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UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS
SUELY APARECIDA ZEOULA DE MIRANDA
O MARINHEIRO NA POESIA DE FERNANDO
PESSOA:
PORTO OU TRAVESSIA?
ARARAQUARA - SP
2006
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UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS
SUELY APARECIDA ZEOULA DE MIRANDA
O MARINHEIRO NA POESIA DE FERNANDO
PESSOA:
PORTO OU TRAVESSIA?
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras
da UNESP de Araraquara como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Renata Soares Junqueira
ARARAQUARA - SP
2006
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................08
1.1 Teorizando o drama ...........................................................................20
1.1.1 O Marinheiro, um “ drama estático” ..............................................28
1.2 Teorizando a poesia ...........................................................................30
2 O MARINHEIRO: UMA INTERPRETAÇÃO ...........................................41
2.1 O Marinheiro, um resquício simbolista? ..........................................42
2.2 O Marinheiro e suas configurações: espaços e objetos .................49
2.3 Visões da arte simbolista n’ O Marinheiro .......................................52
2.3.1 A pintura simbolista .........................................................................53
2.3.2 Principais nomes da pintura simbolista .........................................54
2.3.3 A pintura simbolista e O Marinheiro: pontos de diálogo ..............55
2.4 A Intrusa e O Marinheiro: uma relação intertextual ..........................58
3 O MARINHEIRO: UM EXERCÍCIO INTRATEXTUAL? ............................63
3.1 A gênese ................................................................................................63
3.1.1 Ser/Não Ser .........................................................................................64
3.1.2 Tudo/Nada ...........................................................................................65
3.1.3 Dentro/Fora .........................................................................................66
3.1.4 Sentir/Pensar ......................................................................................69
3.2 As pessoas de Pessoa ..........................................................................71
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................85
REFERÊNCIAS .............................................................................................89
4
Aos meus amados filhos Thaís, Luís Gustavo e
Franco, razões maiores da minha vida, e ao meu
marido, Gustavo, que sempre será o meu lugar
certo e a minha mais grata paisagem.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, meu Pai amoroso, que sempre me conduz e me ilumina, fazendo dos
caminhos mais íngremes e desolados, uma estrada de sol e de esperança.
À Profa. Dra. Renata Soares Junqueira, pela orientação competente e precisa.
Aos meus pais e irmãos, pela presença alentadora.
À Profa. Iracê Miriam de Castro Martins, pela confiança, pelo incentivo e pela ternura
dos gestos.
À Sonia, amiga e mestra, pelo carinho e disponibilidade, presentes desde o início
desta caminhada.
Ao Pedro Paulo, meu filho do coração, pela ajuda inestimável.
À Carina, amiga-irmã, pela força e pelo carinho inesquecíveis, provas de que o
idioma mais bonito é o do coração...
6
“ A Imaginação é mais importante que o Conhecimento. O
Conhecimento leva você de A a B; a Imaginação leva você a
qualquer lugar”.
(EINSTEIN)
7
RESUMO
Este trabalho procura estabelecer pontos de diálogo entre o drama estático O
Marinheiro, de Fernando Pessoa, e algumas de suas obras poéticas posteriores
mostrando que, naquele, residem as sementes destas. Procura, também, fazer uma
análise dos temas e dos postulados filosóficos que perpassam o drama estático,
bem como da forma poética construída pelo Pessoa dramaturgo, deixando derivar
dessa análise a comparação com sua poesia e seu multifacetado processo de
criação.
Palavras-chave: Drama estático. Poesia. Comparação. Intratextualidade.
8
ABSTRACT
This work aims to establish dialogue points between the static drama O Marinheiro ,
by Fernando Pessoa, and some of his later poetical works, showing that in the
former are resided the similarities of the latters. It also aims to do an analysis of the
themes and the philosophical postulates which pass the static drama like as the
poetical form constructed by Pessoa dramatist, and from this analysis deflects a
comparision with his poetic work, and his multifaceted process of creation.
Key Words: Static drama. Poetry. Comparision. Intratextuality
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UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS
SUELY APARECIDA ZEOULA DE MIRANDA
O MARINHEIRO NA POESIA DE FERNANDO PESSOA:
PORTO OU TRAVESSIA?
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Renata Soares Junqueira
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________________
Orientadora - Profa. Dra. Renata Soares Junqueira
______________________________________________
Membro Titular - Profa. Dra. Maria Lúcia Outeiro Fernandes
______________________________________________________________
Membro Titular - Profa. Dra. Annie Gisele Fernandes
_______________________________________________________________
Membro Suplente – Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi
________________________________________________________________
Membro Suplente - Profa. Dra. Patrícia da Silva Cardoso
ARARAQUARA - SP
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2006
1 INTRODUÇÃO
Sentir e pensar. O conflito entre essas duas forças - que mais exacerbam o
ser humano sem que ele se conta - é, talvez, a essência da obra de Fernando
Pessoa. Ele soube mostrar, em sua obra, com muita clareza, a complicada e
aparentemente impossível harmonia entre a emoção e a razão. Expôs também a
angústia da existência do homem na sociedade moderna, o qual ele reconhece ter
nascido para estar em meio à multidão de pessoas ilhadas nas cidades que
impossibilitam o diálogo, restando apenas cada um por si. No entanto, a "Ode
Triunfal", de Álvaro de Campos, numa das muitas provas de sua essência paradoxal,
é um elogio à modernidade:
[...]
"Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias seções!
Olá anúncios elétricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado,beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
11
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!"
(PESSOA, 1986, p. 308)
Destruindo mitos e colocando o homem diante da triste verdade de que não
existe verdade, Pessoa revelou-se através de suas máscaras e de seus constantes
mergulhos em si mesmo, durante os quais se contemplava de longe e dos quais
voltava renovado, aproximando-se e distanciando-se voluntariamente dessa verdade
inexistente. Sua personalidade reflete-se claramente em sua obra poética,
disfarçada, simulada, mutilada. Acusado por muitos de destruir sem, depois,
reconstruir, deixou-nos a impressão de que o poeta existe não para construir, mas
para colocar o homem face a face com sua condição, dando-lhe a chance de, a
partir de reflexões, reconstruir-se ou reinventar uma nova verdade. Ele próprio
desdobrou-se em outros e fez o retorno a si mesmo. Essa intracomunicação torna
sua personalidade mais rica, pois todos esses eus pertencem ao mesmo universo
poético.
Fazer poesia não era, para ele, um momento de inspiração. Era um ofício a
que se dedicava com a certeza plena de ser seu único caminho. Sua obra mostra a
firmeza de alguém que pode falar de si, que realiza uma tarefa e sabe as
dificuldades que ela comporta, que revela a sua intimidade, desmistificando-se,
12
desnudando-se, ao mesmo tempo em que se esconde. Talvez resida a riqueza e
a modernidade de sua obra: ela se insere na problemática do homem moderno, pela
multifacetação em sujeitos poéticos, ensejando uma crítica a esse homem
infinitamente solitário, que saiu dos escombros ferido, mas lúcido o bastante para se
buscar e se perder em meio às palavras, ao sonho, à natureza, à religião, à dor da
própria desintegração.
O desassossego pessoano se respalda no vício de pensar, na ausência de
Deus, na fugacidade da vida, na certeza de que a felicidade existe para os outros,
na busca do próprio Eu. A fuga da realidade funde-se em três possibilidades: o
retorno à infância, o adiamento, o sonho. A solidão é considerada o ponto de partida
para a explicação do espaço na obra de Pessoa, e seu paraíso perdido se desdobra
em dois grupos de imagens: os espaços de um mundo feliz e perdido, e os de um
presente triste.
Na moderna produção poética da obra de Pessoa verificam-se, segundo
Gonçalves (1995), duas assertivas: uma teórica, pela qual o poeta se volta para as
estéticas do Paulismo, Interseccionismo e Sensacionismo e outra, pessoal, voltada à
criação dos heterônimos, ponto fulcral de sua poesia e de sua modernidade:
A obra de Pessoa, realmente, pertence a duas categorias: ortônima e
heterônima. A ortônima contém a obra do Pessoa "ele-mesmo". A heterônima
contém a obra do "Pessoa-outros". É preciso, aqui, situar bem a diferença entre
A questão da identidade, que perseguirá o poeta vida afora,
será responsável pela imposição de um paradigma para a
Modernidade - quem produz o texto poético? É por esse
prisma que surge a "estética do fingimento", situação que
projeta Pessoa para uma autonomia e uma universalidade
em relação à modernidade portuguesa. (GONÇALVES, 1995,
p. 9 )
13
pseudônimo e heterônimo, denominações que, constantemente, levam a confusões:
a obra pseudônima é a do próprio autor, que apenas assina com nome diferente; "a
heterônima é a do autor fora da sua pessoa". (Tábua Bilbliográfica. Presença, n. 7,
apud SEABRA,1974, p. 9).
O fenômeno da heteronímia talvez seja a mais densa e intrigante faceta da
obra pessoana. Segundo o próprio poeta, o traço histérico-neurastênico de seu
caráter é que estaria na origem de sua tendência para essa despersonalização. No
entanto, alguns questionamentos presentes na poesia de cada heterônimo, sobre a
razão dessa subjetividade estilhaçada, mostram, segundo Seabra (1974, p. 12), que
essa despersonalização não advém de uma simples crise da personalidade
psicológica, mas do sujeito poético em si mesmo considerado, na sua pluralidade".
Assim, temos em Caeiro (PESSOA, 1986, p.241): "Ser real quer dizer não estar
dentro de mim./ Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade./ Sei que
o mundo existe, mas o sei se existo." Ricardo Reis também afirma: "Se recordo
quem fui, outrem me vejo/ E o passado é o presente na lembrança/ Quem fui é
alguém que amo/ Porém somente em sonho." (PESSOA, 1986, p. 283). Temos
ainda , em Álvaro de Campos ( PESSOA, 1986, p.345): "Multipliquei-me para me
sentir/ Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei, não fiz senão extravasar-
me, / Despi-me, entreguei-me, / E em cada canto da minha alma um altar a um
Deus diferente."
Assim, vemos que dentro do poeta coexistem vários poetas. A cada um deles,
Fernando Pessoa atribuiu uma biografia, caracteres físicos, traços de personalidade,
formação cultural, ideologia, profissão. Nasceram, assim, Alberto Caeiro, Ricardo
Reis, Álvaro de Campos (os heterônimos perfeitos), além de vários outros semi-
heterônimos. O porquê desses heterônimos, as causas de sua origem ou o que
14
pretendia o poeta com essa multiplicidade é motivo de muita discussão e infinitas
conjecturas. Mas encontramos, dispersas por sua obra, algumas indicações que nos
levam a apontar algumas razões: a consciência das várias personalidades vividas
pelo poeta em seu mundo interior; a tentativa de converter-se em toda uma
literatura; a sua essência dramática, a clara tentativa de representar a multifacetada
vida portuguesa. O próprio Pessoa fala-nos sobre a sua despersonalização poética,
na nota que antecede as "Ficções do Interlúdio" (PESSOA, 1986, p.198,199),
estabelecendo uma escala de quatro pontos:
1)- o temperamento e o estilo unificam a produção poética, mesmo que esta
exprima vários e diferentes sentimentos;
2)- mesmo que o temperamento varie, o estilo permanece único;
3)- o estilo pode variar, mas o poeta permanece único;
4)- o poeta se multiplica em vários poetas.
Como se vê, a escala é crescente, considerando-se o grau de
despersonalização alcançado. E é precisamente essa pluralidade estranha e
fascinante que, por vezes, pode desviar o leitor do que é, segundo Cruz ( s/d ),
essencial: o estudo das linguagens poéticas de Pessoa, sejam elas dos heterônimos
ou mesmo do ortônimo.
Ora tem sido precisamente o problema dos heterônimos essa
estranha pluralidade de poetas num que ao quase
monopolizar a atenção dos exegetas de Pessoa tem contribuído
em grande parte para os distrair desta primeira leitura a que o
poeta os convidava. Raramente, com efeito, ela foi abordada em
função da estrutura da obra poética em si mesma. As explicações
de fundo psicológico, sociológico ou filosófico, como as de tipo
impressionista ou mais elaboradamente temático (não falando
nas de matiz ideológico ou polêmico) trouxeram com certeza, aqui
e ali, contribuições parciais à abordagem da obra. (CRUZ, s/d, p.
14).
15
Mas o próprio autor deixou-nos uma pista, para que possamos interpretar sua
obra polêmica e paradoxal, levando-nos a leituras cada vez mais novas e
surpreendentes: a diferença absoluta de estilos, no que se refere aos heterônimos.
Assim é que cada um mostra idéias e sentimentos, além de técnicas de composição,
absolutamente diferentes dos de seu "criador". "Cada personagem é criada
integralmente diferente e não apenas diferentemente pensada". (CRUZ, s/d, p.15).
Exibem uma pluralidade de linguagens e não apenas diferentes formas de pensar e
sentir.
A verdade é que Pessoa, com sua obra, destrói mitos e os recria, depois, à
sua maneira. Enquanto o ortônimo é saudosista-nacionalista e lírico, os
heterônimos apresentam uma poesia bucólica e subjetiva em Caeiro, pagã e
sensacionista em Reis, turbulenta e forte em Campos. Caeiro é o fundador e criador
duma nova poesia da natureza; Reis inventa o neoclassicismo; Campos é o poeta
modernista, capaz de intensificar as sensações até o paroxismo. Como casar todas
essas características e todos esses adjetivos? Simples: basta aceitar o fato de que a
obra pessoana é, toda ela, um tributo a tudo o que é paradoxal, contraditório. E
entender que ela nos ensina que, na verdade, a verdade não existe. Que o poeta
finge uma dor que, na verdade, sente. Que as coisas são apenas o que queremos
que elas sejam. Que todos somos medíocres, que nada sabemos, porque não
nada para saber...
O drama que existe na obra pessoana é o de uma desesperada e
desesperadora lucidez. É, acima de tudo, profundamente inteligente, de uma aguda
e quase palpável genialidade. Nada de pieguices, nada de casual. Tudo muito
pensado, tudo muito sólido, tanto na forma quanto na essência. E porque é honesta,
mesmo que dissimulada, e porque é clara, mesmo que velada, apresenta uma
16
unidade que não encontramos em muitas obras, mesmo nas de alguns dos grandes
poetas. "Essa unidade está na própria estrutura [...] da sua obra,numa orientação
fundamental que está em ser ela uma cadeia ininterrupta de esforços para
estabelecer o contato do homem com o universo" (CASAIS MONTEIRO, 1958, p.
73).
Álvaro de Campos crê na sensação; Alberto Caeiro, na existência; Ricardo
Reis, na forma; Pessoa ortônimo, em símbolos. Campos é o poeta da impotência;
Caeiro representa o sentir sem pensar; Reis é o poeta da morte, do aniquilamento;
Fernando Pessoa ortônimo é a vida que vence a inteligência, é a resignação do
sonho. Essa diversidade vale como uma expressão dramática de identidade: "Se
fingir é conhecer-se, é também dar-se a conhecer". Na verdade, ao colocar sua
poesia longe da realidade que nos circunda, Pessoa garante sua autonomia e sua
universalidade, dando pistas para que entendamos sua identidade.
No centro da nebulosa heteronímica, Pessoa coloca Alberto Caeiro. Porém é
interessante a visão, a esse respeito, de Cruz (s/d, p.80):
Em Pessoa, a criação literária e as criaturas que a representam, confundem-
se, pois os heterônimos só vêm à luz juntamente com os poemas de que são
autores. Podemos dizer que os heterônimos existem em função de seus poemas e
não os poemas em função dos heterônimos. Nota-se, ainda, pela leitura de alguns
Se bem atentarmos, Alberto Caeiro o é, no entanto, o
germe exclusivo de onde viriam a nascer, por
cissiparidade, os outros heterônimos: ele é apenas um
pólo mais forte, um sol mais incandescente e vivo, à
roda do qual vemos girar os demais astros do sistema.
Esta posição nuclear advém-lhe de ser Caeiro a criação
por assim dizer mais pura e perfeita de Pessoa ou, se
se quiser, o heterônimo que leva a às últimas
conseqüências a sua existência enquanto "pessoa"
poética ou estética, como também diz.
17
apontamentos do autor, que ele ortônimo coloca-se, ora no mesmo nível dos
heterônimos, ora sugerindo a superioridade poética destes, falando de um
"Fernando Pessoa impuro e simples", numa carta a Casais Monteiro, sobre o
surgimento dos heterônimos.
Ortônima ou heterônima, sua obra tem, como denominador comum, o fato de
ter sido o maior passo dado, neste século, para a reabilitação da voz, como cerne da
poesia. Voz, sob todas as suas formas. Voz que é linguagem, comunicação. Que é
filosofia, ironia, mordacidade, desilusão, crítica. E que não é, segundo alguns
críticos, construtiva. O "indisciplinador de almas", como o chamou Jorge de Sena,
não é apenas alguém que, desiludido com o mundo, limita-se a virar-lhe as costas.
