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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
MESTRADO EM LETRAS
CRISTINA HELENA CARNEIRO
BRUXAS E FEITICEIRAS EM NOVELAS DE CAVALARIA DO CICLO
ARTURIANO: O REVERSO DA FIGURA FEMININA?
MARINGÁ - PR
2006
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CRISTINA HELENA CARNEIRO
BRUXAS E FEITICEIRAS EM NOVELAS DE CAVALARIA DO CICLO
ARTURIANO: O REVERSO DA FIGURA FEMININA?
Dissertação de Mestrado apresentada à
Universidade Estadual de Maringá, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Letras, área de concentração:
Estudos Literários.
Orientador: Profª. Drª. Clarice Zamonaro
Cortez
MARINGÁ
2006
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Dedico este trabalho aos Mentores de Luz, velhos
amigos da Espiritualidade, que, com a permissão de
Deus, se dignaram a estar junto a mim, iluminando
meus pensamentos, ajudando a coordenar minhas
idéias, partilhando conhecimentos.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que permitiu a realização deste trabalho, que proveu meu espírito de perseverança,
paciência, tolerância e otimismo.
À minha família, Wellington, Mirian e Agatha, e ao meu pai (in memorian), que estiveram
comigo durante toda a trajetória; que suportaram os momentos de incerteza e de desalento;
que vibraram comigo nos instantes de finalização de cada capítulo; que emprestaram seus
corações aos meus objetivos.
À professora Clarice, querida orientadora, que dedicou parte de seu tempo a ensinar os
caminhos da pesquisa; que iluminou as rotas obscuras do conhecimento com a luz do seu
sorriso, com a brandura do seu olhar, com a vivacidade e veemência de suas palavras.
RESUMO
A Idade Média é um período de questionamentos quanto à definição do homem e o seu papel
entre seus semelhantes. Este trabalho tem em vista situar a figura da feiticeira no universo
místico das narrativas de cavalaria, evidenciando as diferentes descrições e abordagens das
personagens consideradas bruxas, no intuito de revelar comportamentos que as colocam em
posição diversa da mulher medieval. É avaliada a importância histórica que o período
medieval possui no panorama da evolução humana, através da focalização do papel das
mulheres na criação e patrocínio das artes, as novelas de cavalaria, retratando a realidade
social dos séculos medievais, bem como a figura mística da feiticeira e suas possíveis
interpretações. O corpus da pesquisa refere-se às obras: Amadis de Gaula e A Demanda do
Santo Graal. De cunho bibliográfico, a investigação fundamenta-se na leitura e resenha de
textos teóricos, críticos, analíticos e históricos que propiciem suporte à pesquisa. Na análise
literária, serão destacados os elementos estruturais da narrativa, com enfoque no estudo da
personagem, distinguindo-se a figura histórica da mulher medieval da figura histórica e
literária da feiticeira ou bruxa. Segundo estudiosos, a certeza de as mulheres eram seres
demoníacos foi conceito configurado na demonologia, que favoreceu a construção da imagem
das bruxas no inconsciente popular do medievo. Assim, o reverso da figura feminina está
representado na Demanda do Santo Graal, cuja temática religiosa apresenta-se mais premente
e a misoginia medieval mais aparente. Na obra Amadis de Gaula não se pode atribuir essa
mesma imagem às feiticeiras, uma vez que o sobrenatural ocorre de forma natural, denotando
um resgate pacífico dos valores folclórico-pagãos. A semelhança com a realidade contribui
para que a verossimilhança assuma o papel de credibilidade sobre as personagens. A maior
similaridade de uma personagem feiticeira com as concepções reais da feiticeira medieval
reveste a obra de um singular e fictício registro documental de costumes.
PALAVRAS-CHAVE: Novelas de Cavalaria – Universo Místico – Figura Feminina – Bruxas
e feiticeiras.
ABSTRACT
Middle Age is a period full of questions about man definition and his role among others. The
aim of this paper is centered on the figure of sorceresses in the mystic universe of cavalry
narratives. Both different descriptions and approaches of characters considered as witches are
presented in order to reveal behaviors that distinguish them from medieval women. It is
necessary to appraise the historic meaning of this period in human evolution context, focusing
women role in creation and improvement of arts, cavalry romances that portray social reality
from Middle Ages and also the mysterious figure of sorceresses and their possible
interpretations. The corpus of this paper is: Amadis de Gaula and A Demanda do Santo Graal.
As a bibliographic study, all investigation is based on theoretical, critical and historic texts.
The structural elements of narrative will be presented in literary analysis, focusing character
study. The historical medieval woman will be pointed out in contrast with historical and
literary figure of sorceresses. According to some scholars, witches were considered as evil
women and this idea is related to demonology which favored the construction of the witch
image in medieval mind. Thus, a feminine reverse is represented in A Demanda do Santo
Graal, whose religious thematic is intense and medieval misogyny more visible. In Amadis de
Gaula it is not possible to attribute the same image to the sorceress because all supernatural
elements occur in a natural way. This reflects a pacific retaking of pagan values. The
resemblance with real life helps verisimilitude to get credibility over the characters. A great
similarity of a witch character with real conceptions about medieval sorceresses or witches
gives the romances a unique and fictional documental sign of traditions.
KEY WORDS: Cavalry romances – mystic universe – feminine figure – witches and
sorceresses.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 07
1 A NARRATIVA ROMANESCA E O ESTUDO DA PERSONAGEM................... 12
1.1 ROMANCE E HISTÓRIA............................................................................................. 16
1.2 CLASSIFICAÇÃO TIPOLÓGICA DO ROMANCE.................................................... 22
1.2.1 Aspectos narrativos...................................................................................................... 23
1.2.1.1 Narrador.......................................................................................................................... 28
1.2.1.2 Narratário........................................................................................................................ 30
1.3 PERSONAGEM............................................................................................................. 31
1.3.1 Personagem: aspectos que estreitam a relação realidade-ficção.............................. 37
1.3.2 Personagem: aspectos que distanciam a relação realidade-ficção........................... 42
2 DA CULTURA CELTA À CULTURA MEDIEVAL – BREVE REVISÃO DA
HISTÓRIA.....................................................................................................................
46
2.1 OS CELTAS E OS POVOS BÁRBAROS...................................................................... 46
2.1.1 Os Celtas......................................................................................................................... 46
2.1.2 Os povos bárbaros......................................................................................................... 49
2.2 IDADE MÉDIA: DAS DIVISÕES CRONOLÓGICAS À ARTE E CULTURA.......... 52
2.2.1 Cultura e arte medieval................................................................................................. 57
2.2.1.1 Primeira Idade Média e Alta Idade Média................................................................. 57
2.2.1.1.1 Literatura e arte............................................................................................................... 58
2.2.1.2 Idade Média Central e Baixa Idade Média................................................................. 60
2.2.1.2.1 Literatura.......................................................................................................................... 61
3 A MULHER NA IDADE MÉDIA – FEITICEIRAS E BRUXAS COMO
FIGURAS DA MARGINALIDADE............................................................................
67
3.1 A FAMÍLIA E A MULHER............................................................................................ 68
3.2 MODELOS E REPRESENTAÇÕES FEMININAS....................................................... 73
3.3 FEITICEIRAS E BRUXAS: FIGURAS DA MARGINALIDADE FEMININA........... 80
3.3.1 A feitiçaria...................................................................................................................... 82
3.3.2 A bruxaria...................................................................................................................... 88
4 O REVERSO DA FIGURA FEMININA NAS OBRAS: AMADIS DE GAULA E
A DEMANDA DO SANTO GRAAL.............................................................................
95
4.1 NOVELAS DE CAVALARIA........................................................................................ 96
4.1.1 Amadis de Gaula............................................................................................................ 101
4.1.2 A Demanda do Santo Graal.......................................................................................... 104
4.2 CONHECENDO OS REVERSOS.................................................................................. 107
4.2.1 Conceito de reverso........................................................................................................ 108
4.2.2 Mulher e bruxa: reversos?............................................................................................ 110
4.3 AMADIS DE GAULA: UM OLHAR SOBRE URGANDA............................................ 113
4.3.1 Personagem e História: aspectos narrativos, formativos e comportamentais......... 115
4.3.2 Influências pagãs e cristãs presentes na construção da personagem........................ 131
4.4 A DEMANDA DO SANTO GRAAL: UMA LUZ NA OPACIDADE.............................. 137
4.4.1 Personagem e História: aspectos narrativos, formativos e comportamentais......... 139
4.4.2 Influências pagãs e cristãs presentes na construção das personagens...................... 159
4.5 CONFRONTANDO AS OBRAS: CONFIGURAÇÃO DAS CONVERGÊNCIAS E
DIVERGÊNCIAS............................................................................................................
161
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 165
REFERÊNCIAS............................................................................................................. 170
7
INTRODUÇÃO
As novelas de cavalaria, representantes do gênero narrativo da Era Medieval, são aventuras
guerreiras que exaltam a valentia, a fidelidade ao soberano e a defesa dos fracos. O cavaleiro,
personagem concebida segundo os padrões da Igreja Católica, revela castidade, fidelidade e
dedicação, apresentando-se sempre disposto a qualquer sacrifício para defender a honra cristã.
Desde o tempo das Cruzadas, está diretamente ligado à luta em defesa da Europa ocidental
contra os inimigos da cristandade. Por outro lado, essa concepção opõe-se à do cavaleiro da
corte, geralmente sedutor, galanteador, dividido entre os prazeres da luta e os prazeres da
carne, freqüentemente envolvido em relacionamentos ilícitos.
Nas obras selecionadas para este trabalho A Demanda do Santo Graal e Amadis de Gaula,
ambas as concepções do cavaleiro medieval são encontradas. Esses aspectos servirão de base
à investigação das personagens femininas tidas como bruxas, presentes nas novelas e na vida
dos cavaleiros. As concepções acerca do cavaleiro ideal poderão se tornar índices na
construção das personagens femininas, que provocam diferentes efeitos na recepção de
leitura. Segundo Cândido (1985), essa carga de efeitos (ou de sentidos) parte da relação
existente entre o ser vivo e o ser fictício, isto é, a manifestação da personagem que concretiza
a comunicação e/ou interação que ocorre, no ato da leitura, entre o leitor e as personagens de
uma determinada história. As ações e o enredo traduzem ao leitor a capacidade ou não de
aceitação da verdade transmitida pela personagem numa obra de ficção.
Considerando-se a personagem um ser fictício, o problema da verossimilhança no romance
acaba por depender da possibilidade da personagem de ficção criar a impressão da mais pura
realidade. Cândido expõe claramente as semelhanças entre o ser vivo real e o ser fantástico,
ficcional, criado pela mente de um escritor, não descartando a inserção de um mundo no
outro, como troca de essências que fortalece o real e o imaginário. Ressalta também o caráter
fragmentário da personagem, por meio da comparação com o ser humano, ao esclarecer que o
conhecimento do autor sobre a personagem criada é limitado e que esta característica é
comum ao homem.
Na vida real esta é uma condição inerente ao ser humano, porque não é dado ao homem
conhecer por completo a essência de outro, nem mesmo saber o que lhe acontecerá até o fim
8
de sua vida. Já na criação de uma personagem, esse aspecto é estabelecido racionalmente pelo
escritor, cabendo somente a ele decidir o destino de suas personagens, bem como as estruturas
emocionais de cada uma, suas complexidades ou simplicidades.
Para Rosenfeld (1985), a literatura é concebida através de seu caráter ficcional. Apesar de este
caráter ser um dos aspectos distintivos da literatura, não é capaz de restringir o campo
literário. A existência do caráter fictício da literatura mostra o mundo retratado num romance
como um universo de objectualidades imaginárias e intencionais, constituídas de palavras. É,
portanto, imanente à obra o cunho ficcional e as relações entre realidade e ficção com ênfase
nas limitações entre as duas esferas. A verossimilhança, segundo Rosenfeld, vem pautar-se
numa representação do real pelo imaginário e não em possibilidades de semelhança entre
estes dois universos. Partindo-se dessas idéias, esta pesquisa se propõe a investigar a
construção das personagens femininas, consideradas bruxas e feiticeiras, analisando-as em
posição favorável ou desfavorável à realidade histórica presente e antecedente às novelas de
cavalaria.
A síntese teórica exposta acima deverá unir-se às informações históricas, permitindo um
entrelaçamento de dados na análise das personagens sob o enfoque da verossimilhança das
influências recebidas por aqueles que prosificaram e compilaram as lendas pagãs cantadas de
geração a geração. A Idade Média possui muitos mistérios. Historicamente, as invasões
bárbaras persistiram durante séculos e a segurança resvalou-se em torres, castelos e paliçadas.
Guerreiros, soldados e cavaleiros lançaram-se em diversas batalhas por diversos motivos,
dentre eles a proteção de suas vidas e o sustento de sua família: “A cavalaria impera na
Europa dos camponeses, dos pastores e dos batedores dos bosques” (DUBY, 1988, p. 5).
A expressão do progresso técnico volta-se, principalmente, ao aperfeiçoamento dos materiais
bélicos. A metalurgia esforça-se em criar meios de invulnerar os combatentes, tecendo-lhes
malhas especiais, capacetes e elmos que pudessem revestir os cavaleiros para as duras
guerras. Entretanto, os materiais de batalha que este tempo mais se empenhou em modelar
foram as espadas. Cingidas de uma simbologia mágica, eram muito mais que um instrumento
de repressão: representavam uma superioridade social; concediam aos cavaleiros, muito mais
que os cavalos, a distinção entre os outros homens. A espada também trazia, em seu passado
nebuloso, muito anterior ao período de cristianização e evangelho, a crença de que eram
fabricadas por mãos divinas, por semideuses, especialmente aquelas destinadas a reis ou
9
príncipes. Esta temática é bastante recorrente nas novelas de cavalaria. As histórias
relacionadas à vida do Rei Artur trazem a imagem de Excalibur, espada mágica que concede
poderes especiais a um homem comum.
Esse período da história é visto por muitos como um período de incertezas, de dúvidas e
questionamentos quanto à definição do homem e o seu papel entre seus semelhantes,
incluindo-se a denominação de “Idade das Trevas”. Tal preconceito, segundo Franco Júnior
(1988), refere-se ao “desprezo indisfarçado pelos séculos localizados entre a Antigüidade
Clássica e o século XVI”. Entre as principais razões de se escolher a Idade Média e os seus
personagens está o grande legado artístico deixado às gerações futuras, destacando-se as
novelas de cavalaria que apresentam um horizonte mais próximo da vida social naqueles
séculos.
As confrontações de culturas diversas, no ambiente medieval de criação dessas novelas,
tornam-se objeto de investigação no sentido de constatar e averiguar as tendências e os
aspectos de origem pagã e de origem cristã. A temática dessas novelas (ou romances) de
cavalaria traz, em suas narrativas, sentimentos de imaterialidade e incerteza, próprios
daqueles tempos, configurando a convivência de culturas diferentes (impostas ou não),
resultantes do grande número de invasões e diferentes hábitos culturais, o que contribui à
indefinição de sentidos do homem medieval. Se o ambiente confuso e nebuloso do homem
medieval é refletido nas novelas de cavalaria, cabe analisar a forma de construção e
apresentação das personagens femininas, considerando até que ponto a convivência do
cristianismo com o paganismo interfere ou contribui na sua formação.
As novelas A Demanda do Santo Graal e Amadis de Gaula (corpus da pesquisa) pertencem à
Matéria da Bretanha composta dos poemas ingleses Beowulf, Sir Gawain e o Cavaleiro
Verde, do romance de Alexandre e Lancelot, de Chrétien de Troyes, entre outros, constituindo
o Ciclo Arturiano. Posteriormente, devido à semelhança temática, Amadis de Gaula também
foi incluída no ciclo por apresentar similaridades com as obras anteriormente citadas.
O objetivo deste trabalho é relacionar as imagens produzidas pelas das figuras femininas
consideradas bruxas ou feiticeiras, portanto, pagãs, com o perfil feminino idealizado e
construído com base nos valores cristãos. Partindo desta investigação, há que se discutir se a
10
figura da feiticeira é o reverso da figura feminina da Idade Média, o elemento transgressor dos
padrões sociais impostos pela Igreja.
As narrativas sempre envolvem combates, aventuras, animais fantásticos, criaturas
sobrenaturais, personagens com poderes excêntricos, honra e proteção às damas. Pode-se
perceber que, além da figura imponente do protagonista cavaleiro, há todo um conjunto de
figuras dramáticas especiais que amparam o desenvolvimento da narrativa. Personagens com
poderes exóticos, como feiticeiras e bruxas, aparecem com muita freqüência nas novelas do
Ciclo Arturiano. Geralmente, elas têm papel importante nas tramas, desencadeando fatos,
intrigas, vidências, avisos, proteção e até mesmo representando a sabedoria, a secularidade e
os rituais pagãos, a partir de atuações como sacerdotisas.
Justificam-se o questionamento sobre a inserção destes seres, meio humanos, meio
fantásticos, nas histórias de feitos cavaleirescos que envolvem conhecimentos de origem
duvidosa e as influências da religião cristã que, ainda nos primórdios da Idade Média,
principalmente na Grã-Bretanha, estava em processo de estabelecimento. Conhecimentos
ocultos, ditos pagãos, muitas vezes atribuídos ao povo Celta, aos sacerdotes Druidas e à
Deusa, a Grande Mãe são reminiscências de um passado que o Cristianismo procurou,
veementemente, apagar da memória do homem medieval. É, no entanto, inevitável avaliar o
caminho percorrido pela Igreja Católica para impor seus dogmas acima das crenças, já tão
arraigadas e enraizadas.
As novelas de cavalaria atravessaram séculos de vida levando seus ideais a vários países da
Europa, como França, Portugal, Grã-Bretanha, Alemanha, Espanha e outros, mostrando essa
gama de personagens tão diversos que perduraram por muito tempo, convivendo lado a lado
com os preceitos da Igreja. É fato que esses personagens (os cavaleiros, as bruxas, os magos,
os dragões, entre outros) eram muito mais atraentes ao povo do que histórias de cunho
didático ou religioso. Tais elementos não-cristãos, provenientes de culturas pagãs, aparecem
de maneira diversificada em cada obra, podendo ser simples acessórios, à margem da
estrutura narrativa ou constituir o fio condutor do texto; ainda assim, podem-se apresentar de
forma mais oculta, atribuindo um ar de mistério e suspense aos personagens e ao desenrolar
dos acontecimentos.
11
O presente trabalho está organizado em quatro capítulos assim distribuídos: o primeiro,
intitulado A narrativa romanesca e o estudo da personagem, apresenta uma trajetória teórica
sobre o romance e a personagem na literatura, através de um panorama da historicidade
literária do gênero romance como expressão da narratividade, os elementos da narrativa,
ressaltando a personagem.
O segundo, Da cultura celta à cultura medieval – breve revisão da História, busca
contextualizar as novelas de cavalaria, traçando um breve perfil histórico de sua criação e a
tradição oral. Apresenta noções dos povos antigos que originaram as lendas pagãs que
resultaram as novelas do ciclo arturiano, justificando a profunda indefinição interior do
homem medieval.
O terceiro capítulo A mulher na Idade Média – feiticeiras e bruxas como figuras da
marginalidade é dedicado à mulher na Idade Média. Traçando a silhueta da figura feminina,
nos moldes históricos, este capítulo procura apresentar a mulher medieval em seus aspectos
sociais, econômicos e religiosos. Ressalta, igualmente, a visão masculinizada do universo
feminino, a inferiorização sofrida pelas mulheres e, conseqüentemente, a marginalidade social
das bruxas e feiticeiras.
O quarto capítulo intitulado O reverso da figura feminina nas novelas Amadis de Gaula e A
Demanda do Santo Graal relaciona as imagens produzidas pelas bruxas e feiticeiras com o
perfil idealizado e construído sob as perspectivas eclesiásticas. Discute-se a questão do
“reverso” e do elemento transgressor dos padrões sociais impostos pela Igreja, partindo-se da
caracterização das personagens e dos aspectos narrativos, comportamentais e formativos, bem
como das influências pagãs e cristãs presentes na sua construção. Um confronto dos
resultados obtidos pelas análises das duas obras confirma a hipótese de que apresentam
características diferenciadas da mulher e da figura fantástica da bruxa e da feiticeira.
12
1 A NARRATIVA ROMANESCA E O ESTUDO DA PERSONAGEM
“O que se passa” na narrativa não é, do
ponto de vista referencial (real), à letra:
nada: “o que sobrevém”, é apenas a
linguagem, a aventura da linguagem, cuja
vinda não cessa de ser festejada”.
Roland Barthes.
« Introduction à l´analyse struturale des
récits ». In: Communications, 8 (1966).
A narrativa, seja como gênero literário ou como um contar histórias, é repleta de vínculos
com o meio social e está intrinsecamente conjugada ao contexto de produção histórico, social
e ideológico. Poder-se-ia dizer que os contextos de épocas estão diretamente associados aos
gêneros literários, cabendo afirmar que a vida normal de um ser humano é composta de
inúmeros eventos que ocorrem cronologicamente e a sensação trazida pela narrativa é de
autêntica identidade. O conjunto de acontecimentos de um conto, de um romance ou de uma
novela pode representar um quadro, outrora, real. Culler (1999) afirma que as histórias
constituem o meio mais efetivo de compreensão das coisas da vida, seja da própria ou da de
outrem.
O romance, o conto e a novela galgaram um espaço de extrema importância na produção
literária. Para Aguiar e Silva (1973, p. 247) o gênero narrativo é “(...) a mais importante e
mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos”. O que surgiu dos
primórdios da “oratura”
1
acabou deixando de ser apenas um meio de distração em família ou
amigos para se tornar veículo de temas ligados à humanidade, interior e exteriormente; de
maneira ampla ou mais estreita, levando abordagens e características humanas à avaliação e
juízo de valor via representações de personagens.
O contar histórias das narrativas é, segundo D’Onófrio (1997) uma forma da qual o artista se
dispõe para compreender o mundo. “Fictício não significa falso, mas apenas historicamente
inexistente” (D’ONÓFRIO, 1997, p. 9). Os eventos relatados em histórias e a sucessão dos
fatos fazem parte da fantasia do autor que, a partir da observação do mundo ao seu redor, cria
um ambiente imaginário onde pode, inclusive, inventar e reinventar a sua própria existência.
Desta forma, segundo o autor, o texto literário, então fictício, é a fonte mais fascinante de
1
Termo adaptado das palavras “literatura” e “oralidade” para designar a literatura ancestral, herdada de geração
a geração, através da transmissão oral.
13
conhecimento da realidade. É por isso que, ao contrário dos poemas do Trovadorismo, as
novelas de cavalaria proporcionam uma contemplação mais próxima do que foi o cotidiano do
homem medieval. Entre os vários estudiosos que detiveram sua atenção sobre o romance, é
interessante discutir e comentar os pensamentos de Roland Bourneuf e Real Ouellet
veiculados em O universo do romance
2
, onde tratam, detalhadamente, de todos os aspectos e
elementos compositivos da narrativa romanesca.
Segundo os autores, a mágica da narrativa em forma de romance vem da própria palavra em
si; é repleta de conotações leves e agradáveis, passível de pronta identificação. É, muitas
vezes, entendida como uma forma de lazer, uma maneira de descanso para a mente através de
atividade intelectual capaz de redirecionar o pensamento, livrando-o dos aborrecimentos
diários provenientes da rotina de trabalho. Tal concepção, relacionada à leitura de romances, é
mais freqüente entre os leitores comuns. Porém, entre os mais atentos, é provável que o
romance traga uma possibilidade de atingir melhor a própria realidade, conhecendo-a mais
profundamente e, através da posição de observador de uma realidade fictícia análoga à real,
pode mesmo operar transformações na sua leitura de mundo.
A palavra romance, no decorrer dos séculos, sofreu alterações em seu sentido primeiro. No
século XII, a palavra significava, ao mesmo tempo, um escrito em verso e a língua na qual o
verso era escrito. Posteriormente deu origem ao verbo romancear, que inicialmente
significava traduzir do latim para o francês e, mais tarde, nos primórdios do século XV,
passou a significar contar em francês. Com o tempo, a palavra estendeu-se para definir
qualquer obra escrita em língua vulgar, de caráter ficcional sem bases históricas, qualquer
matéria que se opusesse à literatura oral e, já nos fins da Idade Média, romance abarcava,
inclusive, as canções de gesta.
Somente depois de três séculos as narrativas em verso cederam espaço à prosa e o público do
século XVI ainda se deleitava com as histórias de valentes cavaleiros e damas de rara beleza
vivendo aventuras fantásticas, se desdobrando em proezas heróicas para alcançar a honra, o
merecimento do rei ou salvar alguém em extremo perigo.
2
BOURNEUF, Roland & OUELLET, Réal. O universo do romance. Coimbra: Almedina, 1976.
14
No século seguinte, essas novelas de cavalaria perderam muito do seu encanto, após centenas
de anos ininterruptos de magia, e o romance pastoril apareceu para mostrar a beleza do
ambiente bucólico. No século XVIII, já às voltas com o Iluminismo, ele é caracterizado por
um espírito de luta. Autores imortais como Voltaire, Rousseau e Montesquieu criaram um
universo de uma época em que a força da realidade vivida pelos autores é testemunhada por
personagens que representavam uma filosofia de vida.
O romance moderno muda de sentido. Os autores do século XX encarnam uma literatura
engajada; além disso, fazem do empreendimento literário o único modo de alcançarem a
verdadeira vida. Exemplificam as obras de Virginia Woolf e James Joyce que exploram
profundamente os meandros do psiquismo humano. Outros dão testemunhos de lutas
individuais e sociais, buscando vencer os sofrimentos de ordem pessoal, econômica, política e
também as dúvidas humanas mais comuns, como a morte e a religiosidade do homem.
Paralela a estas tendências, há uma corrente de autores que expõem os seus processos de
composição, os seus artifícios, contribuindo para que a crítica literária acompanhe a criação
romanesca. São os chamados grupos Tel Quel ou Change. Para estes autores o processo de
criação é tão importante quanto o produto acabado. Segundo suas convicções, escrever um
romance é uma experiência lingüística, um meio de conhecimento da linguagem e, até mesmo
um pretexto para a teorização.
O que ainda se faz presente na mente dos estudiosos, entretanto, é a dúvida freqüente quanto
ao gênero narrativo romance. Apesar de tantas diversificações, na linha do tempo, na
narrativa romanesca, será possível conceber ou pelo menos se falar em romance como um
gênero literário identificável? É difícil definir o romance como gênero literário autônomo.
Segundo os autores, apesar de o romance atender a diversos chamados do ser humano em sua
realidade, de investigar o real e criar o fictício, de reproduzir formas fixas e de inventar o
possível, permanece à mercê da imagem da palavra e estabelece o seu estado de expansão
contínua.
Vale ressaltar o seu aspecto físico e material no que concerne à relação econômica dos leitores
e à difusão livresca no decorrer dos séculos. Durante muitos anos, apenas os abastados
podiam se dar ao luxo de comprar livros; o público leitor era reduzido. Os possuidores de
fartos salários sustentavam o hábito de adquirir livros, mas a grande maioria da população,
que sobrevivia com salários ínfimos não tinha acesso aos livros. Não era esse, porém, o único
15
obstáculo existente para a popularização do livro: contava-se também com a ausência de
lazeres nas classes sociais mais numerosas, com a deficiência de luz durante a noite e com a
falta de bibliotecas que disponibilizassem o empréstimo de livros. Os leitores em potencial no
século XVIII eram os nobres, os burgueses e, principalmente, as mulheres. Aos homens eram
reservadas outras atividades de entretenimento como a caça, a vida noturna, o álcool e a
boemia. Estes são fatores que determinaram o sucesso ou o fracasso, em cada época, do
desenvolvimento de um gênero literário.
A composição das histórias, das personagens e suas experiências estão em consonância com a
vida real de uma comunidade. O autor, como parte da sociedade não pode ignorar o público
que o lê. Segundo Sartre
3
, ele é cúmplice do seu público. O romancista busca nos modelos
reais de vivência a inspiração, as idéias, as características que moldarão a sua obra. O leitor,
na mesma proporção, em posição inversa, busca o devaneio, a fuga, às vezes o abrigo de sua
situação real na ficção inventada pelo autor, sorvendo assim, uma recriação da própria
imagem da vida real. Tornam-se, então, cúmplices nesse processo “autor-criação-obra-leitor”.
O século XIX foi testemunha de uma expansão no campo da educação e da instrução, o que
proporcionou um aumento considerável do público leitor. O custo dos livros foi reduzido
graças às máquinas rotativas de impressão e os jornais passaram a veicular o romance-
folhetim, proporcionado pelo aumento das vendagens de jornais. Esta forma de literatura
compôs, por muito tempo, o único contato literário entre as pessoas de renda mais baixa, dado
o seu modo de divulgação.
O século XX veio trazer ao romance um fenômeno cultural nem sempre positivo: a
massificação. As vendas cresceram e a diversidade da criação impressa destinada ao romance
proliferou de tal maneira (com os livros de bolso, impressos em paperback, por exemplo) que
exerceu uma nova força comercial aos livros, popularizando a leitura. Essa massificação
generalizou o estilo romance, fazendo com que circulasse por todos os lugares comuns, como
quiosques, bancas de jornal, estações de trem, aeroportos, postos de venda, etc. Criou-se um
espaço amplo à aparição temática extremamente variada, muitas vezes, não obedecendo a
rigores literários, mas difundindo-se com rapidez. Encontram-se os romances policiais,
romances de espionagem e contos eróticos, entre outros.
3
SARTRE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la literature? Paris: Gallimard, 1964.
16
1.1 ROMANCE E HISTÓRIA
Segundo Aguiar e Silva (1973), o romance foi, muitas vezes, considerado como um herdeiro
direto das canções de gesta
4
. Entretanto, muito há que se destacar em suas desconformidades.
Suas diferenças alcançam tanto elementos formais como os de conteúdo. A canção de gesta
era uma composição direcionada, como já supõe o nome, ao canto, enquanto que o romance
deveria ser lido ou recitado.
Ainda esclarecendo os supostos desencontros entre estes dois gêneros literários, o autor
esclarece que o herói das canções de gesta personifica uma ação coletiva através de suas
aventuras e façanhas que permanecem como quadro da tradição de um determinado lugar,
representando o conjunto de atitudes e comportamentos de uma comunidade. Já o herói do
romance assume uma posição mais individualizada em relação ao grupo em que é inserido. As
aventuras vividas por este herói são as de uma personagem, criada pela ficção, e apresentam
um cunho descritivo-narrativo. Segundo Zumthor (1972, apud AGUIAR E SILVA, 1973) a
narrativa, por estar livre das contrições do canto, encontra as suas dimensões próprias e cresce
por si mesma, alargando seus horizontes e perdendo grande parte da sua função poética,
abarcando para si dois planos da existência do texto: a ficção e a escrita.
Sem um passado completamente definido, é interessante constatar que se encontram mais
diferenças do que similaridades entre as canções de gesta e o romance. É difícil estabelecer a
gênese deste que se tornou a mais popular forma literária. O romance venceu muitos
obstáculos durante sua trajetória na história literária do mundo, tornando mais relevante o
estudo da sua estrutura, abrangência e dos efeitos que é capaz de exercer sobre os leitores por
meio de suas personagens.
Bourneuf & Ouellet (1976) comentam que o romance narra uma história, um
desencadeamento de fatos ocorridos num tempo e lugar levados a cabo por suas personagens.
Já para Aguiar e Silva (1973), o romance medieval “encontra-se profundamente ligado à
historiografia (...)” (p.249). Sabe-se, então, que nos séculos XII e XIII os termos roman e
estoire, na França, eram equivalentes, confirmando a ligação intrínseca existente entre a
4
Do francês chansons de geste, poemas épicos medievais franceses escritos desde a segunda metade do século
XI até o século XIII, cuja ação transcorria especialmente no tempo de Carlos Magno (Geste du Roi). Destaca-se
a Chanson de Roland , uma das mais conhecidas.
17
realidade (como fonte inspiradora) e a ficção (como representação dessa realidade) veiculada
pelo romance.
Percebe-se daí a forte identificação sentida pelo leitor em relação a uma personagem ou a uma
situação vivida por uma ou mais personagens. A história, seja relatada cronologicamente ou
não, representa uma referência à ficção. Tal assertiva combate os estudiosos que defendem a
nítida separação da criação literária do ambiente real vivido pelo autor. Por mais que um autor
crie, invente personagens, situações, ações e atitudes completamente originadas por sua
mente, não há como fugir dos modelos sociais pré-existentes. Apesar da relação intrínseca
entre estas duas esferas, é importante salientar que se trata apenas de uma relação. A história,
seja de uma comunidade ou de uma pessoa apenas, não constitui matéria real num romance.
Não são a mesma coisa a vida real e o que se reflete na ficção romanesca, entretanto, esta
recebe reflexos daquela que a fazem semelhante e passível de identificação.
Bourneuf & Ouellet (1976) explicam que a história narrada é fictícia e destacam a habilidade
do autor em utilizar o verdadeiro e transformá-lo em ficção: “Dificilmente se pode conceber
um romance puro, onde tudo seria fabricado, desligado da realidade (...)” (p.31). Do mesmo
modo, questionam a possibilidade de existir uma narrativa bruta, em que tudo fosse conforme
a realidade. Ainda assim estaria em conformidade com a realidade, não seria outra forma de
realidade: “(...) o romance atua sem cessar na fronteira ambígua do real e da ficção. Se o
romancista dá a sua história por verdadeira, engana pouco ou muito o seu leitor, mas porque
este o admite e nisso sente prazer...” (p.32).
Ressaltando ainda o papel da história na narrativa romanesca, deve-se, então, constar que nas
literaturas européias medievais, extensas composições romanescas apareceram com bastante
freqüência e contribuíram para a construção da imagem de uma época por descrições e
narrações da vida cotidiana comum, como também da vida da Corte. Aguiar e Silva (1973)
esclarece que se pode encontrar duas correntes dessa literatura: o romance de cavalaria e o
romance sentimental. O romance de cavalaria, segundo modelo constituído pelas obras de
Chrétien de Troyes, revela uma vivência nobre e ao mesmo tempo guerreira, apresentando
uma estrutura pautada em duas vertentes: o amor e a aventura.
Vale lembrar que Zumthor (1972, apud AGUIAR E SILVA, 1973) define o significado
específico do termo “aventura” no romance de Chrétien de Troyes e de outros romancistas
18
medievais, designando a aventura como uma prova (ou uma série de provas) em que o herói
passa de um estado menor a uma posição superior, restabelecendo a ordem comum. Já o
romance sentimental apresentava um caráter muito mais erótico ou acentuadamente mais
sentimentalista. O romance de cavalaria se valia das peripécias amorosas para alavancar e
conceder importância às aventuras, que propiciavam às personagens finais felizes pelo
sucesso das façanhas, tarefas ou missões empreendidas pelo herói cavaleiresco. Também vale
ressaltar que os desfechos dos romances sentimentais, com freqüência, não acompanhavam os
romances de cavalaria, pois apresentavam fins trágicos, acentuando seu caráter dramático.
Aguiar e Silva (1973) explicita que, do ponto de vista técnico, o romance de cavalaria
apresentou uma capacidade muito maior de expansão de suas seqüências narrativas, haja vista
as várias e conhecidas continuações ou novas aventuras envolvendo os mesmos personagens
já narrados em aventuras anteriores. A literatura medieval não é restrita apenas a estas
narrativas. Encontram-se outras formas literárias, tais como as moralidades, as exempla, as
farsas, os fabliaux, a novela e o conto. Entre estas formas menores, destacam-se a novela e o
conto.
Segundo Bourneuf & Ouellet (1976), a novela e o conto possuem uma estreita ligação com o
romance, porém nem sempre fácil de compreender, dadas as diferentes concepções que estas
formas literárias receberam em diversas épocas. A novela sofreu alterações várias desde o seu
aparecimento, no século XV, na França. Formou-se de acordo com as modas e os costumes,
procurando ligar-se à crônica cotidiana ou à reconstituição histórica, muitas vezes satírica e
outras tantas filosófica, registrando tradições e hábitos, como também se abrindo ao
fantástico. Estruturalmente, a novela era uma narrativa curta, descomplicada, não dada a
longas descrições “se esforçava por contar um fato ou um incidente impressionante, de tal
modo que se tivesse a sensação de um acontecimento real; esse incidente deveria parecer mais
importante do que as personagens que o vivem” (JOLLES, 1972, p.251, apud Aguiar e Silva,
1973).
Grande destaque ganhou a novela no século XIV na literatura pré-renascentista italiana, cujo
modelo fixou-se com Boccacio, com o seu Decameron, novela escrita com pouca matéria e
mais objetiva em sua narrativa. Não se distancia do romance apenas devido à extensão de sua
história: “a sua própria natureza é diferente, isto é, o objetivo do autor, a construção, o ritmo,
o tom que ele adota” (BOURNEUF & OUELLET, 1976, p.33). Foi a partir da literatura
19
italiana que a novela irradiou-se pela Europa. Da mesma forma como Jolles explica a
sensação de realidade transmitida pela novela, também Bourneuf & Ouellet (1976) expõem o
fato de a novela apresentar histórias curtas, a complexidade da vida que o autor busca
transparecer torna-se mais densa e edificada.
Em relação ao conto, há controvérsias quanto a sua caracterização, bem como as suas
semelhanças e diferenças com a novela. Existem autores que não diferenciam essas formas
literárias, atribuindo as possíveis variedades a uma terminologia apenas. Entretanto, há outros
estudiosos que procuram delimitar certas características à novela inexistentes no conto ou
vice-versa. Paul Zumthor (1972, apud AGUIAR E SILVA, 1973) esclarece que a novela,
narrativa curta, como designação literária, provém do italiano novella, que significa
“novidade, notícia”. No século XIII a palavra “nova” aparece com o significado de “narrativa
feita de alguma matéria tradicional, arranjada de novo”.
Entende-se que a novela dedica-se à contemplação, não oferecendo matéria à interrogação, à
intriga, ao exercício intelectual da leitura. Mesmo estando próxima à realidade cotidiana, por
suas características ingênuas e vulgares, torna-se uma literatura mais apropriada ao leitor
menos exigente, que apenas procura por distração. Por esse motivo, a temática maravilhosa e
fantástica adapta-se bem à contemplação e satisfaz este leitor.
Retomando a narrativa romanesca, suas implicações e seus principais elementos constitutivos
e históricos, Aguiar e Silva (1973) aponta uma estreita ligação entre o romance surgido no
período barroco, no século XVII, e o romance medieval, caracterizando-se pela exuberante
imaginação e pela quantidade vasta de situações aventurosas, fantásticas e inverossímeis, tais
como “naufrágios, duelos, raptos, confusões e personagens, aparições de monstros e gigantes,
etc.” (p.252). Mas, ao mesmo tempo, o romance barroco vem preencher o gosto e responder
às exigências requintadas do público leitor daquele século, que consumia vorazmente esta
literatura romanesca, repleta de narrativas longas e complicadas, principalmente, aventuras
sentimentais.
Ainda no quadro das literaturas européias do século XVII, ocupa lugar de destaque Dom
Quixote, de Cervantes, posicionando a Espanha no cume do domínio da criação romanesca. A
obra constitui uma espécie de anti-romance pautada na crítica aos valores cavaleirescos,
representando uma sátira aos romances de cavalaria. À literatura espanhola também pertence
20
a obra Vida de Lazarillo de Tormes, de autor desconhecido. Vale afirmar que o romance
picaresco exerceu forte influência na literatura européia, trazendo para o gênero a descrição
realista da sociedade e dos costumes de época. Entretanto, parece transcender a este retrato da
realidade e abarcar um significado mais profundo, em especial, à construção da personagem.
O pícaro, protagonista deste gênero, é tido como um anti-herói, tanto por sua origem, como
por seu comportamento e natureza. De acordo com Aguiar e Silva (1973) o pícaro, através da
sua rebeldia, se afirma como um indivíduo ciente da sua condição social e, por causa disto,
tem a ousadia de considerar a sua miséria, matéria legítima e digna de uma obra literária.
O romance barroco, por sua vez, apresenta-se como um instrumento de fuga, a partir do
enfraquecimento do “vício romanesco”. O romance moderno toma forma e aspira a ser mais
do que somente uma história, questionando os problemas sociais e suscitando soluções ou
respostas. Segundo Aguiar e Silva (1973), o romance moderno não se constituiu apenas da
dissolução da narrativa barroca, mas também do não apego à estética clássica. Para o autor, o
romance é um gênero desprovido de antepassados greco-latinos e, portanto, livre de modelos
a imitar e de regras a seguir. As poéticas européias pertencentes aos períodos quinhentista e
seiscentista foram centradas em Aristóteles e Horácio e, por conseguinte, não concederam a
devida atenção e importância ao romance, resultando daí a sua intensa liberdade e fluidez. O
seu sucesso, percebido por sua difusão através dos séculos, nem sempre foi bem visto. O
romance sofreu muitas críticas e chegou a ser considerado uma literatura menor, não
recomendada às pessoas de bem.
Até o século XVIII, sem prestígio, sob todos os pontos de vista, mesmo apresentando um
fascínio exercido pela narrativa, o romance foi relegado à posição de literatura frívola, fútil e
sem utilidade prática, própria de leitores comuns, pouco exigentes e sem cultura literária
prévia. Considerando o público feminino que os romances medieval, renascentista e barroco
dirigiram-se é provável a associação entre a digressão de comportamentos e as leituras desses
romances. O romance como um instrumento perigoso de perturbação emocional e corrupção
dos bons costumes explica as “(...) razões por que os moralistas e os próprios poderes
públicos o condenaram asperamente” (AGUIAR E SILVA, 1973, p.255).
Bourneuf & Ouellet (1976) também apontam para o desprestígio do romance, vítima de
preconceitos desde o século XVII, recebendo denúncias de ordem moral e condenações de
caráter estético. Os moralistas investiram contra ele por muitas vezes, bradando ao público a
21
sua influência corruptora, numa tentativa de purgar a leitura pelas famílias da sociedade
burguesa: “Um fazedor de romances e um poeta de teatro é um envenenador público, não dos
corpos, mas das almas dos fiéis, que deve ser olhado como culpado de uma infinidade de
homicídios espirituais” (BOURNEUF & OUELLET, 1976, p.14)
5
. Os autores ainda
comentam que tais ataques sofridos não foram gratuitos, considerando-se o grande poder que
o romance possui para explicar a realidade, de ensinar e de divertir. Desta forma, ele não
apenas reflete o gosto de público, mas também os cria, os designa, tal como o cinema,
atualmente, responsável pelos mais variados modismos.
Tal atitude de repulsa e desconfiança dos moralistas em relação ao romance prolongou-se
pelos tempos modernos, nas mais variadas formas, segundo Aguiar e Silva. Levou um tempo
razoável para que fosse, aos poucos, perdendo força. A partir do enfraquecimento da estética
clássica, no século XVIII, formou-se um novo público, com novos gostos artísticos e uma
nova mentalidade, reconsiderando o romance. O espírito desse novo público procurou
instaurar uma nova ordem cultural, social e principalmente econômica, a fim de se afastar dos
valores até então vigentes, provenientes das estéticas clássicas e tradicionais. Nascia e se
reproduzia uma sociedade burguesa, valorizando os aspectos positivos e a apreciação do
romance.
A nova ordem, cansada do caráter fabuloso do romance, em voga até meados do século
XVIII, demanda uma carga maior de realismo, de verossimilhança. A novela, que já oferecia
muito desses aspectos, passa a ganhar a atenção do público novamente e até a prolongar a sua
extensão, tornando-se, segundo Aguiar e Silva (1973)
(...) uma espécie de gênero narrativo intermediário entre o ciclópico romance
barroco e as curtas novelas do Renascimento: um gênero intermediário que,
do ponto de vista técnico, pode ser justamente considerado como ponte que
conduz ao romance moderno (p.257,258).
O século XVIII trouxe ao romance um caráter bastante analítico. O autor ressalta uma
exacerbada melancolia, aspecto pré-romântico que tomou espaço considerável neste século.
Quando os primeiros matizes do romantismo se espalham pela Europa, o romance parece já
ter conquistado a sua liberdade como gênero e até já se falava em certa tradição romanesca.
Durante o período de transição do século XVIII para o XIX houve um aumento da
5
Nicole, 1666, em “Lettre sur l’hérésie imaginaire” apud Bourneuf & Ouellet, 1976.
22
necessidade de leitura por parte do público leitor. Apresenta-se, portanto, profícuo para a
escrita e editoração de obras; muitas foram escritas e publicadas. O aspecto negativo
apontava para uma maioria de leitores não exigentes e isto, conseqüentemente, fez cair a
qualidade das obras publicadas neste período.
Entre as temáticas mais apreciadas estão o romance negro ou de terror, em que povoam
personagens exageradamente boas ou más, e o romance em folhetins que apresentavam
histórias melodramáticas, repletas de romantismo emocionante, elemento que garantia o vivo
interesse dos seus leitores, não significando, porém, que todo material divulgado por este
veículo fosse de baixa qualidade. As temáticas demasiadamente comoventes eram adequadas
ao apetite romanesco das grandes massas leitoras da época.
O Romantismo veio, por conseguinte, afirmar a narrativa romanesca como forma literária
relevante, não mais como uma literatura marginal. Esta narrativa fez-se hábil na descrição de
personagens, seja em aspectos físicos como em psicológicos; foi capaz de conduzir análises
do homem e do mundo ao seu redor, criando uma variada tipologia: romance psicológico,
histórico, poético ou simbólico, de análise crítica, entre outros.
1.2 CLASSIFICAÇÃO TIPOLÓGICA DO ROMANCE
Não faltam tentativas, no mundo acadêmico, para estabelecer uma tipologia romanesca que
satisfaça a todos os aspectos e elementos essenciais ao gênero. Entretanto ainda não existe
uma que abarque todas as possibilidades levantadas pelos estudiosos, para alcançar certa
uniformidade. Aguiar e Silva (1973) apresenta a tipologia de Wolfgang Kayser
6
, considerando
as diversas abordagens que podem receber a ação, o espaço e a personagem como categorias
narrativas fundamentais. Há o romance de ação ou de acontecimento, de personagem e de
espaço. O romance de ação ou de acontecimento é aquele que se estrutura de forma linear, ou
seja, possui um início bem marcado, um meio e um fim. Não se detém em longas descrições
de personagens ou de lugares, centrando-se na sucessão e no encadeamento dos fatos,
circunstâncias e episódios. São exemplos deste tipo de romance as obras de Walter Scott e
Alexandre Dumas.
6
Wolfganf Kayser, Análise e interpretação da obra literária.
23
O romance de personagem caracteriza-se pela existência de uma única personagem principal,
a qual o autor constrói e ao redor da qual toda a trama se desenvolve. É um romance de tom
confessional, que privilegia a função emotiva da linguagem e que tende a um subjetivismo
lírico acentuado. Os títulos dos romances que se enquadram nesta categoria são bastante
significativos, pois revelam a centralidade da personagem destacando-se no nome da obra,
como Werther, de Göethe.
O romance de espaço, por sua vez, é caracterizado pela atenção dada ao retrato do meio
histórico e dos ambientes sociais nos quais decorrem os fatos. Exemplificam os de Balzac,
Zola e Eça de Queirós, cuja preocupação maior é descrever minuciosamente a sociedade de
seu tempo. O meio social ou histórico não constituem o único espaço abrangente deste tipo de
romance; outros espaços geográficos, regionais ou telúricos também estiveram narrados em
romances.
Aguiar e Silva (1973) alerta que esta classificação é aceitável, porém não deve ser vista como
única possibilidade de enquadramento de todas as obras romanescas escritas até os dias de
hoje. Não se constitui uma classificação rígida que possa abranger todos os detalhes
característicos de um romance, bem como é impossível encontrar uma obra pura e concreta
que se enquadre perfeitamente em uma das modalidades sugeridas por Kayser. Ao contrário,
encontram-se, com freqüência, devido à complexidade de suas narrativas, obras que
dificilmente se encaixam nesta ou naquela modalidade como O Vermelho e o Negro, de
Stendhal com apenas uma personagem central.
1.2.1 Aspectos narrativos
O romance, segundo Aguiar e Silva (1973), por ser uma narrativa busca representar um
mundo real, material e espiritual. Suas histórias são situadas em determinados lugares e
tempos e, de maneira diversa à poesia, refletem ideais e acontecimentos referentes a um ou
mais personagens, ou ainda ao narrador. A partir da determinação do tempo, do espaço e dos
personagens ocorrem fatos em ordem sucessiva ou não e podem ser apresentados de várias
formas, obedecendo a diferentes técnicas de narrar. Os formalistas russos, por exemplo,
distinguiram nos fatos apresentados pelo romance dois aspectos que, embora complementares,
devem ser entendidos como conceitos distintos: a fábula e a trama (ou intriga).
24
Para Bourneuf & Ouellet (1976), a fábula do romance corresponde à fabula que era elemento
constitutivo da tragédia e da epopéia. Segundo Aristóteles, na Poética, era a parte mais
importante da história. Com o desenvolver das narrativas, o romance foi e continua a ser
compreendido como uma história, correspondendo ao que Aristóteles denominava de fábula.
Os estudiosos franceses indicam que toda história, na tentativa de ser legível ou inteligível,
deve ser organizada dentro de uma lógica simples, isto é, as ações, os acontecimentos devem
estar dispostos de maneira elementar e associados uns aos outros. A forma mais comum de
organização é a cronológica – uma sucessão de fatos que podem parecer autônomos, mas que
estão intimamente conectados de lado a lado de relações lógicas, muitas vezes relações de
causalidade.
Para Aguiar e Silva (1973), a fábula refere-se aos acontecimentos considerados em si
mesmos; é a matéria pura da qual a narrativa se vale para criar a narração, seja em forma de
romance ou outra forma literária. Constitui a história tal qual aconteceu na realidade (quando
isso é possível) ou tal qual ocorreu na imaginação de algum autor ou de várias pessoas numa
coletividade, estando livre do apuro estético que a narração pode lhe conceder através da
trama ou intriga. A trama vem a ser a forma escolhida pelo narrador para dispor os fatos e as
circunstâncias captados da fábula, na tentativa de organizá-los estruturalmente numa ordem
narrativa. Esclarece o autor que a fábula se constitui num elemento pré-literário e a trama num
elemento especificamente literário.
No estudo das categorias da narrativa, o tempo constitui-se um importante elemento.
