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LUIS FERNANDO ROCHA
ATAQUE SEXUAL INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO:
DA REVELAÇÃO À RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL DO AGRESSOR
Assis
2006
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LUIS FERNANDO ROCHA
ATAQUE SEXUAL INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO:
DA REVELAÇÃO À RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL DO AGRESSOR
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – UNESP para a obtenção do título
de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento:
Psicologia e Sociedade)
Orientador: Professor Dr. José Luiz Guimarães.
Assis
2006
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LUIS FERNANDO ROCHA
ATAQUE SEXUAL INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO:
DA REVELAÇÃO À RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL DO AGRESSOR
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – UNESP para a obtenção do título de
Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento:
Psicologia e Sociedade)
Data da Aprovação: 04 /dezembro/2006
Presidente da Banca: Professor Dr. JOSÉ LUIZ GUIMARÃES – UNESP/ASSIS
MEMBROS:
DR. LUIS ANTONIO FRANCISCO DE SOUZA – UNESP/MARÍLIA
DR. OSVALDO PEREGRINA RODRIGUES – UNIP/SÃO PAULO
4
Em ti, SENHOR, me refugio; não seja eu jamais
envergonhado; livra-me por tua justiça.
Inclina-me os ouvidos, livra-me depressa; sê o meu
castelo forte, cidadela fortíssima que me salve.
Porque tu és a minha rocha e a minha fortaleza;
Por causa do teu nome tu me conduzirás e me guiarás...
(SALMO 31)
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, onipotente, onipresente e onisciente, que me deu a graça divina da vida e o dom
maravilhoso de viver. A Deus, que me concede tudo que peço, muito mais do que preciso,
em especial seu Amor incondicional.
Gostaria de agradecer ao meu orientador Professor Doutor José Luiz Guimarães, por sua
atenção e gentileza no decorrer da pesquisa; acreditando no meu trabalho e acolhendo
minha proposta inicial; contribuindo para o meu crescimento espiritual; e , por fim, por
suportar minhas dúvidas e inseguranças, incentivando-me a prosseguir na certeza que a
este momento chegaria.
Sou grato à Professora Doutora Maria de Fátima Araújo, pela idéia inicial, pela
colaboração e pelo incentivo constante.
Agradeço aos professores do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp de Assis, e
em especial aos Doutores Elizabeth Gelli Yaslle, Elizabeth Piemonte Constantino, Maria
Luíza Louro de Castro Valente, Marlene Castro Waideman, Nelson Pedro Silva, Olga
Ceciliato Mattioli, que compartilharam diretamente seus ricos conhecimentos através das
disciplinas ministradas, dividindo conosco suas vastas experiências científicas e por nos
mostrar o quanto ainda temos a aprender!
Ao Professor Doutor Pedro Henrique Godinho pelos prazerosos momentos de discussão e
por ter me proporcionado o convívio com ricos conhecimentos em várias etapas da
pesquisa.
6
Também agradeço aos funcionários do Departamento de Pós-Graduação da Unesp, em
especial à funcionária Miriam, pela deferência e atenção no atendimento.
Sou muito grato ao colega André por participar ativamente da coleta, da análise dos dados
e das discussões instigantes dos temas relacionados à pesquisa, tornando meu trabalho
menos árduo, e, ainda, por seu companheirismo.
Ao Professor Doutor Carlos Eduardo pelo auxílio na área de lingüística e na revisão das
regras da ABNT, imprescindível para o término deste trabalho.
Aos colegas do NEVIRG (Núcleo de Estudo Violência e relações de Gênero) da Unesp de
Assis, pelas inestimáveis contribuições.
Aos colegas da “turma” de Mestrado em Psicologia do Segundo Semestre de 2004, da
Unesp de Assis, pela convivência, pela troca de conhecimentos e pela riqueza nos debates
acerca das matérias propostas.
A todos aqueles que direta ou indiretamente tornaram a elaboração desta dissertação
possível.
Apesar de toda essa colaboração, este trabalho não teria sido concretizado se não fosse a
presença constante de minha família, incentivando-me e colaborando nos momentos mais
difíceis. A eles dedico este trabalho.
7
Em especial aos meus pais Norival e Matilde pelo estímulo, pelo amor e pelo carinho,
dedicados em todos os dias de minha vida, sem os quais os obstáculos da vida se tornariam
mais difíceis e árduos.
