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KAROLINA REIS DOS SANTOS
AIDS X Vida:
A doença como uma possibilidade de transformação para o
sujeito
ASSIS
2006
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KAROLINA REIS DOS SANTOS
AIDS X Vida:
A doença como uma possibilidade de transformação para o
sujeito
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – UNESP - Universidade Estadual
Paulista, para obtenção do título de Mestre em
Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e
Sociedade).
Orientadora: Profª Drª Marlene Castro Waideman
ASSIS
2006
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KAROLINA REIS DOS SANTOS
AIDS X Vida:
A doença como uma possibilidade de transformação para o sujeito
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual
Paulista, para obtenção do título de Mestre em
Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e
Sociedade).
Orientadora: Profª Drª Marlene Castro Waideman
COMISSÃO EXAMINADORA:
________________________________________
Prof
a.
Dr
a
Marlene Castro Waideman
Orientadora (UNESP)
________________________________________
Prof. Dr. Manoel Antonio dos Santos
(USP)
________________________________________
Prof
a
Dr
a
Maria Luisa Louro de C. Valente
(UNESP)
Aprovada em: 12/12/2006
DEDICATÓRIA:
À Silvia, Lucas, Eduardo, Cristina e
Roselaine, integrantes das duas ONGs nas
quais fui acolhida para realizar este trabalho,
por compartilharem comigo seu tempo e suas
vidas.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos meus pais pelo apoio
incondicional à idéia de fazer um mestrado mesmo antes de eu mesma desejar fazê-lo.
Me lembro das inúmeras vezes em que ouvi – Filha, você devia fazer um mestrado!
Mas, como toda boa filha, eu custei a dar o braço a torcer. E assim, foram quatro anos
até que eu resolvesse acatar o conselho. E não é que eu gostei! Como disse minha
orientadora no dia da minha entrevista de seleção, foi um tempo necessário para mim.
Deve ter sido. De qualquer forma, deixo o meu obrigada a eles, pessoas tão especiais
para mim, que durante este percurso, agüentaram minhas críticas constantes a
qualquer coisa, minha ansiedade, meus agitos, meus pedidos de ajuda na leitura do
meu texto, enfim, me agüentaram.
A você, meu amor, que assim como meus pais, sempre me estimulou a
fazer um mestrado e esteve sempre a me acompanhar em meus sonhos, me dando a
segurança necessária para que eu pudesse seguir meu caminho. Em tanto tempo
juntos, você nunca precisou ser tão paciente e tolerante como nesses últimos dois
anos. E como foi bom poder contar com o seu colo! Seu carinho! Você esteve sempre
disposto a me animar nos momentos de aflição, e a me dar aquele empurrãozinho
quando necessário. Você estava lá. Presente! E que presente!
A minha irmã, Bi, claro que não te esqueci! Entre nossas implicâncias e
momentos de descontração, você foi a parceira de escapadelas para tomar um
capuccino gelado, tentando aplacar minhas (nossas?) ansiedades. Demos boas
risadas. Foram momentos especiais que me tiraram de uma tarefa que, às vezes,
parecia não ter fim. Voltava sempre renovada para mais algumas linhas de trabalho.
Sem contar as várias vezes que você foi para a cozinha para que eu pudesse continuar
com meus estudos. Valeu!
A você, Paulo Roberto de Carvalho, por ter ido além da graduação, me
acompanhando ainda nos primeiros passos do desenvolvimento do meu projeto de
pesquisa. Obrigada.
Obrigada a você Marlene, pela presença constante em todos os
momentos desse nosso trabalho, por sua paciência e puxões de orelha em relão aos
prazos. Sei que é um trabalho pouco agradável, esse de presentificar um término, mas
não menos essencial, afinal, não foi no reconhecimento de uma finitude que se pôde
voltar o olhar para a vida? Da mesma forma, foi através do reconhecimento dos prazos
que pude produzir mais intensamente. Ossos do ofício. E que ofício! Podemos dizer
que trabalhamos. Você e eu. Nós. Me orgulho em dizer para todos que minha
orientadora, de fato, me orientou. Você foi o fio condutor para o qual sempre pude
recorrer quando estava perdida. Muito obrigada!
Quero agradecer a Miriam, secretária da pós, por estar sempre
disponível para as minhas perguntas e solicitações freqüentes.
Até você Néviton, como poderia te esquecer! Sempre por perto para me
socorrer quando o computador falhava, nos momentos cruciais do desenvolvimento da
minha dissertação, me deixando quase louca. Obrigada de coração!
E, por fim, mas, com certeza, não menos importante, meu muito
obrigada para Silvia, Lucas, Eduardo, Cristina e Roselaine sem os quais seria
impossível realizar este trabalho. Obrigada por terem compartilhado comigo um
pouquinho da história de vocês.
SANTOS, Karolina Reis dos. AIDS X Vida: a doença como uma possibilidade de
transformação para o sujeito. 2006. 129f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) –
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2006.
RESUMO
A Psicologia Clínica, como área de atuação, tem se preocupado com temas que, ao
serem pesquisados, possam trazer ao indivíduo melhores condições de interação
consigo mesmo e com o seu meio. Neste sentido, o tema “AIDS” tem sido muito
estudado por pesquisadores, dentre eles também psicólogos que, pela complexidade e
seriedade da doença, levantam inúmeras considerações e hipóteses sobre os diversos
aspectos da enfermidade. Apesar disso, os assuntos mais desenvolvidos por
pesquisadores em relação à AIDS dizem respeito aos seus aspectos psicológicos e
sociais do ponto de vista da doença. Com este trabalho pretendemos abordar este
assunto do ponto de vista da saúde, investigando como algumas pessoas parecem
transformar suas vidas após saberem-se soropositivas para, a partir daí, poder
contribuir com os avanços do conhecimento em relação a essa epidemia e as
interações humanas. Abordamos essa questão da transformação no sentido de dar um
novo significado para as experiências vividas após o conhecimento do diagnóstico de
soropositivo. Dessa forma, analisamos as dinâmicas psicológica e social envolvidas
nesse processo que puderam contribuir para que os sujeitos entrevistados
transformassem suas vidas. Para tanto, foram entrevistadas 5 pessoas soropositivas
atuantes em ONGs. Essas entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas sob a
luz da psicanálise e da teoria psicanalítica. Pudemos perceber que o enfrentamento de
uma doença que remete à morte, como a AIDS, pôde contribuir consubstancialmente
para que os sujeitos entrevistados passassem a questionar-se enquanto tal e, a partir
daí, ressignificar alguns aspectos de sua vida, como a questão do tempo disponível
para que eles pudessem realizar seus sonhos. O reconhecimento da própria finitude
trouxe a castração para o real, obrigando o sujeito a dar uma nova resposta para ela,
fazendo surgir novas formas de interagir consigo e com o mundo. É importante ressaltar
que a família, em seu papel constituidor do sujeito, foi fundamental para que eles
tivessem o suporte simbólico necessário para reelaborar suas experncias e enfrentar
a enfermidade sob um ponto de vista da transformação permitindo, inclusive, que uma
ONG pudesse ser utilizada como uma instância reparadora.
Palavras-chave: AIDS. Psicanálise. Transformação.
SANTOS, Karolina Reis dos. AIDS X Life: illness as a transformation possibility to the
individual. 2006. 129f. Dissertation (Master’s Degree in Psychology) – Faculty of
Science and Letters of Assis, Paulista State University, Assis, 2006.
ABSTRACT
Clinical Psychology, as a practical science, has been concerned with issues
that, when studied, can bring to the person better conditions of interaction with
themselves and their environment. This way, the issue AIDS has been studied by
researchers, including psychologists, that for its complexity and importance, raise up
several considerations and hypothesis about many aspects of this disease. Despite of
that, the most developed subjects about AIDS are related to its both psychological and
social aspects on a point of view of illness. In this work, we intended to write about AIDS
in a healthiness point of view, trying to understand how some people seem to change
their lives after knowing their disease to, this way, contribute with the advance of
knowledge related to AIDS and the human interactions. This change aspect was worked
in the sense of transformation, of giving another meaning to the experiences lived after
the diagnosis. We analyzed the psychological and social dynamics involved in this
process that could contribute to this change in person’s life. To do so, 5 seropositive
people working in Non Government Organization were interviewed. These interviews
were taped, transcribed and analyzed using the psychoanalysis and family theories. We
could see that, to face a disease that reminds you the death, like AIDS, made the
individuals start questioning themselves and their life, giving them another meaning to
some aspects of their lives, such as the question of the time available for them to make
their dream come true. Recognize their own death brought the castration to the real,
obligating the self to give another answer to it, emerging different ways of interaction
with the world and with themselves. It’s important to say the family, in its constitutional
roll of the self, was essential for the individuals to have the necessary symbolic support
to reelaborate their experiences and face the disease trough a transformation aspect
allowing, inclusively, that a Non Government Organization could be used as a reparation
instance.
Key-words: AIDS. Psychoanalysis. Transformation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................
11
1 A MORTE COMO UM DESPERTAR PARA A VIDA .............................................
19
1.1 ALGUMAS EPIDEMIAS AO LONGO DA HISTÓRIA ............................................................ 29
1.2
A REPRESENTÃO DA DOENÇA E DO SER DOENTE ....................................................
37
2 ASPECTOS PSICOSSOCIAIS: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS ..........................
42
3 O MÉTODO .............................................................................................................
51
4 ESTUDO DE CASO: APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS .........
63
4.1 ENTREVISTA REALIZADA COM SILVIA .......................................................................... 63
4.1.1 Resumo ............................................................................................................. 63
4.1.2 Análise ............................................................................................................... 69
4.2 ENTREVISTA REALIZADA COM LUCAS ......................................................................... 76
4.2.1 Resumo ............................................................................................................. 76
4.2.2 Análise ............................................................................................................... 80
4.3
ENTREVISTA REALIZADA COM EDUARDO .................................................................... 89
4.3.1 Resumo ............................................................................................................. 89
4.3.2 Análise ............................................................................................................... 93
4.4
ENTREVISTA REALIZADA COM CRISTINA ..................................................................... 101
4.4.1 Resumo ............................................................................................................. 101
4.4.2 Análise ............................................................................................................... 104
4.5 ENTREVISTA REALIZADA COM ROSELAINE .................................................................. 107
4.5.1 Resumo ............................................................................................................. 107
4.5.2 Análise ...............................................................................................................
114
5 DISCUSSÃO DAS ANÁLISES ...............................................................................
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................
132
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................
137
ANEXOS ....................................................................................................................
141
ANEXO A - ITENS NORTEADORES DAS ENTREVISTAS ...................................... 142
ANEXO B – TERMO DE CONSENTIMENTO UTILIZADO ........................................ 144
INTRODUÇÃO
A preocupação e interesse pelo tema da AIDS (Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida) nasceram em 2002, após a participação em um curso de
Psicologia Hospitalar que propiciou uma experiência única e marcante. A partir de
então, surgiram alguns questionamentos a respeito dos processos subjetivos existentes
nos pacientes doentes de AIDS internados no setor de Moléstias Infecciosas do
Hospital Universitário Regional do Norte do Paraná (HURNPr). Foi lá que pude observar
pessoas angustiadas com sua condição de doente de AIDS. A grande maioria era
portadora do vírus HIV
1
já há alguns anos e, naquele período, haviam desenvolvido a
doença e estavam sofrendo com o fato de terem a vida cheia de limitações por conta
dos inúmeros cuidados que devem ser seguidos após o diagnóstico.
Algo, porém, me chamou a atenção porque, anteriormente a essa
experiência no Hospital, tive contato com alguns soropositivos que pareciam estar bem
depois do conhecimento de seus diagnósticos. Era um pessoal envolvido nas atividades
de uma ONG/AIDS da qual já tinha conhecimento prévio e fui voluntária de um projeto
durante o ano de 2004. Projeto este que realizava atendimento psicológico para
portadores do HIV, mas minhas atividades se limitavam a contribuir na organização de
eventos na área da psicologia e na participação em reuniões para discussão de textos
científicos. Na verdade, algumas dessas pessoas demonstravam, ao menos
inicialmente e aparentemente, terem melhorado sua condição de vida, do ponto de vista
social.
Tal fato me fez questionar sobre a ocorrência de diferentes dinamismos:
para algumas pessoas, saber da AIDS é um sofrimento contínuo e para outras parece
que tal experiência passa a ser uma oportunidade de transformação para a vida. Ou
melhor dizendo: como uma doença que aponta para a morte pode refletir vida? Estou
falando das pessoas que, por conta de serem soropositivas, ganharam certa visibilidade
social e política dentro de ONGs, que são referência quando se fala em AIDS. Pessoas
1
Ser soropositivo não é a mesma coisa que ter AIDS. A pessoa soropositiva possui anticorpos contra o vírus HIV
mas não possui nenhum sintoma, apesar de transmitir a doença. a pessoa com AIDS, apresenta uma queda
crítica das células T, tipo CD4, que chegam abaixo de 200mm
3
de sangue, quando o normal em um adulto saudável
é de 800 a 1200 unidades. Essa baixa no sistema imunológico ocasiona doenças oportunistas fazendo surgir os
primeiros sintomas da AIDS: diarréia persistente, dores de cabeça, contrações abdominais, febre, falta de
coordenação, náuseas, vômitos, fadiga extrema, perda de peso, câncer (BRASIL, 2006a).
que antes eram apenas mais uma estatística e agora são cidadãos em evidência
lutando por seus direitos.
A Psicologia Clínica, como área de atuação, tem se preocupado com
temas que, ao serem pesquisados, possam trazer ao indivíduo melhores condições de
interação consigo mesmo e com o seu meio. Neste sentido, o tema “AIDS” tem sido
muito estudado por pesquisadores, dentre eles também psicólogos que, pela
complexidade e seriedade da doença, levantam imeras considerações e hipóteses
sobre as mais diversas facetas da enfermidade. Apesar disso, os assuntos mais
desenvolvidos por pesquisadores em relação à AIDS dizem respeito aos seus aspectos
psicológicos e sociais do ponto de vista da doença (SONTAG, 1989; PAIVA, 1992;
TRONCA, 2000).
Com este trabalho pretendo abordar este assunto do ponto de vista da
saúde, ou seja, investigar como algumas pessoas parecem transformar suas vidas após
saberem-se soropositivas para, a partir daí, poder contribuir com os avanços do
conhecimento em relação a essa epidemia e as interações humanas. Abordamos essa
questão da transformação no sentido de dar um novo significado para as experiências
vividas após o conhecimento do diagnóstico de soropositivo. Dessa forma, analisamos
as dinâmicas psicológica e social envolvidas nesse processo que puderam contribuir
para que os sujeitos entrevistados transformassem suas vidas.
Os primeiros casos de AIDS no Brasil surgiram em 1980. Inicialmente,
os mecanismos governamentais ficaram imobilizados diante da doença, que surgia
carregada pela concepção de doença de “marginais” ou de uma “minoria elitizada”.
Essa concepção se deu, principalmente, porque os primeiros casos constatados
correspondiam a pessoas homossexuais que viajavam freqüentemente para o exterior e
que, portanto, eram vistos como pessoas de posses e ao mesmo tempo marginais, por
apresentarem um comportamento sexual diverso do aceito socialmente. Além disso, a
saúde pública brasileira tinha muitos outros problemas que o Ministério da Saúde
avaliava serem mais urgentes que a própria epidemia que estava por vir.
Apenas com o surgimento de Organizações Não Governamentais, após
o descobrimento da doença, e como alternativa para a falta de ação governamental, é
que efetivamente começou a haver uma busca de recursos e representações políticas
que pudessem contribuir com a luta contra a AIDS. Desta forma, o Brasil respondeu à
doença tardiamente e a falta de informação gerou a discriminação e conceitos pré-
concebidos (DANIEL; PARKER, 1991), ainda presentes em nossa sociedade.
O resultado de tais distorções, no Brasil como igualmente em muitas
outras sociedades, foi quase sempre o crescimento dos preconceitos,
das discriminações e, às vezes, da violência. Fundadas em
entendimentos parciais ou incompreensões completas, as reações
diante da AIDS, o apenas de indivíduos, mas até mesmo de grupos
sociais e instituições, foram freqüentemente provocadas pelo medo,
muito mais do que por qualquer outra causa. (DANIEL; PARKER, 1991,
p. 15).
Segundo Mann, da Organização Mundial da Saúde (apud DANIEL;
PARKER, 1991), existem três fases da epidemia de AIDS: 1. a infecção pelo HIV; 2. a
epidemia da AIDS propriamente dita, com sua síndrome de doenças oportunistas e; 3. a
epidemia de reações sociais, culturais, econômicas e políticas frente à doença. Essa
terceira epidemia é que corresponde às reações de medo de muitos indivíduos e
grupos sociais, gerando o preconceito e o desrespeito aos direitos humanos. Ainda
segundo Mann, esta última epidemia era tão fundamental quanto à doença em si.
Concepções distorcidas ou desentendimentos sobre a natureza e o
impacto da AIDS levaram a sociedade a muitos atos de discriminação, aumentando o
medo das pessoas em relação à doença e, também, a culpa e medo nas pessoas
soropositivas. Mais do que uma tentativa de criar recursos políticos que pudessem
contribuir para a causa da AIDS, as ONGs surgem, então, como uma organização para
o combate da terceira epidemia, procurando informações precisas sobre a doença,
dando apoio aos soropositivos e pregando a solidariedade como a única resposta
possível frente à doença (DANIEL; PARKER, 1991). A atuação dessas ONGs no Brasil
foi e ainda é bastante significativa considerando-se o número de pessoas infectadas,
uma vez que as ações dessas instituições são preventivas e assistenciais.
No Brasil, desde a identificação do primeiro caso de AIDS até junho de
2005, já foram notificados cerca de 371 mil casos da doença, sendo 4628 notificações
somente no ano de 2005. A região do país mais afetada é a Sudeste, apesar do
número de casos estar em declínio, diferentemente das demais regiões onde os
números de infectados tende a aumentar, principalmente, nas regiões Norte e Centro-
Oeste. Na região do Paraná, onde se desenvolveu esta pesquisa, no ano de 2005,
foram 292 casos notificados, sendo 97 casos apenas na capital, Curitiba. A incidência
da doença no município estudado, no ano de 2005, foi de 29 casos, 16 homens e 13
mulheres, apresentando maior incidência na faixa etária dos 35 a 49 anos (BRASIL,
2006b).
Considerando o início da epidemia no Brasil, o descaso do governo à
época, o crescente medo e preconceito em relação à doença e sua representação
direta com a morte iminente, é que surgiu o interesse em dar voz a outro enfoque da
epidemia, como forma de contrapor esta visão desumana do estar doente onde a
pessoa é vista e tratada como a própria doença em si, um morto vivo. Sendo assim, ao
abordarmos a questão da AIDS como um dispositivo transformador, estamos
procurando discorrer sobre a qualidade de vida de uma pessoa soropositiva ou doente
de AIDS.
Estamos preocupados em compreender como algumas pessoas
acometidas por esta doença podem viver com AIDS e não apenas sobreviver a ela.
Assim, neste trabalho, falaremos da “aids” e da “AIDS” segundo o que propôs Richard
Parker e Herbert Daniel, ou seja, além da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
(AIDS), falaremos também, e principalmente, da aids que comporta um impacto social
profundo
2
, “uma síndrome muito mais dinâmica de articulações ideológicas, (...), uma
construção social mais obscura e mais distante do mundo empírico” (DANIEL;
PARKER, 1991, p. 48).
Sontag (1984) em seu livro “A Doença como Metáfora”, analisa as
representações sociais presentes em duas doenças: o câncer e a tuberculose. Ela
relata que foi com a tuberculose que a doença passou a ser vinculada “com a idéia de
que as pessoas se tornam mais conscientes na medida em que se confrontam com a
morte...” (SONTAG, 1984, p. 42). E que com o câncer voltou-se para a idéia de que a
2
Sabemos que esta diferença aids e AIDS caiu em desuso e que o Ministério da Saúde utiliza ‘aids’ em todos os
casos, mas permaneceremos com a antiga nomenclatura uma vez que acreditamos ser mais pertinente para o
presente trabalho. Assim, estaremos nos referindo a mecanismos diferentes: AIDS corresponde à infecção pelo vírus
HIV e que pode ocasionar doenças oportunistas. Já aids, diz respeito ao impacto social e psicológico da doença não
só para o próprio portador, mas para a sociedade em geral.
doença é “o que a vítima fez com seu mundo e consigo mesma” (SONTAG, 1984, p.
61).
Nesta perspectiva, Kovács afirma que o homem passa a ser culpado
pela sua doença, seja por seu modo de viver ou pelos excessos cometidos (KOVÁCS
apud BROMBERG, 1996). Assim como o câncer é permeado por esta visão, a aids
encontra-se no mesmo caminho, como castigo, punição. “A doença era encarada como
um castigo divino para os que levavam uma vida imoral, sendo merecido, portanto,
aquele sofrimento!” (KÜBLER-ROSS, 1988, p. 64).
Em seu livro “Aids e suas Metáforas”, Sontag (1989) discorre sobre a
representação social da aids em nosso meio. Esta é uma doença que veio com o
anúncio da morte iminente, já que a medicina não estava preparada para ela na época,
e ainda não temos sua cura. Freqüentemente, os jargões escolhidos pela equipe
médica para o tratamento da doença lembram expressões militares, como se
estivéssemos em uma guerra onde o vírus do HIV deve ser combatido, onde as
“defesas” devem ser restabelecidas. Tais utilizações da língua, fazem com que a
doença se transforme em inimiga atribuindo culpa ao seu portador, mesmo que muitas
vezes os vejamos como vítimas. Sontag esclarece que a idéia de vítima sugere
inocência. E inocência, pela lógica relacional, sugere culpa, simplesmente porque as
palavras se definem em opostos. Ela não se preocupa em explicar seu raciocínio, mas,
lembrando Lacan (1978), podemos dizer que as palavras se definem por seus opostos.
Portanto, assim como no câncer, também na aids a pessoa é responsabilizada pela sua
doença, ela deve ter feito algo para merecer estar nessa situação. Com o câncer, a
pessoa peca pela passividade, já com a aids peca pela atividade.
Uma doença transmitida, principalmente, através do sexo, obviamente,
afeta mais às pessoas ativas sexualmente. Com isso, fica fácil dirigir o julgamento
àqueles que a possuem como se fosse um castigo por aquele tipo de atividade.
“Contrair a doença através da prática sexual parece depender mais da vontade, e
portanto implica mais culpabilidade” (SONTAG, 1989, p. 32). Seu caráter de doença
relacionada à sexualidade e à incurabilidade, contribui para sua reputação de doença
tabu, aumentando o sofrimento dos que a possuem. Hoje em dia, tal sofrimento é ainda
mais alargado, já que a aids tornou-se uma doença do tempo, progressiva. As
alterações sofridas pelos seus doentes os vão minando aos poucos, tornando-os cada
vez mais fracos. Ao contrário da tuberculose, a aids não dá espaço para a
romantização, talvez, justamente, pela sua ligação tão forte com a idéia de morte e
pecado. “O fato de não o aceitarem não se deve apenas à sua conduta sexual, temem-
no por ser portador da morte” (KÜBLER-ROSS, 1988, p. 200).
Kübler-Ross (1988) em seu livro Aids: o desafio final, relata sua
experiência enquanto médica e ser humano no tratamento com pessoas soropositivas e
doentes de AIDS. Ela discorre sobre sua luta para levar adiante seus projetos de
assistência, além das cartas que recebeu com a opinião das pessoas ora positivas, ora
negativas, em relação ao seu trabalho. As pessoas doentes de AIDS não têm apenas
que passar os estágios agonizantes frente à iminência da morte, como ela descreve em
seu livro Sobre a Morte e o Morrer. Elas têm, ainda, que confrontar questões com as
quais o mundo jamais lidou antes dessa doença.
As pessoas com AIDS são obrigadas a lidar com problemas nunca
antes enfrentados diretamente, como a homossexualidade, a infidelidade e a
bissexualidade, entre outros. A aids tornou-se o grande problema sócio-político do
nosso tempo, uma linha divisória para grupos religiosos, um campo de batalhas na área
da medicina, além de ter se tornado solo fértil para a desumanidade do homem para
com o próprio homem. Muitos sucumbem ao isolamento, mas os que se juntam se
fortalecem (KÜBLER-ROSS, 1988).
Assim, a partir da observação de que algumas pessoas soropositivas
mudaram suas vidas após o conhecimento do seu diagnóstico, trabalhamos com
aqueles soropositivos que pareceram ter sido capazes de realizar a adaptação
necessária após o conhecimento da enfermidade. Dessa forma, buscamos
compreender os mecanismos psicossociais envolvidos nesta transformação, como eles
funcionaram nas condições de uma Organização Não Governamental.
Com o propósito de esclarecer questões como essas, foi necessário
investigar a transformação vivida pelos soropositivos que ingressaram em ONGs, já que
parece ter havido um ganho na vida dessas pessoas no sentido sócio-político e
psicológico após o conhecimento de sua enfermidade.
O objetivo deste trabalho, portanto, foi desenvolver um estudo
exploratório para compreender os dinamismos psicossociais da transformação sofrida
por essas pessoas, após o conhecimento do diagnóstico do HIV.
Objetivos Específicos:
• Conhecer de que forma pessoas soropositivas que atuam em
ONGs/AIDS transformaram suas vidas a partir de seus diagnósticos.
• Procurar identificar quais os elementos psicossociais e familiares
presentes que possam ter contribuído para esta transformação visível do ponto de vista
social.
• Procurar identificar quais os dinamismos psicossociais envolvidos
nesta transformação e como eles funcionaram nas condições de uma Organização Não
Governamental.
A partir destes objetivos e por entendermos ser necessário uma
contextualização do tema, no capítulo 1 procuramos, a partir de uma revisão
bibliográfica, compreender a representação da morte e a presença de epidemias ao
longo dos tempos na sociedade ocidental, assim como uma breve explanação em
relação à representação da doença e do doente. Compreender a historicidade da morte
se faz importante pelo fato de que frente a ela, muitas vezes, as pessoas tomam
atitudes surpreendentes, modificando o curso de suas vidas e contribuindo para uma
reelaboração das mesmas. Sendo a AIDS uma epidemia, discorrer sobre as diversas
doenças enfrentadas pela sociedade e suas representações torna-se relevante, além
da compreensão do ser doente.
No capítulo 2 abordamos alguns aspectos psicossociais relevantes para
a compreensão da transformação vivida pelas pessoas soropositivas. No capítulo 3
esclarecemos a metodologia usada. No capítulo 4 iniciamos a apresentação das
entrevistas realizadas e suas respectivas análises. No capítulo 5, apresentamos uma
discussão baseada nas análises dos casos estudados para, por fim, no capítulo 6,
apontarmos algumas considerações finais a respeito da experiência de transformação
vivida pelas pessoas entrevistadas. Segue-se a esse capítulo, as referências utilizadas
ao longo do trabalho, bem como, os anexos.
1 A MORTE COMO UM DESPERTAR PARA A VIDA
A morte é um fato natural e como tal é transclassista. Mas, é também
um fato social e cultural. Como fato social é estratificado; como fato
cultural está coberto de valores e significados. (MARTINS, 1983, p. 22).
Parece contraditório falar sobre a aids de um ponto de vista de
transformação e de vida abordando o tema da morte. Porém, desde o início da
epidemia e ainda hoje, a morte acompanha o imaginário social da aids tornando-a uma
doença muito temida.
Este temor da morte não é de hoje. Existe, no ser humano, uma
presença biológica, original, da morte, justamente pela prematuração do indivíduo ao
nascer. E é justamente esta condição que faz surgir o sujeito e seus processos
simbólicos, pois, é por conta da falta de aparatos biológicos no nascimento que é
possível a entrada de um outro na vida desse sujeito que, a partir das necessidades do
bebê, faça surgir um sentido e dê prosseguimento à vida (LACAN, 1999). Deste modo,
procurar entender sobre a morte seria a busca por uma compreensão da dinâmica
constitutiva do sujeito e das pessoas ao seu redor, “mesmo porque a concepção de
morte revela a concepção da vida” (MARTINS, 1983, p. 9).
Assim, podemos compreender de que forma a morte pode ter
influenciado a vida dos homens ao longo da história e, então, nos situarmos melhor em
relação ao entendimento da representação da aids. E muitas vezes, é diante da morte
que o ser humano passa a se conhecer melhor em vida, como já dizia Lacan, “não
existe significação alguma que se mantenha senão pela remessa a uma outra
significação” (LACAN, 1978, p. 228) isto é, a morte não tem sentido senão pela vida e
vice-versa. Portanto, com esta explanação, pretendemos falar sobre a história da morte
para que compreendamos o processo de transformação para a vida, pois, muitas vezes,
é a partir do reconhecimento da finitude que o sujeito se enche de forças para viver.
Na Idade Média, a morte era algo muito simples. As pessoas sabiam
que iam morrer e se preparavam para isso com rituais tais como Lancelot, que ferido e
perdido na floresta, percebe que vai morrer, se destitui de suas armas e se deita no
chão estendendo seus braços em cruz. Havia determinados atos do cerimonial
tradicional do moribundo. O primeiro ato era o lamento da vida. Lamentava-se acerca
das coisas e seres amados, de forma discreta. Após esse lamento, vinha o perdão dos
companheiros que rodeavam o leito. Era tempo, então, de esquecer o mundo e voltar-
se para Deus. A prece feita pelo moribundo tinha seus aspectos de culpa e remissão
dos pecados, e um último pedido: que Deus permitisse sua entrada no Paraíso. Era,
portanto, o padre que tinha a função de ouvir e absolver no leito de morte.
O quarto do moribundo era transformado em um espaço público. A
própria morte em si fazia parte de um processo organizado e coletivo. Organizado pelo
moribundo e tornado público pela comunidade. Inclusive as crianças eram bem vindas.
A morte era aceita. Cumpriam-se os ritos da morte de forma tranqüila, sem emoções
excessivas ou caráter dramático. A essa morte, Ariés (2003) dá o nome de morte
domada, em oposição à morte selvagem de hoje onde não ousamos sequer dizer seu
nome.
Apesar dessa familiaridade com a morte, o povo da Antigüidade
mantinha seus mortos à distância, fora dos muros das cidades, para que eles não
voltassem para aterrorizar o mundo dos vivos. Os mortos só passaram a ser enterrados
no interior das cidades e, mais precisamente, nas igrejas, quando se instituiu o culto
aos mártires, de origem africana.
Essa familiaridade com a morte só era possível porque havia uma idéia
comum de destinação. O homem dessa época era imediata e profundamente
socializado. A família não intervinha para atrasar a socialização da criança no que dizia
respeito à morte.
A familiaridade com a morte era uma forma de aceitação da ordem da
natureza (...). Com a morte, o homem se sujeitava a uma das grandes
leis da espécie e não cogitava em evitá-la, nem em exaltá-la.
Simplesmente a aceitava, apenas com a solenidade necessária para
marcar a imporncia das grandes etapas que cada vida devia transpor.
(ARIÉS, 2003, p.46-47).
Sendo assim, na Idade Média havia uma consciência acentuada da
morte, de que ela poderia chegar a qualquer momento. Por isso, os homens da época
tinham uma paixão forte pela vida.
Durante a segunda metade da Idade Média, do século XII ao século XV,
ocorreu uma aproximação entre 3 categorias de representações mentais sustentadas
pelos homens da época: as da morte, as do reconhecimento por parte de cada
indivíduo de sua própria história e as do apego apaixonado às coisas e seres possuídos
durante a vida. Desta forma, a morte era o lugar em que o homem melhor tomava
consciência de si mesmo. A morte passou a ser um fenômeno de conhecimento
pessoal porque ela veio a ser individualizada conforme o tempo foi passando. Essa
tomada de consciência diante da morte pode ser vista ainda hoje, como nos relatos de
Kübler-Ross (1988) em relação aos seus próprios pacientes que diziam que a aids
havia sido uma bênção na vida deles. Parece estranho afirmar tal coisa, mas diante do
que a aids poderia significar - a morte iminente, eles pareciam se voltar para a vida com
mais gosto.
A idéia de Juízo Final acontecendo ao lado do leito, no momento da
morte, e não mais depois de um descanso interrompido pela chegada do Cristo, fez
com que as atitudes do moribundo diante de sua morte valessem como julgamento se
essa pessoa iria para o Paraíso ou para o Inferno. Dessa forma, o homem da Idade
Média descobriu a morte de si mesmo. Inicialmente, havia uma resignação ao destino
coletivo da espécie (todos morrem) para depois haver um reconhecimento da própria
existência (morte de si mesmo).
Já no final do século XVIII, a morte era considerada no sentido erótico.
Antes, a morte ansiava o moribundo, agora ela o viola. Como o ato sexual, também a
morte é vista como uma transgressão que tira o homem do seu curso, “a morte é uma
ruptura” (ARIÉS, 2003, p. 65). Ela foi percebida com certa complacência romântica. O
moribundo, ao invés de expor seus sentimentos e fortunas no testamento, passou a
verbalizar suas emoções para a família e entes queridos, deixando apenas sua divisão
de bens para o testamento. Na Idade Média, os testamentos, além de possuírem as
divisões de fortuna, continham dizeres para a família e pedidos para a igreja que
rezassem certo número de missas em homenagem ao moribundo, que doassem
determinada quantia à caridade, etc. No século XVIII, tal postura foi modificada. Havia
uma maior proximidade e confiança em relação a seus familiares, ao contrário de
antigamente, onde os desejos e sentimentos do moribundo eram postos no testamento
como uma maneira de obrigá-los a cumprir seus anseios.
Concomitantemente a isso, não devemos esquecer as grandes
transformações que ocorreram na família, no século XVIII, acerca das novas relações
baseadas nos sentimentos, na afeição. As pessoas passaram a confiar mais na família
e direcionar seus sentimentos para ela, e assim, a morte deixa de ser apenas um
processo individual para tornar-se um processo compartilhado com os mais próximos,
como vemos hoje.
Nos séculos XVI e XVIII, operou-se em nossa cultura ocidental uma
aproximação de Eros e Tanatos. Os temas macabros ligados à morte tornaram-se
carregados de sentido erótico. O exemplo mais clássico e conhecido seria o amor de
Romeu e Julieta no túmulo dos Capuleto. Havia tamm imagens de santos, como o
São Bartolomeu, sendo esfolado vivo por carrascos atléticos e nus. A morte deixou de
ser temível mas foi suficientemente distanciada do cotidiano para, assim, não ser
familiar, nem aceita. Ainda que familiar e aceita na prática cotidiana, deixou de sê-la no
mundo imaginário.
A literatura do século XVIII aproximou dois temas da vida regular e
ordenada da sociedade, duas transgressões: o orgasmo e a morte. A morte podia ser
apenas representada na literatura e na arte. O mundo do imaginário sofria suas
alterações. Foi esse deslocamento da morte para o imaginário que criou a distância
existente entre a morte e a vida cotidiana, distância esta que antes não existia. Talvez
aqui possamos, mais uma vez, citar a aids como uma forma de proporcionar que a
representação da morte deixe de estar distante da vida cotidiana e passe a fazer parte
da rotina do indivíduo.
No final do século XVIII, ao experenciar fenômenos inusitados vindos
das sepulturas dos cemitérios e seus respectivos mortos, coveiros, médicos e pessoas
comuns começaram a se perguntar o que estava havendo. Como eles poderiam ouvir
barulhos vindos dos mortos e enterrados? Foram abertos muitos túmulos para verificar
esse fenômeno. Os mortos comiam as vestes que usavam e soltavam gases de odor
insuportável. Muitas superstições foram surgindo a partir daí. Seria coisa do demônio?
Instrumento da cólera de Deus? Feiticeiras? A pesquisa, ao longo dos anos, fez com
que a medicina sanitarista e a higiene se desenvolvessem. Os cemitérios passaram a
ser transferidos para fora das igrejas e das cidades.
As igrejas davam maior importância para a alma do que para o corpo e
somando-se a isso os fenômenos citados anteriormente não é difícil supor que os
cemitérios e seus mortos foram completamente abandonados. A situação dos
cemitérios no século XVIII era caótica. Porém, as mudanças no sentido de família, nas
concepções religiosas de morte e na imagem do corpo, fizeram com que a sociedade
da época (Europa e Estados Unidos) tratasse seus mortos com maior respeito e
reconhecimento. É assim que, no século XIX, os cemitérios passam a ser planejados
para serem locais de acolhimento, onde se pode visitar o ente querido. Nestes novos
cemitérios, surgem os primeiros jazigos de família, destinados a preservar os laços
afetivos entre gerações.