Sua desilusão nada tem de passiva e, para o lutar sozinho, cria vários "eus", pura
manifestaçào de atividade, não de passiva aceitação da realidade. Segundo
Tabucchi (1984), existe até mesmo a hipótese de que Fernando Pessoa fosse o alter
ego de um Fernando Pessoa completamente igual ao primeiro.
Na verdade, em toda a obra pessoana percebe-se uma genialidade
direcionada para a arte. Como artista, como poeta e como gênio, Fernando Pessoa
tinha uma visão ampla e multiforme do mundo. Ele foi clássico, romântico,
parnasiano e modernista, tudo ao mesmo tempo. A sua genialidade foi justamente
poder separar completamente essas formas de "ser", de tal maneira que lhe foi
E se Fernando Pessoa tivesse precisamente fingido ser Fernando Pessoa? É
uma suspeita. As provas, naturalmente, nunca as teremos. E, à falta de
provas, nos resta acreditar ( ou fingir acreditar ) nos dados biográficos
daquele que foi a ficção de um impostor idêntico a si próprio, ou seja:
Fernando António Nogueira Pessoa, filho dos falecidos Joaquim e Magdalena
Pinheiro Nogueira, empregado part-time como tradutor de cartas comerciais
em firmas lisboetas de importação-exportação. Nas horas livres, poeta.
(TRABUCCHI, 1984, p. 12)
18
possível escrever com estilos diferentes sobre matérias diferentes, como se em cada
momento fosse um homem diferente.
Uma das formas nucleares da poesia de Pessoa é a contradição. Nela,
coexistem a tese e a antítese, sendo um terreno fértil para a proliferação das
linguagens poéticas do autor. Cada leitura é a face de outra, desnudando pontos
comuns e divergentes, que levam a uma oposição fundamental: a do Ser e a do
Não-Ser, identificada claramente n'O Marinheiro.
A obra de Pessoa é um discurso que busca a si mesmo, numa leitura
paradoxal que revela para ocultar, mascara e desvenda constantemente, num ir e vir
enriquecedor que perpassa a obra toda, como se cada texto fosse gerado pelos
demais e com eles entretecido. João Cabral de Melo Neto expressa bem esse
processo em "Tecendo a manhã": "Um galo sozinho não tece a manhã/ Ele
precisará sempre de outros "... E segue dizendo que o canto de um galo é
"apanhado" por outro, que o passa a outro e este a mais outro, até que a man
finalmente surge, como que tecida por todos esses gritos.
Na obra pessoana, cada texto parece pressentir a presença de outros, numa
textura móvel e ressonante que se desdobra para além de si mesma. E, assim como
os galos de João Cabral, o poeta solta seu grito e o apanha, grita e o apanha
novamente, revestindo cada "grito" de uma roupagem nova, mas que conserva sua
essência. E, nesse caminho de recuperação que os textos empreendem, acaba se
formando um tecido de recorrências: imagens e temas se repetem para projetarem o
seu existir-além, num deslocamento da mesma imagem para outros lugares da obra
como se, com essa projeção múltipla, a poesia construísse o "contra-símbolo" de
sua própria textura.
19
Seabra (1974, p.15), também cita esse movimento, esse tecer, esse processo
original de construção criadora:
Em quase todos os momentos da obra pessoana, reconhecemos essa fala
singular. N'O Marinheiro, por exemplo, temos visões claras desses desdobramentos.
O Marinheiro é um drama estático, uma peça teatral de Pessoa, que foi objeto de
vários e interessantes estudos e - com certeza - ainda o será por muito tempo.
Nesse drama "sem ação", o poeta se reporta ao drama dentro do drama, onde o
tempo e o espaço não são remetidos a uma unidade referencial. É a questão dos
limites entre o sonho e a realidade, é mais uma confirmação da existência de um
texto que não se pertence a si próprio, que fala não apenas com a sua voz, mas com
a voz que antecipa a de outros.
Essa metamorfose opera-se de heterônimo a
heterônimo (e, por vezes, dentro do mesmo
heterônimo), num movimento dramático que se vai
tecendo em torno dos elementos germinais
disseminados pelos poemas numa aparente
desordem e dispersão caótica. A originalidade de cada
heterônimo, a especificidade de sua linguagem, reside
na integração e ordenação desses elementos numa
estrutura coerente, quer ao nível dos significantes quer
dos significados poéticos. (CRUZ, s/d, p.38)
Entre os autores que constituem a constelação
poética de Pessoa, estabelece-se um sistema de
relações mútuas, em que cada elemento se
responde e corresponde, num tecer e destecer
sempre retomado de fios que se vão
entrecruzando, em planos diversos, mas que se
interpenetram.
20
Assim, o presente estudo se propõe a estabelecer pontes entre o drama
estático O Marinheiro, de Fernando Pessoa, e algumas de suas obras poéticas
posteriores. Pretende demonstrar que, naquele, residem as sementes destas,
evidenciando o fato de que a intertextualidade pode acontecer em vários e
fascinantes níveis, num exercício de descobertas e redescobertas constantes e
enriquecedoras.
É interessante, aqui, observar que, segundo Seabra (1974,p.17)
Quaisquer que sejam as interpretações, alusões ou citações, este fato é
sugestivo: O Marinheiro antecede várias obras importantes do poeta e pode conter,
como pretendemos verificar, o gérmen de sua criação. Lendo a obra, datada de
1913, percebemos nela palavras e citações que evocam poemas escritos muito
tempo depois. Na "Cronologia da vida e obra de Fernando Pessoa" (1986, p. 61-66),
vemos que Caeiro surge em 1914 (8 de março), assim como Campos e Reis (16 de
junho).
Teria o poeta voltado ao seu drama estático e desdobrado frases-chave do
texto, criando - ou recriando - poemas a partir delas? É uma pergunta, sem vida,
apaixonante. E faz pensar num Pessoa novo, diferente daquele que acredita que o
homem completo é aquele que se ignora. Mostra um homem angustiado, sim, mas
sonhador o bastante para rever e recriar e sentir e envolver, num puro e paradoxal
exercício de insensata lucidez.
Estamos, com efeito, perante uma obra proteiforme,
não apenas enquanto criação de uma pluralidade de
linguagens, mas pelo seu apelo a uma pluralidade de
leituras, tanto dos textos poéticos como dos textos
críticos que os prolongam e repercutem A
heteronímia exige, acima de tudo, uma apreensão
dessa intertextualidade...
21
Prefaciando toda a obra pessoana, podemos citar um trecho das "palavras de
pórtico", como ele mesmo as chamou: "Navegadores antigos tinham uma frase
gloriosa: 'Navegar é preciso, viver não é preciso'. Quero para mim o espírito dessa
frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário ;
o que é necessário é criar" (PESSOA, 1986, p.15).
Pessoa soube criar, recriar, a "criar-se", fazendo de sua obra uma infinita
janela que mostra ricas possibilidades de diferentes leituras e interpretações. E,
através de pesquisas bibliográficas, tentaremos provar que O Marinheiro contém a
essência de alguns poemas significativos surgidos tempos depois.
Objetivamos, com este estudo, portanto, comparar algumas obras poéticas
ortônimas e heterônimas de Fernando Pessoa ao poema dramático O Marinheiro,
com a intenção de destacar, entre eles, pontos de diálogo; verificar se essas obras
estão interligadas por um pensamento filosófico que as coordena e concatena;
vislumbrar, na obra de Pessoa, uma multiplicidade de visões de mundo, fornecendo
alguns elementos que facilitem a compreensão do seu processo plural e
multifacetado de criação.
O presente estudo pretende, para tanto, buscar o respaldo teórico de autores
como Bachelard, Bentley, Régio, Ryngaert, Jauss e Barthes, fundamentando-se nas
teorias da poesia e do drama, visto que o ponto de partida desta pesquisa é um
texto teatral e que o texto-base remete a toda a obra poética de Pessoa. A teoria da
Forma ensina que a imagem tende ao estado quase-matéria, posta no espaço da
percepção. D pode passar ao devaneio, à ponte, à janela aberta a toda ficção.
Esse devaneio pré - onírico depende de um processo de expressão: a palavra. "A
superfície da palavra é uma cadeia sonora" (BOSI, 2000, p.29). Enlaçada à matéria
que compõe a linguagem, a palavra pode gerar a atividade poética.
22
Assim como o poeta lida com o verso, o dramaturgo vale-se do diálogo, que
requer um encadeamento próprio, porque é transmitido pelo ator. Em O Marinheiro,
pode-se notar que as frases são formalmente poesia pelo ritmo que as caracteriza.
Lendo o texto, não se pode deixar de ficar impressionado com esse aspecto do
drama pessoano. Como o poeta mesmo comenta, "há ritmo na prosa e ritmo no
verso. No verso, porém, o ritmo é essencial; na prosa não é, é acessório - uma
vantagem, mas não uma necessidade. No fundo, não verso nem
prosa..."(PESSOA, 1986, p.787). Entende-se, portanto, que podemos caracterizar
um texto literário pela sua maior ou menor proximidade com esses dois tipos de
discurso. Segundo Cruz (s/d, p. 84), "eles correspondem, tendencialmente, aos
pólos metafórico e metonímico da linguagem, sendo a poesia dominada pela
metáfora e a prosa pela metonímia". Portanto, recorrer à teoria da poesia e à teoria
do drama faz-se necessário, pois drama e poesia coexistem na obra de Pessoa,
interligados na essência e na forma.
Fernando Pessoa sempre buscava a fuga do mundo imediato ou próximo,
sempre buscava as interrogações. Sua paixão consistiu na grande aventura da
procura, muito mais do que no prazer da descoberta. Ele nunca quis o que era
definitivo, deixou abertas todas as possibilidades de dúvida e, através dela, permite
que nós sejamos co-partícipes de sua arte.
1.1 Teorizando o drama
O prazer estético, segundo Jauss (1979, p.63) "é hoje, ou era até há pouco,
em geral desprezado como um privilégio da invectivada 'burguesia culta' ".
Começando por Aristóteles e Platão, passando por Santo Agostinho, Schiller,
Barthes, Freud, Sartre, Giesz, percebemos que no prazer estético acham-se
23
reunidas a sensibilidade e a objetividade, aisthesis e anamnesis. No entanto, a
experiência estética não se esgota aí: existe, também, a katharsis, através da qual o
espectador pode ser diretamente afetado pela história representada, identificando-se
com os atores, liberando suas próprias paixões e aliviando-se "por sua descarga
prazerosa, como se participasse de uma cura" (JAUSS, 1979, p.65).
Santo Agostinho traça duas diretrizes para o prazer: a primeira leva ao que é
bom, orientado para Deus; a segunda leva ao que é mau, orientado para o mundo.
Assim, os prazeres auditivos devem residir apenas nos cantos religiosos, elevando a
alma; os prazeres da visão devem restringir-se à beleza da criação divina. Contudo,
entre os dois uma linha muito tênue e existe o perigo de se cair na sedução
estética da experiência sensual inspirada pela Arte. Além disso, a arte do discurso
pode mostrar uma face tão convincente do inacreditável e do desconhecido que
chega a influenciar o espectador de forma poderosa e, até, definitiva.
A retórica sempre foi inimiga da filosofia e da teologia, justamente por essa
ambivalência: o ouvinte pode ser levado, por suas mãos, tanto para um bom quanto
para um mau objetivo. Debates recentes sobre o assunto chamam a atenção para
essa dupla face da persuasão e da indução, identificadas atualmente como
consenso e manipulação. Hoje, o prazer perdeu muito de seu sentido elevado.
Antigamente, o prazer justificava as relações com a arte. "Hoje, para muitos, a
experiência estética é vista como genuína quando se priva de todo prazer e se
eleva ao nível da reflexão estética." (JAUSS, 1979, p.71).
Roland Barthes empenhou-se na reabilitação do prazer estético, colocando-se
contra a idéia de que esse prazer não passa de um instrumento da classe
dominante.
O prazer, entretanto, não é um elemento do texto, não é um resíduo
ingênuo; não depende de uma lógica do entendimento e da sensação; é
uma deriva, algo ao mesmo tempo revolucionário e associal e não pode ser
assumido por nenhuma coletividade, por nenhuma mentalidade, por
nenhum idioleto. (BARTHES, 1973, p.39)
24
Ainda segundo Barthes, é preciso que surja uma estética moderna, que
considere o "prazer do consumidor" (p. 94). E oferece a dicotomia entre o prazer
positivo e o deleite negativo (plaisir e jouissance). Ressalta também a importância da
interação do leitor com o texto, sem o caráter passivo de apenas receber, apenas
perceber microestruturas, mas pondo em prática sua atividade imaginante,
experimentadora. A apologia de Barthes faz, do prazer estético, o prazer face à
linguagem, "o paraíso das palavras" (p. 17). Aqui podemos localizar O Marinheiro e
sua característica que, talvez, seja a mais marcante: a ênfase dada à linguagem,
em contraponto ao movimento das personagens em cena.
Mas, afinal, qual a diferença entre o prazer estético e o prazer dos sentidos?
Pode-se dizer que, enquanto o prazer dos sentidos é auto-suficiente e desvinculado
do mundo cotidiano, o prazer estético exige uma tomada de posição, um momento
adicional, que implica uma função social. Ao contrário do simples prazer, a atitude
estética não pode ser fruída no isolamento; ela exige que todas as sensações sejam
compartilhadas e tenham um caráter participativo, criador. Em sua análise do
imaginário, Sartre afirma que "na experiência estética, o ato de distanciamento é, ao
mesmo tempo, um ato formador da consciência representante" (1940, p.239). Assim,
a realidade - e também a natureza - nunca é bela por si mesma. Ela depende de um
distanciamento, para que possa ser fruída, explorada. O sujeito, enquanto utiliza sua
tomada de posição perante o objeto estético, realiza uma reciprocidade entre si e o
25
objeto, de modo a gozar tanto o objeto quanto seu próprio eu, agora liberado de sua
mera existência cotidiana.
N’ O Marinheiro, esse distanciamento é bem claro, marcante. As veladoras
se questionam sobre o ser e o não-ser, a todo momento. O prazer estético de que
fala Jauss, que é um modo de experiência de si mesmo na capacidade de ser
outro”, desvela talvez a semente da heteronímia, para nós claramente presente nas
três veladoras .
Freud descreveu, várias vezes, o prazer estético pela relação que existe entre
o prazer de si e o prazer no outro. O espectador no teatro ou o leitor de romances,
pode
Assim, essa identificação faz com que participemos de experiências alheias,
coisa de que não seríamos capazes se estivéssemos em nossa realidade de todos
os dias. Mas a teoria de Freud sobre o auto-prazer não termina nessa catarse, no
despertar das próprias paixões que se identificam com ações ou sofrimentos alheios.
Na conduta estética, o sujeito sempre goza mais do que de si mesmo:
experimenta-se na apropriação de uma experiência do sentido do
mundo, ao qual explora tanto por sua própria atividade produtora,
quanto pela integração da experiência alheia e que, ademais, é
passível de ser confirmado pela anuência de terceiros. O prazer
estético que, desta forma, se realiza na oscilação entre a
contemplação desinteressada e a participação experimentadora, é um
modo da experiência de si mesmo na capacidade de ser outro,
capacidade a nós aberta pelo comportamento estético. (JAUSS, 1979,
p. 77)
[...] gozar-se como uma figura importante e se entregar de
peito aberto a emoções normalmente recalcadas, pois o seu
prazer tem por pressuposto a ilusão estética, ou seja, o alívio
da dor pela segurança de que, em primeiro lugar, trata-se de
um outro que age e sofre, na cena, e, em segundo lugar, de
que se trata apenas de um jogo, que não pode causar dano
algum à nossa segurança pessoal. (FREUD, 1969, p.163)
26
A doutrina tradicional do prazer catártico é atualizada por Freud e superada por uma
nova descoberta: a de que a todo o prazer estético se acrescenta um maior prazer,
nascido de experiências mais profundas, perdidas entre os jogos infantis e nos
desejos ali experimentados, num feliz reconhecimento da experiência passada e do
tempo perdido.
A recorrência à psicanálise possibilita, entre outros conhecimentos, o da
singularidade e da universalidade da obra de Pessoa. Contudo, ela pode ser lida,
também, à luz da filosofia. Podemos apresentar a perspectiva filosófica da leitura da
obra pessoana em quatro momentos: o primeiro está relacionado com a questão do
Eu, frente à sua consciência, à sua subjetividade; o segundo situa a questão do
drama do homem face à vida, à morte e ao seu próprio destino; o terceiro situa as
dúvidas de Pessoa sobre o conhecimento, a verdade; o quarto refere-se à presença
de Deus e do Ser dentro da obra do poeta.
Segundo Jauss (1979), existem três conceitos da tradição estética inseridos
nas três categorias fundamentais da fruição estética: Poiesis, Aiesthesis e Katharsis.
