultural mais marcante da contemporaneidade parece
ser as inúmeras modificações pelas quais vem atravessando a metrópole como um modelo de
organização social e espacial. Citando o antropólogo italiano Massimo Canevacci, as autoras
enfatizam que estamos vivenciando a transição de uma “forma-cidade como coração da
modernidade, com contornos espaciais precisos, perspectivas geométricas e divisões em
classes precisas, cidade para ser construída no projeto e através do projeto, a uma forma-
metrópole que dissolve tudo isso: uma metrópole comunicativa” (Canevacci apud
ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 29).
O conjunto de características da nova forma-metrópole não seria delimitado por limites
materiais precisos, mas pelos fluxos comunicacionais que inauguram, em todos os níveis, um
duplo processo de fragmentação e recombinação. Assim, pode-se dizer que a metrópole
contemporânea é policêntrica, pois se difunde e prolifera-se em múltiplas direções, e
polifônica, pois nela novos tipos de culturas fortemente pluralizadas e fragmentadas
espalham-se e transitam.
Segundo as autoras, isso introduz um artefato criativo nas experiências subjetivas e
sociais que vão contribuir para a desestabilização das identidades estáveis, nas suas extensões
filosóficas, antropológicas e jurídicas, gerando identidades múltiplas centradas essencialmente
na estetização corporal. Dessa forma,
uma pluralidade de culturas (e subculturas, com estilos de vida e identidade a-
tempo[rais], vidas estetizadas, modas descartáveis) fragmenta a metrópole e a dilata
sem mais fronteiras definidas: as fronteiras são móveis como as identidades,
fronteiras plurais e polifônicas (Canevacci apud ALMEIDA; TRACY, 2003, p.29).
A transformação da forma-metrópole, conforme apontada por Canevacci, faz parte de
um conjunto mais amplo de transformações que vêm chamando a atenção de diferentes
autores. As autoras, destacando como exemplo o pensamento do arquiteto e filósofo francês
Paul Virilio, enfatizam que os meios de comunicação de massa, tal como redefinidos pelas
112
tecnologias virtuais, acabam desempenhando um forte impacto sobre a arquitetura das cidades
e as formas de experiência urbana. Em sua análise sobre a atual sociedade tecnológica, Virilio
assinala que a nova configuração de espaço e tempo vai dar origem a fenômenos
socioculturais complexos que vão refletir diretamente nas nossas referências perceptivas,
cognitivas e políticas.
A respeito da contemporaneidade, Virilio sugere que os meios de comunicação de
massa organizam o mundo em função da produção e difusão de informações e imagens tendo
como princípio o binômio distância-velocidade. Atualmente, segundo o autor, assistimos (ao
vivo ou não) uma co-produção da realidade sensível onde as percepções diretas e
mediatizadas se confundem para construir uma representação instantânea do espaço, do meio
ambiente. “Termina a separação entre a realidade das distâncias (de tempo, de espaço) e a
distanciação das diversas representações (videográficas, infográficas)” (VIRILIO, 1999, p.
23). A observação direta dos fenômenos visíveis é substituída por uma “teleobservação” na
qual o observador não tem mais contato imediato com a realidade observada. Diante dessa
nova analogia entre a distância e a velocidade, podemos dizer que a era do virtual inaugura a
passagem do espaço contínuo e homogêneo para o espaço descontínuo e heterogêneo onde a
intercambialidade passa a prevalecer sobre a localização.
Dando prosseguimento a abordagem de Virilio, Almeida e Tracy apontam que assim
como em todos os outros aspectos da realidade objetiva, o espaço urbano também é
constituído e desconstituído pelo fluxo de transmissão de informações e imagens, o que
favorece a dissolução dos principais eixos de referência que pontuavam a experiência da
cidade, não em termos simbólicos e históricos (com o declínio da centralidade), como
também em termos geométricos (com a desvalorização da antiga divisão das dimensões
físicas).
Isso significa que a teletopologia dissolve a forma urbana: unidade de lugar sem
unidade de tempo, a cidade desaparece então na heterogeneidade do regime
temporal das tecnologias avançadas. Na cidade “superexposta” contemporânea,
113
libera-se um elemento constitutivo das experiências sociais, a “trajetividade”, que
formas anteriores de organização urbana teriam minimizado, devido à opção pelo
sedentarismo (ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 31).
Em conformidade com as autoras, pensamos a contemporaneidade como um conjunto
de alterações que produzem uma forma de experiência cultural qualitativamente distinta
daquela que ilustrou os diferentes desdobramentos da modernidade. Ao questionar sobre os
modos de circulação, especificamente no mundo contemporâneo, Almeida e Tracy voltam sua
análise para um olhar antropológico e destacam o pensamento do francês Marc Augé.
O mundo da supermodernidade, de acordo com o antropólogo, pode ser caracterizado
pela aceleração em todas as escalas da experimentação social e subjetiva que contribui para
produção de três características baseadas no excesso. Conforme identificada pelo autor, a
primeira característica contemporânea seria a superabundância espacial, seguida pelas
superabundâncias factual e identitária.
Analisando num primeiro momento a superabundância factual, podemos dizer que ela
está relacionada não apenas à crise do sistema de representação baseado no conceito de
progresso, “mas também à aceleração e multiplicação dos acontecimentos provocadas pela
revolução tecnológica nos meios de transporte e comunicação(ALMEIDA; TRACY, 2003,
p. 31). Do mesmo modo, descrevem as autoras, a superabundância espacial estaria
relacionada à crise dos sistemas de referências baseados na idéia de totalidade, crise esta
provocada pela redução das distâncias e pela facilidade de comunicação, acarretando a
dissolução das fronteiras materiais e culturais. A superabundância identitária, conectada a
todos os processos identificados anteriormente, seria caracterizada pela individualização
acentuada das referências, tornando múltiplos e flutuantes os mecanismos de identificação
tanto individuais quanto coletivos.
Se pensar o tempo parece ter sido o desafio da modernidade, reaprender a pensar o
espaço parece ser o desafio da supermodernidade. Conforme identificado anteriormente, a
mudança na espacialidade é o princípio ativo das figuras do excesso. Segundo as autoras,
114
Augé vai pensar o regime espacial como uma característica da contemporaneidade onde estão
pressupostas mudanças de escala que traduzem, concretamente, modificações físicas
consideráveis, como as concentrações urbanas, as transferências de população e a
multiplicação dos lugares de passagem caracterizando, assim, o que o autor chamará de “não-
lugares”.
A fim de descrever os não-lugares, Marc Augé os relacionará como as instalações
necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários,
aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda
as redes de cabo ou sem fio que mobilizam o espaço extraterrestre para a comunicação
(AUGÉ, 2003, p. 74-75). Ao analisarmos a categoria do não-lugar podemos dizer que eles se
definem em oposição à noção antropológica de lugar, por ser este atribuído a culturas
localizadas no tempo e no espaço, em torno das quais se fundam as representações
identitárias, coerentes e estáveis. Assim, destaca o autor, “se um lugar pode se definir como
identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário,
nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar” (AUGÉ, 2003, p. 73).
O autor, ao elucidar sobre a categoria dos não-lugares, nos aponta que eles agregam
duas realidades que apesar de se completarem, são distintas. De um lado, temos os espaços
estabelecidos com relação a determinados fins, tais como os transportes, o tnsito e o
comércio, de outro, temos a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços.
Se as duas relações se correspondem de maneira bastante ampla e, em todo caso,
oficialmente (os indivíduos viajam, compram, repousam), não se confundem, no
entanto, pois os não-lugares medeiam todo um conjunto de relações consigo e com
os outros que dizem respeito indiretamente a seus fins: assim como os lugares
antropológicos criam um social orgânico, os não-lugares criam tensão solitária. (id.,
ibid., p. 87).
Ao retomarmos a análise proposta por Almeida e Tracy, assinalamos que os não-lugares
se estruturam em torno da passagem, do provisório e do efêmero, estabelecendo uma relação
meramente contratual entre os passantes anônimos cuja circulação vai ser regulada por
115
máquinas automáticas e cartões de crédito. “Neles, não é possível estabelecer relações, nem
criar identidades singulares, mas sim individualidades solitárias” (id., ibid., p. 33).
Marc Augé nos profere que o não-lugar é o contrário da utopia porque além dele existir
não abriga nenhuma sociedade orgânica (id., ibid., p. 102). Massimo Canevacci, conforme
aponta as autoras, ao criticar a concepção do não-lugar tal como proposto por Augé, afirma
que este não teria percebido que a nova metrópole é sem sociedade e que por isso é sem
lugares. Afora isso, a popularização das tecnologias virtuais introduziu a mobilidade em todos
os planos da experiência e, apontando Paul Virilio, as autoras relacionam que o valor
estratégico do não-lugar da velocidade definitivamente suplantou o do lugar. “Nesse contexto,
o desafio analítico seria buscar recursos adequados para investigar as conseqüências dessa
mutação, além de enfrentar o desafio teórico de inovar conceitos adequados às novas formas
de comunicação visual” (ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 33).
O antropólogo indiano Arjun Appadurai, destacado pelas autoras como o autor de uma
proposta bem sucedida para enfrentar esse desafio, nos diz que não é possível esquadrinhar as
configurações sociais e subjetivas contemporâneas sem uma ampla sociologia do
deslocamento, porque, segundo Appadurai, tanto a mídia eletrônica quanto os múltiplos
movimentos migratórios teriam introduzido uma nova ordem de instabilidade nas formações
sociais e subjetivas (id., ibid., p. 33).
A proposta de Appadurai, segundo as autoras, é pensar “as formas culturais no mundo
contemporâneo como fundamentalmente ‘fractais’, ou seja, dotadas de fronteiras, estruturas e
regularidades não-euclidianas”
49
(Appadurai apud ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 33). A
ênfase, segundo o autor, deve ser dada à dinâmica cultural daquilo que agora é chamado de
desterritorialização. Esse termo também pode ser empregado tanto a objetos como a processos
49
Paul Virilio descreve a geometria de Euclides como “a geometria das superfícies regradas, regradas ou antes ‘reguladas’
pelo sistema de dimensões, pela decupagem de um cosmos em que a medida das superfícies dominava, tanto em termos de
extensão geográfica e do cadastro (urbano e rural) quanto a repartição arquitetônica dos elementos construídos” (VIRILIO,
1999, p. 23).
116
que, cada vez mais, operam de modo a transcender limites territoriais e identidades
específicas.
Buscando uma tradução para esse processo de deslocalização, no sentido de ultrapassar
os limites da nacionalidade, Appadurai propõe a utilização do sufixo scape
50
como uma
forma de descrever a forma fluída e irregular das atuais paisagens sociais e subjetivas
produzidas a partir dos fluxos tecnológicos, midiáticos, financeiros, ideológicos e étnicos. O
uso do sufixo também indicaria que os “processos qualificados como fluídos não dizem
respeito a relações objetivamente dadas, mas a produções discursivas e comportamentais
histórica e socialmente situadas” (Appadurai apud ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 34).
Desse modo, podemos dizer que o caráter definidor da contemporaneidade, não é a
qualidade objetiva dos lugares, nem a propriedade dimensional do movimento “nem algo
que estaria unicamente no espírito –, mas o modo de espacialização, a maneira de estar no
espaço, de ser no espaço” (ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 34). Esse novo regimento de
espacialização das experiências sociais e subjetivas, que se estrutura em torno do
deslocamento e não da fixação, nos remete as cibercidades tal como propostas no trabalho de
André Lemos.
4.4. Cibercidades
Em um artigo pioneiro sobre “Cibercidades”, André Lemos anuncia algumas
perspectivas de análise para o que vem sendo chamado cibercidade. Sugerindo, num primeiro
momento, analisar o conceito de cidade o autor vai nos dizer que “cidades são artefatos
criados pelos homens, no tempo e no espaço, na organização da vida em comum” (LEMOS,
2000, on-line).
51
50
Segundo o Dicionário Inglês-Português (2002), scape pode ser traduzido como evasão.
51
Disponível em: < http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/txt_and1.htm>. Acesso: 23 ago. 2005.
117
O historiador econômico francês Fernand Braudel, conforme cita Lemos, ao explorar as
estruturas da vida cotidiana, divide a configuração das cidades em três momentos históricos: a
cidade aberta, a cidade fechada e a cidade dominada. As antigas cidades de Roma e da Grécia
seriam as cidades abertas, as cidades sem rumo, onde “a linha que separava uma cidade de um
país não era muito definida” (Braudel apud LEMOS, 2000, on-line). Estas cidades teriam sido
substituídas pelas cidades fechadas dos burgos medievais, cidades muradas, limitadas e
protegidas dos inimigos externos. Segundo Braudel, no século XVI surgem as cidades
dominadas, cidades européias que começavam a perder sua independência passando a ficar
sob o julgamento das aristocracias européias. A grande mudança foi política: a cidadania, que
na sua origem significava uma ligação com a cidade, transforma-se numa ligão com o
Estado, substituindo, muitas vezes, a monarquia como poder urbano dominante.
Entretanto, segundo Lemos, é na virada do século XIX para o século XX que surgem as
cidades modernas, mais próximas do paradigma das cidades fechadas. A cidade industrial é
fechada no sentido físico e político-econômico, enquanto a cidade pós-industrial, por ser mais
aberta ao mundo, estaria próxima das cidades abertas da antiguidade. “Este é o caso das
cibercidades”, afirma o autor.
Atualizando seu debate sobre o tema, André Lemos, no artigo intitulado “Cibercidades
um modelo de inteligência coletiva”, assegura que cibercidade é a cidade da cibercultura e
destaca que o termo nada mais é do que a tentativa de conceituar enfaticamente o impacto das
novas redes telemáticas no espaço urbano. Citando como exemplo as redes de cabos, fibras,
antenas de celulares, espectro de ondas de rádio que permitem a conexão wi-fi,
52
entre outras,
Lemos diz que as redes estão alterando nossa vivência diante do espaço urbano através do
teletrabalho, da educação à distância, das comunidades virtuais, dos fóruns temáticos ao redor
52
Wi-fi – wireless fidelity – segundo o autor, é o nome do protocolo de conexão sem fio ethernet 802.11, que faz com que
computadores possam se conectar à Internet sem a parafernália de fios e cabos. O sistema reforça a tendência mundial da
informática nômade. Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/lemos/barbeadores%20e%20laptops.pdf>.