Sou grato à minha filha Polyanna e à minha noiva Patrícia, pela compreensão e paciência
com que suportaram minhas noites mal dormidas, as privações e as ausências em alguns
momentos desta fase de nossas vidas, simplesmente por existirem e sorrirem para mim.
Finalmente, ao meu irmão Ricardo, por, muitas vezes, ter suportado meu mau humor e
minha intolerância, sem ao menos saber o motivo e, ainda, pelo incentivo.
8
ROCHA, Luis Fernando. Ataque Sexual Infanto-Juvenil Doméstico: da revelação à
responsabilização criminal do agressor. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências
e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista – Unesp, 2006, p. 220.
RESUMO
O abuso sexual infanto-juvenil constitui-se, há muito tempo, em um fenômeno complexo
que ultrapassa os limites dos diversos campos do saber, apresentando-se de forma
indiscriminada, em nossa sociedade, independentemente de classe social, etnia e gênero.
Por definição, pode ser considerada como toda e qualquer conduta ou manipulação sexual
entre adultos e crianças/adolescentes, com a finalidade precípua de estimular ou utilizar
sexualmente estes últimos, para obtenção de prazer sexual, sem a necessidade de que haja
expedientes violentos, ou força física, por parte do agressor. A ausência/insuficiência de
investigações científicas abordando o fenômeno da violência sexual infanto-juvenil
doméstica/intrafamiliar, notadamente com enfoque direcionado para a revelação, bem
como a experiência profissional que acumulamos, atuando nas áreas criminal, civil e da
infância e juventude compõem, entre outras, o quadro de justificativas para esta pesquisa.
O objetivo foi caracterizar uma tipologia do fluxo de procedimentos e dos atos normativos
(inquéritos policiais e/ou processos judiciais) adotados a partir da revelação do fato, até a
finalização do processo de responsabilização do acusado/agressor, com vista a identificar
que aspectos (supervalorizações, subjetivações, lacunas, omissões, etc., deliberados, ou
não) podem ter sido decisivos para o desfecho dos casos.A pesquisa se deu numa cidade de
aproximadamente trinta e cinco mil habitantes, do interior do Estado de São Paulo,
abrangendo casos ocorridos no período compreendido entre os anos de 1992 e 2003,
utilizando-se como fonte inquéritos policiais e processos arquivados no Fórum da
Comarca. Dados os objetivos propostos e as características do objeto de estudo, optou-se
pelo método quali-quantitativo, que permitiu a flexibilidade necessária para maior
aprofundamento e detalhamento dos dados coligidos, tendo como fonte de dados os
documentos e, como instrumento de análise, a Análise de Conteúdo. Dentre outros, os
resultados da pesquisa demonstram que o número de padrastos agressores superou o
número de pais, não corroborando a maioria das pesquisas existentes. Ainda, quanto à
responsabilização do agressor, os dados demonstram que um dos fatores que podem ter
sido essenciais para a decisão é a falta de capacitação dos profissionais envolvidos, bem
como a ausência de articulação — falta de atendimento em rede —, dos fluxos de
responsabilização, de atendimento e de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Palavras-chave: Abuso Sexual. Crianças. Adolescentes. Família. Revelação.
9
ROCHA, Luis Fernando. Domestic child juvenile sexual assault: from the act of the
relation to the conviction of the perpetrator. Dissertacion of Master´s degree. University
of Sciences and Letters of Assis – Unesp, 2006, p. 220.
ABSTRACT
Child and juvenile sexual abuse has been for ages a complex phenomenon that trespasses
the boundaries of our comprehension, occurring indiscriminately in our society regardless
economic status, culture, race and gender. By definition, it can be considered any kind of
behavior or sexual manipulation between adults and children / adolescents with the aim of
stimulating and sexually using the latter, to obtain sexual satisfaction, without the use of
violence or physical strength on the part of the perpetrator. The lack of scientific research
covering the subject of child and juvenile sexual abuse within the family environment,
focusing at the “revelation”, as well as the professional experience acquired for the past
years working in the criminal and civil areas, child and juvenile areas, among many other
facts, justify this research. The aim of this study was to highlight a chain of procedures and
the normative rulings (police investigation and/or court suits) adopted from the moment of
the “revelation” of the fact itself until the finalization of the process of making the
perpetrator responsible for his acts, aiming to identify what aspects ( overvaluations,
subjectivities, blanks, omissions , either intentional or not) must have been decisive to
the outcome of the cases. The research was conducted in a city of approximately thirty five
thousand inhabitants, in the interior of the state of São Paulo, covering cases that
happened in the period between the years of 1992 and 2003, using as source police
investigation files and law suits filed at the Justice Hall. Due to the proposed objectives of
the study, the “quali-quantitative” method was chosen to allow the necessary flexibility to
study accurately the collected data from the documents and as an analysis tool the Analysis
of the Contents. Among others, the results of the research show that the number of
perpetrators who are stepfathers, is higher than the number of fathers , not corroborating
what is presented in most of the researches that already exist. Moreover, regarding the fact
of making the perpetrator responsible for his act, the data show that one of the factors that
must have been essential for the decision is the lack of skilled professionals involved, as
well as a lack of articulation - lack of a net assistance –the making responsible flows , the
lack of assistance and the defense of the rights of the children and adolescents.