A primeira é a "faculdade poética", é o prazer que podemos sentir ante a obra que
realizamos. É a arte de criar, que faz do homem o ser por excelência. A segunda é a
contemplação, é "o conhecimento sensível, face à primazia do conhecimento
conceitual" (JAUSS, 1979, p.80). A terceira é a experiência estética comunicativa
básica, que conduz o espectador à transformação de seus conceitos e à liberação
de sua psique, "olhando-se" através dos gestos e das fantasias de outros. Essas três
categorias não estão separadas, subordinadas umas às outras; antes, estabelecem
relações de seqüência e, nelas, a comunicação literária terá o caráter de uma
experiência estética se mantiver o caráter de prazer.
27
Assim Jauss (1979) resume suas considerações sobre as três categorias
básicas da experiência estética:
Segundo Régio (1967), as características teatrais nem sempre estarão
perfeitamente entremeadas entre um poema ou um romance. É preciso que se
esteja apto a sentir as formas latentes de teatro neles embutidas. O verdadeiro
poeta dramático é "o que algo de pessoal tem a dizer através do teatro" (p.114), é o
que sentiu, intuiu, o que vivenciou interiormente situações artisticamente revividas. O
próprio Pessoa, em sua estrofe famosa, reconhece o fato de que arte é fingimento:
O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / A
dor que deveras sente. Contudo, se o artista não sentiu a dor que finge, seu
fingimento é apenas retórica e sua expressão jamais será artística.
A conduta de prazer estético, que é ao mesmo tempo
liberação de e liberação para, realiza-se por meio de três
funções: para a consciência produtora, pela criação do mundo
como sua própria obra ( poiesis ); para a consciência
receptora, pela possibilidade de renovar a sua percepção,
tanto da realidade externa, quanto da interna ( aisthesis ); e,
por fim, para que a experiência subjetiva se transforme em
inter-subjetiva, pela anuência ao juízo exigido pela obra, ou
pela identificação com normas de ação predeterminadas e a
serem explicitadas. (p.81)
A base da representação é a falsidade. A arte do ator consiste em
servir-se do drama do autor para mostrar por meio dele sua
capacidade de interpretação. A peça é como uma barra onde o
ator mostra suas habilidades ginásticas. [...] A representação,
repito, tem todo o atrativo de uma falsificação. Todos adoramos
um falsificador. É um sentimento muito humano e completamente
instintivo. (PESSOA, 1990, p. 282)
28
É necessário entender, também, que o espetáculo teatral não é uma criação
individual, como o são, por exemplo, um quadro ou um poema; o espetáculo teatral
exige, além do texto, atores, figurinistas, iluminadores, cenógrafos, operadores de
som, além do público que, no teatro moderno , chega a interagir com os atores,
participando ativamente do espetáculo. Assim, o espectáculo teatral um
espectáculo complexo" (RÉGIO, 1967, p. 126). Segundo esse mesmo autor, possui
o teatro três origens: religiosa, social e lúdica. Na gênese do teatro, essas posições
se confundem mas, ao longo do tempo, duas tendências ficaram bem definidas: a
que evidencia um espetáculo complexo criado por um artista e realizado por vários
outros, e a que mostra ser o teatro essencialmente um texto literário, ainda que
realizado num palco, assistido por um público. Esta última é a que mais nos
interessa, dentro deste estudo sobre o drama estático de Fernando Pessoa.
Contudo, ainda segundo Régio (1967), o verdadeiro autor teatral nunca fica
satisfeito com a simples leitura de sua obra. O que o realiza é ser visto, ouvido,
sentido por um público. No palco é que se manifesta, realmente, uma obra teatral.
Uma simples leitura jamais desvelará minúcias e especificidades teatrais que a
representação, num palco, mostrará. O teatro começa, portanto, quando se junta à
obra literária um espetáculo que a enriqueça e a complete, independentemente da
vontade do autor.
É preciso considerar, dessa forma, que são suficientes o ator e a palavra para
que o espetáculo teatral não seja apenas literatura. Tudo depende da natureza da
obra e da personalidade do poeta dramático, que "qualquer obra de arte é a
personalidade do seu criador". (RÉGIO, 1967, p. 122).
outra consideração importante a fazer: o texto literário é o que respalda o
espetáculo teatral. No entanto, ainda segundo Régio (1967), esse texto não pode ser
29
um texto qualquer, mas sim um texto especial, artístico, que possibilite ao ator
exprimir-se e revelar-se. Aqui percebe-se a estreita ligação do espetáculo teatral
com o amar, o gostar, o querer. Pois um espetáculo atinge o seu auge, seu
clímax, seu momento maior, quando todos os envolvidos com esse espetáculo
escolhem, amam, sentem verdadeiramente um texto. Sem essa cumplicidade, essa
ação conjunta, nenhuma obra dramática pode ser chamada de obra teatral.
Régio (1967) ainda aponta as três origens do teatro: uma origem religiosa,
mágica, voltada para os deuses e para as cerimônias em que se comemoravam
seus feitos, se pedia sua proteção, se aplacava a sua cólera; uma origem social que,
através dos ritos de passagem manifestava o sentido de clã, nação, humanidade;
uma origem psicológica e lúdica, que inspira, no homem, o espírito de imitação.
Baty e Chavance apud Régio (1967), comentando a importância do teatro
face às demais artes, afirmam que as artes plásticas, por exemplo, podem produzir
espetáculos magníficos e a literatura, da mesma forma, criar poemas admiráveis.
Mas são incapazes, separadamente, de realizar uma obra verdadeiramente
dramática, enquanto que, no teatro, existe uma confluência de elementos
espetaculares levando a um objetivo comum. O texto, a interpretação, a decoração,
a expressão corporal, tudo é canalizado para o momento mágico do espetáculo
teatral.
O autor conclui que o teatro para ser lido, portanto, é um simples gênero
literário, pois só no palco ele viverá sua verdadeira vida. A literatura exige um autor e
um leitor; o teatro exige vários colaboradores e um público. Teatro é espetáculo.
Assim, um texto sem espetáculo e um espetáculo sem texto jamais chegarão a ser
teatro. O que nos parece é que, quaisquer que sejam as situações, o poeta
dramático cria a sua obra contando, mesmo que de relance, com um público. Assim
30
é que, n' O Marinheiro, as personagens não se movem durante toda a peça. Apenas
falam, sem quaisquer gestos em meio aos diálogos. No entanto, existem referências,
anotações, indicações de cenário, posicionamento de objetos, entonação de voz,
etc. , portanto, a intenção do espetáculo, uma situação de apresentação teatral.
Como afirma Régio (1967, p. 170),
Fernando Pessoa sempre se referiu ao caráter dramático de sua poesia,
afirmando que a obra de cada heterônimo seria como a fala dos personagens de um
drama seu. E que, juntas, elas formariam outro drama. Assim, um drama dentro de
outro drama. Por que não uma obra dentro de outra obra? Por que não a essência
dos heterônimos estar contida n'O Marinheiro, um "drama estático", que, segundo
Cruz (s/d, p. 19), o drama " reside, mais propriamente, no diálogo das linguagens
poéticas, no interior da obra (das obras) dos heterônimos"? O próprio Pessoa se
define como um poeta dramático que é vários poetas, criando os heterônimos e
estes criando suas respectivas obras poéticas. É essa poesia multipessoal,
plurissubjetiva que interessa ao nosso estudo.
.
1.1.1 O Marinheiro, um "drama estático"
A realidade é que todos os grandes poetas
dramáticos acharam meio de, não renunciando
ao seu gênio, nem submetendo a sua criação a
excessivas pressões externas, criarem
literariamente e inspirarem espetáculos teatrais
sem, ao mesmo tempo, afastarem a fecunda
lembrança do público
31
Segundo Seabra (1974), não parece possível classificar "O Marinheiro" como
um "drama de ação" ou como um "drama de personagem", nem mesmo como um
"drama de espaço", segundo uma outra classificação proposta por alguns teóricos
da literatura. Ele é, realmente, um drama estático, sem ação, sem movimento.
Não parece que Pessoa tenha criado "O Marinheiro" para ser representado.
Segundo Seabra (1974, p. 28), " ele destina-se muito mais a ser lido do que a ser
visto, ou antes a ser visualizado através das palavras." Até as indicações iniciais de
cena mostram isso: a maneira poética e sugestiva como são indicadas, parecem
dirigir-se não a um cenógrafo, mas à imaginação de um leitor.
Não indicação de tempo ou espaço e as três Veladoras que, no início,
parecem personagens distintas, aos poucos vão se diluindo, dissolvendo sua
identidade até se reduzirem a, aparentemente, uma só. "Quem é que está falando
com a minha voz?" (PESSOA, 1986, p.451). Elas vivem no espaço de uma noite,
receosas da primeira luz do dia, que as dissolverá. Para viverem e poderem sentir-
se reais, falam o tempo todo, contando umas às outras os seus sonhos.
No entanto, mesmo que as veladoras sejam simples vozes e não
efetivamente personagens, no interior do drama um "personagem" simbólico,
evocado através do sonho: um marinheiro, perdido numa ilha longínqua e que
Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação - isto é,
onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre
deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação;
onde não conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é teatro. Creio
que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramente lírico e que o enredo
do teatro é, não a ão nem a progressão e conseqüência da ação - mas, mais
abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a
criação de situações (...) Pode haver revelação de almas sem ação, e pode
haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas
para a realidade. ( PESSOA, 1990, p.283 )
32
sonha, também, com uma pátria que perdeu, ou antes, "que nunca tivesse tido".
Assim, a distinção entre sonho e realidade é questionada, quando uma das
veladoras se pergunta se, na verdade, não seriam elas o sonho do marinheiro e ele
a única coisa real de toda a situação.
O tema central de toda a poesia de Pessoa, o mistério do Ser e o terror do
Nada também são perfeitamente identificados na peça: "Há alguma razão para
qualquer coisa ser o que é?" (PESSOA, 1986,p.443). "Se nada existisse, minhas
irmãs?... Se tudo fosse, de qualquer modo, absolutamente cousa nenhuma?"
(PESSOA, 1986, p.449).
Essas vozes que se confundem numa só, como nas tragédias gregas, o clima
de terror e dúvida gerado pelas palavras que respondem às palavras, é que situam o
drama no plano da tragédia.
Muitos críticos citam o fato de que Pessoa sempre ambicionou escrever um
poema dramático em verso. No entanto, ele conseguiu uma maior intensidade de
estruturação poética e dramática no drama estático em prosa. Mais um paradoxo,
confirmando a face surpreendente do poeta.
E, numa frase de Seabra (1974, p. 34), encontramos uma afirmação que leva
ao objetivo maior deste estudo: mostrar que n'O Marinheiro estão contidas as
sementes de algumas das obras poéticas posteriores de Pessoa.
Pessoa não deixou de sugerir o caráter trágico de O Marinheiro, num de seus
comentários escritos em inglês, que aqui traduzimos: "Começando de uma
forma muito simples, o drama evolui gradualmente para um cume terrível de
terror e de dúvida, até que estes absorvem em si as três almas que falam e a
atmosfera da sala e a verdadeira potência do dia que está para nascer. O fim
desta peça contém o mais sutil terror intelectual jamais visto. Uma cortina de
chumbo tomba quando elas não têm mais nada a dizer uma às outras nem
mais nenhuma razão para falar. (SEABRA, 1974, p. 31)
E tanto O Marinheiro como o Primeiro Fausto nos surgirão, em última
análise, como a face positiva e negativa de uma mesma evidência
fundamental: a dramaticidade da obra de Pessoa manifesta-se não no
gênero dramático propriamente dito mas na sua transposição lírica
para os heterônimos.( SEABRA, 1974, p. 34).
33
1.2 Teorizando a poesia
Segundo Bachelard (1991 ), "a poesia é uma metafísica instantânea". Ela
pode dar uma idéia de unidade e uma visão universal numa simples palavra, num
curto bloco de palavras.. Em todo verdadeiro poema, encontramos elementos de um
tempo atípico, que foge do tempo comum. Bachelard chama esse tempo de vertical,
porque foge horizontalmente do tempo regular, que administra arrebatamentos e
emoções, muitas vezes inoportunamente. O instante da poesia visa à verticalidade,
à profundidade. E essas simultaneidades, ordenadas, mostram que o instante
poético exibe uma perspectiva metafísica:
O instante poético é, pois, necessariamente complexo:
emociona, prova, - convida, consola -, é espantoso e
familiar. O instante poético é essencialmente uma relação
harmônica entre dois contrários. No instante apaixonado do
poeta existe sempre um pouco de razão; na recusa racional
existe sempre um pouco de paixão. As antíteses
sucessivas agradam ao poeta. Mas, para o arroubo, para
o êxtase, é preciso que as antíteses se contraiam em
ambivalência. Surge, então, o instante poético... No
mínimo, o instante poético é a consciência de uma
ambivalência. Porém é mais: é uma ambivalência excitada,
ativa, dinâmica. O instante poético obriga o ser a valorizar
ou a desvalorizar. (BACHELARD, 1991, p.184)
Só a poesia é da mesma ordem que a filosofia e o pensar
filosófico. Mas a criação poética e o pensar não são, apesar
disso, idênticos. Falar do nada será sempre, para a Ciência,
uma abominação, um absurdo. Pelo contrário, além do filósofo,
o poeta pode fazê-lo. E isso não em razão de um menor rigor
que, segundo o senso comum, seria próprio da poesia, mas sim
porque na poesia (a que é autêntica e grande) reina uma
essencial superioridade de espírito em relação a tudo o que é
puramente ciência. Superioridade em virtude da qual o poeta
fala sempre como se o ente (das Seiende) fosse pela primeira
vez expresso e interpelado. (HEIDEGGER)
34
Ainda segundo o autor, antítese e ambivalência são dois termos que nascem
juntos, pois o poeta vive num único instante os dois termos de suas antíteses. Mas,
o que é o tempo, dentro desse pluralismo de efeitos contraditórios? Podemos
chamar de tempo essa perspectiva vertical que envolve o instante poético? "Sim,
porque as simultaneidades acumuladas são simultaneidades ordenadas".
(BACHELARD, 1991, p.185). Elas dão a dimensão do instante, porque lhe dão uma
ordem interna e o tempo nada mais é do que uma ordem. Portanto, a ordem das
ambivalências no instante poético é um tempo, que o poeta descobre ao recusar o
tempo comum, horizontal. E, ao atingir o âmago desse tempo, o poeta atinge o
centro de si mesmo.
Cada poeta apodera-se desse tempo, à sua maneira. Lendo Poe, vemos que
o tempo vertical pode se elevar ou se afundar. N'O Corvo, podemos perceber que
meia-noite nunca soa horizontalmente. Vai descendo, descendo na alma, trazendo
junto com as pancadas, feridas, recordações, fantasmas... Depois nos traz de volta
para a vida, para o tempo plano. Enfim, "tudo que nos afasta da causa e da
recompensa, tudo que nega a história íntima e o próprio desejo, tudo que
desvaloriza ao mesmo tempo o passado e o futuro encontra-se no instante poético".
(BACHELARD, 1991, p. 186)
Segundo Barthes (1971), prosa e poesia são grandezas que se podem medir
e uma é sempre diferente da outra. Essa diferença não é de essência; é de
quantidade. Assim, o dogma clássico da unidade da linguagem não é afetado.
Assim, a poesia é a "equação decorativa, alusiva ou carregada, de uma prosa virtual
que jaz em essência e potência em todos os modos de expressão." (BARTHES,
1971, p.56)
35
Nos tempos clássicos, Poética era algo convencional, designando somente a
inflexão de uma técnica verbal, a expressão vestida de roupagens mais belas. Na
poesia moderna, nada resta dessas características.
Ainda segundo Barthes (1971), enquanto a poesia clássica é técnica, sem
duração, na poética moderna as palavras mostram uma emanação visivelmente
sentimental. "... a fala é, então, o tempo espesso de uma gestação mais espiritual,
durante a qual o 'pensamento' é preparado, instalado pouco a pouco pelo acaso das
palavras" (p. 57). Portanto, a Poesia moderna é diferente da clássica pela estrutura
da linguagem, e entre elas só existe um ponto comum: a intenção sociológica.
Barthes compara ainda a natureza da prosa e da poesia clássicas à
matemática. Todo o movimento da continuidade matemática provém de um
entendimento explícito de suas ligações. A linguagem clássica apresenta também
um movimento semelhante, ainda que menos rigoroso: respaldadas por uma
tradição que lhes retira todo o frescor, suas palavras apresentam uma sucessão de
elementos de igual densidade, submetidos a uma mesma pressão emocional. A
função do poeta clássico, portanto, não é "encontrar palavras novas, mais densas ou
mais brilhantes, mas ordenar um protocolo antigo, aperfeiçoar a simetria ou a
concisão de uma relação, levar ou reduzir um pensamento ao limite exato de um
A Poesia não é mais então uma Prosa decorada de
ornamentos ou amputada de liberdades. É uma
qualidade irredutível e sem hereditariedade. Não é mais
atributo, é substância e, por conseguinte, pode muito
bem renunciar aos signos, pois traz em si sua natureza
e não precisa assinalar exteriormente sua identidade: as
linguagens poéticas e prosaicas estão suficientemente
separadas para poderem prescindir dos próprios signos
de sua alteridade. (BARTHES, 1971, p.56
)
36
metro" (p. 58). Não vida que a fala clássica, embora semelhante, não atinge a
perfeição funcional da rede matemática: "nela, as relações não se manifestam por
signos especiais mas apenas por acidentes de forma ou de disposição." (p. 59).
