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Não havia propriamente aquilo que chamamos de sobrenatural: a própria
palavra surgiu apenas no século XIII, no contexto do desenvolvimento de
uma nova concepção de natureza. Ocorriam freqüentemente, isso sim,
hierofanias ou “manifestações do sagrado” em setores da vida que hoje
consideramos profanos, diferenciados do campo “religioso”, como a política
ou a economia. Por exemplo quando o sobrinho de Carlos Magno, Rolando,
é morto pelos inimigos na Espanha, em toda a França chove, venta, troveja,
escurece, a terra treme, fenômenos que continuam a ser considerados
naturais, porém revelando algo mais naquele contexto, a dor pela morte do
herói. Ou seja, o “sobrenatural” se mostrando no “natural”, fenômeno de
todas as religiões, mas especialmente importante no Cristianismo, centrado
na maior hierofania possível: Deus se fez homem (p. 151).
É o mais puro retrato da concretude da religiosidade medieval. O homem necessitava sentir o
aspecto real e concreto de sua própria crença, daí os costumes que surgiram relacionados à
prática cristã católica, como as peregrinações, o culto a relíquias e a imagens, as Cruzadas. A
presença de anjos e demônios era tão comum como a presença de uma visita em casa. As
exortações e os exorcismos tornaram-se parte da vida, reforçando a dualidade Bem e Mal e
alimentando a importância atribuída às forças maléficas.
Foi, portanto, neste contexto mental que a figura da feiticeira se insere como transgressora das
normas divinais impostas pela Igreja. Isto significa que, por tentar compreender as forças da
natureza de outra maneira que não pela interpretação bíblica, as pessoas que lançavam mão de
conhecimentos antigos, pré-cristãos, ficaram relegadas à margem do padrão sócio-cultural
aceito pelas autoridades eclesiásticas. Todavia, é preciso salientar que o homem medieval, por
estar sujeito às intempéries imprevisíveis da natureza, tinha grande interesse (mesmo que
teimasse em ocultar) em descobrir, conhecer e desvendar os meios de controlar as forças
naturais, e a figura de uma mulher ou homem que dominasse esses poderes era, por demais,
atraente. Portanto, o conhecimento pagão, oriundo de antigas civilizações, repleto de imagens,
poções, filtros, rituais, receitas naturais e procedimentos que visavam à influenciação sobre
outrem foi objeto de interesse, estudo e, até mesmo, de cobiça.
Nogueira (2004) afirma que o desenvolvimento do conceito de magia, a partir do século XII,
está calcado sobre as relações que o povo estabeleceu com a comunidade evangelizadora e
cristianizadora que veio sobrepor crenças, práticas e rituais antigos por novos pensamentos
acerca de um deus supremo. Explica que durante o processo evangelizante, quando o
paganismo ainda possuía força social, a magia se constituía em uma crença integrante do
sistema religioso pagão, em contraste e oposição à religião. Isto quer dizer que a religião