Key words - sexual abuse , children , adolescents ,family, revelation.
10
LISTA DE TABELAS E FIGURAS
TABELA 1: Casos de violência sexual contra crianças e adolescentes
1
113
TABELA 2: Vínculo de parentesco entre o agressor e a vítima 115
TABELA 3: Idade das vítimas 117
TABELA 4: Relação entre a vítima e a pessoa a quem ocorreu a revelação 121
TABELA 5: Notificante/Revelador Público 121
TABELA 6: Local da revelação pública 126
TABELA 7: Natureza da revelação 130
TABELA 8: Espécie de violência sexual sofrida 132
FIGURA 1: Desfecho dos casos pesquisados (1992-2003) 136
1
Art. 2º - ECA – “Considera-se criança, para o efeito desta Lei, a pessoa com até doze anos de idade
incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.
11
SUMÁRIO
RESUMO
x
ABSTRACT
xx
LISTA DE TABELAS E FIGURAS
xxx
I. Introdução
14
a. Justificativa
18
b. Os objetivos da pesquisa
18
c. Estrutura do Trabalho
19
CAPITULO I
DISCORRENDO SOBRE ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS
21
1.1. Considerações sobre a expressão abuso sexual
22
1.2. O pacto do silêncio na família 27
1.2.1. Considerações gerais sobre a família 27
1.2.2. A organização e a evolução da família no Brasil 32
1.2.3. Violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes 39
1.3. A síndrome do segredo
52
1.4. A revelação
58
1.4.1. Os caminhos da revelação 63
1.4.2. Fluxo de procedimentos adotados a partir da revelação 66
1.5. Interdito sexual das relações incestuosas: normatização
69
1.5.1. Código Civil 73
1.5.2. Código Penal 76
1.5.3. Estatuto da Criança e do Adolescente 85
12
CAPITULO II
O DESENHO DA PESQUISA
88
2.1. Metodologia 89
2.1.1. A produção do conhecimento 89
2.1.2 A escolha da metodologia 93
2.1.3. A utilização de documentos como fonte de dados 97
2.1.4. A escolha da técnica para análise dos dados 100
2.1.5. A amostra e a seleção dos casos pesquisados 103
2.1.6. Aspectos éticos 105
2.1.7. A coleta dos dados 106
CAPITULO III
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
110
3. Caracterizando os casos
111
3.1. A referência às vítimas e agressores
112
3.2. Resultados e discussão
112
3.3. Fluxo de procedimentos adotados a partir da revelação
134
3.4. Sobre como as falhas nos encaminhamentos atuam contra as vítimas.
136
3.5. Inquéritos policiais arquivados (i
2
) .
139
3.6. Processos-criminais – absolvidos (pa
3
)
140
3.7. Processos-criminais – condenados (pc
4
)
141
3.8. Análise das manifestações dos atores jurídicos
143
3.8.1. Falta de testemunhas presenciais
147
2
A sigla “i” após o número do caso significa inquérito policial arquivado.
3
A sigla “pa” após o número do caso significa que o agressor respondeu a um processo criminal, mas foi
absolvido – não foi responsabilizado.
4
A sigla “pc” após o número do caso significa que o agressor respondeu a um processo criminal e foi
condenado – foi responsabilizado.