Na linguagem clássica, são as relações que dirigem a palavra; na poesia
moderna, as relações são apenas uma extensão da palavra. E é a Palavra que
revela uma verdade de ordem poética e, portanto, "a palavra poética nunca pode ser
falsa porque é total; ela brilha com uma liberdade infinita e prepara-se para
resplandecer no rumo de mil relações incertas e possíveis" (p.60 ). Assim, sob cada
palavra da poesia moderna, está inserida uma espécie de geologia existencial,
constituindo um objeto inesperado, produzido e consumido com uma curiosidade
particular que faz da fala poética uma fala terrível e inumana. A linguagem clássica é
uma linguagem social, um universo onde as palavras nunca têm o peso terrível das
coisas, onde a fala é sempre o encontro com alguém. A poesia moderna, ao
contrário, destrói as relações da linguagem, inverte o conhecimento da Natureza e é
uma poesia objetiva que, segundo Barthes (1971), exclui os homens, pois "não
existe humanismo poético da modernidade" (p. 63). A poesia moderna põe o homem
em ligação com as imagens mais inumanas da Natureza: o céu, o inferno, a loucura,
o sagrado, etc. Os poetas modernos assumem a poesia não como um estado de
alma, uma tomada de posição, mas "com o esplendor e o frescor de uma linguagem
sonhada." (p. 63). Quando a linguagem poética põe em questão a Natureza, não há
mais escritura, apenas estilos, através dos quais o homem enfrenta, solitária e
corajosamente, o mundo objetivo.
Em se tratando da poesia de Pessoa, ela ganha especial relevo quando
integrada na análise da linguagem heterônima. E essa multiplicidade de linguagens
poéticas leva-nos à descoberta da diversidade de toda a obra pessoana. Superando-
37
se, Pessoa se recria, desdobrando-se em muitos, falando através de várias vozes,
todas suas e, ao mesmo tempo, todas absolutamente diferentes e desconhecidas.
Essa pluralidade nos abre horizontes para a multiplicidade de todas as leituras
possíveis e, a cada leitura, julgamos ter encontrado uma chave para a interpretação
perfeita. No entanto, Pessoa nos escapa, se esconde, reaparece, heterônimo após
heterônimo, até enquanto "ele mesmo".
É preciso observar que cada personagem é criada integralmente e não
apenas pensada de modo diferente. Por isso, os heterônimos falam através da
poesia. Em prosa, é mais difícil simular, fingir. Os versos tornam mais espontânea
essa simulação.
Este estudo, como citamos, visa a estabelecer pontes entre o drama
estático O Marinheiro, de Fernando Pessoa e algumas de suas obras poéticas
posteriores. Portanto, tentaremos encontrar a poesia sob a prosa, pois o teatro em
prosa de Pessoa mostra frases que são poesia, pelo ritmo que possuem. N'O
Marinheiro, esse aspecto do drama impressiona sobremaneira, se levarmos em
conta o seguinte apontamento do próprio autor:
O verso difere da prosa o materialmente, mas
mentalmente. Se não diferisse, não haveria nem uma coisa
nem outra, ou haveria só uma que fosse uma espécie de
mistura de ambas. O estado mental que produz verso é
diferente do estado mental que produz prosa. A diferença
exterior entre a prosa e o verso é o ritmo; a diferença
interior entre a prosa e o verso será a entre um estado
mental que naturalmente se projeta em simples palavras, e
um estado mental que naturalmente se projeta em ritmo
feito com palavras. (PESSOA, 1986, p.787)
A poesia de Pessoa é a análise mais complexa, dolorosa e trágica,
mas ao mesmo tempo lúcida e impiedosa, do homem do século XX;
um homem atormentado que escarnece de outrem e de si próprio e
que, na sua verdade e na sua maldade, no abuso do paradoxo, na
capacidade de afirmar ironicamente o contrário de um axioma já
antes ironicamente utilizado, produz uma poesia das mais
revolucionárias do século XX. (TABUCCHI, 1984, p. 19)
38
Pessoa aproxima as linguagens poéticas dos heterônimos aos dois pólos que,
no seu entender, dominam a arte da linguagem: a prosa e a poesia. Como vimos,
ele as diferencia apenas pelo ritmo, que estabelece "um acordo entre o princípio que
preside à estrutura dos significados e o que rege a forma da expressão, se
quisermos reportar-nos à sua própria poesia."(SEABRA, 1974, p.85).
Para Pessoa, a poesia é como a prosa feita música, ou uma prosa cantada.
Seguindo esse raciocínio, teríamos, na poesia, a naturalidade da palavra aliada ao
artifício da música. Assim é que Caeiro e Campos tenderiam para a prosa; Pessoa
"ele mesmo" e Reis, para a poesia.
Segundo Casais Monteiro (1958), o modernismo realizou uma revolução na
linguagem poética, revolução esta concretizada na poesia de Pessoa, embora
iniciada por Gomes Leal, Cesário Verde e Antonio Nobre:
Em toda a poesia de Pessoa palpita um anseio essencial, doloroso, imenso, de
desvendar o mistério da vida. Isso lhe uma unidade profunda: aqui não
repartições por heterônimos, nada muda nem divide a substância desta preocupação
essencial, porque ela está na natureza profunda do seu ser. É a vasta interrogação que
salta, em cada instante, dos seus passos pelo mundo, do seu encontro com as coisas,
com os acontecimentos reais, os quais escondem, para além de sua aparência causal,
um sistema de mistérios que são a denúncia de um mundo dum mundo radioso e
calmo. É este mundo - do qual veio o Poeta para cumprir neste a missão que de
trouxe e as instruções que ainda de recebe - que a sua poesia procura exprimir com
uma eloqüência e uma coragem que insistem em querer dizer o inexprimível. Em querer
dizer os grandes mistérios que habitam o limiar do seu ser, perdido entre os sonhos que
não foram ("quem me dirá quem sou?"), em dizer os sutis segredos que se escondem à
sua angústia, "querer ouvir para além do sentido que uma voz tem", querer poder beijar
o gesto sem beijar as mãos e descendo pelos desvãos do sonho, poder encontrar esse
gesto e prendê-lo, em querer dizer a grande mágoa de todas as coisas serem bocados
e aquela fome de viver as coisas que, durante a sua duração, sofre a pena do
momento em que tiverem acabado." (MAR TALEGRE apud CASAIS MONTEIRO, 1958,
p.133-4)
39
Ainda segundo Casais Monteiro (1958, p.138), "a poesia é uma deusa
incógnita". Realmente, quando nela nos absorvemos e com ela nos identificamos,
parecemos compreendê-la, tocá-la. No entanto, ela de nós se oculta, de repente,
deixando-nos apenas a dúvida e as possíveis paisagens a descortinar. A verdade é
que é muito difícil de se identificar poesia e idéias. Fernando Pessoa é, entre os
grandes poetas do nosso tempo, um dos que melhor nos permite reconhecer essa
dificuldade. Seus heterônimos têm suas obras impregnadas de várias filosofias,
mostrando ao mesmo tempo a diversidade e a unidade efetivas da poesia.
Impregnadas, também, de uma música própria, fazendo um contraponto entre si,
mostrando harmonizações que se repetem nos poemas de Caeiro, Reis, Campos e
Pessoa "ele mesmo".
É preciso ter sempre presente que a linguagem dos poetas é a linguagem de
sua própria época. A linguagem é algo vivo, palpitante e, no caso de Pessoa, destrói
para, talvez, reconstruir e "desvendar o mistério da vida", como afirmou Talegre
Portanto, poesia e prosa coexistem na obra pessoana, racionalizando para sonhar e
sonhando para racionalizar. O ritmo oferece as nuances, as possibilidades de
compreensão, o auxílio à interpretação.
A captação desta multiplicidade exige, todavia, do leitor que
o "acessível" não lhe faça perder de vista o difícil - [...]
Exige dele, em primeiro lugar, que a música de Álvaro de
Campos, de Ricardo Reis e de Alberto Caeiro não lhe seja
menos familiar do que a de Fernando Pessoa ele-mesmo, e
que nas complexas harmonizações da "Tabacaria" ou de
"Ode Marítima", por exemplo, saiba reconhecer as mesmas
virtudes que na melodia mais familiar do "Menino de sua
mãe". Exige, em suma, que a música lhe ensine aquilo que
a métrica não oferece". (CASAIS MONTEIRO, 1958,
p.170).
40
Como afirma Pessoa, o ritmo é algo presente tanto na prosa quanto no
verso, mesmo que, essencial neste, seja naquela apenas um acessório. Ao
afirmar que, "no fundo não há verso nem prosa" (p. 787), ele talvez queira nos
mostrar que existe, apenas, a linguagem, seja ela prosa ou poesia.
Platão dedica um diálogo inteiro, Crátilo, aos problemas da linguagem,
mostrando que, nas mãos de um sábio, ela é um instrumento que deve ser usado
com lógica.
uma diferença fundamental entre a perspectiva socrática e a nossa
perspectiva: a palavra, considerada divina, formava um elo indivisível com seu
significado, elo esse indissolúvel porque era o próprio destino que o traçava. Uma
Sócrates passa a exemplificar como os
nomes dos deuses e heróis se justificam
pelo seu significado oculto ou evidente em
relação ao destino de cada um. (BRILL,
1988, p.28)
O ritmo consiste numa gradação de sons e de falta de som, como o mundo
na graduação do ser e do não-ser. Quer isto dizer que o ritmo consiste numa
distribuição de palavras, que são sons, e de pausas, que o faltas de som.
[...] Na prosa, que é a linguagem falada escrita, estas pausas são dadas por
uma coisa a que se chama pontuação, e a pontuação é determinada
exclusivamente pelo sentido.[...] Se, porém, quisermos acentuar o ritmo para
além da ordem lógica, em virtude de em nós a emoção,[...] predominar sobre
a idéia propriamente dita, abriremos pausas artificiais no discurso.( PESSOA,
1990, p. 273)
[...] a diferença entre a prosa e o verso, sem desaparecer, longe
até de desaparecer, acentua-se tal qual é, sem mais nada. O
verso é a prosa artificial, o discurso disposto musicalmente. Não
é outra a diferença entre as duas formas da palavra escrita.
(PESSOA, 1990, p. 274)
41
denominação, por exemplo, tinha a capacidade de revelar a essência da coisa
significada. Na perspectiva atual da linguagem, houve um hiato entre significado e
significante. Segundo Brill (1988, p.29), o sistema lingüístico contemporâneo,
desligado da realidade, "volta-se para si mesmo, mais interessado na sua própria
coerência interna do que no relacionamento com o mundo exterior".
Surge, então, a importância do símbolo. O que realmente faz do homem um
ser racional é a sua capacidade de simbolizar todas as suas experiências de vida. A
função simbólica permite ao homem apropriar-se de suas vivências e expressá-las,
memorizando-as ou transmitindo-as aos outros. Assim, na base da função simbólica
está a comunicação entre os homens, "possibilitando a troca de idéias entre
indivíduos do mesmo grupo social, através de códigos tais como a linguagem escrita
e falada e as artes" (BRILL, 1988, p.35).
Segundo Gonçalves (1995), as condições que determinam a existência do
humano é que constituem o simbólico. Por isso, a fantasia possui duas funções: uma
função imaginária, que é ilusória, e uma função simbólica, que é desveladora. Vale
lembrar aqui, contudo, que não é apenas a poesia que se utiliza da imaginação para
entender a realidade. Toda a Teoria, inclusive a científica o faz, também.
Podemos entender que a poesia é a livre interpretação da realidade. Isso
significa que o poeta não aceita o mundo interpretado por outras pessoas; ele a
desinterpreta, depurando-a, interpretando livremente o real. É, então, que a poesia
pode ser vista como um jogo, feito o com as palavras, mas sim com a realidade.
Portanto, a principal substãncia dessa atividade lúdica é, em última análise, a
imaginação, a atividade criadora que pode, através do olhar do poeta, reelaborar as
visões do mundo, usando temas próprios, usando a riqueza dos símbolos.
42
O Marinheiro tem como símbolo a morte. Um caixão, onde repousa uma
donzela, domina toda a peça. Veremos que, principalmente em Campos e no poeta
ortônimo, a morte é um tema transcendental, rico em conteúdo metafísico. Em
ambos, percebemos o conflito da percepção do mistério aliada a um impiedoso
racionalismo. N'O Marinheiro, essa dualidade é bem clara. Enquanto a Primeira e a
Segunda veladoras questionam-se sobre situações e imagens misteriosamente
pinceladas pela memória ou pelas palavras ditadas pela emoção e pelo medo, a
Terceira é racional e objetiva, na maior parte do tempo. Se as duas primeiras vêem
no tempo que custa a passar um motivo para sonhar ou relembrar o passado, ela
simplesmente pergunta: "Por que não haverá relógio neste quarto?" (p. 442). E, à
pergunta da Primeira veladora: "Quando virá o dia?" (p. 442), sua resposta é rápida
e ácida: "Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira..." (p. 442).
Como se vê, talvez esse narrador-observador que perpassa toda a obra de
Pessoa, possa ter andado por uma ponte construída entre vários Pessoas que,
contudo, são os mesmos. Talvez os caminhos sejam iguais, apenas revestidos de
diferentes paisagens. Teria o poeta iniciado, n'O Marinheiro, a construção dessas
pontes e a pintura dessas paisagens?
É o que tentaremos demonstrar, fazendo inicialmente uma análise da peça,
seguida do estudo comparativo entre o drama estático e alguns poemas e,
finalmente, apresentando as possíveis conclusões a que poderemos chegar, ao final
deste trabalho.
43
2 O MARINHEIRO: UMA INTERPRETAÇÃO
Segundo o próprio autor, a literatura dramática é uma variante da literatura
narrativa. A literatura é a expressão verbal de um temperamento e a narrativa é a
forma objetiva dessa expressão. A literatura dramática é a forma sintética dessa
expressão objetiva; um drama é, assim, um romance na sua forma máxima de
síntese possível e, por isso, pode receber a aparência de vida, pode ser simulado
num palco.
O Marinheiro, drama publicado por Pessoa no primeiro mero de Orpheu, não
se trata de uma das obras perfeitas e acabadas que nos ficaram dele. Ele mesmo
comenta essa particularidade, em uma carta a Armando Cortes Rodrigues:
Na verdade, não podemos chamar esta obra de Pessoa de "drama de ação",
nem tampouco de "drama de personagem", segundo Cruz, (s/d, p. 28). Talvez,
criando um "drama estático" em prosa, Fernando Pessoa atingiu, em mais um
O meu drama estático "O Marinheiro" está bastante
alterado e aperfeiçoado; a forma que v. conhece é
apenas a primeira e rudimentar. O final,
especialmente, está muito melhor. Não ficou, talvez,
uma cousa grande, como eu entendo as cousas
grandes; mas não é cousa de que me envergonhe,
nem - creio - me venha a envergonhar. (PESSOA,
1986, p.788).
44
surpreendente paradoxo, "uma maior intensidade de estruturação dramática e
poética do que no seu ambicioso plano de um poema dramático em verso". (CRUZ,
s/d, p. 34).
2.1 O Marinheiro, um resquício simbolista?
No final do século XIX, verifica-se uma crise social, existencial e cultural que
tem como conseqüência a saturação das expectativas otimistas anunciadas pelo
desenvolvimento industrial e pelo progresso científico, que ganharam impulso a
partir da metade desse século. É nesse contexto que surge o Simbolismo, voltado
para o ego, para as esferas inconscientes, na busca do "eu" profudo. Os simbolistas
buscavam a "síntese viva", que unisse em sua complexidade, todos os aspectos da
vida. A linguagem simbolista, infinita e plurívoca, explorava temas místicos,
fabulosos, mergulhando no vago, no mistério, na ilusão.
Sobre esse importante movimento, comenta Hauser (1968, p. 216-7):
Para melhor entendermos a evolução do simbolismo em Portugal, segundo
Cruz (s/d), devemos nos reportar a D. João Câmara, que em 1894, escreveu a
primeira peça "programaticamente simbolista" (p.22), O Pântano, sob a clara
influência de Maeterlink. Escrita para ser encenada, feita concretamente para o
palco, não agradou ao público, talvez pela excessiva simbologia e pela carga
O simbolismo é a mais celebrada tendência[...]
Predomina a moda da novela russa, do prerrafaelismo
inglês e da filosofia alemã. Mas o efeito mais profundo
e mais fecundo vem de Baudelaire; é considerado o
precursor mais importante da poesia simbolista e,
sobretudo, o criador da lírica moderna.