Entretanto, é comum se encontrar pontos de convergência de opiniões e conceitos. Entre
estes, há que se destacar o caráter sucessivo inerente à história ou diegese que molda os textos
narrativos, concedendo-lhes uma dinâmica de sucessividade e cronologia. Reis (1995) afirma
que este caráter está intimamente ligado com o desenrolar do tempo em que os fatos narrados
são relacionados a outros elementos, como o espaço, as personagens, etc. A narrativa,
segundo o autor, busca descrever o espaço em que ocorrerá a ação, detalhar a caracterização
das personagens, passo a passo, estabelecendo relações de contigüidade entre esses elementos,
numa linha sucessiva de acontecimentos e/ou aparições. O autor ainda comenta que esta
forma de apresentação aproxima a narrativa da realidade e que nem sempre os romances
seguem essa ordem realista. Quando isso ocorre, a narrativa permanece priorizando o fator
decisivo de afirmação da sucessividade, ou seja, o tempo narrativo.
25
Bourneuf & Ouellet (1976) também discutem o caráter de sucessividade no desenvolver de
uma narrativa, ao afirmarem que o romance se organiza “à maneira de uma sucessão de
quadros sobre um fundo físico que dá à narrativa a sua configuração própria” (p. 169). Os
personagens descritos em um romance dependem de movimento e andamento e tais
demandam tempo e ação. Os autores afirmam também que o tempo na narrativa moderna não
mais se restringe a um elemento da narratividade; é muito mais do que isso, chega a ser o
próprio assunto de um romance, podendo levar à realização dos fatos e configurando-se no
próprio herói da história.
Apresentam, ainda, a variedade de distinções que a palavra tempo recorre normalmente. Na
distinção proposta por M. Butor
7
(1969, apud Bourneuf & Ouellet, 1976) existem três tempos
relacionados ao romance: tempo da aventura, tempo da escrita e tempo da leitura. Reis (1995)
apresenta, contrariamente, o tempo da narrativa abarcando três temporalidades autônomas e,
ao mesmo tempo, associáveis entre si; são elas: o tempo da história, o tempo de discurso e o
tempo da narração. É possível fazer uma analogia do tempo da aventura com o tempo da
história. Já o tempo da escrita poderia ser equiparado ao tempo de discurso ou ao tempo da
narração; no entanto, o tempo de leitura não parece se aproximar das idéias do tempo de
discurso ou do tempo de narração.
Retomando a distinção proposta por Butor, o tempo da aventura vem a ser a primeira
dimensão temporal que atinge o leitor, isto é, o tempo da própria história. É comum as obras
trazerem uma referência da época em que se situa a aventura narrada. Romances podem tratar
de acontecimentos ocorridos, na diegese, no início da Cristandade ou num futuro bem
distante, além das coisas conhecidas no presente. Segundo os autores, essa referência
temporal ou essa duração de tempo pode ser de natureza exterior, cronológica ou, até mesmo,
matizar-se por trás de uma duração psicológica, não passível de mensuração.
Prosseguindo com a discussão acerca dos elementos narrativos, deve-se destacar a
focalização. Também conhecido por ponto de vista ou foco narrativo, constitui-se num dos
elementos mais relevantes da estrutura do romance. Segundo Aguiar e Silva (1973) a
focalização exprime as relações que um narrador possui com o universo diegético e com o
narratário e isso denota sua grande importância na construção discursiva da narração.
7
Michel Butor, Essais sur lê roman, p. 118.
26
Bourneuf & Ouellet (1976) afirmam que a focalização é o ângulo de visão, o ponto ótico em
que um narrador se posiciona para contar a sua história. Está diretamente ligado à relação
autor-leitor e narrador-narratário. O termo focalização, proposto por Genette (1972, apud
AGUIAR E SILVA, 1973), foi escolhido como referencial devido à larga utilização pela
crítica européia e também norte-americana.
É interessante notar que Genette faz diferentes considerações em relação à problemática da
focalização. Aguiar e Silva comenta os dados de Genette no que se refere à existência de dois
elementos cruciais da narratividade: o modo e a voz da narração. Inicialmente, Genette
assume a legitimidade de uma tipologia das situações narrativas e afirma que a voz está
intimamente ligada à focalização; entretanto, afirma, em seguida, que não há diferença de
focalização entre uma história narrada pelo próprio herói e uma outra narrada por um narrador
onisciente.
Um herói-narrador, entretanto, não se faz onisciente em relação às outras personagens,
podendo, inclusive, não ser total conhecedor de si mesmo. A focalização pode ser
diversificada do ponto de vista ideológico, psicológico ou ético, pois há de ser diferente o
foco ótico da narração de um narrador que conta a sua própria história e de um narrador que
conta a história de outrem, utilizando a terceira pessoa para se referir ao protagonista. Então,
Aguiar e Silva (1973) esclarece que em relação à uma certa “incoerência” de conceitos de
Genette deve-se ponderar “se a focalização é constituída pelas relações que o narrador
mantém com o universo diegético e também com o narratário, como podem ser alheios, ou
marginais, à problematização da focalização a identidade do narrador e o estatuto deste dentro
do texto narrativo?” (p. 322). Partindo dessas considerações e, principalmente, da existência
de uma tipologia das situações narrativas, chega-se à constatação de que esta varia de teórico
para teórico, de crítico para crítico, mas se dá, mormente, ao uso diferenciado das
terminologias.
A classificação das focalizações narrativas, segundo Aguiar e Silva (1973) equilibra-se entre
as formas mais complexas e simplificadas, no intuito de abarcar vários sentidos, sem chegar a
reduções restritivas. Entretanto, reitera o fato de que a escolha de terminologias não se
constitui na delimitação de categorias, como que a impor conceitos, e sim são apenas modos
flexíveis de verificar as múltiplas nuances narrativas que, concretamente, podem ocorrer em
uma situação de narração.
27
Considera ainda que o fator mais importante instala-se no princípio de que a relação do
narrador com a diegese e, conseqüentemente, com o narratário, se estabelece em vários níveis,
sentidos e conteúdos diferenciados, ainda que interdependentes conforme o aspecto da
estrutura romanesca escolhido pelo autor/narrador. A terminologia selecionada para este
trabalho está baseada na apresentação proposta por Aguiar e Silva, levando em consideração a
classificação nominativa de Gérard Genette.
Outro elemento importante no estudo das categorias da narrativa é o espaço. Reis (1995)
começa descrevendo-o como o conjunto de componentes físicos que darão lugar ou que
servirão de cenário para o desenvolvimento da história, tais como decorações, campos,
cidades, casas, interiores de construções, objetos, etc. Em segundo plano, o conceito de
espaço pode ser compreendido em sentido metafórico, podendo abranger tanto os ambientes
sociais quanto os ambientes psicológicos.
A descrição espacial pode assumir uma gama de aspectos de acordo com o gosto de cada
romancista: este pode optar por grandes extensões de espaço, como também a pequenos
recantos do mundo. O que importa é que de qualquer representação espacial podem se
manifestar muitas possibilidades de interpretação. Reis (1995) argumenta que este aspecto é
bastante vivo em romancistas que ficaram conhecidos por suas descrições espaciais; cita Eça
de Queiroz como o romancista de Lisboa e Camilo Castelo Branco como o romancista do
Porto, pelas comuns representações de cenários urbanos portugueses que escolheram. O
espaço não é disposto de forma fixa ou imutável. Pode desenvolver-se ao longo da narrativa
acompanhando o decurso da história ou o desabrochamento de personagens. O estudioso
afirma que à medida que o espaço vai se particularizando, por exemplo, recebe uma maior
carga descritiva que irá incrementar seus significados decorrentes.
Bourneuf & Ouellet (1976) explicam que o romancista sempre fornece um mínimo de
indicações espaciais, sejam como pontos de referência, para instigar a imaginação do leitor,
sejam como explorações metódicas dos lugares, a fim de lhes prover de um significado extra.
Afirmam ainda que o espaço está longe de ser apenas um elemento decorativo ou de cenário,
pois se exprime em diferentes formas e se veste de sentidos múltiplos, podendo até chegar a
ser a razão de uma obra. Muitas vezes, o romancista deseja desviar a visão do espaço para que
o leitor não lhe dê atenção ou, simplesmente, por não ser relevante para o desenvolvimento da
narração. É um caso extremo em que o romancista leva o leitor ao mistério, ao suspense,
28
devido à abundância de ações e outros elementos mais importantes; acaba fazendo com que o
leitor considere a sua história como uma fábula em que a localização importa pouco. Por
outro lado, o oposto pode ocorrer: uma representação espacial simples para o leitor pode devir
de um processo elaborativo minucioso por parte do romancista, às vezes no intuito de
aproximar a imagem de uma descrição a uma pintura ou fotografia, carregando-a de sentidos.
1.2.1.1 Narrador
As personagens de um romance apresentam características e funções diferenciadas. Entre as
personagens, há duas que se destacam por sua função específica: o narrador e o narratário.
Segundo Aguiar e Silva (1973) o narrador se estabelece como a entidade discursiva da
narração e não deve ser confundido com o autor, pois apresentam natureza e função distintas.
O narrador é um ser fictício, tal qual a personagem e pode se colocar mais próximo ou mais
distante da história narrada, dependendo da focalização escolhida pelo escritor. A instância
narrativa pode se fundamentar em dois níveis diferentes: de primeiro ou de segundo grau. A
instância narrativa de primeiro grau é produtora de uma narrativa primária, ocasionando um
narrador extradiegético, e a de segundo grau é introduzida por outra instância narrativa e
permanece dentro de uma narrativa primária, apresentando um narrador intradiegético.
Deste modo, conforme a focalização escolhida pelo autor, pode-se encontrar o narrador
confundindo-se com o autor implícito, este segundo eu que permeia os bastidores da diegese,
recebendo a denominação de narrador heterodiégetico, ausente da história narrada. Ou ainda
pode estar presente na história, testemunhando fatos e os apresentando a partir de sua ótica
participativa, fazendo-se um narrador homodiegético. Este narrador homodiegético pode
também assumir a forma de personagem central da história, qualificando-se, nesta
terminologia de Genette, como narrador autodiegético. Em ambos os casos o narrador pode
interferir na narrativa por meio de idéias, conceitos, juízos e valores ou se posicionar de
maneira mais distante dos acontecimentos que são narrados.
Os pesquisadores franceses Bourneuf & Ouellet (1976) analisam a problemática que envolve
a personagem/narrador com relação ao conhecimento da diegese e como é posto em evidência
ao ser narrado. Quanto ao narrador autodiegético, os teóricos levantam o problema do auto-
conhecimento e questionam a possibilidade de o narrador conhecer-se a si mesmo e de
comunicar a outros esse conhecimento. O auto-conhecimento é difícil de ser revelado devido
29
à tendência que o ser humano tem de se prender a sua própria subjetividade, o que resulta na
dificuldade de julgar-se. O homem ainda não é capaz de sair de si mesmo e olhar-se,
exteriormente, sem sofrer as influências da auto-subjetividade. Vivendo, ao mesmo tempo,
como objeto e sujeito, o homem não tem a competência fria para se analisar tanto quanto
analisa outros. Segundo os estudiosos, ao retratar-se a si mesmo, como uma recordação, o
narrador retira do esquecimento o vivido e o ressuscita no presente de maneira melhor ou
diferente, deixando-se levar pelo poder do imaginário. Em decorrência do tempo transcorrido,
o narrador pode alterar os acontecimentos de forma a acentuar fatos menos significantes ou
negligenciar outros mais importantes, por exemplo.
Com relação ao narrador homodiegético, isto é, aquele que participa da história, mas não é a
personagem central da trama, Bourneuf & Ouellet (1976) afirmam que, a priori, o testemunho
de outrem sobre uma personagem parece trazer um complemento e uma solução aos limites e
dificuldades do auto-retrato, pois uma vez virada para o exterior, a testemunha já não está
obscurecida por sua própria subjetividade. Entretanto, apesar de o narrador homodiegético se
posicionar exteriormente aos fatos que envolvem o protagonista (e por isso ser menos
influenciado por sua interioridade), a apresentação de uma personagem por outra ainda suscita
problemas da mesma ordem da narração autodiegética.
Segundo Sartre (1967, apud BOURNEUF & OUELLET, 1976), o conhecimento de si mesmo
passa pela mediação das outras pessoas; os pesquisadores afirmam que é bastante comum a
experiência, na vida real, de que os outros apenas têm um conhecimento fragmentário e
superficial sobre nós mesmos. Desta forma, o narrador homodiegético também teria a mesma
dificuldade em retratar o protagonista, por não ter amplo acesso à interioridade da outra
personagem. O fato de se colocar fora dos acontecimentos e analisar de longe as atitudes do
protagonista não conferem a este narrador a totalização dos conhecimentos, necessária para
um retrato fiel da personagem.
O narrador homodiegético participa da história do protagonista não se constituindo apenas
uma testemunha de fatos, mas sofre influência por estar em contato direto com o personagem.
Pode desenvolver afetos ou desafetos que interferirão em sua análise como narrador. Como
exemplo dessa situação, veja-se a personagem do Dr. Watson, das aventuras de Sherlock
Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle. É claramente perceptível a fascinação que o detetive
30
exerce sobre o amigo que narra suas histórias. Bourneuf & Ouellet (1976) explicam muito
bem esta situação:
Quanto mais o narrador se mostra discreto a respeito de si mesmo, mais se
intensifica, por contraste, o objeto da fascinação. (...) E tal fascinação,
criando um clima de empatia, permite, decerto, apresentar uma imagem
convincente da personagem principal – mas não a deforma ainda mais do
que o olhar lançado por alguém sobre si mesmo? Poderemos ficar seguros de
conhecer bem a Julie de La Nouvelle Heloise exclusivamente através das
cartas da sua roda fascinada de Clarens, que lhe faz um pedestal com os
elogios e a rodeia como a um ídolo? (p. 260)
Analisando sob a ótica de Bourneuf & Ouellet, entende-se a quase impossibilidade da
personagem/narrador se posicionar de forma neutra perante as outras personagens. Afinal, é a
relação entre elas que comunica ao leitor os verdadeiros sentimentos transfigurados na
narrativa. O modo de agir das personagens possibilitará maior conhecimento tanto daquela
que narra quanto daquela que é narrada. “Todo o comportamento é uma resposta dada à
imagem projetada por outrem” (1976, p. 261).
O narrador heterodiégetico revelou-se comum e eficaz na narrativa romanesca,
principalmente, para narrar conflitos entre homens e sociedade. Traz semelhança com a
narrativa épica no tocante à apresentação das personagens por suas aventuras e proezas. A
personagem é posta em cena pelas situações em que se envolve e não por suas características
individuais. Para os autores, a motivação psicológica tem menos importância do que o
desenvolvimento da trajetória das personagens e do que a disposição dos fatos.
Outra questão relacionada a esta personagem/narrador é o fato suscitado pela pessoa
pronominal usada pelo narrador. Bourneuf & Ouellet (1976) retomam a questão da
impessoalidade da terceira pessoa do singular, muito freqüente em narradores
heterodiegéticos. Elucidam que não deve haver reciprocidade entre as personagens (no caso,
entre o narrador e os outros personagens), permanecendo o narrador numa atitude
explicitamente neutra. É neste ponto que os estudiosos franceses consideram como narrativa
histórica um fato narrado por um narrador heterodiegético, sem intrusões daquele que narra.
1.2.1.2 Narratário
Constitui-se o destinatário do texto narrativo, ou seja, um ser ficcional a quem o
emissor/narrador dirige a palavra. Da mesma forma que o narrador, o narratário pode ser
31
extradiegético e intradiegético. Quando extradiegético, o narratário pode permanecer
invisível, embora sua presença seja facilmente percebida. Pode também ser mencionado pelo
narrador, que o interpela, o invoca, o chama. Quando intradiegético, o narratário pode se
apresentar como uma personagem concreta, desempenhando a função específica de narratário
ou podendo estar mais ou menos incluso como interveniente na intriga do romance.
1.3 PERSONAGEM
A discussão sobre este elemento das categorias narrativas é a mais importante para este
trabalho, uma vez que o objetivo é analisar as personagens feiticeiras ou bruxas. Além de ser
um elemento fundamental para a existência do romance, a personagem figura no imaginário
dos leitores. Será retratada, primeiro, por seus aspectos de cunho narrativo e, posteriormente,
pelos aspectos de formação que envolvem a construção da personagem de ficção. É neste
ponto, principalmente, que reside o foco desta pesquisa, analisando a maior ou menor
identidade entre personagem e pessoa, numa relação existente em decorrência do processo
cognitivo da leitura.
Nessa busca, é importante ressaltar que a teoria da personagem deverá levar em conta a
verossimilhança suscitada pelas novelas de cavalaria, consideradas verdadeiros retratos de
uma época. Desta forma, torna-se possível o fornecimento de pistas a respeito do modo de
vida, dos costumes e tradições, bem como da organização social de uma comunidade através
das referidas obras literárias. Em conseqüência da observação da personagem feminina, tida
como feiticeira ou bruxa, poder-se-á encontrar os laços entre personagem e pessoa, traçando
um perfil mais ou menos correspondente ao conhecido perfil da mulher medieval.
Iniciando o estudo, Aguiar e Silva (1973) esclarece que os críticos teóricos têm atribuído
importância diferenciada à personagem. Barthes (1966, apud AGUIAR E SILVA, 1973)
dispõe a personagem como elemento essencial à obra romanesca, sem a qual não é possível
existir uma instância narrativa, pois as ações que a compõem são atribuídas ou referidas a
uma personagem ou agente. Entretanto, há que se dizer que esta dependência não é unívoca.
Cândido (1985) explica que a personagem depende da existência dos outros elementos da
narrativa. Aponta-a como o elemento mais atuante e mais comunicativo da arte novelística
32
moderna; porém, só adquire significação dentro do contexto, em contato com os outros
elementos constituintes da narrativa.
Há um conteúdo psicológico-moral que norteia a atitude desses teóricos da literatura, quer na
valorização ou desconsideração deste elemento narrativo, atribuindo-lhe uma perspectiva
funcionalista. Como exemplo, Greimas (1966, apud AGUIAR E SILVA, 1973) substitui a
denominação de personagem pela de actor, conceituando-a como a unidade lexical do
discurso, cujo conteúdo semântico pode ser definido em três características, a saber: entidade
figurativa, a capacidade de ser animado e a suscetibilidade de individualização. Aguiar e Silva
(1973) esclarece que uma das grandes contribuições da abordagem funcional de Greimas é o
fato de que a personagem romanesca não se institui numa pessoa viva e sim é construída por
palavras, é um ser de papel. Tais considerações reduzem o que há de conteúdo moral,
psicológico e sociológico nas personagens, constituindo este um aspecto restritivo na análise
funcionalista. Não raro suas considerações têm sido mais utilizadas em narrativas tradicionais
e de cunho estereotipado, como contos folclóricos, romances policiais e de espionagem. É
importante destacar que esta visão de Greimas corresponde a uma análise funcional da
narrativa, considerando a personagem a partir de uma abordagem semiótica, porém, não
constituindo esta análise o foco escolhido neste trabalho.
Os personagens presentes numa narrativa literária estão divididos em herói (protagonista) e
personagens secundárias. De acordo com Aguiar e Silva (1973), a concepção de herói está
diretamente associada aos códigos culturais, aos conjuntos de valores éticos e ideológicos de
uma sociedade em determinada época; são concepções variáveis. No entanto, o autor pode
criar seus heróis em concordância ou não com estes códigos. O herói pode espelhar os ideais
de uma comunidade encarnando seus valores morais e ideológicos ou, em contraposição, pode
não se conformar com os padrões estabelecidos e aparecer como uma figura em conflito e
ruptura com estes padrões, “valorizando o que a norma social rejeita e reprime” (p. 271). Este
herói que se volta contra as normas vigentes de uma sociedade assume a condição de anti-
herói, uma vez julgado pelo código social predominante. Aguiar e Silva comenta ainda que o
anti-herói é bastante comum em romances do período romântico e pós-romântico e que a
criação desse tipo de protagonista revela as possíveis controvérsias entre o escritor e a
sociedade em que ele está inserido.
33
As personagens secundárias são aquelas que representam o papel de suporte para o
desenvolvimento da narrativa. Estão estritamente ligadas aos protagonistas, de forma a
tecerem uma verdadeira rede de relações. De acordo com Bourneuf & Ouellet (1976) a
personagem central de um romance não deve existir isoladamente, mas figurar num quadro
onde há várias personagens que agem umas sobre as outras e revelam-se umas às outras. Daí a
importância das personagens secundárias que se projetam a partir do drama vivido pelo
protagonista da história.
Quanto à apresentação, as personagens centrais de uma narrativa podem obedecer a modos
diferentes. Na maioria das vezes a personagem principal é um homem ou uma mulher de
quem o romancista narra aventuras, fatos, desilusões, decurso de uma vida e conflitos
amorosos. Ou o protagonista pode ser uma família inteira ou até mesmo uma legião de
homens; pode ainda sequer ser um indivíduo e sim uma cidade ou um determinado local.
Aguiar e Silva (1973) explica que a personagem central pode identificar-se com algum
elemento físico ou com uma realidade sociológica, como, por exemplo, em O Cortiço, de
Aloísio Azevedo, cujo espaço é um bairro miserável e turbulento que abriga proletariados na
cidade do Rio de Janeiro.
Geralmente, os romances do século XVIII e de quase todo o século XIX apresentam suas
personagens por meio de um retrato que pode ser uma descrição de seus aspectos físicos ou
psicológicos que comumente aparece no início da obra. Um elemento importante neste tipo de
caracterização é a menção ao nome das personagens, declarado no princípio da descrição, mas
nem sempre isso acontece. Segundo Aguiar e Silva (1973) o nome funciona como um indício
da relação intrínseca entre o significante (nome) e o significado (conteúdo moral, ideológico,
etc) da personagem. Entretanto, esta forma de apresentação descritiva e detalhada da
personagem “entrou em crise ainda na segunda metade do século XIX, com os romances de
Dostoievski” (p. 276), perdendo espaço para as teorias, as disputas ideológicas, os rancores e
esforços para solucionar conflitos das personagens de ficção.
No final do século XIX e início do século XX, os romancistas se preocuparam mais em
apresentar personagens complexas, contraditórias, difíceis de serem compreendidas
linearmente. Esclarece Aguiar e Silva que o romance deste período buscou não apenas
apresentar personagens nestas condições ou devassar o interior do subconsciente humano,
34
mas também criar “personagens como que descentradas, destituídas de coerência ética e
psicológica, instáveis e indeterminadas” (p.277).
Outro ponto a ser considerado é o fato de que paralelamente a esta crise da personagem
romanesca, encontra-se a crise da própria noção filosófica de pessoa, diante das teorias da
psicologia e da psicanálise, como as de Freud, por exemplo. O romancista entendeu que a
verdade sobre o homem não podia ser desvendada transversalmente do retrato sólido e de
contornos perfeitos de uma personagem, tal qual o modelo balzaquiano, por exemplo. A
figura dramática assim retratada configurava-se num “eu” social que se apresentava oculto
por uma máscara e a verdadeira essência, isto é, o “eu” da personagem sofria conflitos e
permanecia desconhecido.
Aguiar e Silva (1973) esclarece sobre a situação em que se encontrava o homem deste período
de deterioração da personagem, retratada em pormenores:
Esta crise da noção de pessoa, imediatamente explicável pela influência
exercida em largos sectores intelectuais e artísticos pela psicanálise e pela
psicologia das profundidades, tem uma matriz mais profunda e deve situar-
se num contexto mais amplo: trata-se de uma conseqüência e de um reflexo
da crise ideológica, ética e política que vem minando a sociedade ocidental
contemporânea – crise que alcançou o paroxismo com a sociedade
neocapitalista dos nossos dias, dominada por uma tecnologia cada vez mais
tirânica, regida pelo ideal do consumo crescente de mercadorias e serviços e
comandada por um capital cada vez mais anônimo, mais identificado com
gigantescos empreendimentos técnico-econômicos de caráter multinacional
e, por isso mesmo, cada vez mais brutalmente desumano (p. 278).
Entende-se que não é difícil apreender esse fenômeno, pois continua vigente nos dias de hoje.
A pressa, a correria, a velocidade no comando das ações do mundo atual afasta a auto-análise.
O homem moderno se apóia na sua competência, nos múltiplos afazeres, na doação
espontânea e completa a um trabalho desenvolvido com o máximo esforço pessoal. O íntimo,
as emoções, os conflitos internos ficam em segundo plano; apenas aparecem em destaque
quando se tornam sinônimos de estresse. A descrição detalhada de uma personagem, de forma
a retirar o véu que encobre suas atitudes, acabou por cair em desuso, nas narrativas
contemporâneas, abrindo espaço à descrição de lutas e embates sociais.
O resultado mais marcante dessa crise de deterioração da personagem ocorreu no nouveau
roman, levando ao extremo a degeneração da personagem como ser fictício repleto de
35
significados. Ela é desprovida dos principais elementos que a identificavam, como a
fisionomia, a crônica familiar e as minúcias definidoras de caráter, apresentando-se sem o
nome próprio, elemento fundamental da particularização do indivíduo. Como exemplos
podem ser citados o herói de O castelo, de Franz Kafka, em que é denominado apenas por
“K.”; a personagem central de Finnegans que James Joyce denomina H.C.E.; e Claude
Simon, na La bataille de Pharsale, denomina 0 para o protagonista, que se apresenta ora
homem, ora mulher. Neste último exemplo, não se esclarece o 0 (“zero” ou uma letra do
alfabeto).
Entende-se que, imerso nesta sociedade tecnoburocratizada, onde o homem é carente de
motivações éticas e ideológicas, o romance seria incapaz de retratar personagens com reflexos
de valores das sociedades antecedentes. É compreensível que as personagens sejam
apresentadas nos moldes da sociedade em que o escritor se insere, refletindo, através da forma
de sua apresentação, as características inerentes ao homem moderno, com seus conflitos e
lutas interiores.
Chega-se, aqui, a um outro ponto fundamental: a construção da personagem. De que maneira
um autor concebe suas personagens, ou ainda, como o romancista constrói esses seres que
circularão na sua história narrada?
Aguiar e Silva (1973) apresenta a proposta de E. M. Forster
8
, em que as personagens do
romance podem ser planas ou redondas. As personagens planas são aquelas que apresentam
características comportamentais padronizadas durante toda a narrativa. São traçadas por um
fio ininterrupto, sem oscilações aparentes, o que equivale a dizer que não apresentam
mudanças no decurso do romance. São previsíveis em suas atitudes; não têm o poder de
surpreender o leitor. Em inúmeros romances, tendem a constituir-se num tipo, numa
caricatura e, por vezes, apresentam perfis cômicos. Ocorre que, no desenvolver da narrativa,
essas personagens não são influenciadas pelos fatos a ponto de sofrerem alterações de caráter.
O autor esclarece que elas não conhecem as transformações íntimas que poderiam torná-las
individualizadas e passíveis de anular seu aspecto típico. Para o seu criador, ao caracterizá-las
inserem-se imediatamente na narração e apresentam um comportamento fixo do início ao
final da obra. São personagens propensas a representarem papéis secundários.
8
E.M. Forster, Aspeetti Del romanzo, Milano, Il Saggiatore, 1963, apud AGUIAR E SILVA, 1973.
36
As personagens redondas, por sua vez, apresentam-se contrariamente. Elas exigem do
romancista uma acurada atenção, pois devem oferecer uma complexidade comportamental
que demanda trabalho e esforço na caracterização de todos os seus aspectos. Estas
personagens apresentam uma pluralidade de traços que as distinguem das personagens planas
e, em conseqüência, têm o poder de surpreender o leitor com suas reações aos fatos narrados
na diegese. A estas personagens o autor confere uma densidade e riqueza de sentimentos,
fazendo-as progredir ou regredir face aos conflitos que vivem na história, evolucionam na
narrativa numa identificação mais evidente com o ser humano. Segundo Aguiar e Silva (1973)
a personagem redonda consegue fundir a unicidade do indivíduo com a sua significação
genérica no plano humano. Em outras palavras, ela une o que há de mais individual e
intimista com os possíveis padrões de comportamento social retratados na história narrada da
qual é parte integrante. Particularmente, são as mais indicadas aos papéis principais num
romance.
Discutiu-se até aqui os aspectos narrativos que envolvem a personagem de ficção e as formas
mais freqüentes de sua apresentação, considerando-se como a categoria mais relevante na
construção da narrativa romanesca. Os seus aspectos de formação serão, agora, abordados
através da inserção da personagem na realidade do leitor, por meio da realidade suposta pela
narrativa.
A personagem exerce sobre o leitor um deslumbramento, às vezes desenfreado, dominando o
seu imaginário. A partir desta relação cria-se um universo que pode influenciar na vida real
dos leitores, pela aceitação ou negação de comportamentos, reações e sentimentos surgidos
em decorrência das aventuras vividas pelas personagens. Essa identificação ocorre,
principalmente, pelo fato de as personagens ficcionais instituírem semelhanças com pessoas
reais. Povoando a imaginação do leitor, as personagens fazem com que este receba as
impressões da leitura e as incorpore à própria vida.
Durante o ato da leitura de um romance ou novela, ocorre uma interação entre o mundo real
do leitor com o mundo representativo da ficção. Essa interação provoca memórias,
lembranças, emoções, sensações e até sentimentos, quando a identificação entre personagem e
leitor é configurada. Cria-se, neste processo, a impressão de que tudo o que está escrito
realmente poderia ter acontecido com alguém e, neste instante, alarga-se a proximidade da
personagem com a vida real, permitindo a livre imaginação. De certa forma, a maior ou
37
menor verossimilhança alcançada pela obra determina esta impressão no leitor. Tal sensação
ocorre na leitura de obras cujas histórias não sejam fantásticas; a identificação do leitor com a
personagem depende da concretização que sente em relação ao ambiente relatado no livro:
quanto mais próximo do real, mais forte essa sensação de possibilidade.
As obras cujos conteúdos são mais irreais, por trazerem elementos do mundo sobrenatural,
ativam a imaginação do leitor em outra direção, que não a do seu mundo real. Reside neste
processo a busca da fruição através de outra dimensão, que por sua vez, pode ser descrita ou
induzida por uma personagem. As personagens relacionam-se com os leitores. Existe uma
troca de sentidos, durante o processo de leitura, que visa a produzir mais sentidos. Essa
abordagem que enfoca a relação existente entre o leitor e a personagem prioriza o diálogo
entre essas duas esferas. Antônio Cândido e Anatol Rosenfeld são estudiosos que formulam
uma designação de personagem como o meio de manifestação de certa relação entre o ser
vivo e o ser fictício, fundamentadora do romance.
1.3.1 Personagem: aspectos que estreitam a relação realidade-ficção
Candido (1985) reflete, primeiramente, que não há como isolar a importância da personagem
num romance. O enredo sobrevive graças às personagens e estas vivem no enredo. Há aqui
uma relação de simbiose. A interdependência é favorável a ambos os elementos que
exprimem a essência do romance, “a visão da vida que decorre dele” (p. 54), as idéias e os
significados que lhe imprimem vigor. Portanto, o estudioso dispõe como os três principais
elementos da desenvolução novelística o enredo, as personagens e as idéias. Três elementos
indissociáveis em romances bem organizados, em que o primeiro e o segundo representam o
campo da matéria e o terceiro representa o significado, os sentidos.
Para Cândido (1985), a personagem é, sem dúvida, um ser fictício, havendo nesta afirmação
um paradoxo. Como algo que não existe pode ser? Entretanto, a criação literária baseia-se
neste paradoxo e o problema da verossimilhança no romance depende da possibilidade de um
ser fictício simbolizar a realidade. Desta forma, o pesquisador assegura que há muitas
afinidades e divergências entre os dois seres e que estas são de extrema relevância na
produção do sentimento de verdade, ou seja, a verossimilhança.
38
Como seres humanos, o conhecimento direto das pessoas levanta um problema de difícil
solução: a continuidade da percepção física e a descontinuidade da percepção espiritual.
Cândido (1985) explica que a primeira fornece os fundamentos de nosso conhecimento, pois
dependemos, antes, de um contato físico e que a segunda se mostra multifacetada, revelando
diferentes modos de ser ou de qualidades humanas, muitas vezes contraditórias. O ser humano
não é capaz de abranger totalmente a personalidade de outrem com a mesma uniformidade
com que pode aperceber-se da configuração exterior. Então, a noção que um ser tem de outro
é incompleta, pois não atinge os níveis espirituais da percepção, destinando a este
conhecimento o caráter de fragmentário.
Por natureza, os seres são misteriosos e, conseqüentemente imprevisíveis. O máximo de
noção que um ser tem de outro é captado por fragmentos de diálogos, de convivência e de
observação direta ou indireta; é o suficiente para o estabelecimento de relações e de condutas
diante de circunstâncias da vida. No entanto, este parco conhecimento não é completo e sim
oscilante e descontínuo. Parte daí o esforço que a psicologia moderna tem feito em prol de
investigar o subconsciente humano, na tentativa de entender e explicar o que há de
extraordinário nas pessoas que, freqüentemente, surpreendem-se, apesar de julgarem se
conhecer.
Cândido (1985) ainda comenta que muito antes dessas investigações da psicologia moderna,
os escritores já denotavam certa intuição quanto à complexidade dos seres, haja vista as
personagens shakespearianas, dotadas de características inusitadas e surpreendentes, de difícil
apreensão por parte dos leitores ou espectadores. As novas pesquisas na área da psicologia
humana permitiram uma abordagem mais sistemática dessa visão no campo da literatura.
Muitos escritores, como Proust, Joyce, Kafka, Pirandello e outros, refletiram em suas obras a
dificuldade em desvendar a coerência e a unidade dos seres retratados e isso, por vezes, se
traduziu na “forma de incomunicabilidade nas relações” (1985, p. 57). De certa maneira,
algumas tendências filosóficas e psicológicas contribuíram, direta ou indiretamente, para o
descortinamento das aparências do homem na sociedade, provocando uma revolução no
conceito de personalidade, principalmente no tocante à relação da pessoa com o seu meio.
Dois casos bastante comuns são o marxismo e a psicanálise, que se voltaram para a concepção
de homem e, por conseguinte, de personagem, influenciando até mesmo a produção literária,
em seus variados gêneros.
39
Abordando o caráter fragmentário da personagem, ele esclarece que o conhecimento que um
autor tem sobre a personagem é limitado, pois utiliza os mesmos padrões de observação com
que elabora o conhecimento de outros seres humanos. Esta característica é instituída
racionalmente pelo escritor, mas, na vida real é uma condição inerente ao ser: não é dado ao
homem conhecer por completo a essência de outro, nem mesmo saber o que lhe acontecerá
até o fim de sua vida. Na criação de uma personagem, cabe somente ao escritor decidir seu
destino e suas estruturas emocionais.
Em decorrência desta capacidade do escritor, de manipular as personalidades de suas
personagens, pode ele organizar uma lógica bem mais coesa e coerente, menos instável do
que a lógica que rege a conduta humana. Assim, no romance, o autor traça uma linha de
coerência relativa às personagens, contornando e designando os seus modos de ser. O que é
variável neste aspecto são as interpretações diversas que os leitores podem ter dessas
personagens. Por isso, afirma que elas são mais lógicas e coesas do que os seres humanos. As
grandes personagens de ficção exercem certa força nos leitores porque suas caracterizações
dependem de uma estruturação uniforme que só o escritor pode lhes conferir; é graças aos
recursos de pormenorização que o escritor consegue criar a impressão de que sua criação é um
ser ilimitado, indeterminado, contraditório tal qual uma pessoa real. Decorre desta capacidade
a apreensão do leitor quanto à personagem como um todo coeso, em sua imaginação. Na
verdade, ela parece mais lógica do que um ser real.
Cândido (1985) expõe que houve uma evolução técnica do romance e que a construção das
personagens sofreu modificações com o passar do tempo. Um dos aspectos mais marcantes
nesta evolução foi o esforço empregado na composição de seres coerentes, baseada na
percepção fragmentária de que dispõe o homem para conhecer ao outro. No desenvolver da
técnica de caracterização de personagens, logo surgiram duas famílias de personagens que, no
século XVIII, foram denominadas personagens de costumes e personagens de natureza. É
possível situar esta terminologia com a atual de Forster, em que a personagem de costumes se
identifica com a personagem plana e a personagem de natureza tem as mesmas características
que a personagem redonda.
Forster (1949, apud CANDIDO, 1985) sugere uma diferenciação bastante simples em seu
livro Aspects of the novel: a comparação direta entre o Homo Sapiens com o Homo Fictus.
Segundo o teórico, o Homo Fictus é e, ao mesmo tempo, não é equivalente ao Homo Sapiens,
40
pois vive conforme os mesmos parâmetros de ação e sentimentalidade, porém em proporções
diferenciadas. A personagem aparece pouco através de suas semelhanças fisiológicas com o
ser humano e sim, na maioria das vezes, é apresentada por suas atitudes e reações diante de
fatos que vivencia e, desta forma, aparece vivendo muito mais intensamente certas relações
humanas, especialmente as amorosas. Para o leitor, a importância da personagem repousa na
possibilidade que desfruta de conhecê-la a fundo e não apenas superficialmente, como ocorre
nas relações de um ser vivo.
Outro problema estudado por Candido (1985) é a impressão de a personagem ser um vivente,
de assemelhar-se a uma pessoa, de lembrar um ser humano. Para atingir este objetivo,
questiona se poderia transplantar a personagem da realidade para o romance. Esclarece que
não é possível, uma vez que o homem não seria capaz de absorver todo o modo de ser de uma
pessoa para transformá-la em uma personagem. Se assim o fizesse, estaria cometendo plágio,
anulando a criação artística e a cópia, por sua vez, não permitiria o conhecimento específico e
completo, que é a essência e o encanto da ficção. Portanto, o escritor deve configurar que a
personagem não é exatamente o mistério do ser humano, mas uma interpretação deste
mistério.
Considerando tais proposições, chega-se à conclusão de que um escritor pode se valer de
muitos recursos para formar o processo de construção de uma personagem. Se ela não pode
ser inventada ou produzida é, de certa forma, copiada, inventada, produzida, observada,
analisada. O resultado é um conjunto de características mistas que provêm de múltiplas
inspirações, desde a observação direta ou indireta de alguém conhecido ou desconhecido até a
pura e real imaginação de uma personalidade criada (e existente) na mente de um escritor.
Torna-se difícil estabelecer normas e padrões para uma operação que depende, única e
exclusivamente, das escolhas e idéias do criador; sem dúvida, é um processo individual.
Contudo, Candido (1985) esclarece que o princípio que rege o aproveitamento do real, na
composição de uma personagem é o da modificação da realidade e não o da imitação. Um
autor não é capaz de reproduzir a vida, nem de uma sociedade inteira, nem de um único
indivíduo; na verdade, ele seleciona características da personagem criada e, ao executar esta
etapa, afasta-a da realidade, inserindo-a num mundo todo seu, no qual as personagens de
ficção obedecem a uma lei própria. São concebidas de forma clara, com contornos definidos,
41
diferentemente de como a vida real se apresenta, incumbindo-se de preestabelecer uma lógica
que as torna padronizadas e, por isso, eficientes.
Candido inicia a sua investigação no ponto paradoxal (a personagem é um ser fictício). A
proposição de a personagem ser uma cópia do real pode ser vislumbrada no desejo de ser fiel
à realidade, um dos elementos básicos para a construção de uma personagem. Partindo deste
pressuposto, esclarece que a criação oscila entre estas duas possibilidades: “ou é uma
transposição fiel de modelos, ou é uma invenção totalmente imaginária” (p. 70). Pondera que
estes dois pólos são os limites da criação literária novelística, no que se refere à personagem,
e que cada romancista se vale de combinações variadas respeitando estes limites. Este vem a
ser o traço distintivo que o define, bem como a cada uma de suas personagens. São estas
considerações que tornam o estudo da origem da personagem interessante para a técnica de
caracterização e também para a relação que há entre criação e realidade, verdadeira essência
da ficção.
A coerência interna é, portanto, um ponto decisivo nesse estudo. O fato de a personagem
depender das intenções e escolhas de um autor sugere que a observação da realidade apenas
transmite a sensação da verdade no romance e que, para que esta realmente se instale, todos
os elementos da narrativa devam ajustar-se apropriadamente. Assim sendo, a verdade da
personagem não depende, exclusivamente, da relação com a vida ou com a sua origem, mas,
sobretudo, da função que exerce na estrutura do romance. A personagem e tudo o que lhe diz
respeito é menos um problema de analogia com a realidade do que de organização interna.
Deste modo, a verossimilhança termina por depender da estruturação estética do romance.
Muito mais importante se faz o estudo do romance que envereda pelos caminhos da
composição e não da comparação com a realidade exterior. Mesmo que o conteúdo diegético
narrado seja uma cópia fiel da realidade, só haverá o sentimento de verdade para o leitor se a
obra for organizada segundo uma estrutura coerente. Assim, a vida de uma personagem não
depende apenas de sua inserção na narrativa, mas da relação que estabelece com os outros
elementos: outros personagens, lugares, duração temporal, ações, idéias. Por isso a
caracterização deve estar sujeita a uma escolha e distribuição conveniente dos traços
expressivos das personagens que possam se coadunar na composição geral do romance.
42
A idéia que as pessoas geralmente têm sobre algo que parece inverossímil em uma leitura é a
de que um fato ou um ato seria impossível de acontecer na vida real. No entanto, Cândido
(1985) contra-argumenta que na vida tudo é praticamente possível. No romance a lógica não
obedece à anarquia própria da vida, pois a estrutura impõe limites, o que resulta no paradoxo
de as personagens serem menos livres que os seres humanos e a narrativa ser compelida a se
apresentar mais coerente do que a vida. “O que julgamos inverossímil, segundo padrões da
vida corrente, é, na verdade, incoerente, em face da estrutura do livro” (p. 76-77).
1.3.2 Personagem: aspectos que distanciam a relação realidade-ficção
Os aspectos acerca das limitações entre personagem e pessoa são enfocados por Anatol
Rosenfeld (1985). É importante ressaltar que o pesquisador partilha de várias idéias já
propostas por Antônio Candido, principalmente quanto à realidade e ficção e à importância
revelada pela função da personagem na estrutura narrativa. Em Rosenfeld há uma maior
preocupação quanto ao estabelecimento do caráter fictício da literatura e sua inclusão na
narrativa romanesca, bem como o papel de destaque da personagem como o elemento mais
atuante no gênero. Outro ponto de convergência entre os dois estudiosos é o caráter
fragmentário do conhecimento humano na relação de um ser com outro, mostrando a intensa
limitação do homem na observação do universo exterior.
Rosenfeld (1985) inicia suas especulações abordando a literatura através do caráter fictício ou
imaginário. Argumenta que um dos aspectos distintivos da literatura refere-se a este caráter e
tem a vantagem de basear-se em momentos de lógica literária, podendo ser verificados com
certo rigor, sem necessariamente precisar recorrer à valorização estética. Ressalta que o
critério do caráter ficcional não é capaz, sozinho, de delimitar o campo da literatura num
sentido mais restrito. A partir da existência deste caráter da obra literária ficcional, o autor
expõe que o mundo retratado num romance, por exemplo, se constitui num universo de
objectualidades imaginárias e intencionais, constituídas pelas orações. “Este mundo fictício
ou mimético, que freqüentemente reflete momentos selecionados e transfigurados da realidade
empírica exterior à obra, torna-se, portanto, representativo para algo além dele,
principalmente além da realidade empírica, mas imanente à obra” (p. 15).
Justamente por ser imanente à obra, a representação do real através do imaginário faz surgir
questionamentos quanto à verdade ficcional. Em se tratando de literatura, essa verdade tem
43
significado diverso. Relaciona-se mais à questão da autenticidade ou sinceridade do autor de
ficção do que com o próprio sentido de real, inerente aos fatos ocorridos com os seres
humanos. Desta forma, essa verdade refere-se à atitude subjetiva dos escritores ou à
verossimilhança, isto é, a adequação ao que poderia ter acontecido e não ao que realmente
aconteceu. Rosenfeld (1985) afirma que não seria correto aplicar critérios de veracidade
cognoscitiva a enunciados fictícios. Pareceriam falsos e essa visão de falsidade não se aplica
as esferas que, embora interdependentes, sejam tão distintas.
Destaca o fato de que os romances buscam, através da energia expressiva da linguagem,
particularizar, concretizar e individualizar os contextos representacionais (objectuais)
mediante aspectos variados e uma multiplicidade de detalhes e minúcias que pretendem
revestir de realidade uma situação que é imaginária. Precisamente, é esta aparência de
realidade que caracteriza a intencionalidade ficcional. Devido à inserção de tantos detalhes, à
veracidade de dados insignificantes, à coerência interna dos fatos, à lógica dos móbeis das
personagens e ao caráter causal dos acontecimentos, a verossimilhança se instala do mundo
imaginário para o real. Note-se que, mesmo um texto que não tenha todos esses elementos,
ainda assim pode alcançar força de convicção; haja vista textos de conteúdo fantástico ou
alegórico que se impõem como reais.
Segundo Rosenfeld (1985), a personagem é a criatura que possibilita o adensamento e a
cristalização do imaginário na mente dos leitores. A personagem torna nítida a ficção no seu
termo mais literal: aquilo que poderia acontecer e não o retrato de algo que aconteceu. O autor
compara esse caráter da personagem de ficção com a personagem lírica, que exprime estados
e não contornos marcantes. Já a personagem de romance é definida pelo efeito contínuo do
tempo sobre os fatos e as ações, demonstrando seus aspectos sobrepujantes através do
conjunto de atividades e aventuras que desenvolve durante a narração. Por isso, o teórico
conclui que a personagem é a manifestação mais viva da ficção e, por conseguinte, a sua
função é mais sobrelevante na literatura narrativa.
Salienta também o aspecto lingüístico que define a narrativa literária. O discurso da narrativa
permite uma liberdade ao escritor que não ocorre, por exemplo, com o discurso lírico: o
narrador lírico confunde-se com o “eu” do monólogo; já o narrador de romance, em geral,
finge se distinguir das outras personagens. Apenas no gênero narrativo é que formas de
discurso ambíguas podem aparecer, projetando o discurso por meio de duas visões diferentes
44
ao mesmo tempo, a do narrador e a da personagem. Rosenfeld (1985) alerta que a estrutura
básica do discurso fictício parece ser a mesma para os outros gêneros literários. O que o autor
pretende distinguir, neste ponto, é o aspecto lingüístico que se diversifica nas narrativas
épicas, históricas, por exemplo. O historiador, por exemplo, se situa no ponto zero do sistema
espácio-temporal, projetando através do pretérito real, o passado histórico, também real, e do
qual ele não faz parte. Já na ficção narrativa, o enunciador real desaparece; na verdade, ele é
um narrador fictício que se torna parte do conteúdo narrado, podendo, inclusive, se confundir
com personagens ou apresentar onisciência quanto a estes. O pretérito, aspecto lingüístico
fundamental das narrativas, perde o seu sentido de real, de histórico, pois o leitor presencia os
fatos narrados juntamente com o narrador.
O narrador fictício não vem a ser exatamente o agente real das orações, como ocorre com o
historiador. Ele se desdobra no imaginário e manipula a função narrativa, descrevendo
pessoas (personagens), estados e acontecimentos. Isso também se refere aos romances
históricos, pois no momento em que uma pessoa (histórica) passa a ser focalizada pelo
narrador onisciente, ela deixa de ser pessoa e torna-se personagem; de objeto de um evento
torna-se sujeito da diegese na narração.
Rosenfeld (1985) aborda a diferença crucial entre a realidade e as objectualidades
intencionais, subentendendo a pessoa como representante do o real e a personagem como
representante do imaginário. Esta diferença es no fato de que as objectualidades não são
capazes de atingir a determinação completa da realidade. Isto quer dizer que as pessoas reais
são autônomas, concretas, detentoras de inúmeros predicativos que, em relação com outro ser
humano, só podem ser parcialmente absorvidos cognoscitivamente. Isso reflete a nossa visão
de realidade da forma como se apresenta fragmentária e limitada.
As objectualidades, por sua vez, puramente intencionais, apresentarão sempre muitas regiões
indeterminadas, pois o número de orações é finito em uma obra literária. A personagem de
romance é sempre uma configuração esquemática, mesmo que sempre posta à prova como um
indivíduo real. Estas regiões indeterminadas do texto tornam possíveis, até certo ponto, o
caráter vivo da obra literária e a variedade de concretizações suscitadas pelas leituras
múltiplas. Esta variedade de leitores, no decurso do tempo, denota a invariabilidade da obra,
cujos personagens não possuem a mutabilidade e as incalculáveis determinações do ser
45
humano. Assim, as interpretações podem mudar através das diversas leituras, mas a obra em
si, não muda.
Como resultado disso, Rosenfeld (1985) explica que a limitação do romance é justamente a
sua maior riqueza. Como o número de orações é restrito, as personagens adquirem um cunho
definitivo que as pessoas reais, em meio ao convívio com outras pessoas, não alcançam. Por
se tratar de orações e não de realidade, o escritor pode dar um contorno mais relevado a certos
aspectos, apresentando as personagens com mais clareza do que a realidade pode proporcionar
às pessoas reais. O modo pelo qual o escritor dirige o olhar do leitor pelas personagens faz
com que as zonas indeterminadas comecem a transitar pela história, recurso este que torna a
personagem, muitas vezes, insondável.
Em decorrência deste fenômeno que emerge da personagem e extrapola o universo
imaginário, Rosenfeld (1985) discute a questão da influência da ficção no ambiente real e
empírico do qual faz parte o leitor. A ficção dirige toda a sua intencionalidade à camada
ilusória sem chegar a atingir a realidade extra textual, ficando, assim, restrita à esfera das
personagens, mas possibilitando ao leitor viver as aventuras e peripécias dos heróis, no plano
imaginário. Entretanto, grande parte dos leitores coloca o seu mundo, real e empírico em
constante referência e comparação à realidade imaginária das histórias narradas.
A arte literária ficcional vem a ser o lugar em que o ser humano se defronta com outros
semelhantes vivendo situações singulares. Da mesma forma que os próprios seres humanos,
as personagens que os representam encontram-se integradas num denso tecido de valores
relativos a vários aspectos da sociedade: político-social, moral, religioso e, em face disso,
tomam certas atitudes em relação a esses valores. Passam por conflitos e enfrentam
circunstâncias que revelam aspectos essenciais da vida humana, sejam eles trágicos, cômicos,
exuberantes, grotescos ou sublimes.
46
2 DA CULTURA CELTA À CULTURA MEDIEVAL – BREVE REVISÃO DA
HISTÓRIA
A importância deste capítulo deve-se à contextualização histórica, imprescindível à análise
literária. Será traçado um breve panorama, a partir de leituras de textos que discutem a Idade
Média, período no qual se insere o corpus selecionado da pesquisa.
Entende-se que para uma adequada localização espaço-temporal da investigação acerca da
figura das feiticeiras ou bruxas, na literatura medieval voltada às narrativas cavaleirescas, a
apresentação do panorama ocidental europeu antecedente à Era Cristã é de fundamental
importância. Segundo os historiadores, este período da Antigüidade é pleno de eventos e
características que irão formar e moldar o espírito medieval.