O luto, no século XIX, era sentido por muito tempo após a morte de
algum ente querido. Havia algumas atitudes que deviam ser respeitadas em relação ao
luto, e os costumes faziam com que essa parte de dor pela morte de alguém fosse
ostentada além da conta. Essa demonstração acentuada do sentimento de luto tinha
uma razão: a partir do século XIX, o homem passou a aceitar com maior dificuldade a
morte do outro, e essa passou a ser a morte temida.
Na segunda metade do século XIX, a morte passa a ser vergonhosa. Já
não se fala mais para o moribundo sua real condição. A verdade lhe é velada, pelo
menos de início. A mentira a respeito da enfermidade justifica-se com a idéia de poupar
o enfermo de assumir sua provação. Esse sentimento surge do que já comentamos: a
intolerância com a morte do outro e a nova confiança do moribundo na sua família.
Porém, ele é rapidamente substituído pelo sentimento de evitar não mais o moribundo,
mas à sociedade e aos familiares, a perturbação e emoções excessivamente fortes
causadas pela presença da morte em uma vida feliz; vida feliz porque, de agora em
diante, admite-se que a vida é feliz ou, ao menos, deve aparentar ser. Os ritos da morte
ainda não se modificaram, mas começou-se a esvaziá-los de sua carga dramática.
Entre 1930 e 1950, o cenário do processo da morte mudou
drasticamente. Não se morria mais em casa, e sim, no hospital. No hospital porque é lá
que o enfermo passa a receber os cuidados que não pode mais receber em casa.
Desta forma, o moribundo não é mais responsável pela sua morte, nem sua família.
Essa responsabilidade passa a ser do médico e da equipe hospitalar.
Assim, transformamos a doença e a morte em um problema técnico e,
para isso, empresas são criadas e técnicos são qualificados. Os equipamentos
tecnológicos são desenvolvidos para se prolongar a vida, porém, uma vida sem sentido
(MARTINS, 1983). Da casa para o hospital, da vivência para a sedação; e assim , o
médico toma as rédeas da morte. A morte aceitável era aquela acontecida no hospital,
longe dos olhares dos familiares. A preocupação voltou-se para os sobreviventes e não
para o ente enfermo. As crianças começaram a ser afastadas da morte pela família que
passou a se preocupar em não impressioná-las. O luto passou a ser velado, só era
permitido chorar quando ninguém estivesse olhando ou escutando. O luto tornou-se
solitário e envergonhado. Mesmo a reação dos médicos não poderia demonstrar
nenhum tipo de desespero para com a situação, deveria ser comedida.
Essa mudança em relação à morte não se deu por conta de um
descaso ou desprezo, é bem o contrário. A partir de então, a morte tornou-se um tabu
que, no século XX, substituiu o tabu do sexo como interdito. Ao contrário do tabu que
girava em torno do sexo, a interdição da morte ocorre repentinamente após um longo
período de vários séculos em que a morte era familiar, fazia parte de um ritual coletivo e
compartilhado.
Os rituais de morte na Europa e nos Estados Unidos em muito se
assemelhavam. Porém, na Guerra de Secessão, o cenário da morte nos Estados
Unidos começou a divergir da Europa. Parece que a atitude moderna diante da morte,
de interdição a fim de preservar a felicidade, nasceu nos Estados Unidos por volta do
início do século XX. Passou-se a embalsamar os corpos. Não que a Europa não tenha
passado por esse processo, mas há muito (século XVIII) ele havia sido abandonado.
Mas vale salientar que o embalsamento não tinha a função de tornar o corpo
imputrescível e sim de manter por mais tempo possível a aparência de vida. Um sentido
possível para isso seria certa recusa da morte. Assim, a morte vai se tornando objeto de
comércio. Vendem-na. E, para vendê-la, não se pode representá-la por algo comum e
familiar, algo que causa sofrimento. Para vendê-la é preciso que ela se torne atraente.
Muitas empresas especializadas no processo de morte começaram a surgir com a
promessa de ajudar os sobreviventes a esquecer o ocorrido o mais depressa possível e
voltar para a sua vida normal, feliz. Desta forma, o luto era encarado como algo
mórbido, que devia ser tratado.
Vemos nascer e se desenvolver, por uma série de pequenos toques, as
idéias que resultarão no interdito atual, fundado sobre as ruínas do
puritanismo, em uma cultura urbanizada na qual dominam a busca da
felicidade ligada à do lucro, e um crescimento econômico rápido.
(ARIÉS, 2003, p. 95).
A sociedade industrial capitalista passou de um completo descaso em
relação à morte, porque afinal mortos não consomem, para a comercialização da
mesma, eles não compram mas seus parentes sim. Alguns rituais foram mantidos,
como o funeral e a visita à casa do morto. Mas o caráter definitivo da ruptura é
apagado. O luto e a tristeza foram banidos mas, de qualquer forma, algo permaneceu;
como se o interdito não fosse completamente internalizado pela população. O médico e
a família tomam decisões acerca do enfermo, então, a morte é algo do qual ainda se
fala, não foi completamente apagada.
Entre o culto dos túmulos do século XIX e a expulsão da morte da vida
cotidiana no século XX, parece haver contradição e incompatibilidade. Assim, em
alguns países como a Inglaterra, se aceita a cremação sem reservas, apagando tudo o
que possa lembrar o morto, o interdito da morte é forte. Já na França, ambas as
atitudes, tanto o culto quanto o não falar da morte, coexistem.
A representação da morte mudou com o passar do tempo. No século
XII, a morte era encarada como um acerto de contas pessoal, sendo sua representação
mais freqüente o Juízo Final. Nos séculos XIV e XV, a morte passa a ser considerada
um fracasso individual. É o fracasso como um ser mortal, é o fim dos projetos e planos
para o futuro, neste período temos muitas representações macabras da morte. No
século XVIII, a morte é relacionada com o erotismo, sendo ambos representados por
uma ruptura. Já nos séculos XIX e XX, as imagens da morte vão desaparecendo, um
medo profundo vai surgindo e a morte passa a não ser mais falada, representada,
tornou-se incompreensível.
É interessante observar que esta evolução está ligada aos progressos
do sentimento familial e ao quase monopólio afetivo da família em
nosso mundo. Efetivamente, é preciso buscar a causa da mudança nas
relações entre o doente e a família (ARIÉS, 2003, p. 235).
Através das mudanças de relações do doente e sua família (como a
maior confiança), a morte passou a tomar outro significado, e outros comportamentos
foram sendo emitidos para lidar com esta nova situação. Um exemplo disso são os
testamentos, como já citados. Não havia mais a necessidade de escrever seus desejos
póstumos, eles passam a ser verbalizados para a família, e esta se encarrega de
executá-los. Com o estreitamento de relações, quando a família descobre que um ente
querido morrerá, ela não o avisa pensando assim o estar poupando. Há uma recusa de
que um ente amado possa morrer. Assim, essa confiança nascida dos séculos XVII e
XVIII e desenvolvida no século XIX, tornou-se, no século XX, uma verdadeira alienação.
Esse relacionamento da família com o moribundo pode ser explicado
por conta da ruptura que a morte desempenha nas relões familiares sendo, portanto,
um fenômeno ameaçador dos laços familiares pela perda da continuidade. Por isso,
uma série de eventos são resguardados como forma de procurar manter a coesão e
solidariedade familiar. Fazem parte desses eventos as sepulturas, os funerais, e a
religião (MARTINS, 1983).
Outra razão para que a morte tenha começado a ser escamoteada está
no avanço da medicina. Na consciência da pessoa enferma, o médico substituiu a
morte pela doença. A medicina passou a ser a resposta para todo o mal. Neste quadro,
doenças como a AIDS e o Câncer tomam características hediondas e assustadoras das
antigas representações da morte. Passam a existir duas mortes mal vistas: aquela
morte carregada de emoção, e a morte onde o doente passa a não se comunicar.
Ambas escancaram o que não deve ser dito. A morte próxima. Junto a essa
representação, passa-se a questionar a capacidade do doente em lutar pela vida.
Uma das atitudes que demonstra bem nossa relação com a morte, ou
melhor dizendo, nossa falta de relação com a morte, é a segregação:
Existe ai algo de importante: a segregação dos mortos e dos
moribundos caminha junto com a dos velhos, das crianças indóceis (ou
outras), dos desviantes, dos imigrantes, dos delinqüentes, ...
(MANNONI, 1995, p. 60).
Os grupos ditos diferentes, fora dos padrões, os famosos grupos
marginalizados, são segregados pela sociedade na tentativa de mandar para longe o
que eles deixam transparecer: a morte, a doença, o desconhecido. É uma forma de
controle para a proteção da população em geral, como quando se diz que se você tem
uma maçã podre em uma cesta, todas ficarão, a não ser que se jogue fora aquela maçã
ruim.
O Brasil em muito se assemelha aos Estados Unidos e Europa em
relação aos comportamentos frente à morte, embora não haja uma vasta produção
brasileira sobre o assunto. Tamm existem os túmulos de família, os velórios, lutos e
testamentos. Morrer sem deixar um testamento não era nada bom. Nestes casos o
registro era feito pelo cura. Morria-se muito jovem, antes mesmo de atingir os 21 anos.
A taxa de natalidade era alta mas a de mortalidade tamm, poucas eram as crianças
que passavam do primeiro ano de vida. Desta forma, as pessoas já estavam
acostumadas a ter moribundos espalhados pelas ruas e era muito comum a passagem
dos velórios pela cidade indo em direção às igrejas e aos cemitérios. Os tipos de cortejo
e os ritos após a morte eram indicados com freqüência.
Antes da existência dos primeiros cemitérios públicos, em meados do
século XIX, os defuntos eram enterrados dentro ou ao lado das igrejas, em conventos,
em capelas particulares, dentro das fazendas. As diferenças sociais eram marcantes no
momento da morte. A morte do homem livre não era a mesma de um escravo, nem em
intensidade, nem em qualidade. Por essas condições sociais é que as expectativas de
vida da população não eram as mesmas para todos. Outro fator que contribuía muito
para as mortes constantes eram as epidemias, principalmente, a de Varíola e de
Sarampo. Mas como essas duas doenças atacavam mais as crianças e estas não eram
muito levadas em conta nesta época (já que muitas não vingavam, parece ter-se
tornado natural perdê-las), tornaram-se epidemias de pouca importância nacional,
diferentemente do Cólera e da Febre Amarela que vitimou muitos adultos.
Durante o século XIX no Brasil, havia um culto aos mortos através dos
necrológios. Esses necrológios eram elogios históricos de cadáveres, falavam da vida
do morto e de sua pessoa como uma lição de vida, como uma maneira de imortalizar o
defunto. O órgão responsável por isso era o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Grandes nomes da nossa literatura elaboraram necrológios, como exemplo temos
Joaquim Manuel de Macedo. Todos os necrológios tinham a pretensão de que esses
‘homens notáveis’ que morreram passassem do domínio da morte para o da história
(MARTINS, 1983). O que é interessante notar é que esses necrológios falavam mais da
vida e de seus valores do que da morte propriamente dita. O que já nos coloca na
morte dos dias atuais onde se fala pouco dela, o que mais se diz é como o defunto
viveu, como uma forma de eternizá-lo.
Assim também são os anúncios fúnebres que saíam nos jornais e,
ainda hoje, os vemos. É o anúncio que comunica à sociedade a perda de um ente
querido. Porém, apesar da família se preocupar em comunicar a morte de seu parente,
tais avisos eram padronizados, preparados pelo próprio jornal, fazendo parte mesmo de
um clichê onde a única coisa mutável era o nome do morto, ou seja, era algo
impessoal. A família procura meios de se relacionar com a morte mas, de certa forma,
evitando entrar em contato com ela.
Dessa forma, não só o cuidado do morto passou da família para os
hospitais e, consequentemente, o médico, como também os anúncios fúnebres
poderiam ser feitos por uma pessoa anônima de um jornal. Inclusive, na maioria das
vezes, esses anúncios eram publicados junto com a venda de mercadorias que nada
tinham que ver com os óbitos publicados. Não havia um lugar próprio. No final das
contas, estes anúncios apenas desobrigam os familiares a contar a cada uma das
pessoas que conhece o falecimento de um parente. Parece que a morte continua sendo
um tabu.
1.1
ALGUMAS EPIDEMIAS AO LONGO DA HISTÓRIA
Uma das epidemias mais sérias na história da humanidade foi a Peste
Negra que avassalou a Europa, aparecendo e desaparecendo, deixando a sociedade
da época em estado de alerta. Muitas foram as ocorrências, na Antigüidade, desta
doença, porém, sua época mais marcante ocorreu em seu retorno no século XIV, isso
porque a populão já tinha tido amostras da força com que a peste consumia as
pessoas já no século VIII.
Normalmente, as pessoas eram acometidas pela Peste em plena
juventude e capacidades físicas e psicológicas. De repente, caíam de cama com a pele
enegrecida; por isso o nome de Peste Negra. Desenvolviam-se gânglios dolorosos na
virilha e axilas que se abriam espontaneamente, sentia-se fortes sensações de calor na
cabeça, os olhos ficavam vermelhos e inchados, a faringe e a língua ficavam a vivo, a
respiração era irregular e fétida, seguidos de espirros e rouquidão, a doença descia
para o pulmão e o coração ocorrendo evacuações de bílis com indisposições terríveis.
Ou a pessoa morria em 6 a 8 dias por conta deste fogo interior que se sentia, ainda
sem perder todas as suas forças, ou a doença descia até o intestino causando ai
grandes ulcerações e conseqüentes evacuações líquidas, tornando a pessoa por
demais fraca para lutar contra isso.
O sentimento que acompanhou a população da época era o de viver o
mais intensamente possível, sem observar as conseqüências, pois, podia-se não estar
vivo para responsabilizar-se. As pessoas morriam jovens e em plena saúde,
abandonando seus bens que podiam ser herdados por qualquer um que resolvesse se
aboletar na casa dos recém mortos. Foi uma época de prazer imediato, até mesmo em
termos criminais porque não se acreditava que se viveria o suficiente para pagar por
seus crimes. Ocorreu uma verdadeira desordem moral. Todos os antigos costumes de
sepultamento foram abolidos, enterrava-se como se podia. Eram tantas mortes ao redor
que as pessoas, simplesmente, jogavam seus mortos em uma pilha e ateavam fogo.
Faltavam-lhes recursos.
... a instantaneidade da doença, a procura de pretensos culpados, a
dissolução dos costumes, a abnegação (mortal para eles próprios) dos
médicos e dos parentes dos doentes que se opunham ao abandono dos
moribundos e dos mortos, as preces aos deuses e sua ineficácia, as
conseqüências políticas e econômicas funestas para a cidade, são
outros tantos aspectos que conhecerão as comunidades humanas de
cada vez que um drama semelhante se abater sobre elas. (SOURNIA;
RUFFIE, 1984, p. 78).
Nessa ânsia de encontrar culpados para tamanha epidemia, via-se na
Peste um castigo de Deus pelos pecados cometidos, já que na Bíblia havia a menção
do nome desta doença e, portanto, quando ela ocorreu só podia ser por obra de Deus.
Todos os povos que já carregavam em si o peso da discriminação foram alvos de
exclusão ainda maior, isso quando não eram assassinados. Foi assim com os judeus.
Muitos foram expulsos da cidade onde moravam, e, às vezes, famílias inteiras eram
massacradas. Foi uma fase de forte formação de guetos. O medo do desconhecido e a
angústia pela morte marcaram fortemente os comportamentos da época.
Não é difícil compreender esta reação, as pessoas viviam uma
verdadeira catástrofe, eram muitas pessoas mortas, pessoas amadas, muito próximas,
além dos desconhecidos. A quantidade de óbitos era chocante. Havia corpos
espalhados nas ruas. Mães, crianças, jovens, ninguém era poupado. Mesmo sendo a
morte mais familiar na Idade Média que no século XX, ainda assim, as proporções do
desastre culminavam no pavor. Nada mais natural que imaginar que é a ira de Deus
contra os homens, implorar por piedade, fazer preces, votos, procissões, e esperar que
esses atos contribuam para a redenção do povo.
Frente a essa realidade, a paixão de viver era tanta que desencadeou
egoísmos arrebatados. Pais não visitavam mais seus filhos e vice-versa.
Depois desta epidemia mortífera, o Ocidente ainda não estava
completamente livre da Peste, ela não iria embora antes de quatro séculos de
existência. Sempre com o mesmo padrão de reação que parece acompanhar as
grandes epidemias, ou pelo menos, aquelas que não conhecemos como combater. As
autoridades começarão por negar a doença e depois lhe darão um nome mais
tranqüilizador. A população não mais freqüentará os lugares onde se pensa que
existem pessoas suspeitas, e não mais se encontrarão com tais pessoas. Na verdade,
os ditos suspeitos serão isolados e concentrados todos em um mesmo lugar, de onde
será proibido que eles saiam. Todas as práticas mais aberrantes possíveis serão
realizadas com essas pessoas, e até mesmo aqueles que ainda nem estão doentes
mas podem vir a estar, serão discriminados ou pegos de surpresa e enviados aos
lugares destinados aos suspeitos. E será assim até que a Peste deixe definitivamente o
globo terrestre (SOURNIA; RUFFIE, 1984).
Dentre as doenças da Idade Média, talvez a menos assustadora tenha
sido a Tuberculose. Esta era uma doença discreta, secundária, muitas vezes
desconhecida, e matava de forma muito mais lenta do que a Peste, por exemplo.
Porém, nem por isso deixa de ser uma doença digna de nota, já que sua existência
influenciou, em plena era romântica, maravilhosas obras literárias e artísticas. Era uma
doença que tamm aparecia em pessoas jovens que acabavam de desabrochar para
a vida, deixando-os em um estado de languidez até que um dia, após meses ou até
anos, a pessoa sucumbia à doença. Na mesma época em que o jovem estava a
vivenciar seus primeiros amores, tamm era a época em que ele morreria.
Em sua primeira fase, a Tuberculose atacava as pessoas mais jovens,
principalmente mulheres, apesar de não poupar os homens também. Em seguida, a
mortalidade acentua-se. Passa-se a morrer mais homens, e a idade com que a doença
acomete o sujeito diminui. Foi uma doença considerável em todo o século XIX,
justamente pelo seu caminhar clínico prolongado. Causou muito menos terror que o
Cólera nos anos de 1830 e 1880, mas, com certeza, vitimou muito mais pessoas.
Foi na era da Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, nos séculos
XVIII e XIX, que a Tuberculose começa a ocupar seu espaço. Nesse período, tornaram-
se freqüentes os movimentos migratórios para cidades maiores, construídas em redor
dos complexos industriais. Estas mudanças demográficas originaram o estreitamento
dos laços familiares e as pequenas famílias, num cenário similar ao que existe hoje em
dia. Porém, com a vinda das famílias para a cidade, a qualidade de vida das pessoas
se modificou. O dia-a-dia passou a ter um ritmo mais acelerado (ENCICLOPÉDIA,
2006). No entanto, a visão de que a Tuberculose é uma doença da era industrial
facilmente vencida pelas vacinas e terapêuticas desenvolvidas não serve para todos os
países, a não ser aqueles países mais desenvolvidos.
Diferentemente dos países de Primeiro Mundo, no Terceiro Mundo, a
Tuberculose, ainda hoje, é largamente espalhada. Porém, suas vítimas não são apenas
os ricos ou poetas, mas toda a população que acompanhou a era industrial,
principalmente aquelas que saíram dos campos e foram para as cidades em busca de
melhoria na qualidade de vida. É difícil negar as relações que ligam a industrialização,
pauperismo, concentrão urbana à Tuberculose (SOURNIA; RUFFIE, 1984).
Uma vez passado o período inicial da doença, com o seu
desenvolvimento relativamente massivo, a doença permanece crônica em nível
endêmico. Nunca se verá explosões catastróficas da Tuberculose, assim como vimos
com a Peste. Com o isolamento em sanatórios das pessoas contaminadas e das
terapêuticas existentes, a diminuição do contágio foi regredindo aceleradamente por
várias razões: melhoria nas condições de habitação, alimentação e higiene, a
vacinação obrigatória pelo BCG (adotada por todos os países), a supressão da
Tuberculose Bovina graças a regulamentações veterinárias. Mas todas essas medidas
só foram possíveis devido a uma certa ordem social e política que garantiu a sua
aplicação (SOURNIA; RUFFIE, 1984).
Ainda durante a Idade Média, e ao contrário das reações à
Tuberculose, poucos assuntos nos deixam atônitos como a reação à Lepra (atualmente
chamada de Hanseníase), seus contra-sensos e interpretações. A medicina da época
não tinha as mesmas exigências clínicas que os médicos atualmente, as atitudes que
hoje consideramos cruéis eram normalmente aplicadas naquela época. Para se ter uma
idéia do quadro geral, uma pessoa, quando suspeita de estar com Hanseníase,
passava por um julgamento tradicional, com juiz e tudo. Havia muitos processos por
Hanseníase. Esses exames tinham interpretações calcadas na subjetividade. Outro fato
curioso diz respeito à castração. Pessoas com Hanseníase eram castradas com uma
justificação terapêutica. Dizia-se que elas eram muito quentes e melancólicas e que sua
castração tornaria seus temperamentos mais comedidos, além de contribuir para a
cessação do desejo carnal que acometia ainda mais avassaladoramente essas pessoas
e de impedir que houvesse descendentes.
Uma vez comprovada a Hanseníase através de um tribunal e da igreja,
a pessoa era excluída de quaisquer atividades sociais e mandada para uma leprosaria.
Ela era vista como a própria encarnação do mal e não merecia nenhum tipo de
consideração. A principal falha da qual essas pessoas eram consideradas responsáveis
era a luxúria: Deus os estava castigando pelos seus vícios e eles deveriam ser
confinados para que nenhum cristão honesto fosse tentado por eles. E como se achava
que esta doença podia ser transmitida pelo ato sexual, manteve-se a confusão da
Hanseníase com as doenças venéreas até o século XVIII.
Na nossa procura de justificações para as condições de vida impostas
aos leprosos, não encontramos mais nada para além do medo. Ao
longo da sua história, nunca a humanidade se tornou culpada de
semelhante crueldade em relação a uma comunidade tão numerosa,
durante tanto tempo e com tão poucas razões. (SOURNIA; RUFFIE,
1984, p. 138).
Mais uma vez, o medo torna-se o responsável por atrocidades
cometidas contra aqueles que nada podem fazer para se defender de uma sociedade
inteira que os acusa. Pode-se dizer que as vítimas da Hanseníase nem de perto
causaram tantos prejuízos para o efetivo da população da época se comparada à
influência do seu lugar no folclore. Parece que nosso medo da morte, principalmente
quando esta vem acompanhada de uma doença associada a uma marca
estigmatizante, está condicionando nossas atitudes para com as pessoas que portam
esta enfermidade, atitudes estas que nem sempre respeitam a condição de
humanidade de cada um. A doença é sempre atribuída a um outro, estranho e distante
de nós mesmos. Foi assim com a Hanseníase. Acusavam-se haitianos e chineses. E
para evitar que esses estranhos contaminassem o restante da população que ainda não
estava doente, eles foram isolados em hospitais, asilos, seminários, e até mesmo, em
ilhas distantes onde não havia leis, onde imperava a desumanidade.
Podemos lembrar o caso da Sífilis, descoberta no século XV, que
tamm fez muitas vítimas e onde também acusavam-se outros de terem-na trazido
para o ocidente. Era o “mal de Nápoles” para os franceses, e o “mal francês” para os
napolitanos; mas, na verdade, acredita-se que ela tenha sido trazida da América pelos
marujos de Cristóvão Colombo. Sua transmissão entre soldados de vários exércitos
durante a Segunda Guerra Mundial, cursando com lesões de pele, fez com que
surgissem os diversos nomes como “mal espanhol”, “mal italiano”, “mal polonês”.
Só de se pronunciar a palavra ‘Lepra’ desencadeava-se uma série de
pensamentos aterrorizantes: a modificação do corpo com sua conseqüente
deterioração, os barcos cheios de leprosos indo em direção às ilhas que os abrigavam,
os julgamentos. Mas o efeito mágico da Hanseníase não é exclusividade dela, foi assim
com o Câncer e é assim hoje em relação ao imaginário social da aids.
A AIDS e a Hanseníase possuem representações coletivas correlatas.
Assim como poderíamos dizer que a aids aproxima-se da Peste pelas formações de
guetos, busca de culpados, castigo de Deus, angústia pela morte, medo do
desconhecido.
Essas três doenças foram bastante sérias não somente em termos de
contaminação, mas, tamm, em termos de desumanidade. No início da epidemia da
AIDS os gays eram perseguidos e crucificados como a própria morte sobre a Terra. Os
norte-americanos culpavam os negros africanos ou aos haitianos. Os soviéticos,
alemães e franceses culpavam os ianques pela introdução do vírus HIV em seus
países, todos embasados em teorias epidemiológicas no mínimo racistas (TRONCA,
2000).
Um aspecto que chama particularmente a atenção nas narrativas sobre
a doença, quer se trate lepra, quer da aids ou das grandes moléstias
que assinalaram um lugar na história é o de sua “geografia”. É mais ou
menos claro que necessitamos localizar a origem de uma doença
sempre distante de nós mesmos, num espo de fantasia em que
possamos isolar nosso medo, que nos dê a segurança de que não
cometemos faltas, fomos invadidos do exterior, fomos poluídos por
algum agente estrangeiro. (TRONCA, 2000, p. 79).
A própria palavra contágio é o símbolo da era cristã no que diz respeito
à preocupação com o pecado e a redenção. A palavra infecção significa manchar,
descolorir, no sentido de tornar a coisa imprópria. De modo semelhante, a palavra
contágio significa poluição. Essa crença em um contágio mágico, dado pela ira de Deus
aos pecados cometidos, da qual a Hanseníase era alvo, corrobora com a questão dos
isolamentos em hospícios, prisões e asilos como forma de prevenir que a doença
infecte outras pessoas além das que já estão contaminadas. Como doença carregada
de valor estigmatizante, o culto à completa exclusão dos doentes foi muito disseminado,
assim como ainda hoje, em pleno século XXI, permanece esta idéia (muitas pessoas
defendem/defenderam a idéia de isolamento dos doentes de AIDS).
A falta de conhecimento do contágio da Hanseníase deixou espaço
para muitos pensamentos supersticiosos e discriminatórios. Como já dissemos, uma
causa atribuída à Hanseníase era divina, remonta aos tempos bíblicos; a outra causa,
igualmente difundida, era de que só se pegava Hanseníase devido aos
comportamentos promíscuos ou vícios que acometiam algumas camadas
marginalizadas (haitianos e chineses). Ou seja, a noção de grupo de risco que muito se
desenvolveu em relação à AIDS (e foi substituída pelo termo ‘vulnerabilidade’) já estava
presente nesta época, somada à relação da doença com a sexualidade imoral, “as
representações e imagens em torno da sexualidade e suas relações com a doença
percorrem esses últimos 200 anos, exprimindo-se por meio de alegorias cujos
contornos eram nítidos no século XIX”. (TRONCA, 2000, p. 61). A sexualidade era vista
como um mal que acomete o sujeito que, envolvido por ela, comete atos lascivos e
contamina-se como forma de punição por seus excessos. Realmente é impressionante
a semelhança de tais argumentos com as representações que a aids ganhou em nosso
tempo. Em ambas, as características médicas foram sobrepujadas pelas ‘qualidades’
morais que remetiam à sexualidade. No caso da Hanseníase aqui no Brasil, os grupos
de risco eram os pobres, sitiantes que vinham das regiões de Minas Gerais, Goiás,
Nordeste ou interior de São Paulo. Também aqui, os leprosos eram levados para asilos-
colônias, transportados em trens que exibiam as palavras ‘moléstias contagiosas’ e
rodavam por ferrovias secundárias (TRONCA, 2000).
Com esta breve passagem por algumas das doenças mais
ameaçadoras da história da humanidade, já foi possível perceber o quanto a questão
da discriminação estava presente em maior ou menor grau em todas elas. O sentimento
de pecado e punição tamm, seguidos da necessidade de se excluir os doentes ou
possíveis suspeitos do restante da população. Tais características são ainda agravadas
quando a enfermidade relaciona-se de algum modo à sexualidade, como foi o caso da
Hanseníase, da Sífilis, e é o caso da AIDS hoje. Comparando a AIDS com outras
grandes epidemias da humanidade, podemos dizer que, no caso desta doença, a
extraordinária informação do público é um dado bastante interessante (HUBERT, 1987).
Assim que a AIDS surgiu, pesquisas foram sendo realizadas para se
saber quais as maneiras de contágio. Mas parece que a informação pura e simples não
foi suficiente para impedir que excessos fossem cometidos com pessoas doentes de
AIDS e soropositivas. A informação pela informação parece não ser útil sem a análise
crítica da pessoa que a porta. Ou melhor, “o fato de atualmente se viver mais e melhor
com AIDS praticamente nada altera, do ponto de vista da vivência inconsciente do
paciente, em relação ao que mobiliza a iia de morte”. (LABAKI, 2001, p. 29). Mesmo
hoje, com todo avanço da medicina no que diz respeito aos tratamentos possíveis para
combater os efeitos da AIDS, sua representação enquanto doença mortal ainda se faz
presente, mostrando ser uma questão mais subjetiva que dependente exclusivamente
do real.
1.2
A REPRESENTÃO DA DOENÇA E DO SER DOENTE
A interpretação coletiva da doença efetua-se sempre em termos que
envolvem a sociedade, suas regras e as visões que dela temos: a
concepção que temos de doença manifesta nossa relação com a ordem
social (ADAM; HERZLICH, 2001, p. 76).
Falar sobre a representação da doença e do ser doente nos remete a
pensar no imaginário social e nos simbolismos individuais existentes nas doenças e no
fato de ser doente. A compreensão desse imaginário e dos simbolismos que o
envolvem contribuem para pensarmos na doença como um fenômeno que nos ajuda a
perceber como o indivíduo se relaciona com o seu mundo.
A realidade social é construída através de alguns significados e
comportamentos que são aprovados ou não pela sociedade. O indivíduo constrói e
internaliza a realidade que o cerca durante seu processo de socialização, que acontece
primeiramente na família, mas também em outros grupos aos quais pertencemos ao
longo de nossas vidas. Esse processo de internalização de experiências vividas
acontece ao longo de nossa existência e depende, além do contato com outras
pessoas, de acontecimentos que permeiam nosso cotidiano. Dentre as várias
experiências, existem algumas de especial significado, como a doença. Esta
experiência torna-se particularmente importante porque é a realidade individual e social
mais próxima dos dois eventos mais importantes da vida, o nascimento e a morte.
Desta forma, ela recebe um significado simbólico todo especial. Ela torna-se a ameaça
de morte onde aqueles que dela escapam sentem-se revivendo.
As idéias e práticas de saúde e doença estão ligadas ao contexto
cultural no qual se inserem e, portanto, não são fenômenos fragmentados. Cada cultura
tem seu conjunto de símbolos que fornece um modelo e uma realidade. É de acordo
com este esquema que os acontecimentos sociais são compreendidos, dentre eles, a
doença. Nenhum significado é dado a priori, mas depende da interação social
específica de cada agrupamento humano. Nesse sentido, a doença deve ser entendida
como um processo contido num contexto sociocultural determinado, caracterizada como
‘doença’ na medida em que provoca alterações na vida do doente e em sua identidade
social.
No caso da AIDS, muitas são as representações que a definem. No
âmbito geral, apesar dos avanços médicos, sua ligação com a morte é constante, bem
como sua ligação com o marginal, porque, apesar da quebra da noção de grupo de
risco, muitas pessoas ainda classificam os soropositivos como estando dentro de
alguns grupos de comportamentos tidos como marginais (LANGDON, 2003).
Compreendendo a doença dentro desta noção de cultura como um
sistema simbólico, a doença é conceituada como um processo e não uma categoria
única e imutável. Sua significação emerge desse processo através da percepção e
ação em relação à enfermidade. A doença deixa de ser apenas um conjunto de
sintomas físicos para ser um processo subjetivo no qual a experiência corporal é
permeada através da cultura. Assim, o sistema de símbolos expressos na cultura e no
indivíduo permeiam a capacidade deste de interpretar sua experiência. Então, não
os processos biológicos são importantes no decorrer de uma doença mas os aspectos
culturais, sociais e individuais tamm o são, mesmo porque, a maneira como o corpo
biológico será tratado dependerá da cultura na qual o indivíduo está inserido (DUARTE,
2003).
Ao diagnosticar um paciente, o médico não está apenas fornecendo um
parecer sobre o estado biológico da pessoa, mas tamm e principalmente, está
determinando uma nova identidade para esta pessoa, uma identidade que irá repercutir
em sua vida (ADAM; HERZLICH, 2001). Algumas vezes, as pessoas que estão doentes
possuem discursos voltados para a humildade material e riqueza espiritual, destino,
resignação e coragem. Nesses discursos, essas categorias aparecem como
identificatórias do indivíduo dotando-o de um status social diferenciado. Aquele que se
define sofredor conquista uma posição de destaque diante da sociedade, fazendo
desaparecer, ainda que parcialmente, o caráter eminente de sofrimento ao qual a
doença está associada.
Ao mesmo tempo em que a enfermidade representa uma experiência
negativa , ela oferece uma oportunidade para a construção/reconstrução de uma
identidade social. Dada a condição de doente, a pessoa enferma inicia uma busca
pelas causas da doença numa tentativa de entender o porquê da enfermidade naquele
momento de sua vida e justo com ela. Na busca de respostas o que se deseja é um
sentido para aquela experiência. A busca pelo significado envolve invariavelmente
vários aspectos da vida pessoal do indivíduo (RODRIGUES; CAROSO, 1998).
Sendo assim, a gravidade da doença torna-se elemento fundamental de
análise, já que esta característica irá mediar o plano subjetivo do sofrimento e o plano
da experiência vivenciada socialmente. A doença pode ser pensada como algo que
tinha que acontecer ou, então, como uma lição de vida. Quando alguém relata que
passou ou está passando pela doença de cabeça erguida ela quer dizer que está
vencendo uma enfermidade que, inicialmente, tem um caráter exclusivamente negativo;
é uma forma de superação da doença (BORGES, 2001).
Na história das epidemias, pouco a pouco as doenças foram se
transformando de enfermidades coletivas em enfermidades mais individuais. Sob este
aspecto, a Tuberculose é o elo entre a coletividade e a individualidade de uma doença.
Com ela, era para o indivíduo que as atenções se concentravam porque a doença não
representava um perigo coletivo para os vilarejos, apesar de suas vítimas. Mesmo
porque, esta doença tinha um processo muito mais lento que as grandes epidemias, por
isso, foi sendo considerada uma doença crônica. O próprio avanço da medicina permitiu
que a pessoa sobrevivesse muito mais do que antes, mesmo sendo portadora.
Já com o advento da AIDS as diferenças entre as doenças do passado
(coletivas) e do presente (individuais) passam a ser menores. Com a AIDS não houve
apenas uma infecção individual, e sim uma mobilização social mundial. Uma das
características marcantes dessa doença é justamente o apoio aos doentes realizado
por alguns grupos. Através de associações, como as ONGs, a posição do doente e da
sociedade pode ser ouvida e adquire um peso enorme, contribuindo para o
desenvolvimento de políticas de saúde e direitos humanos. “A doença torna-se então
um assunto de grupos e não somente de indivíduos: ela se manifesta no espaço público
e não somente no espaço privado da relão médico-paciente”. (ADAM; HERZLICH,
2001, p. 28).
Portanto, podemos perceber que a doença não está limitada a uma
característica física, ela se dá em um plano social muito mais amplo. O apoio de várias
pessoas que se unem em torno de um ideal comum contribui para que o indivíduo
enfrente este momento de doença com maior controle sobre sua vida, tornando-se
protagonista dela, lutando por seus direitos e consequentemente, pelos direitos de
todos que passam pela mesma situação. Esta capacidade de enfrentamento está
relacionada às experiências que a pessoa vivenciou ao longo de sua vida que
possibilitaram certo grau de autonomia ligada a posição social do indivíduo (ADAM;
HERZLICH, 2001).