Acesso: 02 nov. 2005.
118
do mundo, alegando que se encontra em jogo uma nova redefinição dos espaços públicos e
privados.
No entanto, o termo insiste em um determinismo tecnológico ao nomear a nova
cidade de ciber. A cibercidade é a cidade contemporânea e todas as cidades
contemporâneas estão se transformando em cibercidades. Podemos entender por
cibercidades as cidades nas quais a infra-estrutura de telecomunicações e tecnologias
digitais já é uma realidade (LEMOS, 2004, p. 20).
A analogia entre as cidades e as redes técnicas e sociais não se constitui num fato novo,
pois toda forma urbana é configurada a partir das mais diversas redes, tais como as auto-
estradas, as ferrovias, os aeroportos, as redes de água e esgoto, o telégrafo, o telefone, a
televisão, os correios e a eletricidade. Como apontado anteriormente, a cidade é e sempre foi
um artefato. Desde o século XIX as ciências sociais voltam seu interesse pelo tema das redes
e inauguram suas idéias a partir da proposta de Claude-Henri de Saint Simon que vai pensar
as cidades como um organismo vivo construídas através de “duas formas de redes: uma rede
material composta de trocas de energia e matéria-prima e uma rede espiritual formada pelo
fluxo financeiro” (ibid., id.,p. 21).
Ao elaborar uma epistemologia do organismo-rede, Saint-Simon, coloca a contradição
como essência de todo fenômeno e nos diz: “Todos os fenômenos são efeitos da luta existente
entre os sólidos e os fluídos” (Saint-Simon In: MUSSO, 2004, p. 23). Sendo todo evento uma
luta entre fluídos e sólidos, um movimento, não se pode definir um fenômeno senão por sua
gênese. “Saint-Simon pensa dialeticamente o real, mas não permanece prisioneiro da
seqüência dialética de duas dimensões, e desenvolve um modelo ‘tabular’, em rede: o do
organismo” (id., ibid., p. 23).
Acompanhando o pensamento de Lemos, assinalamos que as cidades contemporâneas
passam por transfigurações importantes com o surgimento das novas tecnologias de
comunicação e informação, embora toda cidade seja um artefato complexo composto por
diversas redes materiais e espirituais, tal como nos propõe Saint-Simon, podemos ver as
atuais cidades como uma cidade-ciborgue (LEMOS, 2005, p. 11).
119
4.5. Cidade-ciborgue
Nesse começo de século XXI estamos assistindo a cidade se transformando na
velocidade das trocas informacionais planetárias, modificando o próprio imaginário das
cidades. As transformações são sucessivas, desde as necrópoles antigas, passando pelas
cidades muradas medievais, as cidades industriais e do automóvel do século XX, chegando
agora à cidade de bits, do espaço contemporâneo. Trata-se de viver em uma nova cidade, em
um novo espaço urbano, espaços globais regidos pelo tempo real, imediato do mundo
globalizado (LEMOS, 2004, p. 20).
Diante dessa perspectiva temos a nossa disposição uma nova rede técnica: o ciberespaço
e uma nova rede social (as várias formas de sociabilidade on-line), configurando as
cibercidades contemporâneas. A cidade muda no ritmo das mudanças cnicas e sociais e,
para tanto, podemos citar vários exemplos dessa nova cidade que estão a nossa volta: home
banking, celulares, pages, palms, votação eletrônica, imposto de renda on-line, shopping on-
line, governo eletrônico, telecentros e as diversas redes de satélite, fibra ótica, telefonia fixa e
móvel.
A cidadania, o exercício social na urbis, passa hoje por este sentimento de conexão
generalizada. Esta é o que caracteriza as cidades contemporâneas pela nova
dinâmica instaurada pelas redes telemáticas. O ciberespaço nos faz emissores de
informação e nos coloca em pleno nomadismo high-tech. Participar, ser cidadão
hoje, é estar conectado (ibid.,id., p. 20).
Assim, podemos dizer, que o que está sendo analisado são as profundas modificações
espaço-temporais que alteram, remodelam e inovam a dinâmica social. Essas alterações nos
remetem ao que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman conceituou como a era da
modernidade líquida (BAUMAN, 2001).
Ao analisar a questão das cidades da cibercultura, Lemos propõe o termo cidade-
ciborgue com o objetivo de ressaltar as novas infra-estruturas digitais em sua interface com o
espaço urbano. A cidade-ciborgue, de acordo com o autor, é preenchida e complementada
120
pelas novas redes telemáticas e pelas tecnologias daí originadas internet fixa, wireless
53
,
celular, satélites, entre outros que se juntam às redes de transporte, de energia, de
saneamento, de iluminação e de comunicação. Entretanto, devemos compreendê-la como um
híbrido, composto de redes sociais, infra-estrutura e redes telemáticas, constituindo um
organismo complexo, cuja dinâmica está atrelada às novas tecnologias da cibercultura,
“próximo da metáfora do ciborgue”
54
(LEMOS, 2005, p. 12). A cidade sempre foi um artifício
e hoje essa artificialidade está presa na intensidade do digital.
Ieda Tucherman (2005, on-line)
55
, em conformidade com o autor, vai nos apontar que a
cidade na cibercultura é o habitat de seu cidadão, o ciborgue. Acrescentando que a cidade
aparece como realidade imaterial não palpável, mas operacional, e também como imaginária
ao ser preenchida por “U-topias”. As cidades imaginárias e irreais, destaca a autora, aparecem
nos textos de Santo Agostinho, Platão, Thomas More, como o desejo humano de um espaço e
tempo ideal, condições da sociedade perfeita.
Mas também tem no seu horizonte as distopias que a literatura e sobretudo o cinema
produziram tais como 1984, Metrópolis, Alphaville, Blade Runner, Crash e tantas
outras onde vemos o desenho de um mundo inumano, dominado pelas técnicas
(TUCHERMAN, 2005, on-line).
Como nos lembra Lemos, esse dilema é permanente e hoje ainda mais acentuado, “o de
estarmos inseridos na cultura resistindo contra os excessos da artificialização” (Lemos In:
TUCHERMAN, 2005, on-line). Destacando os pensadores Lewis Mumford e Paul Blanquart,
o autor assinala que o processo de “ciborguização” contemporâneo do corpo, do imaginário e
das cidades nada mais é do que uma prorrogação dessa condição humana presente desde as
primeiras cidades.
53
Wireless (sem fio) é um protocolo de comunicação sem fios desenhado com o objetivo de criar redes wireless de alta
velocidade que transfere dados por ondas de rádio em freqüências não licenciadas. Precisamente pelo fato de serem
freqüências abertas, não necessitam de qualquer tipo de licença ou autorização do regulador das comunicações para operar,
ao contrário das demais áreas de negócio. Disponível em : <http://pt.wikipedia.org/wiki/Wireless>. Acesso: 20 nov. 2005.
54
O ciborgue é um personagem que escapa às distinções comuns entre humano/máquina e orgânico/artificial difundidas em
nosso pensamento. Num mundo no qual várias formas de intervenção no corpo humano são cada vez mais disseminadas
desde implantes e próteses às possibilidades trazidas pela biotecnologia quem se utilize, nas ciências sociais, da figura
do ciborgue, para refletir sobre a sociedade contemporânea na qual os dualismos baseados na diferença entre natureza e
cultura fazem cada vez menos sentido (CANTARINO, Carolina, out. 2004). Disponível em: <http://www.comciencia.br/
reportagens/2004/10/03.shtml>. Acesso: 18 nov. 2005.
55
Disponível em: <http://www.ull.es/publicaciones/latina/bienaldecomunicacionmesa2.pdf>. Acesso: 14 out. 2005.
121
Salientando que a questão da artificialidade encontra-se presente desde a gênese do
indivíduo e das sociedades rudimentares, o autor acrescenta que toda formação social se funda
numa circunscrição que necessita o controle, a manipulação e a modificação da natureza. O
processo de “ciborguização” contemporâneo nada mais é do que a ampliação dessa ordem à
parte formada pelo homem, de sua saída da natureza na construção da “segunda ordem
artificial”. “A cidade-ciborgue é a forma atual do espaço urbano, da polis contemporânea, na
sociedade das redes telemáticas, da cibercultura e da era pós-industrial” (LEMOS, 2005, p.
13).
O pensador francês Serge Moscovici assinala que a sociedade constitui-se precisamente
na afirmação de sua independência com relação a natureza ao se confrontar com as forças da
irracionalidade, do acaso, e dos demais instintos animalescos numa posição de defesa contra
as intempéries do mundo natural. Nesse sentido, a sociedade é uma “contra-natureza”. “A
questão do artificial se descola assim de uma possível dicotomia com o natural, pois a
sociedade e o homem se formam no processo de artificialização do mundo” (Moscovici apud
LEMOS, 2005, p. 14). E a cidade, sendo produto da humanidade artificializante, atinge seu
grau máximo na cidade-ciborgue contemporânea.
Diante dessa nova perspectiva devemos pensar a “ciborguização” da cultura
contemporânea como um devir da humanidade e a cidade como um artefato técnico, desde
sempre híbrido, inserida nesse processo. Considerando o devir da humanidade como um
“devir-ciborgue”, Lemos nos apresenta o estudo do filósofo francês Bernard Stiegler, que
baseado na proposta do arqueólogo francês André Leroi-Gourhan, nos assinala que a
formação do homem e da técnica se estabelece num processo simbiótico, onde não se sabe ao
certo se o homem produz ou é produzido por ela. Analisando a técnica como uma tendência
universal e determinante no processo evolutivo e zoológico do homem, parte-se da premissa
que o homem não pode ser definido, antropológica e socialmente, sem a dimensão técnica,
122
pois a técnica é arte (tekhnè) de construção da vida, então a “técnica é um caso específico e
particular da zoologia, na medida em que o fenômeno técnico aparece como uma solução para
relação entre a matéria viva (orgânica) e a matéria inerte (inorgânica) constituindo-se como
‘matéria inorgânica organizada’” (LEMOS, 1999, on-line).
56
A cidade-ciborgue é a cidade contemporânea permeada por espaços de fluxos de
informações digitais planetárias e suas diversas tecnologias acopladas pelas redes telemáticas
(LEMOS, 2005, p. 14), mas elas não surgem do nada, sua origem nos reporta ao
desenvolvimento urbano na modernidade, principalmente na virada do século XIX para o XX.
Numa referência aos autores ingleses Stephen Graham e Marvin Simon, Lemos argumenta
que as cidades modernas tiveram início a partir de 1820 quando as cidades mercantis
emergiram e passaram a concentrar as atividades econômicas nos centros urbanos e nos
centros das cidades. Transcorrido 50 anos, a cidade industrial passa a ser formada por áreas
residenciais das classes trabalhadoras e, no centro, começa a se desenvolver os setores
comerciais; agora, a concentração ocorre no distrito central de negócios. A partir da década de
1920, o monopólio corporativo da cidade estabelece ao centro uma área residencial das
classes trabalhadora e comercial que, alguns anos mais tarde, passa a ser considerada uma
cidade industrial satélite (Graham; Simon apud LEMOS, 2005, p. 15). Nos anos 70, com o
advento da cidade-máquina, ainda administrada nos moldes do modelo fordista
57
, vemos
surgir ao centro áreas residenciais das classes trabalhadoras e o centro comercial, surgindo
assim, os subúrbios e em volta deles alguns subcentros, onde se pode notar a presença de
um distrito central de negócios internacionais que vai caracterizar uma nova forma de
disseminação. A economia industrial da cidade-máquina pouco a pouco vai sendo substituída
pela economia pós-fordista, líquida e informacional da cidade-ciborgue.
56
Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/cap1.html>. Acesso: 28 nov. 2005.
57
“O modelo de produção em massa fundamentou-se em ganhos de produtividade obtidos por economias de escala em
processo mecanizado de produção padronizada com base em linhas de montagem, sob as condições de controle de um grande
mercado por uma forma organizacional específica: a grande empresa estruturada nos princípios de integração vertical e na
divisão social e técnica institucionalizada de trabalho. Esses princípios estavam inseridos nos métodos de administração
conhecidos como ‘taylorismo’ adotados tanto por Henry Ford quanto por Lênin.” (CASTELLS, 2003, p. 212).
123
A economia industrial vai pouco a pouco interagindo com uma nova economia pós-
industrial que por si está gerando novos paradigmas. Aqui podemos ver a gênese das
cidades-ciborgues. A informação ganha peso estratégico e uma nova economia surge
em busca de constante flexibilidade, descentralização, gestão da informação e
eficiência. É uma nova visão que sobrepõe a manufatura de serviços de produção
(que estão migrando para localidades marginais) fazendo surgir os serviços de
consumo baseados em informação e conhecimento (LEMOS, 2005, p. 16).
O sociólogo espanhol Manuel Castells vai nos apontar que a interação entre a nova
tecnologia da informação e os processos atuais de transformação social realmente têm um
grande impacto nas cidades e no espaço. De um lado, o layout da forma urbana passa por
grande transformação e destaca que essa transformação não segue um padrão único, universal:
apresenta variação considerável que depende das características dos contextos históricos,
territoriais e institucionais. Por outro lado, “a ênfase na interatividade entre os lugares rompe
os padrões espaciais de comportamento em uma rede fluída de intercâmbios que forma a base
para o surgimento de um novo tipo de espaço, o espaço de fluxos” (CASTELLS, 2003, p.
487).
Analisando o espaço de fluxos, tal como proposto por Castells, André Lemos o define
como uma organização material que permite práticas sociais simultâneas sem necessariamente
incidir numa continuidade territorial física. O espaço de fluxos, segundo Lemos, problematiza
o espaço de lugar da mesma forma que o tempo real afeta a noção de tempo cronológico. A
troca de informações em tempo real, através da interação com as novas tecnologias,
proporciona o alcance a determinados locais de uma maneira nunca antes vista. Podemos
dizer, assim, que o espaço de fluxos é a organizão desta nova estrutura essencialmente
definida pela concentração e descentralização territorial articulada pelas redes telemáticas, o
ciberespaço (LEMOS, 2005, p. 17).