Entre os povos mais significativos deste momento estão os Celtas. Sua cultura e religião,
apesar de enublada pela Igreja Católica, revelam-se nas obras escolhidas para análise deste
trabalho, bem como os povos bárbaros. Ambos exerceram forte influência na formação das
gerações que compuseram a Idade Média, ressaltados os aspectos relacionados aos conflitos
internos e externos, decorrentes do grande número de invasões que resultaram em grandes
mudanças sociais e culturais.
2.1 OS CELTAS E OS POVOS BÁRBAROS
2.1.1 Os Celtas
A história dos Celtas está mais ou menos dividida em ondas de invasão. De suposta origem
indo-ariana, eles invadiram a Europa várias vezes, em ondas migratórias. Segundo alguns
autores, houve cinco grandes invasões migratórias; entre estas as que mais relevância
exerceram na desenvolução da cultura celta foram a terceira e a quinta invasões. Segundo
May (2002) para vários estudiosos, a terceira invasão céltica foi a comandada por Senion,
filho de Stariath, considerada a primeira onda migratória real. Calcula-se que tenha ocorrido
47
por volta do século V a.C e recebido o nome de Hallstatt. May destaca, entre os aspectos
evolucionais desta cultura, a introdução do ferro e a instituição da realeza, “cujo bom
desenvolvimento estava ligado à fecundidade do solo: um trono forte e justo levaria consigo
uma terra fértil e agradecida” (p. 35).
Neste período registra-se a introdução das armas de ferro proporcionando o surgimento de
uma oligarquia constituída como força militar. Estabeleceram-se residências em povoações
fortificadas e situadas em locais estratégicos. Os elementos mais significativos da cultura
Hallstatt, disseminada na Alemanha meridional e oriental, no nordeste da França, no sudeste
da Inglaterra e na Península Ibérica, foram a siderurgia, a arte decorativa geométrica, os ritos
funerários de sepultamento e incineração, as fortificações e, principalmente, o armamento de
ferro.
O século V a.C. assistiu à evolução da cultura Halstatt para a cultura La Tène, cuja origem
deve-se ao contato com os povos mediterrâneos. De acordo com May (2002), esta foi a quinta
e última invasão céltica, porém a segunda grande onda migratória. Foi nesse período que os
Celtas atingiram sua máxima expansão e poderio. Receberam influência de gregos e etruscos
e desenvolveram a arte assimilando motivos florais, animais e humanos. Aperfeiçoaram a
cerâmica com o uso do torno que, por sua vez, também proporcionou a fabricação de objetos
curvilíneos. Com o passar do tempo a estrutura social sofreu transformações, tornando-se
cada vez mais rígida na medida em que a classe dos guerreiros aumentava seu poder e
prestígio, exercendo significativa tutela sobre as rotas comerciais que atravessavam o
território celta.
No século III a.C. a força expansionista dos Celtas foi detida pela reação defensiva dos povos
do Mediterrâneo, especialmente os de Roma. O Império Romano foi capaz de impor-se sobre
a civilização celta, carecendo organização da unidade política. Já se tornara difícil para os
Celtas manterem-se coesos com uma extensão territorial tão grande, registrando-se sua
decadência até o século I a.C período no qual os Romanos subjugaram todas as tribos, com
exceção daquelas que permaneceram na Irlanda.
A cultura celta era predominantemente oral. Exclusivistas em relação ao conhecimento, os
religiosos ocultavam os mistérios da natureza não permitindo a difusão popular na forma
escrita, como fizeram outros povos da Antigüidade. De acordo com May (2002), todo o
48
conhecimento acerca deste povo provém de relatos escritos por povos estrangeiros à sua
cultura, como os Romanos a eles contemporâneos, os poucos herdeiros tardios da Idade
Média, os monges compiladores de mitos, lendas e costumes pagãos.
A concepção de vida dos Celtas, de acordo com May (2002) era tão diversa em comparação
com a dos mediterrâneos. O choque entre elas teve grandes proporções a ponto de provocar
um recuo drástico por parte dos primeiros. Conseqüentemente, eles desapareceram do mundo
como civilização em decorrência da imposição superior do exército romano, da eficiência de
sua regência imperial centralizada e, principalmente, da sua histórica veemência em se
eternizar materialmente. O autor destaca o sentimento de superioridade do povo romano que
os incapacitava de aceitar ou mesmo tolerar uma outra forma de cultura que não aquela
defendida por eles mesmos. Essas considerações figuram-se relevantes uma vez que se
considere que a maioria dos historiadores seguiu pela mesma rota: o Ocidente contado e
narrado a partir da ótica dos vencedores. O autor sintetiza a essência da cultura celta que pôde
ser legada ao ocidente europeu: “Apesar de tudo, se os romanos se apoderaram da história, os
Celtas se refugiaram no mito. E, graças a isso, seu espírito sobreviveu” (p.12).
Como os dados históricos são parciais ou imprecisos e a nação céltica não é considerada uma
nação histórica, torna-se necessário registrar algumas informações acerca do confronto do
paganismo com o cristianismo e do papel da mulher na sociedade celta. Analisando as
informações disponíveis sobre o papel da mulher em sua cultura e tradição, é inevitável a
comparação dos padrões celtas aos padrões cristãos. Deve-se esclarecer que a intenção deste
tópico não é propriamente o paralelo em si, mas a apresentação da mulher na sociedade
céltica. Entretanto, o confronto ocorre, pois é fato que as tradições sejam tão diferentes. Estas
disparidades são de extrema relevância para a análise das personagens femininas consideradas
bruxas ou feiticeiras nas novelas de cavalaria inseridas num contexto literário recolhido da
tradição oral e pleno de descrições históricas.
Idealmente preparado para a aceitação e reverência das características impalpáveis da mulher,
o povo celta atribuía à figura feminina a própria imagem da Deusa, detentora do poder de unir
o céu a terra, o que significa, respectivamente, unir o Deus (eterno aspecto masculino) à
Deusa (eterno aspecto feminino). Assim sendo, a mulher celta usufruía de liberdade e direitos
em relação a outras culturas contemporâneas. Entre estes direitos estavam a participação nas
49
batalhas e a solicitação do divórcio. Isso denota uma característica igualitária entre os sexos,
que desempenhavam cargos e funções em comum.
May (2002) esclarece que o culto a uma divindade criadora, acima de todos os outros deuses,
não constitui uma exclusividade dos Celtas; outras culturas antigas também a utilizaram,
como a Grande Mãe, Ísis ou Astartéia (Istar). As qualidades inalcançáveis da mulher, como a
capacidade de gerar outro ser e a intuição feminina, exerceram grande fascínio nos povos
antepassados. Sabe-se que o nível de informação sobre a concepção humana era bastante
baixo e muitos pensavam que o elemento masculino tinha pouca ou nenhuma participação
neste processo. Daí a importância reveladora da mulher que detinha a função sagrada da
reprodução.
Encontrando-se com uma cultura tão diversa e estranha a sua, os povos do Mediterrâneo
reagiram de maneira violenta à propagação da religiosidade celta. A Igreja Católica primitiva
tentou apagar tudo o que lhe foi possível dos rituais célticos, catalogando-os de “paganismo”.
Os cristãos não admitiam o culto a mais de deus; não o admitindo fora de templos construídos
especificamente para aquele fim. Tal idéia opõe-se à dos Celtas, que não aprovavam o culto a
uma divindade em templos construídos por mãos humanas, não se considerando dignos de tal
função. Os cristãos, por sua vez, também não aceitavam a participação feminina na condução
de cerimoniais religiosos, bem como em muitas das atividades sociais de importância.
2.1.2 Os povos bárbaros
A maioria dos historiadores atribui o nascimento do ocidente medieval à desintegração do
Império Romano. A ruína deste que é considerado o maior império em termos de duração e de
importância civilizacional trouxe vantagens e desvantagens. Segundo Le Goff (2005), Roma,
apesar de todo o seu progresso, manteve-se em permanente clausura, mantendo seu povo
dentro de muralhas e impedindo a população de desenvolver-se sob influências do mundo
exterior. Estruturalmente, não houve nenhum crescimento técnico inovador, pois os romanos
pautavam sua economia na guerra de pilhagem e conseguiam a mão-de-obra escrava através
dos conflitos vitoriosos.
Os romanos já traziam em seu íntimo uma característica propensa à estabilidade das
instituições e ao conservadorismo de suas tradições. É possível que entre os fatores que
50
levaram o Império Romano à destruição figurem as forças de renovação e mudanças que
vieram confrontar o imobilismo romano. O aumento populacional dos povos ainda nômades,
o crescimento econômico e a necessidade territorial e militar somaram forças alternativas que
se deslocaram em direção ao Império Romano, realizando um prolongado processo de
invasões e guerras.
Grande crise se instalou no século III, minando as forças do Império Romano. De acordo
com Le Goff (2005), a unidade do mundo romano ficou ameaçada por seus próprios
membros. A Itália e a cidade de Roma, centro de seu império, já não tinha energia suficiente
para manter as províncias em condição una. Acabaram por emancipar-se e se tornaram
conquistadoras, instaurando diversos conflitos internos marcados pelo êxito da romanização e
pela crescente emanação de forças centrífugas. Assim, “o Ocidente medieval herdará algo
desta luta, oscilando entre a unidade e a diversidade, entre a idéia da Cristandade e das
nações” (p. 20).
A fundação de Constantinopla, ocorrida entre 324 e 330, consolida a tendência do Império
para o Oriente. O mundo medieval é marcado pelos esforços de união entre oriente e ocidente,
que culminam com uma evolução divergente. Le Goff (2005) explica que a ruptura entre as
duas esferas do Império estabelece-se no século IV. Até então, os povos bárbaros já tinham
contato com os romanos, em razoável harmonia até certo ponto. Chegaram a realizar trocas
comerciais através de suas fronteiras e os romanos, por vezes, contratavam germânicos para
integrarem seus exércitos. Isto equivale a afirmar que as invasões ocorreram de formas
variadas, “seja no ritmo lento das infiltrações e de avanços mais ou menos pacíficos, ou no
das irrupções bruscas acompanhadas de lutas e massacres (...)” (p. 28).
Muitos dos povos chamados bárbaros eram de origem germânica e habitavam as regiões norte
e nordeste da Europa e o noroeste da Ásia. A convivência razoavelmente pacífica que estes
povos tiveram com os romanos perdurou enquanto o Império gozava de supremacia. A partir
da crise instalada desde o século III as relações se deterioraram e outros fatores externos ao
mundo romano, como crescimento populacional e econômico, acabaram por determinar as
necessidades expansionistas que culminaram com as numerosas invasões bárbaras do século
V d.C.
51
Os motivos dessas invasões foram, por vezes, mal interpretados por historiadores e escritores
dos séculos seguintes, no intuito de preservar a suposta superioridade cultural dos povos
romanos. Le Goff (2005) comenta que, na verdade, as causas destas invasões são pouco
importantes; as transformações e o que elas ocasionaram no panorama ocidental da Europa é
que devem ser consideradas. Entretanto, o historiador francês expõe que alguns destes
aspectos podem ter-se mostrado mais relevantes. Explicita que estes povos colocaram-se em
fuga, muitas vezes empurrados por outros povos bárbaros mais fortes. Os textos sobre estes
povos foram escritos, em geral, por pagãos herdeiros da cultura greco-romana que os
hostilizavam porque os bárbaros invadiam não apenas o território e sim a sua cultura, por
dentro e por fora, anulando por completo suas tradições e impondo novos hábitos e costumes.
Aqueles que já eram cristãos e viam no Império Romano o berço do Cristianismo também
sentiam a mesma repulsa pelos povos invasores. Na verdade, o que houve foi um conjunto de
fatores externos e internos ao Império Romano que possibilitou seu enfraquecimento e a onda
devastadora das invasões bárbaras.
Os povos bárbaros, muitos de origem germânica, fundaram diversos reinos no ocidente
romano. Foram reinos efêmeros em sua maioria, pois necessitavam de uma organização
administrativa mais eficaz. Apesar dos esforços de muitos chefes germânicos em manter as
instituições político-administrativas romanas, o funcionamento dessas instituições nem
sempre correspondeu às novas realidades e, por vezes, os elementos de populações
romanizadas se recusaram a colaborar com os germanos. Tal fato deve-se ao sentimento hostil
que se desenvolveu por verem-nos como conquistadores que se haviam imposto pela força das
armas.
Entre os principais povos bárbaros que se instalaram no ocidente, do século V em diante,
estão os Francos, os Lombardos, os Anglos, os Saxões, os Visigodos, os Suevos, os Vândalos,
os Ostrogodos, os Normandos e os Hunos. Cada qual ocupou uma região diferente e, por
vezes, ocuparam as mesmas regiões em épocas diferentes. Os reinos formados pelas invasões
desses povos foram um tanto confusos, pois se misturaram e conquistaram, entre si, riquezas e
territórios que passaram a dividir com a população romanizada.
52
2.2 IDADE MÉDIA: DAS DIVISÕES CRONOLÓGICAS À ARTE E CULTURA
A Idade Média foi, por décadas, um período histórico desprezado pela comunidade científica,
no que concerne às contribuições para o desenvolvimento do saber. Para muitos foi um tempo
em que o conhecimento esteve obtuso e, por vezes, até mesmo inexistente. Franco Jr. (1986)
expõe que para os homens dos séculos posteriores à Idade Média, naquele período
predominavam a ignorância, a barbárie e a superstição, grandes obstáculos ao
desenvolvimento intelectual.
O historiador salienta que vários segmentos da sociedade moderna tinham seus motivos para
aviltar o medievo: os burgueses capitalistas lamentavam a atividade comercial limitada; os
protestantes criticavam a preeminência da Igreja Católica; aqueles ligados às monarquias
absolutas desprezavam os reis fracos e a fragmentação política; os estudiosos racionalistas
lastimavam uma cultura fortemente ligada a valores espirituais. Conseqüentemente, os séculos
posteriores refletiram essas concepções através da herança intelectual herdada a partir do
período transicional para a Idade Moderna.
O interesse por estudos que abarcassem o período medieval e, principalmente, que trouxessem
novas informações aconteceu no século XX. Franco Jr. (1986) ressalta que o historiador tem
como função compreender a história e não julgá-la. A maior referência para o estudo da Idade
Média deve ser a própria Idade Média. O Brasil, entretanto, levou algum tempo para despertar
o interesse por esse importante período histórico, algumas décadas em relação aos Estados
Unidos e muitas em relação à Europa. A preocupação em se desvendar os supostos mistérios
do medievo vem em decorrência da compreensão da importância que o período histórico teve
na formação da civilização ocidental, da qual o Brasil faz parte.
Neste tópico, será apresentada uma divisão do período medieval que não se enquadra,
especificamente, nas divisões mais simplistas conhecidas como Alta e Baixa Idade Média.
Franco Jr. (1986) destaca que a Idade Média encerra um espaço temporal de,
aproximadamente, um milênio. Tempo este capaz de produzir um conjunto de caracteres
marcantes e específicos que permite ao homem situá-lo diferencialmente em relação a outras
épocas históricas. Este caráter peculiar é o primeiro indício de que a busca de um princípio e
fim para o período não se constitui em adição de conhecimento.
53
Muitos historiadores, por muito tempo, buscaram delimitar datas ou fatos que pudessem
marcar o princípio e o final da Era Medieval. Franco Jr. (1986) argumenta que, sendo a
história um processo (e não apenas um conjunto de fatos terminados), deve-se abdicar da
procura de um acontecimento que teria introduzido ou finalizado certo período histórico. É
claro que a periodização atua de maneira didática enquanto se estuda a história, pois a noção
cronológica dos fatos muito auxilia na compreensão e no raciocínio.
Para um estudo mais avançado não basta o acúmulo de fatos, datas e nomes; é preciso
compreender os processos internos e externos que moveram a roda da história da humanidade.
É justamente neste ponto que os historiadores discordam quanto ao uso ou não de uma divisão
periódica dentro do espaço temporal compreendido pela Idade Média. Mesmo em se tratando
de uma breve reflexão acerca desta fase histórica, a escolha de uma periodização neste
capítulo justifica-se pela revisão das estruturas humanas da Era Medieval, instrumento
fundamental à compreensão da importância da história nesta pesquisa, que objetiva
estabelecer uma análise literária do corpus escolhido.
As divisões do período medieval são controversas entre os historiadores. Embora haja certo
consenso quanto a dividir o período em fases que se mostraram mais ou menos consistente
internamente, isso não significa uma concordância plena. Em face destes percalços
conceituais, tomar-se-á como referência teórico-histórica as seguintes repartições: Primeira
Idade Média, Alta Idade Média, Idade Média Central e Baixa Idade Média.
9
Abrangendo cerca de um milênio, o período compreendido como Idade Medieval não
apresenta características estacionárias. Inicialmente, pode-se dizer que a Primeira Idade
Média guardou uma soma de aspectos antigos que iriam moldar as feições do medievo. Este
período estendeu-se do início do século IV a meados do século VIII. Segundo Franco Jr.
(1986), a característica mais marcante desta época é a lenta interpenetração dos elementos
compositivos de toda a Idade Média: a Igreja, os Romanos e os Bárbaros Germanos. O
desenvolvimento da conjunção entre estes três fatores determinou o desenlace com a
Antigüidade e principiou uma nova ordem social e intelectual, ainda que um tanto confusa.
9
FRANCO JR. Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
54
O prolongamento da primeira fase do medievo vem a ser o período conhecido por Alta Idade
Média, cuja maior expressão é o Império Carolíngio. Estendido por quase três séculos (do
século VIII ao século X), fase marcada por uma nova unidade política com Carlos Magno
que, por sua vez, não rompeu com as tendências adquiridas no período anterior, levando à
fragmentação feudal. De qualquer forma, não se pode negar uma unidade transitória ocorrida
graças aos esforços do líder que, vendo na Igreja a possibilidade de domínio social, buscou
uma aliança entre o poder governamental e o poder divinal. Assim, reconhecendo a Igreja
Católica como única herdeira do Império Romano, a dinastia de Carlos Magno necessitaria de
uma legitimação sacra para reafirmar sua relevância e posição.
Como característica preponderante deste período figura-se um acontecimento econômico e
demográfico ao mesmo tempo, que modelou a sociedade medieval: a ruralização. Este
episódio foi decorrente do processo de deterioração urbana iniciado com as invasões bárbaras
da fase anterior. Segundo Le Goff (2005), o próprio Império Romano sofria com a divisão
entre o Ocidente e o Oriente, o que, conseqüentemente, contribuiu para um isolamento entre
as partículas do Ocidente Romano. A produção agrícola destinada ao comércio entre os
impérios foi, aos poucos, limitando sua área de circulação, provocando o abandono de regiões
de cultivo e colaborando para que os campos vazios se multiplicassem. Assim, o panorama
medieval despontava com agrupamentos populacionais em áreas cada vez mais afastadas
umas das outras.
Outro traço de destaque nesta fase é a expansão da Cristandade. A Igreja imprimiu grandes
esforços no estabelecimento territorial cristão através da evangelização em terras pagãs. Tal
empresa se estenderia pelos séculos seguintes, buscando uma reformulação civilizacional por
toda Europa. Vale ressaltar que a Igreja, de certa forma, respondia de acordo com seus
interesses e limites aos anseios de um povo barbarizado e desorientado social, cultural e
espiritualmente. Não há como falar do papel da Igreja sem citar como pano de fundo, o
conjunto de fatores externos e internos que designaram a face exterior do período mais difícil
vivido pelo homem medieval. Le Goff (2005) explica que, se houve o preconceito das épocas
posteriores em rotular a Idade Média como “Era das Trevas” boa parte das crenças e pré-
conceitos teria resultado das impressões deixadas da segunda metade do século VI que,
segundo a divisão proposta por Franco Jr., ainda figuraria na primeira fase do medievo. No
entanto, como a história é um processo e não um conjunto de fatos cronológicos, o
desenvolvimento da vida pré-medieval até a chamada Alta Idade Média desencadeou
55
acontecimentos, hábitos e costumes que vieram influenciar os séculos seguintes nas mais
variadas designações.
O fim desta etapa, segundo Franco Jr. (1986), estaria relacionado à crise que se instalou no
Estado Carolíngio e também a uma nova onda de invasões por povos de diferentes regiões,
como os Vikings, os Muçulmanos e os Magiares. Iniciada no decorrer do século IX
desorganizou a grandiosa construção carolíngia devido à conjunção de golpes externos e à
desagregação interna. Le Goff (2005) comenta que a dissolução do Império Carolíngio deve
muito mais aos problemas interiores do que às novas invasões, pois os Francos jamais
conseguiram assimilar o sentido do Estado romano.
A terceira fase, chamada de Idade Média Central, engloba o período compreendido entre os
séculos XI e XIII. Respondendo às ações e realizações da fase anterior, o sistema feudal veio
a encontrar os meios propícios de instauração efetiva. Foi esta, então, a grosso modo, a época
do Feudalismo. Este se tornou, segundo Franco Jr. (1986), um instrumento de reorganização
que pôde proporcionar à sociedade medieval cristã um intenso progresso populacional aliado
a uma vasta expansão territorial. As Cruzadas foram a expressão mais conhecida dessa
expansão.
Os aspectos da crise do último século foram essenciais para o desenvolvimento do sistema
feudal, pois este respondeu aos problemas vividos pelo homem não apenas no caráter
econômico, mas também no social e no cultural. Até o final do século X as monarquias
européias experimentaram um período de retrocesso econômico em vista das constantes
guerras e invasões, da cessação do comércio e do baixo rendimento agrícola. Face à desordem
social e à violência generalizada, a insegurança manteve as populações isoladas durante muito
tempo. Todos estes fatores favoreceram a implantação do feudalismo.
De certa forma, o conjunto de fatores e aspectos que vieram a desencadear o novo sistema
feudal acabou por criar meios de atenuar o panorama caótico apresentado pelos séculos
antecedentes. Franco Jr. (1986) expõe que a economia se revigorou e se diversificou em
conseqüência da maior procura de mercadorias e da grande disponibilidade de mão-de-obra.
A própria crise impôs formas de combate ou de aproveitamento das situações em benefício
das mudanças iminentes. Vindo de um período conturbado, o feudalismo transformou esta
fase na mais rica do toda a Idade Média.
56
O período conhecido por Baixa Idade Média é, para muitos, o tempo transicional mais
marcante da história da humanidade. Abrange o intervalo entre os séculos XIV e meados do
século XVI. Submersa em crises e em busca constante de arranjos e desarranjos, a Baixa
Idade Média representou a gestação e o nascimento dos tempos modernos. Segundo Franco Jr.
(1986), a crise do século XIV foi resultado da vitalidade e da contínua expansão demográfica,
territorial e econômica testificada pelos séculos XI, XII e XIII, cuja expressão tornou-se tão
grandiosa que atingiu os limites possíveis de seu próprio funcionamento.
A crise atingiu as esferas econômica, social e espiritual. Em decorrência de uma sucessão de
más colheitas, conseqüência de condições climáticas desfavoráveis, a fome surgiu para uma
população que já ultrapassava as possibilidades produtivas do sistema feudal. Várias revoltas
camponesas ocorreram contra os senhores feudais ao passo que, nas cidades, os trabalhadores
pobres das guildas
10
também se rebelaram contra os mestres artesãos e os ricos comerciantes.
A crise espiritual figurou-se em dois importantes acontecimentos: o chamado Cisma do
Ocidente que, durante quase todo o século XIV, manteve a Igreja dividida entre Avignon e
Roma e o surgimento de movimentos místicos e reformadores que preconizavam a retomada
da pureza dos costumes cristãos.
Juntamente a mudanças e avanços, a rejeição à cultura medieval e a perquirição às fontes
originais da arte e do pensamento clássicos favoreceram o aparecimento de uma nova maneira
de enxergar a vida e as formas estéticas. Destarte, a conjunção do legado medieval e o resgate
da cultura greco-latina geraram o Renascimento. Os movimentos reformadores e místicos da
crise do século XIV propiciaram a recuperação, primeiro em nível mental, depois em nível
real, dos verdadeiros valores cristãos, livres das impurezas e heresias praticadas,
principalmente, pelo próprio Clero.
Segundo Franco Jr. (1986), o ritmo da história medieval acelerou-se, assim, ao passo que mais
descobertas e documentos puderam chegar até a atualidade. Infelizmente, os primeiros séculos
da Idade Média ainda guardam muitos mistérios; a fase madura e o final desta época, no
entanto, deixaram abundante documentação para conhecimento, análise e interpretação de
suas estruturas.
10
Associação de auxílio mútuo constituída na Idade Média entre as corporações de operários, artesãos,
negociantes ou artistas.
57
2.2.1 Cultura e arte medieval
É preciso compreender que entre estudiosos a história da cultura nem sempre manteve as
mesmas abordagens entre os historiadores. O significado da cultura e das artes, em geral,
sofreu mudanças consideráveis no que concerne a sua concepção como formas artísticas ou de
expressão estética. Franco Jr. (1986) explica que, por muitos séculos, a história cultural esteve
marcada por profundo elitismo, que também abrangeu a história social e política. O
entendimento acerca da cultura resumia-se à criação intelectual. Apenas os indivíduos
desenvolvidos intelectualmente seriam capazes de sustentar um talento artístico. A
contemplação científica da história das artes e cultura esteve, longamente, desvinculada do
contexto histórico.
A estrutura cultural do medievo apresenta relações intrínsecas entre a cultura popular e a
erudita, compreendidas, respectivamente, como folclórica e cristã respectivamente, ou ainda
clerical e laica. Neste caso, importa avaliar o grau de absorções e adaptações ocorridas entre
elas. Franco Jr. (1986) elucida que uma forte clericalização da cultura até o século XII será
encontrada. Entretanto, esse fenômeno não aconteceu de maneira completa, a ponto de
neutralizar os remanescentes psicoculturais da era pré-cristã. As mudanças sócio-políticas e
econômicas propiciaram um maior afastamento ou proximidade daqueles elementos,
principalmente no decorrer dos séculos XII e XIII. O ressurgimento de elementos antigos que
se refletiram na cultura medieval que se define como o princípio da trajetória para o futuro,
destacaria a cultura laica e humanista no meio social que caminhava para a Modernidade.
2.2.1.1 Primeira Idade Média e Alta Idade Média
A Primeira Idade Média, repleta de dificuldades humanas, proporcionou situações conflitantes
que se projetaram culturalmente, com variações de intensidade, pelos séculos subseqüentes.
Entre estas situações, vale lembrar a distância considerável entre a elite culta e a massa
popular, que, no entanto, no âmbito cultural, não se identificava com a atual estratificação
social. Da mesma forma, o apelo clerical representou uma sistematização e desafetação do
legado greco-romano, tendo sido adaptado às conturbações da época, resultando no
confinamento ocasionado pelo absolutismo religioso. Por último, segundo Le Goff (1980), em
decorrência da demasiada religiosidade, a cultura laica sofreu regressão com as dificuldades
materiais, com a insegurança espiritual e também com a fusão de elementos cristãos com os
58
bárbaros. Essas circunstâncias conflituosas fizeram reaparecer crenças, técnicas e forma de
pensar tradicionais, pré-romanas.
As relações entre a cultura laica e clerical estabeleciam-se a partir de um caráter biunívoco.
Por um lado, a cultura eclesiástica recebia alguns elementos da cultura laica porque certas
estruturas mentais coincidiam-se, o que causava até mesmo confusão entre o material e o
espiritual. Além do que, o clero necessitava conquistar a maioria populacional e, para tal, era
imprescindível que realizasse adaptações da sua cultura para facilitar o processo
evangelizante. Por outro lado, o mesmo clero postava-se com negação à cultura folclórica,
buscando anular sua influência, no intuito de impor “práticas, monumentos e temáticas cristãs
aos correspondentes pagãos, desfigurando manifestações folclóricas ao mudar seu
significado” (FRANCO JR., 1986, p. 127).
2.2.1.1.1 Literatura e Arte
A função da cultura e das artes recebeu concepções variadas durante todo o período medieval.
A intelectualidade imposta às artes limitava de certa forma, a livre criação, pois direcionada
para as realidades espirituais, detinha o desenvolvimento numa esfera puramente estática.
Relacionada à função das artes nesta época está o papel fundamental da literatura. Franco Jr.
(1986) comenta que a literatura foi muito influenciada pela tendência de se preservar e
cristianizar as obras antigas, muito mais do que criar. A originalidade das autorias não tinha
relevância; o importante era conservar a literatura clássica através dos trabalhos dos copistas
nos mosteiros. Difundia-se, portanto, o latim somente, por julgarem-no digno de tradição
literária, o que não acontecia com o idioma germânico. Contudo, o próprio latim também já
sofrera alterações e empobrecimento.
A literatura vem a ser um dos instrumentos mais completos para o conhecimento de uma
época. Huizinga (1985) expõe que é fato considerável a preservação privilegiada de
documentos escritos em detrimento dos artísticos. A literatura medieval, segundo o autor, em
especial a do fim da Idade Média, legou um acervo rico, com produções de todos os gêneros:
do mais elevado ao mais vulgar; do sério ao cômico; do religioso ao profano. A tradição
escrita não se restringiu à literatura, mas também elevou o valor dos textos oficiais e
documentos que auxiliam a compreensão do medievo.
59
Thoorens (1966) destaca que o nascimento das literaturas que circularam na Primeira Idade
Média deve-se, mormente, às reações sociais na época dos confrontos com os povos bárbaros.
A junção dos aspectos pagãos germânicos aos cristãos definiu substancialmente o panorama
artístico-literário da Idade Média como um todo. Como exemplo, o autor menciona a
literatura espanhola como nascida da reconquista de seu território; a literatura francesa
heróica como resultante da luta contra os árabes e da ação vitoriosa de Carlos Magno e seus
soldados; na origem das lendas que comporão a literatura germânica está a presença de Átila;
na Grã-Bretanha, na Escandinávia e na Islândia, a base das literaturas, como também o
fundamento das futuras nacionalidades, repousa sobre a oposição aos bárbaros do exterior.
Estas literaturas, entretanto, foram criadas por povos que precisavam alimentar-se das
tradições orais, numa tentativa de manter a identidade dos antepassados para consagrar a
própria identidade. No entanto, foram “forjadas em línguas vulgares pelos letrados latinos,
cuja formação se deve a livros que conservam o espírito da cultura greco-latina”
(THOORENS, 1966, p. 214). A Europa foi palco de ruínas em que as reminiscências do
classicismo latino uniram-se às ascendências étnicas e lingüísticas que se propalaram nas
lutas.
Franco Jr. (1986) aponta para três gêneros literários que se destacaram: um romano, um
cristão e um tipicamente medieval. O gênero romano abordava obras de cunho histórico, onde
se sobressaíram Gregório de Tours e Beda, o Venerável. Já o cristão é marcado pelas
hagiografias
11
e o medieval, propriamente dito, caracteriza-se pelo enciclopedismo, que serviu
de modelo para inúmeras obras nos séculos posteriores. Entre as obras mais elevadas estão a
Etymologiae, de Isidoro de Sevilha, e a De natura rerum, de Beda. As hagiografias foram de
extrema importância, pois representavam um gênero literário acrítico e edificante que visava a
confortar as almas, incliná-las à devoção e ao recolhimento, bem como a apresentar o santo
como um modelo a ser seguido. O sucesso de sua divulgação e proliferação foi expressivo de
tal modo que muitas adquiriram uso litúrgico.
As outras artes efetuavam uma espécie de síntese de elementos originados de fontes diversas.
Franco Jr. (1986) comenta sobre a preservação das técnicas da arte ocidental dos séculos IV a
VIII e das características arquitetônicas provindas da arte romana clássica. Dos germânicos,
conservou o cunho não figurativo e o geometrismo estilizado, próprio de tribos nômades.
11
Biografia de santo; escrito acerca dos santos.
60
Mesmo após as invasões bárbaras, os ocidentais continuaram a manter contato, através de
mercadores e missionários, com povos do Oriente, o que proporcionou certa influência,
especialmente, no hieratismo das formas. Até mesmo os povos mais distantes no tempo, como
os Celtas, deixaram traços na arte ocidental: os monges irlandeses contribuíram com as
iluminuras, legando a utilização de linhas abstratas e ornamentais. E, afinal, da arte cristã
primitiva a herança foi a temática e o simbolismo.
2.2.1.2 Idade Média Central e Baixa Idade Média
Na fase central da Idade Média, a preeminência exercida pela cultura clerical sobre a laica
sofreu um desgaste. Devido à necessidade provinda dos progressos econômicos da época (a
aristocracia eclesiástica e a laica disputavam acirradamente a apropriação dos excedentes
agrícola), a nobreza leiga enxergava no folclore o instrumento ideal para a sua afirmação
psíquica e material. Franco Jr. (1986) destaca a recém-formada classe dos cavaleiros, cuja
inspiração de identidade fora colhida nas tradições folclóricas. Houve, de fato, uma inversão
de valores neste sentido: a nobreza atual buscava fazer frente às antigas linhagens que havia
clericalizado, desde a época carolíngia, a sua cultura.
Num fenômeno bastante contrário, a cultura laica folclorizou elementos cristãos e também
simples acontecimentos inseridos na vida diária da Igreja. O autor ressalta, igualmente, a
questão de que essa folclorização não se deu apenas em nível urbano, com a elite laica; o
campesinato foi atingido em proporção ainda maior, pois sempre se manteve mais próximo às
fontes tradicionais de cultura.
Neste contexto diferenciado dos séculos anteriores, as relações entre o clericalismo e o
folclorismo denotam suas influências no campo da arte, que se destinava a um público maior
do que a literatura conseguia alcançar. O letramento mínimo da população vinha como o
melhor veículo de propagação dos valores eclesiásticos; ainda assim, necessitava adaptar sua
mensagem ao povo através da incorporação de elementos familiares à cultura popular. Então,
o amálgama ocorrido neste período não esteve, absolutamente, fora de controle das
autoridades clericais; era, sim, uma forma eficiente de conquistar a confiança das massas,
principalmente daquelas ainda não convertidas. Franco Jr. (1986), porém, esclarece que a
combinação dos elementos ocorreu de maneira diversificada no tempo e na intensidade, de
acordo com o quadro histórico mais amplo.
61
2.2.1.2.1 Literatura
A literatura da fase medievo-central esteve condicionada à bipolaridade cultural e ao idioma
utilizado. Duas fortes vertentes apareceram: o latim erudito, representando a cultura clerical e
o vulgar, a cultura popular. É sabido que as tradições populares, em que elementos pagãos
sobejam, estão mais impregnadas na linguagem vulgar. Franco Jr. (1986), no entanto, assinala
existir aí uma complexidade: “Na literatura latina, ao lado de uma produção claramente
erudita (crônicas, hagiografias, poesias de cunho clássico), havia uma de espírito popular e
mesmo antieclesiástica, a dos goliardos” (p. 136).
A dificuldade de entendimento e compreensão sobre os goliardos refere-se ao fato da
incerteza quanto à estratificação social desta classe. Franco Jr. questiona o fato de os
goliardos serem estudantes pobres e errantes, espécie de críticos da sociedade de seu tempo.
Aponta para a possibilidade de uma variabilidade social entre eles e a probabilidade de que
realmente fossem pobres, mas que detivessem elementos culturais ricos. Comenta ainda o
aspecto extremamente satírico, burlesco e erótico que divulgavam nas poesias. De qualquer
forma, a poesia goliardesca era erudita na língua e popular na versificação, na temática e nas
fontes inspiradoras.
O nome recebido deve-se à característica que tinham de apreciar o riso, o gracejo e de se
portarem contrários aos monges formalistas, que viam pecado em todos os deleites da vida.
Thoorens (1966) completa dizendo que o movimento dos goliardos, sua poesia alegre e em
forma de jogral, revelava um mal-estar mais compenetrado, pois representava a vontade de
livre expressão, de reconciliação com a vida, como se concebessem que o homem poderia
viver bem, em paz consigo e com Deus.
A literatura em língua vulgar manteve as mesmas relações ambíguas com a cultura: por um
lado apresentou textos de forte conotação religiosa e, por outro, divulgou mensagens
acentuadamente laicas. Exemplificam a literatura vernácula de cunho religioso as canções de
gesta, já registradas anteriormente. A literatura clerical concebeu o tipo ideal que a Instituição
Católica desejava intitular como herói: o cavaleiro das Cruzadas, portador de um halo de
sacrossantidade que o colocava como o correspondente leigo do santo na Terra.
62
A literatura vernácula que se contrapunha à de caráter religioso foi representada, sobretudo,
pelo conjunto de obras composto pela “Matéria da Bretanha”: lendas e contos folclóricos,
possivelmente de origem céltica. Não cabe neste tópico a discussão acerca dos entraves que se
opõem às descobertas e registros das verdadeiras fontes célticas e da transmissão, assim como
da literalização da oralidade celta, portanto, há que se destacar apenas os grandes ciclos desta
literatura.
Franco Jr. (1986) refere-se ao primeiro ciclo como aquele que se desenvolveu em torno da
figura do Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, nas narrativas de Chrétiens de Troyes.
As influências recebidas do medievo sobre estas obras recaem sobre uma clericalização a
partir do século XIII, quando o eixo da narrativa deslocou-se do rei para o Graal.
Incansavelmente discutida a sua origem, diz-se que o Graal, provavelmente, era um vaso
mágico da mitologia celta que foi transformado no cálice que, supostamente, teria recebido o
sangue de Cristo na cruz. A Demanda do Santo Graal, uma das obras selecionadas para esta
pesquisa, engloba narrativas concernentes à busca deste cálice sagrado. Os registros são
antigos e há mais de uma prosificação dos versos orais, demonstrando as novas tonalidades
adquiridas com a cristianização do herói cavaleiresco. Sobre este aspecto, mais detalhes serão
abordados posteriormente, apoiados nas referências da tradução de Heitor Megale, cujo texto
é reconhecido nacional e internacionalmente pelos avançados estudos.
O segundo ciclo da matéria arturiana tem como tema principal o amor que não correspondia à
concepção cristã de sentimento elevado, que a Igreja declarava como digno de Deus. O maior
representante desta fase é Tristão e Isolda, cuja história do cavaleiro da Távola Redonda
registra um amor adúltero pela esposa de seu próprio tio. O conceito de amor ou relação
amorosa, neste contexto, visto como uma relação adúltera é obra da visão cristão-católica e
não representa o mesmo entendimento para os laicos.
O terceiro ciclo da matéria da Bretanha reúne pequenas narrativas rimadas ou poemetos de
origem folclórica sobre o amor, a cavalaria e o envolvimento sobrenatural, freqüentemente
impulsionado pelo fantástico recebido das lendas celtas. De acordo com Franco Jr. (1986), o
maior expoente deste ciclo é Maria de França e essas narrativas receberam o nome de lais
bretões.
63
Outra obra de relevância na literatura cavaleiresca ocidental, que parece pertencer à mesma
temática do amor, também escolhida para esta pesquisa, intitula-se Amadis de Gaula.
Narrativa de cavalaria das mais famosas, cuja autoria original tem sido reivindicada por
alguns portugueses. Atualmente é atribuída a Vasco de Lobeira, um trovador do século XIII,
entretanto os registros mais antigos, possivelmente sua primeira versão conhecida, datam de
1508 e são do espanhol Garci Ordóñez de Montalvo. A despeito deste problema relativo à
autoria da obra medieval em questão, importa dizer que o Amadis possui características muito
semelhantes às novelas do ciclo arturiano, embora não se estruture em nenhum conjunto
determinado de lendas.
Alguns autores e críticos portugueses asseveram que o romance se filia, com certeza, nos
gêneros literários da matéria da Bretanha. A temática amorosa que aproxima a obra do
segundo ciclo arturiano é ainda bastante discutível. Entre os principais críticos destaca-se
Marques (1942), crítico português que distingue algumas características que colocam o
Amadis em posição diferente de Tristão e Isolda. Embora haja certa similaridade quanto à
temática, Amadis não carrega o conflito cristão-pagão no cerne da temática amorosa. Ocorre
que se em Tristão e Isolda há a questão do adultério posta em confronto com o verdadeiro
amor, em Amadis, o amor puro surge como uma “junção do elemento cavalheiresco ao
elemento sentimental, de influência nitidamente trovadoresca” (MARQUES, 1942, p. 15).
Marques dispõe o amor como “mola mestra” das ações heróicas do cavaleiro. Esta
característica seria distintiva das novelas arturianas, mas a obra apresenta semelhanças que as
aproximam. O ideal amoroso do Amadis, para o crítico português, designa incontestavelmente
uma conformidade com as cantigas trovadorescas da Idade Média portuguesa e este traço é o
que desvia a obra da matéria da Bretanha. Não nega, entretanto, as influências sofridas pelo
escritor quinhentista, de quem se tem registro da primeira versão escrita do Amadis, que
certamente conhecia o conjunto de lendas arturianas e, por isso, atribui à obra as
características que julga aproximá-la e, também, distanciá-la das novelas cavaleirescas mais
antigas:
O amor adúltero, tomado como forma natural e necessária do verdadeiro
amor; o fatalismo da paixão amorosa; a sua exaltação; certos aspectos
alegóricos e simbólicos de carácter místico uniam-se ao maravilhoso dos
contos célticos e davam a esta literatura um carácter estranhamente idealista
e sentimental. Nela, o amor, até aí de deminuta influência nas canções de
gesta, torna-se a razão determinante das acções heróicas, e o elemento
64
feminino surge, por sua vez, com a mesma feição que tinha nas canções
trovadorescas da língua de oc (MARQUES, 1942, p. 15-16).
Outro gênero na literatura vernácula contrapõe-se à temática religiosa – os fabliaux. Para
Franco Jr. (1986) constituem uma espécie de correspondente em língua vulgar da poesia
goliárdica. Pequenos contos versados, simples, mas carregados de comicidade grosseira.
Apresentavam certa semelhança com o teatro cômico clássico e detinham muitas
características orais; especialmente uma intensa crítica social. Numa época em que o elemento
feminino ganhava certo destaque através do culto marial e da imagem positiva divulgada
pelas cantigas trovadorescas, o fabliaux desvelava um forte antifeminismo, uma reação
masculina à pequena recuperação da imagem social da mulher representada pela Virgem
Maria e pela sublimação do amor inalcançável mostrado pela lírica trovadoresca.
Uma fonte inesgotável de medievalidade literária, nascida em princípios do século XII, é a
lírica trovadoresca. Considerando o aspecto correspondente às relações confrontantes entre as
culturas laica e eclesiástica, pode-se dizer que este gênero colocava-se numa posição
intermediária. Na historiografia literária, é concebido como a primeira escola literária
portuguesa, recebendo o nome de Trovadorismo.
Franco Jr. (1986) analisa o gênero a partir da bilateralidade apresentada pelas características
culturais do momento. Por um lado, a lírica trovadoresca sublimava o amor na sua forma
espiritual, assim ocultando o erotismo. Numa acepção religiosa, o trovador enfrentava a
impossibilidade da concretização física do amor, tornando tal circunstância um ato de
contrição. Numa acepção mais social, a subordinação do poeta à sua senhora assemelhava-se
à relação vassálica e também oportunizava um paralelo com o culto à Virgem Maria. Por
outro lado, a figura do trovador mostrava-se nobre e feudal, pois compunha música e letra
para que fossem interpretadas em jograis.
As composições eram chamadas de cantigas por serem sempre acompanhadas por canto e
instrumentos musicais. As cantigas eram manuscritas em galego-português e foram
colecionadas nos chamados cancioneiros, sendo que os mais conhecidos são: O Cancioneiro
da Ajuda, O Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Vaticana. A produção das
cantigas abordava temas freqüentes: o amor, o escárnio e o desprezo. Portanto, foram
65
divididas em Líricas e Satíricas e subdivididas em Cantigas de Amor e de Amigo (líricas) e
Cantigas de Escárnio e de Maldizer (satíricas).
As cantigas de amor normalmente traziam um eu-lírico masculino que cantava os atributos de
seu amor, a quem tratava como superior. Colocava-se sempre à disposição da dama, que se
assemelhava à figura do suserano e ele, sempre submisso, reproduzia a figura do vassalo. É
neste ponto em que se percebe a relação hierárquico-feudal. O eu-lírico canta a dor do amor
inalcançável e se põe como um prestador de serviços à espera de benefícios de sua senhora.
As cantigas de amigo mostravam um eu-lírico feminino, o que não quer dizer que a autoria
seja feminina, é importante lembrar. O eu-lírico canta o amor por seu “amigo”, que naquele
contexto significava namorado e aparecia acompanhada de amigas e de sua mãe. Igualmente
canta a dor de um amor, porém da ausência do amado e não da falta de correspondência.
Outro aspecto distintivo das cantigas de amigo é que parece não haver, implicitamente, a
relação vassálica que se vislumbra nas cantigas de amor. Geralmente, o eu-lírico feminino se
mostra uma mulher do povo.
As cantigas satíricas, divididas em de escárnio e de maldizer, apresentam uma temática
cômica e grosseira ao mesmo tempo. Nas cantigas de escárnio o eu-lírico satiriza uma pessoa
em particular. Era uma sátira indireta, recheada de sentidos dúbios e que não revelava,
abertamente, o nome da pessoa-alvo. Já as cantigas de maldizer traziam também uma sátira,
porém destituída de metáforas ou duplos sentidos. Por isso, percebe-se um desprezo bem mais
marcado do que nas cantigas de escárnio, onde a intenção maior é ridicularizar alguém. Nas
cantigas de maldizer é bastante comum uma agressão verbal à pessoa satirizada e, por vezes,
encontram-se até mesmo palavras de baixo calão. O nome da pessoa-alvo era revelado ou não.
Essas cantigas satíricas foram expressões poéticas que representaram o estado psicológico de
um tempo. É possível que denotassem as relações pessoais e sociais dos trovadores, bem
como abordassem assuntos polêmicos que afetassem uma determinada comunidade.
Atingiram a vida social e política da época, sempre num tom de irreverência. Foram escritas
de forma rica, apresentando vocabulário vasto, repleto de trocadilhos e outras figuras de
linguagem. Também fugiam às normas mais rígidas das cantigas líricas e acabavam por
oferecer novos recursos poéticos.
66
O século XIII desenvolveu uma literatura informativa que tencionava compilar todo o
conhecimento da época, a literatura enciclopédica. Franco Jr. (1986) julga que esse tempo foi
mais criativo em vários campos, mostrando-se hábil na sistematização do saber. Diversas
sumas de variadas temáticas: teológicas, filosóficas, científicas, hagiográficas surgiram.
Escritas em língua vulgar, La Divina Commedia e Le Roman de la Rose foram as mais
importantes na evolução cultural do período.
67
3 A MULHER NA IDADE MÉDIA: FEITICEIRAS E BRUXAS COMO FIGURAS DA
MARGINALIDADE
“A beleza física não vai além da pele. Se
os homens vissem o que está sob a pele,
a visão das mulheres lhes viraria o
estômago. Quando nem sequer podemos
tocar com a ponta dos dedos um cuspe
ou esterco, como podemos desejar
abraçar esse saco de excremento”.
Abade Cluny, século X.
«História do medo no Ocidente». In: J.
Delumeau, p. 318 (1989).
O elemento feminino da sociedade humana sempre representou papéis controversos, interna e
externamente. A história da humanidade registra a mulher em situações, posições e
desempenhos bastante variados e repletos de transformações ao longo do tempo e da
evolução. A sociedade estabelecida no Ocidente europeu convergiu ao centro de uma
comunidade fundamentada em diversas culturas que entraram em choque ao final da Era
Antiga. Como já exposto em tópicos anteriores, as invasões bárbaras, muitas vezes
consideradas o marco inicial da Idade Média ou ponto crítico da decadência do Império
Romano, propiciaram esta mescla cultural que veio a formar o Ocidente Medieval Europeu.
O papel da mulher não esteve, ao longo da história, necessariamente em crescente evolução,
como muitas vezes se avalia. O que é de conhecimento geral, a partir da criação do Ocidente,
principalmente a partir da Cristianização instituída como Igreja Católica, é o estigma
fundamentado no domínio patriarcalista da sociedade medieval. Mas há que se compreender
que este fato, praticamente oficializado durante o império de Carlos Magno, não corresponde
a uma progressão do que antes a mulher vivia na Idade Antiga. As culturas de diferentes
povos e tribos, que se situavam em localidades, muitas vezes, longínquas umas das outras,
permitiam o desenvolvimento social em direções as mais variadas e em posições distintas,
conforme a herança étnica e as tradições cultuadas.
No capítulo anterior discutiu-se que, culturalmente, outros povos (os celtas, por exemplo)
consideraram a mulher como represente do Bem. Não foi, no entanto, a única postura diante
do elemento feminino e a imagem da Deusa como companheira eterna do Criador. Há
registros de outras culturas antigas que, igualmente, delegavam à mulher uma posição de
destaque nas atividades em sociedade e em família, estando esta imagem ligada ou não à
68
divindade. Nem sempre o aspecto religioso foi determinante. A capacidade física
aparentemente frágil e compleição robusta, ao mesmo tempo, unidas à capacidade geradora de
vidas e da reprodução foram fatores de admiração, respeito e até mesmo temor por parte dos
homens, em muitas sociedades.
Da mesma forma, o conceito de mulher como um ser inferior não nasceu na Idade Média,
tampouco é criação da Igreja Católica. Já o Império Romano concebia a mulher como
naturalmente inferior. Macedo (1990) afirma que a sociedade romana excluía as mulheres dos
cargos públicos, da carreira administrativa e a relegava a casa, que, por sua vez, era
comandada pelo pai, pelo marido ou pelo sogro. A liberdade feminina era de tal maneira
cerceada que mesmo sendo a mulher juridicamente livre, estava presa aos interesses
familiares. Além do que, a liberdade condicionava-se à posição social em que uma dama se
encontrasse.
As diferenças no sentido mais cultural do que de gênero, estiveram sempre à frente do
mistério envolto na criação do ser feminino, da mulher. O gênero e as diferenças sexuais
seguiram o rastro do desenvolvimento cultural de cada ponto do globo. Houve muita
divergência e convergência, instalando-se aí a chave para a compreensão dos fatores que
formaram as opiniões diversificadas quanto ao papel desempenhado pela mulher. Isto não se
refere à questão de gênero, unicamente. Entretanto, pode-se entrever que estas questões
estiveram diretamente associadas ao modo da sociedade encarar as relações humanas, as
funções, os parentescos e as profissões. Incluem-se também os traços herdados das tradições
antepassadas, no que concerne às concepções de família, lar, hierarquia social e guerreira,
além dos aspectos que regulavam o modo de vida de cada nação, compreendendo-se como
unidade sócio-cultural.
3.1 A FAMÍLIA E A MULHER
O princípio da Idade Média foi um período bastante conturbado, dadas as incursões guerreiras
de povos estrangeiros ao Império Romano. Até o século IX as normas bárbaras tocaram
profundamente os povos europeus; nos séculos seguintes, até mesmo durante o auge do
feudalismo, entre os séculos X e XII, as leis germânicas bárbaras ainda permaneceram na
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cultura ocidental. De acordo com Macedo (1990), a mulher ocidental, fruto da mescla
cultural, gozava de um espaço restrito, juridicamente, à esfera doméstica e familiar; mesmo
limitada ao ambiente caseiro, não possuía privilégios.