Ainda segundo os autores citados, existem pesquisas desenvolvidas na
década de 70 que demonstraram a importância do apoio social para a saúde do
indivíduo. Pessoas solteiras, viúvas ou divorciadas têm mais problemas de saúde do
que os sujeitos casados. Tais pesquisas apontam para a importância da rede social na
qual o sujeito está inserido. A medida deste apoio social é complexa (sua qualidade,
sua fonte, seus tipos) mas gostaríamos de salientar que, dentro desta pesquisa, o
enfoque estudado baseou-se no indivíduo e sua família, embora não neguemos as
demais relações sociais nas quais ele se insere.
O doente viverá a doença como ‘destrutiva’ se, a partir da interrupção
de suas atividades, perda de laços com os outros e perda de seu papel, ele não
conseguir reconstruir uma nova identidade para esta situação, identidade esta que
dependerá de sua integração social. Ao contrário, a doença será vivida como
‘libertadora’ se ela representar uma possibilidade de fuga de um papel social repressor
da individualidade. É neste sentido que a doença pode significar uma experiência que
exprime o ‘verdadeiro sentido da vida’, que não se encontra em sua dimensão social.
Ela fornece uma revelação, um reencontro de si mesmo. Quando é assim, a própria luta
contra a doença possibilita um novo espaço para o sujeito no social que contribui para a
reconstrução de sua identidade. Esta luta torna-se o tema central da vida da pessoa,
como uma profissão, e é a base de uma integração social persistente.
O conjunto dessas reestruturações – bem sucedidas ou não –
referentes aos papéis sociais de uma pessoa tem também uma
dimensão identitária. A pessoa é golpeada em seu autoconceito. É
desse modo que, para Michael Bury, a irrupção da doença constitui
sempre uma ‘ruptura biográfica’ na medida em que ela impõe não
somente modificações na organização concreta da vida, mas leva um
questionamento sobre o sentido da existência dos indivíduos, a auto-
imagem e suas explicações. (ADAM; HERZLICH, 2001, p. 126).
Parece que no caso da AIDS, foi por meio dos grupos de apoio e suas
ações que se conseguiu uma grande mobilização do poder público e de vários
profissionais tornando esta doença em uma ‘causa’ para muitos, implicando em
desafios que transcenderam as pessoas infectadas. Tal movimento não só partiu do
individual para a coletividade como, também, foi realimentado pelo social contribuindo
para a nova imagem pessoal dos indivíduos contaminados.
Então, a AIDS atualiza novamente a dimensão da coletividade mas não
apenas no sentido da contaminação, ela é coletiva quanto ao seu tratamento e porque
ela se inscreve em todos os lugares da vida social: espaço privado cotidiano e espaço
público, político.
2 ASPECTOS PSICOSSOCIAIS: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
A descoberta da epidemia da AIDS foi bastante assustadora para a
sociedade, primeiro por ser uma doença surgida no meio homossexual, depois por
espalhar-se de forma vertiginosa não só entre homossexuais mas, também, e de forma
crescente, entre heterossexuais. E então, constatado que era uma doença incurável, a
ligação da enfermidade com a morte foi inevitável. Enquanto alguns soropositivos
passavam a ser vistos como morto-vivos, outros parecem ter agarrado outras
possibilidades.
Waideman (2003) salienta em seu livro Adolescência, Sexualidade e
Aids – na família e na escola que, dentre outras preocupações envolvidas na doença, o
medo da morte e do isolamento estão presentes. Considerando este fato, podemos
supor que os temores contribuem para que os soropositivos busquem refúgio em um
lugar onde eles possam se sentir acolhidos, um lugar que fala da sua doença. Parece-
nos que ao escolher um lugar, como uma ONG que luta pelos direitos de pessoas
portadoras do vírus HIV, onde haja a possibilidade de se trabalhar a questão da
soropositividade, o sujeito pode estar se voltando para a vida, pois a escolha pela vida
terá que necessariamente incluir a morte em sua trajetória. Só assim é possível a posse
do presente e do momento, como nos lembra Perazzo (apud PAIVA, 1992).
Segundo o que Freud (1969f) elaborou, uma pessoa atormentada por
dor e mal-estar orgânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo na
medida em que não dizem respeito a seu sofrimento. O sujeito utiliza-se de seu
narcisismo retirando sua libido dos objetos e voltando-a para si, para sua recuperação.
Ao contrário do que expusemos acima. Então, será que com as pessoas soropositivas
envolvidas nas ONGs o caso seria diferente?
Em oposição ao curso comum dos acontecimentos, onde uma pessoa
doente retira sua libido dos objetos externos e a volta para si em busca de uma
recuperação, parece-nos que o que acontece nos casos de soropositivos dentro de
instituições é que eles parecem sair de uma condição narcísica para uma relação de
objeto. Eles não permanecem presos a si mesmos poupando suas energias para
vencer a doença. Eles se colocam em relação com um outro, que no caso aqui é a
ONG. Embora não tenhamos dados para negar que este movimento tamm
represente um mecanismo para o enfrentamento da doença. Sendo assim, busca-se no
outro uma possibilidade de complementaridade: “(...) privilegia-se a busca da auto-
identidade a partir da descoberta do outro...” (WAIDEMAN, 2003, p. 127). Elas se
interessam pelo mundo externo porque este fala de sua doença. Mas não é qualquer
mundo externo. Seria possível que se unindo a ONGs, o sujeito passe a conhecer
melhor o que lhe aconteceu, identifica-se com este trabalho, faz uma ponte em direção
a si mesmo que o auxilia a compreender seu estado atual e a trabalhar melhor com
ele? E será que essa relação de objeto que pode ser vivida em relão à Organização
Não Governamental não é, justamente, uma tentativa de restaurar o narcisismo
manchado pela mortalidade? Porque, como disse Mannoni (1995, p. 65), “é nela
(morte), a partir daí (seu reconhecimento), que o desejo tenta reconquistar o objeto
perdido, e essa busca, ao invés de corresponder a um desejo de morte, seria uma
afirmação desesperada de vida”.
Este movimento de partir do narcísico para o objeto, como já
apontamos, pode representar um mecanismo de enfrentamento da doença. No entanto,
este fato não diminui sua importância, já que os mecanismos de enfrentamento que um
sujeito dispõe para superar determinadas situações têm como funções:
a) lidar com o problema, modificar ou eliminar condições; b) alterar o
significado da experncia para neutralizar o seu caráter problemático e
c) regular o desespero emocional que o problema causa. (KOVÁCS,
apud BROMBERG, 1996, p. 20).
Estas funções contribuem para que o indivíduo possa encontrar em
uma Organização Não Governamental um meio de lidar com suas angústias
relacionadas a sua doença. Ao se deparar com a morte, a pessoa se lança numa busca
pela vida mais intensa no presente. Passando de soronegativo para soropositivo, vem a
materialização de sua finitude. E assim, com a idéia de que a morte virá num futuro
mais próximo, traz-se a vida para o presente, buscando um sentido mais significativo
para ela (BELOQUI apud PAIVA, 1992). Que a morte é um fenômeno que afeta todos
nós ninguém tem dúvida, na verdade, essa é uma certeza universal. Porém, quando a
morte é a morte de si próprio o sujeito é atacado lá onde pensava que estava protegido,
obrigando-o a encarar esta imposição incontestável. Desta forma, ressalta-se o anseio
pela vida (LABAKI, 2001).
Assim como Beloqui, Nietzsche aponta uma oportunidade de
pensamento através da doença. As pessoas andam muito à vontade com suas vidas,
tudo sempre da mesma forma, a mesma rotina, presa aos mesmos deveres e as
mesmas certezas. Mas há um momento em especial onde essas certezas e deveres
antes não questionáveis passam a fazer parte de uma constante interrogação no
sujeito. Ao ser acometido por uma doença, o indivíduo se vê envolto de um horror que
ele mesmo não entende. De repente suas certezas são sacudidas e ele começa a
indagar sobre as coisas da vida. Um corte se faz na vida do sujeito. Propicia-se um
momento de reflexão, e, portanto, de pôr à prova suas certezas sobre tudo o que ele
costumava aceitar naturalmente. Neste momento, o sujeito tem a chance de mudar sua
vida, de dar um outro sentido para ela, já que o curso dito normal dos fatos foi
interrompido. Ele está com uma força interior conduzindo-o à reflexão. Uma doença
que, a princípio, pode matá-lo, faz despertar seus sentidos, torna-o um espírito livre:
... o espírito se aproxima novamente à vida, lentamente, sem dúvida, e
relutante, seu tanto desconfiado. Em sua volta há mais calor, mais
dourado talvez; sentimento e simpatia se tornam profundos, todos os
ventos tépidos passam sobre ele. É como se apenas hoje tivesse olhos
para o que é próximo. Admira-se e fica em silêncio: onde estava então?
Essas coisas vizinhas e próximas: como lhe parecem mudadas! (...)
Somente agora vê a si mesmo – e que surpresas não encontra.
(NIETZSCHE, 2000, p. 63).
Waideman (2003) tamm discorre sobre o fato da doença física
apresentar uma oportunidade para o indivíduo quando ela diz que “... é através do vírus
que percebemos nossa mortalidade e finitude e nos lembramos de que estamos vivos.
Olhar a morte de frente é tamm olhar a vida. Uma não existe sem a outra”
(WAIDEMAN, 2003, p. 148). E é nesse sentido que uma doença como a AIDS, que
remete à morte, pode significar vida.
De acordo com Kovács (1996), há um jogo constante de vida e morte
se contrapondo durante todo o crescimento do sujeito. Estamos sempre passando por
fases em nosso desenvolvimento (infância, adolescência, adulto, casados, solteiros,
velhice, etc.) que pressupõem fazermos o luto da fase anterior para construirmos uma
nova identidade. Desconstrução versus Construção. Morte versus Vida. Essa autora
nos aponta, também, a possibilidade que pode surgir de uma situação limite:
Cabe apontar também que nas situações “dolorosas”, em que por
algum tempo se vive sob o domínio da dor, do sofrimento, em alguns
momentos percebidos como sem saída, quando só a morte se configura
como tal, podem ocorrer reviravoltas, transformações – e da morte
emerge uma nova vida com mais vigor. (KOVÁCS apud BROMBERG,
1996, p. 13).
Considerando essa característica da doença, de iluminar o
pensamento, de oportunizar, podemos dizer que ela tem um poder sobre o indivíduo
que a porta. Esse poder, além de contagiar o próprio sujeito, pode estender-se ao
mundo através dele, transformando a realidade em que o indivíduo doente se encontra.
Podemos colocar o surgimento das ONGs/AIDS paralelamente a este pensamento, já
que elas vieram suprir a necessidade de ação social em relação à AIDS e às
discriminações sofridas através dessa enfermidade.
Nietzsche (2000) acrescenta que a dor de se estar doente e da própria
doença em si não aperfeiçoa o ser humano, mas o aprofunda, devido ao conhecimento
e às ações que dela surgem. Tal fato ocorre porque, dentre outras coisas possíveis, a
dor pode levar o sujeito ao “Nada”, ao estado de Nirvana, a entregar-se a um mundo
mudo, surdo, rígido, de onde se retorna como outra pessoa, com algumas
interrogações a mais e certezas a menos. O “bem estar” de se estar doente, pode-se
assim dizer, não significa que dessa enfermidade saímos melhores no sentido moral da
palavra, mas simplesmente diferentes.
Assim como Nietzsche, Freud (1976) tamm discorre sobre o Princípio
do Nirvana. Segundo este conceito, o aparelho psíquico tenderia a estabilizar as
excitações internas e externas a fim de alcançar o equilíbrio psíquico. Sendo assim, é
possível que esses sujeitos ingressem em ONGs com o objetivo de equilibrar os
estímulos internos advindos do conhecimento sobre a AIDS com os externos (vida
social). Como que numa tentativa de preservar o ego, o sujeito vincula as excitações
advindas do encontro com a doença a uma realidade externa como ponto de apoio para
a elaboração desta nova situação. Há uma mudança na realidade biológica e, por isso,
uma mudança de comportamento frente a esta nova realidade. Kovács (1996) sugere
em seu texto, Morte em Vida, que para que haja um desenvolvimento saudável é
necessário que cada crise seja resolvida em sintonia com o ego. Isto significa dizer que
no início de uma crise o organismo começa negativo para que, gradativamente, com o
fortalecimento do ego, vá ocorrendo um equilíbrio.
Uma explicação complementar para essa questão vai ao encontro do
Princípio de Prazer, princípio este que regula todo o funcionamento psíquico (FREUD,
1976). De acordo com esse conceito, o sujeito evita o desprazer ou busca o prazer
frente a uma excitação considerada desagradável a fim de manter seu estado de
constância. Desse modo, o desprazer do conhecimento de sua enfermidade levaria o
sistema psíquico a buscar saídas, encontrar alternativas de suporte. Freud explica que:
... o curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente
regulado pelo princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o curso
desses eventos é invariavelmente colocado em movimento por uma
tensão desagradável e que toma uma direção tal, que seu resultado
final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação
de desprazer ou uma prodão de prazer. (FREUD, 1976, p. 17)
Assim, uma destas saídas pode ser considerada o rumo para uma
instituição política e filantrópica como as ONGs.
O Princípio de Prazer pode ser perigoso se relacionado à realidade, à
vida social, visto que sua busca objetiva exclusivamente ao prazer. Então, o ego, com
seus instintos de auto-preservação, substitui o Princípio de Prazer pelo Princípio de
Realidade. Este último não abandona os objetivos do primeiro, mas regula as
excitações internas de forma que elas tenham um lugar e uma hora propícias na vida
social.
Todo o prazer envolve um desprazer para chegar até ele. No exemplo
do menino com o carretel que Freud (1976) nos coloca em seu texto Am do Princípio
do Prazer, ele aponta que só há prazer com o retorno do carretel porque houve o
desprazer do seu sumiço. É como os significantes que só se encontram significados
pelo seu oposto, não há um significante que se defina a si mesmo, sem o outro. O
prazer tamm não tem sentido se não houver o desprazer; como poderíamos
conhecê-lo de outra forma? Portanto, a transformação vivida pelos soropositivos só foi
possível pelo desprazer sentido ao saber-se enfermo e finito. Pelo menos não se tem
conhecimento de que um soropositivo tenha ficado feliz com essa notícia ou acreditado
que ela poderia lhe trazer algum tipo de benefício. Se isto ocorre é algum tempo depois
e não posso afirmar que, mesmo quando ocorra, há o reconhecimento consciente de
que se está tendo um ganho advindo da doença.
O Princípio de Prazer, de Realidade e de Nirvana, são conceitos afins
que, postos em jogo na dinâmica inconsciente do sujeito, correspondem à eterna
presença das pules de vida e de morte constantes no organismo. Há uma articulação
dessas duas pulsões no sujeito de forma que elas tendem para o equilíbrio, embora,
quase sempre haja prevalência de uma sobre a outra, já que o total equilíbrio seria a
morte em si, nenhum estímulo externo e nenhum interno, resultando na completa e total
estabilidade do organismo. Pensando nesses conceitos e nos participantes desta
pesquisa, podemos dizer que a pulsão de vida parece estar presente de forma mais
contundente do que o seu oposto, uma vez que eles conseguiram realizar uma
transformação em suas vidas.
Cartwright e Cassidy (2002) apontam que o sujeito mostra-se sentido
com a situação ou ajustado a ela uma vez que sua função simbólica torna-se presente.
Somente quando o objeto é representado e elaborado internamente pode surgir o
pesar, ou algum grau de reparação. No entanto, inicialmente, há uma fase em que os
soropositivos se voltam ao sofrimento, ao pesar frente à expectativa de morte: “Muitos
passam por um choque inicial, entorpecimento e descrença, seguido por lances de
idealização, ansiedade e raiva
3
”. (CARTWRIGHT; CASSIDY, 2002, p. 151). Após este
período de crise, os autores colocam que os indivíduos são capazes de se integrar às
perdas reais que se seguem e chegam a um nível de integração e a um novo senso de
propósito sobre suas próprias vidas. Porém, eles apontam que o processo de
adaptação só se torna possível se os indivíduos forem capazes de suportar as primeiras
fases da crise. Portanto, nem todos chegam lá. Seria essa a explicação do fato de
alguns conseguirem voltar-se para a vida enquanto outros se prendem à doença como
se fosse um castigo por algum tipo de prazer usufruído? E será que podemos colocar
3
“Most go through initial shock, numbness and disbelief, followed by bouts of idealization, anxiety, and anger”
(tradução nossa).
as ONGs como uma forma de adaptar-se à situação? Como uma forma de
internalização?
Labaki (2001) indica, tamm, uma capacidade de transformar o
sofrimento em experiência representada e o grito em linguagem, de forma a criar um
significado para o sujeito. Para que isso ocorra, de fato, a capacidade simbólica do
sujeito precisa tomar o seu lugar nos acontecimentos. E é através do outro que o
simbólico passa a existir para o sujeito, é pela ação desse outro que a experiência e o
grito ganham sentido, transformando-se em afeto. Quando há um sentido significa que
há algo no qual se pode investir libido, por isso, há vida. Trabalhar em uma ONG talvez
seja o caminho pelo qual os participantes desta pesquisa encontraram o sentido de sua
doença e puderam, então, investir afeto nesta instituição em prol de si mesmos e da
comunidade. E ai, ao engajar-se em uma ONG, a vida enquanto projeto volta a ser
possível, suprimindo a sensação de aniquilamento e restaurando a ilusão de relativo
controle.
Labaki (2001) sugere, como mecanismo que possibilita a transformação
de uma experiência em fonte de vida, o desamparo. Não o desamparo paralisante,
improdutivo, mas como uma pausa para o pensamento. E novamente estamos na
questão da doença como uma parada para a reflexão que outros autores, como já
vimos, expõem. Esta parada seria fator fundamental para a preparação do sujeito no
que diz respeito, tamm, ao fortalecimento das defesas psíquicas. Ao deparar-se com
sua própria morte, o sujeito torna-se incapaz de elaborar para si um mito que sirva de
suporte fantasmático para a angústia advinda do reconhecimento de sua própria
extinção, isso quer dizer que não há elaboração simbólica que comporte a nova
experiência dentro do sujeito. Desse modo, o desamparo toma conta do organismo,
inicialmente, enquanto sofrimento para, mais tarde, contribuir para reelaboração de sua
situação.
Este medo da morte tão presente em nós, o medo do completo
aniquilamento se funda nos primórdios da vida. O nascimento é sentido como a
possibilidade extremada de morte. É um fenômeno onde todas as energias do sujeito
estão soltas e que, para permanecer vivo, devem ser ligadas a algo em que se investir
(LABAKI, 2001). É dessa possibilidade de morte que a vida pode surgir, como bem
explicitou um médico, do seu ponto de vista, a respeito da morte:
O ser humano é chamado da morte para a vida, no momento da
concepção. Os dois gametas (esperma e óvulo) carregam consigo a
potencialidade da morte; é preciso que eles se aniquilem, se fundam,
com a morte, para que surja a vida. (...). Nós saímos da morte e à morte
vamos voltar. (MARTINS, 1983, p. 54).
Se, ao nascer, o sujeito permanece com excesso de energia sem ligá-la
a nada, a constituição deste fica prejudicada forçando-o a entrar em angústia de
desamparo. Até que um outro possa introduzir este sujeito em uma rede simbólica
tirando-o dessa sensação de desamparo que se associa a morte. Portanto, a superação
do desamparo é estabelecida através desse outro que investe de afeto o sujeito. Por
isso, as primeiras relações estabelecidas entre o cuidador e o bebê são de fundamental
importância para o modo como essa criança enfrentará suas situações de angústia pela
vida afora.
No caso de uma doença como a AIDS que está diretamente
relacionada à morte, o indivíduo se depara com a idéia da própria mortalidade. Só isso
já seria potencialmente suficiente para levar o sujeito ao desamparo. Essa sensação,
no entanto, deve ser transformada em angústia como uma forma de defesa, ou seja,
renunciar a reação de descarga de energias por conta da situação surpresa ou impacto,
para dar lugar à função simbólica de preparação diante do perigo (LABAKI, 2001). Isto
significa dizer que a idéia da morte deve ser trabalhada e as energias canalizadas
nesse processo devem ir em direção de um esforço de ligação e de representação.
“Seria transformar o sofrimento, a partir do perigo de morte, em experiência cuja
repercussão afetiva seja capaz de conceder reforço e proteção à vida”. (LABAKI, 2001,
p. 73). Todo este trabalho só seria possível onde existisse vida, pois, é só ai que a
morte pode fazer seus estragos. Filiar-se a uma ONG parece ser uma saída no sentido
de elaborar a própria doença e sua representação. A ONG aqui seria o objeto de
investimento libidinal para onde se canalizaram as energias desencadeadas pela
notícia da infecção pelo HIV. E como “o objeto é revelador das pulsões”. (LABAKI,
2001, p. 80), o modo como os participantes desta pesquisa se relacionam com a
instituição é de fundamental importância para entendermos que tipo de pulsão está
presente no processo de transformação vivido por eles.
Kübler-Ross (1977) escreve sobre a incapacidade inconsciente de
aceitar que a morte é possível de acontecer a nós mesmos. Assim, se ela ocorre, é
associada a um mau ato, algo ameaçador, algo que em si mesmo clama por retribuição
ou castigo. Segundo ela, o sentimento de estar sendo punido, do porque eu?, o que eu
fiz para merecer isso?, faz parte das várias fases pelas quais um paciente passará
diante da morte. Analisando vários de seus pacientes hospitalizados tidos como
desenganados, ela observa a vivência de algumas fases (choque, negação, raiva,
barganha, depressão e aceitação) onde há a oportunidade para um amadurecimento
interior. Os pacientes passam a reavaliar suas vidas e a preparar-se para sua morte de
forma mais digna e consciente. Assim como os autores citados acima acreditam na
reparação, Kübler-Ross (1977) apontou que seus pacientes passavam por um estágio
de depressão para, a partir daí e gradativamente, aceitar sua condição humana.
Com a constatação da AIDS, torna-se evidente o fator finito do
indivíduo, há uma marca definitiva no desejo do sujeito enquanto ser mortal. Assim
como Aberastury (apud WAIDEMAN, 2003) aponta que há uma elaboração de lutos na
adolescência pela perda do corpo infantil, pensamos que também a AIDS obrigue o
indivíduo a elaborar o luto pela marca feita no seu narcisismo através da evidência de
sua finitude, além de fazê-los experenciar um luto frente a nova concepção do cuidar de
si.
3 O MÉTODO
Por conta da observação de que algumas pessoas soropositivas
mudaram suas vidas após o conhecimento do seu diagnóstico, trabalhamos com
aquelas pessoas que pareceram ter sido capazes de realizar a adaptação necessária
após o conhecimento da enfermidade. Buscamos compreender os mecanismos
psicossociais envolvidos nesta transformação, como eles funcionaram nas condições
de uma Organização Não Governamental.
Com o objetivo de desenvolver um estudo exploratório para
compreender os dinamismos psicossociais desse processo, foi necessário investigar a
transformação vivida pelos soropositivos que ingressaram em ONGs, já que parece ter
havido um ganho na vida dessas pessoas no sentido sócio-político e psicológico após o
conhecimento de sua enfermidade.
Para a realização desta pesquisa trabalhamos com entrevistas abertas
que foram realizadas com a participação de 2 mulheres e 3 homens divididos em duas
ONGs diferentes, sendo que ambas trabalham com questões relacionadas às Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e à AIDS. Os participantes escolhidos foram
aqueles que geralmente estão à frente de projetos dentro da instituição, por
observarmos mais facilmente, nestas pessoas, a transformação que se deu em suas
vidas com o descobrimento de seus diagnósticos soropositivos. Silvia, Lucas,
Roselaine, Eduardo e Cristina foram esclarecidos previamente em relação à pesquisa
que estava sendo desenvolvida e assinaram um termo de consentimento concordando
em participar dela. Roselaine foi a primeira das cinco pessoas a ser entrevistada. Por
isso, foram realizados 3 encontros com ela. No primeiro e segundo encontros, foram
feitas entrevistas gravadas, procurando analisar e elaborar melhor o roteiro de
entrevista. E no terceiro encontro elaboramos seu genograma. No entanto, optamos por
retirar a análise do genograma, visto que o discurso dos participantes não se voltava
para a verbalização freqüente de sua relação com a família. Dos 5 entrevistados,
apenas 1 deles pediu que seu nome verdadeiro não fosse colocado, os demais não se
incomodaram com o fato de poderem ser identificados, ao contrário, alguns
expressaram desejar que eu me utilizasse dos nomes verdadeiros. Porém, adotamos o
procedimento de dar nomes fictícios para cada um dos cinco entrevistados, procurando
resguardar a identidade de todos, seguindo as recomendações do Comitê de Ética em
Pesquisa que preconiza a não exposição das pessoas entrevistadas.
Escolhemos a entrevista aberta pelas seguintes vantagens: 1. ela
permitiu uma flexibilidade suficiente para que o entrevistado configurasse o campo da
entrevista de acordo com a sua estrutura psicológica; 2. ela possibilitou uma
investigação mais ampla e profunda da personalidade do entrevistado; 3. ela consistiu
numa relação (entrevistado/entrevistador) onde ambos puderam interferir, possibilitando
uma abrangência maior de significados (BLEGER, 1998). Sabendo que o sujeito se
sustenta através do diálogo, a análise do conteúdo das entrevistas permitiu que suas
crenças simbólicas fossem estudadas (LACAN, 1999). Enquanto entrevistadora
procurei saber o que estava acontecendo de acordo com minha pesquisa e busquei
atuar segundo este conhecimento. A realização dos objetivos possíveis dessa
entrevista, que neste caso foi o da investigação, dependeu do saber do pesquisador e
sua atuação frente a este saber (BLEGER, 1998). As entrevistas foram realizadas
baseadas em um roteiro com 11 questões. Foi feita a gravação das entrevistas e
posterior transcrição para análise de conteúdo.
Os itens que nortearam a entrevista diziam respeito a história de vida
dos participantes, enfocando o antes e depois da enfermidade. Dessa forma, pudemos
verificar as mudanças ocorridas e a forma como a pessoa lidou com sua vida. Algumas
questões relacionadas à família da pessoa tamm foram feitas no sentido de
observarmos de que forma ela influenciou nesta transformação vivida pelos
soropositivos entrevistados.
Os conteúdos constantes nas entrevistas foram analisados com base
nos conceitos psicanalíticos e nas Teorias de Família relacionadas à constituição do
sujeito, investigando como se deu a transformação vivida pelos soropositivos que
participaram desta pesquisa, a partir de suas histórias de vida, tomando como
referência o pressuposto de que a criação e constituição de um sujeito estão
diretamente ligadas ao modo como sua família interagiu com ele e vice-versa. Alguns
conceitos mais utilizados foram os de pulsão e fantasia.
A pulsão é uma necessidade instintual proveniente do Id, reservatório
das pulsões, que foi ligada a uma marca, uma representação. Essa marca corresponde
às primeiras marcas infantis, e os responsáveis por ela são os pais, isto é, os
responsáveis pelas representações existentes no Id de cada sujeito são seus pais, que
por sua vez tiveram como modelo o Id dos pais dele e assim por diante, dando-nos a
noção de Id geracional e já nos remetendo à importância dos pais na constituição do
sujeito, já que é a função parental que governa as pulsões. Por exemplo, o bebê chora
quando há um desconforto biológico, como a fome. Ao dar de mamar a mãe está
criando uma marca de satisfação em seu psiquismo. Quando novamente este bebê
mamar, não será apenas a satisfação biológica que ele estará buscando, e sim uma
satisfação libidinal; a prova disso é que, muitas vezes quando o bebê chora, uma
chupeta pode acalmá-lo, substituindo a satisfação da alimentação nos seios da mãe.
Disso podemos concluir que uma pulsão sozinha não faz nada, ela
necessita de uma simbolização que só pode ser feita através do outro, já que o próprio
indivíduo quando nasce não é capaz de cuidar de si. É através do outro que a função
simbólica se constitui fazendo surgir um sujeito (FREUD, 1969d). A pulsão tem 4
destinos: retorno para a própria pessoa, transformação no seu contrário, repressão e
sublimação. De qualquer maneira, ela insistirá em seu objetivo de satisfazer-se.
Neste trabalho, abordaremos apenas seus dois primeiros destinos, visto
que são eles os mais importantes para compreendermos a dinâmica da transformação.
Quando a pulsão retorna para si ela constitui o narcisismo secundário do sujeito.
Primeiramente ela foi depositada em um objeto externo, mas pelas ausências desse
objeto, ela retorna para o sujeito. Quando ela retorna, ela passa a constituir as pulsões
do ego que são autopreservativas, portanto, tendem ao equilíbrio do organismo. Já
quando as pulsões direcionam-se para um objeto elas correspondem à libido, a energia
sexual, que visa o prazer do organismo. O fato de a pulsão voltar para o sujeito e se
transformar no seu oposto é determinado pela organização narcísica do ego. Na
medida em que o ego é auto-erótico (o sujeito pode satisfazer-se com o próprio corpo,
como quando o bebê chupa um dedo ao invés de mamar), não necessita do mundo
externo.
No entanto, em conseqüência da falta de aparatos biológicos que
permitam que o indivíduo cresça sozinho, ele acaba adquirindo objetos daquele mundo.
Esses objetos externos constituem fontes de prazer que o indivíduo toma para si, os
introjetando, e por outro lado, expelindo o que quer que dentro de si mesmo se torne
uma fonte de desprazer, de acordo com o princípio de prazer que rege o organismo. De
acordo com este processo é que a pulsão retornará para o sujeito e/ou se transformará
no seu oposto (FREUD, 1969d).
A pulsão de vida está ligada aos instintos sexuais, e a pulsão de morte
aos instintos do ego. A pulsão de vida tende para o excesso de estímulos, para o
prazer, por isso, é regida pelo princípio de prazer, tem como meta o encontro de um
objeto; já a pulsão de morte tende ao equilíbrio, a cessação dos estímulos de forma que
o ego se estabilize, recebendo influência do Princípio de Nirvana. Essas duas pulsões
estão presentes no organismo em quantidades regulares, porém, há casos em que elas
podem se desregular o que ocasiona momentos de crise, onde a vida seria, portanto, a
administração desse conflito e a prevalência de uma das pulsões.
Um dos momentos onde estas pulsões estão mais propensas ao
desequilíbrio é a doença. Uma doença faz com que o indivíduo tome certas atitudes
onde uma dessas forças (vida/morte) vai prevalecer, mas ambas vão existir, devido à
característica ambivalente das pulsões quanto a sua satisfação.
Ao lermos Freud (1969b), pudemos verificar que ele coloca o medo da
morte em relação com o medo da castração (perda, separação). Como a morte não foi
experenciada pelo sujeito, Freud sugere que a única maneira de apreendê-la é
enquanto medo da castração. Seria um medo onde o superego, que tem a função de
equilibrar os estímulos que lembrem a castração, abandona o sujeito à própria sorte,
não mais fazendo parte de seus planos. Então, este abandono inicial, que Labaki
(2001) bem explicou como desamparo, seria o momento ideal de decisão do sujeito,
quer ele escolha pela vida, quer pela morte. Vale ressaltar que este desamparo, como
já discorremos anteriormente, não é um desamparo qualquer e sim, aquele desamparo
que propicia um momento de parada para a reflexão do sujeito. Um momento de crise
onde o sujeito reavalia sua vida e segue um rumo, assim como os participantes desta
pesquisa.
Em todo agrupamento humano, o objeto de investimento libidinal é
tomado como um objeto de identificação. Isto é o mesmo que dizer que o sujeito
identifica-se com a sua família, pois este é o primeiro agrupamento humano ao qual
pertencemos e, por isso, objeto de todo nosso investimento. Para entendermos o
psiquismo familiar, Eiguer (1995) criou o conceito de organizadores psíquicos, que
seriam basicamente como uma formação coletiva para a qual os psiquismos de cada
sujeito da família contribuem, ele engloba um conjunto de representações psíquicas
compostas pela família. É o organizador familiar que nos dá a representação
inconsciente desse grupo. E é claro que o organizador não é uma categoria estática. A
família deverá passar por várias crises e fases diferentes até que se encontre uma
coesão grupal. Existem três organizadores psíquicos: 1. a escolha de objeto, 2. o eu
familiar e 3. os fantasmas partilhados.
A escolha objetal familiar corresponde à escolha de um parceiro sexual
fora da família original e o tabu do incesto garante que essa procura seja realmente
externa. Para encontrar um parceiro o inconsciente de cada sujeito estará atuando para
tal e, após a união, seus objetos inconscientes se entrecruzam e os objetos
compartilhados de cada um formarão um mundo objetal partilhado, sem que suas
individualidades sejam apagadas. Existem três modalidades de escolha de um parceiro.
A escolha edípica, onde o menino procura alguém como sua mãe para se relacionar
mas que não seja ela (a mesma coisa acontecendo para a menina, porém, esta busca
alguém que se pareça com seu pai). A escolha objetal anaclítica onde o sentimento de
falta ou perda é a base da escolha e o relacionamento, aqui, é marcado pelo medo da
solidão. E a escolha objetal narcísica onde a onipotência do homem e da mulher é
central; o que torna o outro atraente é o fato dele se amar fortemente.
O eu familiar é o que permite ao sujeito distinguir o que é e o que não é
familiar. Cada família estrutura seu narcisismo sobre a instância do eu familiar. Ele
corresponderia ao investimento libidinal de cada membro da família sob o núcleo
familiar, o que lhes permite entender a falia em uma continuidade no tempo e
espaço. Este organizador é constituído por três componentes: o sentimento de
pertença, o habitat interior e o ideal de ego coletivo. O sentimento de pertença é aquela
sensação de proximidade que temos com nossa família, aquela sensação de ser
considerado e tratado aí de forma particular e diferente do que acontece com outros
grupos. A recordação de um passado em comum tamm faz parte desse sentimento, o
que historifica sua existência na família. Aqui, cada narcisismo está a serviço do grupo
e, em troca, as relações com este grupo vão integrando o eu individual e a identidade
de cada membro. O habitat interior é o nosso lar, uma representação de casa que
contém cada indivíduo do grupo dentro desta estrutura. Ter um lugar em comum onde o
cotidiano é compartilhado faz com que o grupo tenha representações compartilhadas
onde se reconhece aquele agrupamento de indivíduos enquanto um grupo específico.
O ideal de ego familiar são os planos familiares para seus membros. Ele remeteria o
sujeito ao futuro, seriam os projetos de vida pensados por seus pais para os seus filhos.
São as expectativas paternas.
O terceiro e último organizador são os fantasmas partilhados ou
interfantasmatização. Por fantasmas entendemos aquelas experiências externas que
foram internalizadas pelo sujeito. Não são as experiências em si, mas a interpretação
que o sujeito fez da experiência e pôde assimilar, por isso o nome de fantasia. O ponto
de encontro dos fantasmas individuais, fantasmas próximos por seu conteúdo,
correspondem à atividade fantasmática grupal ou familiar. Existem 4 fantasmas
principais: o fantasma de sedução por um adulto, por onde a realidade se postula; o
fantasma da cena original, por onde a sexualidade é formulada para o sujeito; o
fantasma da castração, onde se reconhece o limite do sujeito e a diferenciação sexual;
e o fantasma do nascimento, onde se vive uma ruptura passando da completude para a
falta.
A escolha sexual (1º organizador) feita a partir do modelo de um ou
outro dos objetos infantis dos parceiros, estreita os vínculos libidinais de
objeto, (...), o eu familial (2º organizador) alimenta os vínculos
narcísicos, (...). A interfantasmatizão (organizador), enfim, é ativa
no que se refere aos 2 tipos de vínculo. (EIGUER, 1995, p. 115).
Este último organizador, portanto, é um organizador social já que parte
do exterior para o interior relacionando-se, tamm, com os outros dois organizadores.
É a atividade fantasmática que compõe o processo simbólico.