O espaço de fluxos reestrutura e forma às cidades contemporâneas, entretanto,
enfatiza Lemos, não se trata de uma substituição das cidades concretas, mas sim de uma
reconfiguração profunda onde a espinha dorsal é a rede telemática. O espaço de fluxos é
constituído e preenchido por diversos atores sociais que operam a rede de uma determinada
124
localidade, podendo ser o espaço residencial, de trabalho ou mesmo o de lazer. Numa alusão
ao estudo de Castells, o autor destaca que o espaço de fluxos mostra sua interseção com o
espaço de lugar uma vez que ele também pode ser caracterizado por espaços físicos
compostos de cabos, servidores, roteadores, hubs
58
e toda infra-estrutura essencial ao livre
trânsito das informações digitais. Castells, ao definir o espaço de fluxos, afirma que nossa
sociedade está construída em torno dos fluxos de capital, de informação, de tecnologia, de
interação organizacional, de imagens, sons e símbolos.
Fluxos não representam apenas um elemento da organização social: são a expressão
dos processos que dominam nossa vida econômica, política e simbólica. Nesse caso,
o suporte material dos processos dominantes em nossas sociedades será o conjunto
de elementos que sustentam esses fluxos e propiciam a possibilidade material de sua
articulação em tempo simultâneo. Assim, proponho a idéia de que há um nova forma
espacial característica das práticas sociais que dominam e moldam a sociedade em
rede: o espaço de fluxos. O espaço de fluxos é a organização material das práticas
sociais de tempo compartilhado que funcionam por meio de fluxos (CASTELLS,
2003, p. 501).
O espaço de fluxos na cidade-ciborgue não se opõe ao espaço de lugar, pelo contrário,
ele reforça a relação entre os dois espaços. Os espaços de lugar nas cidades, como as ruas, os
monumentos e as praças passam a ser interfaceados pelo espaço de fluxos através dos
diversos dispositivos de conexão aliados às informações digitais. Recorrendo aos autores
Martha McCaughey e Michael D. Ayers, Lemos discorre sobre algumas práticas sociais da
cibercultura que evidenciam essa inter-relação. A título de exemplificação o autor registra as
diversas experiências das chamadas cidades virtuais (cidades digitais
59
), a expansão das redes
sem fio (wireless), as diversas comunidades e ativistas que usam a rede para agir sobre o
local. Enfatizando os fenômenos atuais das Flash Mobs objeto desta pesquisa e que será
analisada mais adiante e do Bookcrossing
60
como ilustrações dessa intensa relação entre os
58
Hub é o aparelho que interliga diversos computadores ligados externamente. Por não comportar um grande volume de
informações é indicado para redes com poucos terminais. Disponível em: <http://compnetworking.about.com/od/
hardwarenetworkgear/l/aa012801a.htm>. Acesso: 21 nov. 2005 .
59
André Lemos utiliza como exemplo de cidades digitais as cidades enraizadas – Amsterdã, Bologna, Aveiro e Edimburgo –
com seus mecanismos tecnológicos de ampliação do espaço público, de consulta a banco de dados, de criação de
comunidades virtuais, de compras em shoppings virtuais e entretenimento.
60
O bookcrossing é uma prática organizada via rede que tem por objetivo deixar livros nos espaços urbanos que
serão lidos e novamente deixados para outros leitores. Maiores informações: <http://www.bookcrossing.com>.
Acesso: 26 nov. 2005.
125
espaços de fluxo e o de lugar, o autor, numa referência ao arquiteto Michael Benedikt, nos
diz: “O ciberespaço aumenta e complexifica a realidade das cidades contemporâneas”
(Benedikt apud LEMOS, 2005, p. 18).
Nas organizações sociais bem como nas diversas representações políticas assistimos um
favorecimento da base local e a identidade cultural, freqüentemente, é construída pelo
intermédio do compartilhamento da experiência histórica num dado território físico e
simbólico. Enfatizando a cidade-ciborgue, o autor considera que nada disso está ou será
eliminado, esses espaços complementam o espaço de fluxo e estamos presenciando a
persistência do espaço de lugar como a forma mais usual da existência espacial das
sociedades contemporâneas. Atualmente, através da utilização das diversas tecnologias
virtuais, podemos dizer que o espaço de lugar complexifica o espaço de fluxo onde, muitas
vezes, as relações estabelecidas on-line vão refletir em encontros reais passando a intervir no
cotidiano da cidade concreta. Ativistas também se utilizam da rede para organizar
manifestações políticas (Smart Mob
61
) ou hedonistas (Flash Mob) colocando o espaço virtual
em sinergia com o espaço de lugar.
Lemos observa que as atividades predominantes da sociedade em rede – finanças,
administração, serviços, comércio, mídia, entretenimento estão constituídas em torno da
lógica do espaço de fluxos, enquanto a maior parte das formas de construção anônima de
significado, identidade e resistência social e política (tal como descrevemos no capítulo
anterior quando observamos a identidade coletiva) estão sendo estruturadas no ciberespaço,
mas também em torno do espaço de lugar. Destacando o pensamento de Howard Rheingold, o
autor revela que as tecnologias móveis formam comunidades ancoradas no lugar e nos instiga
quando diz que “a grande questão dos anos que vio secomo fazer dessa inter-relação de
61
As smart mobs distinguem-se das flash mobs por sua organização estar mais relacionada à organização de manifestações
políticas, como por exemplo, em Seattle (EUA), em 1999, quando manifestantes usaram mensagens de texto para planejar
protestos antiglobalização e para monitorar os locais onde bombas de gás lacrimogêneo seriam lançadas.
126
espaços uma ferramenta de redemocratização, de aquecimento do espaço público, de melhoria
da cidadania e da vida social como um todo” (LEMOS, 2005, p. 19).
A comunicação aberta e multidirecional da Internet, transpondo os controles dos mass
media, torna-se a peça fundamental da questão política na cidade-ciborgue. Como argumenta
o autor:
Grupos sociais estão estabelecendo relações de proximidade por intermédio das
redes eletrônicas, como demonstram diversas práticas atuais como as relações
sociais on-line, a ocupação do espaço real por meio de organizações pelo espaço
virtual, a disseminação da conectividade em espaços físicos da cidade com a
tendência mundial do wi-fi, a emergência de projetos em cibercidades e a correlata
institucionalização de processos de inclusão digital, ciberdemocracia, cibercidadania
e governança eletrônica (ibid., id., p. 19).
Diante desses aspectos, enfatiza o autor, na cidade-ciborgue as atuais redes telemáticas
têm sido utilizadas de forma progressiva por movimentos sociais generalizados como um
meio singular de romper seu isolamento interfaceando o espaço virtual como o real. Como
sabemos as tecnologias do ciberespaço inauguram uma nova forma de comunicação mundial
que altera significativamente a noção de distância e tempo. Na transmissão da informação
através do espaço, a distância torna-se um aspecto secundário. “As novas formas de
telecomunicações e de mediação eletrônica induzem, inevitavelmente, à descentralizão
espaço-temporal” (id., ibid., p. 20), uma vez que a presença física se torna dispensável quando
acessamos os serviços disponibilizados (banco de dados, entretenimento e relações ponto a
ponto) na cidade-ciborgue.
Assim, podemos dizer que as cidades estão sendo redefinidas e redesenhadas tanto no
seu espaço físico quanto no eletrônico, onde as fronteiras entre casa e trabalho, público e
privado, eletrônico e físico estão passando por fusões cada vez mais incisivas. As
telecomunicações, como assegura o autor, não vão simplesmente substituir o espaço, elas irão
definir como o espaço vai ser entendido, usado e controlado. Diante dessa nova dinâmica
política entre o espaço privado e o público surge o cidadão-ciborgue, o cidadão
hiperconectado das cidades-ciborgues (id., ibid., p. 25).
127
Conforme observado no primeiro capítulo, a esfera pública tal como proposta por
Habermas (2003) se apresenta como uma oposição política e cultural à corte e estabelece
como lugar de sociabilidade os cafés, as praças, os salões e as livrarias, assistimos assim a
passagem da autoridade real e imperial para a esfera burguesa. Na virada do século XIX para
o século XX o surgimento da massa urbana vai contribuir para o deslocamento da política
como um assunto privilegiado do Estado para a esfera da comunidade tornando-se um assunto
geral da população. Aqui aparece a opinião pública em oposição à prática de segredo dos
governos absolutistas, proporcionando uma abertura para o debate entre os cidadãos.
Dando seqüência a sua análise, Lemos aponta o surgimento dos mass media e de uma
cultura popular correspondente. A imprensa aliada à propaganda funda um dado novo, onde o
mass media passa a compor o público e a imagem desse público fabricando a opinião pública.
A propaganda constitui o único meio de suscitar a adesão das massas podendo ser utilizada
tanto para bons como para maus fins. Essa visão instrumental consagra uma representação da
onipotência da mídia que passa a ser considerada uma ferramenta de “circulação eficaz de
símbolos” (MATTELART, 2004, p. 37).
A opinião pública, passando a ser “fabricada” por esses novos espaços midiáticos – TV,
jornais, revistas, cartazes e rádios – institui o espaço da mídia, simulacro (Baudrillard, 1991) e
espetáculo (Debord, 1997), de onde vai partir o controle da emissão. Aqui, defende o autor, o
indivíduo é considerado um ser passivo e inerte, apenas um receptor e consumidor de bens e
serviços (LEMOS, 2005, p. 26). Evidenciando o pensamento do autor Graham Murdock,
Lemos o cita a fim de nos assinalar que a história das comunicações não é uma história de
máquinas,
mas uma história da maneira como as novas mídias ajudam a sistemas de
reconfiguração de poder e redes de relações sociais. Certamente, tecnologias de
comunicação são produzidas dentro de centros de poder e são desdobradas com
propósitos particulares, mas, uma vez em jogo, elas têm frequentemente
conseqüências contraditórias. Elas são, então, muito mais vistas, não como
tecnologias de controle ou de liberdade, mas como o local de lutas ininterruptas
sobre a interpretação e uso. No coração destas lutas, o ponto crítico é o limite entre
as esferas públicas e privadas (Murdock, apud LEMOS, 2005, p. 27).
128
Para o autor, o enfraquecimento dos espaços de lugar ruas, praças, monumentos em
proveito do espaço midiático ou espaço de fluxos passa a ser a realidade do século XX,
gerando um processo de privatizão do público e a “publicização midiatizada” do privado,
que vai contribuir para o surgimento do global como uma esfera mundial. No início do século
XXI a convergência informática-telecomunicação aliada ao advento das redes telemáticas e à
liberação do pólo de emissão se tornam uma realidade, fazendo com que o ciberespaço possa
agir de forma diferente aos mass media com relação ao espaço público e a opinião pública
constituída pela cultura de massa. O autor destaca que as redes telemáticas atuam na forma
“todos-todos” do fluxo de informações estabelecendo um padrão diferente do “um-todos” das
mídias de massa. A nova relação entre o espaço urbano habitado pelo indivíduo e a interação
comunicativa transforma o cidadão consumidor da era industrial num cidadão hiperconectado
que se constantemente interagindo com redes e instrumentos de comunicação digitais. “O
grande desafio do urbanismo contemporâneo das cidades-ciborgues será articular o cidadão-
consumidor-ciborgue (informado e conectado) da cibercultura com a polis(LEMOS, 2005,
p. 27).
É possível observar na cidade-ciborgue novas formas associativas, novas visões do
mundo e, principalmente, novas formas de expressar e emitir informações através das
webcams, diários, páginas pessoais, comunidades virtuais etc. que pouco a pouco estão
transformando as práticas de convivência dos cidadãos ou cidadãos-ciborgue que se
alimentam da informação disponibilizada no espaço urbano físico e virtual. Para isso, advoga
Lemos, devemos evitar a transposição e a substituição aproveitando o potencial das novas
tecnologias para estimular a “vitalidade do espaço público telemático, a apropriação das novas
tecnologias, a pluralidade de discursos, a transparência informativa governamental e o vínculo
comunitário” (id., ibid., p.28)
129
Os sistemas integrados pela via telemática são a nova sustentação para o
desenvolvimento social na cidade-ciborgue devido a sua infra-estrutura altamente veloz e a
grande capacidade de penetração, onde a nova ordem digital redefine os aspectos sociais
mediante a conexão on-line. Com as distâncias reduzidas e os espaços reais disputando com
os virtuais através da telepresença, aspectos da vida cotidiana começam a se alterar
profundamente fundamentado nas atuais tecnologias virtuais ocasionando significativas
modificações nas interações humanas. Diante dessa constatação, Lemos aponta que os novos
significados impostos pelo mundo digital reorganizam o espaço habitado, onde se faz
necessário perceber os desdobramentos destas evoluções nos comportamentos cotidianos da
cidade-ciborgue.
Os equipamentos acoplados ao corpo da cidade-ciborgue dilatam o conceito de cidade
no que tange a manutenção das nossas ações diante das associações das estruturas
informacionais programáveis; estamos operando novos condicionamentos da relação tempo-
espaço. Em conformidade com o autor, podemos dizer que entre as modificações ocorridas
também as alterações do espaço público e do privado vão refletir na nossa forma de morar,
trabalhar, socializar e na constituição de novas relações sociais secundárias.
O autor enfatiza que mais uma vez não vemos o espaço virtual substituir o espaço físico
e sim uma adição de funcionalidades. Na cidade-ciborgue o espaço físico e o virtual são co-
dependentes, onde os sistemas de serviço disponibilizados pelas novas tecnologias promovem
ao mesmo tempo tendências descentralizadoras e recentralizadoras. Lemos, mencionando o
livro E-topia A vida urbana mas não como a conhecemos, de autoria do arquiteto William J.
Mitchell, afirma que “a desmaterialização, a desmobilização, a customização em massa, a
operação por equipamentos ‘inteligentes’ e a transformação soft são características essenciais
do que chamamos aqui de cidade-ciborgue” (LEMOS, 2005, p. 31).
130
4.6. FLASH MOB
Conforme analisado anteriormente, na cidade-ciborgue o espaço de fluxos não se
contrapõe ao espaço de lugar, pelo contrário, estamos assistindo a intensificação da conexão
entre esses dois espaços. As ruas, as praças e os monumentos, os lugares antropológicos
62
das
cidades, como propõe Marc Augé (2003), passam a ser interfaceados pelo espaço de fluxos
devido aos diversos dispositivos móveis de comunicação e a conseqüente mobilidade
proporcionada por sua utilização. Assistimos assim, na era da cibercultura, o experimento de
novas formas de interação que, particularmente no episódio das flash mobs, se apropriam de
iniciativas artísticas com a finalidade de ocupar um espaço físico urbano. O autor Howard
Rheingold, um dos primeiros a defender que o mundo virtual teria impacto imediato no
mundo real, em uma entrevista sobre o seu último livro Smart Mobs: The Next Revolution,
considerado a fonte inspiradora dessas iniciativas, nos diz que:
Flash mobs são meios de entretenimento organizados por si mesmo. Como milhões
de pessoas que jogam games on-line, flash-mobbers estão criando ativamente sua
própria diversão de maneira criativa ao invés de apenas comprar uma ficha, ficar na
fila, e passivamente experimentar o “entretenimento enlatado” que lhes é vendido.