13
3.8.2. As “palavras da vítima”
149
3.8.3. Desvalorização da vítima e supervalorização da moralidade e dos costumes
153
3.8.4. Relativizações entre a conduta da vítima e as revelações
154
3.8.5. A questão do gênero
156
Considerações finais
158
Referências bibliográficas
172
ANEXOS
182
Resumo dos Casos
183
Manifestações dos atores jurídicos
201
Documentos
219
14
INTRODUÇÃO
15
I. Introdução
No início de minha carreira, comecei a despertar para as questões relacionadas com as
crianças e adolescentes, vítimas de violência sexual, principalmente na família. A forma de
condução dos processos, a fragilidade das vítimas diante do aparato jurídico-policial
estatal, e, principalmente, a falta de capacitação dos (as) Delegados (as) de Polícia, Juízes
(as) e Promotores (as) de Justiça, inclusive a minha, na condução dos inquéritos policiais e
processos em suas respectivas áreas de atuação.
Os crimes sexuais, principalmente os ocorridos no seio familiar contra crianças e
adolescentes, são praticados na clandestinidade, sob o espesso véu do silêncio da família,
da sociedade e das Autoridades Públicas, que acabam contribuindo, direta ou
indiretamente, para a (re)produção desta horrenda espécie de desrespeito ao ser humano,
especialmente àqueles em peculiar condição de desenvolvimento físico e psicológico.
Começaram a me inquietar a apresentação de inquéritos policiais extremamente pobres,
presididos por Delegadas de Polícia que, em tese, deveriam ser capacitadas para lidar com
esse público especial, qual seja, mulheres, crianças e adolescentes vítimas, aliada à
conivência, voluntária ou não, de Promotores (as) de Justiça que, satisfeitos com a míngua
de diligências realizadas pelas Delegadas de Polícia, simplesmente arquivam os inquéritos
policiais, e, ainda, Juiz (es - as) de Direito que relativizam as “palavras da vítima” em
confronto com a versão do agressor, com seu comportamento, bem como com o
comportamento do agressor (bom pai, bom marido, mantenedor da casa, pessoa idônea,
16
acima de qualquer suspeita etc), desprezando-se o fato, buscando justificativas para a
conduta do agressor.
Diante de situações concretas, muitas vezes me deparava, simplesmente, com as “palavras
da vítima” e a versão do agressor, sempre negando os fatos, desqualificando a conduta da
vítima. Na maioria das vezes, toda a família se apresentava contra a vítima, inclusive sua
própria mãe, que além de omissa, pôde ser conivente, criando a situação propícia para que
houvesse o ataque sexual.
Quando a busca por respostas na esfera jurídica apresentava-se esgotada, as respostas eram
sempre as mesmas, e a solução para os casos, quase que inexoravelmente, era a absolvição
do agressor, sem contar com processos desnecessários de revitimização da criança ou do
adolescente, para satisfazer a vaidade pessoal deste ou daquele, sem que houvesse qualquer
resultado prático.
Meu questionamento na busca de soluções para “alcançar a verdade”, afastando-se ao
máximo o risco do “achismo”, de cunho estritamente subjetivo, voltou-se para a área
psicológica, quando ingressei no Núcleo de Estudos Violência e Relações de Gênero –
NEVIRG -, da Unesp/Assis, convidado pela Professora Doutora Maria de Fátima Araújo.
A idéia para realização da pesquisa referente à violência sexual infanto-juvenil doméstica,
com ênfase dada à revelação, na área de Psicologia, surgiu nos “bastidores” do NEVIRG.
17
A área da Psicologia foi escolhida, apesar da formação acadêmica em Ciências Jurídicas,
justamente em face da importância e da necessidade de conhecimento do ser humano,
proporcionado por esta ciência.
As questões e inquietações foram surgindo e, paulatinamente, com auxílio da literatura
sobre as das pesquisas existentes, apesar de poucas, especialmente voltadas para a
revelação, e, por fim das discussões, elaborei o projeto de pesquisa que, após minha
aprovação no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação, foi aceito, tendo o
Professor Doutor José Luiz Guimarães como orientador.
Cumpre consignar que meu objetivo particular com a pesquisa, além do crescimento
espiritual e pessoal, consiste na multiplicação dos ensinamentos e conhecimentos
absorvidos com as disciplinas cursadas e com a própria pesquisa, principalmente na área
profissional, voltada para os operadores do Direito, diante da falta de capacitação para
lidar com o fenômeno da violência sexual infanto-juvenil doméstica, o que pode provocar,
e na maioria das vezes provoca, um dano irreparável às vítimas, às famílias envolvidas, até
mesmo ao agressor, e a toda a sociedade, de um modo geral.