Toda fantasia diz respeito a três questões que contribuem para a
constituição de um sujeito: a identificação, a libido e um modelo de gratificação dessa
libido. Todas essas questões estão ligadas entre si porque uma identificação sempre
tem a ver com uma libido e esta precisa de um modelo para expressar-se. O que se
inscreve nessa ordem simbólica são os próprios limites do homem, sua constituição
basilar. Uma das fantasias do sujeito que faz parte de sua constituição basilar e está
mais envolvida com este estudo é a fantasia da castração. Como já dissemos, é por ela
que o sujeito percebe sua falta.
Dentro da questão da interfantasmatização temos a questão dos mitos
familiares. O mito familiar é definido como um relato de uma história que implica em um
conjunto de crenças partilhadas e transmitidas, por isso, todo mito inclui um elemento
fantasmático que o inspira, alimenta, e lhe atribui significado. O mito faz a relação entre
o verbal e o ato em si.
Como trabalhamos exclusivamente com relatos, o conceito de mito
familiar foi muito importante para a construção de uma análise. Todo mito tem um
conteúdo imaginário/manifesto e um latente/simbólico, assim como o sonho. Por
exemplo, no Mito do Édipo o conteúdo imaginário corresponde ao desejo incestuoso
pela mãe e a tensão agressiva direcionada para o pai. O conteúdo simbólico
corresponderia à problemática da identificação, da libido e de um modelo de expressão
dessa libido. Através dos papéis desenvolvidos pelos pais é que o sujeito vai
internalizando relações que o ajudarão no processo de identificação, libidinização e
busca de um modelo. Essas relações internalizadas é que são os fantasmas que,
consequentemente, acabam fazendo surgir os mitos enquanto organizadores do
processo simbólico do sujeito (ANDOLFI; ANGELO, 1988).
Criar o mito nos traz informação sobre uma série de comportamentos e
conhecimentos de um sujeito e/ou sua família permitindo a cada um reencontrar o
sentido da vida. Foi através do relato dos participantes desta pesquisa que pudemos
saber uma parte da história de vida de cada um deles da forma como cada sujeito a
internalizou. Desta forma, já que o mito é uma forma de estrategizar o modo como um
elemento simbólico se articula no manifesto, foi possível analisarmos este conteúdo
imaginário buscando possíveis representações simbólicas que possibilitaram uma
transformação na vida dos sujeitos (CABAS, 1982). E como o mito é constituído de
formações fantasmáticas inconscientes, ele é atemporal, portanto, as narrativas
coletadas correspondem ao que o sujeito elaborou em sua totalidade e não a um
passado ou presente específicos, ambos se mesclam, possivelmente até modificando a
estrutura dos mitos e dos indivíduos de acordo com as novas experiências vividas de
geração em geração.
Os mitos se desenvolvem sobre os vazios que vão surgindo na vida do
sujeito, vazios ou falta de dados suficientes pertinentes a esse vazio. Estes ‘espaços
em branco’ são, então, preenchidos pela ação criativa do sujeito que ocupa lugar na
introdução de grandes temas da vida (vida, morte, amor, desconhecido). Desta forma, o
indivíduo organiza suas experiências de forma a internalizá-las, construindo sua história
e fornecendo um sentido a ela. Assim, a estruturação mítica de um sujeito pode nos
indicar as razões de seus comportamentos e contribuir para que entendamos o porquê
de suas atitudes.
Em momentos críticos da vida individual ou familiar, eventos espeficos
desvendam problemas ou remanejamento de papéis da estrutura mítica que são
necessários para passar pela situação. Essa concepção encaixa-se nos momentos de
doença, que correspondem a fases críticas da vida pessoal e familiar, e podem
modificar os vários indivíduos de uma família construindo uma nova dinâmica. Uma
dinâmica constituída por um antes e um depois, assim como exige a estrutura dos
mitos, porém, sendo compreendida a luz da atualidade das relações existentes. É o
mito familiar que manterá o grupo unido e coeso, sejam quais forem as circunstâncias,
mesmo frente a modificações é ele que vai reconstruir a nova identidade grupal, por
isso sua importância (ANDOLFI; ANGELO, 1988).
Cada ser humano tem organizado dentro de si uma história de vida e
um esquema do presente, e foi a partir dessa história e desse esquema que
trabalhamos. Dentro da história de vida do sujeito, a família desempenhou um papel
fundamental no que diz respeito aos seus modos de subjetivação e capacidades
psíquicas. Sendo assim, no desenvolvimento desta pesquisa, procuramos abarcar
questões relacionadas à família destas pessoas, às famílias que elas possuíam
internalizadas em si mesmas.
Sabemos que é a partir da relação com os pais que o sujeito vai se
constituindo enquanto tal. Cada sujeito, pom, representa sua família e a internaliza ao
seu modo, formando suas próprias fantasias a respeito da mesma. A família tem um
poder organizador sobre o qual o indivíduo encontra-se identificado (EIGUER, 2000).
Sob a perspectiva da Teoria da Família na ótica da Psicanálise e o conseqüente
enfoque na existência e importância de questões relativas às famílias de cada sujeito,
sabemos que dependendo de como se estruturou o indivíduo a partir de suas relações
familiares, haverá maior ou menor tolerância em relação a situações adversas, como se
saber soropositivo, por exemplo.
Segundo Soifer, a família pode se caracterizar por:
(...) um núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar,
durante um lapso de tempo mais ou menos longo e que se acham
unidas (ou não) por laços consangüíneos. Este núcleo, (...), se acha
relacionado com a sociedade, que lhe impõe uma cultura e ideologia
particulares, bem como recebe dele influências específicas. (SOIFER,
1983, p. 22).
A autora ainda completa citando Bleger, para quem a função
institucional da família é estar preparada para conter e satisfazer a parte mais imatura
da personalidade, a parte mais narcísica, representada pela criança. Para Bleger
(1984), a família corresponde a um grupo que formará pessoas.
Nele não há interação e sim participação: a identificação projetiva é
massiva e todo grupo é um sistema único; não há projeção-introjeção e
sim só identificão projetiva, na qual cada membro éparte de um
todo e por si mesmo não constitui um todo nem uma unidade
psicológica. (BLEGER, 1984, p. 97).
A criança, ainda carente de aparatos psicológicos e sociais que a
possibilitem estar no mundo, busca as habilidades requeridas em sua família, mais
precisamente, em seus pais. Com isso, ela passa da vida infantil para a adulta, de uma
relação narcísica onde o objeto de investimento libidinal é o próprio sujeito, para uma
relação de objeto onde há o reconhecimento do outro, fato tão necessário para uma
vida em sociedade.
Neste processo de ensino-aprendizagem onde a criança deve alcançar
a maturidade adulta através da orientação dos pais, estes se tornam figuras cruciais
para o desenvolvimento infantil. Ao ensinarem seus filhos a desempenhar determinadas
funções, conforme o grau de maturidade desses filhos, os pais estão contribuindo para
a formação do superego desta criança, isto é, eles contribuem na qualidade da relão
que a criança estabelecerá com o mundo e com os outros (SOIFER, 1983). Junto com a
função de ensinar encontra-se a função de pôr limites. Limites são muito importantes
para o desenvolvimento infantil, já que eles ajudam a criança a discernir a fantasia da
realidade.
Outro ponto relevante relacionado à imposição de limites é que eles, na
maioria das vezes, impedirão que a pulsão de morte presente na criança prevaleça
sobre a pulsão de vida. A preservação desta última faz parte dos objetivos da família,
para que ela se constitua enquanto tal. Sendo assim, a aprendizagem repassada à
criança pela família vem para preservar a vida. Pensando nisso, o modo como a família
lidou com a educação de seus filhos pode contribuir para o manejo de suas pulsões no
sentido de levá-las a uma busca pela vida e, portanto, facilitar que determinadas
pessoas tenham a capacidade de, numa situação adversa, dar um passo para a
transformação em questão neste trabalho.
No decorrer da vida de uma família, há muitas situações para adaptar
os desejos internos de cada um dos membros com as necessidades externas tanto da
própria família como da sociedade. Estas situações podem ser caracterizadas como
situações de crise que, por causa da influência no relacionamento familiar, afeta a
família como um todo (PINCUS; DARE, 1987). Sendo assim, uma situação de
enfermidade em um dos membros da família afetará cada membro dela de forma
específica e, por sua vez, a reação a esta doença vivida pela família afetará o modo
como a pessoa enferma enfrentará esta doença.
No entanto, não necessariamente estes momentos de crise
representam algo negativo para a vida familiar já que eles podem proporcionar o
crescimento individual e coletivo de seus respectivos membros.
(...) as tensões e os conflitos são necessários para o contínuo
crescimento, o qual culmina quando encontramos meios de integrar
diferentes aspectos do self em resposta às demandas várias do
desenvolvimento. (PINCUS; DARE, 1987, p. 20).
Além das diversas exigências exercidas dentro do seio familiar, há as
demandas advindas de uma sociedade que se encontra em constante mudança. Tais
mudanças abarcam, principalmente, situações adversas de família. Não nos
estenderemos, ao menos aqui, nas questões relativas às diferentes formas de
organização familiar da chamada (pós)modernidade e as conseqüentes dinâmicas que
elas refletem, embora citemos a autora Prado (1981), que faz uma definição de família
que considera tais modificações familiares, e em outra etapa de nossa pesquisa,
provavelmente desenvolveremos tais idéias:
Ela é uma instituição social variando através da História e apresentando
até formas e finalidades diversas numa mesma época e lugar, conforme
o grupo social que esteja sendo observado. (PRADO, 1981, p. 12).
Devemos considerar tais mudanças ao realizar uma pesquisa, já que
precisamos saber que dinâmica familiar comportou a pessoa com a qual estamos
trabalhando para que possamos melhor entender o modo como o sujeito subjetiva sua
doença, que postura ele assume frente a ela.
Assim, dependendo de como a família compreende os processos de
doença e saúde, de vivência e morte ao longo de sua história, ela pode influenciar o
modo como o sujeito, criado no seio familiar, organizará estas mesmas questões,
facilitando ou não o enfrentamento delas. Com base neste enfoque é que analisamos
as entrevistas a fim de observarmos se a influência da família esteve presente no
processo de transformação vivido por pessoas soropositivas integrantes de ONGs e de
que forma a dinâmica familiar pôde influenciar as relações do sujeito em situação de
doença. Por este motivo é que consideramos a vida familiar dos participantes deste
trabalho como imprescindível para que entendêssemos quais foram os aspectos
psicossociais envolvidos neste processo de transformação.
Por corresponder a uma pesquisa que trabalhou com seres humanos,
devemos reforçar que todos os aspectos éticos foram contemplados para a segurança
das pessoas envolvidas nesse estudo. Comprometemo-nos em abarcar todas as
questões éticas necessárias para salvaguardar as pessoas envolvidas. Para tanto, foi
imprescindível submeter esta pesquisa à análise do Comitê de Ética da Faculdade de
Medicina de Marília (FAMEMA) onde recebemos sua aprovação. Além disso,
salvaguardamos a identidade dos envolvidos utilizando nomes fictícios e ocultando o
nome das ONGs onde eles trabalham, apesar do consentimento dos participantes em
divulgar esses dados.
4 ESTUDO DE CASO: APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
4.1
ENTREVISTA REALIZADA COM SILVIA
4.1.1 Resumo
Silvia é uma mulher de 42 anos, tem 5 filhos que provêm de dois
relacionamentos diferentes, sendo 3 meninos e 2 meninas. Possui a 7º série
incompleta, é diarista e atualmente é presidente da ONG/AIDS na qual trabalha. Ela é
portadora do vírus HIV há 14 anos e hoje já apresenta quadros de doenças
oportunistas, sendo doente de AIDS. Ela se infectou via relação sexual com seu marido.
Ele era alcoolista e já havia usado drogas. Denis, seu marido, não sabia que era
portador, veio descobrir juntamente com Silvia quando ele próprio ficou doente
exatamente como seu primeiro filho já havia estado doente e faleceu. Este filho
começou a adoecer com 1 ano e 2 meses, sentia dores, tinha diarréia, candidíase,
estomatite e teve 5 pneumonias. Ele era levado ao médico mas ninguém descobria o
que ele tinha, até que ele veio a falecer.
Depois de 1 ano, Denis começou a ficar doente. Perdia peso
rapidamente, assim como Luiz, seu filho falecido. Foi então que um médico prestou
atenção em Denis e fez a sorologia para HIV. O resultado veio positivo. Silvia e Alex,
então filho mais novo e ainda bebê, foram aconselhados a fazer o teste também.
Ambos deram positivo. O descobrimento da sorologia dos três ocorreu no dia 24 de
novembro de 1994, Denis morreu em 10 de maio de 1995, 6 meses depois. Foi ai que
Silvia diz ‘ter caído a ficha’. Até então ela estava ocupada cuidando de seu marido e
seu filho e não tinha pensado em sua própria sorologia ou o que aquela doença
significava. No enterro de Denis é que ela viu que a coisa era real, como ela mesma
disse, se Denis morreu em 6 meses, porque eu não ia morrer em 1 ano?, como a
médica tinha falado para ela.
Como Alex ainda era bebê, ele estava sendo amamentado. Por isso,
Silvia descobriu que tinha diminuído as chances do seu filho negativar a 1%. O fato dela
ter sido a principal via pela qual seu filho foi infectado foi a pior coisa, segundo ela. Ela
tinha tanto orgulho de estar amamentando e, no entanto, esse ato o teria prejudicado.
Silvia pensou que teria que passar de novo por tudo que já havia vivido com Luiz. A
consciência da morte foi extremamente difícil de encarar. Muitas questões passaram
por sua cabeça, como: porque com ela já que ela nunca tinha usado drogas, se nunca
foi profissional do sexo, se nunca tinha feito nada de errado que justificasse tamanho
castigo. Na época as pessoas achavam que Denis era o grande vilão e ela era a vítima,
esta idéia a incomodava. Ela não o considera culpado porque ele não sabia de sua
soropositividade. A AIDS não era tão comentada em seu início, não havia trabalhos
divulgados de prevenção.
Outra questão que marcou sua vida foi o fato de Denis ter ido doar
sangue no Hospital, antes mesmo que tudo isso acontecesse. Silvia diz que ele já tinha,
então, uma sorologia positiva, mas ninguém os avisou. Eles só ficaram sabendo
quando Denis foi internado. Se esse fato tivesse sido comunicado para eles na época, a
vida de Luiz poderia ter sido salva.
Assim que Silvia soube da sorologia de Alex, ela passou a tratá-lo,
sempre rezando e pedindo a Deus que o poupasse, que permitisse que ele pudesse
negativar sua sorologia. Aos 2 anos de idade ele negativou, hoje ele já tem 12 anos e
Silvia o considera um vencedor.
A primeira pessoa que ficou sabendo da sorologia da Silvia foi sua
patroa Roberta, para quem ela trabalhava como diarista na época. Silvia tem muito
carinho por esta pessoa porque ela acompanhou toda a sua trajetória quando o Denis
ficou doente. Quando Silvia comentou que era soropositiva e começou a falar sobre
isso com Roberta, ela passou a apresentar os mesmos sintomas de quem tem AIDS,
sem ter a doença. Tudo psicológico. Isso porque ela tinha muitos parceiros e não se
prevenia. Então, ela falou para Silvia que ela não poderia mais trabalhar ali porque vê-la
representava tudo aquilo que ela tinha medo. Foi assim que Silvia deixou de trabalhar
na casa de Roberta.
Depois da patroa foi a vez dos filhos mais velhos saberem. Esses filhos
mais velhos foram fruto do primeiro relacionamento de Silvia, anterior ao Denis. Depois
ela contou para os irmãos e a mãe. Mas tudo isso só foi esclarecido depois que Silvia
havia conseguido falar para ela mesma que era soropositiva. Ela diz que levou um
tempo até que ela conseguisse se olhar no espelho e não chorar. Mas quando isso
aconteceu ela fez um almoço para toda a família, e quando foi servir a sobremesa ela
mostrou o teste positivo e foi lavar louça. Silvia disse que todos ficaram ‘passados’. A
mãe de Silvia, já falecida, telefonava a cada 2 dias para saber se estava tudo bem. Ela
se preocupava muito, não só ela, os filhos de Silvia também. Ela comenta que se ela
espirrar eles já ficam apreensivos. Essa preocupação da família com ela a faz sofrer,
ela pensa que eles não deviam passar por isso. Então, Silvia evita falar o que de fato
acontece com a sua saúde porque ela não quer preocupá-los ainda mais. Ela diz que
quando chegar a hora dela morrer ai sim, eles poderão se preocupar, mas não com
antecedência, sofrendo um pouco a cada dia. E dessa forma, ela trilha seu caminho se
colocando a todo momento como cuidadora e nunca como alguém que pode ser alvo
de cuidado.
Para o seu pai ela não contou nada, Silvia sempre teve uma relação
difícil com ele. Hoje ele mora com Silvia. Ela cuida dele porque ele está tendo morte
cerebral, precisa que façam tudo por ele. Ela diz que está podendo fazer por ele o que
um dia ele fez por ela. O que dificultou sua relação com o pai foi o fato de ambos serem
muito parecidos, terem personalidades muito fortes. Silvia nunca quis fazer o que lhe
era determinado pelo pai. Ele pedia que ela fizesse bordado, costura, limpasse, essas
‘coisas de mulher’. Já ela gostava de ‘coisas de menino’: jogar bolinha de gude, soltar
pipa, jogar bola queimada na rua. Ela se lembra que um dia seu pai pegou as 1000
bolinhas de gude que ela tinha e jogou todas fora. Isso foi a morte para ela. Silvia
sempre foi uma pessoa que gostava de barulho, música, e isso não condizia com o que
seu pai esperava dela. Tais fatos foram fazendo com que ambos se afastassem. Hoje,
cuidando dele, ela pensa que entendeu o porquê dele ser como era, ele jamais poderia
dar o que ele não teve. Ela aproveita esse tempo que está tendo ao lado do pai para
perdoar e perdoar-se, muitas coisas ficaram entaladas na garganta e devem ser
digeridas.
Sua doença tornou-se pública em 1996 quando ela começou a militar.
Foi uma fase muito complicada, tanto para ela como para seus filhos que enfrentaram
dificuldades, principalmente, na escola, onde ficaram conhecidos como os ‘filhos da
aidética’. Colocar o Alex na creche foi um sacrifício. Tudo porque Silvia havia aparecido
na televisão, em meio a uma passeata, reivindicando, juntamente com outras pessoas
soropositivas, os remédios que precisava tomar (o coquetel recém divulgado) e que o
município tinha a obrigação de fornecer.
Ela participava da Associação dos Moradores onde residia e gostava de
ajudá-los em campanhas fazendo espetinhos. O presidente da Associação tinha que ir
a noite à sua casa para levar os espetinhos. Ela passava a madrugada cozinhando,
isso para que as pessoas não descobrissem que ela fez a comida, porque se
descobrissem não comiam. No ônibus que Silvia pegava para ir e voltar do trabalho,
ninguém sentava ao seu lado. Ela acabou perdendo o emprego. Passou por
dificuldades financeiras. Até que a ONG da qual hoje é presidente, ofereceu a ela um
emprego de faxineira. Ela aceitou. E foi assim que ela conseguiu ir vivendo. Um dia
após o outro.
Seu primeiro contato com a ONG foi quando seu marido, Denis, tentou
se matar após saber do seu diagnóstico. Esta ONG tinha psicólogos e Silvia foi pedir a
ajuda deles. Segundo ela, esta instituição garantiu o mínimo de dignidade para ela
quando tudo estava difícil em sua vida. Lá ela encontrou um ponto de apoio. Daí em
diante ela não saiu mais de lá. Estava sempre participando de oficinas, terapias de
grupo, conhecendo pessoas que enfrentavam situações como a dela. Ela fundou uma
outra ONG que mais tarde se fundiu com esta. Hoje ela é presidente da Organização
Não Governamental. Inicialmente, esta Organização era composta de pessoas não
soropositivas. Hoje, em sua grande maioria, as pessoas integrantes são soropositivas.
Silvia diz que eles assumiram um protagonismo, deixaram de ser ajudados para ajudar.
Essa mudança de posição fez toda a diferença para ela e o restante dos integrantes.
Reverteu o quadro de dependência. Fez ver que é possível a inclusão.
Foi uma época em que ela e seus filhos precisaram ficar muito unidos,
e ainda hoje o são. Silvia comenta que ela ganhou muito em termos de relacionamento
com seus filhos após a AIDS. Eles têm conversas mais francas e assíduas sobre
qualquer coisa. Eles passaram a ser mais responsáveis, pois começaram a ajudá-la em
todas as tarefas domésticas, e Silvia passou a respeitá-los mais enquanto seres
humanos. Eles vivem o aqui e agora. Ela pensava que já que não estaria ali para
sempre, eles deveriam aprender a viver por si. De uma mãe superprotetora, ela passou
a delegar responsabilidades para que seus filhos amadurecessem e para que ela
pudesse se tranqüilizar sabendo que no dia de sua ausência, eles, mesmo assim,
saberiam agir por si só. Tal fato contribuiu, também, para que seus filhos estreitassem
seus laços consigo próprios.
Hoje ela lida melhor com sua doença. Ela diz que parou de perguntar o
porquê? e passou a perguntar-se pra que? E assim ela pode ver um sentido em tudo o
que estava fazendo. Todos os dias são um evento para ela. Sua atuação dentro da
ONG contribui para que seus dias sejam especiais. Ela desenvolve um trabalho
comunitário envolvendo prevenção à DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e à
violência. É um trabalho do qual ela se orgulha muito e no qual ela se sente útil.
Foi com a invenção do coquetel que Silvia reacendeu sua alegria. Ela
viu uma possibilidade de cura. Então, ela procurou saber como fazia para conseguir a
receita do remédio. Uma médica disse a ela que para ter a receita ela precisava do
exame de CD4. Silvia nem sabia o que era isso, mas marcou a consulta para pedir o
exame. Porém, este exame também era muito caro e o município não pagaria apenas
para uma pessoa. Um profissional do Posto de Saúde disse a ela que se tivesse mais
gente pedindo este exame daria para baratear o seu custo. Foi assim que Silvia passou
o dia inteiro na frente do consultório da médica pedindo para cada um que entrava pedir
o exame de CD4, as pessoas não sabiam o que era, mas pediram. No final do dia, eram
16 pedidos. Todos fizeram o exame de graça. Com o resultado do CD4 na mão, a
médica deu a receita do coquetel para Silvia. Ela fez uma promoção de pizza e
comprou o remédio. No entanto, ela havia conhecido uma porção de pessoas que não
poderiam comprar o remédio, e não dava para fazer promoção de pizza todas as vezes
que o remédio acabasse.
Foi então que ela começou a procurar vereadores que pudessem ajudá-
la. Em uma ida à prefeitura, sem sucesso, ela encontrou um livro da Constituição e leu
a parte que fala de saúde: “saúde dever do Estado e direito do cidadão”. E isso virou
sua bíblia. Juntamente com as outras pessoas que Silvia havia conhecido, fizeram um
movimento na cidade reivindicando seus direitos. Foi quando Silvia foi entrevistada e
apareceu na televisão. No dia seguinte haveria uma reunião do Conselho de Saúde do
Município. Silvia comprou uma VEJA na qual havia sido publicada uma matéria sobre a
AIDS, explicando todo o processo da doença, ela leu e aprendeu o que devia saber
sobre isso em 3 dias. Novamente os soropositivos se uniram e prenderam todos os
Conselheiros de Saúde em uma sala até que fossem ouvidos. Silvia foi a escolhida para
falar com eles. E assim, conseguiram a medicação de que precisavam.
A percepção de que ela não era eterna, segundo Silvia, foi um grande
ganho. Fez com que ela enxergasse os fatos da vida com outros olhos. Outro ganho
apontado por ela são suas rugas, elas representam o tempo. O tempo que ainda se
está vivendo. Antes ela pensava que não passaria dos 29 anos, hoje ela já tem 42. E
continua vivendo. Silvia tem menos medo da morte hoje, foram se passando os anos e
o medo foi diminuindo, sua mãe foi, ela ficou, e assim vai. Quando seu filho caçula lhe
pergunta se ela vai morrer, ela diz que sim, mas não porque tem AIDS e sim porque
tem vida. A doença passou de uma sentença de morte para o surgimento de
possibilidades que ela provavelmente não teria se não fosse a AIDS. Ela tem uma
visibilidade muito grande no município em relação às questões vinculadas a essa
epidemia, e até nacionalmente falando.
No entanto, ela também perdeu. Perdeu um filho. Perdeu seu marido.
Perdeu a inocência. Inocência de acreditar nas pessoas, nos políticos, no sistema, de
acreditar que um dia o sistema vai melhorar. Hoje ela procura modificar a realidade de
uma comunidade na zona norte do município, já que a Nação mostrou-se avessa a
mudanças. Então ela foi para um lugar menor, uma coisa de cada vez. Um dia de cada
vez.
Seus pensamentos estão ampliados. Silvia não pensa exclusivamente
na AIDS. Existem pessoas que sofrem de outras doenças tão importantes quanto,
necessitando de atenção. Existem problemas sociais muito sérios também. E ela
procura fazer a sua parte. Não só os soropositivos deveriam ser atendidos em seus
direitos, mas toda a população.
Hoje Silvia tem muitos planos para o futuro dentro da Organização. Ela
quer ver uma ONG horizontalizada, que esteja disponível a todos. Ela quer expandir
seus pensamentos e poder dar a outros uma oportunidade de melhorar suas vidas, de
transformá-las. Silvia acredita que se as pessoas têm a informação correta, então elas
poderão refletir e escolher, ser responsável por suas vidas. Ela não pensa em uma
imposição, mas em um trabalho que possa lhe trazer frutos. Um trabalho que quando
ela se for, valha a pena ser lembrado e continuado. Algo que não seja esquecido.
No final da nossa entrevista ela faz um retrospecto de sua vida.
Novamente ela fala de Denis que parece ter sido o grande amor de sua vida, já que ela
não faz nenhum comentário a respeito do outro parceiro. Ela namorou Denis, ele foi o
seu primeiro namorado, mas havia se casado com outro. Até que um dia ela se
separou, reencontrou Denis e eles puderam ficar juntos. Hoje ela está sozinha por
opção e diz que não tem tempo de ficar deprimida ou triste. Sua vida teve de tudo,
desde grandes alegrias a grandes tristezas e desafios.
Dentro de mais cinco anos, que é o que Silvia espera viver, ela
pretende concluir seu trabalho na comunidade onde atua e ver seus filhos maduros,
cada um cuidando de sua vida. Mais ainda, ela gostaria de morrer de uma morte rápida
e sem sofrimento, porque ela já viu muitas pessoas morrerem de AIDS aos poucos e
ela acha sofrido demais, não só para ela, mas para seus filhos tamm. Nesse ponto
ela gostaria de ter o mesmo destino de sua mãe, que morreu de um enfarto fulminante.
4.1.2 Análise
Ao se descobrir soropositiva juntamente com seu marido e filho mais
novo, Alex, Silvia ainda estava muito ocupada cuidando deles. Ela não tinha chance de
pensar nela mesma ou no que significava esta doença para sua vida. Só quando ela
enterrou o Denis é que ela se deu conta da gravidade da enfermidade. Foi neste
momento de perda intensa, não só pelo Denis, mas tamm pela lembrança de seu
filho Luiz, que Silvia chorou pela primeira vez, depois de seu diagnóstico:
Então quando enterrei ele, a ficha caiu (...). Então a primeira vez que
eu chorei, quebrei muito copo jogando numa parede que eu tinha né,
um paredão, colei no chão de dor e de desespero... foi depois que eu
enterrei o meu marido, que eu vi que a coisa era real. Ele tinha morrido
em 6 meses, por que eu não morreria em 1 ano?
Através da finitude do outro, Silvia pôde se dar conta de sua própria
finitude (CABAS, 1982). Todo o investimento direcionado para Denis durante os meses
em que ele esteve doente retornou para Silvia, fazendo-a perceber que existia um fim.
Nesta fase inicial de seu enfrentamento em relação a AIDS, Silvia saiu de uma relação
de objeto para uma relação narcísica secundária, fazendo ai uma marca definitiva.
Aquela doença tinha marcado um tempo para ela.
Por intermédio do outro que se constrói o narcisismo. Ele é constituído,
portanto, de fora para dentro. Isso porque o bebê não possui aparatos biológicos e
psicológicos suficientes para se auto-definir, então, ele vai internalizando o mundo ao
seu redor e fazendo desse mundo o seu próprio (CABAS, 1982). Primeiramente, este
outro é a mãe, mais tarde, a mãe é substituída por outras pessoas. Na escolha de um
parceiro, ou seja, de um objeto, o sujeito se utiliza do seu objeto interno construído a
partir do outro. Então, ao perder Denis, seu objeto amado e projetado do seu
narcisismo, Silvia perdeu-se a si mesma. O desespero aconteceu pelo luto sofrido com
a perda, um luto que chora a perda do objeto amado que tamm é um objeto
narcísico, portanto, faz-se a marca no narcisismo.
Se houve a perda de objeto, a pulsão ficou sem uma identificação para
expressar-se, e ela só pode se manifestar através de uma identificação. Toda a carga
pulsional de perda de objeto e, por isso, pulsão de morte, voltou-se para a Silvia e, pelo
que podemos observar de sua história de vida, transformou-se no seu contrário, que é a
pulsão de vida que a motivou a seguir em frente (CABAS, 1982).
No entanto, obedecendo à lei do dualismo pulsional, onde num mesmo
objeto pode haver duas pulsões discordantes entre si, a presença da morte em seu
discurso é constante e parece nortear todas as suas atitudes dali em diante (FREUD,
1969d). Porém, a todo o momento, a pulsão de morte está sendo transformada para
uma pulsão pela vida.
Sua noção temporal foi totalmente modificada. Ela tomou consciência
de seus limites. Eles não são apenas uma categoria simbólica, eles existem no real.
Mas não sem sofrimento, muito pelo contrário.
(...) a finitude da vida ser descoberta é muito triste né. A doença
também me remeteu a morte do meu filho, a culpa de ter passado AIDS
pro meu filho né. É... o questionamento do por que comigo se eu não
tinha sido uma pessoa ruim, porque que eu tava recebendo esse
castigo.
Apesar da tristeza ao reconhecer seus limites de mortal, esse mesmo
reconhecimento fez parte de um ganho na vida de Silvia, como ela mesma aponta.
Eu acho que... você perceber que não é eterno (pausa) isso foi um
ganho.
Kübler-Ross (1988) tamm escreveu a respeito de seus pacientes
doentes de AIDS, dizendo o quanto alguns achavam que sua enfermidade apresentou
determinados ganhos em suas vidas. Houve um paciente que disse que a AIDS
possibilitou que ele amasse a si mesmo. Uma doença terminal, como a própria pessoa
definiu, tornou-se sua maior bênção.
Ao mesmo tempo em que foi uma experiência difícil para Silvia
enxergar-se mortal, tal sentimento transformou-se em um ganho, obedecendo à
ambivalência das pulsões. E o momento em que este processo de transformação pode
ter ocorrido é demonstrado por ela.
E realmente foi difícil pra mim isso, a consciência da morte, a pergunta
por que comigo se eu nunca usei droga, se nunca fui profissional do
sexo, se eu nunca tinha feito nada de errado assim pra ter um castigo
desse tamanho! Então porque, porque, porque me martirizou muito né.
Hoje já não é mais assim porque eu mudei a pergunta né, de por quê?
Pra que?. Ai ‘pra que’ fica mais cil né.
... eu consegui passar... por tudo isso né, eu consegui fazer um
sentamento, eu mudei. De por quê? Pra que? Vi um sentido em tudo
aquilo que eu tava fazendo.
A partir deste ponto, tudo o que ela faz está intrinsecamente
relacionado com essa nova concepção de si. Na incerteza do tempo que lhe resta, mas
pensando sim que ele está determinado, Silvia passa a viver o presente de forma mais
intensa.
... eu aprendi a viver o aqui e agora com eles (filhos), criança vive muito
o aqui e agora, sabe. (...) se eu fosse pra sempre, nossa! Ia ter muito
tempo pra fazer as coisas, mas como eu não sou pra sempre, eu tenho
pressa em fazer as coisas...
Assim, ao se deparar com a castração no real, sua vida precisava de
um novo sentido, já que a base na qual ela havia sido construída era fantasticamente
incoerente. As fantasias de onipotência tão próprias do narcisismo tiveram que ser
reorganizadas de forma a abarcar esta nova marca que Silvia trazia consigo. Pela
angústia de castração, o tempo passa a ser uma questão importante para ela (CABAS,
1982).
Percebemos, também, que Silvia passou pelas fases descritas por
Kübler-Ross (1977). Do choque inicial com a doença, da tristeza com as perdas
conseqüentes, ela chegou na aceitação da mesma, tornando-a uma nova possibilidade
de ação.
O sistema de símbolos culturais e individuais contribui para que o
indivíduo viva em sociedade. Quando ocorre uma doença, tais sistemas são utilizados
para interpretá-la, assim, o indivíduo atualiza esses sistemas (RODRIGUES; CAROSO,
1998). Ele precisa de uma nova produção de sentido para restabelecer a conexão entre
suas vivências e a função simbólica que o constituiu, ou seja, é através da simbolização
da imagem vivida que o sentido se produzirá. Portanto, é mediante o fantasma
decorrente da experiência da enfermidade que os acontecimentos externos poderão se
internalizar. Novas fantasias, uma nova história, um novo mito, novas construções
simbólicas em um sujeito renovado. Dessa forma, o sujeito não está se ajustando ao
externo, mas o ressignificando.
Esse processo de ressignificação está ligado ao processo simbólico. O
simbólico se constrói no sujeito pelo outro, o outro é que vai mostrando ao indivíduo
quais os códigos necessários para que ele sobreviva. Essa operação realizada através
do outro afeta o sujeito de três formas: pela identificação, pelo investimento libidinal e
por um modelo que é mostrado para ser seguido (CABAS, 1982). É dessa forma que o
sujeito passa a compreender o mundo ao seu redor e investir nele. Então, quando
acontece desse outro não mais existir, a identificação que estava ali e seu investimento
retornam para o sujeito e ficam a espera de um novo modelo de expressão; porque a
pulsão não pára, ela está sempre em busca de um objeto para satisfazer-se. Por isso,
esse processo de transformação vivido por Silvia, saindo da pulsão de morte e
voltando-se para a pulsão de vida, está relacionado diretamente com sua função
simbólica, uma vez que são os seus componentes que são afetados pelo conhecimento
da enfermidade.
O símbolo é a representação de uma ausência e o reconhecimento da
própria morte parece se encaixar nessa definição. Não sabemos definir a morte, apenas
a representamos porque esse significante nos falta. Quando a cadeia simbólica é
abalada por uma nova experiência que impede que as fantasias existentes até então
permaneçam, surge um vazio que pode dar lugar a um desejo, desejo de vida. É
necessária uma carência simbólica, no caso, uma morte simbólica de si, para que o
sujeito possa desejar. É então que, mais uma vez, pela falta, o sujeito pode reconstituir-
se em sujeito de desejo e objeto do desejo do outro, tornando-se um sujeito de
relações. Isso porque, como sua fantasia de onipotência foi abalada, como ele não é
um ser completo e sem limites, tendo essa nova concepção de si, o sujeito consegue
voltar-se para o outro com outros olhos, dando-lhe maior importância em sua vida,
estreitando laços familiares, tornando o outro mais próximo.
... a gente conseguiu ter assim uma (pausa) nossa convivência de mãe
e filhos mudou muito, nossa! Ganhou muito, muito mesmo! (...) eu
comecei a perceber que eu não era imortal né, e que eles iam ter que
viver sem mim nesse mundo sabe, e ai ensinar pra eles assim que eles
iam ter que fazer suas próprias escolhas.
A entrada desse outro na nova experiência de vida de Silvia só foi
possível após ela ter elaborado essa situação para ela mesma, após ela ter
compreendido o que era a doença para ela restabelecendo seu narcisismo.
Eu trabalhava na época com a Roberta, que eu amo essa mulher até
hoje, eno, ela acompanhou meu processo todo né, ela foi a primeira
pessoa que ficou sabendo, foi essa minha patroa (...). Depois, é...
precisei contar pros meus filhos mais velhos, pra minha mãe, pro meu
irmão, né. Mas eu só contei pra eles depois que eu tinha contado pra
mim. Enquanto eu não consegui falar prum espelho assim: Silvia você
tem AIDS e não vai morrer, porque naquele tempo eu não entendia a
diferença entre soropositivo e AIDS (pausa) é... e não chorar né
(pausa) eu não contei.