Mais importante: eles estão aprendendo como usar a Internet e a comunicação móvel
para organizar ações coletivas (RHEINGOLD, 2003, on-line).
63
Nossa proposta, ao longo dessa análise, é descrever o surgimento e a disseminação das
flash mobs, e a conseqüente interação entre o espaço urbano, as tecnologias de comunicação e
a sociedade, na intenção de situar e analisar o fenômeno identificando suas particularidades.
Voltando nosso foco para as oito flash mobs
64
organizadas na cidade de Nova York por
um indivíduo que preferiu se manter no anonimato e que surpreendeu o mundo a partir do
62
O autor Marc Augé constata que o lugar antropológico é, antes de mais nada, geométrico, onde cotidianamente ele nos é
mais familiar; são os itinerários, eixos ou caminhos que conduzem de um lugar a outro e foram traçados pelos homens e, por
outro lado, em cruzamentos e praças onde os homens se cruzam, se encontram e se reúnem, centros mais ou menos
monumentais, sejam eles religiosos ou políticos, que definem, em troca, um espaço e fronteiras além dos quais outros homens
se definem como outros, em relação a outros centros e outros espaços (AUGÉ, 2003, p. 55).
63
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/paginas/cadernoi/materias/157001-157500/157379/157379_1.html>.
Acesso 20 out. 2003.
64
Segundo Bill, a inspiração do nome flash mob surgiu da leitura do livro de ficção científica Flash Crowd, cujo autor Larry
Niven, em 1973, desenvolveu a idéia do aperfeiçoamento de uma viagem no tempo onde as pessoas passavam a desejar um
retorno no tempo a fim de testemunhar eventos importantes, assim multidões de viajantes apareceriam e terminado o evento
todas desapareceriam. Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
131
mês de junho de 2003, acompanharemos seu planejamento como também destacaremos as
mais famosas manifestações relâmpagos cuja organização se deu, essencialmente, no
ambiente on-line utilizando a troca de e-mails como ferramenta. A perspectiva empreendida
neste estudo tem como proposta produzir reflexões pertinentes ao tema identificando alguns
desafios, que consideramos importantes, a fim de contextualizarmos analiticamente esse
fenômeno que suscitou tanta curiosidade ao longo do segundo semestre de 2003.
Identificando um primeiro recorte para nossa análise, destacamos o motivo pelo qual seu
idealizador, que se apresenta como um trabalhador da indústria cultural preferiu ficar
conhecido somente pelo nome “Bill”. Em entrevista concedida a um site
65
, o idealizador
explica o motivo de sua opção:
O motivo do anonimato é mais filosófico. Eu realmente não quero que haja uma
pessoa identificável, que tenha a cara ou que seja o líder do mob. Minha participação
é muito pequena, eu escrevo os e-mails e envio. Quem cria as mobs são as pessoas
que remetem os e-mails para os amigos e que vêem no projeto algo que eles próprios
querem levar adiante. Eu penso que essas pessoas estão criando mobs muito mais do
que eu.
66
Destacando a importância do seu papel, Bill alega que seu projeto inicial foi crescendo
com o passar do tempo através da divulgação via blogs, e-mails e, principalmente, pela mídia,
confessando que para atrair mais pessoas passou a conceder entrevistas anônimas, criando um
certo mistério ao redor do seu personagem para atrair mais pessoas.
67
“O que me deixava
entusiasmado eram as conexões. Se a turba fosse do Bill, ao invés de um grupo estruturado
sem líder (leaderless) ao redor da Internet, as pessoas teriam menos vontade de levar o projeto
como sendo deles próprios. E isso foi que aconteceu. As pessoas em outras cidades
começaram a perguntar se poderiam começar a fazer as próprias turbas.”
68
65
Disponível em: <http://cordova.asap.um.maine.edu/~wagora/w-agora/flashmobster.html>. Acesso: 29 mar. 2004.
Disponível em: <http://www.ibiblio.org/pub/electronic-publications/stay-free/archives/24/flash-mobs-history.html>. Acesso:
10 maio 2004.
66
Disponível em: <http://web.archive.org/web/20031106045827/http://glowlab.blogs.com/dialogue/2003/09/
glowlounge_sept_1.html>. Acesso: 11 jun. 2005.
67
Disponível em: <http://www.ibiblio.org/pub/electronic-publications/stay-free/archives/24/flash-mobs-history.html>.
Acesso: 10 maio 2004.
68
Disponível em: <http://cordova.asap.um.maine.edu/~wagora/w-agora/flashmobster.html>. Acesso: 29 mar. 2004.
132
Outra reflexão que acreditamos ser pertinente nesse momento é como surgiu a idéia que
acabou se transformando num fenômeno global? Antes de procurarmos responder a pergunta,
destacamos um comentário do idealizador por entendermos a pertinência com nossa análise.
Durante uma entrevista, Bill comenta que ao observar as pessoas depois do advento da
Internet constatou que elas estavam passando muito tempo interagindo junto as comunidades
virtuais, foi então que pensou na possibilidade de uma intervenção instantânea e divertida que
utilizasse um componente da Internet, acreditando, assim, que os internautas veriam uma
comunidade virtual constituída fisicamente. “A web pode dar a sensação de você fazer parte
de um grupo, mas é muito diferente do que estar no mesmo espaço físico com todas essas
pessoas. Elas não conheciam umas as outras, não era um grupo estabelecido que resolveu
vestir uma causa, quem adquiriu o e-mail estava participando. Era um grupo de pessoas
unidas pela Internet”.
69
Retomando a questão da idealização das mobs, destacamos uma entrevista conferida por
Bill ao diretor de Pesquisa & Desenvolvimento do site Eyebeam, Jonah Perretti, onde ele
descreve como surgiu a idéia de reunir as pessoas utilizando a Internet:
Neste verão eu pensei em fazer uma performance usando o e-mail de uma forma
criativa, queria fazer com que as pessoas participassem de um espetáculo. Num certo
momento eu pensei, mas dizer exatamente o quê para mobilizar as pessoas a
participar de nada literalmente? Comecei a desenvolver a idéia e criei o “The Mob
Project”, em seguida criei uma conta de e-mail no Yahoo
(themobproject@yahoo.com) e mandei, primeiro, para minha própria conta e depois
para umas cinqüenta pessoas que eu conhecia. Alguns amigos artistas remeteram
isso para suas listas particulares, a partir daí o convite começou a circular pela
Internet.
70
A idéia inicial era que esse e-mail fosse sendo replicado para outras pessoas como um
convite para participar de uma performance
71
durante o verão, cujo propósito era não ter
propósito. O idealizador alega que a mensagem tinha que ser instigante e engraçada para
mobilizar as pessoas a participar de um show. “A proposta era que a idéia se espalhasse
através do contato pessoa-pessoa. Eu nunca montei uma página na Internet porque o queria
69
Disponível em: <http://cordova.asap.um.maine.edu/~wagora/w-agora/flashmobster.html>. Acesso: 29 mar. 2004.
70
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
71
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
133
que as pessoas adquirissem as instruções de modo passivo. Para participar você tinha que
fazer um certo esforço para adquirir o contato do organizador e dizer: ‘Ei, como posso fazer
parte disso?Essa ação era muito significante para mim, elas tinham que procurar um blog
onde tinha o endereço eletrônico original”.
72
Segundo Bill, a escolha para a primeira manifestação foi a loja de acessórios finos
Claire’s Accessories, localizada perto do Astor Place Theatre, por ser uma “loja pequena e
tranqüila que mais parece um buraco na parede”.
73
Distribuído o e-mail convite, os
participantes foram instruídos a se organizar de acordo com a data de nascimento e seguirem,
por ruas diferentes, até a loja. “Elas tinham que se formar no último minuto, não podia parecer
uma turba caminhando, tinha que parecer improvisado”.
74
Quando todos estivessem reunidos
dentro da loja deveriam gritar “Acessórios!” e dispersar. Entretanto, um squealy
75
avisou a
loja e a loja por sua vez chamou vários policiais que se postaram na porta de entrada
impedindo os participantes de se aproximar. “Quando eu vi a polícia eu disse para mim, tenho
que fazer outro”
76
, assinala Bill.
Descrevendo como uma inovação para organização da segunda flash mob, Bill diz que
escolheu quatro bares nos arredores do lugar que ele havia selecionado para realização do
evento. Durante uma semana Bill ou “mobsters” (organizadores dos eventos na linguagem dos
adeptos), enviou e-mails avisando que o encontro seria primeiramente nos quatro bares
relacionados. No último minuto uma pessoa entrou em cada um dos estabelecimentos
distribuindo a informação do lugar para onde todos deveriam seguir (I), evitando assim um
possível conflito com policiais. “Eu não quis formar a mob em um único bar, a idéia era
72
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
73
Disponível em: <http://www.ibiblio.org/pub/electronic-publications/stay-free/archives/24/flash-mobs-history.html>
Acesso: 10 maio 2004.
74
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php> Acesso: 10 nov. 2004.
75
O site <www.flashmob.info> (atualmente indisponível) define os principais termos usados pelo mobs como “squealy
sendo alguém que não entendeu o movimento e resolveu avisar as autoridades.
76
Disponível em: <http://cordova.asap.um.maine.edu/~wagora/w-agora/flashmobster.html> Acesso: 29 mar. 2004.
134
mover as mini-mobs que se formariam em cada bar e encaminhá-las para o efeito final”.
77
Essa forma de organização garantiu o sucesso da MOB#2, atesta Bill.
Figura I: Distribuição dos scripts
A segunda flash mob (II), que ficou conhecida mundialmente como sendo a primeira,
aconteceu na loja de departamento Macy’s onde os simpatizantes, depois de receberem um
script com as instruções e sincronizarem seus relógios de acordo com o horário oficial norte-
americano o evento era programado para durar dez minutos –, seguiram para o nono andar
da loja e ficaram apreciando os tapetes expostos, em seguida pediram aos vendedores o tapete
do amor (love rug) e assim como surgiram se dispersaram na multidão (III) deixando no ar a
pergunta: o que aconteceu aqui?
78
(IV)
Figuras II: No interior da loja Macy’s
77
Disponível em: <http://cordova.asap.um.maine.edu/~wagora/w-agora/flashmobster.html>. Acesso: 29 mar. 2004.
78
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
135
Figuras III: A dispersão Figuras IV: Os vendedores
A ampla cobertura da mídia, principalmente depois de uma matéria divulgada pela
revista eletrônica Wired News
79
, foi determinante para que convites pipocassem para as mais
diversas manifestações ao redor do mundo. Em menos de um mês vimos acontecer flash mobs
em várias cidades, como São Francisco, Chicago, Boston, Japão, São Paulo, Austin,
Amsterdã, Sydney, Dublin, Zurique, Viena, entre outras. A mídia, segundo Bill, deu “uma
atenção imediata as flash mobs ao decidir que elas seriam a moda passageira da semana.”
80
Destacando a ampla cobertura feita pela televisão como também pela imprensa, o organizador
ressalta uma grande matéria divulgada na revista semanal do jornal New York Times e uma
outra no jornal The Times, onde o repórter descrevia que o evento, iniciado em Nova York,
tinha adquirido expressão por toda Alemanha. “No meio de agosto de 2003 uma multidão se
juntou em frente à embaixada americana em Berlim, estouraram uma garrafa de champanha e
brindaram uma mulher chamada Natasha que nunca existiu”, relata o idealizador numa
entrevista concedida a revista eletrônica LAWeekly.com.
81
Vieram as MOB#3
82
(ANEXO A), MOB#4 (ANEXO B) e MOB#5 (ANEXO C),
organizadas na cidade de Nova York pelo anônimo trabalhador da indústria cultural, enquanto
a onda se espalhava como num clicar de mouse por todos os continentes. Aqui outra pergunta
79
Disponível em: <http://www.wired.com/news/culture/0,1284,59297,00.html>. Acesso: 10 out. 2003.
80
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
81
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
82
Disponível em: <http://www.cheesebikini.com/archives/flash_mobs/index.html>. Acesso: 12 dez. 2004.
136
se faz pertinente: qual o critério utilizado para escolha dos locais? De acordo com Bill a
maioria das encenações ocorreu em lugares acessíveis, próximo a Broadway-Lafayette,
alegando que havia uma proposta meio constrangedora com relação ao minutos, “afinal eu
queria que fosse algo prontamente consumível onde as pessoas pensassem: ‘Eu posso
participar, são dez minutos depois do trabalho e está próximo da linha do metrô
principal’.”
83
Optamos por destacar a sexta flash mob, por ter adquirido notoriedade ao reunir cerca de
quatrocentas pessoas na loja de brinquedos Toys R Us, localizada na Times Square. No
segundo andar da loja se encontra exposto um dinossauro gigante do filme Jurassic Park, que
emite rugidos enquanto movimenta sua cabeça para trás. Durante dez minutos as pessoas se
ajoelharam no chão e reverenciaram o dinossauro como se fosse um deus, quando ele passou
a rugir todos se deitaram no chão e começaram a gritar agitando os braços (V). Enquanto os
funcionários chamavam a segurança (VI), o grupo se dispersou com a mesma rapidez que
havia se reunido. Terminada a manifestação, conclui Bill entusiasmado: “O segundo andar da
loja de brinquedos ficou literalmente coberto por pessoas. Foi uma das coisas mais
surpreendentes que eu já assisti.”
84
Figura V: Flash mob # 6
83
Disponível em: <http://www.ibiblio.org/pub/electronic-publications/stay-free/archives/24/flash-mobs-history.html>.
Acesso: 10 maio 2004.
84
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
137
Figuras VI: O segurança
A flash mob de número sete não causou tanta repercussão, apesar de ter formado uma
enorme fila na porta lateral de um eminente ponto turístico da cidade, a catedral de St.
Patrick’s, localizada na 51
st
Street.