45
evocativa complicada. Talvez por isso, as demais obras de Câmara, depois,
mostraram um simbolismo bem mais simplificado.
No mesmo ano (1894), surge o primeiro poema dramático de Eugênio de
Castro, Belkiss. No entanto, Castro mostra uma particularidade que nos interessa
sobremaneira, em virtude do estudo a que nos propomos neste trabalho: não há, em
suas obras, uma distinção exata entre textos dramáticos e não dramáticos. Alguns
textos podem ser levados ao palco, mas é visível que as particularidades da
construção teatral como movimento, cena, dinâmica, não eram uma preocupação do
autor. É interessante notar, também, que a sua poesia dramática é extremamente
estática, como o é, também, o nosso O Marinheiro.
Mas, ainda segundo Cruz (s/d), é em Antonio Patrício que a evolução do
simbolismo português encontra um dos seus momentos mais importantes e, no
teatro, sua "mais completa e característica expressão" (p.24). Sua obra, construída a
partir da dualidade morte/amor, mostra uma fórmula e uma técnica bem
características da corrente simbolista, como em Pedro o Cru e D. João e a Máscara,
entre outros trabalhos.
Mas, na verdade, é no modernismo que amadurecem certas inclinações que a
escola simbolista procurou integrar e esse talvez seja um dos motivos por que
Simbolismo e Modernismo podem ser confundidos. No simbolismo, dá-se um
fenômeno extremamente importante: a regeneração musical da poesia, que lhe
permite recuperar a sua essência rítmica. Além disso, outras características
marcaram o movimento: a necessidade de se captar a essência misteriosa das
coisas; a busca da expressão poética através da musicalidade, dos símbolos, dos
temas místicos que levam à percepção de uma nova linguagem; a peregrinação pelo
inconsciente, na busca do eu-profundo; o tom fatalista (pessimismo, horror, dor,
46
morte); valorização de toda possibilidade de expressão que reproduza a percepção
do mundo. Além disso, o simbolismo exalta a fala, a literatura teatral. E a palavra,
por si , é espetacular, embora como vimos, ela não dará à obra um caráter
cênico se não for acompanhada de um mínimo de dinâmica teatral.
O ideal dramático simbolista começa por se afirmar em Mallarmé, entre
outros, através, principalmente , da negação do teatro naturalista, segundo Seabra
Pereira (1975).
Segundo Junqueira (2001), as diretrizes que norteiam O Marinheiro são as
que norteavam o teatro simbolista no final do século XIX. Essas diretrizes
correspondem às idéias de Fernando Pessoa, segundo as quais "...Pode haver
revelação de almas sem acção, e pode haver criação de situações de inércia,
momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade". (PESSOA apud CRUZ,
1991,p.68).
Discriminado como resquício simbolista, ainda segundo Junqueira, são
precisamente essas características simbolistas principalmente a valorização de
recursos sonoros e rítmicos sistematicamente repetidos, perfazendo uma linguagem
sensívelmente poética que, reelaboradas pelo autor, "fazem da peça um 'artefato
lingüístico' que é sui generis na medida em que proporciona ao leitor/
ouvinte/espectador, um espetáculo potencialmente musical, uma quase sinfonia de
vozes femininas..." (JUNQUEIRA, 2001, p.204).
[...] libertação de toda e qualquer regra, mesmo da relação
representativa entre a forma tomada pelo drama e as formas da vida;
desprezo da realidade contemporânea e da observação exacta; não
subordinação ao fio de uma intriga; tendência para anular a acção;
imprecisão de cenários e vestuários; desnudaçào da cena; redução
do número de actores, até ao ideal do actor único, e obscurecimento
da sua presença e função; etc. (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 96)
47
Não apresentando nenhuma ação, apenas linguagem, a peça apresenta um
cenário igual, do princípio ao fim do espetáculo. O autor privilegia a imaginação,
fazendo com que as personagens adquiram materialidade através da fala, como se
escrevesse um "hino à palavra", demonstrando o quanto nosso pensamento pode
viajar, sem necessidade de movimento. O drama estático, na verdade, substitui a
categoria de ação pela categoria de situação, mostrando um teatro mais filosófico do
que dramático, onde, a cada diálogo, confundem-se cada vez mais as fronteiras
entre a vida e o sonho. Uma das veladoras, a certa altura da peça pergunta: "Por
que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui
apenas um sonho dele?..." (PESSOA, 1986, p. 449)
A peça passa-se no quarto de um castelo antigo, onde três jovens velam o
corpo de uma donzela. O que mais impressiona é a rigidez do quadro, a forma
estática das cenas. Tudo se passa nesse quarto e as três veladoras jamais saem do
seu lugar. O ambiente é tipicamente simbolista: o quarto é bem isolado do mundo
exterior, se comunicando com ele através de uma única janela, "alta e estreita,
dando para onde se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar"
(PESSOA, 1986, p. 441). É interessante perceber, aqui, que a metáfora da janela
reforça a questão do isolamento interior e exterior do homem, presentes na obra
pessoana, talvez como uma necessidade premente de totalidade: janela, porta,
pórtico, paredes, muros, todos são funcionalmente idênticos. É oportuno lembrar,
aqui, dois poemas de Alexander Search: In the street e A Donzela. Neles, o sono e o
sonho são mostrados como as matrizes da melancolia de Pessoa. Segundo
Gonçalves (1995), nesses dois poemas pode-se perceber sinais da solidão e de um
país de sonho, temas que seriam retomados depois, n'O Marinheiro.
48
Assim é que, na peça, as três veladoras mostram-se, cada qual a seu modo,
envolvidas pelo sonho, pelo mistério. O caixão, símbolo de toda a peça, domina a
cena, numa clara alusão à morte, única personagem verdadeira do teatro da vida.
As três jovens não têm nomes, talvez privilegiando o sentir, o pensar, numa
demonstração de importantes características simbolistas: a valorização das
manifestações espirituais, a atmosfera dionisíaca obscura, subjetiva, a percepção de
uma outra realidade, a captação do mundo e do sentido das coisas pelo símbolo.
É preciso lembrar que o quarto é, na verdade, o palco que, no simbolismo, é
considerado o espaço de um cerimonial, o espaço ideal para a sinestesia. A peça é,
toda ela, uma representação do homem existencialmente impotente, surpreendido
pelo destino. As protagonistas são criaturas em estado de passividade, que falam de
uma vida não propriamente analisada, mas refletida na sua aspiração de
imaterialidade e de sonho.
Na peça não noção de tempo. Não relógio no cenário, fato percebido
subjetivamente pelas Primeira e Segunda veladoras e objetivamente pela Terceira.
PRIMEIRA- o dizíamos nós que íamos contar o
nosso passado?
SEGUNDA- Não, não dizíamos.
TERCEIRA- Por que não haverá relógio neste quarto?
SEGUNDA- Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo
é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a
si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim
se soubéssemos a hora que é? ( PESSOA, 1986,
p.442 )
Em significativa parte dos escritores do Simbolismo,
encontramos uma configuração platônica da visão do
Mundo: sobreposição de duas realidades distintas, sendo
uma - a material, fenoménica, sensivelmente atingível -
destituída de valor em si, porque considerada apenas como
anúncio simbólico da outra, a realidade espiritual,
imperecível e plena. Neste universo se suscita e situa a
busca transracional, detectora e vivificadora das analogias
secretas dos seres... (SEABRA PEREIRA, 1975, p. 66)
49
A supressão do tempo remete a elementos claramente simbolistas: a
efemeridade das coisas; o desejo de viver não a vida, mas o sonho; a inércia que
insinua o quanto são frágeis os limites entre a vida e a morte.
As três veladoras falam o tempo todo. Têm medo e, ao mesmo tempo, tédio.
Suas falas são filosóficas e intrigantes, com definições fascinantes: "as mãos não
são verdadeiras nem reais... são mistérios que habitam a nossa vida". [...] "os
montes devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que têm...
(PESSOA, 1986,p.443); "tudo é muito e nós não sabemos nada..." ( idem, p.445).
A segunda veladora, então, começa a contar um sonho que ela teve: é sobre
um marinheiro, perdido numa ilha longínqua. Ele também sonha, com uma pátria
que inventou. A cada dia inventa novas paisagens, pessoas, acontecimentos. Até
que se cansa de sonhar e tenta se lembrar de sua pátria verdadeira... mas não
consegue. Esquecera tudo. E percebe que toda sua vida, agora, se resume no
sonho que sonhara, dia após dia. Segundo Junqueira (2001), a capacidade de
sonhar, que é vital ao marinheiro (pois este sobrevive graças à sua ficção), está
ligada ao desapego de seu passado histórico , pois
[...]foi preciso perder-se num naufrágio e separar-se dos valores
que tinha até então para finalmente se reencontrar, renovado, e
reconstruir - à base de sonhos - uma identidade, sua e de sua
pátria. Repare-se também que, nesse processo de renovação, a
água é um elemento imprescindível, quer pela sua força motriz,
quer pela propriedade de refletir imagens invertidas, quer pelo
poder quase hipnótico com que nos embala: é no mar e pelo mar
que se perde e se reencontra o marinheiro... (JUNQUEIRA, 2001,
p.207).
50
A peça prossegue, com o relato da jovem que, a essa altura, se perde em
meio à narrativa: contara um sonho, dentro de outro sonho. E as três se assustam:
onde está, qual é o limite entre o real e o irreal? E se, de repente, a jovem morta
estivesse ouvindo a história? Quem pode afirmar que não? A morta estará mesmo
morta ou apenas sonha, repousada num caixão?
Então, amanhece. E, com o amanhecer, vem a certeza: apesar de todos os
riscos, os medos, os desencantos, é seguro viver, mas é mais bonito sonhar. Onde
está a tristeza: na morte ou na vida? Em que se deve acreditar? Na verdade,
perguntas claras ou veladas, mas sempre instigantes, são a tônica dessa obra, onde
tudo é fluido como a água, tudo é sonho, tudo é pura ficção. As próprias
veladoras,curiosamente, não têm nomes. São sempre denominadas por números: a
primeira, a segunda e a terceira veladoras.
O que nos parece é que a morta, repousando em seu caixão, pode
representar o poeta ortônimo, que "morre" para fazer nascer os heterônimos. Essa
idéia se repete, segundo Seabra (1974, p.160), no poema "Eros e Psique".
Aos poucos, tomado pela idéia de que no sonho pode-se viver com muito mais
intensidade do que no mundo real, o leitor / espectador vai-se deixando levar para o
limite entre o real e o fictício, entre a vida e a morte, também ele tornando-se parte
do espetáculo. A linguagem também vai-se tornando fluida, à medida em que as
A lenda da Princesa que espera ser despertada por um
Infante que, finalmente, descobre ser ele essa mesma
Princesa, seria susceptível de ler-se, de resto, como
uma espécie de iniciação simbólica ao mistério da
heteronímia. [...] Esta visão esotérica da identidade das
oposições, germe central da poesia de Pessoa,
encontra-se na textura do poema não como uma
simples ilustração de um rito, mas como a germinação
dos elementos do significado e do significante em que
ele se desdobra e se consubstancia.
51
veladoras desmistificam o mundo real, diluindo o significado das palavras, fazendo-
as soarem como pura melodia. No final da peça, a linguagem quase música pura
a embalar o espectador / ouvinte e a enredá-lo numa espécie de transe do qual
sairá no momento em que a segunda veladora disser, subitamente, que não
acredita no sonho" (JUNQUEIRA, 2001, p. 208).
Esse teatro musical, que não apresenta qualquer ação, sem qualquer outra
movimentação que não seja a da fala, é realmente um teatro simbolista, pois se
presta tanto ao palco quanto à declamação. No entanto, n'O Marinheiro ,
indícios de um modernismo que leva as personagens a desmistificarem a própria
ficção, tentarem rebelar-se, sonharem um sonho dentro de outro sonho,
questionarem o seu autor. Ilustrando sua interpretação do drama estático de
Pessoa, Junqueira (2001) escolhe a seguinte imagem: "o chão de areia quente em
que, para sonhar, se senta o marinheiro durante o dia à sombra das palmeiras, é o
chão do Simbolismo; mas o horizonte ainda pouco iluminado que ele perscruta, à
noite, sem olhar para as estrelas, é o do Modernismo..." (p. 211).
Modernista ou simbolista, O Marinheiro é uma leitura fascinante e aterradora:
fala de vida e morte, sonho e desesperança, certeza e mistério. O navio que chega,
finalmente, à ilha, não encontra o marinheiro. Teria ele voltado à sua terra? E o
mais perturbador é pensar, então, a qual delas teria voltado: à real ou à do sonho?
Será possível viver um sonho com tal intensidade? E será que só essa conjectura
não é uma prova definitiva de que s, leitores, também nos afastamos da
realidade?
2.2 O Marinheiro e suas configurações: espaços e objetos
52
Considerando a distinção que Issacaroff (1981) faz entre espaço mimético e
espaço diegético, podemos considerar em O Marinheiro, segundo Marinho (1983), a
existência básica desses dois espaços. O espaço mimético (tudo que é visível,
concreto), será constituído pelo quarto do castelo, visível no palco; o espaço
diegético (tudo o que é descrito pelas protagonistas/narradoras do drama), é
constituído pelas recordações das veladoras. Podemos ainda considerar, no interior
do espaço diegético, o espaço sonhado pelo marinheiro e narrado pela segunda
veladora, a que chamaremos de intradiegético.
Ainda segundo a autora, todos os elementos de um espaço têm a sua
correspondente negativa no outro. O espaço mimético é fechado, circular, fixo e
representa o presente; o diegético é aberto, cheio de mobilidade, abstrato e
representa o passado, "que nunca existiu a não ser no desejo". (MARINHO, 1983, p.
28). No primeiro está a morte; no segundo está o sonho. Nos dois, movem-se quatro
personagens: as veladoras, que pertencem a ambos e a morta, que pertence ao
primeiro. O marinheiro é evocado no segundo, dando origem, como
mencionamos, ao espaço intradiegético.
Apesar da existência desses três espaços, não existe ação propriamente dita,
em nenhum momento da peça. Assim, o que ocupa o primeiro plano o os objetos
existentes nesses espaços, pois são eles que sugerem a ação.
No espaço mimético, os objetos geram angústia: o caixão, a donzela morta,
as tochas; a ausência do relógio indica atemporalidade; o cantar do galo e o chiar do
carro marcam a distinção entre noite/dia, fora/dentro, vida/morte, real/sonho.
No espaço diegético, tudo leva à busca do sonho: os palácios de outros
continentes, a vela de um navio inatingível. No espaço intradiegético o país sonhado
e o navio sugerem segurança e bem-estar, ainda que impossíveis. Assim,
53
percebemos claramente que os objetos dos espaços diegético e intradiegético
tentam, inutilmente, anular os objetos do espaço mimético. O que acontece é que,
por contraste, eles os ressaltam ainda mais.
É preciso observar, também, o modo semântico de estudar esses objetos,
considerando que morte e sonho são dois campos semânticos fundamentais n'O
Marinheiro. Inseridos neles encontramos alguns desdobramentos: família, o
elemento líquido, natureza, atemporalidade, angústia, etc. Ao longo da peça,
percebemos que o campo semântico da morte, onde permanecem, todo o tempo, as
veladoras, anula o campo do sonho. "O sonho é, também ele, o sonho de um
sonho." (MARINHO, 1983, p. 31).
O modo retórico de estudar esses objetos considera a realização sucessiva
e/ou simultânea em diferentes figuras. No espaço mimético, o caixão, símbolo de
toda a peça, representa uma metonímia da morte. A donzela morta é a antítese
vida/morte enquanto que as velas representam uma metáfora da vida dentro do
universo da morte. O relógio, ausente, é a metáfora da atemporalidade.
No espaço diegético, os espaços o, na sua maioria, símbolos: casa, flores
(de felicidade); vela (fuga ); o próprio marinheiro (morte).
No espaço intradiegético, navios e barcos naufragam no mar do real ou do
irreal e a viagem pode ser um sonho enquanto o passado, a ilha, o marinheiro
são puras essências. No final, resta o caixão, a forma englobante da morta.
[...] em O Marinheiro, o único enredo é
apenas o da morte de que a peça é uma
clara alegoria; e o objeto nunca
desrealizado é o caixão - forma
englobante que revela ou afirma
permanentemente, mais do que o corpo,
a alma da morta. (MARINHO,1983, p. 31)
54
A água representaria a dialética vida/morte. O elemento líquido contido na
peça é o mesmo que atravessa a poética pessoana e remete para o tema do fluir do
tempo. A água parece ser, para Pessoa, um sinal de limitação e o conduziria a um
tempo de passagem.
2.3 Visões da arte simbolista n'O Marinheiro
Segundo Cândido et al(1970), o mundo representado no palco é feito de
objectualidades puramente intencionais e é, integralmente, ficção. Essa ficção
reveste-se de tal força que se superpõe à realidade. Assim, a personagem "vive",
ultrapassa os limites dessa realidade e faz do homem, realmente, o centro do
universo.