Desde o dia em que se soube soropositiva, ela precisou lutar muito por
sua vida. O surgimento do remédio foi um grande marco que parece ter contribuído
para que Silvia pudesse contrabalançar a existência da morte com a esperança.
E... eu... tinha determinado ali naquele momento que eu não ia morrer!
Não! Se tinha remédio eu não ia morrer. De jeito nenhum ia! Então
assim, foi uma coisa muito fantástica, porque aquela decisão que eu
tomei naquela noite, cê tá entendendo? Mobilizou o resto da minha vida
né.
Este foi o primeiro passo para que Silvia conseguisse se voltar para a
vida. Uma vez internalizada a nova experiência em novos moldes simbólicos, o
investimento libidinal existente em Silvia foi direcionado para sua sobrevivência, para a
busca por novos objetos que comportassem sua nova constituição. Foi lutando pela
vida do outro, e cuidando do outro, que Silvia engajou-se na militância. Mas ao lutar
pelo outro, como já dito, luta-se por si mesmo. No dia em que ocorreu a passeata dos
soropositivos, Silvia deu uma entrevista onde ela pôde assumir-se enquanto sujeito:
E nesse dia eu dei uma entrevista, eu lembro que o cara queria me
filmar de costas, eu falei não, a minha bunda tem mais credibilidade que
o meu rosto né? (...) as pessoas têm que entender que eu sou uma
pessoa comum e que eu quero é defender a minha vida, e se tem a
possibilidade eu vou defender. E foi quando eu sai pela primeira vez na
imprensa.
Daí em diante Silvia não parou mais. Ela ingressou na ONG e passou a
atuar e reivindicar por direitos. A ONG pode ter sido o resultado encontrado por Silvia,
enquanto sujeito, para reconstituir sua função simbólica, já que é pelo outro que ela se
estrutura. A instituição seria o reflexo dessa nova estruturação, o lugar onde o sujeito
pôde identificar-se e investir sua libido. Como uma grande família onde se encontra o
suporte necessário para crescer.
Então o que a ONG significa pra mim é isso, é a possibilidade... de
desenvolver os meus pensamentos, as coisas que eu acredito... é...
dentro da comunidade onde atuo, não impondo porque eu não sou de
impor nada pra ninguém né, mas de com muito trabalho a gente
consegue transformar a vida das pessoas.
Além disso, é o apoio de várias pessoas em torno de um mesmo ideal,
como se vê em ONGs, que contribui para que o indivíduo enfrente este momento de
doença com maior controle sobre sua vida, lutando por seus direitos e pelos direitos
dos outros ao seu redor (ADAM; HERZLICH, 2001).
Tendo a visibilidade social dentro da ONG, Silvia está substituindo seu
narcisismo machucado em sua essência por um ideal de ego, que como o próprio nome
já indica, é o sujeito ideal, dos sonhos. Esse ideal advém da própria doença, quando ela
diz que a AIDS significa todas as possibilidades que ela nunca teve e hoje tem. E é na
ONG que ela projeta este ideal. Já o ego atual, responsável pela lembrança da
castração, está sempre a afirmar uma falta (CABAS, 1982).
O que seu discurso indica é que não foi sem trabalho que ela conseguiu
transformar sua própria vida, e que a ONG, em si, foi uma possibilidade de desenvolver
coisas que ela nunca tinha sonhado antes, coisas que só foram possíveis depois da
AIDS e por conta dela. Hoje sua vida anda agitada com suas tarefas de mãe e militante.
E parece estar valendo a pena, apesar de tudo.
A vida pra mim é barulho!
Passa tudo por ela, desde grandes alegrias a muita tristeza, percas,
grandes conquistas, e ... eu sou um ser humano feliz, (...), muito feliz,
apesar de tudo eu sou feliz, e acho que é uma coisa que é minha, que
tá dentro de mim sabe assim, eu não tenho tempo pra ficar deprimida,
eu não tenho tempo pra ficar triste (...) porque (pausa) eu... eu tive
muito sabe, da onde eu vim e como eu era, eu tive muito...
A partir do diagnóstico, Silvia se apropria de seu destino fazendo com
que da morte iminente, a AIDS passasse a ser uma possibilidade de vida.
4.2
ENTREVISTA REALIZADA COM LUCAS
4.2.1 Resumo
Lucas é um jovem homossexual de 38 anos, com o 2º grau completo e
que entrou algumas vezes na universidade mas não conseguiu ficar, não se sentia
acolhido em suas necessidades pelo ensino superior. Lucas se considera um consultor
e educador social. Suas atividades sempre estiveram voltadas para a área da
comunicação e artes cênicas, então, ele se utiliza desses conhecimentos para ministrar
dinâmicas de grupo e processos educativos. Faz 10 anos que ele convive com o HIV e,
segundo seu depoimento, sua infecção ocorreu no dia 21 de dezembro de 1995. Lucas
comenta que se recorda bem desta data, que ela foi muito marcante, era sua 8º
sorologia. Como algumas vezes ele não se protegia ao ter relações sexuais com seus
parceiros ele mantinha a prática de fazer o teste para o HIV como forma de se
monitorar.
Apesar da consciência do risco que corria ao submeter-se ao sexo sem
camisinha, Lucas comenta que sua concepção da AIDS era bastante mitificada, como
se divulgava a AIDS na época, ou seja, ele pensava que a doença tinha ‘cara’, que de
acordo com a aparência física da pessoa daria para saber se ela era ou não doente. Ele
ainda não entendia a questão de ser portador da doença e de ser doente, que muitas
vezes faz a diferença na aparência. Não havia a noção de que uma pessoa infectada
poderia aparentar estar tão bem quanto outra pessoa qualquer.
Lucas tinha uma amiga trabalhando em um ambulatório com pessoas
que faziam o teste para o HIV, ela fazia aconselhamento pré e pós teste. Numa dessas
vezes, ela pediu que Lucas a ajudasse no sentido de observar se ela estava sendo
clara com as pessoas. No intuito de ajudá-la a coordenar o grupo de pessoas que
fariam o teste, Lucas se prontificou a fazer o teste primeiro. E foi esta a sua 8º
sorologia.
Em relação às suas práticas de risco (sexo sem proteção), Lucas
comenta que as mantinha porque não via possibilidade de ser infectado, ele pensava
que a AIDS estava muito distante. Não havia muitas informações sobre a doença na
época e ele mesmo não buscava por elas.
A sensação que ele teve ao descobrir-se soropositivo foi a sensação de
o terem despido. Todos os sentimentos conflitantes que ele pensava já estarem mais
organizados dentro dele, voltaram à tona. E a simbologia da morte fez-se presente. Seu
primeiro pensamento foi de não contar nada pra ninguém, e seu maior medo foi o de
nunca mais poder namorar. O fato de não contar a ninguém fez com que Lucas se
sentisse muito sozinho, uma solidão enorme, que vinha de um sentimento de culpa. Ele
voltou a se questionar a respeito de sua sexualidade. Como seria se ele fosse
heterossexual, ou um pouco mais ‘normal’ em suas práticas sexuais, como ele mesmo
apontou. Essas eram questões já pensadas no passado e tidas como resolvidas,
porém, a sorologia positiva deu uma bagunçada em suas certezas. Sua vontade era
sumir, não ser notado, simplesmente desaparecer.
Lucas já tinha contato com a ONG na qual atua hoje em dia através de
seus trabalhos voltados para a arte e comunicação, ele prestava alguns serviços para
esta ONG. Foi por este contato prévio que Lucas teve acesso a informações sobre a
doença. Após 7 meses de completo silêncio, ele procurou por Cadernos do Pela Vidda
4
dentro desta ONG, passou a buscar informões não só da doença em si, mas de como
se proteger para que os efeitos da AIDS pudessem ser amenizados, que tipo de
alimentação ele deveria ter, que tipo de práticas deveriam começar a fazer parte da sua
vida. Deste momento em diante, proteger seu sistema imunológico tornou-se uma tarefa
fundamental. Através da busca por conhecimento, Lucas acreditava poder continuar na
gerência de sua vida.
No decorrer desses 7 meses de silêncio, a única pessoa para a qual
Lucas contou sua situação foi seu namorado. Eles estavam completando 6 meses de
namoro na época e estão juntos até hoje. Após algum tempo de namoro, Lucas e seu
parceiro haviam abolido o uso de camisinha, portanto, a possibilidade de que Pedro
tamm estivesse infectado era real. Depois de feito o teste, foi confirmada tamm a
sua sorologia positiva. Foi com Pedro que Lucas dividiu todos os seus medos. Sua
4
Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de AIDS, por isso, Pela Vidda. Instituição sem fins lucrativos
que realiza ações baseadas no trabalho voluntário e na solidariedade. Entre suas atividades está a elaboração e
distribuição gratuita de boletins informativos, como os Cadernos Pela Vidda.
relação com Pedro se estreitou, para Pedro pouco importava se ele havia passado a
doença para Lucas ou vice-versa, eles se gostavam e deveriam ficar juntos
independentemente da sorologia positiva.
Nessa época, ambos estavam em outra cidade em busca de melhores
empregos. Com o descobrimento da sorologia, eles voltaram para a cidade onde
nasceram e cresceram e para a ONG com a qual já haviam tido contato. Essa volta se
deu quando Lucas resolveu enfrentar sua enfermidade. Foi nesta ONG que Lucas
passou a absorver todas as informações disponíveis sobre a AIDS. Foi ali que Lucas
criou o hábito de proteger seu sistema imune a qualquer preço, sempre lendo as
novidades que vinham de vários cantos do Brasil e do mundo.
Na ONG ele passou a conviver com outras pessoas que enfrentavam a
mesma situação, e assim ele pode trocar idéias e ir tornando sua positividade menos
nebulosa, foi amenizando a sensação de paralisação, de morte, da paranóia de que
mesmo que ele não tivesse contado para ninguém, estava todo mundo sabendo. Com
este grupo de pessoas ele pôde questionar quais seriam as mudanças no seu corpo,
quando elas ocorreriam, como ele podia se preparar para isso. Era uma preocupação
dele, e ainda é, não ficar dependente fisicamente de outra pessoa, perder sua
autonomia.
Nessa volta para a cidade natal de ambos, eles viveram por 2 anos na
casa dos pais de Lucas. Os dois iam juntos para a ONG, buscavam informações,
traziam material para casa. E o pessoal da sua casa vendo toda aquela movimentação.
Lucas vivia indo para reuniões do Conselho de Saúde, trabalhava ativamente na ONG.
Foi então que, depois de fortalecido por todas as informações que ele havia conseguido
absorver, num almoço de Domingo, com toda a família reunida, ele contou o seu
diagnóstico.
Sua preocupação em contar para a família incluía tamm o fato de que
dali em diante ele seria uma figura pública por conta de sua militância, então ele queria
advertir sua família sobre a possibilidade de outras pessoas virem procurá-lo, dele
aparecer na TV; e tamm falar que ele não iria parar, que ele continuaria com este
trabalho por acreditar que a única possibilidade de garantir um mínimo de qualidade de
vida era através da militância. A família ficou bastante abalada, num clima de
desconhecimento, de morte, de impotência, mas conforme Lucas ia explicando a
doença, mostrando revistas sobre ela, mostrando que já havia um movimento bem forte
de pessoas que lutavam contra a AIDS e a discriminação, sua família foi digerindo a
idéia.
Por meio da luta por medicamentos, da militância, havia certa sensação
de controle sobre a infecção, e para além dessa sensação, o fato de conhecer cada vez
mais sobre a doença e de torná-la pública, foi dando uma habilidade profissional muito
grande, habilidade para ministrar palestras, sensibilizar grupos, escrever projetos para
financiadoras, trabalhar com populações mais vulneráveis; o que deu uma sensação de
segurança muito grande.
Outra segurança foi o apoio de sua família que, para Lucas, sempre foi
seu oásis. Lucas sempre teve o suporte de sua família em suas escolhas, ele saiu de
casa apenas aos 30 anos, então ele sempre teve uma boa convivência familiar. Aos 12
anos de idade Lucas já começava a falar com sua família sobre sua orientação sexual,
eles sempre trocaram muitas idéias. Ele tem uma família de poucos recursos onde
todos tiveram que começar a trabalhar cedo e sua mãe sempre foi uma mãezona,
deixava sempre tudo pronto, roupa lavada e passada, marmita feita para levar para o
trabalho, enfim, deu o suporte necessário para que os filhos pudessem seguir seus
caminhos. Eles sempre foram muito próximos e são até hoje, sempre se visitam.
Segundo Lucas, houve uma certa tentativa de proteção após a doença,
por exemplo, quando ele disse que sairia de casa para morar com Pedro com mais
privacidade. Sua mãe disse que não havia necessidade, que ele guardasse esse
dinheiro que seria usado para pagar aluguel para outras coisas, para viajar, que era
melhor eles ficarem por ali mesmo. Mas Lucas explicou para sua mãe que eles
gostariam de ter o canto deles e que lutar pela vida não faria mal a ninguém. E então
eles se mudaram.
De uma AIDS que parecia ter marcado um tempo muito curto para se
fazer tudo o que queria, Lucas passou a encarar a doença como uma preocupação
constante mas controlável, ele tem esperanças de que daqui a uns 5 anos os
medicamentos tenham evoluído bastante e quem sabe exista uma vacina. Ele sente
que tem tanta chance de viver mais 10, 20, 30 anos como qualquer outra pessoa, e
pensa que não só a AIDS mata, muitas outras questões estão presentes hoje em dia
em nossas vidas que podem matar. Antes da doença ele dizia ser muito inconseqüente,
‘vivia a vida adoidado’, depois ele passou a se questionar o que ele ainda queria da
vida, desse ciclo. Seu canto, mesmo que alugado, sua privacidade, viajar, conhecer
pessoas, ir a bares... Será que eu preciso disso ainda? Lucas passou a fazer uma
grande seleção daquilo que ainda fazia sentido em sua vida e aquilo que tornara-se
supérfluo. Foi então que mais uma vez ele prestou o vestibular para entrar em uma
universidade, foi cursar Educação Física. Mas, novamente, o mundo do teatro foi mais
sedutor e ele largou a faculdade.
A conseqüência de suas reflexões fez com que Lucas percebesse que
ele não tinha todo o tempo do mundo para realizar seus desejos, ele precisava planejar
e estrategizar sua vida. Apesar de não ter permanecido no ensino superior, Lucas
considera a ONG em que atua sua 2º universidade, uma grande biblioteca de onde
seus conhecimentos vão sendo adquiridos e suas descobertas são propiciadas. Foi
dentro da ONG que suas possibilidades de troca foram ocorrendo. Antigamente ele
utilizava as dependências de uma associação apenas como usuário, hoje em dia ele é
chamado pela associação na qual viveu sua infância para trocar informações com as
pessoas através de palestras. Quando isso aconteceria de outra forma? Para Lucas,
poder gerenciar e ter conhecimento da epidemia de AIDS o possibilitou realizar trocas
com pessoas, aumentou sua rede de comunicação, deu-lhe certo prestígio que antes
não havia.
O reconhecimento de seus limites fez com que Lucas passasse a tratar
o real mais concretamente decidindo mais conscientemente o que fazer, como
prosseguir sua vida, que marcas deixar e que progressos fazer. Além do medo da morte
física, Lucas teme ainda mais a morte civil, aquela que vai isolando o indivíduo da
sociedade.
4.2.2 Análise
Então era aquela questão, achava que a AIDS tinha cara... Bom, e
práticas de risco mesmo porque se colocava em risco várias vezes é
porque não se via em possibilidade de se infectar, achava que era uma
coisa que tava muito distante...
No início da epidemia de AIDS os quadros clínicos observados eram
realmente de pessoas debilitadas pelas doenças oportunistas advindas da baixa no
sistema imunológico. Dessa forma, criaram-se estereótipos da AIDS que persistiram por
muito tempo, e muitos ainda existem. Essa questão de que está na cara quem está ou
não doente faz parte da representação da doença, como exposto por Sontag (1984). E
o fato da doença ser encarada por Lucas como estranha, distante dele mesmo, vai ao
encontro do que Sournia e Ruffie (1984) discorrem em seu livro, que toda doença
estigmatizante é tratada como vinda de outro lugar, um lugar onde o próprio sujeito não
se identifica.
Apesar de não se ver em risco de contrair a AIDS, Lucas submeteu-se
periodicamente ao exame de HIV.
... foi a minha 8º sorologia para o HIV, as anteriores deram todas
negativas, mas com uma série de preocupações com práticas de risco,
algumas vezes não fazer o uso do preservativo ou sexo seguro, eu me
sentia, em dada altura, precisando fazer esses exames pra eu me
monitorar.
Sua fala é marcada pela ambigüidade, uma vez que ele se sentia em
risco, mas não se protegia em todas as suas relações sexuais. Para Freud (1969e), o
sujeito repete tudo aquilo que já passou da fronteira do reprimido para o
comportamento do manifesto, são inibições, atitudes inúteis e traços patológicos de
caráter. Assim, o paciente reproduz o que foi reprimido e não é lembrado, mas atuado.
Pensando nisso, podemos supor que a sexualidade de Lucas, como uma questão na
vida dele, uma vez que esta foi uma das primeiras coisas que ele questionou quando da
sua enfermidade, ainda não estava resolvida. Dizemos sexualidade porque foi através
dela que Lucas se expôs ao risco conscientemente.
Quando Freud (1969b) escreve sobre O Estranho que, no fundo, nos é
familiar, ele coloca esta concepção de estranho próximo ao Complexo de Castração.
Seria a exposição ao risco uma maneira de expor-se à castração no real para não mais
temê-la no simbólico? Por que, afinal, Lucas sabia que estava correndo o risco de
infectar-se com uma doença incurável. Expor-se à castração, a uma doença mortal e
incurável, que o remeteria aos seus limites enquanto sujeito, pode ter sido a forma
encontrada por ele para reafirmar-se ou para transformar “algo assustador em algo
estranho” (FREUD, 1969b, p. 303).
A descoberta de sua infecção despertou questões em sua vida que
Lucas pensava já ter resolvido. A doença fez um corte em sua vida, propiciou-lhe um
novo momento de reflexão, sacudiu suas certezas, como Nietzsche (2000), Freud
(1969f), Kovács (1992) e Kübler-Ross (1977, 1988) apontaram. Saber-se doente
possibilitou que Lucas olhasse para si com outros olhos, podendo, mais uma vez,
trabalhar com seus conteúdos internos afim de ressignificá-los através dessa nova
vivência.
Então é uma sensação enorme de culpa, tamm a minha orientação
sexual acabava me levando nesse tipo de pensamento, e se eu fosse
heterossexual, se eu fosse uma pessoa, vamos dizer, um pouco mais
normal dentro da minha sexualidade, então tudo aquilo que eu pensava
que eu já tinha um pouco mais equilibrado e organizado dentro de mim
veio à tona. E veio à tona assim de uma maneira muito culpabilizante e
realmente até de (pausa) de querer desaparecer.
Lucas sente a angústia de ter que novamente olhar para o espelho e
procurar a si mesmo. Inicialmente, essa vivência da doença trouxe consigo um
sentimento de culpa por ser doente.
... então você quis, você procurou. (...). ... realmente acaba se
infeccionando com esta doença quem quer.
Assim como Sontag (1989) e Klüber-Ross (1988) colocam que a
representação da doença faz do doente um culpado, Lucas viveu na pele esta
experiência. Principalmente, como já alertado por Sontag (1989), pela AIDS ser uma
doença mortal e relacionada à sexualidade, portanto, contrair essa doença através da
prática sexual parece ser mais fruto da vontade, como o próprio Lucas afirmou. Seu
sentimento de culpa pode vir, exatamente, do fato dele pensar que se infectou porque
quis. Aqui, não há um outro para pôr a culpa, apenas ele mesmo. E com isso, não só
seu corpo está condenado fisicamente, como tamm sua sexualidade, pois, ele
mesmo se questiona a respeito da mesma pensando que se fosse heterossexual esta
doença não o teria afetado. Se fosse mais ‘normal’ em suas práticas sexuais ele teria
escapado desse destino de ser soropositivo. A ideologia dominante passada no início
da epidemia aparece fortemente em seus dois discursos anteriores. Só pega a ‘peste
gay’ quem quer. A noção de castigo pelos pecados cometidos está implícita nos
questionamentos de Lucas, como nos alertou Sontag (1984).
Assim, sua construção narcísica foi totalmente abalada pela infecção
não só no sentido de se ver finito, mas também, culpado por sua morte. Seus medos
passavam pela questão da morte anunciada, da solidão, do preconceito e do
questionamento da sua homossexualidade. Sua estrutura simbólica havia sido
confrontada pela vivência de uma enfermidade incurável. Foram necessários 7 meses
de trabalho para que Lucas pudesse vislumbrar outras alternativas de enfrentamento da
doença, diferentes do completo desaparecimento.
No decorrer desses meses, a única pessoa com a qual Lucas podia
compartilhar seus sentimentos foi seu parceiro.
Ele foi a primeira pessoa a saber. Eu me senti naquele momento na
obrigação de mostrar o resultado, porque queira ou não a gente vinha
nos últimos 6 meses trocando muitos fldos corporais, então se eu tava
apresentando a sorologia positiva ele também poderia vir a apresentar.
Então foi com essa pessoa com quem eu dividi todos esses medos,
essas sombras, durante os 7 meses de silêncio.
Ao contar para seu parceiro, ao invés de ser abandonado, Lucas
recebeu todo o apoio necessário e os dois passaram a enfrentar essa situação juntos,
como até hoje. Ambos buscaram cada vez mais informações a respeito da doença na
ONG que Lucas costumava prestar trabalhos. A partir deste ponto, suas idas a ONG
eram constantes, Lucas passou a militar pelas causas da AIDS e através da militância
pôde compreender melhor o que estava acontecendo com ele, como se cuidar e se
preparar para as mudanças no corpo provocadas pela medicação.
Depois do seu namorado e dos 7 meses que se passaram, Lucas
contou o seu diagnóstico para a família. Primeiramente, ele precisava saber mais sobre
a doença, coletar o máximo de informações possíveis para que ele próprio soubesse
que havia alternativas de tratamento que possibilitariam a convivência com a doença,
que havia esperanças e que ele não estava anunciando para si e para a família a
proximidade de sua morte.
... enfim, o assunto naquele momento era tudo isso mas entre eu e ele,
e o pessoal vendo toda essa movimentação. Então assim, essa
construção de conhecimento ela acabou trazendo até a possibilidade de
menos abalado pela questão da sorologia, num almoço de Domingo, a
família toda já reunida numa coisa bastante comum, meus irmãos, meu
pai e minha mãe, moram todos em (nome da cidade) é... aí com ... já se
percebia que eles tinham uma curiosidade do que tava acontecendo né,
porque tanto material, e pra cima e pra baixo, viamos em reunião de
Conselho de Saúde, na época a gente tava querendo que o munipio
disponibilizasse medicamento antiretroviral, o DDI pras pessoas do
munipio, naquela época eram 150 pessoas que já precisavam de
medicação, então toda essa movimentação nossa acabou instigando a
família, que que esses dois tão fazendo, que que eles tão querendo né,
aí até que chegou todo mundo e... vamos dizer mais equilibrado tudo
isso, com menos dúvidas na cabeça, com informões mais
cientificamente formuladas, aí acabei abrindo pra família.
Essa notícia foi um choque muito grande para família, mas Lucas disse
ter explicado o máximo possível tudo o que estava acontecendo. Essa atitude de Lucas
parece ter demonstrado sua preocupação com que todos estivessem bem informados a
fim de que o peso da enfermidade fosse amenizado.
Sua família o apoiou, como sempre. Lucas sempre teve um bom
relacionamento com sua família, o diálogo era constante. Mesmo quando ele percebeu,
aos 12 anos de idade, que era homossexual, sua família o apoiou. Ele chegou a morar
com seu namorado na casa dos pais por dois anos.
Olha, minha família sempre foi assim a minha grande, meu grande
oásis. (...) E a minha família sempre aportou todas as minhas escolhas,
a minha maneira de ser no mundo.
Por esta fala podemos perceber o quanto o suporte de sua família
sempre esteve presente em sua vida e a importância disso para Lucas. O
compartilhamento de sua enfermidade com a família gerou certo sentimento de
proteção por parte de sua mãe, mas nada que Lucas não soubesse contornar. Ainda
hoje, e como sempre, a família de Lucas se reúne em alguns finais de semana.
Apesar da representação da AIDS como sentença de morte próxima
num primeiro momento, hoje em dia, Lucas a encara com maior naturalidade, como
algo que faz parte da vida.
... mas hoje assim... a morte pra mim é mais um elemento dentro desse
ciclo de vida e... quanto eu puder tá prorrogando, ou melhor dizendo,
mantendo um determinado equilíbrio no meu organismo, no meu
sistema imune com o vírus, e não é o vírus que é hoje um dos
grandes danadores dentro da minha saúde, é a questão da seguridade
social, é a questão realmente do eterno desemprego né, tem outros
fatores aí...
... então eu me encho de esperanças o tempo todo e pra mim... hoje...
ela tá muito bem localizada e muito bem colocada, um dia a morte
chegará, como vai chegar pra qualquer outro indiduo, eu tenho tantas
chances de manter pelo menos mais 10, 20, 30 anos de vida aí, e
tomara todos eles com qualidade que é o que eu acredito que todo
mundo deseja né... então, não é mais aquele patamar de medo e de
paúra a até mesmo de se silenciar, é realmente de falar olha, faz parte
de todo ciclo e vai fazer do meu processo, talvez, quase certeza, eu vou
morrer de AIDS, mas também outros fatores aí, já que a vida é tão
perigosa, podem acontecer no meio disso tudo né.
Essa sua busca por equilíbrio não corresponderia exatamente ao
equilíbrio de estímulos, pois tal equilíbrio representaria a morte, mas a prevalência de
sua pulsão de vida sobre a pulsão de morte, como a própria história de vida de Lucas
nos mostra. Uma das formas pelas quais a família pode contribuir para que seu filho
tenha maior pulsão para a vida é o estabelecimento de limites (SOIFER, 1983). Dada a
escolha que Lucas faz pela vida, pode-se dizer que sua família obteve sucesso neste
quesito, e mais, graças a isso é que, possivelmente, Lucas é capaz de fazer essa
escolha. Seus sentimentos iniciais em relação à doença foram descritos como
limitantes. Sendo assim, ao analisar os limites impostos, desta vez, pela doença, Lucas
pôde reativar seus aparatos simbólicos no sentido de reconhecer-se castrado para,
mais uma vez, a partir daí, poder desejar. É no vazio criado pela impotência que se faz
a esperança, esperança essa que impulsiona Lucas para frente, que o mantém no
planejamento de sua vida. Apesar da marca de doente de AIDS, ele se faz igual ao
reconhecer-se humano, e portanto, finito.
Anteriormente à doença, Lucas se define como muito inconseqüente. Já
descoberta sua sorologia ele passou a refletir melhor sobre o que ele ainda queria da
vida.
... parecia que a vida era uma linha que não tinha fim no horizonte. A
vida parecia infinita, eu era bastante inconseqüente, eu fazia de tudo
pra me manter dentro do teatro, das artes cênicas (...) enfim, eu vivia a
vida adoidado (...) e como marco da minha sorologia, aí ela acabou me
trazendo uma grande reflexão o que que eu quero ainda desse ciclo.
comecei a ser um pouquinho mais estratégico, um pouco mais
planificador das metas que eu queria alcançar, eu acho que isso
também fez parte da maturidade né.
A doença se mostrou para Lucas como uma oportunidade para a
reflexão. Uma oportunidade de olhar para traz e avaliar tudo o que havia sido feito e o
que ainda valia a pena fazer. Nesse sentido, toda a energia de Lucas foi canalizada
para os trabalhos dentro da ONG, para dentro do lugar onde ele havia encontrado suas
respostas e se fortalecido para encarar a doença. Depois de alguns meses de silêncio,
onde Lucas canalizou suas energias para que ele mesmo pudesse entender o que
estava acontecendo, ou seja, depois de recolhidas suas energias para o seu ego, Lucas
as investe em algo fora de si mesmo, em um objeto que acaba por compor sua rede
social de apoio. O suporte de várias pessoas contribui para que o indivíduo supere o
momento de doença e enfrente essa situação com maior controle sobre sua vida
(ADAM; HERZLICH, 2001).
Essa questão do controle parece ter sido importante para Lucas, pois,
ele relata que sua busca por conhecimento relacionado à enfermidade remetia a um
maior controle sobre sua vida e, consequentemente, sobre sua doença. Não era a
doença que ditava as regras de sua vida e sim ele próprio, ele pôde se fazer sujeito de
si mesmo.
.... é isso que eu coloco pra você, quanto mais gerenciar e ter esses
conhecimentos e poder burlá-los, e poder significá-los o tempo todo, ele
acaba trazendo aí isso que eu chamaria de um determinado controle da
sorologia e da doença. Não deixar ela maior do que o Lucas, indivíduo
no mundo. Então esses conhecimentos acaba me dando esse patamar
a mais aí, pra poder olhar pra ela e falar olha, você é umrus que é um
cristalzinho do tamanho de não sei o que que não dá pra ver com o olho
que, de repente, ele vai me tirar uma série de potenciais e
possibilidades que eu vejo no meu projeto ainda de vida. Então, a
sorologia pra mim, com todas essas informações, ela acaba me
trazendo um controle dela, mais do que a sorologia eu sou doente de
AIDS hoje, eu tomo medicação antiretroviral desde 97, então quer
dizer... é... eu acabo ficando maior realmente do que muitas vezes as
pessoas, na maneira delas olharem porque o estigma existe ainda, a
maneira... a ... algumas pessoas ainda tenta... tratam você como se
fosse a criatura mais frágil do mundo né, uma coisa que perturba e
desagrada bastante a minha pessoa, e aí a gerência desse
conhecimento me dá muito mais aporte e fortaleza realmente pra falar
olha, tenho essa doença crônica sim mas eu tenho toda uma
possibilidade no meu caminho de vida aí que eu sei onde é que pode
dá tudo isso né, e o quão importante de repente essas informações...
Seu monitoramento freqüente sobre seu organismo demonstra sua
atenção para com o seu próprio corpo e à doença, mantendo-o na concepção de
possuir certo controle sobre ela. Através da ONG e de todo o trabalho feito dentro da
instituição, Lucas conseguiu reconquistar o controle de sua vida, ele é quem manda.
Desta forma, Lucas afirma que ele não é a doença em si, nem o portador da morte
como dizia Kübler-Ross (1988), ele é um ser humano, ele é um sujeito. Esse controle
tamm é almejado como forma de dar um sentido para a sua vida. A busca de sentido
é a busca por uma nova identidade, ou melhor, por uma identidade ressignificada, dada
as circunstâncias. É a busca por novos objetos externos que possam servir de
investimentos libidinais para este ego renovado (ROGRIGUES; CAROSO, 1998).
A aquisição de conhecimento passou a ser uma forma de
empoderamento
5
do sujeito, uma força a mais em busca de uma reconstrução do
narcisismo abalado pelo reconhecimento da própria morte (CABAS, 1982).
Então essa possibilidade de troca, de informações, de conhecimento
realmente, ela acaba se tornando um fator ai de, de, de determinado
prestígio né, isso é muito interessante, não tô falando que é a sorologia,
5
É uma abordagem que coloca as pessoas e o poder no centro dos processos de desenvolvimento. É um processo
pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades assumem o controle de seus próprios assuntos, de sua
própria vida e tomam consciência da sua habilidade e competência para produzir, criar e gerir (ROMANO;
ANTUNES, 2002).
não tô falando que é o HIV, mas é o Lucas desafiando os limites de sua
vida (pausa) em assumir esses desafios, em não vê-los como limite
realmente mas como possibilidade de transmutar, de transformar tudo
isso, é a parte muito mais interessante.
Com isso, parece que Lucas faz uma tentativa de recuperar a
onipotência própria do narcisismo a fim de poder prosseguir com a sua vida com uma
postura de sujeito, isto é, não permitindo que o reconhecimento da própria morte o
paralise. Dessa forma, ele procura viver uma vida normal, dentro das novas condições
em que se encontra. Sonhos? Sim, muitos. Sonho da casa própria, de ser reconhecido
como gestor em direitos humanos, enfim, Lucas sonha em ter o tempo suficiente para
poder realizar ainda o que deseja, para deixar suas marcas.
4.3
ENTREVISTA REALIZADA COM EDUARDO
4.3.1 Resumo
Eduardo é um homem homossexual de 45 anos, com o 2º grau
completo, soropositivo desde 1997 e que durante alguns anos foi travesti e exerceu a
profissão de profissional do sexo. Segundo ele, para ser travesti e profissional do sexo
tem certo tempo, como a carreira de modelo, depois dos 30 anos fica mais difícil.
Ele foi infectado através de relação sexual sem camisinha, em um
relacionamento fortuito com um rapaz em uma festa de rodeio ocorrida na chácara de
um amigo. Segundo Eduardo, esse rapaz era o peão mais bonito e flertado da festa, e
Eduardo se sentiu privilegiado ao ser paquerado por ele. Quando houve a oportunidade
da relação sexual, Eduardo descuidou-se da proteção e, apesar de ter levado
camisinha, ela estava longe de seu alcance e Eduardo não quis parar para pegá-la.
Algum tempo depois desse episódio, Eduardo ficou sabendo que esse rapaz havia
morrido de AIDS. Ele estava em uma roda de amigos onde havia um parente desse
peão. Esse parente comentou que o rapaz tinha morrido de AIDS. Foi um silêncio total,
Eduardo ainda brincou que ficara viúvo, para aliviar o clima. Quando apenas ele e mais
dois amigos ficaram na roda, Eduardo comentou que iria fazer o teste. Um de seus
amigos ainda falou que não acreditava que Eduardo não tinha usado camisinha, mas
ele respondeu que depois de 3 dias de festa ele já tinha até esquecido onde estava o
preservativo. Foi então que ele fez o seu 2º teste de AIDS e deu positivo. O 1º teste ele
havia feito quando voltou da Europa e havia deixado de ser travesti, e deu negativo.
É interessante frisar que durante o tempo em que Eduardo foi
profissional do sexo, ele nunca adquiriu nenhuma doença sexualmente transmissível,
muito menos o HIV. Ele dizia se cuidar muito e que na época em que ele fazia
programa era só tomar um banho que estava tudo limpo de novo. Antes da AIDS esta
era sua noção de cuidado, após a AIDS ele passou a utilizar o preservativo com todos
os seus clientes. Ele alertou para o fato de que a AIDS não tem cara e nem classe
social, já que o rapaz com quem havia mantido relação era bonito, parecia saudável e
rico.
Na época em que Eduardo se infectou, ele já trabalhava com prevenção
e sabia dos riscos que corria mas nunca se culpou ou culpou o rapaz, como ele mesmo
disse, ‘quando um não quer dois não briga’. Eduardo conhecia as pessoas que
trabalhavam no posto de saúde no qual ele coletou sangue para fazer seu 2º exame.
Ele comentou que todos ficaram muito mobilizados e adiaram um pouco para dar o
resultado para ele, sempre que Eduardo perguntava do teste o pessoal de lá dizia que
estava para chegar. Ele próprio disse não ter ficado chocado, quem mais se apavorou
foi sua mãe e seus amigos que sempre choravam quando ele dizia que era
soropositivo. Para Eduardo foi mais difícil saber que um grande amigo dele era
soropositivo do que a sua própria soropositividade. Ele pensava que a vida tinha que
continuar.
Ele nunca teve nenhuma doença oportunista e se sente muito bem,
mas já toma medicamento. Trabalha bastante na ONG que fundou depois de ter
trabalhado muitos anos em uma outra ONG tamm bastante atuante no município em
relação às doenças sexualmente transmissíveis e AIDS. Diz viver estressado com as
questões do município e do estado em relação às DSTs/AIDS. Apesar disso, sua carga
viral está sempre em um bom nível, parece até que ele tem que estar sempre
estressado e atarefado dentro da militância para manter seu quadro clínico estável.