O avanço das ciências tem demonstrado que os problemas voltados principalmente para as
áreas da família, da infância e juventude, e da violência, exigem cada vez mais, além do
conhecimento mínimo individual de cada profissional, de outras áreas do saber, também a
atuação multidisciplinar, ou seja, a atuação conjunta e coordenada de profissionais de
várias áreas, tais como Psicólogos, Assistentes Sociais, profissionais das áreas jurídica e
médica, entre outros.
18
a. Justificativa
A ausência/insuficiência de investigações científicas abordando o fenômeno da violência
sexual infanto-juvenil doméstica/intrafamiliar, notadamente com enfoque direcionado para
a revelação, bem como a experiência profissional que acumulamos, atuando nas esferas
criminal, da família e da infância e juventude, na área jurídica, compõem entre outras
o quadro de justificativas para uma pesquisa que teve como pretensão investigar, com
olhar diferenciado, detalhes de tais procedimentos, inclusive para desmistificar o profundo
silêncio da sociedade, bem como da família (sagrada) sobre esse fenômeno,
metamorfoseado em espanto e dor.
b. Objetivos
A presente pesquisa teve como objetivo caracterizar uma tipologia do fluxo de
procedimentos e dos atos normativos (inquéritos policiais e/ou processos judiciais)
adotados a partir da revelação do fato (violência sexual infanto-juvenil doméstica), até a
finalização do processo de responsabilização do acusado/agressor e, ainda, identificar,
neste processo, quais aspectos (supervalorizações, subjetivações, lacunas, omissões,
supressões, relativizações, etc., deliberados ou não) podem ter sido decisivos para o
desfecho dos casos, isto é, levaram à responsabilização (condenação) ou não
(arquivamento do inquérito/absolvição no processo) do acusado/agressor.
19
Essas variáveis foram investigadas com a utilização de técnicas quali-quantitativas, que
permitiram interpretar, a partir dos processos e outras fontes documentais, a crenças e
percepção de vida dos condutores dos processos de responsabilização (Promotores de
Justiça e julgadores).
Importante consignar que a pesquisa, apesar das especificidades existentes nos conceitos
de violência intrafamiliar e da violência doméstica, utilizou as expressões como
sinônimas, não estabelecendo a diferença conceitual.
A expressão revelação, por sua vez, é utilizada no sentido de exteriorização do
acontecimento — violência/ataque sexual — por parte da vítima, tornando-se pública a
partir do momento em que é concretizado o ato oficial de registro — notificação —, de um
boletim de ocorrência, pela instauração de inquérito policial, ou outros.
c. Estrutura do Trabalho
O presente trabalho é dividido em quatro partes, além da introdução.
O Capítulo I consiste em uma revisão bibliográfica na qual se discute aspectos voltados aos
conceitos fundamentais no desenvolvimento da pesquisa, iniciando pelas considerações
sobre a expressão abuso sexual, desenvolvendo-se com o pacto do silêncio na família e
considerações gerais sobre a família, inclusive no Brasil.
20
Neste mesmo capítulo, discutem-se questões gerais sobre a violência, notadamente a
violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes, entre elas a síndrome do
segredo, a revelação e os caminhos da revelação, finalizando com a normatização do
interdito sexual das relações incestuosas.
No Capítulo II apresenta-se o desenho da pesquisa, segundo o qual se discorre sobre a
metodologia de uma forma geral e, em especial, aquela utilizada na realização da pesquisa,
discriminando-se, detalhadamente, todos os passos, desde a escolha da metodologia, do
instrumento e da técnica, a amostra e seleção dos casos pesquisados, os aspectos éticos da
pesquisa e, por fim, a forma como se deu a coleta dos dados.
A análise e discussão dos resultados, de acordo com os objetivos da pesquisa, compõem o
Capítulo III, no qual descrevo, de forma minuciosa, a caracterização dos casos, e a análise
das manifestações dos atores jurídicos, finalizando com as considerações finais.