O teatro é, em última análise, uma forma de arte complexa e abrangente.
Para refletirmos sobre a arte visível no drama estático de Pessoa, precisamos
pensar o homem que, respaldado por um movimento artístico, revestiu esse trabalho
de suas características marcantes. Buscando incessantemente a sua própria
identidade e o sentido da existência humana, ele conseguiu uma liberdade de ação
tanto exaltante como aterradora. E reside o conflito fundamental de nossos dias:
embora tenha adquirido um vasto e profundo conhecimento de si mesmo, não lhe
veio a segurança esperada. A arte, então, é a grande sublimação.
55
2.3.1 A pintura simbolista
Segundo Woodford (1983), há muitas maneiras de se olhar para uma pintura.
Se tomarmos como base a figura de um bisão, pintada uns quinze mil anos no
teto de uma caverna existente no que hoje é a Espanha, poderemos olhá-la de
quatro maneiras diferentes. A primeira seria indagando a sua finalidade. Alguns
poderiam dizer que sua finalidade pode ter sido mágica: o pintor rupestre pode ter
alimentado a esperança de que o fato de capturar a imagem do bisão na caverna lhe
propiciaria capturar o próprio bisão. Uma segunda maneira de ver essa pintura seria
indagando o que elas nos dizem a respeito das culturas em que foram
produzidas. Assim, a pintura rupestre pode nos dizer muitas coisas sobre os
homens primitivos, que se deslocavam de um lugar para outro, por vezes abrigando-
se em cavernas, caçando animais ferozes e colhendo frutos em meio aos campos
pré-históricos. Uma terceira forma de ver essa pintura seria procurando avaliar até
que ponto ela é realista. Com certeza, a semelhança com a natureza foi um dado
desafiador para o artista... Uma quarta forma de ver essa pintura consiste em
analisá-la em termos de construção, ou seja, como formas e cores foram
usadas para produzir padrões dentro do quadro. Essa análise nos ajudaria a
compreender melhor seu significado e a entender os recursos utilizados pelo artista
para obter os efeitos desejados.
Um simples olhar para um quadro é bastante para nos impressionar de
algum modo sobre ele: as formas e cores, configurações, dimensões e arranjo dos
56
motivos podem ajudar-nos a reconhecer os meios criados pelo artista para obter
determinados efeitos, que nos impressionam desta ou daquela maneira.
Um quadro pode estar repleto de símbolos e, sempre, existem mais que nós
não notamos sequer. Eles não são facilmente reconhecidos, mas podem estar
disfarçados como objetos de aparência perfeitamente natural. Assim, com
freqüência, existem num quadro muito mais coisas do que apenas aquelas que
atraem nosso olhar.
2.3.2 Principais nomes da pintura simbolista
Em 1889, surgia na pintura um novo movimento chamado sincretismo ou
simbolismo, do qual a figura central era Paul Gauguin.
Para Gauguin, a civilização ocidental estava totalmente desestruturada,
obrigando os homens a uma vida incompleta, dedicada ao ganho material, em
detrimento de suas emoções. Seus seguidores simbolistas, os "nabis", foram muito
mais notáveis na teoria que na prática. Um deles, Maurice Denis fez a declaração
que iria tornar-se a palavra de ordem para os pintores do século XX: "Um quadro-
antes de ser um cavalo de batalha, um nu feminino ou um episódio qualquer- é
essencialmente uma superfície plana coberta de cores aplicadas com certa ordem."
Um bom pintor sabe como compor um quadro,
possui um sentido sutil de harmonias cromáticas ou
um sentido ousado de uma dissonância tonal. [...]
Sua obra pode dar satisfação, agradar, surpreender,
ampliar nossa compreensão de um tema ou
enriquecer nossa percepção de formas.
(WOODFORD, 1983, p.110)
57
Os simbolistas também descobriram alguns artistas mais velhos,
descendentes dos românticos, cuja obra, como a deles, também colocava a visão
interior acima da visão da natureza: Moreau e suas fantasias medievais, Redon e
sua imaginação atormentada, cheia de imagens pessoais e perturbadoras, Vuillard,
o mais talentoso dos nabis.
No final do século XIX, uma preocupação com a decadência, a corrupção e o
mal permeou o clima artístico e literário. Van Gogh e Gauguin mostraram-se
insatisfeitos perante esses males da civilização ocidental e essa insatisfação,
paradoxalmente, provou ser, pelas obras produzidas nesse período, uma fonte de
vigor. Um nome importante, também, nesse cenário foi Toulouse-Lautrec.
Outros nomes se sobressaíram nessa época: Ensor e seu pessimismo
obssessivo face à condição humana; Munch e suas incursões pelas faces do medo
(seu quadro "O Grito" é o exemplo mais famoso); Picasso e seu "período azul", que
consiste de quadros de mendigos, marginais e vítimas da sociedade, refletindo o
isolamento do próprio artista.
2.3.3 A pintura simbolista e O Marinheiro: pontos de diálogo
Tomando como ponto de partida os quatro modos de se ver uma
pintura, elencados por Woodford (1983), visualizemos, inicialmente, o cenário da
peça. Um quarto de um antigo castelo, tendo ao centro um caixão contendo o corpo
de uma donzela, vestida de branco. Nos cantos, quatro tochas. À direita existe uma
única janela, alta e estreita, mostrando o mar, entre dois montes longínquos. Do lado
58
da janela estão três donzelas, velando a morta. A primeira está sentada em frente à
janela; as outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela. É noite e pode-
se perceber "um resto vago de luar".
A finalidade desse quadro (e a imobilidade das personagens nos permite vê-
lo como tal), pode ser levar-nos a perceber a importância da morte, a mais
verdadeira personagem do teatro da vida. A janela, o único acesso ao exterior,
mostra o mar e sua dualidade vida/morte, seu mistério, símbolo do tempo que flui,
inexoravelmente. É noite, há apenas um resto de luar lá fora e, dentro, quatro tochas
iluminam a cena, criando um ambiente tipicamente simbolista. E talvez resida a
finalidade maior do cenário: levar o espectador a perceber exatamente a raiz
simbolista da peça. Se pensarmos que, para os pintores simbolistas, a visão interior
deveria estar acima da observação da natureza, perceberemos o porquê da
pequena visão oferecida pela janela, da fraca iluminação do aposento, da ausência
de gestos e da abundância de idéias. Há, ainda, uma curiosa observação a esse
respeito: Maillol, um pintor simbolista e, depois, escultor (considerado por alguns
críticos como o maior de todos os escultores simbolistas), considerava que uma
estátua
Como se vê, o "quadro" onde se passa a peça pode ter a finalidade de situar
o espectador no contexto simbolista, enfatizando as características marcantes desse
[...] deve, acima de tudo, ser "estática" e estritamente
equilibrada, como uma obra arquitetural; deve
representar um modo de existir liberto de toda e
qualquer pressão das circunstâncias. (JANSON,
2001, p. 929)
59
período através dos objetos de cena, da posição das personagens, das sensações
que todos esses elementos provocam.
Considerando a segunda maneira de se ver um quadro, indagando o que ele
nos diz a respeito da cultura em que foi produzido, O Marinheiro pode nos
mostrar pontos interessantes: a maneira da época de se velar os mortos, a
arquitetura, a decoração, o vestuário. Aqui podemos citar Gauguin e sua crítica à
sociedade industrial, que obrigava os homens a uma vida incompleta, dedicada aos
ganhos materiais, enquanto suas emoções eram esquecidas. As veladoras,
privilegiando a palavra e a emoção, mostram-se discretas e comedidas, perturbadas
apenas com seu caos interior. Redon, Moreau e, mais ainda, Munch, mostram em
suas telas o medo que ronda todo o drama estático de Pessoa.
A terceira maneira de ver uma pintura, ainda segundo Woodford (1983),
consiste em avaliar até que ponto elas são fiéis à realidade. É importante
perceber, aqui, o quanto de irreal, insólito, existe na peça, evidenciando mais ainda
sua essência simbolista. As três jovens, estáticas, imóveis, numa sala escura, tendo
por companhia uma jovem morta e contando um sonho dentro de outro sonho,
cercadas por objetos estranhamente simbólicos, nada têm de real. Vemos essa
característica nos quadros de Ensor, com sua visão pessimista da condição humana
e nos de Picasso, do seu "período azul", ao retratar personagens e cenas que
refletiam seu próprio isolamento.
Finalmente, uma quarta maneira de ver pinturas consiste em analisá-las em
termos de construção, do modo como formas e cores foram usadas para
produzir padrões dentro do quadro. Nesse sentido, podemos perceber que as
cores escuras dominam o cenário. A iluminação, feita pelas tochas dão um tom
60
fantasmagórico ao ambiente, com certeza criando sombras e imagens onduladas e
bruxuleantes. o qualquer menção à vestimenta das veladoras. No entanto,
quanto à morta, a indicação é clara. Ela está "de branco". É interessante notar que o
branco jamais foi uma cor ligada à morte. Mas, aqui, esse dado talvez signifique que
a morte é a única coisa real, clara, verdadeira que existe na vida. No quarto circular,
fechado, englobante, existem quatro tochas, correspondentes às quatro
personagens: as três veladoras e a morta. Essa correspondência continua nas
outras situações: são dois montes vistos da janela, são duas veladoras sentadas
uma de cada lado da mesma janela, existe o mar, uma veladora de costas para a
única janela. Podemos lembrar, aqui, de Vuillard, um importante pintor simbolista,
que misturava, em seus quadros, "superfícies planas e contornos acentuados, o
equilíbrio de efeitos bi e tridimensionais e uma serena magia". (JANSON, 2001, p.
922).
2.4 A Intrusa e O Marinheiro : uma relação intertextual
Existe o que chamamos de intertextualidade quando um texto retoma
passagens de outro, quando eles dialogam entre si. A intertextualidade faz o
percurso inverso ao da leitura. A leitura converte um discurso em texto, relacionando
significantes a um significado. Chamamos de interpretação ao trajeto que parte de
um plano conotativo para um ponto de chegada denotativo.
O mecanismo "estrutural" da intertextualidade refaz o
mesmo trajeto no sentido inverso: ele parte de um texto,
desqualificando-o inicialmente na sua qualidade de algo já
interpretado para requalificá-lo, em conseqüência, como
algo passível de nova interpretação, o que faz com que o
texto se converta em outro discurso a interpretar. Desse
modo, um primeiro texto, produzido por uma primeira
leitura, pode ser relido como o plano de expressão ou
discurso de outro texto. (LOPES, 1978, p. 53)
61
Ainda segundo Lopes (1978), a intertextualidade implica uma retórica e uma
ideologia. Cada leitura, ao afirmar a sensatez de um discurso, realiza uma operação
ideológica e cada escritura, ao transformar o texto lido em novo discurso, realiza
uma operação retórica. "A operação retórica consiste no apagamento da
interpretação proposta para a finalidade de postular a possibilidade de outras
reinterpretações." (LOPES, 1978, p.57). Observemos o quanto de intertextual existe
entre A Intrusa, de Maeterlinck e O Marinheiro, de Pessoa.
A peça A Intrusa, de Maurice Maeterlinck, foi publicada em 1890 e
representada pela primeira vez no ano seguinte. Decididamente simbolista, foi a
inspiração para a criação d' O Marinheiro. Num breve ato, a peça sintetiza toda a
obra de Maeterlinck. O longo serão no castelo, daria paz e alegria à família, se não
fosse a intrusa... O Pai, o Tio, as três moças da casa, não percebem a
aproximação da morte. o Avô, cego, tem poderes para "ver". Só ele pressente a
chegada da Invisível.
Na aproximação que tem sido feita por rios críticos entre O Marinheiro e o
teatro simbolista, sobretudo o de Maeterlinck, e que é bem visível se
tomamos como referência um drama como "Les Aveugles", não foi todadvia
ainda sublinhada precisamente a comunidade de raízes dos dois
dramaturgos no fundo trágico grego. A mesma busca de um teatro sem ação,
sem personagens movendo-se sobre a cena, reduzidas à imobilidade de
onde apenas emergem as palavras, é concebida por Maeterlinck como um
regresso às antigas máscaras da tragédia: "Seria talvez necessário - escreve
- afastar inteiramente o ser vivo da cena. o está dito que não
regressaríamos assim a uma arte dos séculos muito antigos, de que as
máscaras das tragédias gregas conservam talvez os últimos vestígios."
(SEABRA, 1974, p. 31
-
2)
62
Chamado de "O poeta da Morte", Maeterlinck cantou-a insistentemente, pois a
Morte é a única personagem verdadeira deste teatro em que todos representamos, à
força, o nosso papel. Vejamos quanto de A Intrusa existe n' O Marinheiro .
As peças mostram pontos comuns, surpreendentemente coincidentes: em
ambas, o homem é retratado existencialmente impotente, surpreendido pelo destino.
Os protagonistas são criaturas que penas esperam, passivamente, o desenrolar de
seu destino. A Morte domina o palco, talvez numa clara alusão ao fato de ser ela a
única verdade que podemos esperar da vida, essa peça na qual somos atores sem
oportunidade de ensaiar nossas falas e nossos gestos.
A Intrusa apresenta como tema a Morte. N'O Marinheiro, o caixão com o
corpo da donzela é o símbolo de toda a peça. As indicações de cena no inicio das
duas peças, revelam um interessante paralelismo. Assim é que, n' O Marinheiro
temos:
Vejamos, agora, as indicações iniciais d' A Intrusa:
Um quarto que é, sem dúvida, num castelo antigo.
Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se,
sobre uma mesa, um caixão com uma donzela, de
branco. Quatro tochas ao canto. À direita, quase em
frente a quem imagina o quarto, uma única
janela, alta e estreita, dando para onde se
entre dois montes longínquos, um pequeno espaço
de mar.
Do lado da janela velam três donzelas. A primeira
está sentada em frente à janela, de costas contra a
tocha de cima da direita. As outras duas estão
sentadas uma de cada lado da janela.
É noite e como que um resto vago de luar.
(PESSOA, 1986, p. 442)
63
Os pontos comuns, como se vê, são claros. O único objeto estranho a esse
paralelismo é o relógio. Não há, como se viu, relógio n' O Marinheiro, indicando
atemporalidade, indefinição. Na peça de Maeterlinck uma estreita ligação entre a
chegada da morte à casa e o soar das doze badaladas da meia-noite. O tempo e os
sons que o Avô pode, envolvido pela cegueira (física, apenas), identificar face à
presença da Intrusa, são absolutamente fundamentais para o desenrolar da peça.
Existe, ainda, o fato de que, em ambos os textos, os protagonistas não têm
nomes. São, no drama de Pessoa, A PRIMEIRA, SEGUNDA E TERCEIRA
VELADORAS. No de Maeterlinck, são AS TRÊS MOÇAS, O AVÔ, O TIO, O PAI, A
CRIADA. Apenas nas páginas 43 e 44 (1967), o AVÔ chama os outros pelos nomes,
como para se localizar, dando ao leitor/espectador a idéia de que, apesar da
cegueira física, é o único que tem o controle real da situação.
Um outro ponto interessante a ser considerado, é o fato de que, assim como
no texto de Pessoa, no de Maeterlinck são três as moças e, como naquele, neste
elas aparentam uma sintonia, uma harmonia quase perfeita, como se fossem, na
verdade, uma só. uma situação no mínimo curiosa, quando o pai se dirige a uma
das moças, pedindo-lhe que ao quarto verificar se o recém-nascido dorme
sossegado. Ao pedido do pai, a moça responde: "Sim, meu pai". Porém,
curiosamente, a indicação do texto mostrando a ação da jovem é a seguinte: "(As
Sala sombria de um velho castelo. Porta à direita, porta
à esquerda e uma pequena porta, disfarçada, num dos
ângulos. Ao fundo, janelas de vitrais em que domina a
cor verde, e uma porta envidraçada que se abre para
um terraço. Um grande relógio flamengo. Uma lâmpada
acesa. (MAETERLINCK, 1967, p. 17)
64
três jovens levantam-se e, de mãos dadas, penetram no quarto, à direita)". O que
poderia indicar tal gesto? Seria uma alusão à sintonia entre as três personagens ou
algo mais profundo embutido no texto? N' O Marinheiro as três veladoras são
comparadas por alguns estudiosos da obra pessoana aos três principais
heterônimos. Segundo Junqueira (2001), "... cumpre notar que as três veladoras,
protagonistas de O Marinheiro, se insinuam como sombras embrionárias dos três
célebres heterônimos (Caeiro, Reis e Campos)". (p.209). É preciso também citar,
aqui, o fato de que Almada Negreiros criou o figurino para a peça, colocando as três
veladoras em um único vestido: as três cabeças apareceriam, mas os movimentos
seriam tolhidos.
também outros pontos de íntimo contato entre as duas peças. Em ambas,
a força de algo sobrenatural paira sobre os protagonistas, na maioria das vezes
relacionada à luz, aos sons vindos de fora das cenas. N'A Intrusa , o Avô percebe a
agitação da chama da lanterna: "Creio que ela se agita, que se agita demais..."( p.