Eduardo acredita que o que lhe dá forças para não se deixar abater pela doença é a
militância, é estar sempre ocupado com as questões da doença em âmbito regional e
estadual, representando as diversas camadas da sociedade, inclusive travestis, gays,
lésbicas e bissexuais. No entanto, ter trabalhado com estas questões antes mesmo de
saber-se soropositivo não contribuiu para que Eduardo encarasse melhor a doença; ele
acredita que tal fato o mantém forte mas não o ajudou a perceber a doença de outras
formas, mesmo porque a AIDS era muito recente então e nem sempre o que as
pessoas pregavam era na realidade o que elas faziam.
Eduardo pensa que o que o ajudou a enfrentar a doença foi começar a
perder os amigos mais próximos e queridos. Soma-se a isso o fato dele ter trabalhado
por 5 anos com mães e seus respectivos filhos soropositivos. Na época deste trabalho,
era muito difícil acontecer da criança negativar, por isso, muitas morriam. Foi um tempo
de sofrimento. Depois disso, ele passou a trabalhar com travestis porque ele achava
que havia muita discriminação da sociedade, e por ser do meio, Eduardo queria fazer
alguma coisa para mudar isso. São esses desafios de luta contra a AIDS e a
discriminação no município e no estado que dão força para que ele prossiga e possa
encarar bem a sua própria enfermidade.
Eduardo freqüentou por muito tempo o setor de Moléstias Infecciosas
do hospital do município para cuidar e visitar amigos doentes de AIDS. Ele vivia na
capela do hospital rezando por eles. As mortes de pessoas próximas eram tão
freqüentes que quando Eduardo passava algum tempo sem ir ao hospital e depois
retornava, as moças que serviam café sentiam sua falta. Ele diz ter um álbum de
fotografias em sua casa que ele apelidou de ‘álbum das finadas’ porque só tem ele vivo.
Muitas pessoas que ele pensava serem mais fortes fisicamente do que ele próprio,
pegaram a doença e morreram em 6 meses. Isso o intriga, afinal, ele já está há 9 anos
convivendo com a doença e diz não entender o porquê dessas diferenças.
Logo que Eduardo se descobriu soropositivo, ele falou para a família do
seu melhor amigo, para sua mãe e para as pessoas com quem trabalhava na ONG. Ele
disse nunca ter tido problemas em relação a isso com nenhuma dessas pessoas. Para
contar para a sua mãe ele viajou até a cidade onde sua família morava, reuniu todos
(pais, sobrinhos, cunhados) e falou de sua doença. Eduardo diz ter uma ligação muito
forte especialmente com a sua mãe. A reação da família foi o choque. Foi feito inclusive
um seguro de vida e funeral para Eduardo após a notícia; sua mãe tinha medo que ele
morresse em qualquer lugar e fosse enterrado como indigente. Eduardo comenta que já
morreram umas 50 pessoas do grupo dele do seguro e ele ainda está aqui. Seu pai
ficou neutro nesta história.
Seu pai, Eduardo e um irmão não se davam muito bem desde que
souberam que Eduardo era travesti. Mas hoje em dia eles resolveram suas diferenças e
mantém um bom relacionamento, não só entre eles mas entre todos da família. Sempre
que pode, Eduardo os visita. Após a notícia de sua enfermidade eles passaram a ser
mais preocupados com a sua saúde, procuram cuidar um pouco mais de Eduardo. Hoje
em dia sua atuação na militância é motivo de orgulho para o pai.
Eduardo lembra dos amigos que perdeu e o sofrimento que eram as
doenças oportunistas quando ainda não havia muito que fazer, a doença significava
muita dor. Ele diz não deixar transparecer essa dor para poder passar uma imagem
melhor para as pessoas que vivem com AIDS, mesmo porque quando ele deixa
aparecer alguma tristeza a produtividade em sua ONG parece diminuir. No entanto,
para ele próprio, a doença não significa dor, ela representa a dor pela perda de amigos,
mas em sua própria enfermidade ele diz não haver sofrimento. Eduardo disse não se
ver naquele ‘pijaminha’ de hospital sofrendo com as doenças oportunistas advindas da
soropositividade, não se vê doente ou morrendo de AIDS, ele sempre diz que morrerá
de enfarto.
Para Eduardo é muito suspeito a cura da AIDS ainda não ter sido
encontrada. Ele comentou que a AIDS dá muito lucro, portanto, o descobrimento de
uma vacina pode estar sendo atrasado justamente para que vários laboratórios ganhem
uma fortuna com as patentes de medicamento. Muita gente está sofrendo enquanto
outros estão ganhando com a epidemia. Eduardo não sabe se ainda estará vivo para
ver o surgimento de uma vacina efetiva contra a AIDS.
Eduardo diz que sua vida melhorou após o descobrimento de sua
doença porque antes ele não se preocupava com nada. Veio de família de classe
média, sempre estudou em colégios pagos, vivia uma boa vida sem se importar em
economizar, em construir família. Hoje ele é mais preocupado com os rumos de sua
vida, transformou-se em um profissional respeitado em várias instâncias municipais e
estaduais, já tem sua casa própria, não bebe, não fuma, não se droga. Se não fosse
isso, Eduardo pensa que ainda estaria dependendo da mesada dada pelos pais,
vivendo a vida sem regras, desmedidamente, sem fazer nada produtivo.
Na primeira ONG onde trabalhou, Eduardo foi uma das pessoas à frente
dos projetos desenvolvidos. Já na ONG onde está atualmente, ele próprio a fundou.
Seus trabalhos dentro desta instituição sempre o mantém ocupado, brigando por seus
direitos e pelos direitos de outros cidadãos. Ele sempre foi uma pessoa que expõe o
que pensa para quem quer que seja. Dessa forma, ele ganhou o respeito de alguns e a
antipatia de outros. Inclusive, a razão que o fez sair da primeira ONG foi justamente
uma diferença de objetivos na coordenação da instituição. Seu maior medo em relação
ao futuro da ONG que fundou é que em sua ausência ela esmoreça, que não tenha
ninguém de pulso firme que possa levá-la adiante. Porém, esta militância interminável
começou a cansá-lo um pouco. Ela tirou um pouco da sua liberdade, do seu lazer.
Eduardo gostava de caminhar, sair com os amigos. Hoje em dia está sempre muito
cansado para isso, ou então quando sai é abordado na rua para discutir problemas do
município. As pessoas pensam que ele resolverá tudo. Isso o incomoda. Tudo que
começa a ficar exagerado não é bom.
Apesar disso, sua ONG representa tudo para a sua vida, e seu ideal é
permanecer sendo franco no trato com as pessoas e na militância. Para sua vida
particular, Eduardo sonha em se tornar vereador do município e viver um grande amor.
4.3.2 Análise
... ah, depois de 3 dias de festa, ai não lembrei onde tava a camisinha lá
na casa e a casa tava lá onde a festa tava lá e euo quis... e o rapaz
era tão lindo, saudável, dois olhos verdes (risos) aquela coisa de quem
vê cara não vê AIDS, que hoje eu sempre , eu uso isso.
A representação da AIDS no início da epidemia quando se via pessoas
extremamente debilitadas, fez com que Eduardo não se preocupasse com a proteção.
Além daquele momento de prazer do qual ele não poderia abrir mão, já que o rapaz era
tão cobiçado e bonito. Essa experiência serve hoje de aviso em seu trabalho dentro da
ONG que fundou e atua.
Pelo discurso de Eduardo, parece não haver sofrimento na vivência de
sua enfermidade. Ele trata a AIDS como algo que estava escrito em seu destino e teria
que ser vivenciado.
Não, nada, mas ai eu queria uma hora arrumar um jeito de fazer um
sofrimento da minha AIDS mas o povo nem acredita (risos).
Mas acho que era uma coisa que eu tinha que passar e ai vim ser
militante da causa...
Minha mãe fala que isso não é coisa de se fazer brincadeira, mas eu
sempre tive a cabeça muito boa.
A reação que Eduardo teve frente à enfermidade foi surpreendente para
muitas pessoas, especialmente, sua família. Desde então, ele sempre trata da própria
doença em tom de brincadeira. Mas, apesar disso e sem nunca ter tido uma doença
oportunista, Eduardo toma seus medicamentos regularmente. O que nos demonstra
que ele não está negando a doença, mas procurando lidar com ela através da militância
e, assim, continuar vivendo com o objetivo de realizar seus planos.
... na época eu acho que quem mais se apavorou foi minha mãe, meus
amigos, e... e eu não (risos) porque quase todo mundo quando eu
comentava chorava, e eu assim um dia que eu fiquei assim meio triste
mas eu achei que a vida tinha que continuar.
Eduardo não se deixou abater pela notícia. Pelo contrário, se antes ele
já estava envolvido com o trabalho em ONGs, depois do diagnóstico seu envolvimento
tornou-se sua vida. Ele passou a aceitar uma porção de trabalhos, e até fundou uma
nova ONG.
... e o meu CD4 é problemático, se eu fico muito sossegado, largo um
pouco as atividades, ele abaixa, eu tenho que tá correndo, estressado e
brigando né, com Deus e todo mundo, pra que né as pessoas que
vivem com AIDS tenha qualidade, e as pessoas do movimento de gays
e travestis que eu trabalho em (nome do munipio). Então eu vivo
assim. E ai às vezes eu fico indignado com algumas pessoas que
adoecem tão fácil, larga, deitam, ai tô com AIDS, nossa! Primeiro, que
eu detesto me sentir coitado ou alguém ter dó de mim né...
Parece que a maneira pela qual Eduardo enfrenta sua enfermidade é o
trabalho. Seu objeto de investimento libidinal é a militância. Dessa forma, ele parece
sustentar-se enquanto sujeito, mantendo a onipotência própria do narcisismo, já que ele
se compromete com milhões de coisas diferentes, representando diversas camadas da
população e diversas instâncias governamentais. Em sua fala anterior, Eduardo
expressa sua dificuldade em se colocar na posição de objeto. Ele está sempre como
sujeito e não assujeitado ao desejo do outro (CABAS, 1982). Dessa forma, ele toma as
rédeas de sua vida e não permite que a doença o guie.
Em tudo que ele se compromete, ele precisa ser o primeiro, nada de
segundo lugar para Eduardo. Tanto que ele comentou que no seu tempo de profissional
do sexo ele nunca pegou nenhuma DST, mas quando pegou também foi o “máximo”,
aquela que não tem cura. E ele até brinca dizendo que não o chamem para ser vice,
que vice ele não quer ser, se for para representar algo que ele seja o presidente.
... é uma coisa super interessante eu também nunca peguei nenhuma
DST no meu tempo de profissional do sexo, e assim eu sempre brinco
aqui no (nome da ONG) que quando peguei também peguei o máximo
do máximo né, aquela sem cura (risos), aquele babado todo, por isso
que eu falo pra você que eu gosto de grandes desafios né.
Seu trabalho parece representar esses desafios que Eduardo tanto
preza. É por meio do trabalho que ele se realiza, produz. Há uma pulsão de vida em
seu interior o sustentando nessa empreitada. Apesar disso, Eduardo não acredita que
seu envolvimento anterior dentro de uma ONG/AIDS tenha contribuído para que ele
encarasse a doença sem maiores sofrimentos, porque tudo relacionado à AIDS era
muito recente naquela época. Ele nos fala de outros possíveis fatores.
... eu acho que o que me ajudou é... foi começar a perder pessoas
muito queridas...
eu acho que é os desafios que eu resolvi enfrentar e querer mudar no
munipio, no estado, é que me dá força.
Mais uma vez, o trabalho de luta contra a AIDS é colocado como marco
de sua força, além da perda de pessoas próximas. Possivelmente, apesar de Eduardo
não ter comentado nada a respeito da iia de morte e sua própria doença, a perda
dessas pessoas queridas poderia remetê-lo a essa questão inominável, como já nos
dizia Mannoni (1995).
Quando questionado a respeito da maneira como ele encara a sua
doença, demonstrando menos choque, Eduardo responde:
Cê sabe que é uma boa pergunta e nós um dia vamo estudar isso pra
responder também, todo mundo me pergunta a mesma coisa, inclusive
a minha mãe que diz que eu não esquento a cabeça nem com isso,
mas eu realmente... não sei.
... não sei de onde que saiu essa força que eu tenho né, cuidei e perdi
muitos amigos dentro daquela MI do Hospital, teve um tempo que,
nossa, eu chegava nas capelas, as mulher servem café, o povo dizia
nossa, você sumiu (risos) é.
Essa é uma questão tamm para o próprio Eduardo. Ele nos dá
indícios de que a perda de pessoas contribuiu para que ele despertasse a força
necessária para enfrentar a doença. Parece ter sido através da morte desse outro
próximo que Eduardo pôde olhar para sua própria doença como a possibilidade de sua
morte e decidir fazer algo a respeito para retardá-la ao máximo. E assim, ele foi
procurando deixar o sofrimento para longe dele, fazendo brincadeiras sempre que
possível, numa tentativa de manter-se saudável e não morrer tão rápido como tantos
outros. A concretude da doença se presentificou com a perda de pessoas queridas. Foi
através dessas perdas que a castração se fez presente, e não através da doença em si.
Ao perder o outro, perde-se a si mesmo, uma vez que nos construímos a partir do olhar
desse outro (CABAS, 1982).
... tinha amigos que era muito mais fortes do que eu, principalmente
quando eu era profissional do sexo, nossa que era um pau pra toda
obra e descobriram que tavam com HIV e 6 meses, em menos de 1 ano
morreu...
Há um espanto por parte de Eduardo de ter visto pessoas que ele
considerava tão mais fortes do que ele sucumbirem à doença e ele não. Talvez isso
tenha contribuído para que ele se sentisse cada vez mais empoderado, envolvendo-se
em mais e mais tarefas, como forma de manter-se vivo. É a tentativa de permanecer
onipotente enquanto sujeito para fortalecer-se e lutar contra a doença. Eduardo coloca
que apesar de ter o gênio ruim, é uma pessoa de bem com a vida, não se deixa abater.
A postura de Eduardo frente à AIDS não é de alguém que se julga
doente, muito pelo contrário, ele não se considera um doente.
Mas você sabe que eu, Eduardo, não consigo me ver naquele listadinho
(roupa do hospital), já avisei quando for vou levar o meu bonitinho que
eu tenho lá em casa, que aquilo deixa qualquer um deprimido, mas
nunca me... nunca me assustou não, só se começar de agora pra
frente, até agora eu sempre levei numa boa né, então assim, não me
vejo doente, eu sempre falo que eu vou morrer de enfarto.
Essa questão de não se considerar doente é repetida por Eduardo
muitas vezes em seu discurso. Ele não nega a doença, mesmo porque toma os
medicamentos necessários e milita na área, mas não se deixa levar pelo que a AIDS
poderia representar em sua vida. Pelo contrário, ele transforma sua doença em uma
causa e prossegue com os projetos de sua vida.
Além de Eduardo não sofrer pela sua própria enfermidade, ele pensa
que foi até melhor adquiri-la. Sem ela Eduardo estaria na mesma vida desmedida que
sempre levou. Através de sua enfermidade ele tomou maior visibilidade política dentro
do município, passou a viver uma vida mais saudável, sem drogas, procurando cuidar
de sua saúde. A AIDS significou, para ele, um reencontro de si mesmo, uma
possibilidade de construir novos laços sociais (ADAM; HERZLICH, 2001).
... eu levei ela numa boa, ela não dói tanto em mim não.
... e ai assim as pessoas quando eu respondo que mudou pra melhor as
pessoas me olham chocada e não... porque se não tivesse acontecido
nada eu continuava o boa vida, bebendo, usando droga, né, então eu
acho que... não estaria nem vivo...
A AIDS foi um marco entre sua vida desregrada de antes e os planos
que Eduardo gostaria de realizar. Ela representou aquela parada para a reflexão
(NIETZSCHE, 2000; FREUD, 1969f; LABAKI, 2001). Uma de suas maiores
preocupações relaciona-se a continuidade do movimento em sua ausência.
... eu tenho muito medo de um dia eu sair e o movimento não levar
adiante, minha preocupão é essa, acho que é por isso que eu tenho
tanta força pra mim ai poder ficar o maior tempo ou é... as pessoas que
eu acho que tem né, pique, pra, pra tocar isso aqui, estejambem
estabelecidas pra que eu possa descansar porque já tá me dando um
pouco de canseira né.
... e hoje o que me preocupa é eu não vê luzes né, porque acha, meu
Deus do céu, posso ser esquecido...
Esta preocupação de Eduardo é genuína, já que a ONG é tudo em sua
vida, é o modo pelo qual ele deseja ser lembrado, mesmo depois de falecido. É o modo
que ele encontrou de deixar sua marca.
Em sua trajetória de vida, Eduardo sempre teve muito apoio de sua
família. Ele nunca esteve sozinho. Esse apoio incondicional de todos ao longo de sua
existência, principalmente de sua mãe, pode tê-lo fortalecido para enfrentar situações
como a AIDS. Sua família já havia passado por outras situações conflitantes, como a
descoberta da homossexualidade de Eduardo, que conseguiram elaborar. Portanto, de
certa forma, as situações de crise anteriores à doença de Eduardo contribuíram para
que a família pudesse elaborar melhor a vivência dessa enfermidade, assim como
contribuiu para que Eduardo pudesse experienciá-la de forma mais amena, uma vez
que havia o suporte familiar para tal (PINCUS; DARE, 1987).
... liguei pra minha mãe pra falar que eu tava indo que eu precisava
contar uma coisa, a ligação que a gente tem é muito grande, quando
um não tá bem a gente se descobre, um liga pro outro sabe, a gente
tem esse lado muito forte, sempre desconfiei que eu não era filho da
família mas a ligação minha com a minha mãe e uma mancha de
família que só meu vô tinha e um tio meu tem e eu tenho chegamos a
conclusão que eu sou filho, não tem que fazer teste de DNA, (...) contei
pra minha mãe porque eu acho que é família que vem em primeiro
lugar, e as pessoas da ONG que eu já trabalhava...
O relacionamento de Eduardo com seu pai era difícil, mas hoje eles se
respeitam e seu pai sente orgulho do filho.
Eu, meu iro e o meu pai com essa questão da sexualidade a gente
tinha umas birrasinha né, de eu ser homossexual assumido, ter sido
travesti, mas depois eles foram caindo a ficha dos dois, as minhas
sobrinhas começaram a cobrar muito, um tempo ai eu apareci numa
matéria em cadeia nacional então o telefone lá de casa começou a
tocar muito e meu pai falou pra minha mãe assim, mas como ele nunca
deu o braço a torcer, nossa, eu morro de orgulho desse menino hoje,
, vendo eu com essa militância, e ai meu irmão ligou ah, eu vi o
Eduardo.
Quando questionado se Eduardo contou para seu pai tamm, ele
respondeu:
Ficou, não, quando eu convoquei família, quando eu falo... papai,
mamãe, irmão, cunhada e sobrinhos, todo mundo junto.
Não foi fácil para a família de Eduardo receber essa notícia, não havia
muitos recursos médicos para a doença na época, todos ficaram pensando que ele iria
morrer logo, foi um choque, porém, todos olharam de frente a enfermidade de Eduardo
e passaram a conviver com ela. Assim como Kübler-Ross (1988) havia dito que muitos
dos seus pacientes só encontraram carinho e apoio após a AIDS, parece ter acontecido
o mesmo com Eduardo, principalmente em relação ao seu pai. Sua mãe sempre foi
presente em sua vida, bem como suas sobrinhas, mas a qualidade do relacionamento
parece ter melhorado com o seu irmão e com o seu pai.
Hoje em dia, Eduardo tem a expectativa de duas coisas para a sua
vida: um grande amor e ser vereador do município onde mora. E em relação a esse
grande amor Eduardo foi bem enfático, insistindo várias vezes nessa questão. Sua
busca por um companheiro pode refletir sua solidão. Pode nos dar um indício de que
ele reconhece seus limites, já que ele precisa de um outro. Finalmente, depois de se
vangloriar tanto em seu discurso por enfrentar sua AIDS de cabeça erguida, sem deixar
que ela o derrube, Eduardo se mostra falível. Sua verbalização insistente por um
grande amor seria a alternativa que preencheria o vazio deixado pela doença. Um vazio
que evidencia a castração, o corte feito no sujeito dizendo que ele não pode tudo.
Através do outro foi que Eduardo percebeu seus limites e é através desse outro que ele
busca, novamente, reestabelecer-se.
... e eu acho que eu tava querendo um grande amor, eu acho que agora
chegou a época... sabe, de ter alguém do meu lado pra di...
... eu não quero soropositivo não porque eu não quero gente dividindo o
meu armarinho com o meu medicamento, ai, Deus me perdoe, eu não
quero tra... só se eu achar um com a cabeça igual a minha, ai tudo
bem, agora, ah, porque eu falo sempre tem o doente de AIDS e o
aidético de cabeça é esse que eu não quero lá em casa né, então, nem
da minha idade também porque eu não sou previdência social que
querendo véio lá em casa, eu quero uma coisa mais nova, mais suave,
que não fique reclamando de dor, que tem que comer isso, eu tenho
que fazer aquilo no cardápio porque os osso deleficando muito fraco
eu também... não quero lá em casa, também não quero nenhum
moleque, a faixa ai de 25 a 30 né, que é uma faixa boa, ah, e aí tem
que ter um cartão de... bom né, porque eu posso tá passando ele em
qualquer lugar (...). Então ai você já vê que a gente vai chegar a
conclusão que eu vou continuar sozinho (risos). Não mas é brincadeira,
mas eu tava querendo alguém, sabe, que não fosse muito tapado
também, não eu tenho até arrumado uns namorado mas o meu sucesso
incomoda meu namorado lá em casa e eu não sei se... (...). Então não
tem dado certo arrumar namorado, mas eu queria sim ter alguém...
Sua vida particular parece não estar casando bem com sua vida
profissional. E Eduardo não pretende parar seu trabalho por isso, pelo contrário, ele
quer ser uma figura ainda mais importante para o município: vereador. Ele já vem lendo
regimentos de partidos políticos para poder escolher outro partido, que não o antigo PT,
para se filiar. Filhos não são uma opção, mas ele deseja deixar sua marca na história
através do seu trabalho.
4.4
ENTREVISTA REALIZADA COM CRISTINA
4.4.1 Resumo
Cristina é um rapaz homossexual de 41 anos de idade com o 2º grau
incompleto, foi travesti por algum tempo e disse, com um sorriso, que seu sexo é
indefinido. No decorrer de sua vida ela desenvolveu várias atividades. Já foi
cabeleireira, bailarina, enfim, já passou por muitas áreas de trabalho. Atualmente está
desenvolvendo um projeto na ONG onde trabalha. Há 10 anos é soropositiva, e há 7
anos passou a fazer tratamento. Sua via de infecção foi a relação sexual desprotegida.
Cristina falou que em 1981, ela ainda não era suficientemente informada a respeito da
doença, ela sabia sim que era uma ‘peste gay’, que o melhor meio de proteção era o
preservativo, mas aí já era tarde, a infecção já havia acontecido. Passou alguns anos
sem tratamento e adoeceu.
Mesmo antes de ficar doente ela já se interrogava a respeito de uma
possível contaminação. Cristina era profissional do sexo e por mais que se cuidasse,
havia sempre um questionamento, uma camisinha que podia estourar, por exemplo.
Quando ela trabalhava fazendo programas em 1981 ela não tinha acesso a
preservativo, só passou a usá-lo a partir de 1996. Ela se considerava uma criança
aprendendo as novidades em 81. Foi muitas vezes para a Europa, e nessas idas e
vindas, quando ela se deu conta, já estava infectada.
Descobrir que se tem uma doença que não tem cura foi terrível para
Cristina. Ela tinha duas possibilidades: morrer ou viver. Ela optou por viver e começou a
tomar os medicamentos. Apesar dos efeitos colaterais dos remédios, Cristina tem uma
vida razoável, hoje ela olha para frente e segue seu caminho. Uma vez descoberta uma
doença como essa, dali para frente, segundo Cristina, você deseja que sua vida seja
útil. Seu trabalho dentro da ONG a ajuda nessa tarefa. Informando outras pessoas a
respeito dos modos de contágio do HIV, é uma forma de esquecer um pouco a sua
própria doença ajudando os outros a não contraí-la. Quando Cristina fala em esquecer,
ela está querendo dizer esquecer de tudo o que ela passou por conta da AIDS e não
esquecer do seu tratamento. Não é algo que você possa esquecer, já que se deve
tomar uma porção de medicamentos e cada um na sua hora. Mas o que Cristina deixa
para traz são os momentos difíceis que ela enfrentou quando esteve doente de AIDS.
As doenças oportunistas quase a mataram. Suas pernas ficaram paralisadas, ela ficou
internada por muitos meses até que pudesse ser atendida em domicílio. É por isso que
Cristina não quer mais passar. E é por isso que ela aderiu ao tratamento corretamente.
Ao descobrir-se soropositiva, Cristina sentiu-se uma coitadinha, tinha
certeza de sua morte. Mas foi quando caiu de cama que ela aprendeu a viver melhor e
gostar mais de si mesma. Foi um aprendizado feito no susto, como ela mesma disse.
Além disso, o que a ajudou a enfrentar esse caminho árduo foi sua família. Cristina
comentou que sem eles não seria possível sobreviver, eles foram uma grande âncora
em sua vida. Sua família já tinha conhecimento de seu trabalho na ONG antes mesmo
de ser infectada e sempre o apoiou. Durante um tempo em que a ONG não tinha sede,
as oficinas eram realizadas em sua casa, junto da família, já que Cristina mora com sua
mãe.
Durante sua vida de profissional do sexo, Cristina não parava em casa.
Vivia viajando. Quando ela voltou da Europa e conseguiu comprar sua casa, ela a
comprou do lado da casa de sua irmã. E após a sua doença, quando Cristina estava
bem debilitada, sua mãe veio morar com ela. Desde então, todo cuidado é pouco para a
sua família. Eles que a levavam para o hospital e de lá para casa. Foi assim por 3 anos.
Quantas vezes eles fizeram esse trajeto! Cristina chegou a ficar desacreditada no
hospital, ninguém apostava que ela viveria. Passou por coma, convulsões, paralisia. E
sua família sempre por perto. As doenças oportunistas são a parte mais triste da AIDS,
segundo Cristina, e ela coloca que sem o apoio de sua família ela não estaria mais
aqui. Claro que foi um desespero para todos saber que ela estava doente. Mas todos a
acolheram de braços abertos.
Anteriormente à sua doença, Cristina não tinha um relacionamento
muito presente com sua família. Ela saiu de casa com 13 anos para dançar balé. Seu
professor a ajudava muito com a alimentação. Só não dava um teto para Cristina
dormir, de resto ele fazia o que podia. Foi uma época que ela passou a viver na rua.
Sofreu muito, mas aprendeu a viver. Apesar das dificuldades, ela sempre pensava em
ser alguém na vida e prosseguia. Quando Cristina largou do balé, foi para a Europa e lá
ficou por muitos anos, indo e vindo para o Brasil. Ao se descobrir soropositiva foi que
Cristina resolveu permanecer por aqui. Foi quando houve maior aproximação entre ela
e sua família. Por isso, Cristina diz que depois da AIDS seu relacionamento com a
família melhorou.
Para Cristina o sistema imunológico anda junto com o sistema
depressivo, se você está mal da cabeça seu corpo reage, é por isso que se deve
trabalhar, fazer trabalhar a sua cabeça para sempre estar bem.
No momento em que Cristina soube de sua doença ela não contou para
ninguém. Ela pensou que ia ficar doente, morrer e acabar. Mas não foi assim. Ela teve
que continuar. Mesmo sua família só soube de sua doença quando ela ficou doente e
eles a ajudaram. Sua escolha por não contar a ninguém passava pelo medo de sofrer
discriminação. Na época, o preconceito era enorme, não se tomava nem água do
mesmo copo. Ela não queria passar por isso. Mas hoje em dia Cristina diz que sua
doença é companheira, está sempre ao seu lado, apenas com a preocupação de não
se tornar escrava dessa enfermidade. Sua carga viral está indetectável já há algum
tempo e ela se cuida tomando os remédios e as precauções necessárias
cotidianamente. Se continuar assim, ela disse poder viver por mais muitos anos. De
uma vida sem medidas, Cristina passou a ter uma vida regrada, adaptando-se ao
preservativo e aos cuidados necessários. De qualquer forma, mesmo com os efeitos
colaterais dos remédios, Cristina não se esquece de viver para si mesma.
Antes de se tornar soropositiva, Cristina já trabalhava em ONG, se
envolvia com trabalhos voltados para a prevenção. Na época em que ficou doente,
colaborou com a fundação de uma nova ONG, juntamente com algumas pessoas da
ONG que trabalhava anteriormente. Ela sente que a instituição é um pedaço dela.
Dentro do seu trabalho, Cristina procura estar informando as pessoas, fazendo a sua
parte, para que mais adiante ela, assim como outros, não possa ser culpada de não ter
feito nada para impedir que a AIDS se alastrasse. É dessa forma que Cristina se insere
na sociedade.
Sua maior expectativa na vida é viver o suficiente para ver uma vacina
contra o vírus HIV. Mesmo que ela não possa recebê-la. Só o fato de saber que a
vacina existe faria com que Cristina morresse feliz.
4.4.2 Análise
Ao se deparar com o fato de ser uma pessoa soropositiva, Cristina ficou
aterrorizada. O momento dessa sua descoberta foi tamm um momento de decisão e
aprendizado.
Terrível (sorriso discreto). Saber que você tem uma doença que ela não
tem cura e você tem que opinar por dois lados, ou se tratar ou morrer,
ai vamos ter que outra vez um ponto de interrogação, eu optei pra viver.
... me senti muito coitadinho sabe, até então, até eu começar a ficar
doente mesmo de AIDS aí sim é que eu fui aprender a viver melhor, fui
aprender a gostar de mim e da minha vida.
Foi o susto. Tudo isso, foi o susto. A doença, o hospital, casa, seringa,
remédio, nossa, você tem que acordar. (...). É uma decisão muito cruel,
mas você tem que opinar porque assim é melhor pra você.
Esse outro ponto de interrogação o qual ela relata na primeira fala
acima, refere-se ao primeiro ponto de interrogação que ela tinha sobre ser ou não
soropositiva, porque Cristina já suspeitava que poderia ser.
Seu sentimento frente à doença e, principalmente, ao fato de que a
AIDS remetia a uma concretização da existência de sua própria morte, criaram um
momento crucial na vida de Cristina. Ela precisou parar. Refletir. E optar. A morte é
para o sujeito a própria castração de forma concreta (FREUD, 1969). É o fenômeno que
põe em cheque toda uma existência, uma construção do sujeito. E por isso, é uma
oportunidade de escolha entre permanecer do jeito que está ou lutar pela vida, se isso
for possível (KÜBLER-ROSS, 1988; KOVÁCS, 1992; NIETZSCHE, 2000; LABAKI,
2001).
... porque quando você chega perto da morte você tem vontade, uma
vontade muito grande de voltar, e foi o que eu fiz, quando eu cheguei lá
pertinho né... e a família, família também ajuda muuito, muuito né, a
família me recebeu de braços abertos.
Cristina optou por lutar pela vida. Sob este ponto de vista, podemos
dizer que do choque inicial despertado pela notícia da doença, Cristina passou para a
fase de aceitação da doença, como descrito por Kübler-Ross (1977).
... mas a cada dia que eu acordo eu olho pro céu e falo ai meu Deus, é
mais um dia que eu vivo, vamos lutar né, é assim, começa a minha luta
(riso).
Cristina despertou uma sede de viver ainda mais após sua doença,
como se essa enfermidade tivesse marcado um tempo que não seria o suficiente. Seu
engajamento no trabalho dentro da ONG e sua maior aproximação com sua família
demonstram sua tentativa de buscar maior significado para a sua vida e assim possuir
um objeto no qual ela pudesse depositar sua libido para ter um sentido em sua vida, um
novo sentido (LABAKI, 2001).
Nessa nova fase de sua vida, podemos perceber sua pulsão por viver.
Como já vimos, a pulsão de vida é estruturada na criança pelos limites impostos pelos
pais (SOIFER,1983). Isso se confirma pela história de Cristina que se mantém na luta
contra a doença, porém, não sem o apoio fundamental de sua família.
Se não tivesse a família por perto eu não sei não se eu tava aqui hoje
né, porque já tinha optado por morrer ou largar tudo, abandonar tudo, a
família é um grande apoio.
Eu acho que veio até melhorar né, porque até então não era muito
familiar né, hoje não, hoje eu tenho mais tempo pra eles né, você sabe
como é mãe né, a gente sai a noite ela já fica preocupada, ai então cê
não dorme, fica daquele jeito, ela o consegue mais nem dormi na
casa dos outro assim...
Ao começar a apresentar o quadro de doenças oportunistas, a família
de Cristina esteve sempre presente fazendo com que ela se sentisse acolhida e mais
próxima de todos. Já que é a partir da relação com sua família, mais especificamente
com seus pais, que o sujeito vai se constituindo enquanto tal, então, podemos dizer que
a partir do momento que Cristina teve a oportunidade de estar mais perto de sua
família, esta contribuiu para que ela se reelaborasse enquanto sujeito desejante, ela
tinha porque lutar (EIGUER, 1995; CABAS, 1982).
Cristina passou muito tempo internada no hospital até que ela pudesse
receber tratamento em domicílio. Segundo ela, tratar-se em casa foi maravilhoso, muito
melhor do que no hospital.
A minha sorte é que isso (tratamento) eu já fazia em casa né, porque se
fosse pra fazer no hospital eu já tinha desistido no meio do caminho.
Seu habitat interior, representado pela sua casa, fez com que Cristina
pudesse enfrentar o tratamento rígido que ela necessitava por estar em um ambiente
familiar, por pertencer a um lugar (EIGUER, 1995).
A ONG na qual Cristina trabalha tamm é um ponto de apoio, pois é
que ela pode exercer tarefas que fazem com que ela se sinta útil e que, portanto, dão
um novo sentido para sua vida.
... quando a gente perde aquele sentido da vida que você descobre,
você é portador do HIV, você leva um baque que você quer aproveitar
cada minuto da tua vida você quer que ele seja útil. (...) às vezes
passando informações para os demais (...) é um modo de eu tá
esquecendo um pouco a doença, deixando ela um pouco de lado da
cabeça né, eu vivo muito bem assim, né.
Um pedaço de mim (a ONG). Porque tem uma história que a gente tá
acontecendo né...
Suas atividades na ONG garantem sua inserção social. Acolhida pela
família e pela sociedade, Cristina tem apoio suficiente para continuar lutando por sua
vida. Quando há o acolhimento social e é possível estabelecer novos laços sociais ou
não perder os já existentes, a doença pode ser encarada como uma possibilidade para
o sujeito reconstruir sua identidade e viver a doença como libertadora (ADAM;
HERZLICH, 2001).
4.5
ENTREVISTA REALIZADA COM ROSELAINE
4.5.1 Resumo
Roselaine é uma mulher de 36 anos de idade, com o 1º grau
incompleto, que trabalha como agente de saúde na ONG em que atua. Ela é portadora
do vírus HIV há 16 anos e tem um filho, também soropositivo, de 9 anos. Roselaine vem
de uma família humilde de 6 irmãos, 4 meninas e 2 meninos.
Quando Roselaine descobriu-se soropositiva, em 1989, a AIDS ainda
era uma doença pouco conhecida, não havia muitos tratamentos e o preconceito era
bastante presente não só na sociedade em geral como, também, nos médicos. Ao
receber seu diagnóstico ela disse estar apenas recebendo uma notícia, não tinha noção
da gravidade da doença. O conhecimento de seu estado de portadora do HIV
aconteceu na época em que ela deu a luz ao seu primeiro filho que nasceu morto, fruto
de seu primeiro casamento (morto por conta do cordão umbilical que se enrolou no
bebê e não por causa da AIDS). Um casamento ocorrido apenas porque ela estava
grávida, e não por desejo.
O médico do pré-natal da Roselaine e da sua irmã era o mesmo.