No convite para oitava flash mob MOB#8 –, marcada para acontecer no dia 10 de
setembro de 2003, Bill avisou que seria a última mob organizada por ele e explica o motivo
pelo qual decidiu encerrar as mobs, “o projeto alcançou o fim de sua vida natural. O ‘The
Mob Project’ era um tipo de diversão rápida e sem sentido que durou tempo demais para ser
bem recebido. O aspecto mais positivo – seu jeito novo de reunir pessoas que não se
conhecem para uma ação coletiva surpreendente vai sobreviver em projetos futuros,
espero!”
85
E concluiu dizendo que qualquer projeto criativo tem que evoluir ou parar.
Os participantes da última mob em Nova York (VII), assim como em todas as outras, se
reuniram nos bares designados previamente onde receberam as seguintes instruções: “Às
19h41, uma apresentação irá começar na calçada. Seja um espectador entusiasmado. Se a
apresentação for interrompida antes das 19h46, grite ‘Mob!’ e siga o artista onde ele for”.
86
Exatamente no horário, às 19h41, milhares de pessoas se dirigiram para a Rua 42 com a Sexta
Avenida, onde um sistema de som executava uma música. Muitos imaginaram que se tratava
85
Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/09/263538.shtml>. Acesso: 20 jan. 2005.
86
Idem.
138
do artista relacionado no script e começaram a vibrar. Um participante pistas da confusão
que se armou: “Lá estava eu, dançando ao som da música, quando vi um sujeito tirar de
dentro de sua maleta uma placa de néon, eu pensei, ‘caramba!’, mesmo em Nova York, não é
normal alguém carregar um luminoso na maleta. Imaginei que ele deveria ser o tal artista”,
conta o participante Matt Pirelli.
87
Em seguida, o “artista” (VIII) ergueu com uma das mãos o luminoso em néon onde se
podia ler: “Café Thou Art” (ninguém soube dizer o significado da mensagem) e com a outra
mão fazia o sinal da paz para as pessoas ali reunidas. Como resposta a multidão entusiasmada
começou a gritar: “Paz!”, outros, supondo que aquilo não fazia parte do planejamento,
começaram a gritar: “Mob!”. “Quando as pessoas começaram a gritar coisas diferentes, tive
certeza de que o encontro era uma performance incrivelmente inteligente sobre pacifismo
versus mentalidade de multidões, mas depois descobri que aquilo era apenas uma ação
aleatória e caótica, o que, na minha opinião, é perfeito”, comenta a participante Nancy
Gomell.
88
Mais tarde, numa festa realizada para comemorar o final do projeto, ficou-se
sabendo que o “artista” destacado nas instruções era, de fato, o sistema de som e não o sujeito
que segurava o luminoso. A “interrupção” sugerida no script era, na realidade, a suspensão da
música por uma mensagem gravada onde na seqüência a multidão deveria seguir Bill até uma
festa. “Minha idéia inicial era que a caixa de som fizesse um estrondo e os participantes me
seguissem no estilo flautista de Hamelin
89
para festa final.” Entretanto, em meio ao tumulto, a
mensagem não foi ouvida e a “flash mob fugiu totalmente do meu controle, mas eu fiquei
feliz, acabou gerando uma real mob, uma espécie de auto-congratulação, com um impostor
seqüestrando o final.”
90
87
Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/09/263538.shtml>. Acesso: 20 jan. 2005.
88
Idem.
89
“O flautista de Hamelin”, conto clássico alemão de autoria dos Irmãos Grimm.
90
Disponível em: <http://web.archive.org/web/20031106045827/http://glowlab.blogs.com/dialogue/2003/09/
glowlounge_sept_1.html>. Acesso: 10 jun. 2005.
139
Figura VII: Flash Mob #8 Figura VIII: O “artista”
Depois de passar o verão inteiro organizando flash mobs, Bill se diz pasmo em saber
como as mobs se espalharam tão rapidamente pelo mundo. Discordando daqueles que
caracterizaram as flash mobs como um movimento, ele argumenta: “Está claro que, para
grupos de pessoas em outras cidades do mundo, a idéia das mobs foi uma excelente base para
a criação de sua própria arte social”. Mostrando-se contente em partilhar seu conhecimento
com outros mobsters, Bill declara: “A maioria das coisas que eu aprendi tenho certeza que os
outros também já descobriram. Mantenha as idéias curtas e divertidas. Seja meticuloso em seu
planejamento e em suas instruções. Mantenha os organizadores nos bastidores. A idéia é tão
simples que fica difícil estragá-la. O que tem sido realmente legal é ver como os
organizadores de outras cidades estão interpretando a idéia de maneiras diferentes.”
91
Perguntado se ficou triste com o fim de seu projeto, Bill responde sem hesitar que “não”.
O weblog cheesebikini?
92
, responsável por uma ampla cobertura sobre as flash mobs, se
despede delas com o seguinte texto: “Hoje a noite outra flash mob aconteceu e eles dizem que
foi a última. Mas foi a última o quê? Supostamente foi a última flash mob em Nova York
organizada por Bill, o inventor das mobs. Bill poderia ser qualquer um desses homens. Claro
que em Nova York pode acontecer outras flash mobs. Obrigado, Bill pelas mobs, obrigado
91
Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/09/263538.shtml>. Acesso: 20 jan. 2005.
92
Disponível em: <http://www.cheesebikini.com/archives/flash_mobs/index.html>. Acesso: em 12 dez. 2004.
140
pelo mistério e obrigado por não ter vendido a idéia.”
93
Do fotoblog Santan’s Laudromat,
responsável pelo arquivamento das fotos de todas as mobs, destacamos a última frase:
“Obrigado Bill por ter começado este projeto propondo a idéia das mobs e ter terminado no
momento certo. Exatamente o que precisávamos no verão úmido e chuvoso de Nova York.”
94
No sugestivo artigo intitulado “Os desafios analíticos propostos pelo fenômeno das flash
mobs”, os autores José Carlos Ribeiro e Antonio Marcos Pereira, relatam que
independentemente do caráter assistemático dessas manifestações, trata-se, “em todas as
instâncias, de eventos marcados pelo exercício de coordenação coletiva e por sua efemeridade
e volatilidade” (RIBEIRO; PEREIRA, 2005, p. 210). Normalmente acontecendo em circuitos
urbanos, mas freqüentemente nos hipercentros das grandes metrópoles, representam a ponta
final, a culminância de um processo de articulação e organização que tem início no ambiente
on-line. Utilizando a Internet como meio de disseminação, essencialmente os blogs, as listas
de discussão ou os chats, os interessados em participar de uma flash mob se encontram,
definem, e encaminham os procedimentos necessários à consecução do evento. Ao
considerarmos esse aspecto é que podemos “pensar no fenômeno das flash mobs como uma
construção processual, na qual o ato manifesto é apenas o elo final de uma cadeia de
procedimentos previamente tencionada e articulada por alguns de seus participantes, os
‘mobsters’ ou organizadores dos eventos” (id., ibid., p. 211).
Embora o entendimento desse fenômeno possa parecer complexo, incidentes recentes no
cotidiano das megacidades (Castells, 2003), vinculados a uma aparente premência pela
apropriação do mundo real por parte dos usuários das atuais tecnologias de comunicação,
tornam as flash mobs um caso exemplar para o questionamento do espo social e cultural na
sociedade contemporânea. Destacando o pensamento do antropólogo Michael Fischer, os
autores apontam que as formas de vida emergente, diante da atual composição da sociedade,
93
Disponível em: <http://www.cheesebikini.com/archives/flash_mobs/index.html>. Acesso: em 12 dez.2004.
94
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000137.html>. Acesso: 03 ago. 2003.
141
nos instigam exatamente por serem capazes de desafiar “as categorias das quais dispomos
para organizar nossa compreensão de fenômenos sociais e culturais” (RIBEIRO; PEREIRA,
2005, p. 211).
Salientando um aparente desafio para análise das flash mobs, Ribeiro e Pereira apontam
as considerações sobre o caráter de sua apresentação enquanto uma manifestação artística,
como algo que surge quando consideramos que as encenações das flash mobs nos remetem as
formas estabelecidas de expressão, como os happening e a performance.
Nas entrevistas concedidas pelo idealizador e organizador das flash mobs, observamos
que ele se utiliza em alguns momentos do termo performance para caracterizar as mobs e,
diante do desafio proposto pelos autores, entendemos a pertinência de retornarmos ao início
dos anos 70 a fim de analisarmos a origem da performance. Entretanto, cabe-nos destacar, que
por se tratar de períodos histórico/político distintos, nosso recorte sobre a performance se
utilizado como um embasamento teórico por entendermos as flash mobs como um evento
transitório atrelado as novas tecnologias de comunicação.
No livro A arte da performance, o autor Jorge Glusberg, aponta que o trabalho “Salto no
Vazio”, realizado na cidade de Nice pelo bibliotecário e pintor Yves Klein, talvez possa ser
considerado o início do que se tem denominado a arte da performance. Klein, “fotografado no
instante que saltava para a rua de um edifício, era o protagonista de sua obra e, nesse sentido,
a obra em si” (GLUSBERG, 2005, p. 11).
Sugerindo que a origem dessa idéia do uso do corpo humano como sujeito e força
motriz do ritual inclui necessariamente relações com o Futurismo
95
na Itália, França e
95
Os futuristas saúdam a era moderna, aderindo entusiasticamente à máquina onde os objetos não se esgotam no contorno
aparente e seus aspectos se interpenetram continuamente a um só tempo, ou vários tempos num só espaço. O grupo pretendia
fortalecer a sociedade italiana através de uma pregação patriótica que incluía a aceitação e exaltação da tecnologia. O
futurismo é a concretização desta pesquisa no espaço bidimensional. Procura-se neste estilo expressar o movimento real,
registrando a velocidade descrita pelas figuras em movimento no espaço. O artista futurista não está interessado em pintar um
automóvel, mas captar a forma plástica a velocidade descrita por ele no espaço. Disponível em:
<http://www.historiadaarte.com.br/futurismo.html>. Acesso: 12 dez. 2005.
142
Rússia, com o Dadaísmo
96
, o Surrealismo
97
, e a Bauhaus
98
, o autor nos esclarece que esses
movimentos têm somente alguns pontos de contato com a arte da performance. A
performance, como um gênero artístico independente, só vai surgir a partir dos anos 70 e
esclarece que os futuristas e os dadaístas se utilizaram dessa forma de expressão como um
meio de provocação e desafio na sua ruidosa batalha para romper com a arte tradicional e
impor novas formas de arte. Vejamos o que nos diz o autor:
O seu niilismo era carregado de ironia e de um certo espírito lúdico; mas era, ao
mesmo tempo, a expressão de uma originalidade criativa e de uma busca de
envolvimento do público na atividade artística. O que se buscava era uma vasta
abertura entre as formas de expressão artística, diminuindo de um lado a distância
entre vida e arte, e, por outro lado, que os artistas se convertessem em mediadores de
um processo social (ou estético-social) (GLUSBERG, 2005, p. 12).
As performances geralmente nascem de exercícios de improvisação ou de ações
espontâneas que, de acordo com Glusberg, trabalham todos os canais da percepção tanto de
forma alternada como simultânea. Basicamente elas são constituídas em experiências táteis,
motoras, acústicas, cinestésicas e, principalmente, visuais. De fato, atesta o artista argentino, a
maioria das classificações existentes são baseadas nessa taxonomia sensorial perceptiva.
Enquanto o performer e em ação todos os sentidos, ele tamm produz
significados. Colocar a atuação do performer meramente em termos de uma
tipologia intuitiva ou impressionista pode parecer insuficiente e até inaceitável. É
necessário, portanto, enfocar os elementos que vão dar vida à ação transgressora do
performer no nível da representação (GLUSBERG, 2005, p. 71).
Segundo o autor, nenhuma performance pode ser vista isolada de seu contexto por estar
estritamente associada ao seu meio cultural, sendo a vida na sociedade uma das maiores
fontes de elementos para a arte da performance. No entanto, Glusberg esclarece que não está
96
A proposta do dadaísmo era que a arte, solta das amarras racionalistas, fosse apenas o resultado do automatismo psíquico,
selecionando e combinando elementos por acaso. Sendo a negação total da cultura, o Dadaísmo defende o absurdo, a
incoerência, a desordem, o caos. Politicamente, firma-se como um protesto contra uma civilização que não conseguiria evitar
a guerra. Disponível em: <http://www.historiadaarte.com.br/futurismo.html>. Acesso: 12 dez. 2005.
97
O surrealismo foi por excelência a corrente artística moderna da representação do irracional e do subconsciente. Suas
origens devem ser buscadas no dadaísmo e na pintura metafísica de Giorgio De Chirico. Este movimento artístico surge todas
às vezes que a imaginação se manifesta livremente, sem o freio do espírito crítico, o que vale é o impulso psíquico. Os
surrealistas deixam o mundo real para penetrarem no irreal, pois a emoção mais profunda do ser tem todas as possibilidades
de se expressar apenas com a aproximação do fantástico, no ponto onde a razão humana perde o controle. Disponível em:
<http://www.historiadaarte.com.br/futurismo.html>. Acesso: 12 dez. 2005.
98
Bauhaus, nome pelo qual é conhecida a Staatliches Bauhaus (literalmente, casa estatal de construção), uma escola de arte
e arquitectura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha. A Bauhaus foi uma das maiores e mais originais
expressões do que é chamado Modernismo na arquitetura, sendo uma das primeiras escolas de design do mundo. Disponível
em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Bauhaus>. Acesso: 12 dez. 2005.
143
se referindo às cerimônias comuns do dia-a-dia, mas sim aos “eventos inesperados que nos
obrigam a uma mudança de comportamento e de reavaliação de padrões prévios com vistas a
enfrentar circunstâncias imprevistas, insólitas” (GLUSBERG, 2005, p. 72).
As performances, nesse sentido, realizam uma crítica às circunstâncias da vida: a
impostura dos dramas convencionais, o jogo de espelhos que envolve nossas atitudes e
sobretudo a natureza esteriotipada de nossos hábitos e ações. Segundo o artista, a esta ruptura
com os padrões tradicionais do viver, que também podem implicar uma denúncia, se justapõe
uma ruptura aos códigos do teatro e da dança, que estão longe de serem estranhos à arte da
performance.