A família aristocrática era, inicialmente, composta de forma linear pelos grandes clãs
formados. Todos que trabalhavam na casa agregavam-se à família, que não era determinada
apenas pelos laços consangüíneos. Deste modo, o grau de parentesco era amplo, propiciando
alianças e abarcando filiações. Do estabelecimento das relações feudo-vassálicas, esse quadro
foi se transformando num esforço de manter o patrimônio, uma vez que o feudalismo
condicionou o tecido social de áreas nobres da Europa. Assim, o parentesco foi perdendo a
linearidade horizontal anterior, abrindo espaço, cada vez mais, a uma verticalidade
descendente ou a descendência por meio da linhagem familiar.
Macedo (1990) acrescenta, ainda, que estas mudanças afetaram profundamente a camada
nobre da sociedade. Entre os séculos X e XI passaram a favorecer os componentes familiares
do sexo masculino, prejudicando a mulher no momento da sucessão da herança familiar. Mais
tarde, até mesmo filhos homens sofreram prejuízos na sucessão, pois somente aos
primogênitos era dado o direito de herdar o melhor do legado da família. Os irmãos menores,
por sua vez, estavam sujeitos ao irmão mais velho, o chefe da casa, tendo a todos os outros
subordinados a sua vontade. Tem-se registro de muitos filhos segundos e terceiros que
abandonavam o lar em busca da própria fortuna.
Esclarece o historiador que as mudanças ocorridas na forma de transmissão de bens
representam uma atitude em prol da não fragmentação do patrimônio familiar. A mulher,
neste contexto, era excluída da sucessão da família de origem ao entrar para a família do
esposo. Mesmo viúva, em sua nova família, a mulher não herdava os bens; apenas mantinha a
sua posse, quando recebidos no casamento. Aos jovens rapazes ainda havia a esperança de um
matrimônio satisfatório; era a chance de formar sua própria família e conjunto de bens, a
partir do dote que recebiam do pai da noiva.
As estratégias matrimoniais tinham por função organizar e controlar as relações sociais. O
casamento, sobretudo, não mais era do que um pacto entre duas famílias. A mulher exercia
uma passividade esperada pela sociedade: era sua principal virtude. Entretanto, poucas
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mulheres da aristocracia esquivaram-se dessa sujeição. Algumas damas do século XII e XIII
pagaram ao rei somas grandiosas de suas fortunas em troca da escolha de um novo casamento.
Os dotes poderiam chegar a valores altíssimos e isso não constituía vantagem para a família
da moça, pois instigava uma disputa considerável por parte dos rapazes, o que representava
uma ameaça aos bens de família. Devido a esta situação, muitos pais decidiam enviar suas
filhas aos conventos, condenando-as a se tornarem “esposas de Cristo”. Nesta época
registrou-se um aumento de estabelecimentos religiosos, em atendimento à estratégia de
proteção ao patrimônio familiar. Muitas vezes era menos dispendiosa a união com Deus do
que a conjunção matrimonial. Macedo (1990) conclui que o destino das mulheres aristocratas
esteve completamente vinculado aos processos de transmissão de bens materiais e
econômicos.
Uma vez escolhido o casamento como destino da mulher, é notório como as formas de poder
feudo-vassálicas se projetavam na relação conjugal. Amor, afeto e carinho eram
manifestações pouco comuns nessas uniões. Segundo Macedo (1990) “a concepção ético-
social do amor não se identificava com os compromissos e juramentos constantes nessa forma
de casamento” (p. 16). A mulher dirigia-se ao esposo como seu “senhor”, denotando assim a
transposição da vassalagem, do amplo domínio feudal, para o restringido meio doméstico.
O pacto matrimonial efetuado entre duas famílias, há que se destacar, privilegiava os
interesses da estirpe em detrimento dos pessoais, demonstrando o nítido objetivo da
conjugalidade: a continuidade da linhagem. Ao mesmo tempo em que a sociedade praticava
esta forma de relação conjugal, a Igreja propunha um outro tipo de matrimônio. No entanto,
vale ressaltar que o casamento proposto pela Igreja não foi concebido num clima total de
concordância entre o clero.
De acordo com Macedo (1990), havia dentro da Igreja três correntes de pensamento acerca do
matrimônio. A primeira era ascética e monástica e pregava a condenação à conjunção carnal,
julgando-a como a mácula do corpo humano e, por conseguinte, o maior empecilho à
contemplação divina; a segunda vertente pertencia ao clero secular que julgava o casamento
benéfico a todos, inclusive aos religiosos e, por fim, a terceira corrente defendia o matrimônio
desde que realizado entre leigos, condenando as relações amorosas entre padres e freiras. Esta
última corrente prevaleceu sobre as outras e, assim, a Igreja tornando a relação humana um
71
sacramento, pôde controlar a sexualidade e combater a fornicação. “(...) a união conjugal
tornar-se-ia veículo de controle do comportamento da sociedade” (p. 17).
A Igreja proferia um discurso acerca do casamento que continuava a beneficiar, sobretudo, os
homens. O matrimônio, sacralizado, garantia a estabilidade das relações dominadas pelo
elemento masculino, pois apesar de a Igreja consentir o sexo unicamente para a procriação,
ainda dispunha a mulher como ser naturalmente inferior ao homem. Essa visão foi
amplamente aceita em decorrência da interpretação literal das Escrituras Sagradas que
propagava a idéia de que Deus havia criado primeiro o homem à sua imagem e semelhança; a
mulher, entretanto, vinha como um ser secundário, à imagem do próprio homem, referindo-se
à narrativa bíblica pela qual Eva fora extraída do corpo masculino.
O casamento era, sem dúvida, forma de união entre o homem e a mulher, mas não os
igualava: a mulher permanecia marcada pela fatalidade de Eva e responsável pela queda de
Adão. Personificada, ela trazia o estigma do pecado e concentrava em si todos os vícios
humanos, principalmente aqueles tidos como femininos, como a gula, a luxúria, a
sensualidade e a sexualidade. Por todos estes atributos, o clero enxergava a dominação do
esposo e as dores do parto como um castigo eterno pela danação de Eva. A Igreja, o Clero
especificamente, não compreendeu o mistério do corpo feminino, bem como a complexidade
da origem da mulher, a maternidade, entre outras qualidades femininas.
Todos estes aspectos e fatores envolvidos na concepção da mulher na sociedade medieval por
seus contemporâneos provinham da fragilidade do sexo feminino e da sua fraqueza perante os
perigos da fornicação. A moral cristã não compreendia o prazer físico; julgava-o objeto de
declínio, de queda moral, por ser capaz de desviar o bom homem do caminho de Deus,
aprisionando-o ao próprio corpo. Macedo (1990) exemplifica bem o pensamento dos clérigos
em relação à mulher através das idéias de um bispo germânico do início do século XII, que
escreveu a respeito de algumas características eminentemente femininas: “(...) são
essencialmente pérfidas, frívolas, luxuriosas, impulsionadas naturalmente para a fornicação”
(p. 20).
Especificamente em relação à vida conjugal, o sexo apenas era permitido com vistas à
reprodução humana, sendo mesmo assim, extremamente vigiado pela Igreja. Os casais
deveriam prestar contas sobre suas atividades sexuais aos padres confessores. A Igreja
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determinava períodos em que a copulação deveria ser evitada e até mesmo proibida. Quando
se julgava que a descendência estava assegurada, o contato carnal era desaconselhado. O
maior controle e observância recaíam sobre os períodos em que a relação sexual deveria ser
severamente vedada, como nas festas religiosas, nos períodos de jejum, na menstruação da
esposa, na gravidez e resguardo após o parto e também durante o aleitamento materno. Há
registros de livros de penitências àqueles que burlassem as normas religiosas relativas à vida
conjugal.
O desejo sexual era fortemente repreendido pela Igreja, tanto mais para a mulher, mas
também para o homem. Segundo os preceitos religiosos desta época, o marido que amasse
demasiadamente a sua esposa e, desta forma, sentisse mais desejo de estar com ela, era
igualmente considerado um adúltero, pois jamais poderia usar a esposa como um “objeto de
prazer”, tornando-a sua amante. A esposa também não poderia tratar o marido como um
amante. Seu corpo, através do casamento, passava a ser posse do marido, mas sua alma
pertencia a Deus, por isso o sentimento aliado ao desejo carnal era indigno das almas do
Paraíso. O sistema jurídico, por sua vez, não cedia espaço para a fantasia, a paixão ou mesmo
aos prazeres mundanos, num esforço de manter a estabilidade dos poderes e das fortunas.
Portanto, na prática, não havia nenhum impedimento para o homem casado que desejasse
buscar prazer fora do ambiente conjugal. Isso mostra claramente que a simpatia exercida pelas
mulheres sobre os homens comuns não era muito diferente ou mais apurada do que sobre os
clérigos.
Sobre este aspecto negativo em relação ao sexo feminino, Macedo (1990) destaca que a
sociedade medieval dispunha de todos os meios que pudessem justificar a atitude de desprezo
dos homens pelas mulheres, como por exemplo a etimologia das palavras usadas para
determinar os sexos: “Para os pensadores da época, a palavra latina que designava o sexo
masculino, Vir, lembrava-lhes Virtus, isto é, força, retidão, enquanto Mulier, o termo que
designava o sexo feminino lembrava Mollitia, relacionada à fraqueza, à flexibilidade, à
simulação” (p. 21).
Era reservado aos homens, pais ou maridos, o direito de castigar suas mulheres, como se
castigavam uma criança, um empregado doméstico ou escravo. Tal direito era tomado como
inquestionável e absoluto; prevalecia a honra masculina no tocante à direção de sua própria
casa. Estes costumes, considerados legais, ocorriam tanto na cidade como no campo. Macedo
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(1990) reitera que o desapreço pelo sexo feminino tinha duas faces: por um lado denotava
temor e, por outro, desconfiança. Os homens temiam que as esposas lhes cometessem
adultério, lhes oferecessem filtros mágicos que provocassem insanidade ou impotência.
Principalmente a fragilidade viril, representada pelo temor da esterilidade, assustava muito
aos homens, o que, freqüentemente, tornava o momento íntimo um momento de disputa
sexual.
O matrimônio não figurava a eterna segurança para a mulher, pois mesmo casada nenhum
direito lhe cabia sobre a herança caso viesse a enviuvar. Era preciso mais do que isso, ser
somente a esposa não significava privilégios sobre a família. Sobretudo, deveria ser mãe de
filhos homens, garantindo seu lugar na família. Se viesse a se tornar viúva, com um filho
homem, teria certa ascendência, ao menos moral, sobre o filho. Se continuasse apenas esposa,
sem filhos, ou somente com filhas, um único destino lhe era reservado, em caso de viuvez: o
casamento sagrado com Cristo.
Um aspecto tão importante da criação como a reprodução humana foi tratado e propagado
como algo tão passível de repúdio e, igualmente, tão contrário à Lei Divina. Le Goff (2005)
reitera a questão da inferioridade atribuída à mulher, esclarecendo que não havia espaço de
honradez para o elemento feminino numa sociedade militar e viril, sempre preocupada com a
própria subsistência, condição comumente ameaçada pelas freqüentes batalhas. A própria
fecundidade, considerada um atributo apenas feminino, era considerada mais uma maldição
do que bênção, dada a interpretação sexual e procriadora do pecado original. Assim é que o
historiador francês conclui que muito pouco fez o Cristianismo para atenuar ou melhorar a
condição moral e material da mulher na sociedade medieval.
3.2 MODELOS E REPRESENTAÇÕES FEMININAS
No estudo da mulher medieval presentificam-se várias imagens. Entretanto, não haveria
espaço, profundidade ou precisão científica, se fosse abordada individualmente cada
representação feminina desse período. Por conseguinte, faz-se necessário descrever alguns
modelos femininos que se sobressaíram na sociedade medieval, seja por virtudes ou por
vícios. De acordo com Macedo (1990), buscar uma identidade da mulher medieval,
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referindo-se à sua materialidade torna-se tarefa simples, se forem levados em conta alguns
registros iconográficos, fontes riquíssimas da vida cotidiana, como as cenas da vida no campo
e na cidade, que retratam a mulher em várias situações diferentes. Por outro lado, o retrato
moral e seus atributos negativos ou positivos requerem um estudo mais apurado.
A literatura medieval está repleta da influência do Cristianismo e de seus disseminadores, os
clérigos. Por conseguinte, o leitor cientifica-se de que a construção da imagem feminina do
medievo sofreu uma substancial influência da mentalidade do clero. Sem deixar muito espaço
para polemismos, a Igreja divulgou dois pontos de vista contrários: a mulher perfeita e a
mulher essencialmente má. Macedo (1990) salienta que o segundo ponto de vista, o da mulher
naturalmente malévola, foi o mais difundido na sociedade (ponto de vista que será explicitado
posteriormente).
A concepção de perfeição da mulher esteve intrinsecamente associada ao culto à Virgem
Maria, conforme já foi assinalado. Entretanto, a popularidade da Virgem não aconteceu ao
mesmo tempo da criação da Igreja Católica; desenvolveu-se ao longo da Alta Idade Média e
afirmou-se entre os cristãos. No século V, mais precisamente em 431, o Concílio de Éfeso
proclamou a imagem de Maria como Mãe de Deus, anulando a imagem anterior de Mãe de
Cristo. A inserção e aceitação de seu culto sofreram uma longa evolução, estabelecendo-se,
fortemente, por volta do século XI.
A Virgem Maria, no século XII, por meio de Santo Anselmo e de Abelardo, foi celebrada com
grande alegria, ao revestir-se do símbolo da redenção feminina, contrariamente à figura de
Eva, considerada pecadora. Assim, apreciada a “nova Eva”, trazia o rótulo da pureza, da
castidade, da grandeza de alma e de coração, resumindo-se em santidade sua imagem. As
mulheres foram, então, extremamente consoladas ao receberem um modelo oposto à primeira
Eva, responsável pela perdição de todo o sexo feminino. Sendo assim, o culto marial alcançou
enorme popularidade, aparecendo em vários sermões, tratados e poemas feitos em louvor à
Virgem.
A literatura, em meio a todo material relacionado ao culto de Maria, produziu um tipo de
texto que merece destaque: a narração de milagres. Tratava-se, obviamente, de uma literatura
de cunho religioso e de sentido moral edificante. Interessante notar que a linguagem
comumente utilizada nestes textos era vulgar e não em latim erudito, apresentando uma
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organização narrativa simples e direcionada ao público feminino. Nas referidas narrativas, o
final sempre trazia uma lição de regozijo como resultado do aperfeiçoamento moral. Macedo
(1990) assevera que a parte central dessas narrativas é composta por transgressões, calúnias
ou pecados que envolvem os protegidos de Maria. Assim, a moral revelada pela narração dos
milagres esteve diretamente associada ao ideal de vida casta para o homem e o de virgindade
para a mulher.
Para alguns estudiosos, porém, o culto à Virgem foi um bálsamo para o infortúnio das
mulheres. Para outros, não se constitui em melhoria na condição feminina, trazendo somente
algum consolo para aquelas que se dispunham seguir o caminho pré-determinado. Le Goff
(2005) reconhece que o culto marial foi, de certa forma, uma promoção da mulher nos séculos
XII e XIII. Surge uma nova espiritualidade cristã, passando a vislumbrar uma possibilidade de
redenção para o sexo pecador, ao apontar para uma mudança de rumos da condição feminina
“(...) não está na origem, mas na conclusão de uma melhoria da situação da mulher na
sociedade. O papel das mulheres nos movimentos heréticos (...) ou quase heréticos (...) é o
sinal de sua insatisfação em face do lugar que lhe era reservado” (p. 285).
Deste modo, a promoção da imagem feminina de ente inferior à mulher inspiradora, à dama,
ocorreu entre os séculos XII e XIII, palco do desenvolvimento de uma cultura fina e brilhante
que floresceu no Ocidente. A cultura era profana, cortês, mas aristocrática – tempo em que as
cortes principescas abrigaram todo e qualquer tipo de artista criador da arte voltada aos
hábitos e costumes dos protetores. No campo social, a cavalaria predominava em prestígio
entre os nobres, que a regiam por um código de ética específico. Paralelamente, abria-se
espaço para outras atividades sociais que não diziam respeito à política e a batalhas.
Destarte, a corte passou a promover reuniões, bailes, concertos e recitais que se tornaram
tradição regulamentada. As cortes se transformaram em verdadeiras escolas da boa educação.
A cultura cavaleiresca foi lapidada através do estudo do manejo com as armas, da
aprendizagem de novas técnicas de luta que puderam ser desenvolvidas a partir das justas e
dos torneios. Ganhava nova força, assim, a vida intelectual, tendo sido de tamanha
importância neste período, para cavaleiros e damas, a educação no falar, as boas maneiras no
agir e a sutileza no jogo das palavras.
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Macedo (1990) destaca o papel imprescindível dos literatos deste período. Foram
responsáveis pelo novo modelo mental, impregnado de maneiras refinadas. O
desenvolvimento aflorou com as poesias, com as baladas e com os romances recitados nas
reuniões que entretinham toda a nobreza. Há que se ressaltar a corte francesa e portuguesa,
onde os trovadores, poetas e cortesãos profissionais introduziram uma revolucionária
modalidade da lírica cortês. Essa nova lírica tinha por tema central o amor e, pois, relegou às
mulheres um valor altíssimo, revelando um novo código de ética da nobreza. Estava criada a
nova palavra designativa para a mulher nobre: a dama. Cabe aqui neste parágrafo uma citação
do historiador Jacques Le Goff, que atribui às próprias damas a responsabilidade de criarem o
amor moderno:
E, claro, na literatura cortês, as damas inspiradoras e poetisas – heroínas de
carne ou de sonho: Leonor de Aquitânia, Maria de Champagne, Maria de
França, assim como Isolda, Guinevere ou a Princesa distante –
desempenham um papel fundamental: elas inventaram o amor moderno
(2005, p. 286).
Há, porém, um outro fator apontado à figura e a posição da dama. Os séculos XII e XIII
proporcionaram uma elevação da figura feminina resultante da nova concepção de amor e do
crescimento da intelectualidade entre damas e cavaleiros. Com o prestígio da poesia dos
trovadores e a ausência dos maridos que haviam partido para as Cruzadas, permitiu-se louvar
a mulher nas cantigas de amor. Os trovadores se envolviam, quase sempre, em amores ilícitos,
ainda que platônicos e as damas, na maioria das vezes, eram casadas.
Deste modo, muitas vezes se pretendeu que as Cruzadas favoreceram as mulheres do
Ocidente, por estarem sozinhas, trazendo-lhes um aumento de seus poderes e de seus direitos.
Tal melhoria na condição da mulher teria sido mais proeminente entre as da nobreza, cujos
maridos as abandonavam para defender os interesses da Igreja. Aparecem com certa
freqüência relatos sobre a mulher provençal, no que respeita às questões jurídicas e aos
direitos civis das damas. Diferentemente das que habitavam no norte, as da Provença
gozavam de relativa autonomia, pois conservavam a faculdade de herdar o legado de seus pais
ou de dispor dos bens do dote ou ainda de suas arras, quando viúvas. No entanto, deve-se
alertar que esta autonomia era limitada pelos direitos dos filhos à herança da mãe e,
posteriormente, por medidas adotadas pelas linhagens, com o intuito exato de preservar a
integralidade do patrimônio familiar.
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Alguns pesquisadores afirmam que dois momentos foram cruciais na melhora da condição
feminina, principalmente nas cortes francesas do sul e na Itália: o período carolíngio e o
tempo das Cruzadas. No entanto, uma controvérsia se estabelece quando os documentos
jurídicos desse tempo demonstram que, no que se refere à gestão de bens do casal, nos séculos
XII e XIII, a situação da mulher se agravara.
O que se pode concluir de tal perspectiva? Claro está que a imagem feminina sofreu
mudanças para melhor. Entretanto, as transformações não se generalizaram, mas restringiram-
se à esfera nobre e tiveram como agentes os artistas. Conclui-se que os homens da arte
diferenciavam-se muito dos homens da espada. Evidencia-se que os primeiros fossem mais
afetos aos encantos femininos, enquanto que os outros visualizassem muito mais a
materialidade prática da figura da mulher. Por isso, os fatos incríveis ocorridos nas cortes
deste período, que tiveram grandes damas à frente incentivando a arte e, conseqüentemente,
influenciando as mentes, incidiram suas maiores conquistas no campo das idéias e não, ainda,
na realidade física das mulheres. Não se discute também que as damas nobres foram
privilegiadas, porém, a mulher contribuiu, significativamente, com suas mãos hábeis no
trabalho de casa para a evolução positiva da sua imagem no campo e nos gineceus. Mas não
se ignora o fato de que as idéias é que movem as práticas, ainda que ambas não ocorram ao
mesmo tempo.
A lírica trovadoresca promoveu a visão moderna do amor, atribuindo-lhe pureza e encanto,
mas voltando-se para uma dama inacessível, muitas vezes fluídica. Não foi esta, entretanto, a
única dama surgida nesta fase. Macedo (1990) comenta que é impossível traçar uma
caracterização feminina baseada na criação literária desses romances, ao considerar a sua
intensa produção. No entanto, evidencia-se a grande dificuldade em especificar a figura
feminina por meio da literatura medieval deste período, de forma geral.
Retomando o fato de que a proposta desta pesquisa está pautada na teoria literária da
personagem de narrativa ficcional, buscando um paralelo entre o real e o fictício, os relatos
históricos sobre a mulher constituem-se uma rica fonte elucidativa quanto a sua função e
papel nas novelas de cavalaria.
A História revela a existência de figuras femininas transgressoras perseguidas pela sociedade
da época: as bruxas e as feiticeiras. Macedo (1990) assevera que é inegável o fato de as
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mulheres nobres terem contribuído na difusão da literatura cavaleiresca deste período,
ratificando as transformações acerca dos conceitos negativos em torno da sua figura.
Exemplifica com a figura extraordinária de Leonor de Aquitânia, como a grande responsável
pelo desenvolvimento e propagação dos romances que compuseram a “Matéria da Bretanha”,
entre outros gêneros literários. Esses romances retratavam temas relacionados ao Rei Artur e
os Cavaleiros da Távola Redonda, populares neste período, constituindo-se um reflexo da
sociedade cavaleiresca e da aristocracia de seu tempo.
Diferentemente da dama dos trovadores, as mulheres sempre estiveram presentes nestas
histórias. Todavia, a inserção delas não se resumia às citações poéticas de damas
inalcançáveis, e sim como personagens reais em suas ações. São mulheres fortes e frágeis ao
mesmo tempo, modelos a serem seguidos pelas damas da nobreza, pessoas da realidade. Entre
as mais famosas destaca-se Isolda, rainha da Cornualha e amante de Tristão, cavaleiro da
Távola Redonda e também Guinevere, esposa do Rei Artur e amante de Lancelot. De acordo
com Macedo (1990), estas não foram as únicas heroínas desses romances, mas sem dúvida,
foram as mais proeminentes. Considerando a produção literária cavaleiresca um vasto campo
a ser explorado, o autor complementa: “A vastidão do ciclo literário apresenta inúmeras
personagens femininas. De obra a obra, o tratamento reservado a elas teve particularidades”
(p. 51).
Esta citação de Macedo é importante, pois reflete um aspecto contemplado nos objetivos da
pesquisa: o estudo e análise das particularidades da imagem da bruxa e da feiticeira nas duas
diferentes novelas de cavalaria escolhidas como corpus. As obras A Demanda do Santo Graal
e Amadis de Gaula fazem parte de períodos distintos da Idade Média. Por isso, torna-se de
suma importância a observação sobre as diferenças vividas nos períodos, bem como o
proceder das massas e das nobrezas em face às transformações iminentes. Que existem
dissimilitudes entre as personagens tidas como feiticeiras ou bruxas em cada uma das obras é
fato bastante discutido neste projeto. Cabe à pesquisa descrever os aspectos relacionados a
essas peculiaridades, buscando suporte no contexto histórico do qual fizeram parte os
escritores, anônimos ou não, dessas novelas.
Como a História caminha de mãos dadas com as alterações promovidas pelas idéias, o campo
literário cavaleiresco, com o passar dos anos, acabou por se tornar obsoleto no que respeita à
visão majestosa da dama. O número de personagens femininas nas obras circulantes do
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período provocou um enfastiamento do louvor exagerado à mulher nobre. Macedo (1990)
explica que os últimos romances de Chrétien de Troyes, um dos principais autores do ciclo
arturiano, já denotavam uma progressiva depreciação dos papéis femininos. Expõe o autor
que as mulheres deixam de ser a parte central da narrativa para se tornarem personagens
laterais, isto é, para servir de referência ou de prêmio aos cavaleiros errantes, perdendo,
inclusive a complexidade psicológica. A cortesia amplia o espaço para as características
masculinas dos cavaleiros elevando-se seus valores. Exemplifica com Perceval, esclarecendo
que
o amor terreno entre um homem e uma mulher é substituído pela inspiração
espiritual e mística. O cavaleiro não luta pela dama, mas para encontrar o
Graal, o cálice que continha o sangue de Cristo. A última visão que temos de
Perceval é a de um homem solitário, ao lado de um eremita... e com Deus.
(p. 54)
Registra-se o início do declínio da imagem feminina, cruelmente denegrida na produção
literária urbana dos séculos XIV e XV. Embora a cortesia continuasse apreciada por uma
parcela da sociedade, principalmente entre os eruditos, outros gêneros literários foram
aparecendo e ganhando prestígio entre a população urbana e os diferentes níveis sociais.
Refletindo, assim, sobre outros valores que prosperavam em meio a grande diversidade nas
cidades, a valorização do pensamento burguês foi implacável para a deterioração da imagem
da mulher. É neste período, segundo Macedo (1990), que a misoginia, antes implícita, tornou-
se explícita.
Uma das obras que mais demonstra a mudança no ponto de vista relativo à mulher é o Roman
de la Rose. De dupla autoria, recebeu influências bastante diversas, uma vez que os autores
não trabalharam conjuntamente. O primeiro autor, que inicialmente concebeu a história, foi
Guillaume de Lorris, por volta de 1236. Entretanto, deixou-a sem uma finalização. Macedo
explica que o escritor procurou retomar a tradição cortês em todo o seu sentido, fazendo do
amor o tema central, enchendo-o de alegorias com muita habilidade. Quarenta anos depois,
com a tradição cortês já sofrendo de exaustão, Jean de Meung decidiu continuar a obra,
acrescentando-lhe muitos versos e, especialmente, desviando o tema central original para os
interesses da sociedade burguesa. Como comenta Macedo (1990), o escritor continuador era
parisiense, viveu numa atmosfera bem diferente do primeiro autor e, conseqüentemente,
imprimiu à obra uma concepção bastante realista do amor, denotando uma expressa aversão
pelo sexo feminino. Segundo suas idéias, a razão e a natureza do homem é que deveriam
ajustar as relações entre os sexos.
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Assim, atributos negativos que eram tidos como naturalmente próprios da mulher, como a
ingratidão, a traição, a ambição e a vaidade, foram fontes inspiradoras para muitos contos
deste período. Incluem-se, também, uma crítica ferrenha ao casamento, nesta época já
sacramentado. Várias obras, segundo Macedo (1990), tiveram como tema central os
sofrimentos, infortúnios e misérias sofridos pelo homem casado. Subentende-se, então, que
tais vicissitudes foram decorrentes da convivência com uma mulher. A crítica à mulher,
portanto, penetrou profundamente no espírito humano desses séculos. Autores de lugares
distantes e de culturas diversas foram influenciados pelo Roman de la Rose, em sua
continuação. Todavia, uma pergunta se estabelece: a mulher, tão atacada, tão denegrida,
manteve-se sempre obediente e submissa a essa concepção moral de sua própria condição? Se
a resposta fosse positiva, não haveria tantas obras escritas em defesa dos direitos do homem e
dos homens casados. Provavelmente, as mulheres tenham sido indomáveis quanto aos abusos
sofridos e, comumente, não tenham se comportado como desejado.
3.3 FEITICEIRAS E BRUXAS: FIGURAS DA MARGINALIDADE FEMININA
A mulher não foi a única a sofrer com a marginalização. Destaca-se que qualquer diferença
entre as pessoas, seja na conduta, seja na aparência física, que pudesse causar espanto,
estranheza, ou surpresa era motivo suficiente para que se buscasse um meio de afastar as
esquisitices alheias dos entes queridos, principalmente das crianças, seres mais facilmente
influenciáveis. Assim, pessoas portadoras de alguma deficiência física ou de alguma doença
contagiosa, como a lepra, por exemplo; ou com distúrbios mentais ou comportamentais e
pessoas seguramente livres em sua conduta, como prostitutas, cafetões, mendigos e andarilhos
estiveram à margem da sociedade considerada “normal”, ou seja, à margem das pessoas
agentes da moral imposta pela Igreja cristã.
A atuação da mulher foi mais marcante no que concerne aos conhecimentos ocultos da
natureza, transmitidos de geração a geração. No campo, essa realidade foi mais comum e
menos atacada por muito tempo. Na cidade, a tolerância às mulheres conhecedoras de
benzeduras, ervas medicinais e simpatias contra fatos indesejáveis foi mais curta e, ao mesmo
tempo, manteve oculta a aceitação de muitos, na necessidade de alguma cura emergencial.
81
Em geral, a marginalidade das mulheres a ser retratada neste tópico refere-se, especialmente,
às feiticeiras ou bruxas. Estando em ambiente urbano ou rural, o preconceito ocorreu com
mais ou menos intensidade; as perseguições alcançaram maior ou menor nível, de acordo com
a época e com a região. Entretanto, não se pretende aqui formar opiniões acerca dos
perseguidores ou mártires. A intenção é retratar um quadro, mais próximo à realidade
histórica, levando em conta as concepções de alguns historiadores e/ou estudiosos do assunto,
para mostrar de que forma as condutas sociais determinaram a imagem que se teve da
bruxaria e da feitiçaria. É, portanto, de suma importância que se coloque em evidência,
aspectos relacionados à origem das práticas mágicas e ao início das maiores intolerâncias
humanas entre as sociedades medievais.
Revela-se importante o papel da Igreja Católica quanto à disseminação do poder do Mal entre
a população, com a intenção clara de desvirtuar o homem do caminho de Deus e da salvação.
A profusão do Mal, porém, foi conveniente para a afirmação das crenças cristãs e do poder do
Bem. Justifica-se o papel da Igreja como única entidade poderosa para combater, em suas
raízes, o Mal representado pelo Demônio que usava as pessoas mais fracas em sua fé como
instrumentos de ação maléfica.
Todo este contexto condicionou a Idade Média. No entanto, ressalta-se que a figura da bruxa
ou da feiticeira sofreu alterações ao longo do tempo, bem como esteve mais ou menos em
evidência, conforme a região ou época. Segundo Franco Jr. (1986), a Idade Média Central e a
Alta Idade Média foram mais generosas com a figura fantasmagórica da bruxa e com a figura
misteriosa da feiticeira, principalmente à época da segunda prosificação da Demanda do
Santo Graal. Amadis de Gaula, concebida algum tempo depois, possui características muito
semelhantes às outras obras (por isso, pertencente ao ciclo arturiano) e recebeu, entretanto,
influências sociais de um tempo em constante mudança que já prenunciava o fim dos
romances de cavalaria nos moldes mais tradicionais. A imagem da bruxa e da feiticeira, nesta
época, também sofrera alterações, provocando um clima de medo, mistério e terror no homem
dos séculos XIV e XV.
É a partir do século XIV que a mulher recebe o estigma maligno de bruxa. As feiticeiras
passaram a ser vistas como servidoras do demônio e o estudo desta “religião” ou culto
demoníaco passou a ser objeto de interesse de muitos homens do clero, tornando-o, muito
82
mais do que uma ameaça social, um ataque às forças representadas pela Igreja e por seus
membros. A perseguição às mulheres e homens ligados às práticas mágicas começou a tomar
forma e, é importante salientar que não somente a Igreja teve grande participação neste
processo, mas também os juízes seculares e o próprio povo, que dominado pelo temor à ira de
Deus e pela idéia pavorosa do Inferno, muito contribuiu na denúncia, busca e apreensão de
supostos criminosos.
Cabe então, neste tópico a introdução de alguns conceitos propostos pelo historiador brasileiro
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, no tocante às práticas mágicas do Ocidente cristão com
enfoque sobre a conceitualização da bruxaria e da feitiçaria. Também estarão em destaque,
conforme conveniência do assunto, outros autores que apresentam interpretações acerca do
papel das mulheres através da marginalização devido à identificação das mesmas com bruxas
ou feiticeiras. Entre estes autores estão Jacques Le Goff, Hilário Franco Jr. e Jean-Michel
Sallmann.
A evidente marginalidade social atribuída à mulher e, conseqüentemente, às bruxas ou
feiticeiras não deve ser interpretada unicamente como uma esquivança relacionada ao sexo ou
ao comportamento sexual das mulheres. Obviamente que este aspecto está intimamente
associado ao processo de marginalização, porém não é o único fator determinante. Deve-se
salientar que grande parte dos seres marginalizados esteve ligada a algum tipo de heresia,
comportamento ou atitude contrária aos dogmas da Igreja Católica e que este dado se revela
muito mais significativo do que a simples asserção acerca das diferenças sociais e sexuais
entre homens e mulheres.
3.3.1 A feitiçaria
O fato de a Idade Média ter recebido o rótulo de misteriosa e, até mesmo, envolta em trevas
deve-se, em parte, à concepção que o homem medieval tinha a respeito do mundo que o
cercava. Analisando o traçado histórico, o ser humano do medievo ainda estava em fase de
descobrimento (ou de conhecimento) de si mesmo e de suas relações com o ambiente. Trazia
na memória, impressas em seu subconsciente, as lembranças longínquas de povos
antepassados, bem como resquícios de suas culturas. Entrechocando-se com povos
estrangeiros, na mesma situação, é bastante natural que as pessoas se encontrassem em
constante estado de dúvida, temor, incompreensão, necessitando de algo ou alguém que as
83
direcionasse para o caminho certo. Abriu-se, assim, o espaço para as mentes mais avançadas e
mais desenvolvidas que julgavam (e eram julgados) ter um pouco mais de esclarecimento
quanto ao papel da humanidade sobre a Terra. Estes tiveram a autoridade em suas mãos e
puderam servir ao povo menos esclarecido como verdadeiros líderes, pastores ou guias.
Neste contexto, é fácil compreender a inaceitabilidade da orientação proposta por estes
supostos líderes ou guias. A Igreja cristã fixou-se como a entidade capaz de orientar o homem
medieval no caminho de Deus; entretanto, poucos havia que não se enquadravam nos moldes
sociais sugeridos por ela e, em se tratando de mentes tão desenvolvidas quanto às dos
clérigos, não poderiam conjugar dos mesmos ideais, uma vez que a concepção acerca do
divino diferia em muito em sua origem. Os que discordavam dos dogmas religiosos católicos
e, de alguma forma, buscavam compreender ou praticar outras maneiras de se encontrar com a
divindade, ligavam-se às tradições culturais (folclóricas, religiosas ou sociais) e não viam com
simpatia o esforço empregado pela Igreja de banir elementos pagãos e culturais, ou propor um
sincretismo entre os símbolos pagãos aos rituais cristãos.
Deve-se salientar que a mentalidade medieval esteve cercada por elementos que a
caracterizaram como psicologia coletiva. Franco Jr. (1986) esclarece que os séculos XI ao
XIII oferecem mais documentação sobre este aspecto, o que não anula os séculos anteriores e
posteriores em relação a isto. O historiador ressalta que o referencial de todas as coisas, para o
homem do medievo, era decorrente do sagrado, característica psicossocial muito comum em
comunidades agrárias que, por dependerem da natureza para a manutenção do ciclo de vida,
ficavam sujeitas às forças desconhecidas e incontroláveis pela mão humana. É bastante
compreensível o temor gerado por tal circunstância: temor em relação às colheitas, às
epidemias, às intempéries, enfim, à vida futura. As afirmações de Franco Jr. refletem as
afirmações do início deste sub-tópico: o desconhecido era temido por não haver meios de
controlá-lo. O homem encontrava-se à mercê das forças da natureza.
A busca por uma segurança frente a um ambiente, muitas vezes hostil, foi, portanto, uma
preocupação constante na vida do homem medieval. Franco Jr. (1986) assevera que por estas
razões, a medievalidade procurava por escapatórias num mundo além do real, além do
sentido. Por isso é que, vivendo sob o signo do desconhecido, o homem tentou encontrar
refúgio e, quiçá descanso, tranqüilidade e conhecimento, num mundo imaginário que se
mostrasse em seu mundo concreto. As palavras do historiador explicitam esta afirmação:
84
Não havia propriamente aquilo que chamamos de sobrenatural: a própria
palavra surgiu apenas no século XIII, no contexto do desenvolvimento de
uma nova concepção de natureza. Ocorriam freqüentemente, isso sim,
hierofanias ou “manifestações do sagrado” em setores da vida que hoje
consideramos profanos, diferenciados do campo “religioso”, como a política
ou a economia. Por exemplo quando o sobrinho de Carlos Magno, Rolando,
é morto pelos inimigos na Espanha, em toda a França chove, venta, troveja,
escurece, a terra treme, fenômenos que continuam a ser considerados
naturais, porém revelando algo mais naquele contexto, a dor pela morte do
herói. Ou seja, o “sobrenatural” se mostrando no “natural”, fenômeno de
todas as religiões, mas especialmente importante no Cristianismo, centrado
na maior hierofania possível: Deus se fez homem (p. 151).
É o mais puro retrato da concretude da religiosidade medieval. O homem necessitava sentir o
aspecto real e concreto de sua própria crença, daí os costumes que surgiram relacionados à
prática cristã católica, como as peregrinações, o culto a relíquias e a imagens, as Cruzadas. A
presença de anjos e demônios era tão comum como a presença de uma visita em casa. As
exortações e os exorcismos tornaram-se parte da vida, reforçando a dualidade Bem e Mal e
alimentando a importância atribuída às forças maléficas.
Foi, portanto, neste contexto mental que a figura da feiticeira se insere como transgressora das
normas divinais impostas pela Igreja. Isto significa que, por tentar compreender as forças da
natureza de outra maneira que não pela interpretação bíblica, as pessoas que lançavam mão de
conhecimentos antigos, pré-cristãos, ficaram relegadas à margem do padrão sócio-cultural
aceito pelas autoridades eclesiásticas. Todavia, é preciso salientar que o homem medieval, por
estar sujeito às intempéries imprevisíveis da natureza, tinha grande interesse (mesmo que
teimasse em ocultar) em descobrir, conhecer e desvendar os meios de controlar as forças
naturais, e a figura de uma mulher ou homem que dominasse esses poderes era, por demais,
atraente. Portanto, o conhecimento pagão, oriundo de antigas civilizações, repleto de imagens,
poções, filtros, rituais, receitas naturais e procedimentos que visavam à influenciação sobre
outrem foi objeto de interesse, estudo e, até mesmo, de cobiça.
Nogueira (2004) afirma que o desenvolvimento do conceito de magia, a partir do século XII,
está calcado sobre as relações que o povo estabeleceu com a comunidade evangelizadora e
cristianizadora que veio sobrepor crenças, práticas e rituais antigos por novos pensamentos
acerca de um deus supremo. Explica que durante o processo evangelizante, quando o
paganismo ainda possuía força social, a magia se constituía em uma crença integrante do
sistema religioso pagão, em contraste e oposição à religião. Isto quer dizer que a religião
85
demonstrava o sistema de crenças a partir de dualismos: o paganismo se colocava como a
esfera do Mal e o Cristianismo como a esfera do Bem, numa relação horizontal de forças que
representava a luta entre os vícios e as virtudes, em igualdade de condições.
Para o autor, essa circunstância reflete a política evangelizadora praticada pela Igreja, sujeita à
autoridade eclesiástica, que permitiu a permanência dos antigos costumes, num esforço de,
pouco a pouco, poderem manipulá-los a ponto de torná-los obsoletos, esquecidos e, até
mesmo, sem efeitos. Entretanto, os resultados não foram alcançados completamente com
êxito. As marcas de uma tradição, crença ou cultura coletiva mostraram-se indeléveis no
processo deletério movido pelo Cristianismo sobre as forças do Paganismo, e como
conseqüência, legaram à posteridade as chamadas supertitiones. Para um leitor atento, este
termo se auto-explica e justifica. Assim, o que o processo causou foi uma perda gradativa das
relações dos costumes com os antigos sistemas de crenças e, para desapontamento geral do
Clero, tal situação tornara-se incontrolável, pois os clérigos não possuíam meios adequados
para conter ou erradicar o poder deste fenômeno de supertitiones.
Ainda deste modo, e ultrapassando muitos e vários obstáculos à evangelização a partir da
política da esquivez, a Igreja tornou-se absoluta e concentrou o poder a seu serviço.
Conseqüentemente, pôde mudar a condição horizontal da luta entre o Bem e o Mal,
estabelecendo novos conceitos e dispondo as relações, agora, de forma vertical e sobreposta,
claramente mostrando como força superior o Bem acima da inferioridade do Mal. Nogueira
(2004) esclarece que as relações assim dispostas mostravam uma qualificação de crenças em
inferiores e superiores, deflagrando um terror e repugnância em relação à magia, no tocante
ao universo imaginário do medievo. Deste modo, as divindades pagãs, embora percebidas
como entidades reais, passaram a carregar um fardo eminentemente negativo.
O combate ao paganismo tornou-se intenso e qualquer prática estranha aos dogmas católicos
recebia o rótulo de “maldita”. Nogueira (2004) assinala que:
Do combate ao paganismo, e a todas as práticas a este vinculadas, os
teólogos procuraram delimitar o campo de ação e os efeitos da magia,
colocando-a em oposição à religião como pura manifestação do Mal e
contando com a intervenção de uma “divindade” maléfica: o Diabo (p. 31).
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A partir das relações estabelecidas entre o povo cristianizado e a Igreja, o conceito de magia
pareceu absorver uma necessidade coletiva em enxergar em uma figura, homem ou mulher,
um representante da vontade de uma comunidade. Daí o buscar contínuo do contato entre
pessoas comuns e pessoas especiais, escolhidas pelos “deuses”, através de dons
aparentemente divinos, como capacidade intelectual aguçada, inteligência marcante, astúcia
saliente, memória prodigiosa, habilidades com plantas e animais, capacidade telepática e
adivinha, entre outros dons naturais atribuídos a magos e magas. Segundo Nogueira (2004), o
mago não exerce seus poderes através dos fenômenos sobrenaturais, mas sim intervém na
ordem natural das coisas, isto é, transformando o que sempre pareceu incompreensível para o
povo num universo inteligível e passível de manipulação pelo conhecimento de práticas e
segredos ocultos.
Assim, compreendendo num âmbito geral o conceito de magia para o homem da Idade Média,
há que se mostrar o significado e o lugar da feitiçaria e, conseguintemente, o da feiticeira.
Sendo a magia um fenômeno que representa uma ação de vontade, a diferenciação dos
conceitos relacionados à bruxaria e à feitiçaria reside dentro desta ação, ou seja, na sua
prática, no meio em que atua e na maneira de sua desenvolução.
Nogueira (2004) comenta, ainda, a complexidade de se compreender as diferenças entre estas
duas figuras devido à universalidade das práticas mágicas. Assim, partindo para uma distinção
baseada em fatores históricos de formação arquetípica, o historiador brasileiro ressalta o fato
de o termo ‘feitiçaria’ estar vinculado à idéia de “algo feito”, tendo relações com a palavra
latina fatum, que significa destino. Para alguns autores, a origem está associada à magia
erótica, de função realizadora de desejos e pulsões sexuais. Vinda da magia desenvolvida na
Grécia, a feitiçaria estaria intimamente atada às operações mágicas que visavam atender às
paixões amorosas. Explica que a feiticeira agia como uma intermediária nos casos amorosos,
efetuando trabalhos mágicos juntamente a técnicas e a observações comuns e correntes nos
contextos amorosos.
Duas idéias principais são apresentadas pelo autor: a imagem arquetípica da mulher que
encanta e enfeitiça os homens, fazendo-os de verdadeiras marionetes. Os termos “encantar” e
“enfeitiçar” são carregados de conotação erótica. Esta imagem está associada a uma figura
clássica da mitologia grega, Circe. A outra idéia refere-se a um outro lado feminino, o da
tragicidade representada pelo forte apelo sexual junto à frustração de um desejo. Tal
87
circunstância ocasiona a prática do mal, em decorrência de vingança passional. Esta idéia está
associada à figura mitológica de Medéia. Por conseguinte, à feiticeira é essencial a existência
de ambos os conceitos comentados acima para formar o conjunto de características que
determinarão o seu campo de atuação. “O mundo da feitiçaria é o mundo do desejo, do desejo
eminentemente passional, que a tudo se sobrepõe para conseguir uma resposta para uma
paixão não correspondida ou proibida” (NOGUEIRA, 2004, p. 43).
As atividades comuns da feiticeira envolvem a utilização de ervas e ungüentos, preparados
especiais para diversas enfermidades, principalmente àquelas advindas do coração, sempre
necessitadas de orientação psicológica. Dessas atividades resultavam conhecimentos positivos
que foram transmitidos da feiticeira greco-romana à sua primeira correspondente ocidental: a
feiticeira medieval. Como já apresentado anteriormente neste mesmo tópico, durante a Idade
Média, devido ao conceito mental impresso às práticas mágicas, a feitiçaria ficou relegada
unicamente ao domínio do Mal.
Le Goff (1980) sintetiza as formas como a Igreja triunfou sobre a cultura folclórica dos
camponeses. Para o historiador francês três foram os meios principais pelos quais a cultura
eclesiástica procedeu para o combate ao paganismo: a destruição, a expunção e a
desnaturalização dos costumes e crenças antigos. Os dois primeiros meios referem-se à
sobreposição de temas, rituais e imagens cristãs aos correspondentes antecessores pagãos. O
terceiro meio utilizado, e segundo o autor, o mais importante, refere-se à manutenção parcial
das formas, acompanhada de mudanças radicais em seus significados. Assim, a postura da
Igreja do século XI, por exemplo, mostrou-se contra especialmente as crenças, punindo a
estas e não as ações mágicas, uma vez que não demonstravam a concretude da fé. Para ilustrar
esta afirmação, uma citação que Nogueira (2004) faz de Burchard de Worms, em suas
instruções a bispos e padres a respeito de superstições populares e a forma de puni-las:
Acreditastes ou participastes nesta impiedade, que uma mulher por
malefícios e encantamentos pode transformar a mente dos homens,
transformando ódio em amor e amor em ódio, e através de feitiços possa
roubar ou destruir os bens humanos? Se acreditastes ou participastes um ano
de penitências nas festas legítimas (p. 44).
Um outro aspecto importante a declarar é a necessidade que os homens da Idade Média
tinham da existência e presença da feiticeira: ela era como uma terapeuta de males físicos e
sociais. Toda a sociedade buscava seus auxílios, desde os mais pobres aos mais abastados e
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até mesmo a nobreza. Sua atuação em uma aldeia chegava às terras mais distantes e a fama
lhe trazia clientes. Portanto, Nogueira (2004) destaca que a consciência medieval retoma da
Antigüidade Clássica a ação benéfica da magia, que, por sua vez, fundamenta a existência da
boa feiticeira. Esta, na visão popular, utilizava seus conhecimentos oriundos de séculos de
práticas acumuladas de feitiçaria para amenizar ou curar enfermidades.
Em suma, a feitiçaria é um fenômeno arquetípico social. Suas origens remontam a antigos
sistemas agrícolas de inclinação matriarcal, em que a mulher era responsável não somente
pelo cultivo da terra, como também servia de sacerdotisa. Nogueira (2004) ressalta que a
associação destes cultos neolíticos com aqueles praticados na Antiguidade greco-latina é
bastante significativa, pois que retrata a sobrevivência da feiticeira dentro de uma nova
estrutura mental. No ambiente medievo-ocidental, num esquema coletivo, a feiticeira se
encontrava intrinsecamente ligada à realidade de dois sexos, um subjugador e outro subjugado
e, igualmente, à tentativa deste último de inverter ou superar esta situação através de práticas
e ações psicossimbólicas e materiais. Daí a atribuir-se termos como fascínio, sedutora,
encantadora não só à figura misteriosa da feiticeira, mas também à mulher comum. Estas
palavras, usadas freqüentemente para designar a ação feminina sobre a masculina, refletem o
nível condicionante do sexo dominador da vida amorosa.
A feitiçaria, rural nos tempos remotos, vem para a cidade durante o período clássico da
Antigüidade e estabelece quase que um ofício bastante popular na Roma Imperial, mas sofre
uma redução de atuação na Alta Idade Média, apenas vindo alcançar êxito e popularidade
novamente com a reurbanização da Europa. Assim, pode-se concluir que a feitiçaria era uma
prática essencialmente individual e de caráter urbano: as cidades abundavam em problemas
humanos que necessitavam de pessoas mediadoras em quem se pudessem depositar
esperanças e desejos. Nogueira (2004) alerta para o fato de que não se deve ignorar a
existência de feitiçaria no ambiente rural da Idade Média, entretanto, sua atuação urbana é que
foi relevante no que condiz ao processo civilizacional vivido pelos povos que formaram o
ocidente medieval.
3.3.2 A bruxaria
O fenômeno da bruxaria muito se difere da feitiçaria, em especial no tocante à opinião
pública. Este fato se faz relevante à medida que a bruxaria somente acontece através da
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importância e, conseqüentemente da possível comprovação de sua existência, que as pessoas
da Idade Média atribuíam à protagonista mágica, muito mais do que a própria bruxa poderia
se proporcionar. Isto implica em dizer que as noções, descrições e características que existem
hoje acerca da figura da bruxa provêm de documentos articulados por terceiros, ou seja, não
há registro feito pelas mãos de próprias bruxas a respeito de suas atuações na Terra. Todas as
referências em torno da imagem bruxesca foram legadas pelos homens da época e, desta
forma, a visão predominante que chegou aos dias atuais foi, eminentemente, humana,
masculina e repleta de interpretações influenciadas pela sociedade cristianizada.