Quando a Roselaine teve seu bebê ele fez o teste HIV nela sem o seu consentimento, e
como ele descobriu que ela era soropositiva quando ela já havia saído do hospital, ele
começou a questionar sua irmã para saber quantos parceiros ela tinha, se ela era
casada, se era prostituta, se usava drogas... Sua irmã respondia que não e que
Roselaine era casada. Ela continuava casada com o Pedro, pai do filho que nasceu
morto. Pouco tempo depois do parto (uns 6 meses) ele sofreu um acidente de moto e
ficou muito machucado. Um caminhão cruzou a frente dele. Mas antes dessa época,
alguns dias depois que a Roselaine saiu do hospital e os médicos começaram a
questionar sua irmã, eles (médicos) pediam que a irmã falasse com a Roselaine para
ela voltar para o hospital porque eles tinham que falar com ela. Eles insistiram bastante
nisso mas a Roselaine não ia, até que mandaram uma carta para ela pedindo sua
presença. A Roselaine foi. Chegando lá, ela entrou no consultório e vários médicos
(estagiários do Hospital) entraram com ela. Um médico começou a questioná-la
rudemente, perguntando se ela tinha vários parceiros, se usava drogas, ela começou a
ficar nervosa, mas respondia. Ai ele perguntou: Sabe por quê? Porque você tem o HIV.
O HIV é o vírus que causa a AIDS. Ela comentou que deu de ombros porque não sabia
bem o que era a AIDS naquela época. Depois da notícia o médico e todos os
estagiários a deixaram sozinha. Pela reação do médico, falando e depois indo embora
sem mais explicações, dizendo Fique você ai com a sua AIDS, Roselaine começou a
chorar. Nisso entrou outro médico, agachou, pôs a mão no joelho dela (Roselaine
estava chorando sentada e de cabeça baixa) e disse para ela que ela não iria morrer.
Ela gostava desse médico. Nesse dia ela foi instruída por ele a falar com o Pedro e
pedir que ele fizesse o exame. Ela chegou em casa, esperou que o Pedro comesse (o
acidente ainda não tinha acontecido) e contou para ele que tinha AIDS. Fora ele,
apenas uma amiga, sua melhor amiga, sabia do fato. Ela diz ter contado para ela
porque ela era a pessoa que mais confiava na época. Sua reação foi normal. Já a
reação da sua família ela temia que fosse diferente. Isso porque sua família não
gostava do Pedro, e a Roselaine sabia que ele é quem tinha passado AIDS para ela,
então seria mais um motivo para eles o odiarem. Além disso, Roselaine era a ‘filhinha
do papai’, como poderia dar essa notícia pra ele?
Quem ficou sabendo de imediato da sua doença foi seu marido. Ele
ficou muito surpreso. Ela disse a ele que só poderia ter pegado dele, afinal, até aquele
momento, ela só tinha tido um namorado antes dele, e esse namorado não era
soropositivo. Roselaine pensa que ele já devia saber que tinha AIDS mas não acreditou
nos médicos, por isso, não contou nada para ela e continuava transando sem
camisinha. Isso porque algum tempo depois da morte de Pedro, Roselaine conversou
com uma pessoa que diz ter dado o diagnóstico para ele quando ele havia ido doar
sangue. Roselaine sabe que deve ter sido o Pedro mesmo, porque a pessoa com quem
ela falou disse detalhes a respeito dele, como onde ele trabalhava. Mas isso é o que
Roselaine imagina que aconteceu, porque na verdade eles nunca conversaram muito
sobre isso. Ela não sabe se ele a traiu ou se poderia ter pegado de outra forma e a
contaminado. Mesmo assim, Roselaine disse que o amava muito e cuidou dele durante
os 5 anos em que a doença se manifestou e o deixou bastante debilitado. Quando ele
sofreu o acidente de moto ficou muito mal e isso contribuiu para que a doença se
manifestasse mais rápido.
Por ser seu marido, Roselaine sentia-se obrigada a cuidar dele, mesmo
pensando que ele era um ‘cachorro’, até porque a própria família do esposo o
abandonou. E assim ela se dedicou por 5 anos até que ele faleceu. Durante o período
em que Pedro ficou doente, o patrão de Roselaine (ela trabalhava e morava em um
motel) disse que ela poderia ficar em casa cuidando dele, recebendo seu salário
normalmente. Proposta feita eo cumprida. Roselaine saiu do motel e a convite de
sua mãe passou a morar com seus pais, ela e o Pedro. Para se manter, Roselaine tinha
o dinheiro recebido da indenização do acidente sofrido por Pedro. Com este mesmo
dinheiro Roselaine comprou um carro e uma data na qual construiu sua casa e foi morar
com Pedro.
A mãe de Pedro não quis ajudá-lo em nada. Tudo que era feito para
ele, foi feito pela Roselaine e pela mãe dela. As duas cuidaram dele. A Roselaine acha
que a mãe dele tinha medo de ser contaminada. Mesmo quando elas pediam que ela
as ajudasse lavando as roupas dele, ela se recusava. Ela nunca ia visitá-lo em casa, ia
apenas quando ele estava no hospital, e poucas vezes.
O dinheiro da indenização recebida por Pedro finalmente acabou,
que Roselaine ficou sem trabalhar, não fez investimento nenhum e só gastou. Foi então
que ela passou a trabalhar de empregada doméstica.
Seu marido e sua melhor amiga foram as únicas pessoas que ficaram
sabendo de sua enfermidade, na época. Sua família só soube tempos depois. Mas no
final das contas, todos ficaram sabendo, e Roselaine pôde contar com a ajuda da sua
mãe.
A mãe de Roselaine sempre a ajudou a cuidar de Pedro. Quando
Roselaine saiu da casa dos pais para morar em sua própria casa, seus pais a
acompanharam pois não queriam que ela ficasse sozinha com Pedro, por conta de seu
estado muito debilitado que poderia afetar seu comportamento. Assim, a casa onde
seus pais moravam ficou para sua irmã que já estava lá com o marido e suas crianças.
Ainda quando Roselaine morava com os pais ela conheceu o Valter. Os
dois passaram a sair juntos e tornaram-se namorados quando o Pedro ainda estava
vivo. Roselaine não queria magoar Pedro, mas sentiu-se atraída por Valter. Pedro
estava bastante debilitado pelo acidente e pela AIDS, no final de seus dias ele não
podia andar e há muito já não tinham relações sexuais. Assim, Roselaine envolveu-se
com Valter e engravidou pela segunda vez. Ela se lembra que mantiveram relações em
frente a sua casa, embaixo de uma árvore. Nesse instante, ela sentiu que ficaria
grávida. Pedro não sabia de seu envolvimento com Valter. Ele estava acamado e já não
podia mais sair para passear. Permanecia sempre em casa. Valter e Roselaine estavam
há 3 anos juntos.
Apesar de ambos saberem que Roselaine era soropositiva, eles não
usavam camisinha. Tentaram algumas vezes, mas não se sentiam bem, ambos sentiam
que a camisinha era como se Valter estivesse com preconceito de Roselaine. Assim,
enquanto sua primeira gravidez foi apreciada até o infeliz final, nesta segunda gravidez
Roselaine não se sentia feliz, ao menos, de início. Ela tentou abortar seu filho de todas
as maneiras. Não queria ter um bebê com AIDS. Ela já tinha noção de que havia a
possibilidade de negativar os vírus do seu bebê, de tanto falar com os médicos em suas
consultas ela já estava conhecendo um pouco mais da sua doença. Mas, ainda nessa
época, não havia remédio e o tratamento existente para negativar não era tão eficiente
quanto hoje. Usava-se apenas o AZT. Se ele não negativasse, ela sabia que ele teria
que enfrentar muitas coisas na vida por causa disso.
Roselaine se perguntava se Bernardo, seu filho, teria a mesma sorte que
ela de encontrar alguém que a ama mesmo com AIDS como Valter, ou se ninguém o
amaria por ele ser soropositivo. Apesar das tentativas de aborto e, posteriormente, dos
cuidados para que seu filho não nascesse portador do HIV, Bernardo nasceu
soropositivo. Roselaine continuou a fazer o tratamento necessário na esperança de que
ele negativasse até dois anos de idade. No entanto, ela acha que teve depressão pós-
parto. Ela precisou ficar internada um tempo e, freqüentemente, após a internação, ela
tinha que ser levada para o hospital para tomar injeções. Ela andava muito agitada,
nervosa, descontrolada. Foi então que ela ficou internada no hospital por 7 dias fazendo
exames, mas nada foi descoberto e é por isso que ela pensa que teve depressão pós-
parto.
E foi nessa época que Roselaine ficou internada que sua mãe cuidou do
Bernardo. Um dia ela o levou para uma feijoada, ele tinha 2 meses de vida, e deu
feijoada para ele. Depois disso, Bernardo precisou ficar internado porque estava com
febre e passando mal. Bernardo ficou junto com Roselaine que já estava no hospital.
Porém, ele pegou uma pneumonia e tornou-se doente de AIDS, sem chance de
negativar. Essa fase foi muito difícil para Roselaine, ela se sentia muito culpada.
Pedro só ficou sabendo de sua gravidez quando esta completara 7
meses. Isso porque Roselaine fazia de tudo para que ele não percebesse: usava
roupas largas, não se trocava mais na frente dele, etc. Ainda assim, eles estavam
morando juntos e Roselaine continuava cuidando dele. Vinte dias após Bernardo ter
nascido, no dia 27 de junho de 1996, Pedro faleceu. Já no mesmo dia em que
Roselaine se internou para ter o seu filho, Pedro foi levado para o hospital muito mal.
De lá, do dia 7 até o dia 27, o quadro de Pedro só piorou e ele veio a falecer. Mas
quando morreu ele já tinha conhecimento da gravidez de Roselaine, e sabia que o filho
não era dele. Roselaine foi quem contou. Pedro disse que não havia reparado e
perguntou de quem era o filho. Ela não quis contar porque Pedro era amigo de Valter.
Restou a Pedro dizer que ele iria apenas esperar que a criança nascesse e depois iria
embora, coisa que Roselaine não entendeu.
No entanto, logo após a fala de Roselaine sobre esse assunto, ela
emendou dizendo que se eles, ela e Pedro, não tivessem nenhum herdeiro tudo o que
ela tinha iria para os pais de Pedro que nunca o ajudaram com nada. Ela e Pedro não
achavam justo que isso acontecesse, portanto, imaginamos que Pedro possa ter
esperado essa criança nascer para que Roselaine pudesse permanecer
financeiramente segura. Por outro lado, o filho não era dele e sua mãe sabia disso, ele
mesmo contou em uma de suas internações no hospital.
Roselaine trabalhou bastante como empregada doméstica e diarista até
ir para a ONG na qual é membro até hoje. Ela participava de algumas oficinas de
artesanato. Quando soube da sua gravidez resolveu parar de ir a esta instituição por
medo de que as pessoas a julgassem por ser uma mulher com AIDS que engravidou,
assim como seu médico já havia feito. Quando o Bernardo completou 7 anos, Roselaine
contou a ele sobre sua doença. Ela disse que ele reagiu normalmente, não tem certeza
se ele entendeu a dimensão de ser uma pessoa portadora do HIV.
De qualquer forma, ele já sofreu com o fato de ser doente de AIDS. Em
sua escola, a professora resolveu perguntar se alguém da sala conhecia uma pessoa
com AIDS. A prima de Bernardo levantou a mão e disse que sim. Nisso, o restante das
crianças perceberam de quem ela estava falando. Os amigos de Bernardo o
questionaram a respeito e começaram a tirar sarro dele. Bernardo começou a chorar e
foi correndo para a casa de sua avó. Quando Roselaine chegou eles conversaram. Ela
foi à escola falar com a professora. Mas o estrago já havia sido feito. É desse tipo de
situação que Roselaine tinha medo por Bernardo.
Roselaine freqüenta a ONG há 9 anos. Desses 9 anos, 6 ela conseguiu
viver com o dinheiro que recebia de projetos desenvolvidos na instituição. Ela não se
lembra como foi parar nesta ONG nem o porquê, ela imagina que foi uma amiga que a
levou. Ela foi indo e acabou ficando. Muita coisa que ela sabe, hoje em dia, a respeito
da sua doença ela aprendeu lá. O último projeto pelo qual ela recebia durou 3 anos.
Acabou no meio do ano de 2005. Ela diz que a instituição faz bem para ela, fornece
informações e dá acesso mais fácil à sde, exames. Ela cita que tem que fazer
exames (2 exames) que custarão 1000 reais e ela não tem como pagar. Ela comentou
o fato com a presidente da ONG, que é conselheira de saúde também, e ela disse que
irá levar esse assunto para a comissão de saúde e ver o que eles conseguem.
Roselaine comenta esse fato como algo que acontece porque ela participa da
instituição, se não fosse isso, ela não teria acesso a esse recurso. Dentro da ONG, ela
é voluntária, participa na comissão de assistência da instituição, na comissão de
prevenção e participava de um projeto que foi encerrado recentemente.
Roselaine só conseguia pensar em morte quando se descobriu
soropositiva. Ela tinha certeza que não viveria muito. Mas com o convívio que ela foi
tendo dentro da ONG onde trabalha, ela foi mudando seu pensamento. Hoje ela pensa
que a AIDS é uma doença crônica que pode ser controlada. No início de sua
enfermidade, Roselaine comentou que era só ela e a sua AIDS. Mais ninguém sabia,
assim era mais fácil continuar a vida normalmente. Mas quando os efeitos da doença
começaram a aparecer foi ficando cada vez mais difícilo saber sobre o seu estado. E
tamm o nascimento de Bernardo foi bastante difícil para ela em termos de convívio
com sua própria AIDS. Ela também sofreu preconceito em relação à mãe de Valter que
não queria que seu filho se envolvesse com ela.
Apesar de Valter ser o pai de Bernardo, Roselaine não mora junto dele,
nem são casados. Viveram juntos algum tempo mas não deu certo. Eles continuam
namorando, Valter a visita sempre, às vezes até dorme na casa de Roselaine, mas,
apesar disso, ele não assume o compromisso de permanecer junto dela e do filho.
Talvez isso aconteça por pressão da mãe dele que faz questão de mostrar que não
gosta da Roselaine e não permite que ele se aproxime mais de sua família. Roselaine
se recente por isso. Porém, o fato de manter relações sexuais com Valter sem o uso de
preservativo demonstra para Roselaine o amor que Valter devota a ela.
No início do seu relacionamento com Valter eles tentaram usar
camisinha mas não conseguiram. Roselaine diz que ele sempre soube que ela tinha
AIDS mas ela nunca contou, ele soube através do comentário de outras pessoas. O
próprio Valter em uma relação sexual retirou a camisinha e disse que não iria usá-la
porque ela atrapalhava. Roselaine nunca ligou para isso. Ela diz que não se sentirá
culpada se um dia ele pegar um exame que deu positivo para HIV. Isso porque ela já
levou camisinha para casa várias vezes e ele nunca quis usar. No entanto, Roselaine
comentou que se eles transam com camisinha ela se sente mal por pensar que Valter
está tendo preconceito dela. Assim, ela diz que foi uma escolha dele não usar e que
eles não falam sobre esse assunto. A única coisa que já surgiu em uma conversa entre
os dois sobre a AIDS aconteceu em um dia que ele estava bêbado e falou que queria
pegar AIDS para ser como ela e seu filho Bernardo. A respeito disso Roselaine pensa
que se ele assumisse o relacionamento com ela e criasse um vínculo maior ele iria
sofrer mais porque poderia perdê-la para a doença, já se ele for soropositivo todos
ficam no mesmo patamar.
Apesar das inúmeras vezes que Valter manteve relações sem camisinha
com Roselaine, e de Roselaine pensar que ele sabia de sua soropositividade, no dia
que Valter ouviu da boca de Roselaine que ela tinha AIDS ele a deixou. Roselaine
ainda não estava grávida de Bernardo na época. Ele retornou uma semana depois
dizendo que a amava e que ele não se importava dela ser soropositiva. Foi depois disso
que ela ficou grávida de Bernardo. Nesse ponto, Roselaine dizia que não se importava
mesmo de transar com ele sem camisinha porque ela estava super magoada pelo
abandono de uma semana. Teve épocas de ela desejar que ele contraísse o vírus
como uma forma de castigo.
Roselaine comenta que convive bem com a sua AIDS, porém, ela não
faz planos, já que é mais fácil de não se desapontar quando você não tem nenhuma
expectativa.
4.5.2 Análise
Ao analisarmos suas entrevistas percebemos que Roselaine parece
manter o mesmo comportamento antes e depois de saber-se soropositiva. Como ela
mesma nos relata, o fato de saber-se com AIDS foi apenas mais uma notícia em sua
vida, ela nada sabia sobre o assunto. O que parece tê-la afetado mais foi o
comportamento da equipe médica ao dizer o diagnóstico. Eles foram bastante
agressivos e julgadores.
Parece que Roselaine nunca quis pensar bem sobre o que estava
acontecendo com ela para não sofrer. Mais ou menos um ano depois que ela soube do
seu diagnóstico, Pedro sofreu o acidente que o deixou bem debilitado e fez aflorar mais
rápido as conseqüências da AIDS. Ela passou 5 anos da sua vida cuidando dele.
Cuidar de Pedro poderia ser uma maneira de não pensar em sua própria doença, em
sua vida. De fato, quando ela relata algo sobre a AIDS o que vem à tona é seu medo
em relação ao Bernardo. Ela mesma diz que vive bem com sua AIDS, e seus 16 anos
de enferma comprovam isso para ela. No entanto, nenhum cuidado é tomado para que
outras pessoas que passem por sua vida não sejam prejudicadas. O não uso do
preservativo demonstra isso. Ela não usava camisinha com Pedro, tanto que contraiu o
vírus dele, e não usa camisinha com Valter, que, por sorte, ainda não se contaminou.
... a gente comou ele já sabia que eu tinha AIDS sabe e... que que eu
posso fazer.
Então, nessa época, ele sabia que eu tinha AIDS mas ele não tinha
ouvido de mim, ele sabia por comentário do povo.
Essa despreocupação em relação ao outro demonstra que há um
possível desejo inconsciente de se autodestruir. É como se ela não tivesse nada a
perder, o que tinha já foi perdido ao saber-se soropositiva. Através do descaso de
Roselaine em relação ao outro podemos notar o seu descaso em relação a si mesma,
já que o sujeito se constrói na relação com um outro (CABAS, 1982). Pensando nisso,
podemos dizer que a pulsão mais evidente em sua dinâmica estrutural é a pulsão de
morte, sua indiferença em relação à vida nos remete a isso.
Como as pulsões são governadas pela função parental (FREUD,
1969d), sabemos que houve um lapso desta função fazendo prevalecer a pulsão de
morte ao invés da pulsão de vida. Um exemplo desse lapso da função dos pais na vida
de Roselaine foi o fato de sua mãe ter dado feijoada para seu neto de 2 meses de vida,
impossibilitando que ele negativasse os vírus HIV existentes em seu corpo. Essa falta
de cuidado em relação às pessoas que supostamente devem ser amadas, percebido
tanto na mãe de Roselaine quanto nela mesma, evidencia o tipo de movimento libidinal
transmitido por sua família e repetido por Roselaine.
A maneira como ela foi infectada pode estar contribuindo para que ela
aja dessa forma. Afinal, o homem que ela amava a infectou, sabendo que ele já possuía
a doença. Roselaine descobriu que Pedro já havia feito o exame para saber se tinha
AIDS quando eles ainda namoravam. Mesmo assim, ele nunca falou nada para ela, e
nunca fez questão de usar camisinha. A história que Roselaine imagina que aconteceu
é que ele não acreditou no diagnóstico de soropositivo quando este foi descoberto.
Para ela, essa é a única explicação por ele tê-la infectado dessa maneira.
A diferença que acompanha o casal, Roselaine e Valter, o fato de ela
ser doente e ele não, parece incomodar a ambos, e a camisinha é o símbolo do que os
separa, o que pode contribuir para a manutenção de um comportamento destrutivo.
A gente transava de camisinha ficava esquisito. Ai ele ficava sentindo.
Eu ficava sentindo que ele tava com preconceito de mim, sabe assim. E
ao mesmo tempo ele sentia a mesma coisa. (...). E assim foi a escolha,
sabe assim, foi... a gente tentava usar e não dava certo, tirava e não sei o
que, então assim, sempre foi uma escolha mais da parte dele, de o
usar...
Ela relata que ele parece querer contrair o vírus para ficar igual a ela e
ao filho, como se apenas sendo igual a eles Valter pudesse ser da família:
... ele fala assim que ele quer ter AIDS, que ele quer ser igual a eu e ao
Bernardo sabe essas coisas, que ele não tá junto com a gente porque ele
tem medo de perder a gente, acho que ele quer ficar mais afastado, sabe
assim não ter um vínculo tão grande porque um dia ele sofre dai não
perde muito.
Quando Roselaine soube que estava grávida de Bernardo ela procurou
abortá-lo porque não queria se sentir culpada e não queria que Bernardo sofresse. Não
queria ter nas costas a responsabilidade de dar à luz uma criança doente, fruto de uma
traição.
... sofrer porque você sabe que a AIDS é uma doença fudida mesmo,
que todo mundo vai morrer mas com AIDS você pode até acelerar mais a
sua morte, sei lá eu, essas coisas, fiquei pirada assim e não queria que
ele nascesse com AIDS, que eu ia me sentir culpada e coisa e tal, tanto
que eu me sinto culpada até hoje.
Os comportamentos de Roselaine estão sempre voltados para a
destruição dos laços afetivos. Ela dizia amar Pedro, mas o traiu. Diz amar Valter, mas
deseja que ele contraia o vírus como castigo pelo abandono que sofreu. Olhar para o
seu filho é ter a todo momento alguém lembrando a ela das escolhas que fez na vida,
da sua culpa. Roselaine parece se conscientizar de seu movimento em dados
momentos, mas é visível sua falta de desejo em sair desse ciclo destrutivo.
... eu acho que se a pessoa não gosta ninguém vai encarar uma AIDS
assim e transar sabe, então acho que, que é amor mesmo e que é por
isso que ele faz essas coisas. Amor mas ao mesmo tempo não tem amor
nenhum né, nem na própria vida. Porque fica fazendo... transando sem
camisinha com uma pessoa que tem AIDS, você tá fazendo o que?
(pausa) Se matando né. E agora assim, até esses tempo eu não ligava
mesmo, que o Valter vinha... porque eu tava muito magoada com ele
desde que ele me deixou. Então, às vezes, eu transava com ele assim
mesmo pensando seu filho da puta, tomara que você se infecte, sabe
assim, então eu acho que fui muito má, mas continuo transando com ele
sem camisinha.
Roselaine se envolve com pessoas que estão no mesmo movimento
que ela. Tanto ela não se cuida quanto o Valter que, mesmo sabendo que pode ser
infectado, transa sem preservativo. Isso ocorre porque Roselaine se identifica com
essas pessoas canalizando sua libido para um objeto destrutivo, obedecendo ao
movimento da pulsão de morte, mais forte em sua psique, e criando fantasmas que
suportem essa relação, como quando ela diz que ele sabia que ela tem AIDS ou que foi
uma escolha dele manter relação sem camisinha (CABAS, 1982).
Parece que os comportamentos de Roselaine não reconhecem um
limite. Portanto, a castração não é um elemento internalizado por ela, uma vez que
Roselaine está sempre a desafiar os limites da vida. Sendo assim, seu superego
tamm é bastante precário no que diz respeito a sua função. A onipotência narcísica
aqui é voltada para a capacidade de destruir os outros e a si mesma.
O medo do abandono tamm está presente no discurso de Roselaine.
De fato, quando ela mesma disse a Valter que tinha AIDS (antes disso, ele sabia pelos
outros) ele a deixou por uma semana. Roselaine ficou muito magoada e desejava que
ele contraísse o vírus, como uma forma de vingança pelo abandono sofrido. Depois
desse abandono, o não uso da camisinha parece ter se tornado uma prova de amor.
A relação com a morte, apesar dos avanços da medicina e dos
números de pessoas que estão convivendo há muitos anos com a doença, ainda se faz
presente. Parece que a maneira pela qual esta doença é encarada, seja ela morte ou
uma oportunidade, faz diferença na hora de lidar com ela e com a própria vida dali em
diante. Isso é presente tanto no que Valter fala para Roselaine, como vimos, como em
seu próprio discurso quando ela relata o porquê tentou abortar seu filho.
... eu não queria que ele sofresse por que... ah, eu tinha sofrido algumas
coisas, ah, sofrer porque você sabe que a AIDS é uma doença fudida
mesmo, que todo mundo vai morrer, mas com AIDS você pode acelerar
mais a sua morte...
A participação em uma ONG ajudou-a a ter acesso mais fácil a
medicamentos e tratamentos, além de possibilitar um emprego diferente daqueles aos
quais ela estava acostumada, mas parece que o contato com essa instituição não
contribuiu para que ela enxergasse a doença de outra forma.
O medo de não ser amada por ter AIDS é presente no discurso de
Roselaine. Quando ela fala dos sofrimentos que seu filho vai enfrentar por ser
soropositivo, um de seus medos é que ele não encontre alguém que o ame como ele é,
com AIDS. Ao falar sobre esta preocupação, ela compara essa possível situação com a
sua própria, onde ela parece ter encontrado alguém que a ame.
Eu fico imaginando nessa pergunta tua o que o Valter pensa que ele não
usa camisinha, mas assim (pausa) ai eu vejo isso e penso no Bernardo,
sabe assim, será que alguém vai gostar dele, é... igual todo mundo que
sabe que o Valter não usa camisinha fala assim “ele deve gostar muito de
você se não ele não fazia isso”. Tipo, porque você tem AIDS é... é mais
difícil que uma pessoa goste de você? Sabe.
Pode ser que ingressar em uma instituição como uma ONG onde há
mais pessoas na mesma situação de soropositiva, possa aplacar um pouco esse medo
de não ser amado, de ser rejeitado. Estar entre iguais traz certo sentimento de conforto,
é como se estivessem em família. O discurso de Roselaine nos remete a pensar que
ela só pode ser amada em um lugar onde a maioria é soropositiva, como na ONG onde
Roselaine atua. E mesmo quando ela se relaciona com pessoas que não têm AIDS, seu
desejo é que elas se infectem.
Tudo começou com um engano por parte de seu primeiro marido, o
Pedro. Roselaine foi ludibriada por ele, seja conscientemente ou não, o fato é que ele já
sabia que poderia ter AIDS e não se importou. Roselaine parece manter o mesmo
movimento com o Valter, pai de seu filho e seu namorado. Parece que ela ainda se
recente por Pedro tê-la infectado, não houve uma elaboração do ocorrido, portanto, ela
mantém o mesmo comportamento que a contaminou. O que não é elaborado é repetido
(FREUD, 1969E). E já que não há elaboração, torna-se difícil a possibilidade de que
aconteça uma transformação para a vida.
5 DISCUSSÃO DAS ANÁLISES
Ao analisarmos as entrevistas realizadas, percebemos que o
reconhecimento da possibilidade da própria morte é um ponto de fundamental
importância para que haja uma nova visão da própria vida. Tal ponto já havia sido
explorado no primeiro capítulo do presente trabalho quando tratamos especificamente
da historicidade da morte no ocidente, sugerindo que a maneira como uma pessoa
conceberia a morte definiria seu modo de viver. Olhar a possibilidade da própria morte
fez com que o comportamento de muitos dos nossos entrevistados se modificasse.
Houve maior reflexão sobre suas vidas e o modo como eles a estavam conduzindo.
Alguns pararam de se exceder em comportamentos que não seriam saudáveis para a
manutenção de um equilíbrio corporal que os fortalecesse. Outros passaram a ser mais
próximos de suas famílias, e olharam para isso como um ganho advindo da doença.
Houve, tamm, mudanças na concepção de vida de alguns.
Num primeiro momento, a morte não tem sentido para o sujeito já que
sua representação lhe falta. Ao saber-se soropositivo e ter imposta essa condição
mortal, o sujeito se depara com o questionamento de si mesmo, de sua identidade
enquanto ser de desejo. Para que o sujeito encontre uma saída para essa situação ele
precisa simboli-la de acordo com os aparatos psicológicos já existentes em sua
estrutura. A única representação que o sujeito possui do que poderia se assemelhar à
morte, vem da época em que o sujeito encontrava-se indiferenciado de sua mãe e da
onde ele precisou retirar-se para originar-se. Então, essas experiências de fusão e
separação e suas respectivas representações que apontam em uma direção e buscam
figurá-las, são estruturantes para o Eu. São elas que servem para pôr um sentido tanto
em sua origem quanto em seu fim.
É nesse ponto que entra a relevância da família, pois, é a convivência
familiar que capacita o sujeito a possuir representações dessas experiências. Portanto,
são os fantasmas partilhados com a família e seus mitos que irão ajudar o sujeito a
integrar os limites expostos pela enfermidade numa racionalidade capaz de incluí-lo
enquanto sujeito. Assim, se utilizando de fantasmas originários como esquemas de
ordenamento e sentido o sujeito procura imaginar o término de sua vida de acordo com
os modelos de nascimento, sedução e castrão, por exemplo, fundindo-se com este
ou aquele fantasma para receber uma encenação aceitável de sua morte. Nesse caso,
o fantasma cumpre exatamente o seu dever de fornecer ao sujeito o que lhe escapa.
Apesar da própria fantasia do nascimento ser algo que escapa ao
sujeito, ela já foi suficientemente trabalhada no inconsciente para servir de molde para
encenações futuras que auxiliem o sujeito a preencher seus vazios. Sendo assim, um
retorno do sujeito a essas fantasias como forma de compreender o seu presente é
justificável à medida que ambas, fantasias de origem e de finitude, representam uma
experiência limite e que, por isso, podem partilhar os mesmos operadores. Mas é
preciso ressaltar que esse retorno não é puramente regressivo e sim elaborativo
(BIANCHI, 1993).
Na busca de um novo sentido para o Eu, o sujeito se coloca em um
trabalho incessante que consiste em construir uma identidade ressignificada que
comporte uma continuidade ideal sobre um real descontínuo. O sujeito caminha sempre
entre sua origem (vida) e finitude (morte), dois grandes enigmas não representáveis,
mas que, por isso mesmo, mantém o sujeito caminhando movido por suas pulsões em
um trabalho constante para mascarar suas faltas. E pensamos ser nesse raciocínio que
a AIDS passa de uma doença mortal para uma doença crônica, onde ainda há algo
porque se lutar (BIANCHI, 1993).
Assim como Bianchi, Kóvacs (1996) tamm escreve sobre a existência
de um jogo constante de vida e morte no sujeito. Ela relata que estamos sempre
passando por diversas fases em nossa vida onde devemos fazer o luto da fase anterior
para construirmos uma nova identidade. E foi isso que aconteceu com nossos
entrevistados. Houve a necessidade de fazer o luto de um narcisismo onipotente para
reconhecer seus limites e poder dar um novo sentido para si mesmo frente à nova
experiência de vida. Esse novo sentido encontrado por Silvia, Lucas, Eduardo e Cristina
não necessariamente os melhorou enquanto seres humanos, mas pode tê-los
aprofundado, tornando-os mais conscientes de si.
Ainda segundo Kóvacs (1996), para que cada crise advinda das fases
pelas quais o sujeito passa sejam resolvidas de forma satisfatória, é necessário que
elas sejam solucionadas em sintonia com o ego. Ou seja, inicialmente o organismo
começa negativo para, mais tarde, gradativamente, com o fortalecimento do ego, vá
ocorrendo um equilíbrio. Lembrando do discurso de alguns de nossos entrevistados,
como Lucas e Silvia, percebemos que eles precisaram de um tempo para si antes de
poder compartilhar sua enfermidade com a família. Somente quando a AIDS pôde ser
elaborada internamente é que o sujeito buscou alternativas de suporte externo
(CARTWRIGHT; CASSIDY, 2002).
Como já nos afirmava Lacan (1978), não há sentido nenhum que se
mantenha sem o seu oposto, isto é, sem o reconhecimento da morte a vida não faz
sentido. Parece que, ao contrário da maioria de nós que pensa que nossa morte está
num tempo longínquo, para os participantes dessa pesquisa ela se fez muito próxima.
Com isso, podemos dizer que houve um retorno à concepção de morte semelhante
àquela da Idade Média. Nesse período, havia uma consciência acentuada da morte, de
que ela poderia chegar a qualquer momento e, portanto, as pessoas tinham uma paixão
forte pela vida (ARIÉS, 2003). Parece que ocorreu o mesmo com alguns de nossos
entrevistados. Eles passaram a viver suas vidas da melhor maneira que podiam,
procurando dar um novo sentido para ela, fazendo coisas úteis que não se perdessem
no tempo.
O reconhecimento da própria morte passou a ser o melhor momento
para tomar consciência de si. A morte tornou-se um fenômeno de conhecimento
pessoal e, por isso mesmo, pôde ser encarada como um momento de ‘ruptura’ onde se
abre a oportunidade para reflexão (ARIÉS, 2003). Percebemos isso na fala dos sujeitos
entrevistados. Muitos deixaram de fazer coisas que pensavam prejudicar sua saúde ou,
simplesmente, coisas que não faziam mais sentido serem feitas. Do momento do
diagnóstico em diante, passou-se a refletir mais sobre o que de fato valia a pena ainda
ser feito. E essa morte reconhecida de nossos sujeitos trouxe consigo uma novidade do
século XVIII que perdura até os dias atuais: o envolvimento da família. Além de
reconhecer-se finito, como na Idade Média, a pessoa doente obteve, ao longo do século
XVIII, o apoio da família. Dessa forma, a dor sofrida por tudo que a doença pode
representar é compensada pelo suporte emocional dos mais próximos e queridos. Esse
suporte da família tem como objetivo manter a coesão familiar (MARTINS, 1983).
O avanço da medicina tornou distante a morte e a substituiu pela
doença. No entanto, no caso da AIDS, ainda que os medicamentos contribuam para um
status de doença crônica e possamos falar em ‘pessoas vivendo com AIDS’, por ser
uma doença incurável, ela trouxe a morte para perto, não sendo mais possível
escamotear a finitude de nossa existência (MARTINS, 1983). Assim, necessariamente,
todas as pessoas entrevistadas, tomaram consciência da morte próxima, de uma forma
ou de outra. Ao contrário dos séculos XVI e XVIII, onde a morte era expressa em obras
de arte mas estava longe do imaginário social, no século XX, a AIDS escancara a
morte, aproximando temas tabus, como a morte e o sexo. Por conta do medo da morte
nos séculos XIX e início do XX, suas imagens foram desaparecendo e não se falava
mais nisso. Até que no final do século XX, a morte tomou a cara da AIDS.
Para a maioria dos entrevistados, a materialização dos seus limites, o
corte da castração, contribuiu para a modificação do modo como eles subjetivavam
suas experiências. A proximidade da morte à castração se dá porque a morte impõe um
limite ao sujeito, assim como, na relação edipiana, o pai impôs um limite ao seu filho.
Dessa forma, a morte acaba por preencher o lugar do pai e, tendo sido aceita a sua lei
por parte do sujeito, pode-se encontrar aí novamente um sentido para a sua vida e uma
identificação, isto é, pode-se restaurar o narcisismo marcado pela finitude e direcionar
sua libido, novamente, para um objeto, trazendo um novo sentido para vida do sujeito
(BIANCHI, 1993). Um exemplo desse novo sentido é evidente quando pensamos na
relação que os participantes desta pesquisa desenvolveram com o tempo.
Para Silvia, Lucas, Cristina e Roselaine o tempo passou a ser curto,
mesmo que eles não saibam exatamente quanto. A marca do tempo tornou-se o fio
condutor de suas vidas, dando um novo sentido para ela. Silvia espera viver apenas
mais 5 anos, e reza para que esse tempo seja suficiente para a realização de seus
últimos sonhos: tornar sua ONG uma instituão horizontalizada e ver os filhos maduros
o suficiente para viverem sem ela. Todas as atividades de Lucas levam o selo do
tempo, não há espera, o que pode ser feito hoje é feito sem demora. Ele pôde olhar
para traz, analisar o que havia feito de sua vida e, a partir daí, pensar no que ainda
valia a pena ser feito, isto é, não havia tempo para ser perdido, todas as suas
atividades tinham que ter um bom motivo para serem realizadas.
Os mesmos paradigmas estão presentes na forma de condução da vida
por Cristina. Saber de sua própria morte fez com que ela se agarrasse ainda mais à
vida. Ela deixou de cometer os excessos de antes e passou a ter uma vida mais
saudável. Aproximou-se de sua família. Hoje em dia, seu convívio com sua mãe,
cunhados, sobrinhas (os) é mais intenso do que antigamente. Tal fato é apontado por
ela como um grande ganho da sua doença. E ela desfruta desse convívio com alegria.