Sugerindo ser interessante resgatarmos a etimologia da palavra performance, o autor
descreve que o vocábulo entrou para a língua inglesa como uma derivão do latim per-
formance que significa realizar, executar, desempenhar, realizar, atuar, acompanhar, ato, ação,
podendo também significar uma cerimônia, um rito, um espetáculo, a execução de uma peça
de música, uma representação teatral ou um feito acrobático.
Diante das significações sugeridas por Glusberg, retomamos as flash mobs, onde
observamos suas encenões como um fenômeno fronteiriço que possui algo da esfera
artística e que se aproxima do conceito de performance. Na flash mob de número cinco,
realizada no Central Park, os participantes subiram numa pedra e imitaram o som dos
pássaros
99
onde “a iia era que as pessoas se tornassem o espetáculo ao responder a um
convite enviado por e-mail. De certo modo elas estavam criando algo ao se tornarem o
espetáculo e a audiência”
100
, declara Bill.
No artigo “Multidões instantâneas”, publicado na Folha de S. Paulo
101
, o crítico de arte
Walter Zanini nos aponta que “isso tudo é parte do processo de desmaterializão que arte
99
Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/sl/archives/000098.html>. Acesso: 03 ago. 2003.
100
Disponível em: <http://www.ibiblio.org/pub/electronic-publications/stay-free/archives/24/flash-mobs-history.html>.
Acesso: 10 maio 2004.
101
Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, 13 ago. 2003.
144
vem sofrendo desde os anos 50, com o happening, a performance, a body art”, e conclui
dizendo que a “arte postal do grupo Fluxus
102
está agora na Internet, trazendo bons e maus
resultados. Isso sempre vai ser discutido. O Fluxus tem seus detratores até hoje”.
Destacando outro artigo, “Relâmpago da multidão”, disponível no jornal on-line
CorreioWeb
103
, André Lemos descreve que as “manifestações relâmpago não são novas e
foram freqüentes nos anos 60 e 70, tanto de cunho político como artístico”. Alega que, nesse
sentido, os fenômenos das flash mobs não são uma novidade e diz que a novidade é a
“utilização das tecnologias móveis e em rede (sites, blogs, listas etc.) como forma de
articulação de pessoas que se reúnem sem nenhuma reivindicação política explícita”. E
conclui que embora “as formas sejam variadas, o que parece estar em jogo é uma performance
corporal e a criação de uma maneira de interfacear o espaço eletrônico das redes telemáticas
com o espaço urbano das metrópoles”.
Observando a configuração das flash mobs mais detalhadamente e assumindo uma
postura cética, Ribeiro e Pereira sugerem que não há qualquer questão nova e apontam
algumas formas híbridas que parecem elucidar um fenômeno como as flash mobs. A arte
engajada, por exemplo, se apresenta como expressões políticas explícitas que, ao mesmo
tempo, se configura como uma manifestação artística e política. Ainda como exemplo os
autores apontam os eventos políticos atuais alegando que esses aparecem muitas vezes
envoltos na aura do espetáculo ao adquirirem algo da expressão artística. O refinamento
estético e o freqüente apelo a convocações emocionais tornam o ambiente político cada dia
mais afinado a manifestações artísticas, tais como o happening e a performance.
102
Segundo George Maciunas, idealizador do movimento Fluxus, “a arte Fluxus não leva em consideração a distinção entre
arte e não arte, não leva em consideração a indispensabilidade, a exclusividade, a individualidade, a ambição do artista; não
considera toda pretensão de significação, variedade, inspiração, trabalho, complexidade, profundidade, grandeza e
institucionalização. Lutamos, isso sim, por qualidades não estruturais, não teatrais e, por impressões de um evento simples e
natural, de um objeto, de um jogo, de uma gag” (Maciunas, Apud, GLUSBERG, 2005, p. 38).
103
Disponível em: <http://www2.correioweb.com.br/cw/EDICAO_20030823/sup_pen_230803_20.htm>. Acesso: 12 out.
2003.
145
O que importa considerar aqui é que a conexão entre as esferas artísticas e política
é, no caso da arte engajada e da política espetacularizada, tomada como um dado, e
participa da própria configuração do evento e do conjunto de expectativas que
mobilizamos para realizá-los e/ou interpretá-los. No caso das flash mobs, o que é
particularmente notável é a extensão em que o evento provoca tensões em nossa
capacidade de decidir sobre sua natureza e operar um enquadramento automático,
consistente com nossas concepções ordinárias sobre o que é um evento artístico ou
político (RIBEIRO; PEREIRA, 2005, p. 214).
Em conformidade com os autores, acreditamos que assumir as flash mobs como um
evento artístico ou político é perder de vista sua característica mais interessante que é
justamente a de revisitar e redescrever nossos conceitos analíticos prontos. Bill nos conta que
a princípio imaginou uma espécie de brincadeira absurda, mas que sua execução acabou se
tornando “numa peça de arte da performance. Minha idéia era fazer algo constrangedor, como
um grupo de pessoas interrompendo o fluxo da cidade. Você anda pelas ruas e passa por
centenas de lojas que normalmente tem três pessoas dentro, então gostei da idéia de naquele
dia você caminhar e de repente ver cento e cinqüenta pessoas dentro de uma loja gritando”.
104
Apontando um outro desafio suscitado nestas manifestações identificamos a dicotomia
ordem e caos; se por um lado, para os não participantes, as flash mobs aparentam uma
verdadeira desordem coletiva, por outro lado, para seus participantes, fica evidenciada a
precisão na execução das ações, haja vista a cronometria e a sincronicidade exigida em cada
procedimento acertado. Nesse sentido Ribeiro e Pereira afirmam que a característica
diferenciadora e espetacular dessas manifestações não é somente a presença de atos
dissonantes, mas sim o fato delas serem pautadas por uma ordem, por uma sistemática e um
controle não identificados na manifestação em si, mas nos acordos previamente estabelecidos
no mundo on-line.
Suscitando o debate sobre o fim da arte, os autores utilizam o recente trabalho do
filósofo Richard Shusterman para nos apontar que a discussão sobre o fim da arte pode ganhar
novos contornos quando deixamos de compreender esse “fim” como rendição e derrocada e
104
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
146
passamos a refletir, sob uma perspectiva contemporânea, o “fim” da arte como projeto e devir
que evocam uma série de questionamentos novos. Ao percebermos as flash mobs como
manifestações artísticas que ocorrem nos centros urbanos das cidades, retomamos a
especulação do flâneur sobre os limites do comportamento aceitável na esfera pública. “O que
está acontecendo aqui?, pergunta-se uma testemunha e, antes mesmo de encontrar uma
resposta plausível ao seu questionamento, o evento pertence exclusivamente à sua
memória, passando a ter lugar apenas na esfera virtual onde somente através do acesso aos
arquivos podemos observar a memória dos vários envolvidos e circundantes nas conversações
estabelecidas. Assim, assinalam Ribeiro e Pereira, podemos pensar que as flash mobs se
assemelham aos happenings e as performances conhecidos, sem, entretanto, recusar suas
especificidades e particularidades.
Numa outra perspectiva podemos suscitar seu caráter político: o que esses eventos têm,
ou podem ter, de político? Imediatamente as flash mobs nos remetem a outros episódios
semelhantes, mas que são essencialmente marcados por um conteúdo de protesto e afirmação
pública de posicionamentos políticos, “tais como as mobilizações contra a disseminação dos
modelos neoliberais que testemunhamos em Seattle, Washington e Praga, em 2000”
(RIBEIRO; PEREIRA, 2005, p. 216). Salientando um comentário da ativista canadense
Naomi Klein, os autores apontam a importância de se verificar aquilo que a primeira vista
parece ser um aspecto frágil de tais manifestações, por exemplo, a falta de organizão no
sentido daquilo que tradicionalmente atribuímos à idéia de organização em movimentos dessa
natureza, alegando que pode estar justamente aí a maior relevância do ponto de vista político.
Ao explorarem as possibilidades de organização por intermédio da Internet e
experimentarem o exercício de tarefas que envolvem um grande número de pessoas
fazendo uso de centros de decisão flexíveis, mutáveis e distribuídos, os envolvidos
em tais operações estão dando os primeiros passos para que possamos avançar em
termos de imaginação, inovação e criatividade no exercício do protesto político
(RIBEIRO; PEREIRA, 2005, p. 216).
147
Bill, autor do projeto das flash mobs, afirma que no início negou qualquer interpretação
política ao projeto “porque não havia uma grande reunião para traçar um manifesto, eu não
tinha a menor idéia de quem estava vindo participar. Confiava nas evidências que as pessoas
me contavam por e-mail, onde uns diziam que gostaram de participar porque era engraçado,
outras porque era social”.
105
Revelando que num determinado momento percebeu que elas
estavam conquistando um cunho político porque “quando entramos numa dessas grandes lojas
a idéia que se tem é que você vai comprar algo, e quando você tenta expressar qualquer outra
coisa diferente pode parecer que estamos infringindo as regras. Como o espaço comercial é
quase um espaço público, eu pensei que poderia parecer político ir a uma dessas lojas”.
106
Considerando o caráter inovador e rebelde de tais fenômenos, podemos nos aproximar
com outros olhos da noção de heterotopia proposta por Foucault, a fim de avaliarmos como
uma possível contribuição para o entendimento do fenômeno flash mob. Após analisarmos os
horizontes espaciais entre o espaço da família e o social, os espaços público e privado, o
espaço de trabalho e o de lazer, destacamos o pensamento do filósofo francês:
Entre todos esses posicionamentos, o que me interessa são alguns dentre eles que
tem a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros posicionamentos,
o que me interessa são alguns dentre eles que tem a curiosa propriedade de estar em
relação com todos os outros posicionamentos, mas de um tal modo que eles
suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontram por
eles designadas, refletidas ou pensadas (FOUCAULT, 2001, p. 414).
Aqui, os autores Ribeiro e Pereira nos apontam que a especificidade das flash mobs
parece ter afinidades com a configurão proposta por Foucault quando elas sugerem uma
série de inversões, ou redistribuições de polaridades tradicionais, suspendendo por instantes
juízos preconcebidos a respeito do que pode e do que não pode ser feito no espaço urbano, ou
mesmo da ação que é legitima nos horizontes da sociabilidade ordinária mas que é capaz de
ser provocativa e instigante (RIBEIRO; PEREIRA, 2005, p. 217). E destacam que precisamos
105
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
106
Disponível em: <http://www.laweekly.com/ink/04/37/features-bemis.php>. Acesso: 10 nov. 2004.
148
desenvolver uma certa destreza para lidar com a incerteza, a volatilidade, e o caráter híbrido
de fenômenos como as flash mobs (id., ibid., p. 218).
Concluindo uma de suas entrevistas, Bill (IX) descreve que recebeu um e-mail de um
flash-mobber polonês onde estava relacionado o link para um site responsável pelo
planejamento de uma flash mob global.
107
“Para mim a idéia de solidariedade é fascinante e
fiquei admirado porque eu concebi as flash mobs como um fenômeno muito local e essa flash
mob está sendo organizada de uma forma muito próxima da minha idéia original.”
108
A
primeira Global Flash Mob aconteceu em outubro de 2003.
Figura IX: O anônimo Bill com Rheingold em novembro de 2003
Ganhando notoriedade, a Global Flash Mob # 2 (X) tinha como objetivo comemorar o
aniversário de um ano da primeira manifestação que ganhou destaque ocorrida na loja de
Departamentos Macy´s em 17 de junho de 2003. O interessado em participar tinha que se
inscrever no site FARS Flashmob Association
109
, mantido por Dave e seu colega Capricorn,
a fim de receber os scripts, via e-mail, pouco antes do começo do evento. Na véspera da
manifestação tinham 37 países, 97 cidades e 131 sites inscritos.
107
Disponível em: <http://www.flashmob.fm/forum/>. Acesso: 15 jun. 2004.
108
Disponível em: <http://www.ibiblio.org/pub/electronic-publications/stay-free/archives/24/flash-mobs-history.html >.
Acesso: 10 maio 2004.
109
Disponível em: <http://www.fars.ru/>. Acesso: 17 jun. 2004.
149
Figura X: Global Flash Mob #2
Dave, o principal articulador da GFM#2, diz que respeitou o espírito do sem sentido e
do inusitado das flash mobs organizadas por Bill em Nova York, alegando que seu maior
trabalho foi conciliar um roteiro que atendesse as características sócio-culturais de cada local
inscrito. “O planejamento foi divertido”, diz Tempest, o responsável pela organização em
Sydney, “o script é bem legal, e vai deixar muita gente confusa.”
110
De acordo com o fuso
horário, a primeira flash mob aconteceu na Nova Zelândia e a última em Los Angeles.
Cabe destacar que em 2005 aconteceu a GFM #3
111
e a organização da quarta está
sendo discutida
112
(ANEXO D). Como se vê as flash mobs ainda estão em movimento.
110
Disponível em: <http://www.wired.com/news/culture/0,1284,63872,00.html>. Acesso: 17 jun. 2004.
111
Disponível em: <http://www.flashmob.fm/>. Acesso: 15 maio 2005
112
Disponível em: <http://flashmob.fm/forum/index.php>. Acesso: 28 dez. 2005.
150
Considerações finais
“Algo há a fazer, ou melhor, a pensar.
Pois o fim de um pensamento não é o fim da possibilidade de inventar;
pois não temos o direito de desprezar o presente; pois precisamos conhecer
os perigos e as estratégias que nos permitam resistir; pois devemos escolher o
que queremos que permaneça e lutar por isto. Imperioso optar por um
“ceptismo activo” que nos proteja da falsa euforia como da improdutiva apatia.
O resto é tentar, correndo o risco de encontros e encontrões, de muitos pequenos
enganos e de algumas contradições que, esperamos, sejam perdoáveis.”
Ieda Tucherman
Movidos pela inquietação sobre o reflexo das atuais tecnologias comunicacionais nas
práticas sociais e subjetivas, buscamos identificar o fenômeno das flash mobs como um
movimento contemporâneo que suscita curiosidade por levantar uma série de reflexões para
sua análise. Assim, diante desse conjunto de transformações procuramos delinear como os
veículos de comunicação de massa e as novas tecnologias vêm servindo como suporte para
organização social.