49 ), ao que retruca uma das moças: "É o vento frio que faz oscilar a chama." ( p. 50
). E o Tio pergunta: "Vento frio, por quê? As janelas estão fechadas." (p. 50). N' O
Marinheiro, a terceira veladora faz o seguinte comentário acerca das chamas das
velas: "Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... Para
onde se inclinam elas?" (p.443).
No final, as duas peças terminam com uma pergunta seguida de uma
afirmativa, que foge um pouco da estrutura da frase e da situação anteriores. "O avô:
Aonde vão - Aonde vão? - Eles me deixaram completamente sozinho!" (p. 56 ) .
"Segunda: Por que é que mo perguntais? Por que eu o disse? Não, não acredito..."
(p. 451).
65
3.O MARINHEIRO: UM EXERCÍCIO INTRATEXTUAL ?
O objetivo maior deste estudo, como já vimos, é estabelecer pontes entre o
drama estático O Marinheiro, de Fernando Pessoa, e muitas de suas obras
poéticas posteriores. Pretendemos destacar alguns trechos do drama estático para,
em seguida, compará-lo a outros, inseridos em sua obra poética.
3.1 Anese
Podemos detectar muitas variações de figuras poéticas dispersas pela obra
pessoana. Existe, nela, uma espécie de "germinação contínua, a partir de cleos
originários que se ramificam e entrelaçam numa rede múltipla e intrincada de
relações mútuas." (SEABRA, 1974, p. 37).
66
A metamorfose das linguagens em que se desdobra a obra de Pessoa
acontece entre os heterônimos e, às vezes, dentro do mesmo heterônimo. Esse
aparente caos esconde, na verdade, uma coerência e um equilíbrio que residem na
originalidade e na especificidade de cada um deles. Encontramos, como a forma
nuclear da poesia de Pessoa, a contradição. Assim, procuraremos encontrar, n'O
Marinheiro, as grandes oposições de significado: ser/não ser, tudo/nada, dentro/fora,
sentir/pensar.
3.1.1 Ser/Não Ser
A identidade do Ser e do o-Ser é o germe central da poesia de Pessoa,
segundo Seabra (1974). N' O Marinheiro temos, logo no início da peça, um exemplo
dessa preocupação com o mistério do Ser:
SEGUNDA - "Não, não falemos disso. De resto, fomos nós alguma cousa?"
Há, como se vê, um questionamento muito mais profundo do que as
palavras deixam transparecer. como que uma aceitação da própria pequenez
frente ao destino e às incertezas da vida. Esse tema é retomado em Caeiro:
Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as cousas,
Perante as cousas que simplesmente existem.
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível! (PESSOA, 1986, p.218)
E Reis assim se pronuncia:
A tua lenha é só o peso que levas
Para onde não tens fogo que te aqueça,
Nem sofre peso aos ombros
As sombras que seremos (PESSOA, 1986, p.259-260)
Campos é ainda mais objetivo: "Que sei eu do que serei, eu que não sei o
que sou?" (PESSOA, 1986, p 363). O tema também aparece em Pessoa "ele
67
mesmo": "Fosse eu apenas, não sei onde ou como, / Uma coisa existente sem
viver..." (PESSOA, 1986, p.173).
Esse último verso é particularmente interessante: retrata bem a antítese
ser/ não-ser, a saudade estranha do que não se foi nunca. Vejamos as falas das
veladoras, em Pessoa (1986), enfatizando o mesmo tema:
SEGUNDA - [...] Fomos nós alguma coisa?(p.441) [...] não tornarei a ser
aquilo que talvez eu nunca fosse... (442) [...] o podemos ser o que queremos
ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado... (p.
445) [...] Quem é que eu estou sendo? (p. 451)
PRIMEIRA - Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o
que fomos?(p.441) Falai, portanto, sem reparardes que existis... Não nos íeis
dizer quem éreis? (p.444) [...] Parece-me deste lago que ele nunca existiu...( p.
445) [...] Se nada existisse, minha irmã? Se tudo fosse , de qualquer modo,
absolutamente coisa nenhuma? (p.449)
TERCEIRA - [...] No passado de gente maravilhosa que nunca existiu... (p.
443) [...] alguma razão para qualquer coisa ser o que é? (p.443) [...] O que
eu era outrora não se lembra de quem sou... Pobre da feliz que eu fui!...
(p.444)
3.1.2 Tudo/ Nada
Conciliados pela linguagem poética, o Tudo e o Nada aparecem num
movimento pendular, ao longo de toda obra heterônima e, mesmo, da ortônima.
O MYTHO é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo. (PESSOA, 1986, p.72)
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada. (PESSOA, 1986, p.186)
68
Mas, segundo Seabra (1974, p.55), "é no heterônimo Álvaro de Campos
que, no entanto, a relação entre Tudo e Nada atinge a sua expressão mais intensa e
poderíamos mesmo dizer, nos vários sentidos da palavra, dramática."
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. (PESSOA, 1986,
p.362)
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. (PESSOA,
1986, p.362)
Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos! (PESSOA, 1986,
p.387)
Vejamos, n' O Marinheiro, alguns trechos que apresentam essas
oposições:
PRIMEIRA - Se tudo fosse, de qualquer modo, absolutamente coisa
nenhuma? (PESSOA, 1986, p.449)
SEGUNDA - Ainda há pouco, quando eu não pensava em nada, estava
pensando no meu passado. (PESSOA, 1986, p. 443)
Percebe-se, latente nos discursos, o Nada e o Tudo, ainda que ocultos,
dissimulados, aparecendo nas relações dialógicas tecidas entre as falas.
3.1.3 Dentro/ Fora
A dicotomia Interioridade/exterioridade é uma das oposições que melhor
exprime a "problematização constante das relações entre o sujeito e o objeto,
diversamente presente em cada heterônimo". (SEABRA, 1974, p. 61). Assim é que
temos, no poeta ortônimo:
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora. (PESSOA, 1986, p.131)
69
E há, ainda do poeta ortônimo, um poema inteiro que mostra essa
interioridade face à exterioridade:
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo
Toma um outro sentido
Em mim o Universo -
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha idéia das coisas.
Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora -
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua -
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora:
Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente. (PESSOA, 1986, p.132-3)
Caeiro mostra, em sua obra, essa relação interior/exterior de maneira muito
clara:
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
70
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza. (PESSOA, 1986, p.219)
Às vezes esse dentro/fora, em Caeiro, é descrito com claras, concretas e
vívidas imagens:
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E fora um grande silêncio como um deus que dorme. (PESSOA, 1986,
p.228)
Vejamos o uso dessas oposições n'O Marinheiro:
PRIMEIRA - Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única
de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... (PESSOA, 1986, p. 442)
SEGUNDA - Esse ar quente é frio por dentro, naquela parte que toca na
alma... (PESSOA, 1986, p. 443)
TERCEIRA - As minhas palavras presentes, mal eu as diga, pertencerão logo
ao passado, ficarão fora de mim, o sei onde, rígidas e fatais...(PESSOA,
1986, p. 444)
Essência e aparência, finalmente, correspondem-
se e identificam-se, do mesmo modo que a
realidade interior e exterior, através d sua
indiferenciação na linguagem poética - isto a que
Pessoa chama a "álgebra do mistério".
Essa álgebra não é outra senão a própria lógica
da poesia, em que a identidade dos contrários
torna com efeito "indiferente"a "designação" dada
pelo poeta à interioridade e à exterioridade, ao
sujeito e ao objeto: não residirá justamente o
"mistério" poético nesta in-diferença, que longe de
eliminar as diferenças as mantém numa mútua
coexistência em que a sua reversibilidade se
manifesta?
(SEABRA, 1974, p.65)
71
Na verdade, o que nos parece é que as oposições dentro/fora são, de
todas, as mais marcantes dentro do drama O Marinheiro. As veladoras estão dentro
de um quarto. fora, o mar visto de uma janela, citada constantemente na obra. A
janela é a única ligação das personagens com o exterior, é a alegoria da liberdade,
da realidade. Há, ainda, o marinheiro que vive apenas dentro de um sonho. A pátria
criada por ele existe, também, dentro da sua imaginação. Dentro do quarto, o
sonho; fora, a realidade. E essa dualidade perpassa todo o drama estático, não
apenas concretamente mas, sobretudo, simbolicamente.
É interessante notar essas oposições como que ocultas nas últimas
indicações de cena d' O Marinheiro :
Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras
quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras. Não muito longe,
por uma estrada, um vago carro geme e chia. (PESSOA, 1986, p.45)
Se inserirmos as indicações escondidas entre as palavras, teríamos:
Um galo canta fora. A luz, como que subitamente, aumenta. Dentro do
quarto, as três veladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para
as outras. fora, não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e
chia (grifo nosso).
Como se vê, o exterior/interior aparece na peça até o último minuto. E
esse contraponto é que situa o real e o sonho, o ser e o não ser, o sentir e o
pensar dentro do drama, tecendo os fios dessa paisagem-matriz que, como
veremos, criará novas e enriquecedoras paisagens dentro da obra pessoana.
A exterioridade tanto pode, com efeito, ser inerente ao
mundo exterior como ao mundo interior do poeta. E
vimos como a apreensão do próprio eu enquanto
radicalmente estranho a si mesmo, enquanto outro,
caracteriza justamente a subjetividade em Pessoa, sendo
uma das raízes da heteronímia.(SEABRA, 1974, p.61)
72
3.1.4 Sentir/Pensar
Pensar e sentir, sentimentos envolvidos pela razão e pela emoção revelam
uma das faces mais profundas da experiência poética de Pessoa. Os poemas de
Caeiro mostram isso muito bem:
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
( Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... [...]
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar... (PESSOA, 1986, p. 204-5)
Há metafísica bastante em não pensar em nada. (PESSOA, 1986, p. 206)
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos.
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos o os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido. (PESSOA, 1986, p. 212)
Álvaro de Campos exprime muito bem essa dualidade sentir/pensar no
poema "Passagem das horas":
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num momento difuso, profuso, completo, longínquo. (PESSOA, 1986, p.
344)
73
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo. (PESSOA, 1986, p. 345)
E essa dualidade se repete em outros poemas:
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente [...]
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas... (PESSOA, 1986, p. 406)
Vejamos o sentir/pensar de Pessoa n' O Marinheiro:
SEGUNDA - Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelos
cabelos - é o gesto com que falam das sereias... [...] Ainda pouco, quando
eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado. (PESSOA, 1986,
p. 443)
PRIMEIRA - Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em nós!
(PESSOA, 1986, p. 444)
SEGUNDA - Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo
muda.(PESSOA, 1986, p. 448)
PRIMEIRA - Não penseis, não olheis para o que pensais... [...] O meu pavor
cresceu mas eu não sei senti-lo...Já não sei em que parte da alma é que se
sente...(PESSOA, 1986, p.450)
SEGUNDA - Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma coisa que
se sente... [...] Oh, que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as
sensações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo em
nós pede o silêncio... [...] Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o
braço e nos interrompe sempre que vamos a sentir? (PESSOA, 1986, p.451)
PRIMEIRA - Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no
lodo morno do que suponho que sinto. (PESSOA, 1986, p.451)
É interessante registrar aqui o que diz Tabucchi (1984, p. 96), sobre O
Marinheiro e suas possíveis relações com a obra poética posterior de Pessoa:
O Marinheiro, embora com seu sabor
simbolista, aparentemente devedor de
Maeterlinck, constitui a proto-história daquele
interesse pelo oculto que encaminhará, mais
tarde, Pessoa para a teosofia e que
constituirá a espinha dorsal dos grandes
poemas herméticos e da Mensagem. (grifo
nosso)
74
3.2 As pessoas de Pessoa
Encontramos muitos pontos de diálogo entre O Marinheiro e a obra
heterônima e ortônima de Pessoa. temas que se repetem, alguns
ostensivamente, outros embutidos na pretensa "falsidade" do poeta. poemas
que, imediatamente remetem ao texto do drama estático.
Um desses poemas chamou-nos a atenção pela alusão às situações e às
personagens d' O Marinheiro : o mistério, o mar, a Pátria anterior e perdida.
Meu pensamento é um rio subterrâneo.
Para que terras vai e donde vem?
Não sei... na noite em que meu ser o tem
Emerge dele um ruído subitâneo
De origens no Mistério extraviadas
De eu compreendê-las... misteriosas fontes
Habitando a distância de ermos montes
Onde os momentos são a Deus chegados...
De vez em quando luze em minha mágoa,
Como um farol num mar desconhecido,
Um movimento de correr, perdido
Em mim, um pálido soluço de água...
E eu relembro de tempos mais antigos
Que a minha consciência da ilusão
Águas divinas percorrendo o chão
De verdores uníssonos e amigos,
E a idéia de uma Pátria anterior
À forma consciente do meu ser
Dói-me no que desejo, e vem bater
Como uma onda de encontro à minha dor.
Escuto-o... Ao longe, no meu vago tato
Da minha alma, perdido som incerto,
Como um eterno rio indescoberto,
Mais que a idéia de rio certo e abstrato...
E p'ra onde é que ele vai, que se extravia
Do meu ouvi-lo? A que cavernas desce?
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Em que frios de Assombro é que arrefece?
De que névoas noturnas se anuvia?
Não sei... Eu perco-o... E outra vez regressa
A luz e a cor do mundo claro e atual,
E na interior distância do meu Real
Como se a alma acabasse, o rio cessa... (PESSOA, 1986,p.122-3)
Como se vê, algumas alusões são claras, outras ocultas no texto, mas
facilmente pressentidas. Nas terceira, quarta e quinta estrofes, a dor de um homem
que perdeu sua Pátria, sua identidade, e as procura desesperadamente, é clara. A
"Pátria anterior" não será a que é descrita pela Segunda veladora, no início da
história que conta às irmãs?
Essa fala da Segunda veladora nos fornece material para uma outra reflexão,
talvez até mais instigante: esse criar de uma nova pátria, uma nova vida,
completamente diferente da anterior, uma nova identidade, não poderia sugerir a
latente criação dos heterônimos? "Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro
erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra
de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que tantas vezes
[...] Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro
vivia ali... como ele não tinha meio de voltar à pátria, e
cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar
uma pátria que nunca tivesse tido; pôs-se a fazer ter
sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país
com outras espécies de paisagem, e outra gente...[...]
Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e
ele nunca deixava de sonhar...[...] Um dia [...] o
marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar
a sua pátria verdadeira...mas viu que não se lembrava
de nada, que ela não existia para ele. [...] E ele viu
que não podia ser que outra vida tivesse existido...
(PESSOA, 1986, p. 445-7)
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havia percorrido"(1986, p. 446). Mais adiante, a fala alude a um distanciamento, uma
divisão clara do ser: "Quando falo demais começo a separar-me de mim e a ouvir-
me falar" (p.446). Na mesma página, mais adiante, uma alusão que nos parece
claramente premonitória: "São três a escutar...Três não... Não sei... Não sei
quantas..."(grifo nosso).
Num outro trecho, à pergunta da primeira veladora - ..."O mar de outras terras
é belo?" - responde a Segunda: "Só o mar de outras terras é que é belo. Aquele que
nós vemos dá-nos sempre saudade daquele que o veremos nunca..."( p.442). É
oportuna, aqui, a comparação com o seguinte poema:
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
[...]
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
[...]
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele. (PESSOA, 1986, p.215-6)
O mar, o elemento líquido que atravessa toda a obra pessoana, mostra na
peça o único elo das personagens com o mundo fora. É no mar que está o barco
apenas pressentido mas presente no sonho: dele se perdeu o marinheiro e no mar,
portanto, está sua fatalidade e sua libertação.
Num outro trecho, a primeira veladora pergunta: "O que é qualquer cousa?
Como é que ela passa?" (p. 442). E a terceira, no trecho seguinte, retoma o
questionamento: " alguma razão para qualquer coisa ser o que é?" (p. 443).
Comparemos o tema das questões ao seguinte poema:
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O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
[...]
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas. (PESSOA, 1986, p.223)
Este poema nos parece uma resposta clara, um desdobrar da questão
proposta pelas veladoras, no drama estático. Deve-se observar, sobretudo, a última
estrofe. Ela parece representar uma resposta direta à pergunta "Há alguma razão
para qualquer coisa ser o que é?".
Observemos, agora, estes trechos. A Segunda veladora, num dado momento,
pergunta à primeira: "Éreis feliz, minha irmã?". Ao que a outra responde: "Começo
neste momento a tê-lo sido outrora." (p.444). Comparemo-lo ao seguinte poema:
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora. (grifo nosso) (PESSOA, p.140-141)
Há, como se aqui, não uma alusão, mas uma citação, relativa ao texto d'
O Marinheiro. Mas poderia surgir a seguinte dúvida: o poema não pertence a
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nenhum dos heterônimos, mas ao Pessoa ortônimo. E não estamos tratando aqui da
obra pessoana heterônima, datada de 1913 em diante? E, então, o mais
surpreendente: o poema em questão é, justamente, datado de 1913, ano da criação
d'O Marinheiro !