Nogueira (2004) defende a idéia de que a bruxaria, ao contrário da feitiçaria, foi uma prática
mágica rural e de caráter coletivo, assumindo no imaginário de uma comunidade um papel
bem mais passivo do que a feitiçaria, uma vez que dependia do juízo e da deliberação das
próprias pessoas de uma coletividade mesmo para existir. O autor salienta ainda que essas
distinções recebem maior ou menor aceitação entre estudiosos de vários segmentos, como a
História, a Filosofia e a Antropologia, também tocando nos conceitos da Sociologia. Assim,
cita Evans-Pritchard, autor da obra Witchcraft, oracles and magic among the Azande, que
tornou clássica para os antropólogos uma distinção entre a feitiçaria e a bruxaria: para
Pritchard, a bruxa não necessita de rituais, não pronuncia encantamentos e não utiliza poções
ou filtros mágicos; ela se constitui numa ofensa imaginária, isto é, um ato psíquico. As
feiticeiras, estas sim causam danos aos homens através de seus rituais e atos maléficos
mágicos que ultrapassam a margem do psíquico e alcançam a materialidade em seus
resultados.
Destarte, para as bruxas e para as feiticeiras, os meios de se alcançar um desejo são deveras
diferentes, embora para ambas os fins sejam bastante semelhantes. Nogueira (2004) comenta
que esta conceitualização feita por Pritchard foi aplicada à coletividade de Azande, e não deve
ser tomada amplamente para toda a comunidade européia. No entanto, respeitando as devidas
distâncias, há que se compreender que a distinção proposta pelo autor é de grande ajuda para
esclarecer o problema psicológico relacionado à bruxaria em uma determinada coletividade.
Entre os historiadores, segundo o autor, existe uma controvérsia entre os conceitos de bruxaria
e de feitiçaria. Porém, parte dos estudiosos aceita que, apesar de a distinção antropológica
sugerida por Pritchard apresentar um uso bem limitado, a feiticeira utiliza objetos materiais
enquanto que as bruxas não. Seguindo a linha antropológica, as feiticeiras são seres reais e
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palpáveis e as bruxas, seres irreais, estão no nível do imaginário. Os historiadores, porém, não
concordam com esta assertiva, pois há registros documentais de mulheres acusadas de
bruxaria e que foram condenadas por realmente tentarem causar prejuízos a outras pessoas
através de desejos maléficos, sem, no entanto, utilizarem-se de técnicas mágicas.
Há que se concordar com Nogueira sobre a dificuldade de se estabelecer uma distinção. Há
que se considerar, ainda, a confusão mental ocorrida em fins da Idade Média em relação à
“epidemia das bruxas”, que veio agravar o universo mágico atribuindo-lhe toda sorte de
horrores, contaminando todas as práticas mágicas, ligadas à bruxaria ou não, associando-as
diretamente aos “agentes de Satã”. Aponta, então, para uma situação peculiar que se
desenvolveu na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, evidenciando a desordem mental no que
concerne às atividades mágicas. Duas facções comportamentais se revelaram. Uma defendia a
punição a todos aqueles que se utilizassem de poderes mágicos, sem distinção dos fins e sem
consideração quanto ao grau de controle sobre tal poder. Para esta facção, até mesmo as
superstições eram malignas ou tinham origem em Roma, o que significava bruxaria. Em
absoluta oposição a este grupo, estavam aqueles que distinguiam as boas e as más feiticeiras
pelo resultado de suas ações e, no caso das bruxas, o que proporcionava a distinção era o grau
de controle sobre seu próprio poder encantador.
Nesta perspectiva, as bruxas seriam as verdadeiras executoras das vontades do demônio,
enquanto que as feiticeiras exerciam um comando sobre suas ações, não estando sujeitas a um
mestre. Para a ortodoxia religiosa, o interlocutor era passível de recuperação, portanto,
dependia esta recuperação dos graus de participação no universo mágico. Assim é que
marcadamente em fins da Idade Média, viu-se desenvolver uma sistematização das
participações em rituais de bruxaria, que vieram a se tornar estudos sobre o demônio, isto é, a
demonologia. Nogueira (2004) expõe, desse modo, que a priori a prática da bruxaria envolvia
um pacto demoníaco e que, por toda a Europa, buscou-se legislar tentando separar outras
práticas mágicas do universo da bruxaria. A bruxaria representava o grande Mal a ser
vencido, uma prática herética, oposta à religião e que culminou, através da adoração do Mal,
com a criação conseqüente do crime horrendo de apostasia.
12
12
Com referência à religião, apostasia se constitui em abandono da fé de uma igreja, especialmente a cristã;
também abandono do estado religioso ou sacerdotal.
91
Em relação às origens da bruxaria, apesar de inúmeros estudos e pesquisas em diversas áreas
do conhecimento, seus resultados ainda são controversos. Para alguns autores, como Jean-
Michel Sallmann (2002), a bruxaria nada mais é do que um modo de representação do mundo
e das forças telúricas e invisíveis que animam este mundo. Para o autor, de todo o contexto
comentado até agora no que concerne à descrição da situação mental coletiva da Idade Média,
em seus séculos medianos e finais, e sob a influência da heresia e seus conceitos, é que nasceu
o mito da bruxaria. Precisamente o século XV foi de grande importância para a delimitação
dos poderes da bruxaria e, principalmente, para a difusão desastrosa da mesma através dos
movimentos persecutórios realizados pelo povo e pela Igreja, com a instituição do Santo
Ofício.
Nogueira (2004) comenta que o termo bruxaria aparece, pela primeira vez, no ano de 589 e se
relaciona diretamente ao campo. Por isso é bastante comum a citação da bruxaria como
fundamentada no meio rural, estando este distante das facilidades da cidade e, portanto, mais
facilmente alienável a uma idéia fantástica. Cita as idéias de Charles Lancelin (La sorcellerie
dês campagnes): “por sua própria essência, a bruxaria só pode evoluir em um meio carente de
instrução como a população camponesa. Não é na cidade onde se encontra a verdadeira bruxa,
mas sim nos campos” (apud NOGUEIRA, 2004, p. 57). Outra consideração relevante de
Nogueira refere-se ao desenvolvimento da bruxaria, intimamente, ligado ao sucesso do
Cristianismo. Sallmann, do mesmo modo, explica que o nascimento do mito da bruxaria
associa-se à Inquisição e o século XV: “A bruxaria é uma invenção do século XV, à qual o
procedimento inquisitorial confere uma estrutura orgânica” (2002, p.20).
Por intermédio das leituras, entende-se que Nogueira parece concordar com Charles Lancelin
no que respeita à ambientação da bruxa no espaço rural. Sustenta a afirmação de que o campo
guardava uma presença mais intensa de tradições antigas e gozava de uma certa liberdade
quanto à ortodoxia religiosa. Desta forma, o historiador brasileiro dispõe a coletividade do
final da Idade Média como influenciada pelo dualismo religioso propagado pela heresia
Cátara. Esta heresia pregava certa igualdade entre os dois poderes, o Bem e o Mal, porém
aqueles que condenavam os Cátaros acabaram por lhes conferir uma importância ainda maior,
ampliando enormemente o domínio do Mal. Em conseqüência, Satã abria os braços e
alcançava uma porção populacional cada vez maior e incrementava a ação de seus agentes, as
bruxas.
92
Oficializado pelos juízes cristãos, o culto demoníaco os teve como principais testemunhas da
repressão aos poderes malignos. A bruxa tornou-se uma espécie de concubina do diabo,
realizadora de feitos conferidos ao demônio. Representava o irreal através dos resultados de
suas ações maléficas e, ao mesmo tempo, o real e material palpável a que se podia perseguir,
punir, torturar e banir de uma determinada sociedade, uma vez que não se tem notícia de que
algum tribunal da Inquisição ou mesmo os juízes seculares tenham aprisionado o próprio
Demônio para “averiguação” e punição.
Sallmann (2002) considera a bruxaria, em toda a extensão de suas atividades, como um mito
criado e construído pelos juízes inquisidores que passaram a perseguir não somente bruxas,
mas outros tipos de heréticos com o mesmo ardor. Liga a bruxaria ao surgimento do mito
demoníaco e às ondas de caça às bruxas, que ocorreram em diversos lugares, com mais ou
menos intensidade. O autor comenta que todos estes fatos históricos devem ser situados no
contexto extremamente conturbado dos séculos XV e XVI, quando a cristandade ocidental
encontrava-se dividida pelas heresias e, posteriormente, pela ruptura da Reforma Protestante.
Portanto, o autor sugere que a bruxaria tenha sido uma espécie de resposta às tribulações
religiosas sofridas pelo povo da época.
As angústias do homem medieval deste tempo fortaleceram a coexistência de Deus e do
Demônio, fazendo com que este dualismo se tornasse parte do próprio universo medieval,
evidenciando um verdadeiro campo de batalha entre as facções de um e de outro lado.
Nogueira (2004) explicita que o Diabo aparece como que assumindo uma posição na
hierarquia feudal, pois que oferece proteção e poder em troca de total submissão e
subserviência, tal qual a relação entre suserano e vassalo. Esta relação, segundo o autor,
denota a espontânea rebelião da bruxaria contra a ortodoxia, o que indica um distanciamento
da feitiçaria e da magia, ainda que estas práticas mantivessem outras proximidades. Os
malefícios praticados pelas feiticeiras gozavam de uma importância secundária para o
universo das bruxas. Estes não representavam grandes feitos ou a concentração do Mal; o que
realmente condenava as bruxas era a noção de que recebiam seus poderes em decorrência de
um pacto deliberado com o Diabo. Tal a grande distinção entre a bruxaria e as outras práticas
mágicas.
A síntese do Mal, na bruxaria, não consiste em causar danos a outrem, mas sim no
conciliábulo com o Demônio, prática de caráter herético, em que existe a deliberada e
93
espontânea renúncia a Deus em prol da adoração ao Diabo. É por isso que a bruxaria foi, via
de regra, a grande inimiga da Cristandade nestes séculos de perturbação religiosa. A Igreja
temeu não conseguir terminar a obra do Redentor. Lutou de todas as formas até encontrar um
meio de purificação da alma, uma vez que o corpo material já havia pendido ao Inferno. O
fogo da redenção significava o alcance do perdão divino. Não importava ao Clero se a bruxa
havia praticado mal a alguém ou a alguma comunidade inteira; só o fato de ser bruxa já
implicava em pena mortal, afinal era a figura da bruxa a verdadeira desertora do exército de
Deus. Parece clara a noção de que a própria Igreja promoveu a imagem de Satã e de seus
agentes num esforço de apregoar a fé cristã e o poder do Bem, mesmo se valendo de práticas
que não condiziam com os preceitos do Cristo. Da mesma maneira, afiguram-se os grandes
benefícios que a Igreja obteve com a elevação do Mal e com a perseguição aos agentes do
Demônio. Sallmann (2002) conclui que uma das características mais comuns dos homens
medievais destes séculos, já dentro de seu declínio, foi a promoção da imagem de Satã como a
concentração maligna de todos os infortúnios. O autor, sabiamente, resume a atuação da
Igreja em relação aos excluídos:
A crença na existência de uma seita de adoradores do Demônio é atestada
desde o século XI e constitui o estereótipo da exclusão praticada pelo clero
em relação aos grupos heréticos ou pretensos heréticos. Para legitimar a
repressão, os que protestavam eram apresentados à opinião pública descritos
da maneira mais sombria. Assim nasceram os temas da adoração do Diabo,
da execração da religião cristã, da missa negra, do assassinato ritual, do
canibalismo, da promiscuidade sexual. A maior parte dos movimentos
heréticos foi acusada dessas abominações (...) (p. 24).
Encontram-se pontos de convergência entre alguns autores, mesmo que as considerações
tenham sido feitas em sentidos diferentes. Apesar de a origem verdadeira da bruxaria e
feitiçaria estar sob uma nuvem de mistérios, dadas a imprecisão de registros históricos e as
divergentes interpretações de estudiosos, um fator concordante parece estar presente na
maioria das afirmações entre os pesquisadores: bruxaria e religião, ou mesmo bruxaria e
Igreja sempre estiveram intrinsecamente unidas, ainda que representando, cada uma, a face
distinta de um poder.
A literatura medieval nunca desprezou totalmente as referências ao mundo mágico. Menções
a uma realidade fantástica onde habitam seres extraordinários, animais espetaculares e
pessoas dotadas de poderes extra-sensoriais sempre povoaram o imaginário medieval e
alimentaram os temores, bem como estimularam a curiosidade científica e espiritual. Deste
94
modo, é bastante evidente a permanência de imagens como as da bruxa e da feiticeira fora
deste ambiente fantástico e habitando, principalmente, a realidade humana. Da mesma
maneira que a razão atualiza os atos litúrgicos, também renova a relação existente entre o
mundo real e o imaginário, alimentados pela mente humana.
Feiticeiras e bruxas continuam a existir entre os seres humanos. As mudanças sofridas
encontram-se na esfera do conhecimento acerca de seres fantásticos e também da percepção
humana. Ora, isso equivale a dizer que as personagens fantásticas são as mesmas, o que se
alteram são as interpretações atribuídas a elas ao longo do tempo.
A mulher medieval e a feiticeira ou bruxa existentes no corpus da pesquisa serão postas em
confronto, de acordo como são apresentadas pelos seus autores. Suas características físicas e
comportamentais serão delineadas para estabelecer-se o contraste entre ficção e realidade,
personagem e pessoa, segundo a teoria literária que apóia a proposta de pesquisa. A Demanda
do Santo Graal e Amadis de Gaula serão, no próximo capítulo, analisadas tendo como
referência a História, ressaltando o seu valor literário, numa discussão teórico-literária sobre a
questão do reverso da figura feminina.
95
4 O REVERSO DA FIGURA FEMININA NAS OBRAS: AMADIS DE GAULA E A
DEMANDA DO SANTO GRAAL
Configura-se neste capítulo a importante tarefa de se estabelecer uma abordagem teórico-
crítico-literária, tendo como cenário a contextualização histórica. A proposta de análise das
personagens bruxas e feiticeiras existentes nas obras Amadis de Gaula e A Demanda do Santo
Graal fundamenta-se na teoria da personagem, vislumbrando-se a sua construção, a partir das
informações históricas discutidas nos capítulos anteriores, objetivando demonstrar as
semelhanças e diversidades, distâncias e proximidades que existem entre a ficção e a
realidade. Destarte, personagem e pessoa irão assumir destacada posição entre todos os outros
fatores que influem diretamente na narrativa.
Literatura e História formam um duo intricado e complexo de sentidos que impregnam o ser
humano, esteja este em qualquer situação de vida: pessoa comum, trabalhador, nobre, servo,
escritor, leitor, narrador, entre outras tantas. Bastante presumível é o fato de que as ligações
entre Literatura e História sempre influenciaram gerações e continuarão a influenciar. Poder
analisar alguns aspectos convergentes e divergentes destas ligações tem sido um privilégio de
estudiosos e a prioridade deste trabalho.
As obras estão representadas no panorama literário das novelas de cavalaria da Idade Média.
Entretanto, sendo este um intervalo histórico demasiadamente extenso, faz-se necessária a
constatação de características distintas em cada uma das obras, no que se refere à construção
literária e a aspectos de formação histórica e aos momentos em que circularam pela Europa
medieval, como também aos anseios dos ouvintes e/ou leitores atentos de cada período.
A cavalaria nem sempre foi a mesma no decorrer dos séculos medievais. Sofreu mudanças
físicas e de ordem ideológica que transparecem nos textos característicos que exaltam a figura
do cavaleiro. Importante é ressaltar que este trabalho pretende centrar a atenção em
personagens femininas secundárias, fantásticas e, quase sempre, marginais à narrativa e à
História. Provenientes do ambiente pagão mesclado ao cristão, presente nas novelas
cavaleirescas, estas personagens revestiram-se de mistério, incompreensão e, ao mesmo
tempo, fascínio. Exerceram e continuam a exercer, uma intensa atração sobre os leitores, que
96
as fizeram se elevar dos cantos escusos para povoar o imaginário fantástico das gerações até
os dias de hoje.
As bruxas ou feiticeiras constituem uma parte freqüente dos elementos de cunho pagão que
conviveram ao lado dos elementos cristãos nas novelas de cavalaria. Essa convivência, até
certo ponto pacífica e harmoniosa, não ocorreu de forma desordenada nem tampouco
inesperada. Este assunto, especificamente a respeito da vivência conjunta de aspectos pagãos
e cristãos, constitui parte relevante para a análise das obras, pois que reveste um dos objetivos
deste trabalho. Sua essência repousa nos elementos constitutivos da figura da feiticeira ou
bruxa, que recebeu ambas as influências em sua roupagem medieval.
É preciso comentar que antes do advento da Cristandade, a feitiçaria antiga esteve presente
em todas as civilizações a que se tem conhecimento. O que as diferenciava eram os ritos de
acordo com os panteões de cada cultura. Desta forma, deve-se entender o termo “pagão” após
a vinda do Cristo e a instituição do Cristianismo como religião monoteísta e universal. O que
permite dizer que apenas em paralelo com os dogmas e crenças cristãs é que a feitiçaria ou
elementos sobrenaturais podem ser considerados pagãos. Por isso, é importante salientar que a
Idade Média como período histórico, tendo servido aos propósitos do Catolicismo, formou os
conceitos relativos ao paganismo, ou seja, a tudo quanto se colocava além da interpretação
materialista dos evangelhos do Novo Testamento.
Com base nestas considerações, a partir de agora, iniciar-se-á uma introdução relativa ao
ambiente das novelas de cavalaria, às suas características literárias e históricas, bem como os
detalhes de formação, a fim de apresentar um panorama deste gênero literário narrativo.
Igualmente incorporar-se-ão as obras corpus desta pesquisa, a saber, Amadis de Gaula e A
Demanda do Santo Graal, destacando-lhes o fio narrativo que compõe os conteúdos
diegéticos de cada uma delas.
4.1 NOVELAS DE CAVALARIA
As novelas de cavalaria trazem muito mais do que apenas informações literárias. Cabe
afirmar, antes de uma descrição mais pormenorizada, que o termo “novela”, utilizado no título
e ao longo deste trabalho, se constitui uma escolha pessoal entre outros termos também
97
usados para designá-las como “romance de cavalaria”, “narrativa cavaleiresca” ou “livro de
cavalaria”. É importante esclarecer que existe, para alguns críticos literários, uma
diferenciação formal entre estas denominações; não no que respeita à cavalaria, mas,
principalmente, às possibilidades entre “novela” e “romance”. Entretanto, há especialistas que
não consideram relevantes tais distinções e, por isso, encontram as classificações “novela de
cavalaria” e “romance de cavalaria” como equivalentes.
A intenção não é discutir tais discordâncias. Considerar-se-á a equivalência entre os termos,
uma vez que o corpus selecionado apresenta características constitutivas de novela; no
entanto, é interessante esclarecer que por se tratarem de obras pertencentes a tempos
históricos distintos na Idade Média, elas sofreram influências diversificadas em suas
construções, cada uma obedecendo às tendências comportamentais próprias de sua época. As
novelas de cavalaria são entendidas como um gênero narrativo e buscou-se compreendê-las a
partir das propostas da teoria da narrativa. Sendo assim, o uso do termo “romance de
cavalaria” equivalerá ao de “novelas de cavalaria”, cujas categorias correspondem às do
romance moderno.
Como produções literárias da Idade Média, as novelas de cavalaria são uma das manifestações
literárias de ficção em prosa mais ricas de todo o período medieval. Historiadores e estudiosos
de literatura afirmam que elas formam um verdadeiro código de conduta medieval e
cavaleiresca, propiciando aos leitores uma visão mais detalhada e, por isso, mais próxima da
realidade vivida pelo homem do medievo. Possuíam caráter simbólico e místico para relatar
aventuras e feitos maravilhosos de heróis cavaleiros, imbuídos de espiritualidade cristã e, ao
mesmo tempo, de enigmática pagã.
A origem das novelas de cavalaria não está completamente certa. A maioria dos
pesquisadores as declara como originadas das canções de gesta, cuja prosificação e escrita
teriam sido o embrião das novelas de cavalaria. Para alguns estudiosos, estas novelas não se
ligam a estas canções, principalmente porque as primeiras pertencem à prosa e as segundas, à
poesia. Por outro lado, sugerem que as novelas cavaleirescas tenham se desdobrado, em
algum momento, da epopéia clássica. Não há dúvidas que as novelas apresentam traços em
comum tanto com as canções de gesta, como com a epopéia clássica. Difícil, realmente, se faz
precisar o momento do nascimento das novelas de cavalaria e, então, determinar sua real
origem, ressaltando-se que tal problemática existe.
98
As novelas de cavalaria propalaram-se durante a Idade Média e representaram, por muito
tempo, os anseios e fantasias de todo um continente, especialmente na França, Grã-Bretanha,
Portugal e Espanha. Suas principais características temáticas giram em torno de heróis
cavaleiros e façanhas extraordinárias, provendo às necessidades do imaginário ocidental do
medievo, em tempos bárbaros. Não há como ignorar que estas novelas sugeriam origens
nacionais aqui e ali e também relações entre reinos e estados num momento histórico em que
muitos ainda estavam se configurando.
Esse gênero constitui-se uma tradição européia que foi amplamente praticado do século XII
ao XVI, perdendo o seu fascínio na Baixa Idade Média. Porém, suas lendas, mistérios e
aventuras permaneceram vivos no substrato da cultura ocidental. Traduzindo a cultura
medieval e divulgando altos valores vigentes, as novelas tentaram refletir a sociedade de
senhores e vassalos e os ideais cavaleirescos que empolgavam o poder da classe dominante.
Apesar de recorrer, em sua temática, a elementos de ordem sobrenatural, não deixavam de
retratar a sociedade feudal e nem mesmo a desfiguravam. Moisés (1977) destaca que o
ambiente de maior circulação dessas novelas era a fidalguia e a realeza. Deste modo, irradiava
ideais de honra, coragem e doação espiritual a todas as outras classes.
A historiografia literária convencionou dividir a matéria cavaleiresca em ciclos. São
conhecidos três ciclos, a saber: o ciclo bretão ou arturiano, que traz a figura do Rei Artur e
seus cavaleiros como personagens centrais; o ciclo carolíngio, que se refere a Carlos Magno e
os doze pares da França e o ciclo clássico, que apresenta novelas de temas greco-latinos.
Indiscutivelmente, o ciclo arturiano foi aquele que mais fama obteve e, segundo Moisés
(1977), há países europeus em que apenas este ciclo deixou marcas de sua passagem, como é
o caso de Portugal.
É preciso salientar também que o ciclo bretão foi pioneiro em apresentar os exemplos
específicos deste gênero narrativo em prosa durante o século XII, através dos diversos relatos
sobre o Rei Artur. Embora tais obras estivessem presentes em uma época de forte expressão
religiosa cristã, pois a Igreja usava de todos os esforços para se tornar universal, isto é,
católica, o inconsciente popular ocidental resgatou parte da cultura celta e, portanto, pagã,
através das histórias que compuseram a Matéria da Bretanha. A estranheza causada por estes
fatos é devida à predominância de recursos de caráter fantástico ou sobrenatural que
estabeleciam certa “parceria” com os elementos cristãos e/ou já cristianizados. A maior parte
99
das novelas de cavalaria, em especial as do ciclo arturiano, apresentavam componentes
mágicos e exóticos, seres de mundos imaginários, porém em atuação na realidade material,
auxiliando, por sua vez, na descrição lírica de uma natureza mais idealizada do que real.
A influência registrou-se por toda a Alta Idade Média européia. Moisés (1977) aponta para a
existência de exemplares de algumas novelas como Tristão e Isolda, Merlin e o Livro de
Galaaz na biblioteca de D. Duarte, em Portugal, comprovando o grande apreço de que eram
alvos e as ligações que exerceram, sobremaneira, com as populações palacianas. Absorvendo
praticamente toda a caracterização das novelas de cavalaria, o ciclo arturiano abarcou, durante
o tempo de auge de sua circulação na Europa, as temáticas mais recorrentes que foram,
posteriormente, imitadas por outras novelas em outros ciclos. Entre os temas, o amor cortês, o
sentido da honra e lealdade ao rei, bem como da fidelidade aos ideais da Igreja e o sentimento
guerreiro aguçado são os mais destacados. Aguiar e Silva (1973) confirma estas
características ao expor como bases temáticas fundamentais das novelas de cavalaria o amor e
a aventura. Entretanto, alerta para o verdadeiro sentido da palavra “aventura” nessas novelas,
a qual significa uma regra narrativa e não, simplesmente, o contar de fatos extraordinários.
Refere-se à aventura como um meio de prova para o herói que deverá alcançar uma posição
mais elevada após a execução da mesma. Por esta razão, o autor salienta que as novelas
cavaleirescas concedem “uma importância capital às aventuras ou peripécias externas
motivadas pelo amor ou com ele relacionadas” (p. 250).
Considerando todos os fatores de mudanças existentes e atuantes nos séculos centrais da Idade
Média, caracterizadores dos tempos de dúvidas e incertezas, não é surpresa que até mesmo os
temas das novelas de cavalaria sofressem a pressão do homem medieval, no tocante às
constantes invasões culturais e, portanto, de costumes. Desta forma, Moisés (1977) ressalta
que o surgimento da Demanda do Santo Graal foi uma reação da Igreja contra o
desvirtuamento da Cavalaria. Devido aos tempos difíceis vividos pela instituição do
feudalismo, os cavaleiros andantes acabaram por se tornar indivíduos desocupados, vivendo
aleatoriamente e, em conseqüência, deixando-se levar por atitudes agressivas, muitas vezes
realizando pilhagens, assaltando aldeias e amedrontando pessoas comuns. Por terem sido,
outrora, homens de estirpe elevada e, por isso, com valores a serem resgatados, a Igreja
decidiu trazê-los de volta à civilização. Em 1095, o Concílio de Clermont deliberou a
organização da primeira Cruzada e a constituição de uma cavalaria cristã. Iniciou-se, pois,
uma ampla pregação em prol dos ideais altruístas e de respeito às instituições.
100
Moisés (1977) elucida estes fatos transformacionais do caráter do cavaleiro andante feudal no
desdobramento do caráter do cavaleiro cristão:
A Demanda, cristianizando a lenda pagã do Santo Graal, colabora
intimamente com o processo restaurador da Cavalaria andante: caracteriza-se
por ser uma novela mística, em que se contém uma especial noção de herói
antifeudal, qualificado por seu estoicismo inquebrantável e sua total ânsia da
perfeição. Novela a serviço do movimento renovador do espírito
cavaleiresco, em que o herói também está a serviço, não mais do senhor
feudal mas de sua salvação sobrenatural, uma brisa de teologismo varre-a de
ponta a ponta, o que não impede, porém, a existência de circunstanciais
jactos líricos e eróticos, nem algumas notas de fantástico ou mágico, em que
o real e o imaginário se cruzam de modo surpreendente (p. 35).
Ressalta a convivência entre o fantástico e o real que nesta obra produz uma ambigüidade
encontrada também em outras novelas do ciclo arturiano, em que grandes tensões místicas
contracenam com situações repletas de realismo vivo, preenchendo as aventuras dos
cavaleiros com provas em que a fortaleza de seus ânimos é testada. Para Moisés (1977), a
Demanda encerra uma elevada intenção e é possuidora de grande vigor narrativo, tornando-
se, assim,
o retrato definido da Idade Média mística, e o maior monumento literário
que a época nos legou no campo da ficção, porquanto traduz um soberbo
ideal de vida expresso de forma artisticamente superior, a ponto de alcançar
um grau de perfeição estética não muito freqüente na prosa do tempo (p. 36).
Concomitantemente à época do Trovadorismo na Península Ibérica, as novelas de cavalaria
afloraram para um público ávido de conhecimento acerca de um mundo melhor do que o que
se configurava naquele instante histórico. Isto se deve à miscelânea cultural que eclodiu no
Ocidente Europeu ao longo do período medieval, caracterizando uma transição múltipla para
os tempos modernos ainda porvindouros. A Idade Média não é, necessariamente, considerada
uma era transicional; no entanto, ao estudarem-se os mecanismos de progressão a que esteve
sujeita, é possível sugerir uma transição multifacetada que ocasionou a formação do Ocidente
Europeu. Neste contexto, as novelas cavaleirescas responderam aos anseios do homem
medieval na medida em que proporcionaram aos leitores e ouvintes um mergulho num mundo
paralelo e, ao mesmo tempo, uma reafirmação de padrões comportamentais que se
configuravam modelos de conduta e ética.
101
4.1.1 Amadis de Gaula
Amadis de Gaula é uma das mais célebres obras cavaleirescas da Medievalidade. Alcançou
grande destaque na Península Ibérica, onde permanece uma discussão apaixonada e
controvertida acerca do idioma e do país de origem deste personagem ilustre da cavalaria.
Para muitos europeus, o Ciclo dos Amadises, que veio a ser formado com a continuação de
histórias sobre os personagens que figuram no Amadis de Gaula, é considerado o mais famoso
entre as novelas de cavalaria. O mesmo não ocorre neste país, pois as obras pertencentes ao
Ciclo Arturiano encerram mais notoriedade entre a população. Há muitos motivos, de
diferentes ordens, para que tal aconteça e, neste caso, não há espaço suficiente para uma
alongada discussão sobre este assunto. O que importa é que onde nasceu e nos países
circundantes, o Amadis de Gaula representa uma nova força para a narrativa cavaleiresca,
resgatando valores um pouco já agastados e assumindo características inéditas para as novelas
de cavalaria, o que concede à obra um aspecto diferencial de todas as novelas anteriores.
Muitos estudiosos consideram Amadis semelhante às novelas arturianas. De fato, encontram-
se inúmeras similaridades de forma e conteúdo temático na obra, aproximando-a do Ciclo
Arturiano. Essas semelhanças levam a crer e afirmar que pertença à Matéria da Bretanha.
Entretanto, depois de variadas leituras, entre opiniões diversas, há quem assegure que Amadis
não diz respeito a nenhum conjunto de lendas determinado. Pode-se, igualmente, considerar
que existem reais motivos para que se acredite na individualidade da obra: a personalidade de
Amadis, suas aventuras em castelos longínquos encantados, lutas com feras, feiticeiros, anões
e gigantes, tudo apenas para ser digno do amor de Oriana. Inicialmente, as características são
parecidas, no entanto, o que as difere em muito das aventuras de Lancelot, Tristão ou Galaaz,
é a finalidade para qual as vivem.
Os cavaleiros arturianos, embora se assemelhem nos feitos e realizações maravilhosas,
anseiam uma sublimação de ordem religiosa e espiritual: a busca de um elemento sacro que
encerra a sabedoria divina ao homem puro, que deseja a ascensão aos céus, o Graal. Como
discutido anteriormente, o cunho cristão católico é fortemente divulgado pelos personagens da
Demanda, representando, como afirmou Moisés (1977), uma reação da Igreja em prol do
resgate das virtualidades do cavaleiro medieval andante que, por sofrer as vicissitudes sociais
e econômicas do momento histórico, encontrava-se desviado do caminho honesto. Na novela
em questão, embora existam muitas passagens que demonstram sua crença e fé em Deus,
102
percebe-se a inexistência de uma razão religiosa que o move às suas aventuras. Somente o
amor de Oriana o precipita para o mundo das justas e das batalhas com homens e feras.
Depreende-se, assim, que a exaltação do elemento sentimental e erótico, a idealização quase
casta e fiel da conquista amorosa e da própria conduta do cavaleiro formam um conjunto de
características que prenunciam as formas estéticas do Renascimento.
Considerando a época em que Amadis de Gaula foi editado pela primeira vez, século XVI,
mais precisamente em 1508, é aceitável a hipótese de que a obra apresente aspectos temáticos
diferenciados das novelas cavaleirescas anteriores, que, por sua vez retratavam atitudes
próprias do homem dos séculos XII ao XV. A História é testemunha de todas as mudanças
estruturais vividas pelo medievo; a Literatura representa essas mudanças através do registro
fictício de personagens e fatos diegéticos que procuram espelhar a realidade, portanto, não é
de todo incomum que o Amadis encontre-se em posição bastante distinta da Demanda.
Quanto à polêmica existente em relação à gênese da novela, é importante que se mencione o
panorama dessas discussões. Segundo Moisés (1977), há três correntes de opinião que
defendem a língua e local de origem da obra: a primeira corrente ligava a obra à literatura
francesa, mas atualmente está posta de lado; a segunda argumenta que a autoria se deve a um
português e a terceira corrente defende a tese de que a autoria é espanhola. Na história
literária de Amadis, de acordo com Gonçalves (1997), pode-se concluir que se trata de um
texto do final do século XIII. Em versões como a de Vasco de Lobeira (1370) traduzida por
Montalvo, observam-se correções e ampliações na publicação em 1508. Para este estudioso,
ocorreram mais de dois séculos de circulação de um texto que nascera sob uma visão de
mundo completamente distinta daquela em que se deu a sua versão final.
Depreendem-se desse fato as diferenças marcantes referentes às temáticas religiosa e amorosa
que se encontram na obra. Gonçalves (1997) ainda a considera descendente do trovadorismo
amoroso, além de identificar a personagem central com heróis das novelas de cavalaria, como
Galaaz e Percival. Nesta afirmação, há que se concordar com a assertiva do crítico, no que
concerne à caracterização do cavaleiro medieval e seu papel heróico nas aventuras. O seu
ponto de vista se justifica, ao explicar que essas semelhanças entre as personagens (o espírito
de aventura, os elementos mitológicos e pagãos, como fadas, feiticeiras, feras, anões, gigantes
e florestas encantadas) são reminiscências das novelas bretãs. Ressalta ainda que tudo isso
fazia parte do mundo céltico legado pelo processo de transculturação registrado na Galiza e
103
irradiado para todo o universo galego-português. Concluindo suas idéias, Gonçalves aponta
que talvez seja por esta razão que Portugal, ao contrário da Espanha, tenha se identificado
mais com o sentimento das novelas do Rei Artur da Távola Redonda.
Amadis de Gaula é uma compilação e tradução realizadas por Costa Marques dos três livros
existentes: o livro primeiro, o segundo e o terceiro. São capítulos selecionados, seguindo a
cronologia de vida da personagem principal, reescritos em português atualizado, editado em
1942. Embora não seja, necessariamente, uma obra recente, não interferiu no
desenvolvimento da pesquisa, porque a linguagem utilizada pelo compilador encontra-se
compatível com o português atual.
O primeiro episódio apresenta a infância de Amadis: quem foram seus pais e em que
circunstâncias o nascimento do mais famoso cavaleiro aconteceu. O Rei Periom de Gaula,
certa vez, hospedado na casa do rei Garinter, da Pequena Bretanha, apaixona-se pela filha
deste, Elisena. Também apaixonada por Periom, passam a se encontrar às escondidas. Deste
amor nasce Amadis. Neste tempo, ainda não casados, uma donzela da princesa Elisena,
Darioleta, despacha o recém-nascido numa arca bem calafetada ao mar, levando também uma
espada sem bainha, um anel e um pergaminho coberto de cera, onde havia escrito o nome da
criança e a informação de que era filho de rei. Posteriormente, o amor dos pais de Amadis é
legitimado pelo casamento.
A arca fora avistada por um pequeno barco de um cavaleiro escocês, chamado Gandales, que
recolheu Amadis e o deu à esposa para criar junto ao filho deles, Gandalim. Assim, Gandales
deu-lhe o nome de Donzel do Mar, devido à ocasião de seu aparecimento. Certo dia, Gandales
encontra-se com uma donzela, salvando-a de um cavaleiro raivoso que a perseguia e ela
realiza uma profecia sobre o Donzel do Mar, pois, na verdade, ela era Urganda, a
Desconhecida. Profetiza que a criança recolhida do mar será a flor dos cavaleiros do seu
tempo; executará obras incríveis e inacreditáveis; será bondoso para aqueles que merecerem e
cruel para aqueles de má conduta. Também será o cavaleiro de seu tempo mais leal ao amor.
Amadis, nesta época, contava três anos de idade e já apresentava feições tão belas que a todos
maravilhavam.
Aos cinco anos de idade, o Rei Languines esteve de passagem em sua casa e a rainha
encantou-se com o Donzel. Tamanha a admiração que causou nos visitantes que estes o
104
levaram para sua corte, acompanhado de Gandalim, que o estimava como a um irmão. O Rei
Languines soubera de Gandales as circunstâncias em que o Donzel fora encontrado. Passado
um tempo, o rei da Dinamarca, Lisuarte, passa pela Escócia a caminho da Grã-Bretanha.
Trazia consigo sua filha Oriana, de beleza incomparável. Estando cansada da viagem, pediu a
seu pai para ficar na corte de Languines. O Donzel do Mar é posto a seu serviço e as duas
crianças, ao se conhecerem, se apaixonam.
Quando alcança a idade de quinze anos o Donzel, ainda ignorante do segredo de sua origem,
deseja ardentemente tornar-se cavaleiro para poder ser merecedor do amor de Oriana. Em
decorrência de uma coincidência, ele é armado cavaleiro pelo Rei Periom, que estava de
passagem pela corte de Languines solicitando ajuda para combater o rei da Irlanda.
Atendendo ao pedido da filha e de Oriana, Periom concede a cavalaria ao Donzel, ambos sem
terem conhecimento do verdadeiro parentesco entre eles. A partir daí, Amadis parte com
Gandalim, agora seu escudeiro, para viver aventuras.
O restante da obra se divide em episódios que narram diversas peripécias de Amadis que
confirmam a superioridade do cavaleiro na força, na beleza, na honra, na lealdade, na fé e,
sobretudo, na devoção amorosa. Entre estes episódios, o Donzel vem a conhecer a sua
verdadeira linhagem nobre e também luta por vencer todos os empecilhos relativos à união
com Oriana. A glória final está diretamente associada à legitimação dos sentimentos vividos
por Amadis e Oriana. Mesmo nas lutas mais cruentas, o ideal de alcançar a perfeita união com
sua dama é o que move Amadis e o que lhe sustenta nos momentos em que periga fraquejar.
Tanto isso é evidente na obra que, no momento em que ele sente perder sua amada, desiste da
cavalaria e encerra-se a viver com um ermitão, para penitenciar-se e abreviar a própria vida,
que perdera o sentido. Ao receber seu amor de volta, o cavaleiro reassume a posição
abandonada e volta a aventurar-se por Oriana.
4.1.2 A Demanda do Santo Graal
Considerada a mais famosa do ciclo arturiano, venceu o tempo e a distância conquistando
leitores de todas as partes do mundo desde a sua criação. De extrema importância para o
estudo da literatura cavaleiresca medieval, a novela é apontada como o livro inaugural da
Matéria da Bretanha. Não se deterá esta pesquisa nas possíveis origens e autorias desta
novela, mesmo porque se correria o risco de veicular informação errônea, dados os poucos
105
registros históricos sobre a sua autoria. É verdade, entretanto, que uma autoria legítima seja
impossível de se estabelecer no momento; busca-se conhecer, assim, a obra no que possui de
mais rica: o seu conteúdo. Deste modo, a escolha recaiu sobre a tradução brasileira de Heitor
Megale, autor de outros livros sobre o ciclo arturiano, proporcionando ao leitor dados
importantes para o esclarecimento do texto e de suas várias edições e adições.
Segundo Megale (2003) as histórias sobre o Rei Artur associam-se diretamente a outros
personagens bastante conhecidos e divulgados pelas novelas medievais: Merlin e Tristão.
Embora ambos tenham suas próprias histórias, muito cedo passaram a fazer parte dos contos
arturianos, integrando seus textos. Merlin já participava do ciclo desde os romances em verso
de Robert de Boron, os quais vieram a influenciar os posteriores ciclos prosificados. Tristão
veio participar do ciclo um pouco mais tarde, à época da segunda prosificação.
A primeira prosificação ocorreu por volta de 1220 a partir dos romances cantados em versos
por Robert de Boron. De acordo com Moisés (1977), a prosificação destes versos se deu por
influxo religioso. O fato de a Igreja desejar o resgate moral dos cavaleiros fez com que se
operassem transformações profundas na lenda, cujas origens repousam, provavelmente, sobre
os longínquos celtas e traduzem nitidamente costumes pagãos. Cristianizando a lenda, seus
principais símbolos, como a espada, o vaso e o escudo, passaram a evocar valores místico-
cristãos. Em vez de se encontrar o relato de aventuras repletas de realismo profano, o que
existe na primeira prosificação é a marca da ascese, “traduzida no desprezo do corpo e no
culto da vida espiritual (...)” (p. 34).
Os títulos que compõem esta primeira prosificação, segundo Megale (2003), são: Estória do
Santo Graal; Merlim; O Livro de Lancelote do Lago; As Aventuras ou a Demanda do Santo
Graal; A Morte do Rei Artur. É importante alertar que A Demanda do Santo Graal, nesta
prosificação, não se constitui a matéria da qual se extraiu os episódios traduzidos por Megale
e escolhidos para corpus desta pesquisa. A obra primeiramente prosificada apresenta um
caráter eminentemente alegórico e didático. De fundo extremamente religioso, e havia uma
razão lógica para isso, as aventuras vão apartando os cavaleiros em grupos que se denominam
mais puros ou menos puros, isto é, aqueles que se aproximam mais da perfeição e os demais
que não chegam tão perto.
106
A segunda prosificação, de acordo com o tradutor brasileiro, ficou com apenas três títulos: O
Livro de José de Arimatéia; Merlim com suas Continuações e A Demanda do Santo Graal. Os
episódios selecionados para este trabalho pertencem à segunda prosificação, traduzidos por
Megale. Essa prosificação, escrita em português, está conservada na Biblioteca Nacional de
Viena, em códice pergamináceo, desde o século XIII, havendo também uma cópia do século
XV.
A Demanda se inicia na véspera de Pentecostes, na corte do Rei Artur, em Camelot, capital do
reino de Logres, onde se espera a chegada do bom cavaleiro para a primeira revelação do
Graal. Uma donzela chega à corte à procura de Lancelot do Lago. Ao se encontrarem, seguem
para uma igreja onde Lancelot arma Galaaz cavaleiro e volta a Camelot com Boorz. Em
seguida, um escudeiro anuncia o aparecimento de uma fantástica espada enterrada numa pedra
de mármore sobre a água. Lancelot e os outros tentam retirá-la sem sucesso. Neste ínterim,
Galaaz chega sem ser anunciado e ocupa a cadeira perigosa que estava reservada para o
“escolhido”, o bom cavaleiro. Entre as cento e cinqüenta cadeiras da Távola Redonda, apenas
uma ainda não estava ocupada, pois era reservada ao cavaleiro Tristão.
Galaaz vai ao rio e remove a espada da pedra. Logo depois, vão para um torneio. Aparece
Tristão para ocupar o seu lugar na Távola, o último assento vazio. Durante a refeição, algo
maravilhoso acontece: os cavaleiros são agraciados com a visão do Graal, que aparece em
meio a uma atmosfera de êxtase e alvoroço, irradiando uma luminosidade sobrenatural que os
transfigura e os alimenta, apesar de durar somente um breve instante. Assim, Galvão sugere
que partam em busca do Cálice Sagrado. No dia seguinte, após a missa, os cavaleiros seguem
caminhos diferentes.
Iniciam-se os fatos aventureiros que envolvem os cavaleiros enquanto buscam o símbolo
maior da sabedoria cristã. O primeiro episódio narra a chegada de Galaaz e Boorz ao Castelo
de Brut, onde a filha do rei enamora-se loucamente por Galaaz. Tendo sido muito bem
recebidos pelo rei, os cavaleiros passam a noite no castelo. Apaixonada por Galaaz, a filha do
rei trava uma luta íntima consigo mesma, mas não consegue aplacar os desejos de seu
coração. Durante a noite, deita-se ao lado de Galaaz que, ao acordar, espanta-se com a loucura
da donzela, revelando-lhe sua castidade e fidelidade à causa religiosa. Tomada pelo
desespero de que não teria o amor desejado e pela insensatez de seu ato, desfere a espada
contra o peito. Os cavaleiros são acusados de assassínio e traição ao anfitrião que os recebera.
107
Somente após o duelo individual entre o rei Brut e Boorz, que o vence, põe fim à confusão.
Brut acredita finalmente nos cavaleiros e aceita o fato indigno de sua filha. O episódio
termina com a partida de Galaaz e Boorz.
Após deixarem o castelo do rei Brut, os dois cavaleiros encontram o cavaleiro da besta,
Palamades, que lhes pergunta se haviam visto a besta ladradora. Diante da resposta afirmativa
de Boorz, o cavaleiro lhes diz que a besta é sua caça, deixando-os para trás. Em seguida, eles
encontram Esclabor (o desconhecido), um cavaleiro idoso que lhes oferece albergue pela
noite. Conta-lhes como o rei Artur lhe dera uma mulher pagã, a seu pedido e como teve com
ela doze filhos. Havia perdido onze de seus filhos numa perseguição à besta ladradora. O filho
remanescente jurou que nunca mais deixaria de procurar a besta e matá-la ou ser morto por
ela. Galaaz e Boorz reconheceram, pela narrativa de Esclabor, que se tratava de Palamades,
recentemente encontrado. No dia seguinte, seguem os seus caminhos e despedem-se de seu
anfitrião.
Esses dois episódios, sucintamente apresentados, exemplificam as aventuras dos cavaleiros da
Távola Redonda. Dos cento e cinqüenta cavaleiros, os mais destacados são Galaaz, Boorz,
Persival, Lancelot, Galvão, Leonel, Morderete, Erec, mas poucos permanecem vivos. A
narração dos episódios seguintes se entrelaça num emaranhado de aventuras. Por
merecimento ou por exaustão, os cavaleiros se reduzem a um pequeno grupo. Galaaz, em
Sarras, demonstrando estar pleno em sua atividade religiosa, recebe a graça de presenciar o
Santo Cálice, símbolo da Eucaristia e consagração de toda uma vida devotada ao louvor e
culto das atitudes morais elevadas, das virtudes físicas e espirituais. A narrativa relata, ainda,
os últimos feitos de Lancelot, a morte do Rei Artur e a vingança do Rei Mars.
4.2 CONHECENDO OS REVERSOS
A investigação sobre as personagens mulher e bruxa proporciona ao pesquisador inúmeras
possibilidades de interpretações. A palavra “reverso”, embora não apresente nos dicionários
conceitos diferenciados, pode suscitar compreensões variadas de acordo com a perspectiva
teórica e histórica escolhidas. Apresentada como substantivo ou adjetivo pode levar o leitor a
interpretações errôneas ou a desvios de sentido que se lhe quer atribuir.
108
4.2.1 Conceito de reverso
Três conceitos de dicionários brasileiros foram escolhidos para iniciar a discussão do
significado da palavra. Segundo Bueno (1992), o termo “reverso” aparece como adjetivo
denotando “má índole”. Já como substantivo, significa “lado oposto ao principal; parte
posterior; o que é contrário” (p. 995). O primeiro sentido refere-se à sinonímia da palavra
“revés” que, por sua vez, apresenta o seguinte verbete: “Reverso; pancada com as costas da
mão; golpe oblíquo; acidente desfavorável; fatalidade; desgraça; contrário; avesso; derrota”
(p. 995). Há uma associação entre os termos; o adjetivo posto como primeiro significado pelo
autor, liga-se diretamente com o primeiro sentido do substantivo “revés”, como que derivado
deste. Ambos revelam sentidos anexos a incidentes não desejados, a acontecimentos
inesperados e tristes, a fatos desventurados.
Ferreira (1999) apresenta o verbete de forma diferente. Apesar de colocá-lo, também, como
adjetivo, não lhe atribui o primeiro sentido como “má índole” e sim como “revirado”. O
significado relacionado à má índole aparece como sentido figurado. Em seguida, apresenta o
substantivo masculino da seguinte maneira: “Face ou lado contrário ao que se tem como
principal; avesso, revesso; a parte posterior ou interior de certas coisas, por oposição àquela
que está voltada para frente ou para fora”. E como sentido conotativo: “aquilo que é contrário;
o outro lado; o oposto”. É clara a distinção de conceitos entre estes dois autores. Quanto ao
termo “revés”, que está mostrado como comparativo com “reverso”, por apresentar
semelhanças derivativas nos verbetes construídos por Bueno, o verbete elaborado por Ferreira
apresenta-se como: “S.m. 1.Reverso (6 a 8). 2. Golpe aplicado com as costas da mão. 3.
Pancada oblíqua. 4. Acidente desfavorável; vicissitude. 5. Fig. Desgraça, infortúnio,
insucesso.” As indicações entre parênteses referem-se aos significados de “reverso” como
substantivo. Parecem os dois autores concordar que o termo “revés” tem a mesma origem de
“reverso”. Entretanto, o que Bueno aponta como primeiro sentido, em Ferreira está como
sentido figurado. Cabe a este trabalho, portanto, interpretar os significados de acordo com a
contextualização da pesquisa.
Um terceiro dicionário difere dos dois primeiros consultados. De autoria de Ruth Rocha, o
dicionário aponta o significado de “reverso” como “adj 1 Que se opõe ao anverso ou à face
principal; situado na face posterior. 2 Que voltou para o ponto de partida. sm 3 O lado oposto
ao principal; o contrário; o oposto” (1996, p. 540). Nota-se que o verbete não apresenta o
109
sentido referido à “má índole”, nem mesmo como figurado. Comparando, novamente, com o
termo “revés”, o dicionário indica: “sm 1 Reverso. 2 Golpe dado obliquamente; pancada com
as costas da mão. 3 Acidente que muda para má uma situação boa; vicissitude; desgraça;
infortúnio” (p. 540). Assim, pode-se observar que o termo foi considerado sinônimo de
“reverso” no que se refere ao primeiro significado. Apenas Ferreira (1999) apresenta a
origem das palavras, “reverso”, do Latim reversu e “revés” origina-se da mesma palavra
latina, porém com apócope. O fato de ambas terem a mesma origem as aproxima em sentido e
forma: revés como substantivo e reverso, adjetivo.
Considerando os sentidos “má índole; infortúnio” e “contrário, oposto” apontados pelos três
dicionários e aplicando-os ao contexto do corpus escolhido justifica-se a primeira proposição
da pesquisa, ao avaliar a figura da bruxa ou feiticeira como a outra face da mulher medieval,
historicamente estudada. Tomando como ponto de partida os conceitos cristãos de bem e mal,
o bem se refere à mulher medieval e o mal à bruxa e à feiticeira. No entanto, pode-se observar
que a Igreja distorce o papel feminino no meio social, indiferentemente do seu lado
demoníaco. As relações de gênero assomam-se ao âmbito do divino, no tocante à castidade
praticada tanto para a mulher casada, digna e à virgindade defendida para a mulher solteira,
honrada que queria se manter pura e digna do Reino dos Céus.
Tais conceitos foram amplamente divulgados neste período histórico. A aplicação do termo
“reverso”, como um substantivo, pode se referir tanto à mulher comum como à bruxa ou
feiticeira, não significando uma duplicidade pessoal, mas uma desgraça, um infortúnio, um
insucesso. A mulher era considerada um reverso para o homem medieval, desvirtuando-o e a
bruxa ou feiticeira encarnam, nestas acepções do termo, o mal propriamente dito e realizado.
A mulher, indiscutivelmente, na Idade Média, é a portadora do mal, inerente ao gênero
feminino. Tanto a bruxa como a feiticeira, como forças cósmicas, também pertencem ao
universo feminino. O homem, neste contexto, nada mais é do que uma vítima deste ambiente
sacrílego e demoníaco, residido e presidido por mulheres.