Sendo assim, partimos da Revolução Industrial e identificamos como o salto
tecnológico proporcionou uma nova configuração para o agrupamento social e urbano. O
indivíduo diante da cidade moderna passa a vivenciar uma experiência de reunificação
instantânea proporcionada pela aceleração dos meios de transporte e pela velocidade atribuída
aos meios de comunicação. A informação surge como a principal gestora dessas relações
complexas e passa a ser distribuída através de um centro regulador que se apropria dos
veículos de comunicação funcionando como um distribuidor de normas para a periferia. O
prestígio da imprensa, segundo Gabriel Tarde (1992), está na força de aproximar interesses
comuns e na possibilidade da formação de novos agregados sociais, gerando um vínculo de
afinidades e de pensamento onde a leitura do mesmo jornal é capaz de vencer, sem
dificuldade, fronteiras anteriormente nunca ultrapassadas pela voz do orador. Voltando nosso
olhar para o momento atual, podemos identificar uma proximidade entre a concepção da
imprensa moderna e a Internet como um lugar capaz agregar pessoas ao redor do mundo com
interesses em comum.
151
Percebendo o processo progressivo dos meios de comunicação, caminhamos até o
surgimento da televisão e observamos como a mídia afeta nosso comportamento, pois a
informação aliada ao entretenimento, uma característica da mensagem televisiva, transfere
para o nosso consciente a capacidade de selecionar, recombinar e interpretar as imagens e os
sons desenvolvidos por meio de nossas práticas coletivas ou preferências individuais. Assim,
os mass media passam a ser uma representação de nossa cultura, disseminada, principalmente,
através da distribuição da informação pela mídia.
Chegando ao surgimento da Internet, examinamos a escalada do seu desenvolvimento e
destacamos novas possibilidades de interação entre os indivíduos pontuando algumas práticas
de experimentação social. Trata-se de dois momentos que consideramos de fundamental
importância para constituição da sociedade ocidental. No primeiro período, após o século
XVIII, identificamos um mundo especificamente urbano, marcadamente mais rápido, caótico,
fragmentado e desorientador. A modernidade urbana, tal como concebida pelo sociólogo
alemão Georg Simmel (1967), foi percebida como um bombardeio de estímulos, onde a
intensificação da estimulação nervosa contribuiu para alterações dos fundamentos fisiológicos
e psicológicos da experiência subjetiva. No segundo, diante da sociedade contemporânea e
das novas tecnologias comunicacionais assistimos uma reformulação no modo como os
indivíduos interagem entre si provocando um grande debate em torno do tipo de realidade que
essas comunidades teriam no relacionamento interpessoal.
O conceito de comunidade, tal como concebido na modernidade, ganha novos contornos
quando nos deparamos com a comunicação mediada por computador (CMC). Sendo assim,
examinamos as sucessivas transformações que o conceito de comunidade sofreu ao longo dos
séculos. Caminhando até a década de 80, identificamos o surgimento dos primeiros
computadores ligados em rede e percebemos uma nova possibilidade de associação dos
indivíduos em torno do ambiente on-line. Inspirados pelo autor Howard Rheingold, tido como
152
o pioneiro no debate sobre as comunidades virtuais, focamos a discussão na definição
cunhada pelo autor onde ele as define como “agregados sociais surgidos na Rede, quando os
intervenientes de um debate o levam por diante em número e sentimento suficientes para
formarem teias de relações pessoais no ciberespaço” (RHEINGOLD, 1996, p. 18).
Baseados em Manuel Castells (2003), destacamos que as comunidades virtuais não
precisam opor-se às comunidades físicas, são formas diferentes de comunidade, com leis e
dinâmicas específicas e que, por não adotarem o mesmo modelo de comunicação e interação
de uma comunidade física real, não devem ser consideradas imaginárias, elas funcionam num
plano intermediário ao da realidade. São redes sociais baseadas em laços diversificados e
especializados, capazes de gerar reciprocidade e apoio através de uma interação dinâmica que,
muitas vezes, ultrapassa os limites da Internet e se estendem para atividades e encontros no
espaço social geográfico. Conforme destaca Castells, as comunidades virtuais têm sua própria
dinâmica: a Rede é a Rede. Aqui, o que tentamos esclarecer é que a constituição das
comunidades virtuais não pode ser confrontada com o ideal das comunidades clássicas por
entendermos que não existe uma competição entre o real e o virtual e sim a busca de uma
melhor convivência entre ambos.
O contínuo desenvolvimento da Internet e sua conseqüente popularização tornou
possível aos usuários experimentar e vivenciar novas e diversas identidades através da
navegação em novos territórios existenciais. Analisando a construção identitária desse usrio
e seu descentramento ao longo das últimas décadas, pontuamos algumas rupturas que
colaboraram para o surgimento da idéia de identidade enquanto algo não definível e não
fixado. Considerando o ambiente de jogos Multi-User Dungeons (MUD’s) como um exemplo
notável para o exercício dessa experimentação, vimos no amplo estudo desenvolvido por
Sherry Turkle (1997) como o indivíduo desenvolveu um espaço de liberdade para “brincar”
de construir espaço e identidade, funcionando como um lugar para projeção do seu
153
imaginário. Observamos, então, como os indivíduos, na década passada, experimentaram
novas práticas sociais interpretando diferentes papéis através da interação com outras pessoas
em ambientes on-line.
No início deste século XXI, a partir do surgimento dos dispositivos móveis de
comunicação, e a conseqüente mobilidade proporcionada por sua utilização, podemos dizer
que estamos diante de uma prática inversa, o indivíduo sai do espaço virtual para interagir no
espaço público urbano. A constante conexão entre o espaço virtual e o físico, proporcionado
pelas novas dinâmicas de acesso e o uso da rede nas metrópoles contemporâneas, inaugura
uma nova fase da sociedade da informação onde destacamos as flash mobs como um exemplo
singular desse atual cenário.
Ao longo desses dois anos estivemos em contato com as mais variadas referências
disponibilizadas em sites, jornais e artigos a fim de investigarmos o surgimento e a
disseminação das flash mobs. Sendo assim optamos por focar nossa análise nas oitos flash
mobs organizadas pelo anônimo Bill em Nova York, por entendermos que sua propagação
dentro dos mais variados contextos sociais acabou resultando num certa crise de identidade.
Como por exemplo, a primeira manifestação realizada em São Paulo, onde os participantes se
mantiveram no local dando entrevistas para imprensa ao invés de dispersar. A dispersão é
uma das características de maior relevância nas organizadas por Bill. Entretanto, cabe-nos
destacar, que não desprezamos as que ocorreram ao redor mundo, somente optamos por
delinear as ocorridas em Nova York por entendermos que as demais se constituíram num
desdobramento dessa iniciativa.
A questão que entendemos ser de fundamental importância, e que buscamos identificar
de maneira criativa ao longo deste trabalho, é que essa forma de manifestação coletiva,
mesmo ocorrendo sem qualquer justificativa aparente, a não ser o desejo do inusitado, guarda
consigo a característica de um evento marcado pelo exercício de coordenação coletiva onde
154
sua representação final, ou dizendo melhor, sua culminância é o resultado de um processo
articulado e organizado no ambiente on-line.
Diante desse rompimento de fronteiras entre o espaço virtual e o físico identificamos a
existência de um ponto de convergência que pode ser entendido como um espaço sendo
transformado em outro. Em oposição às utopias, que são tratadas como posicionamentos sem
lugar, identificamos o termo heterotopia cunhado por Michel Foucault, por entendermos que
as flash mobs “tem o poder de justapor em um lugar real vários espaços, vários
posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (FOUCAULT, 2001, p. 418).
Normalmente realizadas em lugares que representam centros de poder nas grandes
metrópoles, sejam eles a representação de um lugar antropológico (AUGÉ, 2003) ou um ícone
da sociedade de consumo, as flash mobs acabam por agrupar uma série de espaços diferentes.
Seu caráter instantâneo faz com que um espaço geográfico tradicional se transforme num
palco para realização de uma encenação organizada essencialmente no âmbito virtual.
Sendo assim, o espaço urbano contemporâneo, em conjunto com as atuais tecnologias
comunicacionais, altera nossa concepção sobre o tempo e o espaço ao proporcionar uma
velocidade contínua suprimindo as distâncias de caráter delimitativos. Trata-se de uma nova
forma de estar no coletivo. Aqui propomos uma pergunta que entendemos, ainda, pertinente:
por que estariam as pessoas abandonando sua rotina diária para intervir, por alguns minutos,
num espaço público urbano? Sugerindo que na contemporaneidade o tédio e a falta de
objetivos, conforme podemos analisar em alguns relatos, geram um sentimento de permanente
insatisfação e que vai encontrar na satisfação das sensações sua principal fonte para
constituição de identidades, destacamos o pensamento do psicanalista Pedro Salem onde ele
aponta que, no contexto pós-moderno,
o tédio assume novas expressões graças ao esvaziamento dos suportes tradicionais
de doação de identidade, às novas proporções assumidas pelo culto do eu e à
realização no presente e ainda pelo fato de o modo de vida consumista ter se
radicado definitivamente na cultura. As mudanças geradas pela revolução
individualista fomentaram subjetividades narcísicas, autocentradas, cujas principais
155
características são identidades em permanente mutação e empenhadas na conquista
de uma gratificação constante, imediata e prioritariamente sensorial (SALEM,
2004, p. 153).
Diante das inúmeras possibilidades de escolha e na falta de um engajamento
comunitário maior o personagem acaba se satisfazendo com a realização imediata dos seus
desejos.
Independente do caráter político ou apolítico do movimento, a mobilização via Internet
ou via telefones celulares, está funcionando. O destaque e a importância ficam por conta dos
jovens estarem usando a Internet e a comunicação móvel para estabelecer uma cultura
própria. Assim, vislumbramos as flash mobs como a necessidade de formação de uma
comunidade acoplada ao entretenimento, mesmo sendo ela fluída. Livres de qualquer vínculo,
os laços das “comunidades estéticas” (BAUMAN, 2001, p. 68) devem ser experimentados no
ato, sem o compromisso de serem levados para sua rotina diária.
Ao concluirmos a presente dissertação, não poderíamos deixar de citar as smarts mobs,
que mesmo se tratando de dois fenômenos sociais com formato de mobilização e atuação
distintos, acreditamos que seria incorrer num erro não falarmos brevemente sobre elas.
Assim, logo nos vem a questão: como podemos distinguir um do outro? Ao longo dessa
pesquisa foi possível identificar que a principal distinção entre os dois fica por conta das
smarts mobs estarem sempre relacionadas ao ativismo político, enquanto as flash mobs são
organizadas, essencialmente, para o entretenimento.
Durante o boom das flash mobs, apesar de encontrarmos algumas dificuldades ao longo
do processo por nos depararmos com sites fora do ar ou desatualizados, foi possível detectar
que sua organização sempre esteve ancorada em sites ou blogs que dependiam de um regente
(ou mobsters) para desencadear a organização que culminaria na distribuição dos e-mails,
enquanto as smarts mobs despontam, normalmente, de um posicionamento político que
muitas vezes utiliza os telefones celulares como suporte. Para tanto, não podemos deixar de
apontar o clássico exemplo descrito por Howard Rheingold no seu livro Smart Mobs: The
156
next social revolution, onde ele descreve a força de uma das primeiras manifestações smart
mobs:
No dia 20 de janeiro de 2001, o Presidente das Filipinas, Joseph Estrada,
113
foi o
primeiro chefe de estado na história a perder o poder por uma “multidão
inteligente” (smart mob). Mais de um milhão de moradores de Manila, mobilizados
e coordenados por uma onda de mensagens de texto disparados pelo site People
Power (criado em 1986) afrontaram o regime de Marcos com manifestações
pacíficas. Dezenas de milhares de filipinos convergiram para Av. Epifanio de Los
Santos, conhecida como “Edsa”, uma hora após a primeira mensagem de texto ter
sido lançada: “Vá para 2EDSA. Use preto”. Durante quatro dias mais de um milhão
de cidadãos apareceram vestidos de preto. Estrada caiu. A lenda da “geração txt”
tinha nascido. Derrubar um governo sem disparar um único tiro era uma
demonstração prematura e momentânea do surgimento do comportamento smart
mob (RHEINGOLD, 2003, p. 157, tradução nossa).
Assim, podemos dizer que as mobs estão sendo capazes de reunir um número
considerável de pessoas que cada vez mais se apropriam das novas tecnologias para organizá-
las. Estaria a participação em uma smart mob ou em uma flash mob contribuindo para
mudanças cognitivas futuras? Se pensarmos que as tecnologias de comunicação são peças
fundamentais em todo processo de desenvolvimento da humanidade, como vimos neste
trabalho, podemos dizer que um novo comportamento sociocultural está emergindo dessa
nova relação homem/novas tecnologias.
113
O presidente Joseph Estrada estava sendo indiciado pela suspeita de ter embolsado US$ 82 milhões em propinas e
comissões durante seus 31 meses no poder. Fonte: <http://an.uol.com.br/2001/abr/26/0mun.htm>. Acesso: jun. 2005.
157
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COELHO, Marcelo. A estrutura viscosa do Orkut. Observatório da Imprensa. 30 jun. 2004.
Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=284ASP020>.
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161
COWBOY, Deck. A última flash mob de Manhattan!!! cmi brasil centro de mídia
independente. 15 set. 2005. Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/
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DANZIG, David. The "Last" Flash Mob. weblog cheesebikini? Disponível em: <http://
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DELIO, Michelle. E-Mail Mob Takes Manhattan. Wired News. 19 jun. 2003. Disponível em:
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www.wired.com/news/culture/0,1284,63872,00.html>. Acesso: 17 de jun. 2004.
Entrevista com Bill, fundador do NYC Flash Mobs a um grupo de quinze pessoas. Glowlab
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Global Flashmob. GFM#2. Disponível em: <http://www.fars.ru/>. Acesso: 17 jun. 2004.
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HEANEY, Francis. The Short Life of Flash Mobs. Stay Free! Magazine. Disponível em:
<http://www.ibiblio.org/pub/electronic-publications/stay-free/archives/24/flash-mobs-
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ITACARAMBI, Francisco. O poder do PC e da net pulou aos nossos bolsos, diz guru
tecnológico. Caderno i último segundo (tecnologia). Disponível em: <http://
ultimosegundo.ig.com.br/paginas/cadernoi/materias/157001-
157500/157379/157379_1.html>. Acesso: 20 out. 2003.