Num outro momento, a primeira veladora comenta sobre os montes, que ela
tanto ama: "... Sei que de se vêem, ao longe, montes... Eu fui feliz para além dos
montes, outrora... [...] Por mim, amo os montes... Do lado de de todos os montes
é que a vida é sempre feia..." Comparemos esses trechos ao poema seguinte:
Montes, e a paz que há neles, pois são longe...
Paisagens, isto é, ninguém...
Tenho a alma feita para ser de um monge
Mas não me sinto bem.
Se eu fosse outro, fora outro. Assim
Aceito o que me dão,
Como quem espreita para um jardim
Onde os outros estão.
Quem outros? Não sei. Há no sossego incerto
Uma paz que não há,
E eu fico sem ler o livro aberto
Que nunca mo dirá...
O poema citado é de Pessoa ortônimo, mas datado de 1934, portanto vinte e
um anos depois da criação de O Marinheiro. Na primeira estrofe, é clara a
segurança que advém da distância, do não-ver, da dissimulação. Os montes
transmitem paz, pois estão longe... A segunda estrofe insinua a pluralidade do ser, o
olhar sem ser visto, que implica descompromentimento, aceitação. A terceira reforça
a segunda, quando o poeta se questiona sobre essa pluralidade, esse
distanciamento consciente.
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Podemos citar, agora, um poema datado de 1914, de Alberto Caeiro. Ele
parece fazer um contraponto com o seguinte trecho, falado pela segunda veladora:
..."Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda" (p.448).
Creio no mundo como num malmequer,
porque o vejo. Mas não penso nele
porque pensar é não compreender...
[...]
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar... (PESSOA, 1986, p. 205)
É de 1916 o poema de Álvaro de Campos, "Passagem das horas". Vamos
compará-lo à fala da Terceira Veladora: "... Quando alguém canta, eu não posso
estar comigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o meu passado
torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago comigo e que não vivi nunca."
(p.444).
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero. (PESSOA, 1986, p. 341)
também, n' O Marinheiro, várias frases, que em momentos diferentes do
texto, curiosamente repetem a mesma idéia: "...Bem sei que não valeu a pena...[...]
Não, minha irmã, nada vale a pena... [...] Não vale a pena estar triste de outra
maneira..." (Segunda Veladora, p. 448-449). Não seriam essas frases o contracanto
da frase famosa de "Mar Portuguez": ..."Tudo vale a pena / Se a alma o é
pequena"( PESSOA, 1986, p. 82) ?
Outro ponto interessante d'O Marinheiro é a janela que, na indicação do
cenário, como se viu, é a única ligação das personagens com o mundo exterior.: "À
direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e
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estreita, dando para onde se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno
espaço de mar"( p. 441). Na obra de Alberto Caeiro um poema datado de 1913,
que surpreende pelo paralelismo subjetivo, se comparado ao trecho citado:
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. (PESSOA, 1986, p. 231)
Como no poema, n O Marinheiro uma janela e todo o mundo fora. E há,
também, um sonho, que existe apenas dentro do aposento fechado. Mas que
termina quando a luz do dia invade o quarto, trazendo a realidade.
O poema seguinte, datado de 1914, parece uma das falas das veladoras, ao
olharem o mar através da janela, vislumbrando um navio, ao longe: PRIMEIRA -
Vejo pela janela um navio ao longe... (PESSOA, 1986, p. 445).
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica. (PESSOA,1986, p.143)
A imagem da janela, tão claramente indicando o limite entre o sonho e a
realidade, entre o dentro e o fora, aparece, também nos dois últimos versos de um
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poema do poeta ortônimo: "Além da cortina é o lar / Além da janela o sonho."
(PESSOA, 1986, p.154).
Quase podemos ouvir o marinheiro perdido, falando sobre sua pátria sonhada
entre palmeiras de uma ilha perdida, neste poema:
Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.
Talvez palmares inexistentes
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez. (PESSOA, 1986, p.167)
A dualidade, explícita no drama estático, aparece entre a vida sonhada e a
vivida, tanto das veladoras quanto do marinheiro, debruçando-se a na vida do
leitor e na sua noção de realidade. O que é sonho? O que é real? O marinheiro está
dentro do sonho da veladora ou as veladoras estarão no sonho dele? Qual o limite
entre a vida vivida e a sonhada? Observemos este poema:
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual, porém, é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar. (PESSOA, 1986, p.172-3)
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No trecho em que a PRIMEIRA veladora pede à SEGUNDA: Falai-nos muito
mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum, é oportuno
lembrar dois versos de um poema, citado, de Caeiro: "Porque o único sentido
oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto nenhum..." (PESSOA, 1986,
p.223)
À fala da PRIMEIRA veladora: não sei em que parte da alma é que se
sente... Puseram ao meu sentimento do corpo uma mortalha de chumbo...(PESSOA,
1986, p. 450), pode corresponder o seguinte trecho de um poema de Caeiro: "Nem
sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. /O meu pensamento muito
devagar atravessa o rio a nado / Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram
usar." (PESSOA, 1986, p. 226).
Observemos estas falas contidas n' O Marinheiro:
SEGUNDA - o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos
dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...[...] Nesse dia vi
ao longe, como uma coisa que eu pensasse ver, a passagem vaga de uma
vela...[...] Nenhuma das velas dos navios que saem daqui de um porto se
parece com aquela, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...
(PESSOA, 1986, p.445)
Comparemo-las, agora, a este poema:
Navio que partes para longe,
Por que é que, ao contrário dos outros,
Não fico, depois de desapareceres, com saudade de ti?
Porque quando te não vejo, deixaste de existir.
se se tem saudades do que não existe, sinto-a em relação a cousa nenhuma;
Não é do navio, é de nós, que sentimos saudade. (PESSOA, 1986, p. 243)
Mais uma vez, o mar significando a vida que flui, sem complacência, e o
navio, aqui, representando o ser, o poeta, o homem que se sabe e se a partir
do que é concreto. Assim, dentro de si mesmo, na sua essência, o poeta não existe.
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Neste poema de Ricardo Reis, sentimos claramente como que um monólogo
do marinheiro, que se perdeu em meio ao sonho e a quem nada mais resta:
Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes. (PESSOA, 1986, p.283)
E, numa prova irrefutável de que existem paralelos entre obras e
dentro da mesma obra, o poema seguinte é uma paráfrase do poema anterior.
Também de Reis, do mesmo ano, apenas escrito dois meses depois:
Não sei de quem recordo meu passado
Que outrem fui quando o fui, nem me conheço
Como sentindo com minha alma aquela
Alma que a sentir lembro.
De dia a outro nos desamparamos
Nada de verdadeiro a nós nos une -
Somos quem somos, e quem fomos foi
Coisa vista por dentro. (PESSOA, 1986, p.284)
A alusão aos heterônimos nos parece clara dentro do drama estático:
SEGUNDA - [...] À medida que o vou contando é a mim também que o
conto... São três a escutar...(De repente, olhando para o caixão e
estremecendo.) Três não... Não sei... Não sei quantas...
TERCEIRA - [...] Contáveis e eu tanto me distraía que ouvia o sentido das
vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa
voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas
que falam e andam.
SEGUNDA - São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus
talvez saiba porquê... (PESSOA, 1986, p. 450)
Neste poema de Reis, o tema parece ter sido retomado:
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Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se senta ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo. (PESSOA, 1986, p.291)
Mas nada nos parece mais recorrente que as imagens do marinheiro, do mar,
da pátria perdida. O "Cais Anterior", com suas chegadas e partidas, é esse cais
misterioso, de onde o poeta se evade para todas as viagens marítimas, "que o a
imagem duma circularidade transcendente, fora do Espaço e do Tempo". (SEABRA,
1974, p.132).
Observemos os versos da "Ode Marítima", de Álvaro de Campos:
Ah, todo cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei por quê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim.
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma grande cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
[...]
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Ah, o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino
[...]
Uma saudade a qualquer coisa,
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? A que navio? A que cais?
[...]
E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
[...]
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios. (PESSOA, 1986,
p.315-9)
É de Campos, também, o poema que cita um marinheiro "de sonho":
As naus seguiram
Seguiram viagem não sei em que dia escondido
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho... (PESSOA,
1986, p.354)
A despersonalização sofrida pelo marinheiro do drama parece retomada neste
poema datado de 1932:
Por que esqueci quem fui quando criança?
Por que deslembra quem então era eu?
Por que não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver? (PESSOA, 1986, p.561)
É do poeta ortônimo um poema que nos parece duplamente interessante: fala
de alguém que se perdeu, exterior e interiormente e foi escrito em 24 de outubro de
1913. O Marinheiro, como se sabe, foi escrito num único dia: 12 de outubro de 1913.
Estes versos, portanto, foram escritos doze dias após a criação do drama estático:
Meus gestos não sou eu.
Como o céu não é nada,
O que em mim não é meu
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Não passa pela estrada.
O som do vento dorme
No dia sem razão.
O meu tédio é enorme.
Todo eu sou vácuo e vão.
Se ao menos uma vaga
Lembrança me viesse
De melhor céu ou plaga
Que esta vida! Mas esse
Pensamento pensado
Como fim de pensar
Dorme no meu agrado
Como um alga no mar.
E só no dia estranho
Ao que sinto e que sou
Passa quando eu não tenho,
'Stá tudo onde eu não estou.
Não sou eu, não conheço,
Não possuo nem passo.
Minha vida adormeço
Não sei em que regaço. (PESSOA, 1986, p.677)
Dispersos pela obra de Fernando Pessoa, os temas contidos n' O
Marinheiro são facilmente identificáveis, talvez por retratarem um ser perdido no
sonho de se reencontrar e na esperança de se conhecer o bastante para jamais se
perder novamente. No drama estático, percebemos o Pessoa-outros (as veladoras),
o Pessoa-ele mesmo (a donzela morta), o Pessoa sem um porto a que chegar, sem
referências ou passado a relembrar (o marinheiro). Mas um poema que, de modo
peculiar nos remete à ultima fala da peça. Ele poderia ser a resposta da SEGUNDA
à fala da TERCEIRA:
Sonhei. Disperto. Um tédio doloroso
De ter sonhado, ou então de dispertar,
Me ocupa o espírito indeciso e ocioso.
Sou como o movimento de alto mar,
Que parece existir sem avançar.
Não me lembro qual foi o sonho ido,
Nem se portanto a sua ausência dói.
Grandes e vagas coisas hei dormido
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Sou como o alto mar quando o Sol foi:
Uma novela imensa sem herói.
Nem mesmo sei se o sonho deixa mágoas.
Que sei eu do que sou ou quero ter?
Sou como o alto mar da noite: as águas
No mesmo movimento a ter que ser,
Um som, um brilho escuro, arrefecer... (PESSOA, 1986, p. 688)
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final deste estudo, em que procuramos tecer algumas considerações a
respeito do drama estático O Marinheiro, de Fernando Pessoa, face à sua obra
88
poética posterior, podemos perceber que, realmente, muitos temas contidos
naquele, repetem-se nesta com uma clareza por vezes surpreendente. O que nos
parece é que Pessoa parte sempre de verdades aparentemente inquestionáveis,
mas que na verdade não o são, porque parecem resultar de uma reflexão séria e
contundente em torno de tudo o que é motivo de seus poemas; além disso, uma
profunda dualidade dialética, presente em toda a sua obra, destrói impiedosamente
quaisquer resquícios do que chamamos comumente de Verdade.
Talvez esse ir e vir seja uma pista, um sinal. Ele afirma, na voz de Álvaro de
Campos: "Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, /
Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me." Por que não multiplicar-se, buscando
dentro da própria obra uma obra nova? Afinal, era preciso ser todos os que
existiram, aprender a sentir como eles, ser "uma série de contas-entes ligadas por
um fio-memória", num incontrolável desdobramento interior para, somando várias
visões e várias verdades, ter uma imagem aproximada do Universo como um todo.
O Marinheiro talvez contenha um desconhecido heterônimo que, perdido em
uma "ilha interior", perdeu sua identidade, seu lugar, seus conceitos e desapareceu
para, como uma semente, fazer nascer outros a partir da sua própria experiência. E,
um dia, voltou à ilha misteriosa, colhendo as antigas sensações para as reconduzir e
ordenar partindo do nada, da estaca zero.
Presente em toda a obra pessoana, a água é um sinal do tempo que flui,
inexoravelmente. O marinheiro vive junto ao mar, e é também uma figura marcante
dentro da obra de Pessoa, assim como a pátria, perdida, sonhada, jamais
reconquistada. A ilha talvez seja, como afirmamos, seu eu-interior, a que ele
chega, perdido. E, para não se perder de vez, finge tão completamente, que chega a
fingir uma pátria que, na verdade, perdeu. As três veladoras são as vozes dessa
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história. Elas dão vida ao marinheiro, cada uma a seu modo. Através delas ele tem,
também, voz e vez. A alusão aos heterônimos nos parece clara. Contudo, na vida
real, Pessoa é o criador, eles as criaturas. N' O Marinheiro, eles são os criadores,
dando vida a um sonho dentro de outro sonho; e por serem alter-ego do poeta, cada
um vê o mundo de um ângulo específico. Assim é que as três veladoras são
profundamente dramáticas, são máscaras, atrás das quais um Pessoa se esconde
para se revelar e se revela para despistar. Não seria esse o supremo requinte da
mistificação?
O que nos parece , é que muito de Caeiro existe na PRIMEIRA VELADORA:
ela faz alusão à natureza, revelando-se extremamente subjetiva em suas
considerações:
...Eu fui feliz para além dos montes..[...] O que é qualquer cousa? Como é que
ela passa? [...] Colhia flores todo dia e antes de adormecer pedia que não mas
tirassem... [...] Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em
nós!...[...] O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas
sonhadas... [...] Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é o verdadeiro que
não tem sentido nenhum...
Como Caeiro, suas falas concentram-se no sentir, no uso de uma linguagem
direta e natural, que combina prosa com poesia.
A SEGUNDA VELADORA nos parece ter uma forma humanística de ver o
mundo, prenunciando o culto às entidades pagãs. Seria ela a semente de Ricardo
Reis? "Só o mar das outras terras é que é belo... [...] Eu devia agora sentir mãos
impossíveis passarem-me pelos cabelos - é o gesto com que falam das sereias... [...]
Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém... [...] Sinto-me desejosa de
ouvir músicas bárbaras que devem estar tocando em palácios de outros
90
continentes...". Se a PRIMEIRA privilegia o sentir, esta mostra falas mais bem
elaboradas no sentido do raciocínio, do equilíbrio, do pensar.
O espírito inconformado, que extrai do desespero a própria razão de ser,
próprio de Álvaro de Campos, encontra eco nas falas da TERCEIRA VELADORA:
O horizonte é negro... [...] Por que não haverá relógio neste quarto? [...]
alguma razão para qualquer coisa ser o que é? [...] As minhas palavras
presentes, mal eu as diga, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim,
rígidas e fatais...[...] Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma
razão para recordar..[...] ..eu choro uma vida morta que trago comigo e que não
vivi nunca...[...] Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso
sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha? [...] É dia já...Vai acabar
tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que vós sois feliz, porque acreditais
no sonho...
Assim como Campos está situado entre Caeiro e Reis, a TERCEIRA situa-se
claramente entre a PRIMEIRA e a SEGUNDA, mostrando ora o sentir de uma nela
levado ao extremo ora a artificialidade da outra...
Como citamos, o Pessoa ele-mesmo, voltado profundamente para o
misticismo e a simbologia, pode estar realmente representado pela donzela morta.
Morte questionada por uma das veladoras: "Falai mais baixo. Ela escuta-nos,
talvez..." (PESSOA, 1986, p.449). Na verdade, essa morte pode ser o símbolo da
semente, que morre para gerar outras vidas.
Na verdade, a obra de Pessoa é um caminho de infinitas paisagens, não um
ponto de chegada. É uma viagem interminável, não o porto. Não acalma, não
aquece o coração ou a consciência: é um grito, é um gesto de rebeldia ímpar. Como
podemos chegar a conclusões diante de uma obra assim? Segundo Tabucchi (1984,
p.19),
Pessoa é uma múltipla, gigantesca má consciência:
a minha, a nossa, a vossa, a de todos os homens de
boa vontade, qualquer que seja essa boa vontade.
Pessoa é um grito de dor e um balido, um canto
altíssimo e um esgar, uma unha que arranha o
quadro onde um bom professor queria traçar a
tranquilizante demonstração do seu teorema.
91
Por ora, fica a impressão de uma obra entretecida pela emoção e pela
angústia de sabê-la fugaz, caso não se possa transmiti-la. E nesse jogo entre ser e
não-ser, está a base de toda a obra pessoana. A obra de um homem que se perdeu
e ganhou-se, entre as teias da razão.
A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada,
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte. (PESSOA, 1986, p. 556)
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