O reverso, portanto, apresenta-se em ambos sentidos para descrever a mulher medieval e suas
relações com a esfera sobrenatural e malévola atribuída às bruxas ou feiticeiras. Bruxa era
sinônimo de desgraça, não somente para o sexo masculino, como também às comunidades em
geral. Trouxe em sua história as referências apenas daqueles que, supostamente, sofreram
algum tipo de sortilégio. Feiticeira, por sua vez, significava uma mulher real, que fora
110
instruída nas artes mágicas, e utilizava seus conhecimentos para alcançar o sobrenatural. Em
determinada época do medievo, estas duas concepções se confundiram e, graças às ações da
Igreja e dos juízes seculares, alcançaram uma conotação una e definitiva que condenava as
mulheres: bruxaria ou feitiçaria era associada ao demônio, representando o Mal materializado
na Terra, da mesma forma como o Bem já se materializara nas formas dos Pais da Igreja.
4.2.2 Mulher e bruxa: reversos?
Os sentidos concorrentes para uma resposta a esta questão são variados, diversos e até mesmo
dispersos. Ambos os termos são substantivos femininos e atribuídos, adjetivalmente, ao sexo
feminino. Entretanto, não há como ignorar o peso substancial dos seus significados quando
aplicados a uma situação real de discurso. Afinal, os termos são substantivos concretos ou
abstratos? Considerando o senso comum, diríamos que “mulher” é concreto e “bruxa” é
abstrato. Mas será tão simples assim? O caso é que não há dúvida quanto à palavra “mulher”,
designativa do elemento humano fêmea, mesmo abarcando todos os sentidos referentes e
referidos a esta figura na sociedade. O problema se instaura na definição de bruxa. Uma vez
nascida do inconsciente popular humano, difícil é estabelecer o ponto em que ela alcança a
materialidade e o grau em que chega à imaginação.
Os obstáculos que se impõem à análise do termo “bruxa” em contraposição ao termo
“mulher” devem-se ao fato da estreita ligação entre estes dois seres, estabelecida desde a
Antigüidade e tendo sofrido profundas transformações na Idade Média. É sabido que o
período medieval esteve intimamente associado às forças naturais dos seres viventes.
Entretanto, o homem ainda não possuía o conhecimento adequado para desvendar os segredos
da natureza para utilizá-los em seu próprio bem. Mulheres em maior número recebiam
cultural e geneticamente, heranças de sabedorias antigas em que a manipulação de certas
substâncias poderia causar variados efeitos sobre pessoas e animais, nos mais diversos casos
de necessidade. Durante a Idade Média, esses conhecimentos se apuraram, desenvolveram e
entraram em contato com culturas diferentes, dadas as inúmeras invasões na Europa. Muitos
foram os fatores que favoreceram a evolução ou a eliminação de práticas medicinais
realizadas, principalmente, por mulheres. No entanto, essas práticas não foram exclusivas do
sexo feminino; também os homens se dedicaram aos conhecimentos ocultos.
111
Com o decorrer do tempo aliado às mudanças sócio-culturais, tais conhecimentos ficaram
relacionados à magia, pois encerravam sabedoria não disponível a todos, indistintamente.
Fácil é deduzir que a ignorância ou mesmo a falta de meios de aprendizagem sistematizada
levou uma população inteira a atribuir curas ao domínio sobrenatural. Deste modo, também
fácil se torna entender por que o universo feminino foi mais povoado por fantasmas do que o
masculino. Não se pode afirmar que tais concepções sejam definitivamente medievais. A
misoginia que se instalou neste período justifica-se pelo fato de a mulher receber e executar,
com maestria, os conhecimentos milenares dos ingredientes “mágicos”, mesmo não tendo
sido exclusividade da mulher medieval. Esta apenas deu-se ao desenvolvimento das práticas
num momento histórico repleto de mudanças, guerras, mortes, pestes, doenças e, sobretudo,
indistinção espiritual.
Há muito estabelecidas, as relações entre a mulher comum e a bruxaria, são indicativas da
complexa personalidade feminina. Durante milênios ela esteve envolvida com as forças
naturais, o que equivale dizer que mesmo quando se eximiam de suas próprias capacidades,
ainda assim poderiam recebê-las por atribuição de outrem. A mulher abraça a criação; está
denotada em todas as religiões antigas no papel principal de criação e herdou a parte física
desta criação. O desenvolvimento e o aparecimento das religiões, em geral, estiveram ligados
a tudo quanto se configurava mistério para o homem. E, neste caso, a concepção, o ato do
nascimento, a possibilidade geradora da mulher foram os primeiros mistérios da vida humana.
Os povos do medievo trouxeram impressos no subconsciente as marcas deixadas pelos
mistérios divinos quanto ao destino do homem post-mortem. E, desta forma, o homem
medieval construiu sua imagem ao lado da mulher e, posteriormente, acima dela.
Não é tarefa muito simples delinear o desenvolvimento humano no que concerne às
faculdades mentais associadas ao desprendimento espiritual. Tendo em vista a história das
religiões lado a lado com as mudanças ocorridas por toda a Idade Média, pode-se notar a
posição inferiorizada da mulher. Não discutindo conceitos de gênero, não há como deixar de
assinalar que as discriminações ao sexo feminino na cultura ocidental é uma verdade
consumada e atestada pela História, tanto quanto a construção da imagem da bruxa e sua
carga semântica negativa que se lhe atribui, apontam, diretamente à mulher. Assim, tomar o
termo “reverso” apenas como “o lado oposto” de algo seria simplificar ao extremo o papel da
mulher na sociedade medieval, bem como o da bruxa no imaginário da Idade Média.
112
Considerar a bruxa como o contrário da mulher comum medieval pode ocultar (ou omitir)
todos os fatores indicativos de ideais e conceitos existentes entre estes dois termos, como o
Bem e o Mal, por exemplo. Ou apresentar a visão social a partir da distinção espiritual
calcada no reconhecimento das forças que movem o mundo: Deus e o Diabo. O homem, por
sua vez, encontra-se em posição intermediária, recebendo influências das forças de ambos os
lados. É-lhe concedido o livre arbítrio para escolher sua própria direção, porém é vulnerável
aos engodos praticados pelo Mal, que intenciona desviar-lhe o caminho. Tais concepções,
bastante simplificadas do comportamento humano foram essenciais para a instituição do
Cristianismo como religião universal, solidificada e representada pela Igreja Católica
Apostólica Romana.
Partindo-se das referências sobre a conduta humana idealizada no medievo pela Igreja, é
possível vislumbrar o “reverso” da figura feminina. A luta entre o bem e o mal se evidencia
como o fio condutor que leva a um remate, possivelmente definido, das duas faces da mulher
medieval. Isto não significa, porém, que estas idéias exprimam todos os pensamentos do
homem medieval em relação à mulher de seu tempo. O bem e o mal se apresentam como as
principais diretivas eclesiásticas na avaliação do papel feminino numa sociedade
patriarcalista, misógina e exclusivista que enxergava no homem uma multiplicidade de
virtudes e possibilidades e, na mulher, apenas dois ângulos: um que se inclina para o bem e o
outro para o mal.
Neste sentido, o reverso do homem se instaura na mulher; esta abarca toda a iminência do
mal, inclusive a figura da bruxa ou feiticeira, como executantes sobrenaturais deste mal. As
opiniões em contrário, os sentimentos e pressentimentos daqueles que não conseguiam
enxergar o ser feminino sob uma perspectiva tão desprezível foram considerados pagãos,
filósofos perseguidos e, mais tarde, rotulados e acusados de heresia. Instalou-se o crime dos
heréticos e apóstatas e, conjuntamente, a perseguição às bruxas, já na Baixa Idade Média. Nos
séculos anteriores, houve mentalidades discordantes, ainda não criminosas. É por isso que o
reverso do homem, em forma de mulher e, conseqüentemente, de bruxa, se fez presente nos
tempos em que a Igreja irradiava o seu poder absoluto.
As novelas de cavalaria mostram esta realidade, cada qual a inserindo no contexto de suas
aventuras na visão dos autores anônimos, que por trás escondiam sua identidade, mas
revelavam-se em seus conceitos. Por isso é que as obras escolhidas para esta pesquisa
113
apresentam focos diferenciados em alguns aspectos sociais, como é o caso de A Demanda do
Santo Graal e de Amadis de Gaula. Essas duas novelas de cavalaria demonstram várias
disparidades a respeito da visão medieval acerca da mulher e da feiticeira ou bruxa. Estando
distante temporalmente, sofreram transformações em suas temáticas a ponto de apresentarem
quase que um oposto entre os ideais cavaleirescos que difundiram. Fica, portanto, o
significado de “reverso” nas relações entre a mulher e a feiticeira restrito à análise literária e
aos registros históricos, nas novelas. Configura-se a resposta à questão deste tópico pautada
nos diversos fatores que definem, socialmente, a inserção do sobrenatural no ambiente
material do medievo e a ação da mulher, evocada como bruxa.
4.3 AMADIS DE GAULA: UM OLHAR SOBRE URGANDA
A obra Amadis de Gaula tem sido objeto de estudos e de inúmeras controvérsias. As
divergências entre críticos e historiógrafos literários repousam na busca, argumentação e
defesa quanto à origem da autoria e da língua em que foi, primeiramente, escrita. É clara a
noção de que são concepções diferentes, pois a autoria não significa a língua originária, como
se pode supor. Muitas são as alterações defendidas por portugueses e espanhóis; estes foram
os territórios em que a novela mais se destacou e foi, inicialmente, publicada no século XVI.
Entretanto, há indícios de que a novela original seja bem anterior. Garcia Ordoñez de
Montalvo ao editá-la em 1508, na cidade de Saragoça, faz uma advertência no prólogo aos
leitores de que está “corrigiendo estos três libros de Amadis que por falta de los malos
escritores ó componedores muy corruptos ó viciosos se leian, y trasladando y enmendando el
libro cuarto(MONTALVO, 1508 apud MARQUES, 1942, p. 05).
Marques (1942) ressalta que dessas idéias apresentadas por Montalvo, muitas conclusões
poderiam ser tiradas. A principal delas é a referência a uma tradução de originais, levando a
crer que estavam escritos em outra língua que não o castelhano. As dissensões quanto a esta
concepção são muitas, e não se pode afirmar que a provável língua seja a portuguesa. O que
parece incontestável é que Montalvo tenha traduzido, suprimido termos indesejados e
acrescido vocábulos mais arrojados, conforme sua própria opinião expressa. Não é intenção
deste trabalho esgotar ou levantar a discussão acerca desta polêmica. Acatando a
recomendação de Marques (1942), deve-se partir da assertiva de que faltam dados concretos
114
da redação original de Amadis: “nem tampouco as suas alterações, possíveis traduções e
acrescentamentos anteriores à edição de Montalvo, de modo que se torna inconsistente
formular juízos acerca do texto original ou dos imediatamente anteriores a 1508” (p. 14).
Depreende-se da leitura que toda a história de Amadis refere-se a pessoas e fatos ocorridos há
muito tempo antes de sua escrita; pelo menos, essa certeza se concretiza ao pensar a obra no
contexto social da sua primeira publicação, considerando-se a influência recebida das canções
de gesta e não descartando a possibilidade de que a novela tenha nascido de uma dessas
canções, ainda desconhecida.
Apesar de ter circulado, com mais intensidade, pela Península Ibérica, as locações, reinos e
ilhas citadas na obra referem-se a terras da Grã-Bretanha e não a Portugal ou a Espanha.
Gaula, para muitos estudiosos, é outra palavra para Gales e não para Gália. Reinos da Irlanda
e da Inglaterra aparecem com freqüência e as pequenas distâncias percorridas entre eles
propõem o País de Gales como indicativo de Gaula e, assim, descarta-se a referência à
França, ou seja, à Gália. Estes apontamentos podem sugerir a relação intrínseca da obra com a
Matéria da Bretanha ou a sua inserção no conhecido Ciclo Arturiano. Mesmo não sendo uma
história de cavaleiros da Távola Redonda, Amadis enquadra-se em várias características que
compõem as novelas deste ciclo. Ainda assim, apresenta desenvolvimento temático bastante
diferenciado. Por conseguinte, é evidente a mescla de aspectos sociais e literários aparentes
nesta novela.
As características que aproximam a obra da Literatura Portuguesa são aquelas vigentes nas
ações e comportamentos das personagens que denotam o envolvimento do amor trovadoresco.
A personagem Amadis é movida pelo amor de Oriana e encontra-se acima de qualquer outro
valor. Difere do amor platônico vivido pelo trovador das cantigas de amor, mas assemelha-se
à noção nascente do amor cortês. Esses aspectos estão diretamente ligados à literatura
lusitana; no entanto, encontram-se traços que remetem a obra aos costumes pagãos dos povos
britânicos. Entre estes indícios, podem-se citar os atos ilícitos praticados pelas personagens
Amadis e Oriana, à realização dos desejos amorosos. Igualmente, as referências à personagem
Urganda, a Desconhecida, que apresenta feições mágicas e, desta forma, insere-se no universo
fantástico. Estes são exemplos que mostram a complexidade de forma e conteúdo de Amadis
de Gaula, no que respeita às tentativas de situar a novela, literariamente, na historiografia.
Considerada bruxa, ou a que apresenta aspectos convencionais conhecidos desta figura
115
histórica, Urganda será o nosso objeto de análise. Um levantamento sobre a personagem e sua
relação com a vida real faz-se necessário, confirmando o papel da História como base
fundamental para a leitura, além das particularidades pagãs e cristãs que moldam a
personagem.
4.3.1 Personagem e História: aspectos narrativos, formativos e comportamentais
Considerando a importância que alguns teóricos atribuem à personagem no universo narrativo
romanesco, inserindo a novela de cavalaria neste rico ambiente, é inevitável apontar
Urganda, a Desconhecida, como exemplo marcante dessa relevância. Em contato com os
outros elementos da narrativa, forma a cadeia intrínseca de episódios que conduzem à história.
As relações entre estes conceitos, objeto da História, bem como as relações entre bruxas e
mulheres; as relações entre personagem, pessoa e leitor, objeto da literatura e sua teoria
constroem um conjunto de fatores divergentes e convergentes que culmina na busca de uma
compreensão globalizada do papel dessas figuras (bruxa – mulher – pessoa – personagem) no
ambiente medieval, com destaque à formação da mentalidade ocidental nascente.
Destacando, primeiramente, o modo de apresentação da personagem-foco, encontra-se a
figura de um narrador, que se assemelha a um “contador de histórias”, demonstrando vestígios
dos aspectos que proporcionaram a base para o desenvolvimento de canções, poemas
narrativos, contos orais e, posteriormente, as narrativas romanescas. Considerando-o uma
entidade discursiva, o narrador de Amadis apresenta algumas diferenças com os narradores
mais comuns de novelas de cavalaria. Entre as particularidades, pode-se citar uma que mais se
destaca: a presença verbo-pessoal. Narrador heterodiegético, de acordo com a classificação de
Genette (1972, apud Aguiar e Silva, 1973), posiciona-se distante da história narrada, mas não
está imune a intrusões na narração dos fatos, emitindo idéias e juízos de valor.
Entretanto, há trechos em que o narrador se apresenta dirigindo-se ao leitor, utilizando a
primeira pessoa do plural do discurso, configurando-se, neste instante, como narrador
homodiegético: “Onde deixaremos ir Urganda com o seu amigo, e contar-se-á de D. Gandales
que, partido de Urganda, se tornou para o seu castelo...” (AG, p. 29)
13
. Como tal, conduz a
história, relatando os fatos ao leitor. Dirige a narrativa, às vezes omitindo a fala de uma
13
Todas as referências às obras do corpus deste trabalho serão feitas utilizando-se as iniciais de seus títulos. A
saber: AG para Amadis de Gaula e ADSG para A Demanda do Santo Graal.
116
personagem, expõe tal decisão e narra sobre outro personagem. Indica, pois, este artifício
narrativo que a personagem deixada por um tempo ainda continua a agir na diegese, mesmo
não estando, naquele momento, sob o foco das atenções do narrador.
O narrador se mostra, assim, conhecedor dos elementos que desenvolvem o conteúdo
diegético, fazendo sobressair aventuras e feitos heróicos, a presença do maravilhoso e do
fantástico, que extrapolam o real e alcançam o imaginário. Compreendem-se estas passagens
narrativas como inserções homodiegéticas, herança da oralidade, pois que ocorre nos
momentos em que o narrador dispõe o texto a falar de outro assunto, de outra aventura ou de
outra personagem. Estes trechos podem ser considerados como introdutórios e, ao mesmo
tempo, transitórios, de um episódio a outro, chamando a atenção do leitor.
Segundo Bourneuf & Ouellet (1976), esse tipo de narrador revelou-se assíduo e eficaz na
narrativa romanesca. Os críticos franceses destacam esta característica, especialmente, a partir
da ótica externa com que narram as personagens, suas aventuras e feitos maravilhosos.
Levando em conta que aventuras, feitos inéditos e maravilhas são aspectos inerentes às
novelas cavaleirescas, não é surpreendente encontrar, nesta narrativa quinhentista, a referência
marcada a este tipo de focalização, que prioriza as personagens pelas circunstâncias em que se
envolvem e muito menos pelas características individuais. Aliás, é forçoso afirmar que os
aspectos individuais apenas são apontados como reflexos das ações, atitudes e
comportamentos das personagens. Nítida a adequação desta focalização às novelas de
cavalaria, pois que retrata fielmente o espírito de aventura fortemente impresso nas narrativas
medievais.
A personagem-foco desta obra, Urganda, a Desconhecida surge logo no primeiro capítulo,
intitulado “Infância de Amadis”, cuja referência à tradução de Montalvo é “Livro Primeiro,
Capítulo II”. Urganda aparece a Gandales, pai adotivo de Amadis, e ao revelar um enigma,
suscita dúvida quanto às suas palavras, porque se nega a explicar-lhe o real sentido. No
entanto, momentos depois, encontra-se em situação de perigo e roga proteção e defesa,
alegando sofrer perseguições. Não conhecendo a donzela, mas agindo como perfeito
cavaleiro, mantém a conversa e defende-a. Nesta altura, Urganda mostra-se conhecedora de
acontecimentos passados e futuros relacionados ao Donzel do Mar e procura alertar Gandales
dos perigos que corre e profetiza a grande personalidade que se formará no jovem donzel:
117
__ Falo-te daquele que achaste no mar, que será a flor dos cavaleiros do seu
tempo; ele fará estremecer os fortes, ele começará e acabará com honra todas
as coisas em que os outros faleceram; ele obrará tais façanhas que ninguém
cuidaria que pudessem ser começadas e acabadas por corpo de homem; ele
fará amansar os soberbos; ele terá crueza de coração contra aqueles que o
merecerem; e mais te digo ainda que este será o cavaleiro do mundo que
mais lealmente há-de manter o amor... E sabe que ambas as partes vem de
reis. Agora vai-te, disse a donzela, e acredita firmemente que tudo
acontecerá como te digo; mas, se o descobrires, por isso te virá maior mal do
que bem. (AG, p. 28)
Traços de sua individualidade estão expressos nesta passagem. Urganda manifesta-se
portadora de conhecimentos importantes aos personagens. Aborda Gandales e profetiza que o
Donzel do Mar há de se tornar o melhor cavaleiro do mundo. Desta maneira, Urganda mostra-
se amiga e grata por ter sido defendida por Gandales. Ao mesmo tempo, ela denota astúcia e
bondade, pois apenas explicou os enigmas em troca de um favor recebido.
Não há referência a Urganda, na obra, como nenhum tipo de ser fantástico. Não aparece
denominada como bruxa, feiticeira ou fada; apenas como “a Desconhecida”. É inicialmente
por seu nome que o leitor conhece sua condição especial. “Desconhecida” remete a mistério,
ao que se não distingue ao que não se reconhece, enfim, a algo indefinido. Urganda percorre a
história de Amadis sem pertencer a lugar algum. Aparece e desaparece como num passe
mágico. Tudo quanto se relaciona a ela liga-se a poderes sobrenaturais, desde a indefinição
quanto a sua origem. Entretanto, em contato com os outros personagens, Urganda não causa
estranheza. Sua presença é bem recebida e sempre significa mudanças ou prenúncios de
mudanças. Com exceção de alguns momentos em que utiliza seus poderes mágicos, não causa
espanto. O fato de, algumas vezes, demonstrar suas habilidades extranaturais, não a distingue
como um ser temerário. Há uma convivência bastante natural entre Urganda e os outros
personagens da novela. As suas aparições, apesar de inesperadas, fazem parte das maravilhas
perseguidas pelos cavaleiros, como Amadis. Suas intervenções são bem vindas, pois age, de
certo modo, a favor da justiça e da lealdade.
Não existe, no texto, informação sobre a compleição física de Urganda, entretanto, em sua
primeira aparição, ao identificar-se a Gandales, utiliza-se abertamente, de magia para ser
reconhecida por ele. De donzela transfigura-se em uma senhora muito idosa, deixando o
cavaleiro terrificado por presenciar tal maravilha:
- Então dizei-me o vosso nome, pela fé que deveis à cousa do mundo que
mais amais.
118
- Dir-to-ei, já que tanto me conjuras; (...) sabe que meu nome é Urganda, a
Desconhecida. Olha-me agora bem, e vê se me reconheces. E ele, que de
começo a vira donzela, como quem aparentava dezoito anos, viu-a tão velha
e tão lassa que se espantou de como podia suster-se em cima do seu
palafrém. Começou ele a benzer-se daquela maravilha, mas, quando ela
assim o viu, e pegou de uma boceta que trazia no regaço, e por si voltou à
sua primeira feição (AG, p. 28-29).
Ao perceber o susto de Gandales, novamente usando de artifícios mágicos, retorna à sua
forma inicial. Este trecho da narrativa encaixa-se perfeitamente nas atitudes mágicas da
feiticeira e da bruxa medieval, se as afirmações de Nogueira (2004) forem consideradas
quanto às características que definem o campo de ação dessas figuras. Ao utilizar-se de tais
artifícios Urganda se configura feiticeira e, ao transmudar sua fisionomia, sem a ajuda de
subsídios materiais, ela, simplesmente, se torna bruxa. Segundo o historiador, há aspectos
formativos bastante distintos quanto à imagem que se tem da bruxa e da feiticeira. No
medievo, a bruxa assume um caráter rural e basicamente inato; os seus poderes foram-lhe
atribuídos por meio de uma conspiração com o Demônio. Portanto, a capacidade de
transformar-se, instantaneamente na figura de uma donzela para uma idosa, significaria muito
mais bruxaria do que somente feitiçaria. No entanto, quando Urganda desfaz o feitiço, ou seja,
o ato mágico, ela usa algo de uma caixinha que trazia consigo, configurando, deste modo,
uma recorrência à materialidade, ainda que destinada ao ato sobrenatural. Isto a aproxima do
caráter da feiticeira. O fato de valer-se de elementos não espirituais inscreve a mulher no
universo da feitiçaria.
Nogueira (2004) considera a feiticeira como urbana, agindo em ambientes repletos de pessoas
que recorriam aos seus conhecimentos, diferentemente da bruxa, que buscava isolamento no
campo. A união destes dois aspectos em Urganda demonstra que estes conceitos se uniram,
formando uma imagem unipolarizada da mulher detentora de poderes mágicos, a bruxa ou
feiticeira. Neste ponto, os encontros são nítidos em Amadis de Gaula. Urganda representa
ambas as configurações mágicas em corpo de mulher.
Outras duas razões, eminentemente femininas, concorrem para a definição do caráter da
feiticeira: uma relacionada ao encantamento de homens, ou ainda ao enfeitiçamento do sexo
masculino, com a intenção de subjugá-lo; outra, concernente ao lado trágico da mulher, no
que se refere à frustração amorosa. Urganda mostra-se, em dois momentos de sua primeira
passagem, exemplificando estas duas razões e, portanto, inscrevendo-se na acepção da
119
feiticeira sugerida por Nogueira. No trecho em que se encontra com Gandales e lhe pede
ajuda, está sendo perseguida por um homem que a detesta. Inicialmente, a razão não é
revelada pelo cavaleiro e após Gandales defender a donzela, utilizando-se de armas, Urganda
ordena que se apartem e ao tomar a palavra o cavaleiro que a perseguia cai aos seus pés,
tornando-se seu servo, para o espanto de Gandales.
Ao se revelar, declara o seu amor àquele homem, mesmo sabedora do seu ódio. Entretanto,
não suportando a idéia deste desamor, apela para os meios naturais ilícitos, objetivando a
realização de seus desejos amorosos e trazê-lo para junto de si: “(...) mas a cousa do mundo
que mais amo, sei eu que mais me desama; é aquele mui formoso cavaleiro, com quem te
bateste; mas nem por isso deixo de o trazer sujeito a minha vontade, sem que ele algo mais
possa fazer” (AG, p. 28). O motivo todo da pequena trama entre estes personagens é que o
cavaleiro amado de Urganda estava em companhia de outra donzela. O sentimento de ciúmes
é confessado por Urganda, logo após tê-lo enfeitiçado:
- Dizei àquela donzela, que está debaixo da árvore, que se vá embora quanto
antes; se não, que lhe talhareis a cabeça.
- Ah, malvada! Maravilhado estou de te não cortar a cabeça.
A donzela viu que o seu amigo estava encantado, montou seu palafrém,
chorando, e foi-se logo embora (AG, p. 27).
Desta forma, Urganda é movida pelo sentimento de frustração trágica do qual Nogueira expõe
como motivador de feitiçaria. Age levada pelo sentimento de amor que a impele a encantar o
cavaleiro na intenção de subjugá-lo. O trecho citado no parágrafo anterior mostra claramente
a sujeição do cavaleiro às vontades de Urganda.
Considerando tais concepções a respeito de bruxa e feiticeira, configura-se Urganda como
uma personagem que reflete, embora não precisamente, as características de uma figura que
existiu na Idade Média, em verdade ou no imaginário coletivo. Para muitos estudiosos da
História, a bruxa é uma construção mental coletiva que representa as atribulações espirituais
do homem medieval a partir do século XV. Sallmann (2002) expõe este fato de forma
coerente, ao afirmar que os juizes seculares e a Igreja foram responsáveis pela perseguição às
bruxas e a outros tipos de heréticos. Aponta os séculos XV e XVI como extremamente
conturbados, uma vez que a cristandade ocidental era dividida pelas heresias e sofria diversos
120
golpes estruturais, como a Reforma Protestante, por exemplo. Para o autor, deve-se, pois,
situar o conceito de bruxaria nestes contextos atribulados do medievo final.
Ao levar em conta a época em que a obra Amadis de Gaula foi publicada pela primeira vez,
pode-se situar Urganda como detentora das características que Sallmann destaca como
próprias da bruxa medieval. Aparecendo e desaparecendo sem deixar vestígios, não
pertencendo a lugar algum, não se deixando encontrar, a não ser que ela mesma deseje, são
indícios da diafaneidade que cerca a mulher misteriosa, personagem de Urganda. Representa,
pois, aquela que age às escondidas, que busca isolamento, e somente surge em momentos
importantes da trama, apontando para o perigo e prenúncio de catástrofes, tempos
problemáticos em variados aspectos.
Assim se apresenta Urganda no texto de Amadis. Entretanto, apesar de abarcar tão fortemente
as características do século XV, a personagem ainda confere à obra o resgate das heranças
folclóricas e pagãs (legado anticristão e ante-Cristo), permanecendo impressas no
subconsciente coletivo da população. Revela uma ligação não temporal entre a época retratada
na novela e a época da editoração primeira. São particularidades inerentes à novela
cavaleiresca, pois a própria obra é objeto de investigação literária e histórica, revelando
mistérios insolúveis, com a falta de registros documentais que provem esta ou aquela teoria
histórica. Outrossim, converte-se em transparência a noção de que a personagem pode, de
fato, estar associada à imagem coletiva existente na Idade Média dos seres pertencentes ao
mundo fantástico, alcançando, sobremaneira, a materialidade física das pessoas comuns da
época através de suas próprias crenças, resultadas da desenvolução não comedida de suas
tradições culturais.
Partindo para uma observação acerca da construção da personagem, considerando as
afirmações relacionadas à focalização narrativa e às semelhanças com a figura histórica da
bruxa ou feiticeira, é importante destacar a noção da autoria. Involuntariamente, evoca-se a
presença de um autor que se posiciona por trás do narrador. A idéia de construção de uma
personagem literária sempre esteve associada à maneira que um autor concebe seus
protagonistas dentro do universo diegético. Deste modo, tentando adaptar a obra Amadis de
Gaula, com enfoque na personagem Urganda, às teorias literárias escolhidas para este
trabalho, defronta-se com a questão da “autoria”, que em novelas de cavalaria, não está bem
definida como na maioria dos romances. Amadis tem sérios problemas relacionados à autoria
121
e à língua originária, portanto, não há como iniciar a investigação sobre a construção da
personagem valendo da noção de autoria por trás do narrador. Este é um ponto relevante, pois
que limita a observação ao narrador e, principalmente, ao contexto histórico da novela. São
estes os indícios que poderão revelar traços desta construção de personagem e não o contexto
pessoal ou individual em que o autor está inserido.
Considerando a teoria escolhida, e destacando a distinção de personagens proposta por
Forster (1963 apud AGUIAR E SILVA, 1973), em que estas podem ser planas ou redondas,
pode-se entrever Urganda como uma personagem plana. Seus traços comportamentais
padronizados por toda a narrativa, incluindo-se a inserção de seus poderes mágicos, não
causam tanta surpresa aos demais personagens, o que leva a inferir que para os leitores da
época (ou mesmo para os ouvintes das canções e/ou poemas narrativos), também, não
ocasionava espanto algum. Os indícios históricos apresentados anteriormente podem justificar
esta assertiva. Assim, no decurso da obra, a personagem se delineia como bruxa ou feiticeira
medieval, tal qual ficou conhecida nos séculos seguintes. Não se pode afirmar que as novelas
de cavalaria tenham sido as únicas responsáveis pela construção de personagens do tipo bruxa
ou feiticeira; a origem destes termos e destas figuras remonta a séculos anteriores ao medievo,
bem como a culturas bastante diversas e longínquas.
Urganda é uma personagem plana (em distinção ao conceito de “redonda”, não apresentando
modificações de caráter) pela capacidade previsível de suas ações. Por toda a narrativa, ela
aparece sempre da mesma maneira, não sofrendo alterações de caráter íntimo. Os fatos aos
quais se liga não influenciam em sua personalidade, logo não determinam alterações em suas
atitudes. Apesar de sua presença ser um tanto “etérea”, isso não caracteriza modificação
interior na personagem. Ela sempre age de forma semelhante: aparece e desaparece
inesperadamente, utiliza seus poderes sensoriais, faz predições, profetiza o futuro, avisa,
alerta e, ao mesmo tempo, busca satisfação pessoal através de suas habilidades sobrenaturais.
Urganda engloba perfeitamente aspectos dos modelos marginais de representação feminina
medieval: a bruxa ou a feiticeira.
Analisando, em última instância, a intrínseca relação existente entre pessoa e personagem, que
configura a mesma relação entre realidade e ficção, encontra-se uma dualidade de posições:
Aguiar e Silva (1973) dispõe a personagem redonda como capaz de evolucionar dentro da
narrativa e que esta capacidade denota uma clara identificação com o ser humano; são
122
atribuições a protagonistas, em sua maioria. Logo, se Urganda for considerada como
personagem plana, estaria longe de qualquer aproximação com o elemento humano. No
entanto, ao cotejar a personagem com a figura histórica da bruxa ou feiticeira medieval, uma
identificação suficientemente explícita apresenta-se.
Para os propósitos deste trabalho, não é de suma importância que esta classificação tipológica
de Forster esteja em plena concordância com a construção dos personagens de Amadis.
Mesmo porque é sabido que existem outras possibilidades de classificação; assim sendo, o
que interessa é que há uma relação íntima entre a ficção e a realidade, que se representa
através das personagens, semelhante a um reflexo da humanidade. As personagens definem o
ser humano em épocas, locais e culturas diferentes, ao passo que este parece ser definido por
personagens que o representam.
Considerada, porém, personagem plana em alguns aspectos, Urganda se mostra redonda
quanto ao seu comportamento em analogia com a História, que comprova a existência mental
da bruxa ou da feiticeira. Esta dualidade concorre para a complexidade que cinge a
personagem, atentamente observada. A História se entrelaça com a Literatura, criando
difíceis nós a serem desatados, configurando-se, uma riqueza de informações sobre o ser
humano. A personagem de ficção exerce uma fascinação sobre o leitor (ou ouvinte), que
domina o imaginário do ser humano. O universo literário pode estabelecer a aceitação ou
negação de comportamentos ou atitudes surgidas das aventuras vividas pelas personagens.
Esta identificação, que imprime atos de julgamento entre a pessoa-leitor e personagem, é
decorrente do fato de existirem semelhanças entre a ficção e a vida real, bem como entre
personagens ficcionais e pessoas verdadeiras.
A Literatura convencionou chamar esta maior ou menor semelhança entre estes dois universos
de “verossimilhança”, que define a identificação do leitor com a personagem através da
dependência da concretização que o leitor sente em relação ao que é retratado na narrativa.
Assim, quanto mais próximo do real, maior a verossimilhança e, portanto, a possibilidade de
identificação. Para a fundamentação dessa abordagem que enfoca o diálogo entre estas duas
esferas, Antônio Candido e Anatol Rosenfeld passam a ser as principais referências teóricas.
Candido (1985) define as personagens romanescas como entidades sobrecarregadas de sentido
e extremamente capazes de provocar efeitos sobre as pessoas. Dada esta habilidade, seja em
decorrência do talento do escritor, seja provinda da engenhosidade do narrador, a personagem
123
se configura no que existe de mais vivo numa narrativa. Em Amadis, Urganda se assemelha à
bruxa ou feiticeira medieval, tal como é descrita por historiadores. Portanto, apesar de ser
apresentada e muitas vezes envolta em mistério, não deixa de produzir nos leitores a sensação
verdadeira de uma existência. O fato histórico relacionado a feiticeiras e bruxas, herança
indiscutível do medievo, torna-se fator determinante de verossimilhança, trazendo à tona, para
o leitor, a imagem de um ser exposto historicamente, revelando uma referência direta à
realidade.
Ainda com relação à identificação entre pessoa e personagem, Candido (1985) aponta para
um paradoxo aparente nesta questão: se a personagem é um ser fictício, como pode ser um
“ser” se, realmente, não existe? Afirma o estudioso que este suposto paradoxo constitui-se na
base fundamental da verossimilhança, ou seja, esta identificação, maior ou menor, que se
instala no momento da leitura, entre leitor e diegese, depende da possibilidade de um ser
fictício produzir a sensação da mais genuína realidade. Complementando, assim, o parágrafo
anterior, quando se encontra em obras fictícias, referências a pessoas ou coisas que,
notadamente, são conhecidas no ambiente real humano, a instituição da verossimilhança flui
naturalmente e concorre, portanto, para a extrema identificação de ficção e vida real, bem
como de personagem e pessoa. A História corrobora a identificação de Urganda com a
verdadeira bruxa ou feiticeira que existiu no medievo. Compará-la às verdadeiras concepções
femininas de mulher e de bruxa não se configura, de modo algum, em ideais infundados,
desde que se considere a relação entre realidade e ficção.
Outro fator muito importante que Candido (1985) destaca é a questão da continuidade da
percepção física e a descontinuidade da percepção espiritual. A continuidade da percepção
física fornece os fundamentos de nosso conhecimento, uma vez que, para que este ocorra, é
necessário um contato físico, em primeiro lugar. Já a descontinuidade da percepção espiritual
revela os diferentes modos de ser ou de qualidades humanas, comumente confusas,
contraditórias e inexpectáveis. À vista disso, se deduz que o ser humano não é capaz de
abranger completamente a personalidade de outro com a mesma uniformidade com que pode
divisar o feitio exterior. Naturalmente, pessoas são imprevisíveis; a noção máxima que um ser
pode ter de outro provém de fragmentos de diálogos, de convivência ou de observação direta
e indireta. Eclarece que essa noção é o bastante para que se estabeleçam relações, condutas e
atitudes diante dos fatos da vida; entretanto, por ser esta noção incompleta, oscilante e
descontínua, determina a fragmentação do conhecimento de uma pessoa em relação à outra.
124
Aplicando essas afirmações à personagem, Candido a distingue como, também, fragmentária,
pois o conhecimento que um autor possui sobre uma personagem que está criando é,
igualmente, limitado; o autor utiliza os mesmos padrões de observação com que elabora a
apreciação de outro ser humano. O crítico brasileiro ainda acrescenta que, na vida real, esta
descontinuidade de percepção é inerente ao homem; já na criação literária, esta característica
é assumida racionalmente pelo escritor. Ao ser humano não é dada a capacidade de conhecer
a trilha de vida de outra pessoa; na produção de uma personagem, cabe ao escritor decidir o
seu destino, suas estruturas emocionais e sua trajetória de “vida”.
Esta característica fragmentária do ser humano que Candido aplica, da mesma forma, à
criação de uma personagem é um fator bastante explícito nas personagens consideradas
bruxas ou feiticeiras das novelas de cavalaria. Estando estas demonstradas pelo que a história
deixou como herança do medievo, a figura de Urganda em Amadis de Gaula, enquadra-se
perfeitamente na fraccionalidade acima exposta, no que se refere à descontinuidade da
percepção espiritual do ser humano. Tal ocorrência é explicada pelo fato de que todas as
referências ou registros documentais deixados acerca de bruxas ou feiticeiras da Idade Média
foram produzidos por terceiros. Isto equivale a dizer que nenhum documento ou registro
histórico apresenta traços do que as próprias pessoas consideradas bruxas ou feiticeiras
pensavam a respeito de si mesmas ou das comunidades em que viviam. Todo relato existente
provém de pessoas que as julgavam por seu exterior.
Por conseguinte, o caráter fragmentário da personagem é, em Amadis, duplamente aplicável:
Urganda é descrita pelo narrador por meio da sua concepção que, por sua vez, reproduz a
imagem da bruxa ou feiticeira difundida em seu tempo e de acordo com as tradições locais.
Considerando-se a época em que a obra foi editada, século XVI, Urganda pôde ser vista como
um ser disposto entre o Bem e o Mal. Sabe-se que o final da Idade Média esteve às voltas com
idéias contraditórias acerca da bruxaria e feitiçaria e duas correntes de pensamento
evidenciaram-se antes que se instalassem as perseguições da Inquisição que levaram muitos à
fogueira. Uma delas aceitava a existência da feiticeira boa (aquela que conhecia ervas
medicinais e que realizava curas) e da má (aquela que impingia encantamentos maléficos). A
segunda corrente apontava apenas para a existência demoníaca da bruxa ou feiticeira,
considerando-as como parceiras do demônio, logo, eram, sem distinção, as executoras
concretas do Mal e deveriam ser castigadas.
125
Desta forma, com o decorrer do tempo, apenas a segunda corrente manteve-se no domínio do
pensamento geral das comunidades européias, dando oportunidade para que verdadeira
mortandade, ocasionada tanto pela Igreja como pelo tribunal secular, marcasse todo um
período. E, considerando, agora, a época retratada na obra Amadis de Gaula, anterior ao seu
tempo de editoração, encontra-se a personagem Urganda em total conformidade com os
preceitos da sociedade daqueles tempos imemoriais: forças sobrenaturais eram encaradas
como uma extensão das forças naturais, logo, a forma espontânea com que a personagem é
apresentada na novela denota essa naturalidade sentida pelo ser humano em relação com as
forças agentes em seu derredor. Entrementes, mesmo a convivência pacífica entre as forças
materiais e as espirituais não foge à caracterização fragmentária defendida por Candido,
quanto à criação da personagem. O narrador em Amadis não tece juízos acerca da figura de
Urganda, entretanto, é através dele que se trava conhecimento da personagem em ação com os
protagonistas. Assim, a noção de que o olhar sobre ela vem de uma posição não pertencente
ao universo fantástico fica clara para o leitor, mesmo que a personagem não reflita seus
pensamentos e aflições, apenas dialogue e desenvolva movimentação dos fatos presentes na
narrativa.
Pode-se perceber esta característica, em relação à construção da personagem, nas passagens
selecionadas abaixo, onde é possível vislumbrar a inserção da personagem apenas por suas
ações, não transparecendo qualquer juízo ou esforço em caracterizar o íntimo da personagem:
Mas um dia, andando Gandales à caça, encontrou uma donzela, que lhe
disse:
- Ai, Gandales, se muitos altos senhores soubessem o que eu agora sei,
cortar-te-iam a cabeça! (AG, p. 25)
Armado cavaleiro, o Donzel do Mar, com o seu escudeiro Gandalim, parte
em busca de aventuras. Um dia Urganda, a Desconhecida, traz-lhe uma lança
e anuncia-lhe que dentro de pouco tempo com ela dará golpes que salvará a
casa de seus pais (AG, p. 41).
Candido assevera que uma personagem pode ser produto de várias fontes de inspiração, desde
a observação direta ou indireta de uma pessoa conhecida à pura invenção provinda da
imaginação da mente de um escritor. Tal processo pertence ao escritor, pois mesmo que este
aproveite idéias, imagens, pessoas, coisas, acontecimentos, lugares, memórias e sentimentos
para compor uma personagem, ele ainda estará agindo de acordo com suas próprias
convicções. O que distingue a criação de uma personagem para Candido é o fato da não
126
imitação da realidade, uma modificação a partir do aproveitamento de elementos reais,
inserindo-a num universo fictício, além da ilusão de fidelidade para com o real.
Estas concepções de Candido tornam-se complexas ao analisar a personagem Urganda, de
Amadis. A falta de dados referentes a um escritor e a provável múltipla autoria, prática
comum da literatura cavaleiresca medieval, dificultam os meios de aprofundamento da
questão. Entretanto, as informações da história medieval e, particularmente, da história da
bruxaria e feitiçaria, configuradas na personagem em questão, levam a compreender o papel
do contexto histórico e cultural dos possíveis autores de Amadis como elementos importantes
na sua construção (ou na desenvolução). Fato é que muitos creditam à prosa medieval uma
verdadeira descrição da vida comum do homem daquela época. Não se pode ignorar que tal
tarefa, embora importante para a história, não faz da literatura um registro documental.
Cândido argumenta ainda que a personagem, sendo uma cópia do real, traz como elemento
básico para a sua construção, o desejo de ser fiel à realidade.
Duas possibilidades, assim, oscilam na criação de uma personagem: transposição fiel de
modelos ou invenção totalmente imaginária. Cada escritor imprime a suas personagens
combinações desejadas dentro destes dois limites. Para o crítico brasileiro, os limites da
criação literária novelística, no tocante à personagem, repousam nestas duas possibilidades.
Considerando tais definições, a personagem Urganda, produto de vários autores, revela o
esforço que tiveram na reescrita da obra e na manutenção de suas características, havendo,
assim, uma coerência interna na combinação dos variados elementos dentro dos limites da
criação literária. Se, por outro lado, o Amadis teve apenas um único autor, da mesma maneira,
as fontes inspiradoras mais aparentes se configuram nas tradições orais e nos costumes pagãos
que Urganda traz impressos em suas atitudes.
O sentimento de verdade que ocasiona a verossimilhança não deve, no entanto, ser avaliado
apenas através da comparação da narrativa com a vida real; muito mais importante, segundo
Candido (1985), é a análise da composição narrativa. Isto equivale dizer que somente uma
organização estrutural coerente da narração é capaz de produzir a verossimilhança. Mesmo
que uma história narrada seja a cópia fiel de um acontecimento verdadeiro, só surtirá o efeito
da verdade se estiver organizada de forma coerente. A personagem, por sua vez, só alcança a
qualidade de verossímil quando estabelecer relações com os outros elementos da narrativa.
Verdade, verossimilhança e coerência interna são fatores intimamente vinculados à
127
distribuição conveniente das características expressivas das personagens, que se entrelaçam
com outros elementos na composição geral de um romance.
Urganda apresenta uma coerência concernente à imagem difundida da bruxa ou feiticeira
medieval por aqueles que não viam em sua figura uma ameaça à ordem espiritual. Segue um
padrão relativo às ações esperadas de seres providos de poderes sobrenaturais e a sua relação
com os outros elementos da narrativa também se enquadra de forma apropriada à figura
fantástica das bruxas. Em contato com outras personagens, mostra-se amiga ou astuta; faz
predições, dá conselhos e realiza profecias. Em relação ao espaço, parece pertencer ao
universo maravilhoso, mas coloca-se paralelamente ao universo material e sua transição de
um a outro espaço ocorre de maneira natural, sem necessitar de referências explícitas: “Um
dia Urganda, a Desconhecida, traz-lhe uma lança e anuncia-lhe que dentro de pouco tempo
com ela dará tais golpes que salvará a casa de seus pais. Seguiu o donzel o seu caminho (...)”
(AG, p. 41). Esta passagem denota a forma com que a personagem aparece e desaparece sem
causar espanto ou maravilhar alguém. O tempo para ela também é posto de forma a concordar
com suas características vagas e incertas: “Um dia, estando reunidos os reis e cavaleiros na
Ilha Firme, Urganda, a Desconhecida, rememora os factos passados e anuncia os futuros
feitos de Esplandião, filho de Amadis e de Oriana” (AG, p. 93).
São estes apenas alguns exemplos do que Candido expõe como essência da coerência interna
de um romance. Os elementos se entrelaçam como a uma coreografia, sendo ordenados
convenientemente ao longo da ação vivida pelas personagens. Esta coerência, segundo o
estudioso, é a responsável pela produção do sentimento verdadeiro que permite a fruição do
leitor. A verossimilhança só é possível se todos os elementos da narrativa estiverem em plena
concordância, dentro dos limites da narrativa ficcional.
As considerações de Rosenfeld (1985) sobre a personagem de ficção partem do mesmo foco
abordado por Candido, ou seja, estão pautadas na relação entre realidade e ficção. Várias
idéias do crítico são partilhadas por Rosenfeld, especialmente aquelas que se referem ao papel
imprescindível da personagem na estrutura narrativa. No entanto, as diferenças de abordagem
da personagem fictícia não apresentam discordâncias entre os dois estudiosos. Refere-se mais
ao estabelecimento do caráter fictício da literatura em geral e, conseqüentemente, da narrativa
romanesca, do que aos aspectos da relação intrínseca entre personagem e pessoa ou ficção e
vida real, tal como Candido expõe. Posicionando-se a favor de aspectos já discutidos, chega a
128
conclusões semelhantes, porém trilhando caminhos diferentes. Analisa mais profundamente a
questão estritamente ficcional da literatura e, por conseguinte, a personagem, que, ao mesmo
tempo em que se relaciona intimamente com o leitor, mantém com este uma distância
marcante que os separa em dois mundos distintos.
O primeiro crítico comprova uma aproximação das personagens fictícias com o ser humano e
dispõe os fatores que concorrem para fortalecer estes laços. Rosenfeld, por outro lado, aceita a
existência desta relação, mas aponta outros fatores que, na verdade, mais afastam do que
unem as duas esferas, abordando a fantasia e a realidade como espaços completamente
separados, mesmo que interdependentes. Para ele, o mundo retratado num romance é um
universo de objectualidades imaginárias e intencionais, construído de palavras e orações.
Seria simples a dedução de que a realidade pouco influencia como fonte inspiradora de
criação literária. Entretanto, não é isso que o pesquisador propõe. O que ele distingue como
objectualidades são invenções da mente humana, representativas do mundo real, porém
existentes num mundo irreal, fictício. É neste ponto que suas idéias denotam a linha divisória
entre a realidade e a ficção literária. A realidade, sim, se constitui grande fonte de inspiração,
relaciona-se simbionticamente com a ficção, mas mantém-se à parte desta.
Rosenfeld argumenta que a representação do real através do imaginário é imanente à obra
literária. Deste modo, a “verdade” literária é questionável; o sentimento de verdade refere-se a
acontecimentos reais e a seres humanos. Sendo apenas uma representação do real, a ficção
acaba por se preocupar com a autenticidade ou a sinceridade do autor e não, necessariamente,
com o que realmente aconteceu; a ficção busca adequar a subjetividade do autor ao que
poderia ter acontecido. Sintetizando esses pressupostos de Rosenfeld, poder-se-ia dizer que o
crítico afirma não ser correto a aplicação de critérios de veracidade cognoscitiva a enunciados
fictícios, pois pareceriam falsos. A literatura não se ocupa de falsidades. Mesmo tratando de
mundos objectuais, se configuram mundos irreais, mas não falsos.
Procurando adequar estas considerações com a personagem Urganda, de Amadis, como ser
fictício representante de um modelo real, a bruxa ou feiticeira medieval, pode-se deduzir que
a história, como fundamento de análise contextual para a análise literária, se constitui em
referência a algo que, por si, já era considerado “irreal”. Desta forma, a dúvida com relação à
existência verdadeira da bruxa ou feiticeira ocasiona que esta personagem, isto é, uma
objectualidade, jamais poderia representar uma figura humana, pois que esta, apesar de existir
129
no imaginário medieval, sempre carregou o estigma da irrealizabilidade. Formando, então, um
paradoxo, pois muitas pessoas reais foram assassinadas por serem julgadas bruxas ou
feiticeiras, tornam-se difíceis as idéias de Rosenfeld à personagem Urganda, porém é possível
entender a essência de seus argumentos. A dificuldade se instala em decorrência da
complexidade que existiu, na Idade Média, de aceitação e de negação do sobrenatural, dada a
forte religiosidade cristã, também posta como forma de domínio social e político. Em síntese,
sendo Urganda uma representação objectual da realidade, ou seja, uma invenção da mente de
um autor (ou de autores), a personagem não tem obrigação de se “parecer” real ou de causar
uma impressão de ter sido retirada da realidade concreta. Basta figurar em seu mundo
fantástico, ainda que este mundo possua bifurcações: a fantasia inerente à personagem fictícia,
segundo Rosenfeld, e a fantasia inerente às mentes medievais que conceberam a imagem da
bruxa ou feiticeira, como expõe a história, servindo de inspiração para a construção da
personagem, segundo Candido.
Igualmente pode-se inferir que as considerações de Rosenfeld acerca da personagem fictícia,
em comparação com as de Candido, assemelham-se mais a uma análise filosófica do que
literária. Partindo deste pressuposto, configura-se complexa a relação entre a personagem
literária Urganda e a bruxa ou feiticeira da vida real. Conceitos existenciais que sobreviveram
a um período histórico, alcançando a imortalidade através de histórias, lendas e mitos
descrevem toda uma cultura. Desta forma, a figura da bruxa ou feiticeira deve ser estudada
num contexto real histórico, reportando os tempos imemoriais à atualidade, povoando o
imaginário do leitor. Obedecendo, pois, a tais critérios, um obstáculo se coloca à frente: de
que forma situar a personagem Urganda em cotejamento com a figura medieval da bruxa ou
feiticeira, uma vez que os dois universos (real e fictício) apenas se entrecruzam, mas não se
amalgamam? A invenção da mente de um escritor, apesar de receber influências do seu meio,
cria um mundo objectual onde a realidade não figura. Esta a proposição de Rosenfeld que
aparta as inserções de um mundo no outro.