Maioria brasileira no Orkut irrita americanos. JB Online. Disponível em: <http://
jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/internet/2004/08/01/jorinf20040801006.html>. Acesso: 11
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PERRETTI, Jonah. Mr. Bill “Flash Mob”. Distributed Creativity. Disponível em: <http://
cordova.asap.um.maine.edu/~wagora/w-agora/flashmobster.html>. Acesso: 20 mar. 2004.
Photolog of New York. MOB #5. Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/
sl/archives/000098.html>. Acesso: 03 nov. 2003.
Photolog of New York. MOB #8. Disponível em: <http://www.satanslaundromat.com/
sl/archives/000137.html>. Acesso: 03 nov. 2003.
Relâmpago de multidão. Correio Braziliense Correio Web. Brasília. 23 ago. 2003.
Disponível em: <http://www2.correioweb.com.br/cw/EDICAO_20030823/sup_pen_230803
_20.htm>. Acesso: 12 out. 2003.
162
RIGUES, Rafael. Orkut, você ainda vai ter um. Agência de Notícias Magnet/Hotbits. 01 mar.
2004. Disponível em: <http://www.magnet.com.br/bits/especiais/2004/03/0001>. Acesso: 20
ago. 2005.
163
ANEXO A – Instruções para Flash Mob # 3
114
Here's the announcement for the next New York event:
Date: Wed, 25 Jun 2003 21:45:21 -0700 (PDT)
From: The Mob Project To: [email protected]
Subject: MOB #3
(Apologies to those who received an incomplete version before.)
You are invited to take part in MOB, the project that creates an inexplicable mob of people in New
York City for ten minutes or less. Please forward this to other people you know who might like to
join.
FAQ
Q. For a mob to be inexplicable, does it need to take place in an otherwise empty space?
A. No.
INSTRUCTIONS - MOB #3: THE GRAND CENTRAL MOB BALLET
Location: Grand Central Terminal
Start time: Wednesday, July 2nd, 7:04 pm
Duration: less than 10 minutes
(1) During the day on July 2nd:
(a) Synchronize your watch to http://www.time.gov/timezone.cgi?Eastern/d/-5/java/java.
(If that site doesn^Òt work for you, try http://www.time.gov/timezone.cgi?Eastern/d/-5.)
(b) On the front of a $1 bill, write the word
"MOB" over the word "ONE" on the right-hand side. If
you are concerned about the legality of this, write in
pencil. Keep the $1 bill handy.
(c) Wear comfortable shoes.
(2) Arrive at Grand Central by 6:45 pm. By then, representatives of the MOB will have stationed
themselves in or near the downstairs food court. They will all be reading The New York Review of
Books.
(NOTE: the covers of their copies might not bevisible. Please familiarize yourself with the fonts
and layout of that periodical before arriving at the MOB.)
(3) Based on the month of your birth, specify one of the following letters to the MOB
representative:
A: January through April
B: May through August
C: September through December
You will be given a slip on which further instructions will be printed. This slip is your "travel
itinerary" and may be consulted in public.
(4) MOB #3 consists of a series of short mobs. The first will begin at 7:04. You may place yourself
at the MOB site up to two minutes beforehand -- i.e., anytime after 7:02.
NO ONE SHOULD ARRIVE AT THE FIRST MOB SITE UNTIL 7:01.
114
Acesso: <http://www.cheesebikini.com/archives/cat_flash_mobs.html> em 13 dez. 2005
164
(5) Unlike in MOB #2, you do not know each other. Do not speak to anyone, including other MOB
participants. If you are asked a question, limit your responses to one of the following:
* "I am looking for my train"
* "I think these people may be taking the same train I am"
* "My train is supposed to leave from down here"
* "When I saw all these people come down here, I figured I should too"
* "I am taking a train to [suburban town] to visit my [relative]"
* "I am taking a train to a mob"
(6) Based on the itinerary, the MOB will end and you will disperse.
NO ONE SHOULD REMAIN AT THE MOB SITE MORE THAN TWO MINUTES AFTER THE MOB IS OVER.
(7) Return to what you would otherwise have been doing.
Await instructions for MOB #4.
165
ANEXO B – Instruções para Flash Mob # 5
115
Date: Fri, 18 Jul 2003 09:16:19 -0700 (PDT)
From: The Mob Project
Subject: MOB #5
You are invited to take part in MOB, the project that creates an inexplicable mob of people in New
York City for ten minutes or less. Please forward this to other people you know who might like to
join.
FAQ
Q. Can there be more photographers at the next mob?
A. There seemed to be plenty at MOB #4.
Q. I was being sarcastic.
A. "Sarcastic"...?
Q. Meaning that my real question is the EXACT OPPOSITE of that question. Can there be *fewer*
photographers at the next mob?
A. In general, people should feel free to take photographs at the mob. But at certain times in
certain mobs, photography dampens the effect. From now on, the instruction slips for each mob
will specify when and where NOT to take photographs during that mob.
Q. OK. Hey, how about an uptown mob?
A. Are you being "sarcastic" again?
Q. No.
A. Well, then: sure.
INSTRUCTIONS - MOB #5
Start time: Thursday, July 24th, sometime after 7:15pm
Duration: 10 minutes or less
(1) At some point during the day on July 24th, synchronize your watch to
http://www.time.gov/timezone.cgi?Eastern/d/-5/java/java.
(If that site doesn^Òt work for you, try http://www.time.gov/timezone.cgi?Eastern/d/-5.)
(2) By 6:55 PM, based on the month of your birth, please situate yourselves in the bars below. Buy
a drink and act casual.
NOTE: if you are attending the MOB with friends, you may all meet in the same bar, so long as at
least one of you has the correct birth month for that bar.
January, February, March: Dublin House, 225 W. 79th St. (just east of Broadway). Meet in the
back by the jukebox.
April, May, June: McAleer's, 425 Amsterdam Ave. (between 80th and 81st). Meet in the back, by
the enormous television set.
115
Acesso: <http://www.cheesebikini.com/archives/cat_flash_mobs.html> em 13 dez. 2005.
166
July, August, September: Bourbon Street, 407
Amsterdam Ave. (between 79th and 80th). Meet in the back, by the even more enormous
television set.
October, November, December: 420 Bar and Lounge, 420 Amsterdam Ave. (at 80th St.). Meet in
the back, near the constrained tree.
(3) Then or soon thereafter, a MOB representative will appear in the bar and pass around further
instructions. The instructions will specify the mob site, the start time, and the duration. The
instructions will give you what you need and then some.
(4) In particular, the instructions will tell you when to disperse. Make sure that two minutes after
the specified time, you are no longer at the mob site.
(5) Return to what you otherwise would have been doing, and await instructions for MOB #6.
167
ANEXO C – Ginger, um participante, descreve sua experiência na MOB#5
116
You Listen to Me, Mr. Kick-Ass
G I N G E R ' S F O L L I E S , F O I B L E S A N D F I X A T I O N S .
MOB 5: a cute dog, but no bingo
I went to MOB 5 tonight with Mr. & Mrs. Boss. What I noticed this time were the little ways
in which people can take the same set of straightforward "rules" and interpret them
differently. For instance, I wanted to get to the designated bar by 6:30 or so (the invitation
said to get there by 6:55) so that there would be time to have a drink and relax before
receiving further instructions. Mr. Boss was more of the idea that we should arrive at the bar
at the time stated, and when we got there at around 6:45 he considered that "early." Then,
after our cocktails, he wanted to leave right away (even though we had 15 minutes before the
MOB was to start), while I wanted to hang back to avoid a "mob on their way to a mob"
situation.
These things weren't 'bad,' nor did it cause any conflict, but it did show that if two people can't
read the same set of instructions and agree how to follow them, imagine the ways that two
hundred people will follow those same instructions. Small variations combined with
unsynchronized watches means the MOB will always be a little rough around the edges. I
don't think that leads to ruin -- it just means you can't control everything, so it's not worth
sweating a minute here or there.
Back at the bar, I started playing Hipster Bingo. I ticked off old-school Pumas, old-school
vans, and the ubiquitous chunky-plastic-frame glasses before we left. I don't think the
bartendress had been tipped off, she seemed surprised to be flooded with drink orders for
fifteen minutes. I hope she made a lot of tips.
Since all the mobsters were coming from bars west of Central Park at the same time, the
parade of hipsters was hard to miss. "Where did all these people come from?" one befuddled
116
Acesso: <http://www.speakeasy.org/~ginger/blogger/archive/2003_07_20_archive.html#105910589344993825>
em 22 dez. 2005.
168
local wondered. The MOB had made its impact already! The three of us got to Central Park
West a couple of minutes early, so we grabbed a bench so I could bandage my blistered feet (a
sad fact: when it's hot, I don't wear socks and no matter what kind of sandals I wear, I blister.
By the end of summer my feet are hamburger). And just as we were about to get back up and
join the streams of people STILL headed for the MOB site, an adorable French bulldog came
up and decided he was my BEST FRIEND. Though I do not consider myself a dog person,
my love of animals in general allows me to dote on any friendly beast, and I've always had
sort of a thing for bulldogs. Elvis was a darling as he boosted himself on his tippy toes and put
his front paws on my lap. His owner asked what was drawing the crowds and Mr. Boss filled
him in on MOB lore as I made kissy-faces at Elvis. I tried to get a picture (tick "blogger with
a digital camera" off the Bingo card), but the pooch was camera-shy.
The MOB waits for no one, or no dog, so we trekked the last few feet up a ridge which
overlooked CPW. We were instructed to stand and stare straight ahead, but really there was
just a lot of mingling, shuffling and chatting. Then, though my watch said it was still a few
minutes before we were supposed to start, people started in with semi-realistic bird calls. Not
more than 30 seconds later, the air was filled with a cacophony of questionable not-quite-
birdlike sounds. This was still several minutes before this was supposed to happen, but when
in a MOB, do as the MOB does. My bird call of choice: "Mine!? Mine!?"
Per the instructions (though early), the bird calls were punctuated with squawks of "bird
noise!" then "Nature! Get your nature here!" then finally chants of "Na-ture! Na-ture!" and
wild cheering. The mob was supposed to last eight minutes, but I don't think it went that long.
This post on Fancy Robot argues that this MOB was low on spectators, prompting the
question "If a MOB assembles inexplicably, and there's nobody around to not explain it, is it
still inexplicable?" But actually I saw quite a few observers. Several people walked by on
CPW, and what looked like a tour bus actually paused right in front of the MOB site for most
of it. I don't know if they could hear the bird calls or see us through those tinted windows, but
I hoped so. Perhaps that was the lost busload of Maryland tourists from MOB 4!
As happened last time (MOB 3), I was consumed with gleeful joyousness. There was nothing
particularly meaningful about what we were doing, but just to go out and do something absurd
and inspired is a hilarious, fun, goofy thing. It tickles. I don't think it matters so much if
169
nobody sees it - it is fun for its own sake. And as an added bonus: no cops.
Sure, it would be fun to have a large audience, but in a way it's less charming if it becomes
(I'll say this again) a Big Event. I always liked the idea of maybe 15-20 people saying to their
friends "I don't know what was up but there were like two hundred people yelling 'nature!' in
the park tonight...." However, with all the media attention MOBs have been getting the past
week, I'm surprised that not everybody has heard of it by now.
As we dispersed (quite rapidly, it appeared, though we streamed away from the site in much
the same way we streamed toward it), I ticked off "high school sports t-shirt" and "ironic
trucker cap," and a good-looking guy peering over my shoulder volunteered to be the
"grandpa (over-30 hipster)." Alas, not enough for Bingo.
In the rest of the Blogiverse...
cheesebikini? seems to be overwhelmed with hits right now, or something, but likely Sean
will have good comprehensive coverage in the coming hours. I'm guessing the explosion of
hits and the constant references to his site as the "unofficial official" source of all things MOB
over the last few weeks may have come as a bit of a surprise to his server.
Satan's Laundromat has some good photos (none of me, thank god - most photos seem to be
taken from the far left side of the MOB while I was over on the far right with the Bosses).
While you're over there, check out Mike's images of the neighborhood represented by his, and
my, City Councilman James E. Davis, who was tragically slain yesterday at City Hall. I'm sad
to say that I know more about Mr. Davis now that he's no longer alive than I did when he
represented me.
More MOBbing:
Transcribed instructions and photos at: Fred's Journal
Another good write up at: Strange Radiation (purty site design too)
A brief summary and photos: Glowlab
More photos: Moist and Tasty
170
So, what does one do after a MOB? I joined the Bosses at the uptown version of Fez for a
party thrown by their friend who I had never met and am unlikely to ever see again. There I
discovered my new favorite summer beverage: the Frozen Cosmopolitan. it's like a Cosmo
Icee, it even comes out of one of those steel machines. Oh. My. God it was good - especially
since we've had bone-crushing humidity (alternating with mood-squashing rain) all goddamn
week.
Oh, and.
This afternoon a car crashed into a sushi restaurant across the street and half a block down
from where I work. I don't know if anyone was injured, but I don't think so. My co-worker
just happened to have the news on the TV in our office (since her theatre group was featured
on the 5pm news), and when they announced the location of the accident, we all looked at
each other and said "is that our building?" This just goes to prove that CARS ARE OUT TO
KILL YOU and you should always order in for lunch.
171
ANEXO D – Organização para Global Flash mob#4
117
FLASHMOB.FM
Global Flashmob
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12 38
Wed Jun 22, 2005 6:46 am
Alien
GFM#2 Organization
GFM Organization Headquarters. The latest
information on Global Flashmob Scheduled
June 19, 2004. Another GFM Organization
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8 90
Wed Jul 28, 2004 4:43 pm
MattisManzel
English-speaking Flashmob Forum
Tell about your flashmob events in your
country. Discuss your problems and ideas.
20 145
Tue Jan 10, 2006 12:15 am
rkpa
FARS Open Forum - Открытый форум
ФАРС
Общий форум
Общение по общим вопросам развития
flashmob'а
Moderator Starla
70 289
Thu Jan 19, 2006 10:40 am
sexdating
AfterParties
Темы связанные со встречами мобберов
после акций
Moderator Starla
3 37
Wed Jul 06, 2005 6:15 am
rein
Всё об Акциях
Отчеты наиболее интересных акций в
вашем городе и всё с этим связанное
Moderator Starla
24 186
Wed Dec 21, 2005 4:30 pm
http://federation-chat.ru
Mark all forums read All times are GMT
117
Acesso: <http://flashmob.fm/forum/index.php> em 28 dez. 2005.
172
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