A proximidade da morte fez surgir o desejo de ter uma vida com maior sentido, útil. Sem
que houvesse o desperdício de tempo que lhe resta.
Já para Roselaine, a doença foi encarada com muita tristeza, e o tempo
que a presença da morte marcou é sentido com muito pesar e não como uma
oportunidade para realizações ou planos. Pelo contrário, a marca do tempo fez com que
Roselaine não projetasse seus sonhos por medo de que eles nunca pudessem ser
realizados. Sua dinâmica é completamente diferente dos demais já citados.
Podemos dizer que o apoio que a família, o companheiro, os amigos,
dão à vida de Silvia, Lucas e Cristina fez a diferença para enfrentar a doença, que
inicialmente, foi concebida como a representação da morte. Os três encontraram novos
sentidos para temperar suas vidas, ao contrário da Roselaine. Segundo Rodrigues e
Caroso (1998), encontrar um sentido para sua experiência é fundamental para que o
indivíduo viva sua doença como libertadora, principalmente, quando há o apoio social,
como Adam e Herzlich (2001) já nos alertaram.
No caso dos três entrevistados citados, o apoio não veio apenas do
social mais amplo, como a ONG, mas tamm e, particularmente, dos familiares,
pessoas tão próximas e queridas. Na verdade, esse apoio familiar possibilitou que a
ONG fosse uma porta para a dor, para o portador do HIV. Isso é possível pelo modo
como a família trabalha com seus afetos e crises.
Ao longo da vida familiar ocorrem várias fases (casamentos,
nascimentos, mortes, etc.), e cada uma delas vai contribuindo para que a família se
adapte às novas circunstâncias que vão surgindo. O organizador familiar proposto por
Eiguer (2000), é um dos responsáveis por manter a coesão familiar e permitir que o
grupo vá superando suas crises, distribuindo e redistribuindo os investimentos libidinais
dos sujeitos dentro do seu meio. Momentos de crise reatualizam os antigos problemas
familiares, despertam emoções, implicam um certo luto pela experiência passada e
provocam uma modificação das regras permitindo uma definição de novas perspectivas.
Conforme a família obtiver sucesso ao encarar suas crises,
compartilhando-as e acomodando-as dentro de uma representação comum, o sujeito,
inserido na dinâmica desta família, tamm estará preparado para enfrentar situações
diversas, como uma doença. Assim, as reações familiares diante dos traumas são
fundamentais para a introjeção da experiência pelo sujeito. E é nesse sentido que a
família abre o caminho para a ONG, possibilitando que ela seja uma saída para o
sujeito.
Quando pensamos em como Eduardo encara o tempo, notamos que ele
faz questão de dizer que não se preocupa com isso. Ele vai vivendo sua vida sem
pensar que o reconhecimento de sua própria morte escancarou seus limites. No
entanto, ele tamm reconhece que houve uma mudança. Eduardo parou de viver só
de festas e badalações, começou a tratar de si com mais respeito, querendo viver
saudavelmente. Então, ao mesmo tempo em que há um desejo de não encarar seus
limites, ele os reconhece em suas atitudes ao parar de usar drogas, por exemplo. Por
conta de sua vivência na militância, Eduardo tamm se aproximou mais de sua família,
mais especificamente de seu pai e de seu irmão. Ambos, pai e irmão, não conversavam
com Eduardo por conta de sua homossexualidade. Porém, ao ver seu filho se
destacando através de suas atividades dentro da ONG, o pai de Eduardo passou a
respeitá-lo e admirá-lo, reconhecendo-o enquanto filho. A necessidade de união do
grupo familiar parece ter sido importante para essa reconciliação que só foi possível
quando o filho tornou-se sujeito de si e o pai pôde verificar sua autonomia e seu
sucesso. A partir daí, não era mais o espelho do pai e sim um outro sujeito, reconhecido
em sua unidade. A doença trouxe uma outra representação de quem era Eduardo, e
com essa nova identidade seu pai pôde conviver. Neste sentido, podemos dizer que a
doença traz uma nova identidade para o sujeito a partir da reelaboração de sua vida
(ADAM; HERZLICH, 2001).
Com exceção de Roselaine, todos os entrevistados tiveram o apoio de
suas famílias, compartilhando quaisquer problemas que houvesse antes da doença e,
posteriormente, unindo-se para lutar contra ela, fornecendo o suporte afetivo necessário
para o enfrentamento dos problemas advindos com a AIDS (reconhecimento da própria
finitude, cuidados exigidos pela doença, limitações impostas pela mesma) e reavaliando
as relações de afeto.
Ao contrário do que ocorria na segunda metade do século XX, quando a
família buscava poupar seu ente enfermo dos detalhes de sua enfermidade, com a
AIDS foram os próprios doentes que sentiram a necessidade de poupar suas famílias
até que eles próprios estivessem melhor preparados para enfrentar sua
soropositividade e compartilhá-la com a família. Sob este ponto de vista, o enfermo
assume sua provação (ÁRIES, 2003). O acolhimento recebido por suas famílias nos
demonstra a boa capacidade simbólica das famílias envolvidas no sentido de
compreender e internalizar os eventos acontecidos na mesma.
Os mitos familiares parecem ter dado conta do recado quando
preencheram os vazios surgidos na convivência. Afinal, são os mitos os responsáveis
por estrategizar os elementos simbólicos no manifesto (CABAS, 1982). Assim, a família
manteve seu papel organizador no momento de crise (EIGUER, 2000).
Sendo famílias capazes de dar esse suporte para os seus, podemos
entender que, ao contribuir na estruturação do psiquismo do bebê, elas o fizeram
acertadamente, assim como acertaram no que diz respeito à imposição de limites para
seus filhos, já que é isto que constitui a pulsão de vida, tão representativa do processo
de transformação vivido pelas pessoas entrevistadas (SOIFER, 1983). A família tem
suas estratégias específicas para lidar comrios tipos de situação. No caso da morte,
ela dispõe de rituais como as sepulturas, funerais, religião, que dão suporte para que o
indivíduo preencha o vazio deixado pelo ente querido e se mantenha a coesão e
solidariedade familiar (MARTINS, 1983).
Parece que, como Sontag (1984) já havia escrito, para alguns dos
participantes nesta pesquisa, enfrentar uma doença como a AIDS fez com que eles se
tornassem mais conscientes de si à medida que confrontaram a morte. Assim como se
tornaram vítimas do que eles próprios fizeram consigo mesmos e com os seus mundos.
Eduardo e Cristina, por exemplo, verbalizaram que sempre cometeram muitos excessos
sem pensar muito nas conseqüências. Dessa forma, a representação de que a AIDS é
uma doença onde o próprio doente é responsável está presente nos discursos
analisados. Lucas foi um que falou exatamente isso, que só pega AIDS quem quer.
No caso das antigas epidemias, como a Peste e a Hanseníase, tamm
se achava que a doença podia ser castigo de Deus por todos os excessos cometidos. E
o medo do desconhecido, juntamente com a angústia pela morte, fez com que muitas
atrocidades fossem cometidas contra os enfermos. Não estamos muito longe dessa
época quando pensamos que, tamm no século XX, havia pessoas que acreditavam
que os soropositivos deviam ser banidos da sociedade.
Ainda aproximando a AIDS do imaginário social da Hanseníase, ambas
tinham o peso da sexualidade sobre suas costas, pois, acreditava-se que a Hanseníase
tamm se transmitia por via sexual. A AIDS teve sim um impacto social muito grande,
como as epidemias acima citadas, e, com o passar dos anos, ela foi se tornando mais
branda como a Tuberculose. Há os que pensam que a AIDS passou a ser uma doença
crônica. Mas ainda assim, saber-se soropositivo ou saber de alguém que se contaminou
com o vírus HIV, parece reativar todos os nossos medos, principalmente porque essa
epidemia vem acompanhada de uma marca estigmatizante (SOURNIA; RUFFIE, 1984).
Kóvacs (KÓVACS apud BROMBERG, 1996) apontou que o doente
passa a ser culpado, seja pelo seu modo de viver ou pelos seus excessos. E essa culpa
foi vivida por Lucas, Cristina e Eduardo. Já Silvia não se vê como culpada porque
acreditava que seu marido não tinha nada, e tamm não o vê como culpado porque
pensa que ele tamm não sabia que era soropositivo, afinal, se soubesse, não a teria
exposto à doença. Roselaine simplesmente não fala de culpa, seu descaso com a vida,
mesmo antes da doença, demonstra que não há uma noção de responsabilidade que
faça emergir uma culpa.
Para Kübler-Ross (1988), as pessoas com AIDS não têm apenas que
passar por todos os estágios discorridos por ela frente à eminência de morte, elas
precisam enfrentar problemas que, normalmente, a sociedade recusa, como a
homossexualidade e a infidelidade. Mas, para ela, as pessoas que se unem se
fortalecem para passar por esta tarefa.
Silvia, Lucas, Cristina e Eduardo uniram-se a ONGs e às respectivas
famílias. Encontraram nesses ambientes o suporte necessário para viverem com esta
doença. Já Roselaine não teve a mesma sorte; apesar de sua família parecer estar
sempre ao lado dela, é clara a evidência da falta de preocupação em relação às
pessoas que os cercam, haja visto o fato da mãe de Roselaine ter dado feijoada ao seu
neto de dois meses de idade, contribuindo para que ele se tornasse doente de AIDS. O
bebê estava em processo de tratamento para tornar-se soronegativo, todos os cuidados
em relação a sua saúde deveriam ter sido tomados no sentido de evitar, a todo custo,
que ele contraísse uma infecção nesse período. Isso porque se ele pegasse qualquer
doença neste período, uma gripe, por exemplo, o vírus da AIDS iria se aproveitar desta
fraqueza momentânea do sistema imunológico da criança para se reproduzir. E foi o
que aconteceu. Quando ele foi alimentado com um tipo de comida tão forte para
alguém que possui apenas 2 meses de vida, seu sistema reagiu e ele contraiu uma
infecção que deu espaço para o vírus HIV atuar. Tamm é evidente no
comportamento de Roselaine sua falta de cuidado consigo mesma e com as pessoas
que a cercam. Ela mantém relações sexuais com o pai de Bernardo sem camisinha,
mesmo sabendo que ele não é soropositivo e sabendo dos riscos dele ser infectado,
sem contar que, mesmo que Valter tamm fosse soropositivo, o uso da camisinha não
se torna indispensável já que haveria troca de fluídos, tornando os vírus de ambos mais
fortalecido.
A maioria de nossos entrevistados apresenta, em seus discursos, uma
militância muito intensa em relação às questões que envolvem a AIDS não só deles
mesmos, mas também da comunidade. Silvia, Lucas, Cristina e Eduardo apresentaram
formas ativas de enfrentamento da doença se colocando como protagonistas de suas
vidas. Segundo Rodrigues e Caroso (1998), essa forma de enfrentamento da doença,
por sua característica, dá ao sujeito uma nova identidade, dotando-o de um status
social diferenciado. Um exemplo disso é a clara visibilidade política que eles obtiveram
em seus respectivos trabalhos. Dessa forma, eles puderam conquistar um lugar de
destaque na sociedade, amenizando o caráter negativo da enfermidade. Assim, ao
mesmo tempo em que a AIDS pode representar uma experiência negativa, ela ofereceu
uma oportunidade de reconstrução de uma identidade social.
Ao buscar respostas para sua doença, o sujeito busca, na verdade, um
sentido para a sua experiência. Ao enfrentar a doença de cabeça erguida, unindo-se a
grupos para lutar por uma causa, tal experiência de enfrentamento ganha um caráter de
superação da mesma, como se houvesse um controle sobre a enfermidade (BORGES,
2001; ADAM; HERZLICH, 2001). Muitas vezes, Lucas verbalizou sua necessidade de
manter a doença sob controle. No entanto, essa capacidade de superação está ligada
às experiências anteriores do sujeito. Sendo assim, voltamos a dizer o quanto é
importante a história familiar das pessoas, uma vez que é nela que temos nossas
primeiras experiências de vida, aquelas que servirão de molde para experiências
futuras.
No que diz respeito à transformação vivida pelos sujeitos entrevistados
neste trabalho, parece que Roselaine é a única que não se encaixa no perfil necessário
para que uma transformação aconteça. Mesmo antes de sua enfermidade, a relação
que ela tinha com a vida não era das melhores. Ela manteve, após o conhecimento de
sua doença, a mesma posição frente à vida, ressaltando sua pulsão de morte. Ao
contrário dos demais que, mesmo antes da enfermidade, tinham uma estrutura psíquica
mais voltada para a pulsão de vida.
Eles já possuíam uma vida cheia de sonhos, o que a doença trouxe foi
uma possibilidade de colocar todas as suas potências em direção a um ideal, o de
alcançar seus objetivos sem perder tempo, de curtir a vida com uma outra concepção
dela, de tomar maior consciência sobre si mesmo. Pareceu-nos claro que a família teve
um papel essencial nessa transformação, já que é ela a responsável por constituir o
psiquismo do sujeito alavancando sua pulo de vida, pulsão esta que foi utilizada da
melhor forma possível quando aconteceu de se descobrirem com AIDS.
No segundo capítulo deste trabalho, quando fizemos algumas
considerações teóricas a respeito de nosso objeto de estudo, foi indagado se a ONG
não seria um mecanismo de enfrentamento da doença. Pensando sobre a análise das
entrevistas realizadas, não parece que seja esse o caso, ao menos não inteiramente.
Inicialmente, pode ter sido um mecanismo de enfrentamento da doença no sentido de
regular o desespero emocional que a AIDS causava. Porém, conforme nossos
entrevistados foram acomodando a experiência de ser soropositivo, a ONG tornou-se
uma nova forma de agir adaptada à nova experiência, uma vez que é o outro que
suporta a identidade ressignificada de cada sujeito (WAIDEMAN, 2003).
Após o choque inicial da doença, o sujeito sai de uma relação consigo
mesmo para uma relação com o mundo, assim como, na infância, a relação com os
pais retirou o sujeito de um estado narcísico para ser integrado à vida em sociedade.
Ao identificar-se com uma Organização Não Governamental, o sujeito está tentando
sobreviver a si mesmo, identificando-se com uma entidade mais durável do que ele
próprio. Essa identificação não serve somente para equilibrar os estímulos advindos do
saber-se soropositivo, mas, mais que isso, o sujeito se remete para a vida através da
ONG, indo contra o desejo do organismo por estabilidade (Princípio de Nirvana) e,
portanto, abrindo espaço para que a transformação aconteça.
Ao engajar-se em uma instituição, a vida enquanto projeto volta a ser
possível e a sensação de aniquilamento causada pela idéia da própria morte é
suprimida, restaurando a ilusão de relativo controle. Por isso a necessidade da busca
por um sentido que, quando descoberto, serve de resposta para a pulsão, afinal,
enquanto há algo em que se investir, há vida.
O desamparo sentido ao ver-se obrigado a reconhecer seus limites, foi
vencido pela militância que contribuiu para que as pessoas entrevistadas pudessem
organizar simbolicamente a experiência da soropositividade, sob um aparato simbólico
inicialmente abalado, mas existente desde os investimentos familiares no sujeito.
Assim, a superação do desamparo, como Labaki (2001) já havia alertado, foi
estabelecida através do outro que investiu de afeto o sujeito. Daí que podemos dizer
que o lugar onde o sujeito recebeu seus primeiros investimentos foi na família.
Então, os investimentos familiares possibilitaram que os sujeitos em
questão se fortalecessem enquanto seres do desejo do outro e pudessem se colocar na
posição de investir em um objeto (ONG) que os ajudasse a acomodar a nova
experiência. E, como o objeto é revelador das pules (LABAKI, 2001), o modo como
os 5 participantes deste trabalho se relacionam com a ONG demonstra qual pulsão é
mais presente em suas vidas.
Para Silvia, Lucas, Eduardo e Cristina a ONG faz parte de seus planos
e projetos de vida. Silvia deseja que ela se torne acessível a várias camadas da
população. Lucas encontrou na instituição um espaço de luta e trabalho. Eduardo não
vive sem o agito que suas atividades na organização exigem. Cristina enxerga suas
tarefas na ONG como um meio de prevenir que outras pessoas se infectem e como
uma ocupação que mantém os pensamentos negativos longe.
No entanto, enquanto para eles a ONG é um objeto da pulsão de vida
que os leva sempre a trabalhar, planejar, sonhar, para Roselaine a instituição não
possui os mesmos significados. Ela não se lembra de quando entrou na organização,
nem o porquê, e, na verdade, ela não mencionou a ONG na qual é voluntária antes que
fosse questionada a respeito, ou seja, a instituição não faz parte de sua vida de forma
essencial. Seu interesse nela está voltado aos privilégios de ser voluntária em um lugar
onde há pessoas que lutam por ela. Um exemplo disso é exposto por Roselaine quando
ela disse que, por estar na ONG, ela poderia conseguir fazer os exames que precisava
gratuitamente ou mais barato. Então, a instituição é um recurso imediato e não fruto de
uma elaboração, de um trabalho que a faça planejar sobre sua vida e ter sonhos. Por
isso, podemos dizer que a pulsão de morte se faz mais presente para ela, uma vez que
ela se coloca em uma posição de assistida dentro da organização e não de
protagonista, como os demais.
Kübler-Ross (1977) escreveu sobre as várias fases que um indivíduo
pode passar ao vivenciar uma doença que remete à morte: choque, negação, raiva,
barganha, depressão e aceitação. Pensamos que de todas essas fases, vividas de
forma diferente para cada sujeito e não necessariamente nessa mesma ordem, a única
que os entrevistados parecem não passar é a fase de negação. Todos eles, inclusive a
Roselaine, não parecem ter negado a AIDS. Ao contrário, foi pelo extremo choque que
a representação de morte vinda com a doença acarretou que eles puderam parar para
refletir e abrir caminho para a transformação.
No caso de Roselaine não aconteceu da mesma forma, ela
simplesmente não parece se importar com a doença, mas isso não quer dizer que ela a
negue. O que acontece é que ela não elaborou sua vida após a AIDS. A doença se faz
presente de forma contundente todos os dias para ela. Quando ela transa sem
camisinha, quando ela vê o filho sofrer discriminação por causa da AIDS, quando ela
sofre os efeitos colaterais dos remédios. Enfim, seus comportamentos destrutivos em
relação a ela mesma e aos outros demonstram que ela não nega sua enfermidade, mas
tamm não trabalha com ela. Roselaine não possui os mesmos recursos psíquicos
que os demais que a ajudariam a elaborar esta situação e criar suportes simbólicos
ressignificados. Isso porque houve alguma falha em sua constituição enquanto sujeito,
algo faltou em sua vida familiar e, por isso, não a equipou com os operadores
necessários para que uma transformação fosse possível. Talvez sua pulsão de morte
seja mais presente justamente porque a dor de saber-se enferma e finita é tão
insuportável que, inconscientemente, ela está sabotando seu organismo para que ele
encontre um fim, e assim, sua dor cesse. Sem recursos simbólicos para dar um novo
sentido para a sua vida, nos parece que a única saída seria entregar-se a falta
absoluta.
Pensando em todas as análises feitas, percebemos que a maioria das
pessoas entrevistadas conseguiu dar um contraponto à dor que sentiram ao
reconhecerem sua finitude. Esse contraponto é o sentido dado pelo sujeito para sua
experiência. Esse sentido precisa, necessariamente, ser compartilhado, fornecer um
novo investimento, ser falado, isto é, sua dor precisa ser contada e compreendida, de
forma que o sujeito possa reconhecer-se nela.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desse estudo, fizemos uma trajetória que nos ajudasse a
compreender a transformação vivida por alguns soropositivos participantes ativos de
ONGs. Para tanto, escrevemos um capítulo sobre a morte, por pensarmos que o
reconhecimento da mesma foi decisivo para que o sujeito refletisse sobre sua
concepção de vida. Dentro deste capítulo, inserimos dois subitens que nos auxiliaram a
entender as diversas epidemias ao longo da história e as representações das mesmas,
assim como a representação do doente enquanto um ser em sofrimento. A seguir,
elaboramos um texto a respeito das várias contribuições teóricas que embasaram a
questão principal deste trabalho, isto é, analisamos alguns referenciais psicanalíticos
que poderiam nos explicar qual dinâmica de sujeito poderia estar em jogo quando este
estivesse acometido por uma doença. No terceiro capítulo, falamos do método em si,
dos instrumentos utilizados na coleta de dados e análise das entrevistas. Então,
partimos para o quarto capítulo, onde apresentamos um resumo de todas as entrevistas
realizadas e suas análises. No quinto capítulo, fizemos uma discussão dos resultados
encontrados de acordo com as teorias apresentadas anteriormente.
Apresentaremos agora, algumas considerações finais a respeito do
processo de transformação vivido pelos participantes desta pesquisa sem, no entanto,
ter a pretensão de esgotar o assunto. Sabemos que o tema da transformação explorado
no presente trabalho pode ser abordado de diversas formas e sob vários aspectos, por
isso, salientamos a importância do desenvolvimento de outros trabalhos nesta área
buscando compreender os dinamismos que nela acontecem para, com isso, fornecer
subsídios importantes para um possível trabalho de intervenção.
A transformação vivida pelos soropositivos participantes desta pesquisa
foi possível por conta do aparato simbólico que os estruturou enquanto sujeito. Sob este
ponto de vista, mesmo deparando-se com a morte, fator tão presente em seus
discursos, eles puderam olhar para si mesmos, fazer da doença um momento de
reflexão para ressignificar suas vidas.
A família foi crucial no que diz respeito ao suporte simbólico necessário
para que esta transformação ocorresse porque, afinal, é ela a responsável por constituir
o sujeito e colocá-lo em uma posição de sujeito desejante através de sua dinâmica
relacional.
Não há um suporte simbólico específico da morte, por isso, no
momento que os participantes desta pesquisa se defrontaram com ela ficaram,
momentaneamente, sem referências possíveis. A família, nesse caso, cumpriu o seu
papel oferecendo outras possibilidades de representação, por tudo o que a própria
família representa na vida do sujeito, ela foi o porto seguro em meio à tormenta. Dessa
forma, a família contribuiu para que o indivíduo transformasse o sofrimento em uma
experiência capaz de conceder reforço e proteção à vida (LABAKI, 2001). E já que os
mitos são os grandes organizadores da vida simbólica (ANDOLFI; ANGELO, 1988),
podemos dizer que os mitos familiares, componentes de cada sujeito, eram
consistentes o suficiente para manter o grupo familiar unido, impedindo que houvesse
um desmoronamento simbólico irreversível.
No momento em que as pessoas entrevistadas souberam de sua
enfermidade, cada um ao seu modo, precisou de um tempo consigo mesmo para
elaborar a situação, acomodá-la à sua estrutura, ressignificando uma série de conceitos
antes estabelecidos. Na busca por um sentido, a ONG foi importante para que os
indivíduos pudessem reorganizar suas vidas dentro de novos parâmetros, parâmetros
voltados para essa nova experiência. A procura pela razão dos acontecimentos envolve
vários aspectos da vida pessoal do sujeito (RODRIGUES; CAROSO, 1998).
Sendo assim, a ONG e a família garantiram que os aspectos
psicossociais constitutivos de cada indivíduo fornecessem suporte a essa nova vivência
que se apresentava. A ONG pelo suporte social que representava frente ao
conhecimento da doença. Falar de sua doença dentro de uma ONG faz com que a
experiência do sujeito seja uma passagem, isto é, só podemos falar daquilo que já
passou, que já foi elaborado.
Muitas vezes, o conhecimento fornecido pela ONG e as experiências ali
vividas foram sentidas como um controle sobre a enfermidade, devolvendo o
sentimento de autonomia para cada participante dessa pesquisa. Portanto, a doença
não se manifestou apenas em um nível privado, mas tamm no social, obtendo apoio
de várias pessoas com as quais os participantes deste trabalho mantiveram contato, se
unindo a elas por um ideal comum, enfrentando a AIDS com maior controle, tornando-
se protagonista de sua própria vida.
Um fator essencial para que o indivíduo consiga enfrentar a doença
dessa forma relaciona-se à rede social na qual ele está inserido. No caso desta
pesquisa, nossos participantes puderam contar com suas famílias, que possibilitaram
que uma instituição como uma ONG/AIDS pudesse se transformar em mais uma rede
de suporte (ADAM; HERZLICH, 2001). A família foi imprescindível para que o sujeito,
diante da enfermidade tão séria, se voltasse para a vida, uma vez que ela é
responsável, tamm, por instaurar a pulsão de vida.
Os vínculos familiares, seus organizadores psíquicos, são peças
fundamentais na constituição de um sujeito. O sucesso ou falha nas relações existentes
dentro do seio familiar, repercutirão na vida do sujeito no que diz respeito aos seus
investimentos libidinais futuros e perspectivas de vida. Desta forma, destaca-se a
extrema relevância, no processo de transformação, da vida familiar, uma vez que é a
partir dela que o sujeito se constitui enquanto tal.
Porém, sabemos que uma pessoa entrevistada não conseguiu
transformar seu sofrimento em uma oportunidade. Sua rede social de apoio não era
consistente para que isso acontecesse. Não havia uma integração social e, portanto,
não havia aparatos simbólicos suficientes que pudessem ser utilizados a seu favor.
Com isso, esta participante não tinha instrumentos necessários para criar uma nova
identidade frente à enfermidade. Consequentemente, não pôde haver um momento de
reflexão que pudesse ressignificar sua vida dentro da experiência da doença (ADAM;
HERZLICH, 2001).
Diante de um quadro como este, onde alguns conseguem fazer da
doença um momento de transformação enquanto outros não conseguem, o papel do
psicólogo clínico, para os casos onde o sujeito não consegue enxergar sua experiência
de outra forma que não destrutiva, seria o de fornecer acolhimento à dor sentida.
Fornecer uma escuta capaz de perceber onde houve uma falha na constituição do
sujeito que o impede de prosseguir. Sabemos que a relação desse sujeito com sua mãe
ainda nos primórdios de sua vida o capacita ou não a ser um sujeito desejante, com
uma identidade separada dessa mãe. E que é a capacidade simbólica da mãe,
juntamente com o papel castrador do pai, que ajudará o bebê a investir em outros
objetos libidinais dirigindo-se para a vida. Por isso, investigar essas relações através
dos investimentos do sujeito parece ser um caminho para ajudar o paciente a encontrar
novos sentidos para as suas experiências.
Toda experiência humana remete-se a um passado e a um futuro. Seu
passado concede significado, e seu futuro lhe traz sonhos, projetos, esperança. Dar à
doença um sentido é remeter-se ao futuro, é resgatar uma continuidade, mesmo que
ilusória, imaginária.
Encarar a morte é deparar-se com o real. Um real insuportável para o
qual é necessário um aparato simbólico. Depois de elaborado esse real, através da
simbolização, o imaginário adquire novos significados que permitem a vida do sujeito. É
através de um sofrimento que o sujeito reorganiza sua realidade psíquica. Foi assim
desde a tenra infância quando, através dos investimentos fragmentados da mãe, o
bebê pôde constituir-se. Desde a infância, o corpo do bebê está a mostrar sua
vulnerabilidade e necessidade de um outro que o invista e signifique. A constituição de
um corpo faz com que o sujeito esteja sempre atento a uma falta e, por isso mesmo,
procure algo que preencha esta falta, voltando-se, assim, para a vida. E, é nesse
sentido que uma doença que remete à morte pode trazer vida.
Outras questões também importantes foram levantadas no decorrer
deste trabalho como, por exemplo, se a exposição ao risco de contrair o HIV não partiria
de um desejo do sujeito. A maioria dos nossos entrevistados já possuía informação a
respeito dos meios de contágio da AIDS. Mesmo assim, continuaram tendo relações
sexuais sem o uso do preservativo. O caso mais curioso, no meu ponto de vista, foi o
de Lucas que, várias vezes, chegou a fazer o exame para saber se (já) havia contraído
a AIDS mas, mesmo assim, continuava tendo relações sexuais sem camisinha. É algo a
se pensar. Será que essa exposição não faz parte de uma busca do sujeito? Parece
estranho falarmos de uma pessoa que parece querer se contaminar. Mas é uma
questão muito intrigante que me fez indagar sobre outros processos de subjetivação
dentro do ser humano. Por que alguém procuraria se infectar com uma doença
incurável? Que tipo de satisfação se busca aí?
São questões que me deixaram inquieta, mas que, por não fazerem
parte dos objetivos desse trabalho e por sugerirem uma nova investigação, não foram
aqui explorados. Entretanto, nem por isso, serão deixadas de lado. Uma semente foi
plantada e, quem sabe, poderá dar frutos em um outro tempo. Um doutorado talvez...
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______. Inibições, Sintomas e Ansiedade (1925-1926). In: SALOMÃO, Eduardo
(Coord.). Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de janeiro: Imago, 1969c. (Obras Completas, v. 20). CD-ROM.
______. O Instinto e suas vicissitudes (1915). In: SALOMÃO, Eduardo (Coord.). Edição
eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
janeiro: Imago, 1969d. (Obras Completas, v. 20). CD-ROM.
______. Recordar, repetir e elaborar: novas recomendações sobre a técnica da
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______. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: SALOMÃO, Eduardo (Coord.).
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http://www.actionaid.org.br/ img/publics/empoderamento.pdf
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WAIDEMAN, Marlene C. Adolescência, sexualidade e aids: na família e na escola. São
Paulo: Arte e Ciência, 2003.
ANEXOS
ANEXO A
ITENS NORTEADORES DAS ENTREVISTAS
ITENS NORTEADORES DAS ENTREVISTAS
1. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO:
NOME:
IDADE:
SEXO:
ESCOLARIDADE:
PROFISSÃO:
2. HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ É SOROPOSITIVO (A)?
3. COMO FOI, PARA VC, QUANDO VOCÊ DESCOBRIU?
4 VOCÊ CONTOU PARA ALGUÉM QUE VC ESTAVA DOENTE NA ÉPOCA? PARA
QUEM? POR QUÊ? QUAL A REAÇÃO DAS PESSOAS PARA AS QUAIS VC
CONTOU?
5. FALAR SOBRE A FAMÍLIA: RELAÇÃO COM A FAMILIA ANTES, COMO FOI APÓS
O DIAGNÓSTICO (COMO A FAMILIA LIDOU E LIDA COM A SITUAÇÃO) E COMO
ESTÁ AGORA.
6. O QUE SIGNIFICAVA A DOENÇA PARA VOCÊ NAQUELA ÉPOCA? E HOJE?
MUDOU ALGUMA COISA? SE SIM, QUAL FOI O MOTIVO PARA A MUDANÇA?
7. COMO ERA SUA VIDA ANTES DA AIDS? E DEPOIS, MUDOU ALGUMA COISA?
SE SIM, O QUÊ? (importante pedir que discorra sobre as mudanças ocorridas).
8. COMO VOCÊ CHEGOU A ESSA INSTITUIÇÃO?
9. O QUE ESTA INSTITUIÇÃO SIGNIFICA PARA VC?
10. COMO VOCÊ AVALIA SEU TRABALHO DENTRO DESTA INSTITUIÇÃO?
11. COMO VOCÊ AVALIA SUA VIDA HOJE? QUAIS SUAS EXPECTATIVAS NA VIDA?
ANEXO B
TERMO DE CONSENTIMENTO UTILIZADO
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de acordo com a Resolução 196/96
AIDS X Vida: a doença como uma possibilidade de transformação para o sujeito
Data: ___/___/___
Caro Senhor ou Senhora,
Se você concordar em tomar parte neste estudo, eu pedirei que participe como
voluntário (a) nesta pesquisa que se preocupa em saber como uma pessoa soropositiva
inserida dentro de uma Organização Não Governamental lida com a doença. As
pessoas que pretendo entrevistar são aquelas que, como você, trabalham mais
frequentemente em uma ONG/AIDS, geralmente, pessoas dirigentes de projetos na
instituição. Meu intuito é poder contribuir com os avanços do conhecimento em relação
a essa epidemia e as interações humanas.
Para realizar essa pesquisa pretendo agir da seguinte maneira:
Farei entrevistas que serão gravadas. Durante um ano após a execução da pesquisa,
as fitas cassetes contendo as gravações das entrevistas, ficarão em local reservado,
lacradas e de acesso restrito à minha orientadora e a mim. Todas essas fitas cassetes
serão destruídas transcorrido o período de um ano.
Para algumas pessoas, o tema desta pesquisa pode ser interpretado como muito
sensível e de difícil discussão. Lembro a você, portanto, que é facultado-lhe o direito de
abandonar este processo de pesquisa em qualquer momento e ponto que bem desejar.
Sua retirada do processo não implicará em nenhum prejuízo à sua pessoa. Tampouco
você terá que me fornecer explicações ou me avisar acerca de sua saída.
Devido ao caráter voluntário de sua participação, nenhum pagamento, nem ajuda ou
seguro transporte lhe será oferecido.
Finalmente, eu gostaria de lhe dizer que esta pesquisa será transformada em uma
dissertação de mestrado e, possivelmente, seu conteúdo pode vir a ser publicado em
forma de tese, livro e/ou artigos incluídos em revistas e/ou jornais científicos, bem como
divulgados em congressos especializados.
A fim de garantir sua confidencialidade e discrição, eu me comprometo a:
1) modificar ou omitir seu nome, lugar de trabalho e profissão. Esses
dados ou alguns deles somente aparecerão se você (participante)
desejar.
2) modificar o nome, idade e número de outros membros da família
mencionados nas narrativas.
Estou disponível para responder todas as questões e dúvidas que você tenha em
relação a esta pesquisa, antes que você tome sua decisão. Caso você decida participar
nesta pesquisa, pedirei que confirme este seu desejo assinando o formulário de
aceitação que está incluso neste Termo. Uma cópia assinada deste formulário de
aceitação ficará comigo e outra com você. Em momento oportuno, eu lhe precisarei o
endereço, dia e horário das entrevistas.
Antecipadamente agradeço a sua atenção.
Sinceramente,
____________________
Karolina Reis dos Santos
(pesquisadora responsável)
ENDEREÇO E TELEFONE DA PESQUISADORA RESPONSÁVEL:
Rua Antero de Quental, 52 – Conjunto Vivendas do Arvoredo
CEP: 86047-560 - Londrina/PR - F: (43) 33418130 ou 91244909
ENDEREÇO DO COMITÊ DE ÉTICA RESPONSÁVEL PELA APROVAÇÃO DA
PESQUISA:
Protocolo da Faculdade de Medicina (FAMEMA)
Av: Monte Carmelo, 800 – CEP: 17519-030
Marília/SP F: (14) 34021827
II – Formulário de Aceitação
tulo do projeto
:
AIDS X Vida: a doença como uma possibilidade de transformação para o sujeito
O participante, quando maior de dezoito anos e letrado, deve completar esta
folha por si mesmo, sem a ajuda de outra pessoa
Por favor, faça
um círculo na
alternativa
escolhida
Você leu a folha de informão sobre a participação na pesquisa?
SIM – NÃO
Você teve a oportunidade de esclarecer dúvidas acerca de sua participação na
pesquisa antes de esta ter sido iniciada?
SIM – NÃO
Você recebeu respostas satisfatórias para todas as questões e dúvidas que
apresentou ao pesquisador antes de iniciar a pesquisa?
SIM – NÃO
Você recebeu informações suficientes sobre a pesquisa antes de inciá-la?
SIM – NÃO
Você compreende que é livre para retirar sua participação deste estudo:
a qualquer momento que desejar;
sem ter de fornecer nenhuma razão por ter decidido não mais participar; e sem que
esta sua decisão acarrete qualquer tipo de prejuízo para a sua pessoa?
SIM – NÃO
SIM – NÃO
Você concorda com o fato de que alguns trechos das entrevistas que sejam
relevantes para essa pesquisa serão divulgados na forma de dissertação, livro e/ou
artigos incldos em revistas e/ou jornais científicos, bem como divulgados em
congressos especializados?
SIM – NÃO
Quais dados da sua identificação você prefere que sejam omitidos ou modificados?
(em relão aos dados que não forem assinalados entenderei que podem ser
divulgados)
Nome
Local de trabalho
Profissão
Você concorda em tomar parte nesta pesquisa? SIM – NÃO
____________________________________________
Nome do Participante
____________________________________________
Assinatura do Participante
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