Um outro olhar para a verossimilhança também é praticado por Rosenfeld. O grau de
identificação com a realidade é estudado como elemento fundamental para o objetivo da
fruição na leitura e, conseqüentemente, há uma espécie de invasão ao universo fictício. O
leitor entrevê essa identificação, maior ou menor, como caracterizadora e determinante da
intencionalidade ficcional. Numa visão “por trás” da narrativa, numa obra literária, encontra-
se vivo o conjunto de intenções de um autor ao criar as objectualidades destinadas a viverem a
130
ficção criada. Portanto, se a verossimilhança é a aparência de vida real, Rosenfeld apregoa
que não passa de aparência.
Ao estudar Urganda sob este prisma e cotejá-la à mulher medieval, fica evidente que esta
carregava um estigma de mistério que a ligava a seres imaginários ou fantásticos, mesmo que
a realidade fosse concreta. Assim, mais fácil se torna estabelecer um paralelo da personagem
literária com a personagem fantástica da bruxa ou feiticeira, inspirada na vida real. Se o
imaginário para Rosenfeld é tão distinto da realidade palpável (embora interdependentes),
para Candido não se misturam ao explicar a sua existência no ambiente irreal:
Assim, pois, um traço irreal pode tornar-se verossímil, conforme a
ordenação da matéria e os valores que a norteiam, sobretudo o sistema de
convenções adotado pelo escritor; inversamente, os dados mais autênticos
podem parecer irreais e mesmo impossíveis, se a organização não os
justificar (CÂNDIDO, 1985, p. 77).
Urganda configura-se como um modelo representativo da imagem que os medievos criavam
da bruxa ou da feiticeira. O autor (ou supostos autores) de Amadis de Gaula foi capaz de
dispor essa figura fantástica, real na Idade Média testemunhada pela história, de modo coeso e
verossímil, representando elementos tanto do mundo real quanto do imaginário: a mulher, a
bruxa e a personagem. Finalizando as relevantes reflexões de Rosenfeld quanto à personagem
Urganda, há que se reiterar a diferença crucial entre a realidade e as objectualidades
intencionais: estas não têm a competência para atingir a determinação completa da realidade,
convergindo para o caráter fragmentário da personagem, exposta por Candido. A ficção e,
conseqüentemente, suas personagens não possuem a habilidade “humana” para assumir a
completude das relações e atitudes reais de pessoas, em circunstâncias verdadeiras de vida.
Assim, Urganda assume um modelo do imaginário medieval, parecendo tão próxima da
realidade da história, da bruxa ou feiticeira, como mimese da imagem criada da mulher
medieval. Entretanto, o reverso do feminino pode transfigurar-se como o Mal difundido pela
Igreja, alimentando o imaginário do povo sobre os seres fantásticos, com uma
intencionalidade definida e premeditada.
131
4.3.2 Influências pagãs e cristãs presentes na construção da personagem
A Idade Média foi um período profícuo de indeterminações, dúvidas e indefinições quanto à
relação entre o natural e o sobrenatural. Refletindo sobre o contexto, longamente conturbado,
do nascimento do Ocidente, é necessário focalizar alguns fatores essenciais que sobrevieram
ao espírito do homem medieval: Deus e o homem; religiosidade e tradição; cultura laica e
clerical. Todos são aspectos que incidiram diretamente na conduta das pessoas de todas as
classes sociais. E, considerando que a conduta provém do arranjo mental que governa as
ações, as influências recebidas das esferas dominantes foram as que mais persuadiram o
comportamento humano, no medievo, quanto ao direcionamento dado às emoções e ao
controle das forças inerentes à natureza.
A noção de que a figura (ou imagem) criada da bruxa ou feiticeira medieval seja uma herança
apenas da medievalidade é deveras simplista. Seria, desta forma, muito menos complexa a
análise comparativa das personagens literárias construídas na Idade Média, pois não
envolveriam os aspectos históricos remanescentes de culturas antigas que transparecem nas
narrativas cavaleirescas. Entretanto, é sabido que, por toda contextualização cultural do
medievo, entrechocando-se culturas, crenças e hábitos, bem como o estabelecimento da
Cristandade, a imagem da bruxa ou feiticeira sofreu inspirações diversas, acréscimos culturais
variados e foi inserida em ambientes sagrados e profanos ao mesmo tempo.
Estas condições proporcionaram à personagem real da bruxa um poder extraordinário sobre a
mulher na Idade Média. Estando esta mais afeita a mistérios e, devido aos pensamentos
luxuriosos masculinos, detendo fascínio sobre os homens, as ações bruxescas se apropriaram
da imagem feminina, mesmo havendo histórico antigo da existência de magos e bruxos em
tempos pagãos. No entanto, nos primeiros séculos medievais, ainda em nítida confusão
cultural, o elemento masculino da magia pareceu ficar isolado às religiões pagãs, de forma
que, ao passo em que estas desapareceram, os magos também se evadiram. A imagem de
magos ligados a sacerdotes de religiões profanas, notadamente a religião Celta, foi muito
comum e recorrente, todavia, permaneceu nestas esferas. Já a feiticeira ou bruxa espalhou-se
pela Europa de formas variadas, confusas, difusas e não desapareceu com a aniquilação das
religiões pagãs. O medievo, ao contrário, conheceu o seu poder da maneira mais contundente.
132
Barros (2004) explica que, em se tratando da imagem criada ao redor das bruxas ou feiticeiras
medievais, é interessante ressaltar a leitura do sobrenatural que perdurou, principalmente, no
século XII. A autora comenta que o sobrenatural divino e o diabólico paralelizavam-se,
entrecortavam-se e, de certa forma, conviviam povoando o imaginário do homem comum. O
divino ligava-se ao Bem, sendo representado pelo Maravilhoso cristão e apoiava-se nos
milagres; denominava-se, então, miraculosus. O diabólico ligava-se ao Mal e apoiava-se em
seres fantásticos e maléficos; denominava-se magicus. As duas faces do sobrenatural,
portanto, dialetizavam, marcando, sobremaneira, o caminho dicotômico percorrido pela
religiosidade cristã. Entretanto, o século XII foi palco de um acontecimento que proporcionou
um equilíbrio entre as duas forças, colocando-se como um intermediário, passível de reatar as
partes desmembradas da essência humana:
(...) o século XII foi o momento em que as lendas de origem celta, oriundas
das ilhas da Bretanha e da Irlanda, invadiram o continente e com elas
infiltrou-se um Maravilhoso de origem pagã, um sobrenatural neutro –
mirabilis – que transitava entre os dois níveis: o bem e o mal, o sagrado e o
profano, apagando, desta forma, as distâncias entre os opostos delimitados
pelos religiosos (p. 166).
Marcados por movimentos religiosos e literários, os séculos XII e XIII ofereceram
oportunidade para que o espírito medieval se expandisse, colocando-se em meio a um fogo
cruzado constituído pela guerra interna criada pela Igreja, numa tentativa ferrenha em manter
o poderio masculino e a estrutura organizacional que privilegiava a religião do Pai e do Filho.
À proporção que a literatura apresentava a mulher nos moldes celta-pagãos, como seres
superiores e responsáveis pelo amor, a Igreja intensificava a luta pelo estabelecimento padrão
do comportamento humano em que o domínio social repousava, unicamente, sobre mãos
masculinas. No entanto, a própria consciência humana, meio que involuntariamente, trouxe à
tona o culto a Maria e a Maria Madalena, colocando-se esta última como força intermédia
entre o Bem e o Mal, característica herdada das culturas pagãs que dispunham,
harmonicamente, a dualidade essencial dos deuses.
Barros (2004) registra que os deuses antigos eram ambivalentes ou se apresentavam em
duplas que se opunham e, ao mesmo tempo, se completavam. Assim, afirma que a questão da
dualidade humana era entrevista com naturalidade pelos povos pagãos. Somente as religiões
monoteístas tiveram dificuldades para explicar a existência do Mal, pois que ao exigirem um
Deus único e essencialmente bom, detiveram-se no obstáculo complexo de compreender e
133
fazer entender o Mal. O ideal perfeito compreendido pelos povos anteriores a Cristo era que
mesmo um único Deus deveria concentrar toda a bondade e a maldade, promovendo assim o
equilíbrio das forças; entretanto, ao afirmar que um Deus seria apenas bondade, o Mal ficou,
sem dúvida, relegado ao mistério e ao pavor do desconhecido.
Viu-se a Igreja impelida a agir de forma que convencesse a população de que o Bem era
representado pelo Deus Onipotente e o Mal vinha a ser o seu oposto: o Altíssimo, no Céu, em
contraposição com o Renegado, nas profundezas da Terra. Esta dualidade não foi encarada
como essência do ser humano e, desta forma, seus aspectos foram separatistas e não
complementares como nas religiões politeístas antigas. O universo do Bem não deveria entrar
em contato com o do Mal; se tal ocorresse, haveria disputa e a infinita força de Deus, por ter
sido Ele mesmo a expulsar Satanás do ambiente celestial, seria sempre vitoriosa sobre aqueles
que merecessem o Paraíso. Desta forma, a religião cristã se impôs como julgadora,
condenando o comportamento moral dos homens. Quanto mais sacrifícios, mais próximos da
santidade; quanto mais luxúria, mais próximos e, conseqüentemente, condenados às esferas
inferiores dominadas por Satã, sem oportunidade de redenção.
Esta condição unilateral exigida pela Igreja Católica negou o dualismo humano, que tanto já
havia promovido o equilíbrio das forças naturais entre os povos pagãos e fez surgir, desta
maneira, a intolerância e a hipocrisia entre as pessoas. O homem, por natureza, não é perfeito
em seus sentimentos nem atitudes; a Igreja quis que assim o fosse e a obrigação relacionada à
virgindade e à castidade levou ao cúmulo da criação de uma imagem que deveria assumir
todas as culpas e reveses da humanidade, a mulher. Representada, inicialmente, por Eva, a
pecadora, a mulher preencheu todos os requisitos necessários para ser inscrita à margem do
que Deus legou ao homem. Assimilando, na confusão das culturas que se chocaram, as
características cristãs frente às pagãs, a figura feminina perpassou momentos de angústia,
incompreensão, mistério, intolerância e luta.
A misoginia surgiu num misto de repúdio e desentendimento quanto ao papel da mulher na
sociedade. Igualmente, Barros (2004) comenta que as heresias conservavam a mulher como
sábia caída ou como “prostituta sagrada”, desta forma configurando-se num resgate à Grande
Deusa, que encerrava as funções sacras da reprodução humana, sem, no entanto, ligar-se à
dogmas morais de comportamento. Tais atitudes foram, sumariamente, combatidas pelo Clero
e à existência irremediável da herança grega quanto à dicotomia do corpo e da alma, a Igreja
134
assimilou a imagem do corpo da mulher como espelho da sedução: a mulher, de
incompreendida, “passa a ser a sedutora, a fingidora, a tentadora do homem. Luxúria é a
imagem da mulher, a carne a serviço do Mal, a perdida que, como vingança, tem como único
desejo a perdição do homem” (p. 333).
Nesta ação inflexível empreendida pelos religiosos cristãos, figurou uma megalomania
explícita em relação à constituição universal do Catolicismo, denotando grande soberba em
instituir uma religião desprovida da imagem da Mãe. A Igreja erigiu seu templo masculino e
promoveu uma ortodoxia em que apenas os homens poderiam exercer as funções diretivas da
religião, como padres e bispos. Teriam estes sido investidos do poder temporal pelos
Apóstolos que receberam de Cristo o direito de divulgar a Boa Nova. Expulsa do quadro
executivo da religião, a mulher foi relegada à margem da moralidade, vindo somente a
recuperar um pouco de seu prestígio através de movimentos que surgiram em decorrência da
própria intolerância causada pela Igreja: o culto mariano, a literatura que promoveu o amor
cortês, o culto a Maria Madalena, a lírica provençal e a retomada das lendas celta-pagãs pelas
novelas de cavalaria, como exemplos marcantes de certa resistência e resgate do papel
feminino sufocado pelo Clero.
Os pequenos focos de oposição à supremacia católica e masculina, diretamente relacionados
às heresias e aos resquícios de tradições pagãs, foram suficientes para preocupar os alicerces
da Igreja. Esta se viu compelida a agir de forma inteligente e politizada e, para tal, procurou
nos próprios dogmas cristãos meios de apreender noções pagãs que poderiam adequar-se aos
caminhos escritos por Cristo. Em decorrência desta atitude política do Clero é que enxerga-se
a tolerância ao paganismo, ao se ler as obras escolhidas para esta pesquisa. Entretanto, deve-
se ressaltar que os elementos pagãos incorporados à estrutura católica foram, cautelosamente,
selecionados. A tolerância do Clero com relação a estes elementos pagãos deu-se ao nível em
que estes não ameaçavam o poder clerical, de forma que se aceitou o que não se pôde
aniquilar e mesmo os aspectos apropriados pela Igreja, das tradições folclórico-pagãs, foram
desvirtuados antes de sua cristianização.
Com vistas a estas especulações, é chegado ao ponto em que se configuram distintas as
influências pagãs e cristãs na construção (ou, pelo menos, na apresentação) das personagens
consideradas bruxas ou feiticeiras nas novelas cavaleirescas. O Amadis de Gaula, que
apresenta a personagem Urganda, a Desconhecida, reafirma vários pontos dos quais
135
comentados neste tópico. Primeiramente, já percebida como um ser fantástico, Urganda traz
consigo o pólo positivo de forças mágicas e sobrenaturais. Atua sempre ao lado do herói e dos
bem quistos na novela, como mostra este diálogo entre Gandales e Urganda:
- Assim Deus me salve, senhora, como eu assim creio! Mas rogo-vos por
Deus que vos lembreis daquele donzel, que de todos é desamparado, e só o
não é de mim.
- Não te dê isso cuidado – replicou Urganda – que esse desamparado será
amparo e reparo de muitos. Eu o amo mais do que pensas, pois dele espero
em breve duas ajudas, em que ninguém mais poderia pôr remédio; e ele
receberá dois galardões, com que muito alegre há-de ficar. Agora
encomendo-te a Deus, que me quero ir; mas mais depressa me verás do que
tu pensas... (AG, p. 29)
Apesar de mostrar-se com características diferentes das donzelas comuns da novela, Urganda
recorre ao nome de “Deus”, fala de amor sincero que sente pelo herói Amadis e deseja o bem
a Gandales. São representações a um tipo de personagem que, na vida real, no tempo das
perseguições às bruxas, seriam incoerentes, pois o ser diabólico entrevisto na bruxa ou
feiticeira jamais apareceria proferindo a palavra “Deus” como sinônimo de crença e poder
benéfico. Se, por um lado, Urganda se mostra “cristianizada” ao falar em Deus desta maneira,
por outro lado, Gandales se apresenta recorrendo à ajuda sobrenatural, representada pelos
poderes de Urganda, pois roga a ela que proteja seu filho.
O Mal não é representado por Urganda; este, por oposição, é atribuído a um elemento
masculino da Magia, Arcalaus. Este personagem encerra as características malévolas e a
maldição que os inquisidores impuseram sobre as mulheres. Não há como ignorar este aspecto
inovador do Amadis: a obra não se enquadra nos ideais católicos de combate às bases pagãs,
como A Demanda do Santo Graal. O Mal é inclinado ao masculino e o Bem é atribuído a
uma figura feminina. Percebe-se, nitidamente, a inserção da novela numa camada temática
contrária à Demanda e receptiva de inspirações e influências variadas da cultura ibérico-
peninsular, da lírica provençal, do Trovadorismo e das tendências inovadoras que ainda
estavam por vir com o advento da Renascença.
Urganda, exemplificando as atribuições divulgadas por suas atitudes na história do Amadis,
remonta a muitos elementos provindos de culturas pagãs longínquas. Embora não chamada de
“fada”, a personagem tem o poder de fadar, de prenunciar o destino das pessoas. Segundo
Maleval (2004), na mitologia grega, encontram-se as Parcas como deusas que determinavam
136
o curso da vida humana, portanto elas, Cloto, Láquesis e Átropos, possuíam poderes de
anunciar os fatos futuros, bem como de transformá-los, se necessário. Esta transformação
representa, muitas vezes, as intervenções divinas na vida dos heróis, em momentos de
extremo perigo ou extrema aflição, como que a lhes socorrer, com o objetivo de mantê-los na
posição heróica das ações.
Urganda socorre Amadis num momento em que este se encontra à mercê de Arcalaus,
impingindo um encantamento que lhe traz a morte. Corre pela região a notícia de que Amadis
estava morto. Em meio à confusão de sentidos, Urganda aparece ao herói e o arrebata do
encantamento, trazendo-o de volta à vida. Interfere, portanto, no curso traçado pelo Mal e faz
com que a personagem retome o fio de seu destino:
O anão quere vingar a morte que o feiticeiro dera ao seu amo, mas o bruxo
encanta Amadis e fá-lo cair em terra, como morto. Em seguida toma-lhe as
armas e dirige-se à côrte do rei Lisuarte, a dizer-lhe que matara Amadis em
combate leal. Entretanto, Urganda, a Desconhecida, desencanta o herói, que
põe em liberdade aqueles que Arcalaus havia encarcerado (AG, p. 58).
Não somente como um reflexo das Parcas, Urganda também se mostra curandeira, protetora,
aquela que oferece objetos mágicos ao herói e a amigos. Contudo, a face benéfica que a
personagem encarna corresponde à metade referente ao Bem desmembrado pela Igreja, mas
nota-se, claramente, que o Amadis não reflete os ideais católicos tal qual A Demanda. Então, é
cabível conceber Urganda mais como uma personagem inscrita na tradição pagã do que na
tradição cristã, pois identifica-se como benévola e malévola ao mesmo tempo: o mal, aqui,
não refere-se à outra metade da essência humana desmembrada pelo Cristianismo católico, e
sim à face desvirtuada própria de todo homem. Desta forma, Urganda não é exclusivamente
boa nem irremediavelmente má: age honestamente para com seus amigos, mas prejudica, sem
pesar, os inimigos e também utiliza seus poderes para manter o homem amado sob seu
domínio, por não lhe corresponder ao amor: “__ Dir-to-ei, já que tanto me conjuras; mas a
cousa do mundo que mais amo, sei eu que mais me desama; é aquele mui formoso cavaleiro,
com quem te bateste; mas nem por isso deixo de o trazer sujeito à minha vontade, sem que ele
algo mais possa fazer” (AG, p. 28).
Compreende-se que Urganda foi investida de características pagãs mais fortemente imbuídas
do que qualquer referência aos aspectos cristão-católicos da Idade Média. Esta novidade
trazida pelo Amadis, subvertendo o poder feminino, tratado maleficamente pela tradição
137
cristianizada das lendas bretãs, facilita a visão benévola de Urganda, aproximando a
personagem da essência humana. Através desse olhar pela personagem, a obra Amadis de
Gaula estabelece-se como uma polifonia radical em relação aos padrões comportamentais
recomendados pela Igreja Católica. Igualmente, assimilando a notoriedade que as novelas de
cavalaria assumiram, o imaginário do homem comum medieval manteve vivos, apesar das
injunções clericais, vestígios da mentalidade matricêntrica, oriunda das civilizações que
cultuavam a Grande Deusa, defensora de preceitos pautados na razão libertária e não
coercitiva.
4.4 A DEMANDA DO SANTO GRAAL: UMA LUZ NA OPACIDADE
A Demanda talvez seja a mais famosa obra arturiana. Aparentemente, as histórias que se
referem ao Rei Artur e seus cavaleiros da Távola Redonda receberam uma grande atenção da
atualidade no que respeita aos vários meios de divulgação. São histórias muito contadas em
todo o Ocidente através de livros infanto-juvenis, livros reescritos, reedições da própria
Demanda com tradutores diversos, adaptações para o cinema, adaptações para desenhos
animados, entre outras formas de propagação. Além de toda a inserção da obra na mídia atual,
vê-se a difusão das figuras lendárias que seus personagens representam: na perfeição em
forma de rei está Artur; na misteriosa imagem do sábio druida está Merlin; na perfeição em
forma de cavaleiro andante, tanto pela habilidade como pela beleza física, está Lancelote; na
fragilidade e beleza de rainha está Guinevere; na verdadeira maga, mistura de sacerdotisa
druida e bruxa medieval, está Morgana; são apenas alguns exemplos entre os outros
personagens que também se revelam extremamente representativos na atualidade, como
Persival, Galaaz, Boorz e Mordred.
É nítida a influência cristã na Demanda. Os personagens aparecem revestidos de uma
religiosidade bastante comum ao homem do medievo-central. A dissonância que se observa
em relação às histórias anteriores à formação da Távola é que as personagens, bem como
todos os elementos envolvidos na trama, remontam às tradições célticas, portanto, pagãs e não
apresentam associação íntima com a cultura católico-cristã. As mulheres cultuavam a uma
deusa; Viviane, a Senhora do Lago, é uma figura diáfana e assemelha-se a uma fada; é ela
quem detém a autoridade de conceder a espada extraordinária e de recebê-la de volta, quando
138
da morte de Artur. Morgana é seguidora e também sacerdotisa do culto desta deusa; sua mãe,
Igraine, a rainha Guinevere, assim como todas as damas de Camelot professam a religião
desta deusa. A imagem feminina de poder está claramente exposta e, sabendo-se da origem
celta atribuída a estas histórias, não há como ignorar a ascendência da religião pagã apregoada
pelos Celtas, em cuja cultura destinava-se um papel preponderante à mulher, tanto com
relação à religião popular como à religião fechada, o Druidismo.
Não é, portanto, de se admirar que a presença de Morgana, por exemplo, nesta edição, seja tão
diminuta. A figura da “fada Morgana”, assim denominada nas outras histórias, é quase
suprimida na Demanda. As novelas narradas não incluem fatos ocorridos com a aparição de
Morgana. Parece que sua presença restringiu-se aos contos anteriores à formação da Távola.
Mesmo assim, ela está presente na figura do filho Mordred e também de seus netos. De certa
forma, a religiosidade medieval que reveste a obra parece anular os resquícios da tradição
pagã, deixando apenas um espaço maior a alguns seres fantásticos que povoam as novelas,
como a Besta Ladradora. Entretanto, não é possível ignorar a importância dada à origem deste
ser diabólico: a Besta Ladradora nada mais é do que uma mulher que pecou. Esta é uma clara
referência à rejeição do sexo feminino como detentor de virtudes.
Ao procurar realizar uma comparação entre a ficção e a realidade, no que concerne aos
aspectos históricos relativos ao poder da Igreja Católica, esta obra vem ser a mais rica
referência a estes fatos. Mesmo estando no universo fictício, ela se assemelha a uma tentativa
panfletária de estabelecer (ou reafirmar) o domínio clerical sobre a população laica. Nestes
termos, encontram-se as personagens inteiramente dedicadas ao serviço do Senhor,
demonstrando fé inabalável nos momentos de perigo e divulgando os exemplos de conduta
virtuosa que deveria moldar o homem medieval. Afastam-se, portanto, estas personagens, do
ambiente folclórico-cultural que deu origem às novelas antecedentes.
Destaca-se o episódio “Morte de Rei Artur”, o único em que a personagem Morgana é citada.
Sua aparição é bastante reduzida, porém relaciona-se a um momento importante na trama: a
passagem do Rei. Surgem outras personagens femininas, que também possuem aparições
limitadas, mas que representam a marca indelével do paganismo na cultura cristã. Embora
providas de uma religiosidade católica explícita, não ocultam certas características que as
vinculam às impressões recebidas da cultura laica anterior ao Cristianismo. É o caso das
personagens Aglinda, no episódio “A fonte da virgem”, a filha do Rei de Lomblanda, no
139
episódio “O castelo felão” e a donzela solitária, que se transfigura, depois, no demônio, no
episódio “Tentação de Persival”. Estas personagens trazem consigo uma dupla referência de
formação: apresentam traços pagãos em certas atitudes e, ao mesmo tempo, revestem-se de
cristandade. Mostram, igualmente, o amálgama realizado pela Igreja no tocante à absorção de
determinadas tradições populares, com o intuito de aproximar-se mais da população e,
conseqüentemente, dominar-lhe a conduta moral.
4.4.1 Personagem e História: aspectos narrativos, formativos e comportamentais
Diferentemente de Urganda, em Amadis de Gaula, a novela A Demanda do Santo Graal não
oferece uma personagem apenas que contenha as características referentes à figura mística da
bruxa ou feiticeira. Várias são as personagens com tais aspectos, porém as histórias estão
agrupadas em ciclos e livros diversos. A escolha das personagens representativas (as bruxas
ou feiticeiras medievais) não se resume à figura de Morgana. Serão analisadas as personagens
Morgana, pertencente ao episódio “A morte de Rei Artur”; a filha do rei de Lomblanda, em
“O castelo felão”; Aglinda em “A fonte da virgem” e a donzela solitária, no episódio
“Tentação de Persival”. Estas personagens compõem um conjunto de manifestações
sobrenaturais expostas de maneira cristianizada, não descartando, entretanto, as referências
pagãs.
O modo de apresentação desta novela é o que mais se assemelha à tradição oral das lendas. A
presença do narrador se oculta por trás da “voz do conto”, que por sua vez, assume o papel da
narração. Megale (2003) comenta que, na verdade, não há nenhum narrador; o próprio conto
se conta os fatos. Segundo o estudioso, a novela é composta por um processo narrativo
organizado em episódios entrançados, em que as histórias são recontadas por uma “voz”
textualizada, carregada de ambigüidade: “Ora deixa o conto a falar de (...)” (p. 21). O
narrador, tal qual apresentado na concepção literária de Genette (1972 apud AGUIAR E
SILVA, 1973), tem seu papel monopolizado pela voz fictícia que conta as aventuras. Assim, o
texto aparenta ter vida própria, faz intercalações, interrupções, retomadas e conclusões.
Para se entender a existência deste fenômeno narrativo, é preciso considerar, acima de tudo, a
época em que as novelas foram prosificadas e suas várias fontes:
140
Por válidas que sejam todas as especulações a respeito dessas frases
articuladoras da narrativa – e há opiniões de eminentes teóricos e críticos de
literatura -, parece-nos necessário partir da pura e simples observação do fato
na época em que ocorreu, ou seja, no período da prosificação dos romances
em verso, seus textos-fontes, não fontes únicas, bem entendido. Esse recurso
às frases articuladoras: “Ora diz o conto que...” (...), é o modo de se
organizar a narrativa, recurso natural diante do fato de não ser o texto
criação de quem o elabora, e sim uma organização a partir de textos
anteriores (MEGALE, 2003, p. 21).
Comparando, então, a forma narrativa peculiar da Demanda, como a dispõe Megale na
introdução da referida edição com a classificação de Genette, algumas proposições serão
apresentadas. Tomando o narrador como o próprio texto ou mesmo como uma voz
textualizada, este se posiciona, da mesma maneira, na exterioridade da narrativa e,
conseqüentemente, distante dos fatos diegéticos. Esta característica denota a inserção
heterodiégetica do narrador que, contudo, não a afasta de interferências no decurso da
narrativa. A voz textualizada é livre na narração e se coloca ora ausente dos fatos, ora
presente, fazendo interrupções e comandando a narrativa com toda a liberdade.
Embora não se perceba a presença verbo-pessoal na narração, esta não define a inexistência
da personagem “narrador”. O fato de a novela mostrar um fenômeno narrativo diferente e
proporcionar material para discussão desta característica, não isenta a obra da narratividade
romanesca e, portanto, da presença desta personagem que é inerente à narrativa. As
considerações de Megale acerca deste aspecto narrativo são válidas, pois destacam as
peculiaridades da forma de narrar. Entretanto, compreende-se que, mesmo obedecendo a
critérios tão diferentes em relação aos focos narrativos mais comuns na historiografia literária,
são visíveis as marcas de um personagem que “conta a história”, mesmo que esteja inserido
na tradição oral de “quem conta um conto aumenta um ponto”.
As personagens femininas caracterizadas como “seres especiais”, pois dotadas de alguns
talentos de ordem divina, partem da realidade existente na obra de que não há referência a
bruxas ou feiticeiras. Há para cada uma das personagens uma única passagem de destaque,
iniciando-se pela ordem em que surgem na novela. A donzela solitária, protagonista do
episódio “Tentação de Persival” é a primeira que se apresenta, seguindo-se de Aglinda, a filha
do Rei de Lomblanda e, por último, Morgana.
141
A narrativa menciona apenas a suposta origem grega da donzela, filha de um rei de Atenas e
prometida a um imperador de Roma. Sua alta linhagem aliada a um discurso melódico e
piedoso faz com que o coração de Persival seja tomado de uma paixão violenta. O cavaleiro
sente seus hábitos mudarem e seus desejos inclinarem-se à donzela desamparada. Entretanto,
este sentimento se lhe configura penoso e não elevado; as ações provindas deste súbito amor
parecem movidas por mão maligna: “E ele respondeu assim como lhe o demo ensinava a
cumprir seu desejo e prazer (...)” (ADSG, p. 85).
É a mulher elogiada pela sua beleza física, comparada (e superior) à Rainha Guinevere e à
Rainha Isolda. Persival, ao encontrá-la sozinha numa rica tenda próxima a uma praia,
permanece sob o impacto do deslumbramento diante da sua beleza. A donzela (sem nome) lhe
narra como viera parar naquela praia e ele, por sua vez, decide tomá-la por esposa, sentindo-a
desprotegida, mas ela recusa. Persival procura todos os meios para convencê-la a aceitar o seu
amor, prometendo transformá-la numa rainha de grande reino. Ela se recusa a entregar-se,
insistindo em manter sua honra, o que ainda mais instiga a paixão do cavaleiro. Neste instante
da narrativa, ocorre uma intervenção sobrenatural que desencadeia os fatos existentes por trás
dos sentimentos que atormentavam Persival. Um grande estrondo ensurdecedor e uma voz os
assusta, fazendo-o perceber o engano de seus sentimentos, motivados apenas pela beleza da
donzela, que acaba se transfigurando numa criatura horrenda e a identificar-se como o próprio
demônio.
A situação conflitiva deste episódio assim se apresenta. Desde o início, a beleza inigualável
da donzela só não supera a beleza divina de Maria, mas ela é indefesa, rica, de origem real e,
ao mesmo tempo, necessitada de ajuda. A descrição física da donzela exalta a mulher naquilo
que corromperia o homem, dominando-o pelo apelo sexual. Persival torna-se cego de paixão e
engana-se pela imagem divina que a beleza representa e dificulta sua reação. De que modo
poderia agir em situações assim inesperadas e nunca vivenciadas? O leitor também não
descobre imediatamente que se tratava de uma cilada do demônio. A narrativa lhe indica
algumas pistas, por meio dos comentários do narrador que, no início, parece enaltecer a figura
da jovem. Com a paixão repentina de Persival, passa a denegrir a imagem da donzela, na
medida em que ele tenta realizar seus desejos, notando claramente a diferença de tom
narrativo:
(...) e viu estar num leito, o mais formoso e mais rico que alguma vez viu,
uma donzela que dormia; e era tão formosa, que lhe pareceu mais formosa
142
que a rainha Genevra e que a rainha Isolda, e que a formosa filha do rei
Peles; porque lhe pareceu que, desde que o mundo foi feito, não houve
mulher tão formosa, nem a vira, embora nada fosse comparado com aquela
Virgem que foi virgem e mãe e Rainha das rainhas (ADSG, p. 83).
Este trecho mostra claramente a menção à beleza da donzela, as comparações com outras
damas da época e a comparação à divindade de Maria. Entretanto, no decorrer da narrativa, as
referências à beleza já se aproximam da materialidade: “E depois que observou muito tempo
pela admiração que teve de sua beleza, afastou-se um pouco, todo espantado, porque bem
pareceu a ele que se todas as belezas que houve em mulheres pecadoras fossem reunidas
numa só, não seria tão formosa como esta” (ADSG, p. 83). Entende-se que as mulheres
pecadoras eram belíssimas e representavam a fragilidade dos sentimentos humanos e,
principalmente, dos mundanos.
Ao comparar a beleza da donzela a outras rainhas e até mesmo à Maria, o cavaleiro ainda agia
por conta própria; ao compará-la a mulheres pecadoras, que tanto podiam ser prostitutas
quanto feiticeiras, Persival já sente que o maligno estava agindo sobre suas sensações. E esta
centelha, este pequeno indício é guiado pela mulher da tenda. A donzela, mesmo ainda
adormecida, era capaz de dominar o cavaleiro, simplesmente, através da força magnética de
sua constituição física. Somente após a intervenção divina, em prol da salvação de Persival, é
que a identidade da donzela se revela: “(...) viu que a donzela se tornou em forma de demo tão
feio e tão espantoso que não há no mundo ninguém tão valente que o visse que não houvesse
de ter grande medo. Daí aconteceu a Persival que teve tão grande medo que não soube o que
fizesse (...)” (ADSG, p. 87). Sob estes parâmetros é que a personagem pode ser comparada à
figura diabólica da bruxa medieval.
Torna-se evidente também a inocência de Persival diante da beleza da donzela, elemento que
confere ao personagem a concessão da intervenção divina e sobrenatural como medida de
salvação para um cavaleiro casto que se encontra em perigo e que não tinha culpa de sentir-se
tentado. Estava “enfeitiçado” pela beleza e os seus sentimentos originavam-se da sedução
feminina, instigando-o a cometer o pecado da carne. Vendo-se em perdição e enredado pelo
demônio recorre ao Pai, em desespero, e acaba sendo salvo pela “voz” divina.
A aparição do demônio transfigurado em beleza feminina não é a causa do temor em Persival.
Na verdade, ele teme muito mais o próprio corpo, vulnerável à beleza feminina. Na Idade
143
Média, a beleza era detentora de poderes sobre-humanos nos homens, podendo tanto ser
atribuída ao divino (Maria como modelo), quanto ao diabólico, tendo Eva como exemplo. As
mulheres situavam-se nestes extremos: virtuosas ou maléficas. Essa mentalidade masculina
revela-se na Demanda, neste episódio, por meio da “voz” que alerta o cavaleiro e na figura de
Persival, vítima da beleza, portanto, do demônio. A escolha da beleza para tentar o cavaleiro,
certamente não foi aleatória.
Diferentemente da personagem Urganda, esta donzela se enquadra nos moldes históricos da
bruxa ou feiticeira medieval, apresentados por Nogueira (2004). A donzela não é feiticeira,
porque em nenhum aspecto as características específicas da feitiçaria se confirmam em seus
atos e, tampouco, bruxa. Segundo o autor, a bruxa se torna concubina do diabo por uma
conspiração, diferentemente da feiticeira que não se liga a nenhum mestre. É possível,
contudo, vislumbrar uma semelhança, nos aspectos mágicos, com a figura mental da bruxa
medieval. Considerando que sua existência esteve vinculada à crença popular de um ser
sobrenatural, constituído a partir de um tipo de matrimônio com seres diabólicos, a mulher-
bruxa seria capaz de tornar-se bela e logo em seguida, transformar-se num ser maravilhoso e
horrendo.
A transfiguração da donzela em demônio inscreve a personagem no ambiente pagão atribuído
às bruxas, mancomunadas com demônios variados, comandados por Lúcifer. O ato mágico
ocorre na narrativa sem o auxílio de utensílios materiais, ela se transforma no momento em
que Persival é alertado pela voz divina. Tanto a aparição demoníaca da donzela quanto a
intervenção sobre-humana da “voz” que salva o cavaleiro são manifestações fantásticas. A
primeira leva o estigma do paganismo e a segunda a roupagem do cristianismo. Importante é
observar as influências pagãs que moldaram o espírito das bruxas na Idade Média: o demônio
transfigura-se em mulher bela e sedutora e tenta subverter um cavaleiro cristão ao pecado,
simbolizando a dualidade católica representada pelo Mal (a mulher, a bruxa, o demônio) e
pelo Bem (Persival, cavaleiro cristão, a “voz” divina). A luta dessas forças antagônicas é
legitimada pela vitória do cavaleiro que, avisado pela entidade divina, pede misericórdia a
Deus por ter pecado em pensamento. Não vence o Mal e o diabo não pôde finalizar seu
intento; como cristão e representante do Bem, Persival recobra sua consciência de cavaleiro e
recebe o perdão do Altíssimo:
E depois acordou e olhou ao redor de si e viu a donzela rir, porque vira que
tivera medo. E quando a viu rir, espantou-se e logo entendeu que era o demo
144
que lhe aparecera em semelhança de donzela para o enganar e o meter em
pecado mortal. Então ergueu a mão e persignou-se e disse:
- Ai, Pai Jesus Cristo, Pai verdadeiro!, não me deixes enganar nem entrar na
morte eterna; e se este é o demo que me quer tirar de teu serviço e separar de
tua companhia, mostra-mo. (...) Então, viu a tenda e quanto nela havia voar
pelo ar, e atrás dela uma escuridão, como se todos os do inferno estivessem
nela; e ficou tão espantado disto que viu que não soube que decisão tomar. E
olhou ao redor de si e não viu outra coisa senão suas armas e seu cavalo,
como se tudo de antes fosse um sonho (ADSG, p. 86-87).
A semelhança da donzela com a figura da bruxa diabólica torna-se evidente. Num paralelo da
ficção com a realidade, forçosa é a constatação de que a religiosidade imposta pela Igreja está
impressa nas páginas de A Demanda do Santo Graal. Persival representa o homem que deve
manter-se casto, a serviço de Deus e da Igreja e, acima de tudo, deve estar vigilante sobre seu
próprio corpo. A tentação vivida por ele demonstra as preocupações de ordem moral,
determinadas e reguladas pela Igreja. A figura feminina representada pela donzela, ao mesmo
tempo em que se mostra uma personagem de importância pela atuação sobre Persival, é
relegada aos mundos inferiores quando comparada à realidade refletida na ficção dos
episódios da Demanda: de grande beleza real passa a beleza funesta de mulher pecadora para,
depois, se transformar em ser maligno, horrendo e pertencente às entranhas infernais.
Deste modo, nem mulher nem bruxa, a donzela representa o próprio Mal e sua aparência é
mera convenção dos meios mais fáceis de influência. Apesar de toda a carga negativa, não se
pode negar-lhe a inteligência de saber agir sobre os pontos vulneráveis dos homens
comandados pela Igreja: para o medo do corpo, dá-se a mulher belíssima; para o medo do
espírito, dá-se o demônio mais horripilante. Sendo o próprio demônio encarnado em mulher,
configura-se a ligação existente no imaginário dos povos do medievo-central, como
construções paralelas e circundantes na mentalidade humana de todos os tempos.
Em contraposição, há duas personagens que representam manifestações sobrenaturais sem, no
entanto, assemelharem-se a bruxas ou feiticeiras. Trata-se de Aglinda, do episódio “A fonte
da virgem” e da filha do Rei de Lomblanda, de “O Castelo felão”. Ambas possuem uma
participação mais limitada na trama dos episódios. Quanto ao papel que desempenham,
percebe-se certa redução das ações; entretanto, deve-se admitir que em “A fonte da virgem” a
participação feminina é ampla, pois o episódio é repleto de mulheres e a trama gira em torno
de suas ações. Aglinda encontra-se inserida numa narrativa enquadrada, pois sua história
refere-se à origem da fonte encantada. Erec, o cavaleiro que protagoniza este episódio,
145
encontra a fonte e cai paralisado por seu encanto. A história da fonte remonta a épocas
anteriores à procura do Cálice Sagrado. A referência temporal, neste caso, está explícita
quando o narrador inicia a história da fonte, nesse episódio: “A verdadeira estória nos diz que
esta fonte onde aconteceu assim a Erec era chamada fonte da virgem, e isto foi por uma
formosa aventura de uma virgem, que houve no tempo de rei Uter Pandragão” (ADSG, p. 92).
O narrador faz menção ao pai do Rei Artur, quando reinava naquela região, reiterando a idéia
de que a fonte era dominada pelo encanto desde há muito tempo.
Aglinda era filha do rei Nascor (um bom rei) e tinha um irmão. Todos da família eram
cristãos e tementes a Deus. Descrita como criatura de extrema beleza, a notícia de sua
formosura chegava a lugares distantes, motivando pessoas a viajarem léguas para admirar
seus encantos juvenis. Todos os que podiam se vangloriar de ter vislumbrado a beleza da filha
de Nascor, chamavam-na de “angélica”. Sua tez relembrava a ternura dos céus e a brandura
das faces dos anjos e sua personalidade era a personificação da bondade. Aos olhos de Deus
era ainda mais bela, pois praticava a caridade sem mostrar aos outros suas obras. Embora
educada por mestres romanos, o texto indica seus conhecimentos provindos do Cristo Divino.
Aglinda reunia, assim, um conjunto de qualidades da mulher virtuosa: sua beleza exterior era
um reflexo das qualidades morais e cristãs confirmadas em suas atitudes e na pureza de sua
alma e corpo:
A filha era a mais formosa criatura de toda a Grã-Bretanha, e tão grande era
a fama de sua beleza perto e longe que a vinham ver; como era formosa e
pela grande beleza que tinha a chamavam todos angélica; (...) E verdade era
que ela se entendia muito bem à maravilha de divindade, mais por graça e
por outorga de Nosso Senhor do que por ensinamento de seus mestres; (...)
De tal modo pôs Deus seu espírito na donzela que os mestres, que lhe
ensinavam, estavam espantados com a inteligência que achavam (ADSG, p.
93).
Compreende-se que a personagem, sob a perspectiva narrativa, é qualificada por adjetivos
reservados à virtuosidade de uma santa. O fato de se identificar à imagem da Virgem Maria
justifica-se a atribuição de um nome próprio na trama; fato este que não ocorre com as
personagens do conto de Persival e do Castelo Felão. Sua participação no episódio é de muita
relevância, pois seus atos anteriores desencadeiam os fatos vivenciados pelo cavaleiro
protagonista. Não é, portanto, surpreendente a referência nominal à personagem possuidora de
qualidades divinizadas: “Que vos direi? Aquela donzela foi a segunda Catarina em ciência e
em bondade, aquela cuja vida deve ser contada, pois poderia ser exemplo e espelho a todas as
boas pessoas que dela ouvissem falar” (ADSG, p. 93). Reforçando ainda mais esta
146
semelhança, a personagem vive uma situação martirizante, porque sofre desgraças em
decorrência dos atos praticados pelo seu irmão Nabor, que por ela sentiu amor incestuoso. A
cena que se segue justifica a afirmação.
Estando Nabor perdido na floresta e encontrando-se próximo à fonte, apareceu-lhe o demônio,
em forma de um senhor formoso e sisudo, aparentando pesar e sofrimento. No diálogo, sente
piedade do homem e deseja ajudá-lo de alguma maneira, ouvindo-lhe os amargores da vida. O
demônio, percebendo-o praticamente preso em sua rede, começou a sua história dizendo que
há muito tivera uma filha com uma dama que amava e que esta filha tinha sido tomada pela
rainha. A rainha, mãe de Nabor, tinha também dado à luz uma filha, porém a tinha
assassinado devido a um sonho horrível em que a própria filha lhe tirava a vida. Deste modo,
com pavor de ser punida pelo rei, a rainha toma-lhe a filha recém-nascida e apresenta-a ao rei
como se fosse sua. Como recompensa aos pais verdadeiros da criança, a rainha prometera que
sempre a teriam quando a pedissem.
Quando o casal pediu à rainha que lhes devolvesse a filha, esta foi negada. A donzela,
conhecedora da sua situação, negava o verdadeiro pai e o desprezava. Nabor, imediatamente,
reconheceu os personagens envolvidos na história como a sua própria família e deu-se conta
da verdadeira identidade de Aglinda, considerada, até então, sua irmã. Entretanto, enredado
pela narrativa do demônio, começava a mudar seus sentimentos em relação à mãe e à irmã. O
demônio, astutamente, pede-lhe um conselho e Nabor declara que seria difícil provar as
mentiras da rainha todo este tempo. O demônio oferece-lhe uma troca de favores. Podendo
livrá-lo daquela floresta, que há dias estava perdido, pede, em recompensa, que leve a donzela
para um passeio ao luar, junto à fonte. Sente-se tentado a aceitar, pois o demo aponta a
impossibilidade de encontrar a saída da densa floresta sem sua ajuda. Sozinho, com fome e
frio, Nabor é novamente visitado pelo demônio. Desta vez, muito sofrido, aceita a proposta do
homem que o salva da floresta e o leva ao castelo dos pais. Cumprindo o combinado, leva sua
irmã (que agora julgava não mais lhe ter linhagem alguma) ao local da fonte, acompanhados
de um mestre cavalariço.
Em local apropriado, Nabor mata o mestre cavalariço, deixando Aglinda em extremo
desespero. Revertendo-se seu caráter e levado pela luxúria, diz a irmã que não há linhagem
nenhuma entre eles e que a deseja como mulher. Recusando-se à tamanha injúria, Aglinda, em
vão pede misericórdia ao irmão, por não entender absolutamente o que se passava com ele.
147
Sentindo que perderia sua pureza, faz uma oração extremada ao Senhor para que a livre
daquela desgraça. Neste momento, os Céus a socorrem e Nabor cai morto por terra. Vendo o
irmão morto, sente grande pesar e questiona a razão de tamanha desventura. Uma voz divina
revela a ação do demônio que intentava roubar-lhe a coroa das virgens.
Sabedora de tudo quanto houvera com o irmão, aparece o pai e ela lhe narra os
acontecimentos. Estando aos pés da fonte, o rei constata que a fonte, morada do demônio, é
amaldiçoada. Assumindo uma figura mística, Aglinda amaldiçoa o local, palco dos
acontecimentos horríveis que culminaram com a morte do irmão, que havia sido,
irremediavelmente, arrebatado pelo demônio. Suas palavras configuram a bondade que traz
consigo e caracterizam a cristianização de suas ações, demonstrando o poder sobrenatural que
lhe advém do espírito:
- Ainda – disse a donzela – será daqui para frente pior, porque jamais
cavaleiro virá aqui, se não for virgem, que não perca o poder do corpo e de
todos os membros, enquanto aqui estiver; nem daqui jamais se moverá, se
por mulher daqui nunca sair. Isto será em lembrança do pecado pelo qual
meu irmão foi morto, e durará esta lembrança de mim e de meu irmão até
que o bom cavaleiro venha, que dará cabo às aventuras do reino de Logres; e
de mim, de hoje em diante, será esta fonte chamada, enquanto o mundo
durar, a fonte da virgem. (ADSG, p. 100)
O encantamento feito por Aglinda não se enquadra nas características dantes apresentadas
como próprias de uma santidade. Apesar de mostrar-se bondosa e não sentir ódio pelo que o
irmão fizera, pretende castigar todos os cavaleiros que não se mantiverem puros. Agindo desta
forma, transmite uma manifestação mágica. Somente seres pertencentes ao universo fantástico
eram passíveis de lançar maldições ou encantamentos. Logo, Aglinda assume uma posição
próxima às atitudes pagãs das mulheres, usando seu poder para obter algo, seja provindo do
Bem ou do Mal. Tal comportamento é análogo às feiticeiras. Embora a personagem não
utilize meios materiais para realizar o encantamento, suas ações percorrem décadas e apenas
serão anuladas quando o “bom cavaleiro” vier. Assim, a semelhança com as feiticeiras deve-
se à crença de que estas poderiam ser bondosas ou maléficas; enquanto que as bruxas não
gozaram desta possibilidade, por representarem a personificação do Mal.
Do mesmo modo, o episódio “Castelo Felão” apresenta uma personagem portadora de
qualidades sobre-humanas: a filha do Rei de Lomblanda. Este episódio narra a chegada de
Galaaz, Meraugis e Heitor ao castelo chamado Felão. Avisados de que aquele lugar era
amaldiçoado e que quem lá entrasse não cuidava sair vivo, os cavaleiros que buscavam
148
aventuras e maravilhas encontram no castelo a possibilidade de viver mais uma aventura: “-
Donzela – disse Galaaz -, não há jeito de voltarmos até que saibamos o que é, porque por
outra coisa não saímos de nossas terras, senão para vermos as maravilhas do reino de Logres”
(ADSG, p. 106).
O narrador, então, suspende a narrativa sobre os três cavaleiros e passa a contar a história do
castelo e a origem de tão malgrado nome. Ao retomar a narrativa, revela-se o modo como
foram enganados e trancafiados na torre do castelo. A fé inabalável de Galaaz se mostra frente
ao medo de seus companheiros, que temiam nunca saírem daquele lugar; Galaaz, no entanto,
afirma, sem deixar-se abater, que Deus havia de tirá-los dali:
- Ai, Deus, como aqui há grande traição. Nunca daqui sairemos, se não nos
tira daqui quem nos meteu.
- Não vos espanteis, disse Galaaz, sabei que se temos servido nesta demanda
aquele por cujo amor nela entramos, não nos esquecerá, antes nos tirará
daqui, malgrado de quantos neste castelo estão, porque é o direito pegureiro
que todo perigo livrará suas ovelhas (ADSG, p. 110).
Durante a noite, Galaaz permanece acordado e recebe uma mensagem divina que o alerta
sobre o que está para acontecer no castelo e das providências que deverá tomar. Deus, em sua
misericórdia, os tiraria do castelo no dia seguinte, mas a sua incumbência era a de salvar as
donzelas escravizadas e matar todos os pagãos residentes no castelo:
- Galaaz, não te espantes e fica seguro de que amanhã estarás livre, porque o
Alto Mestre recebeu tua oração. Mas quando estiveres livre, destrói este
castelo e quantos nele estão, exceto as donzelas presas, a estas livra, porque
não quer Deus que sofram a desventura que até aqui sofreram (ADSG, p.
111).
Nesta passagem, torna-se clara a menção ao aniquilamento do paganismo empenhado pela
Igreja. O castelo era povoado por pagãos desde a época de Tróia e o Bem deveria combater a
vilania praticada naquele lugar contra os cristãos. Assim é que a chegada do cavaleiro recebe
auxílio da mão divina para agir sobre os infiéis. Movidos por acontecimentos extraordinários,
os cavaleiros são libertados com a derrubada da torre onde se encontravam e saem ilesos e
prontos a cumprir as ordens recebidas do Altíssimo. Começa, então, uma carnificina em que
os moradores do castelo são, impiedosamente, assassinados. Apenas as donzelas são
poupadas.
149
Galaaz socorre as donzelas que já o esperavam com a notícia de que a filha do rei de
Lomblanda adoecera e, no momento de sua morte, profetizara a chegada do cavaleiro eleito:
Donzelas que estais aqui na prisão não vos desconforteis, mas ficai alegres,
porque vos trago boas novas: dom Galaaz, o muito bom cavaleiro, o que há
de dar cabo às aventuras do Graal, vem aqui, e assim que ele vier, sereis
livres desta prisão em que estais, e este castelo ficará por isso destruído e
despovoado para sempre (ADSG, p. 114-115).
Neste trecho, revela-se a força extra-sensorial feminina agindo em prol de suas semelhantes.
A personagem não se destaca no papel na trama principal do episódio; na verdade, ela vem a
fazer parte de um momento de júbilo entre as donzelas que são salvas por Galaaz. Contudo, o
seu poder sobrenatural é que realiza uma profecia. A terceira visão, denominativa daqueles
que são capazes de vislumbrar o futuro, esteve menos associada ao sexo masculino do que ao
feminino. É por isso que não é surpreendente que o divino acabe sendo manifestado por mãos
de mulheres.
A personagem não recebe sequer um nome e sua aparição serve como espetáculo para o
advento da chegada de Galaaz e da destruição do castelo maldito. É perceptível que sua figura
existe apenas para exaltar os feitos do cavaleiro eleito. Ainda assim, não há como negar os
vestígios dos atributos femininos ligados ao controle das forças sobrenaturais, tradição
herdada dos povos antigos e pagãos. Igualmente, as tentativas da Igreja em anular todo e
qualquer rastro dessas tradições podem ser entrevistas neste episódio. Da mesma forma, o
castelo se torna um meio utilizado pelo Clero para mostrar que todos deveriam se converter ao
Cristianismo, se quisessem manter-se vivos e dignos da misericórdia divina:
Pela manhã, partiram todos os três e andaram muitas jornadas sem aventura
achar que de contar seja e fizeram saber pela terra que os pagãos de castelo
Felão estavam todos mortos e o castelo destruído. Estas novas foram logo
sabidas por toda a terra e iam todos lá para ver se era verdade. E quando
viram a maravilha que acontecera com o castelo e a torre, os que não tinham
fé passaram logo a ter e fizeram-se batizar e disseram que bem fizera Deus
sua vingança (ADSG, p. 115-116).
Retomando a questão ligada à feitiçaria ou bruxaria, não se deve afirmar que a filha do rei de
Lomblanda representa uma imagem associada a estes seres. No entanto, representa o
sobrenatural manipulado por mãos femininas que nem mesmo os maiores esforços do Clero
medieval conseguiria apagar. A personagem possui a semente imortal que deu vida às bruxas
e feiticeiras na medievalidade posterior aos contos da Távola Redonda. Dá-se isto ao fato de
150
que, remontando aos tempos anteriores à prosificação da Demanda, os seres femininos
capazes de realizar profecias não eram nem bruxas nem feiticeiras; eram apenas mulheres
exercendo suas habilidades naturais.
A quarta personagem é Morgana, conhecida pelas cenas anteriores; a irmã de Artur é chamada
de “Morgana, a Fada”. Aparece no episódio “Morte de rei Artur” em apenas um único
momento, quando próximo está o falecimento do rei. A situação na trama é a seguinte: Artur
está junto do cavaleiro Gilfrete e despede-se dele dizendo que nunca mais o verá. A narrativa
deixa a impressão de que Artur sabia que seu fim se aproximava, pois ordena a Gilfrete que
devolva Excalibur ao lago.
Quando o cavaleiro, enfim, cumpre a ordem do rei, vê espantado que uma mão surge do lago
e agarra a espada, brandindo-a no ar e depois afundando com ela. A visão maravilhosa da mão
que recebe Excalibur de volta é uma referência direta às lendas bretãs, de origem celta. A mão
vista por Gilfrete é de Viviane, a Senhora do Lago. Embora não haja menção a nomes ou à
personagem em si, a história é bastante conhecida. Neste momento, Artur vê um ciclo ser
cumprido e pressente a própria morte. Ao se despedir de Gilfrete, pouco tempo depois, o rei
deixa-o e vai à praia. Gilfrete fica a observá-lo de longe, ainda muito sentido de ter que se
separar de seu senhor.
Como num prenúncio ao que vai acontecer, a natureza se manifesta: o tempo muda e uma
chuva torrencial se inicia. Buscando se abrigar da chuva, Gilfrete se protege sob uma árvore,
porém numa colina por onde podia, ainda, vislumbrar Artur à beira da praia. De repente, uma
barqueta se aproxima repleta de mulheres e, entre elas, encontrava-se Morgana, a fada, irmã
de Artur. A narrativa não dispõe de nenhuma descrição sobre a personagem. Morgana dirige-
se ao rei junto às outras damas e roga-lhe que Artur entre no barco com elas. Após muito
pedir, o rei acede e entra na embarcação. Em seguida, as mulheres fazem entrar o cavalo e
todas as armas de Artur. Segundo o texto, é a última vez que alguém vê Artur com vida.
Gilfrete correu para a praia, na intenção de acompanhar o rei, mas ao chegar ao local, a
barqueta já havia se afastado e pôde, ainda, ver Artur com as mulheres e distinguir a figura de
Morgana entre elas. São estas as únicas referências à Morgana. Compreende-se que a morte
do rei era um episódio de extrema importância para a novela e que a completa anulação de
uma personagem tão afamada como Morgana não poderia ocorrer sem conseqüências sérias
151
para a tradição popular. É por isso que este momento mágico (pois a passagem de Artur fica
suspensa em mistério, uma vez que seu corpo não é encontrado) talvez tenha exigido a
retomada de uma personagem que está intimamente ligada ao rei.
A narrativa não mostra o que houve com Artur; como ele morreu ou quando morreu. Gilfrete,
ao encontrar, posteriormente, o túmulo do rei, faz o zelador abrir-lhe a lápide e nada encontra
a não ser o elmo de Artur. Intrigado com a ausência do corpo, indaga ao homem e este
responde que o rei fora encerrado ali, pois as mulheres o trouxeram. A menção às mulheres
indica a presença de Morgana entre elas, porém seu nome não é citado. É percebido, pois, o
mistério que envolve a morte do rei e a presença de Morgana neste mistério não surpreende.
Assim como a presença da dama do lago, para receber Excalibur de volta, Morgana também
aparece como que a confirmar os rastros deixados pela tradição celta das lendas bretãs.
A referência ao seu nome como a “fada” não significa que a personagem assuma a roupagem
das bruxas ou feiticeiras medievais. Semelhante à filha do rei de Lomblanda, Morgana é
apenas uma mulher que exerce suas habilidades naturais. Resgatando um pouco dos costumes
celtas, claramente enxergados nas novelas anteriores à formação da Távola Redonda, as
mulheres gozavam de certa autonomia e eram bem vistas pela comunidade que habitavam.
Estavam, muitas vezes, à frente dos rituais religiosos e representavam a Deusa. Portanto, se a
Igreja não pôde aniquilar por completo a existência destes costumes, repassados através da
tradição oral de suas lendas, teve por bem moldá-los aos dogmas cristãos de forma que não
interferissem na dominação da mentalidade medieval. Deste modo, entende-se a presença de
Morgana neste episódio, juntamente com a presença de Viviane (representada por uma parte
de seu braço), apenas como uma referência às origens pagãs que, assim dispostas, não
perturbam a mensagem cristã divulgada pela Demanda.
Quanto à construção da personagem, resvala-se na questão da autoria que, da mesma forma
como se operou com Amadis de Gaula, vem a ser questão insolúvel. Sem um autor
consagrado, a obra é uma compilação de lendas bretãs pagãs que recebeu a escrita de vários
autores, em épocas diferentes. As novelas desta edição foram selecionadas da segunda
prosificação e foram revestidas de uma religiosidade cristã preponderante. O sentido buscado
para a cavalaria andante estava desregrado e necessitava de um resgate. Somente uma
autoridade poderia conceder ao cavaleiro, novamente, a reputação ilibada que um dia lhe fora
própria. Assim é que A Demanda resgata a imagem deste cavaleiro andante, da côrte de Artur,
152
que busca o sentido da vida através de aventuras e maravilhas que lhe nobilitem o caráter
para, posteriormente, ser digno do Paraíso celestial. É para isso que abre mão dos deleites
terrenos.
Considerando a classificação proposta por Forster (1963 apud AGUIAR E SILVA, 1973),
pode-se concluir que todas as personagens analisadas até então são planas. Suas
personalidades são presumíveis; não apresentam modificações íntimas no decorrer da
narração. Poder-se-ia dizer que a personagem do conto de Persival é a única que traz alguma
diferença. A donzela apresenta-se como o verdadeiro antagonista do cavaleiro, entretanto,
suas ações acabam sendo dedutíveis quando se percebe a verdadeira identidade da
personagem. As outras três também não passam de personagens secundárias, não evolutivas
dentro do texto. Suas aparições são mais importantes ao nível comparativo histórico-literário
do que propriamente narrativo. Como toda personagem, as secundárias também revelam sua
notoriedade através das ações de outras personagens. Assim é que Aglinda, a filha do rei de
Lomblanda e Morgana representam um ponto na grande teia do tecido textual.
Já a donzela do conto de Persival, atentando para estas características narrativas, poderia ser
situada como uma personagem central, uma vez que divide a cena com o cavaleiro, quase que
em igualdade de posições. O que a rebaixa, entretanto, é a presumibilidade de suas ações e
reações. Ficando, talvez, num estágio entre o protagonista e o antagonista, ou ainda entre o
bem e o mal, a personagem só vai mostrar sua real inclinação ao final da novela, quando se
revela o próprio demônio. De qualquer maneira, a personagem estabelece uma ligação entre o
principal e o inferior.
Observando o universo que abarca a noção de realidade e ficção, pode-se encontrar nas
personagens de A Demanda do Santo Graal uma variedade de proposições. Desde o início
deste trabalho foi salientada a importância da História como referência da inspiração literária
dos escritores medievais. Ora, este não é um mero fato a ser constatado e sim um aspecto que
muito diz a respeito das personagens. Quando Candido (1985) considera a verossimilhança
como um resultado da interação entre leitor e texto, não há como ignorar ou menosprezar o
papel da História na literatura medieval.
Deste modo, o sentido de verdade produzido pelas novelas de cavalaria é bastante conhecido,
levando teóricos a apontarem essa literatura como indicativa e exemplificativa de dados
153
concernentes à vida diária e comum do homem do medievo. Esta identificação, segundo o
estudioso, vem da semelhança que existe entre os fatos fictícios e a realidade. Assim, a obra
agora em foco pode ser considerada uma representação dos conflitos interiores vividos pelo
homem medieval. Sabendo ser uma obra de ficção, não há como apontá-la como uma
descrição da realidade, porém destaca-se a semelhança retratável através da literatura, o que
vem a reforçar a idéia sugerida por Candido acerca da verossimilhança.
Reconhecendo, pois, a relação intrínseca entre pessoa e personagem, assumindo a existência
do paradoxo na proposição de que a personagem é um “ser fictício” e, ao mesmo tempo,
compreendendo que estes dois fatores são os sustentáculos da verossimilhança, há uma
identificação com a história manipulada pelas mentes dominadoras do Clero. Não deixando de
lado as implicações referentes à concepção de mulher na Idade Média e seu papel social, bem
como a noção de existência (real ou mental) das bruxas, essas personagens são encontradas
mergulhadas numa religiosidade moralizante que buscava, acima de tudo, o controle sobre os
próprios sentidos.
Ao vislumbrar a personagem do episódio “A tentação de Persival”, a donzela belíssima que se
transforma em demônio horrendo, percebe-se a nítida mensagem aos homens de bem: a
beleza feminina é um engodo; é um caminho para a perdição. Esta referência torna-se
extremamente verossímil, pois a realidade histórica acerca da misoginia medieval é bastante
conhecida. As mulheres foram, realmente, descritas, vistas e tratadas como seres naturalmente
inclinados para o Mal. A literatura não ignora e nem oculta estes fatos na Demanda. A
semelhança com a vida real também está presente na figura de Aglinda: ela é a própria
imagem da virgem santa ao ser descrita como bela externa e internamente. Suas atitudes
podem não encontrar um exemplo idêntico na realidade histórica, mas certamente apontam
para o modelo de mulher que a Igreja propagava como ideal. Ainda assim a personagem
reflete influências pagãs ao pespegar o encantamento à fonte; entretanto, pode-se vislumbrar o
amálgama das crenças cristãs com as pagãs ao se notar a causa e a finalidade da maldição à
fonte: Aglinda é pagã ao lançar o encantamento e é cristã ao fazê-lo como forma de combate
ao demônio, suposto morador da fonte.
A filha do rei de Lomblanda, que profetiza a vinda do cavaleiro Galaaz, como salvador das
virgens do castelo Felão, também se revela imagética na questão sobre a verossimilhança.
Apesar de poucas referências no conto, ela é aprisionada, adoece e, quando sente a
154
aproximação da morte (condição propícia para o contato com o sobrenatural), faz a profecia
da libertação de suas colegas prisioneiras. A fragilidade diante da morte capacita à predição,
imanente ao espírito da mulher, como herança da tradição pagã. A relevância atribuída a
Galaaz, como o cavaleiro escolhido, o único realmente puro de todos da Távola configura a
similaridade bíblica. Na narrativa, Galaaz possui semelhanças de virtude e missão com Cristo
e a moça moribunda pode ser interpretada como um veículo de comunicação que anuncia a
chegada do eleito. Contudo, não se descarta a idéia implícita da mulher sempre envolvida em
eventos extra-sensoriais.
As semelhanças com a realidade repousam sobre o fato de A Demanda enquadrar-se numa
leitura popularesca, de amplo alcance, para disseminar os dogmas cristãos. Apesar da
diminuta aparição da princesa que profetiza a vinda de Galaaz ao castelo Felão, há que se
admitir que mesmo se a Igreja pudesse não se absteria das maravilhas do mundo extraterreno,
noções cuja origem remontavam aos tempos dos deuses múltiplos. Deste modo, a solução era
cristianizar a forma como a esfera sobrenatural deveria agir sobre o povo; no entanto, há laços
que nem mesmo a Igreja pôde desatar: a mulher, apesar de toda a aniquilação à sua
importância continuou presente e atuante. Neste episódio, essa situação típica medieval
transparece no fato de a princesa realizar uma predição verdadeira (pois Galaaz realmente
chega ao castelo e liberta as donzelas) e, igualmente, de não receber créditos por isso. Sua
inserção na novela é mínima, o interesse por sua “pessoa” é minúsculo; ela não tem nome,
não tem história, é referida sob um nome masculino (de seu pai) e viera para o castelo como
todas as outras prisioneiras. Isto demonstra, claramente, o interesse dos escritores desta
prosificação em não enaltecer a figura feminina e sim exaltar os feitos de Galaaz, que apesar
de sangrentos, foram ditados pelo Divino.
Na mesma linha de pensamento e observação está a personagem Morgana, do episódio
“Morte de rei Artur”. Sua referência na novela é ainda mais indicativa da busca engajada da
Igreja em anular os apelos folclórico-pagãos existentes nas lendas celtas, que originaram as
novelas do ciclo arturiano. Querendo aproveitar-se da tamanha notoriedade que estas novelas
alcançaram, o Clero não poderia perder a chance de entrar no mundo do imaginário popular e
inserir seus dogmas através da literatura. Era esta uma maneira simples e eficiente de
conquistar o povo e trazê-lo para o interior da Igreja. Por isso, a personagem Morgana é tão
apagada nesta Demanda. A proximidade com a realidade vem a se instaurar na tentativa de
invalidar os poderes da personagem, simplesmente, não lhes dando a devida atenção. São
155
aspectos abordados pelos episódios que encontram, facilmente, ecos na realidade histórica
vivenciada pelo homem comum do medievo-central, principalmente. As afirmações de
Cândido sobre a verossimilhança como efeito da relação íntima entre personagem e pessoa
são, perfeitamente, cabíveis na observação destas personagens.
Outro fator interessante levantado por Candido (1985) é a respeito da fragmentação do
conhecimento que uma pessoa tem de outra e isto se aplica aos escritores, quando criam suas
personagens. Ao homem, é uma característica inerente ao ser; ao escritor, é uma atitude
assumida racionalmente. Assim, o(s) autor(es) que reescreveu as personagens da Demanda
esteve livre para criar sobre as ações de cada uma delas. Mesmo tendo o conhecimento
fragmentário e, desta forma, revelando a descontinuidade da percepção espiritual, o autor, por
estar ciente de sua condição criadora, pode lançar sobre uma ou outra personagem a roupagem
que lhe parecer conveniente. Seu saber acerca da profundidade espiritual da personagem é
controlado por ele mesmo.
Considerando que as quatro personagens selecionadas da Demanda conservam os aspectos
das bruxas ou feiticeiras medievais, embora não se encontrando no mesmo nível da história
como herança da Idade Média, entende-se que se ajustam na fragmentalidade da percepção
espiritual que Cândido sugere. As menções às bruxas, na obra e nos registros históricos, são
oriundas da visão de um terceiro, significando que não existem referências a estes seres tal
como se concebiam. Naturalmente, os autores legavam às personagens impressões colhidas do
conhecimento assistemático que detinham do mundo ao redor. Destarte, todas as noções
percebidas acerca dessas personagens são provindas do narrador. As personagens também não
falam de si, não expondo seus pensamentos, logo, as marcas deixadas não refletem as noções
do lado sobrenatural e sim do lado humano, masculino e católico-cristão.
Observando, neste momento, a construção da personagem e o seu processo de criação,
Candido (1985) dispõe a personagem como criada ou inventada, podendo ser resultado de
várias fontes inspirativas. O mundo do narrador da Demanda parece constituir fonte
inesgotável de estímulo à criação literária, tamanha é a semelhança com a realidade histórica.
Entretanto, o estudioso apregoa que mesmo que um autor utilize imagens reais para construir
suas personagens, ou ainda produzir alterações em personagens já existentes, estará agindo
por conta própria, ou seja, terá, afinal, operado de acordo com suas convicções.
156
Não há conhecimento acerca da autoria da obra. Sendo assim, não há como falar sobre as
possibilidades de criação de um autor, principalmente quando há a probabilidade de haver
múltiplos autores. Portanto, analisando as informações referentes à obra e à realidade histórica
que a envolve e aliando estes aspectos como fatores da análise literária, conclui-se que o
contexto histórico e cultural foi o grande inspirador na criação (ou recriação) das personagens
da Demanda.
No remate das asserções de Candido (1985), a observação da verossimilhança está atrelada à
coerência interna de um texto. Para que apresente as possibilidades reais do sentimento de
verdade, o criador de um texto deve ter a habilidade de dispor idéias, fatos, personagens e
outros elementos narrativos de forma coerente na construção textual. Isto significa que não
basta analisar uma história escrita através de sua semelhança com a realidade; é, também,
preciso que seus elementos estejam em consonância perfeita. Deste modo, a personagem
como “ser” de extrema importância no texto, só assume seu verdadeiro papel verossímil se
mantiver estreitas relações com os outros elementos da narrativa. A verossimilhança depende,
assim, da organização coerente do texto.
Examinando as personagens escolhidas da Demanda, como um conjunto variado, mas
concordante em aspectos ligados à bruxaria ou feitiçaria medieval, é passível de comparação a
realidade histórica com a narrativa da novela. A história, servindo de base inspiradora
provinda do mundo clerical do medievo, está fortemente demonstrada nestes textos; e a
maneira como foram selecionados, prosificados e escritos está, igualmente, consoante aos
costumes literários vigentes. Logo, a coerência interna dos textos é perceptível para o leitor.
Justifica-se, assim, o papel das novelas cavaleirescas como fonte não de fatos, mas de
informações da vida cotidiana da Idade Média.
Rosenfeld (1985), por sua vez, destaca a distinção entre o mundo real e o fictício. A
verossimilhança, tal qual apresentada por Candido, é percebida por ele de maneira diversa. O
sentido de verdade por ele apregoado e veiculado, segundo alguns critérios de organização,
pela obra literária ficcional é, para Rosenfeld aplicável a acontecimentos reais e não à ficção.
Assim, o autor expressa que a ficção busca muito mais a autenticidade ou sinceridade do autor
do que se preocupa com o que, de fato, aconteceu. Considerada um modelo para a criação
literária, a vida real configura-se importante dado inspirador para que um autor represente-a
157
através da ficção. Assim sendo, a verossimilhança vem a ser apenas uma representação do
real e não uma semelhança com este.
Rosenfeld dispõe, então, uma distância considerável entre a esfera real e a fictícia. Assume a
inter-relação existente entre ambas, porém as distingue por características próprias e, por
vezes, dissonantes. Para o autor, critérios de veracidade cognoscitiva não devem ser aplicados
a enunciados ficcionais, assemelhar-se-iam à falsidade; e a ficção, apesar de irreal, não é
falsa. Admitindo, portanto, a linha de pensamento sobre a personagem que Rosenfeld
defende, outros caminhos podem ser trilhados pelas personagens da Demanda. Invenção da
mente criadora de um autor, ou mesmo de autores, elas fazem parte de um mundo objectual e
constituem-se em objectualidades, cuja função maior repousa na representação fictícia do real.
A partir dessas considerações, é possível observar que a fonte inspiradora do meio histórico
para a literatura medieval oferece os meios pelos quais os escritores se ocupam na tarefa de
representar uma situação de vida real, seja esta verídica ou inventada. De qualquer maneira,
compreende-se que existe uma semelhança do fictício com o real; isto é fato. E assim torna-se
difícil discernir metodicamente os liames que unem ou desunem a verossimilhança da
representação do real, imanência da literatura. Tanto é verdade que os próprios estudiosos
brasileiros admitem que é tênue a linha separatista entre universo real e ficcional, e ainda
assumem suas interdependências. As diferenças de pensamento residem no foco de suas
análises quanto a estes dois universos permeados por pessoas e personagens: Cândido detalha
as relações intrínsecas entre pessoa/personagem e realidade/ficção e os “nós” que as prendem;
Rosenfeld, por sua vez, ressalta os aspectos que as distinguem.
Levando em conta que as personagens escolhidas da Demanda, com exceção de Morgana, não
são, propriamente, bruxas ou feiticeiras, as relações pessoa/personagem aproximam-se mais
da distinção do que da semelhança. Foram destacados, nestas personagens aspectos
relacionados ao mundo espiritual-sobrenatural que suscitam semelhanças com as figuras
medievais retratadas como mulheres bruxas ou feiticeiras. Assim, essas personagens podem
ser vistas como uma representação, razoavelmente coerente, do que os homens reais do
medievo concebiam acerca das mulheres de seu tempo: ligadas ao Mal; propensas à
fragilidade e, conseqüentemente, ao engodo; detentoras de poderes estranhos ao mundo
masculino; vetores da sensualidade, logo, executoras da luxúria; dependentes da mão
masculina para salvá-las.
158
Essas afirmações acima resumem as atuações dessas três personagens. Já Morgana carrega o
estigma da “fada”, não se referindo o termo à suavidade da madrinha conhecida nos contos de
fada, substituta das mães. Embora em desuso atualmente, o termo era aplicado à capacidade
que certas mulheres tinham de agourar, de prognosticar sobre o destino de outrem. A palavra
sofreu diversas modificações até assumir a acepção relativa a um ser fantástico. Mesmo
assim, advindo de lendas bretãs e pagãs, a figura de Morgana aparece apenas de relance, num
momento delicado da trama, anulando seus poderes antes divulgados. A personagem passa
por um processo de refolhamento entre a “fada”, das novelas tradicionais e a mulher, irmã de
Artur. A mensagem cristã de aniquilamento do pagão é clara: para aqueles povos que tiveram
pouco contato com as tradições celtas, a menção do nome Morgana não provocaria grande
impacto e o seu lado “fada” estaria oculto pela roupagem cristã da irmã de sangue do rei
Artur, apenas citada no episódio de sua morte. Com certeza esta peculiaridade foi de grande
ajuda para os propósitos católicos.
Ponderando estas assertivas e colocando-as sob o olhar da distinção entre o real e o fictício,
Morgana representa a realidade encoberta por trás das verdadeiras intenções da Igreja: a
instituição dominante de seus dogmas. Enquanto as outras três personagens podem
representar a figura feminina medieval, dentro das limitações sofridas por elas, como a
história permite conhecer, Morgana representa a intencionalidade dos autores que
reescreveram as lendas celtas ou, pelo menos, da religiosidade que reinava sobre eles:
religiosidade teocêntrica, impiedosa e dominadora que cultuava um Deus punitivo às
imoralidades e fraquezas humanas.
Analisada sob este foco, Morgana se constitui no resultado do conjunto de intenções de um
autor (ou autores) que a reescreveu e a recriou como uma objectualidade designada a viver
aquele episódio da forma como ele desejava: dissimulando a personagem primeira, oriunda do
paganismo. Representando, então, o real medieval, além de, igualmente, mostrar a nulidade
da mulher, Morgana representa a realidade intencional da Igreja, encoberta pelas ações
nobilitantes de seus protagonistas. Asseverando, por fim, que as objectualidades intencionais
não possuem a competência para alcançar a determinação completa da realidade, Rosenfeld
reafirma o carácter fragmentário da personagem e, portanto, as personagens da Demanda
assumem um modelo (ou representação) da mulher medieval, em toda a sua insignificância.
159
4.4.2 Influências pagãs e cristãs presentes na construção das personagens
Inicialmente, a obra se configura um dos mais marcantes retratos da herança medieval do
gênero narrativo. Considerando o ambiente cultural conturbado do medievo-central, aliadas
suas características às indefinições do natural e do sobrenatural, A Demanda do Santo Graal
revela-se um verdadeiro código de conduta moral do saber dominante. Entrechoques de
costumes, línguas e hábitos possibilitaram imagens variadas de bruxas ou feiticeiras, tendo
povoado o imaginário cristão e o profano. Buscando transmitir a dicotomia Bem/Mal
existente neste período, em que os dois lados da humanidade conviviam em constante conflito
na mentalidade do homem medieval, esta obra parece transferir para a ficção literária o
alcance do universo benéfico e o do universo maléfico.
Nas personagens analisadas foram levantados aspectos e características que as moldam como
o verdadeiro mistério em que a mulher medieval esteve envolvida. A efusão das lendas
célticas pela Europa e os esforços da Igreja em estabelecer sua hegemonia permitiram que
estas personagens refletissem os ideais cristãos, catolicamente emoldurados. As influências de
ordem pagã e cristã estão claramente expostas por toda a obra. As personagens femininas
escolhidas, reunindo características que as aproximam da figura da bruxa ou feiticeira,
detendo-se nos aspectos diabólicos, reafirmam a separação do dualismo humano, legado da
Antigüidade pagã. O desequilíbrio entre as forças surge como marca indelével da luta cristã.
Relegada à insignificância, a mulher medieval, representada pelas personagens selecionadas
da Demanda, posicionou-se à esquerda do Criador, ou abaixo na balança das forças
dominantes. Igualmente, esta mulher representa apenas uma das extremidades do dualismo
humano: o Mal. Mesmo tendo sido, por vezes, exaltada na obra, tais passagens limitam-se à
descrição de beleza, mais física do que moral. Desta forma, as quatro personagens inscrevem-
se, sobremaneira, na tradição católico-cristã, embora seja possível vislumbrar os vestígios da
composição antiga e pagã da figura feminina de modo subjetivo. Embora se utilize o termo
“influências” pagãs ou cristãs na criação ou descrição das personagens, deve-se atentar aos
limites da própria palavra. Influência nem sempre remete a motivação e, no caso da Demanda,
esta limitação de sentidos está clara: é necessário, como alerta Macedo (apud LANGER,
2006), não confundir referência cultural ao paganismo com subsistência do paganismo. A
obra parece apresentar mais referências ao paganismo bretão do que ser influenciada por ele.
160
Apesar da possibilidade de se entrever os substratos pagãos estampados nas personagens
analisadas, deve-se cuidar para não confundi-los com indícios de existência do paganismo.
Nesta análise, a Demanda é constituinte de um conjunto de esforços empenhados pelo Clero
em disseminar dogmas, exemplos de conduta, assim como de controlar o comportamento
humano, no intuito de regular a moralidade do homem comum. Tais eventos ocorreram por
meios variados e em tempos diversificados. Mais próximas das mulheres do que das bruxas,
porém demonstrando características físicas e espirituais inerentes ao feminino atribuído tanto
à mulher quanto à bruxa ou feiticeira, estas personagens receberam o conceito nítido
proveniente de mentes, no mínimo, influenciadas pela misoginia medieval. Desejando
disfarçar a negatividade e o pessimismo revelado por esta atitude extrema do masculino, o
Clero buscou amenizar a intolerância aos supostos “poderes” das mulheres: introduziu a
imagem positiva e pura da Virgem e, posteriormente, foi impelido a aceitar o culto a Maria
Madalena, símbolo da redenção feminina. A santidade atribuída à personagem Aglinda, no
episódio “A fonte da virgem”, é um exemplo circunstancial da mulher aceita socialmente por
suas qualidades similares à Virgem Maria. Contudo, mesmo detentora de suposta bem-
aventurança, a mulher medieval não esteve livre do servilismo imposto pelos homens.
A própria intransigência do Clero e também da dominação patriarcalista acabaram por
desencadear uma intolerância ao desequilíbrio das forças sobrenaturais. Por isto é que,
procedente da população, o culto a Maria Madalena veio suprir o vazio do desconhecido e
provocar, novamente, o equilíbrio do dualismo humano, tão combatido pela Igreja.
Colocando-se entre Eva e Maria, cujas representações estão marcadas na Demanda
(respectivamente, a donzela do conto de Persival e Aglinda), Madalena é o elemento da
distinção e da complementação das forças, podendo ser entrevista pela imagem da mulher
comum, por meio de Morgana e da filha do rei de Lomblanda.
A Demanda do Santo Graal mostra um cenário medieval repleto de elementos dissonantes
relativos às próprias influências recebidas do meio. O paganismo amalgamado pelo
cristianismo medieval manifesta-se através das referências a seres fantásticos, como a besta
ladradora; através da menção a poderes divinos, como os concedidos a Excalibur, espada
mágica; através da semelhança deífica conferida ao cavaleiro Galaaz. A junção do
sobrenatural pagão ao divino cristão transparece com naturalidade na obra e as personagens
femininas indicam a fortaleza dessa união. Segundo Macedo (apud LANGER, 2006),
161
convencionou-se chamar de elementos culturais híbridos, provindos de “zonas de confluência
nas quais ressaltam costumes e crenças originais” (p. 07). Como a Igreja comandou,
conscientemente, o empreendimento em favor da disseminação cristã, não é surpreendente
que as personagens aqui discutidas tenham sido construídas sob a mensagem católica,
evidenciando que as influências e representações cristãs deveriam sobrepujar as pagãs.
4.5 CONFRONTANDO AS OBRAS: CONFIGURAÇÃO DAS CONVERGÊNCIAS E
DIVERGÊNCIAS
A análise das personagens, primeiramente apontadas como bruxas ou feiticeiras no corpus
deste trabalho, levanta questões relacionadas à vida real e à ficção. Para se compreender as
ligações entre pessoa e personagem, foi necessária uma trajetória que abarcasse conceitos
literários e informações históricas. A literatura, através da narrativa romanesca, especificada
pelas novelas de cavalaria, provê material suficiente para o esclarecimento das questões de
pesquisa. O suposto reverso da figura feminina revelou-se plurissignificativo. Embora não
haja nas obras analisadas qualquer referência direta a bruxas ou feiticeiras, as personagens
investigadas se mostraram semelhantes ou não a elas. Os indícios aparecem através da
atuação das personagens femininas, pois, de alguma forma, todas detêm qualidades que foram
atribuídas a estes seres.
O primeiro aspecto a se destacar é o modo de apresentação das personagens. As duas obras
demonstram a herança recebida da oralidade, pois a presença de um narrador remete aos
contadores de histórias e lendas. A força narrativa deixa transparecer as semelhanças com a
tradição oral, contudo a narrativa escrita acresce particularidades à diegese. Embora ambas as
obras apresentem um narrador heterodiégetico, estes foram construídos de maneira
diversificada. Em A Demanda do Santo Graal, o narrador posiciona-se por trás da “voz do
conto”, dando a impressão de que o próprio conto é o narrador. Em Amadis de Gaula, a
presença verbo-pessoal, por vezes, torna o narrador homodiegético: dirige-se ao leitor,
comunicando decisões acerca do desenrolar da história, tal qual na oralidade. As novelas de
cavalaria encontraram ambiente farto para a narração heterodiegética, em que o narrador
conhece os fatos e os narra de acordo com as suas concepções. Freqüentemente, e isto ocorre
162
nas duas obras, o narrador faz sobressair as aventuras e os feitos heróicos das personagens, o
que lhes confere relevância atrelada às circunstâncias em que se envolvem.
As personagens femininas foram analisadas, inicialmente, pelos traços individuais que
apresentam. Em Amadis de Gaula, Urganda, a Desconhecida, se manifesta conhecedora dos
eventos da vida futura do herói Amadis, denotando sabedoria, astúcia e bondade. A leitura da
novela provê ao leitor a sensação de uma personagem indefinida, ou ainda de que aparece na
história somente quando dela precisam. Estas características aproximam a personagem de
uma figura meio humana, meio sobrenatural, muito similar à bruxa ou à feiticeira. Em A
Demanda do Santo Graal, entre as personagens selecionadas, não há nenhuma que se
assemelhe a Urganda; são mulheres comuns. A donzela do episódio “A tentação de Persival”
é a única que se transfigura em ser demoníaco. Porém, até a sua transformação, age como
mulher simples. Os indícios de que sua personalidade poderia estar relacionada ao Mal
provêm, na verdade, do desejo sentido pelo herói. Outra personagem, conhecidamente maga,
mas que não se apresenta como tal, é Morgana. A irmã de Artur tem sua imagem fantástica
reduzida a uma aparição, quase sem referências, no episódio “A morte de Rei Artur”. Por
mais que se saiba de suas ligações com Merlin, por exemplo, e toda a história precedente à
demanda do Santo Cálice, a personagem é desprovida de suas qualidades pagãs. As outras
duas personagens, a saber, Aglinda e a filha do Rei de Lomblanda, também representam a
mulher comum medieval. Como particularidades femininas que as destacam estão a
capacidade de prever o futuro, na filha do rei e o encantamento da fonte, em Aglinda.
Tanto Aglinda como a filha do Rei de Lomblanda estão presentes na porção benéfica das
forças sobrenaturais, pois atuam em prol dos heróis. Suas habilidades surgem em função das
atitudes dos cavaleiros, como ocorre com a filha do rei, que prevê a chegada do cavaleiro
eleito, Galaaz; e em função da mensagem católico-cristã dirigida à imagem ideal do cavaleiro
medieval, como no episódio “A fonte da virgem”, em que Aglinda lança o encantamento (ou
maldição) à fonte, fazendo cair paralisado todo cavaleiro que dela se aproximasse e não fosse
puro. A donzela do episódio de Persival, ao contrário, se enquadra na porção maléfica, pois é
o próprio demônio disfarçado em beleza feminina. É forte a sua aproximação com a figura da
bruxa medieval. As mulheres consideradas bruxas eram concebidas como seres fantásticos
através de um concubinato com Satanás. Daí a facilidade do Mal em se transfigurar em
mulher. Urganda, de Amadis, não pode ser inscrita em nenhuma porção da dualidade humana:
ela representa o equilíbrio das forças. A personagem não é boa nem má; mostra atitudes
163
benevolentes para com o herói e outras personagens, mas também prejudica outros conforme
seus desejos. Morgana, da Demanda, igualmente não deve ser enquadrada entre o Bem ou o
Mal. A atuação da personagem no episódio “A morte de Rei Artur” é apenas uma referência
às tradições bretãs que originaram as lendas arturianas.
O que liga as personagens da Demanda à figura das bruxas ou feiticeiras são as características
intangíveis das mulheres retratadas nestes episódios. Essa relação pode ser feita em
decorrência destas qualidades terem sido desviadas da mulher comum para mulheres
especiais, seja através da feitiçaria ou da bruxaria. Não há meio de rotulá-las como seres
sobrenaturais, nem mesmo Urganda, cujas qualidades são ainda mais similares. No entanto, a
gênese dos poderes atribuídos a feiticeiras e bruxas, bem como a capacidade de se
inscreverem no Bem ou no Mal, reside no elemento feminino humano: a mulher.
Outra caracterização notável nas personagens são as referências nominais. Em Amadis,
Urganda tem seu nome acompanhado da alcunha identificadora “a Desconhecida”. Além de
ser um indício do mistério que a cerca, revela a importância dada à personagem. Urganda é
bem vista pelos protagonistas da história, tem o poder de salvar o herói, combatendo os
feitiços do mago Arcalaus. Igualmente, é livre e faz o que lhe convém com seus
conhecimentos; distingue o bem do mal e usa-os conforme suas convicções. A figura
feminina de Urganda é um suporte às aventuras de Amadis. Está presente em todas elas,
mesmo que não apareça; entretanto, basta uma situação mais complexa para que Urganda se
mostre. A livre atuação da personagem feminina é sinal distintivo entre as obras analisadas.
Aproximando-se mais da bruxa ou feiticeira e menos da mulher medieval, Urganda não
corresponde ao modelo feminino mostrado na Demanda.
Já as quatro personagens arturianas recebem um tratamento bem diferenciado. A questão do
nome das personagens é um indicativo da relevância desses seres. Morgana, apesar de receber
um nome, oriundo das aventuras preexistentes, este não revela o papel da personagem no
episódio. Sendo apenas uma referência às lendas bretãs, a personagem passa a representar o
esforço empreendido pela Igreja em anular as influências pagãs. Entre as outras três
personagens, apenas Aglinda recebe um nome. Deve-se isto a sua semelhança com a Virgem
Maria, por suas virtudes e pelo martírio vivido. A filha do Rei de Lomblanda não recebe
nome; sua única referência é o pai, elemento masculino. Sua importância é ínfima, pois sequer
necessita de um nome. Sua aparição é em função da liberdade das virgens do Castelo Felão e
164
da vinda de Galaaz. A donzela do episódio de Persival é ainda mais nula: não recebe nenhuma
referência nominal. Enquanto mulher, apenas sua beleza física se destaca. Somente recebe
algum valor ao se transformar em demônio, revelando sua verdadeira identidade. Ainda
assim, representa a porção maléfica e é combatida pelas forças divinas.
Considerando o aspecto realidade e ficção, pautado nas discussões sobre a verossimilhança, as
duas obras proporcionam um reflexo da vida cotidiana do medievo. Podendo se entender o
fenômeno da verossimilhança como a capacidade que a ficção possui de se assemelhar à vida
real (CANDIDO, 1985) ou como a representatividade da realidade por objectualidades
intencionais, proposta de Rosenfeld (1985), as informações históricas, colhidas como meio de
contextualizar as novelas de cavalaria serviram de apoio aos conceitos literários sobre a
personagem ficcional. Partindo, então, do pressuposto de que um autor se vale da realidade ao
seu redor como fonte de inspiração para compor uma personagem; acrescentando a
popularidade atingida pelas novelas cavaleirescas na Idade Média e considerando os muitos
autores, compiladores e copistas que legaram estes textos aos séculos seguintes, compreende-
se a forma como o contexto social contribuiu para o conjunto de fatores que determinam o
teor de uma obra.
A partir destes dados foi possível analisar a construção das personagens, focalizando as
influências pagãs e cristãs. Entre as informações históricas mais relevantes para este aspecto
estão alguns elementos antitéticos que ajudaram a moldar o espírito do homem medieval:
homem versus Deus e tradição cristã versus tradição pagã. Por serem elementos ligados à
conduta moral, é compreensível que seus vestígios estejam aparentes nas personagens
observadas. Na Demanda do Santo Graal a mensagem cristã supera qualquer referência ao
paganismo bretão. As personagens femininas correspondem aos modelos situados no Bem ou
Mal, tal como a Igreja medieval propagava seus padrões de comportamento. Em Amadis de
Gaula ocorre o oposto: há pouca referência à religiosidade cristã em toda a obra; logo, a
personagem Urganda se inscreve muito mais na tradição folclórico-pagã. Suas características
correspondem às qualidades intáteis da mulher, herança das crenças pré-cristãs.
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Literatura e história: dois universos unidos pela vontade humana. A história, num sentido
mais amplo, povoa a imaginação de um autor ao conceber uma obra; em sentido mais estrito,
provê material inspirativo para a composição das personagens. A narrativa escrita colheu da
tradição oral histórias e lendas contadas e recontadas, séculos após séculos. Imprimiu à
diegese valores, características e julgamentos conforme a época e os autores que compilaram
essas histórias. As novelas de cavalaria são, portanto, um retrato deste fenômeno literário. As
aventuras do Rei Artur e seus cavaleiros, bem como outras novelas responderam aos anseios
do homem medieval. Sendo histórias guerreiras, heróis cavaleiros foram apresentados sempre
em busca de aventuras, na intenção de galgar respeito, elevação emocional e espiritual. A
Demanda do Santo Graal e Amadis de Gaula são exemplos marcantes dessa literatura.
Mostram o sentido da cavalaria medieval apontando para a ascese e para o amor cortês.
Concepções diversas que denotam as mudanças sócio-mentais vividas pelo homem no
decorrer dos séculos que abarcaram a Idade Média.
O período medieval nasceu da confluência de vários fatores. Entre aqueles mais contundentes
estão a decadência do Império Romano e as invasões dos bárbaros germanos. Época marcada
por lutas, soldados e guerreiros, o medievo imprime na História características únicas. Tempo
de mudanças, repleto de fome, de batalhas, de doenças e cercado por mistérios que persistem
até a atualidade. Os primeiros séculos da Idade Média deixaram pouco material histórico; seus
personagens envolveram-se em lendas ou mitos; a vida real de outrora se confunde com o
imaginário de agora. Por tantas razões, o homem medieval esteve imerso em incertezas e
dúvidas quanto ao seu papel sobre a Terra.
O nascimento do Ocidente Medieval apresenta uma multiplicidade de culturas. A herança pré-
cristã, trazida pelos povos bárbaros, chocou-se com o sistema romanizado de vida e com a
nascente cultura cristã. A indefinição do homem medieval esteve à mercê dos fenômenos
sociais ocorridos em virtude dessas confrontações de povos tão diversos. A própria temática
dos romances cavaleirescos denota tais sentimentos de incerteza e de imaterialidade, bem
como da exacerbada religiosidade cristã. São, pois, comuns nas novelas de cavalaria, as
166
referências ao paganismo, através de personagens fantásticas e do amor cortês; igualmente
comuns são as referências aos embates católicos, na busca de sua predominância popular.
Este foi, sinteticamente, o panorama histórico que inspirou as lendas orais da tradição
arturiana. Posteriormente, compiladas e organizadas, essas lendas formaram ciclos de contos
que circularam por toda Europa e marcaram uma época. As personagens que povoam estas
histórias são carregadas de sentidos. Trazem impressas em suas características os traços
marcantes da medievalidade, em que o fantasioso aponta para a tradição pagã e o religioso
para a tradição cristã. A carga de efeitos das personagens sobre os leitores ou ouvintes se
constitui material para a análise da relação entre personagem e pessoa ou ficção e realidade.
Essa relação, determinada pela menor ou maior identificação entre esses seres, é chamada de
verossimilhança, termo literário usado para descrever as impressões reais que os entes
ficcionais provocam nos leitores ou ouvintes.
Sob o foco das teorias de Antônio Cândido e Anatol Rosenfeld acerca da personagem fictícia,
este trabalho se propôs a analisar algumas personagens das obras Amadis de Gaula e A
Demanda do Santo Graal. As mulheres envolvidas com algum tipo de poder sobrenatural,
tidas como personagens secundárias, aparecem nessas novelas desempenhando papéis
diferenciados, de acordo com o teor de cada obra. Partindo desta realidade, a proposta de
pesquisa repousou sobre a figura feminina da bruxa ou feiticeira, situada no universo místico
que permeia os romances de cavalaria. Considerando as abordagens apresentadas por cada
obra, bem como as características próprias de cada personagem escolhida, buscou-se revelar
semelhanças e dessemelhanças entre as personagens tidas como feiticeiras ou bruxas e a
mulher medieval comum.
Unindo o contexto sócio-histórico em que as obras foram escritas, o ambiente místico que
envolve as narrativas arturianas e a teoria da personagem de ficção, procurou-se verificar a
construção dessas personagens femininas a partir da ótica apontada por Cândido e Rosenfeld
(1985) que analisa a verossimilhança como principal fator de identificação entre vida real e
ficcionalidade. Dado o fato de que os contextos de época parecem estar diretamente
associados aos gêneros literários, poder-se-ia dizer que as novelas de cavalaria produzem a
sensação de autêntica identidade com a realidade outrora vivida pelo homem medieval. A
narrativa, dispondo os fatos diegéticos cronologicamente, constitui uma importante forma de
167
expressão literária que proporciona ao leitor possibilidade de avaliação e julgamento humano
através da representação de personagens.
Três pontos teórico-literários foram essenciais para a análise das personagens: o caráter
fragmentário da personagem e o problema de coerência interna, levantados por Antônio
Cândido e o universo ficcional constituído por objectualidades intencionais do autor,
abordado por Anatol Rosenfeld. Estas premissas convergem para a questão principal da
relação entre pessoa e personagem: a verossimilhança. Estando, para Cândido, este fator
ligado à possibilidade de identificação entre a realidade e a ficção, através da coerência e
adequação alcançada por todos os elementos da narrativa; e, para Rosenfeld, ligado à
capacidade de representação da realidade humana pela realidade ficcional, a análise das
personagens selecionadas buscou constatar a existência (ou não) de similitudes, na figura
feminina medieval das novelas de cavalaria, com a mulher medieval, ressaltando suas
qualidades naturais em contraste com os padrões de comportamento exigidos pelo Clero.
O reverso da figura feminina pôde ser vislumbrado em dois ângulos significativos em A
Demanda do Santo Graal. Entrevendo o sentido de “contrário” para o termo “reverso”, em
um dos significados de dicionário, percebe-se a dicotomia defendida pela Igreja Católica
medieval, cujos dogmas eram pautados na aceitação do Bem, representado por Deus, e do
Mal, representado por Lúcifer. Desta forma, a imagem feminina das personagens analisadas
esteve em consonância com o pensamento misógino que se desenvolveu naqueles séculos. O
modelo de mulher era a Virgem, o reflexo mais próximo de Deus. Àquelas que não vissem em
sua figura o ilibado padrão a ser seguido, era destinado o rótulo do mal, da marginalização: a
prostituta, a leprosa, a bruxa ou feiticeira. Em outro ângulo, tomando o sentido de “revés”,
isto é, algo que era bom e se tornou mal, para o temo “reverso”, entremostra-se a
manifestação da mulher desvirtuada, cujo exemplo cristão é Eva. A figura feminina é exposta
como um elemento capaz de desencaminhar o cristão do destino consagrado. Exemplo deste
reverso destaca-se o cavaleiro Persival, no conto “Tentação de Persival”, em que o herói é
tentado pelo demônio, que lhe aparece na forma de belíssima donzela.
O reverso da figura feminina, analisado nas personagens consideradas bruxas ou feiticeiras,
apresenta qualidades atribuídas a estes seres, tornando-se duplamente presente na novela
cavaleiresca de maior importância do Ciclo Arturiano. Em Amadis de Gaula, este reverso não
se manifesta. A figura feminina de Urganda se estabelece no equilíbrio das forças que regem
168
o universo. Disposta entre o Bem e o Mal, representa a aceitação da dualidade humana como
forma de equalização dos poderes divinais. A feiticeira ou bruxa, ou apenas um ser dotado de
certas faculdades extra-sensoriais configura-se em Urganda, revelando uma face valorizada
pelas suas habilidades. Os vestígios da herança pagã evidenciam-se na maneira como a
personagem é apresentada pelo narrador medieval.
Igualmente notória é a referência ao Mal através de um elemento masculino, o bruxo
Arcalaus. Se na Demanda a figura feminina aparece como detentora de qualidades maléficas,
em Amadis é a figura masculina que se desdobra em maldades contra o herói cavaleiro. Outra
característica que se soma a essa valorização do feminino é a alusão à cavalaria movida pelo
amor cortês. Amadis, diferentemente de Galaaz ou Persival, realiza todas as peripécias e
participa das batalhas aventurosas apenas para ganhar o amor de Oriana. O herói não busca a
ascese; não há referência à religiosidade cristã como reguladora das emoções humanas.
Na constante investigação das personagens consideradas bruxas ou feiticeiras, a
contextualização histórica serviu como base fundamentadora para a análise da
verossimilhança, tanto como a maior ou menor semelhança com a realidade, quanto como
uma representação do real pelo fictício. As informações fornecidas pela História foram de
extrema importância para o estabelecimento da teoria literária acerca da personagem
romanesca. A análise literária dessas personagens focalizou, portanto, a construção das
mesmas, em contraste com o ambiente real que originou as novelas de cavalaria.
A evidência do caráter fantástico e, ao mesmo tempo, cristianizado, da figura da bruxa ou
feiticeira concedeu às personagens analisadas atributos que permitem cotejá-las com a bruxa,
representantes da sociedade medieval dominada pela cultura eclesiástica. Observando este
aspecto, foi possível analisar as influências ou referências pagãs e cristãs na criação dessas
personagens. Cada uma das obras demonstra estar em conformidade com seu tempo: A
Demanda do Santo Graal denuncia a luta da Igreja em retomar a imagem do cavaleiro cristão,
através de feitos que nobilitem seu caráter e reafirmem, assim, os dogmas católicos. Logo, as
influências cristãs estão mais presentes. Amadis de Gaula, por sua vez, se mostra livre das
amarras do Clero e anuncia um novo cavaleiro, que utiliza os mesmos meios que os da
Demanda, porém com objetivos diferentes. Igualmente apresenta certa valorização das
personagens femininas, através do amor cortês. Conseqüentemente, Amadis de Gaula recebeu
169
mais influências pagãs do que cristãs, haja vista o maior número de referências às tradições
populares e também a ausência do sentimento de religiosidade cristã por toda a obra.
A trajetória da mulher pelos séculos medievais é repleta de transformações. A abordagem
desta pesquisa procurou, apenas, compreender as personagens femininas das novelas de
cavalaria, paralelizando-as com a mulher medieval, em uma de suas faces marginalizadas: a
bruxa ou feiticeira. Entender a literatura como um retrato fiel da realidade histórica seria
atribuir genuinidade em excesso a um escritor, que “inventa” sua história. É preciso
considerar a obra de ficção como uma representação da realidade ou como um conjunto
diegético narrado semelhante à vida real. Se a personagem romanesca aparenta o que há de
mais vivo em um romance; e admitidos ambos os conceitos de verossimilhança, Urganda e as
quatro personagens de A Demanda forneceram subsídios que possibilitaram a comparação
entre pessoa e personagem. Desta forma, realidade e ficção se uniram num todo coeso onde
figuram pessoas, personagens, história e lenda.
170
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