21
Capítulo I
DISCORRENDO SOBRE ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS
22
1.1. Considerações sobre a expressão abuso sexual
Muitas vezes nos deparamos com a utilização da expressão abuso sexual como sinônimo
de violência sexual contra crianças e adolescentes, tanto na literatura científica (FURNISS,
1993; LAMOUR, 1997; SOUSA E SILVA, 2002) como no senso comum e nos registros
encontrados em processos que foram objetos desta própria pesquisa, como se pode
verificar nos trechos destacados, a seguir:
“H19MPa abusou desta filha de D e ela acabou colocando a filha na rua”;
“...recentemente voltou para casa da mãe e os abusos reiniciaram”; “....sofreu
abuso sexual do padrasto até mais ou menos um ano atrás...”; “... a depoente
indagou a neta e esta confirmou que sofria abuso sexual do padrasto desde os 13
anos de idade...”, “...comparecendo a avó da vítima nesta Especializada, contou
que a mesma vem sofrendo abuso sexual por parte do indiciado que é seu
padrasto e a criou desde pequena...”
(Casos da pesquisa, 2006)
Ainda, a própria normatização encarregada do controle social e da defesa dos direitos da
criança e do adolescente, qual seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº
8069/90 – em seu art. 130
5
, utiliza a expressão abuso sexual. Apesar de semelhantes,
julga-se necessária uma reflexão sobre a utilização, a nosso ver indiscriminada, do termo
abuso, como sinônimo de violência, quando nos referimos às práticas sexuais entre adultos
e crianças e/ou adolescentes.
5
“Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a
autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia
comum”.– o referido artigo será comentado no momento oportuno.
23
O dicionário da Língua Portuguesa Houaiss (2001, p. 2.866) compreende o termo
violência
6
como: “ação ou efeito de violentar de empregar força física (contra alguém ou
algo) ou intimidação moral (contra alguém); ato violento, crueldade, força; exercício
injusto ou discricionário, ger. ilegal, de força ou de poder”. Já a expressão abuso sexual,
assim como para o senso comum e mesmo pesquisadores, é compreendido como
semelhante de violência sexual. Diz ele, no verbete abuso:
“... uso incorreto ou ilegítimo; uso excessivo ou imoderado de poderes; falta de
comedimento; exagero, excesso; do pátrio poder; violação por parte de um
genitor, dos direitos de um filho menor, que deixa ao abandono, de cujos
interesses não cuida, cujos bens arruína, que castiga de maneira imoderada ou
pelo fato de praticar atos que atentam contra a moral e os bons costumes....”
(HOUAISS, 2001, p. 33).
Embora o referido dicionário apresente tais termos como sinônimos, Tomkiewicz (1997)
distingue as expressões violência e abuso. Para ele, violência implica no uso de força física
ou psicológica, incluindo-se os atos praticados contra menores ou deficientes mentais,
incapazes de compreender o significado de tais ações. O abuso, ao contrário, é visto como
um ato em que não há o uso de força, caso em que a satisfação sexual pode ser alcançada
pela sedução.
Etimologicamente, a expressão abuso sexual é originária do inglês sexual abuse e se refere
à separação, ao afastamento do us, do considerado normal. Ela decorre do uso equivocado,
ou excessivo. Gabel (1997, p. 10) compartilha de definição semelhante à do Houaiss
(2001). Leiamos a sua definição de abuso:
6
Busca-se aqui a definição de violência segundo o vernáculo comum. As definições de violência, segundo
vários autores, em suas respectivas áreas do saber, são apresentadas mais à frente, no item específico 1.2.3.
24
Abuso contém ainda a noção de poderio: abuso de poder ou de astúcia,
abuso de confiança, ou seja, noções em que a intenção e a premeditação
estão presentes. Abuso sexual supõe uma disfunção em três níveis: o
poder exercido pelo grande (forte) sobre o pequeno (fraco); a confiança
que o pequeno (dependente) tem no grande (protetor); o uso delinqüente
da sexualidade, ou seja, o atentado ao direito que todo indivíduo tem de
propriedade sobre o seu
.
A tradução literal do inglês “abuse” leva à suposição de que o que se proíbe é o abuso e
não o “uso”. O exagero em relação à terminologia se justifica “porque as palavras possuem
sua importância e nunca são inocentes, devendo ser eliminada toda a ambigüidade que
possa gerar confusão”
7
(TESONE, 1998, p. 02).
O agressor sexual pode abusar dos poderes (métodos) de correção ou disciplina, exercidos
sobre a criança ou adolescente que está sob sua guarda ou responsabilidade, ou sob a égide
do poder familiar. Contudo, jamais pode abusar sexualmente, pois não possui autorização,
explícita ou implícita para esta violência.
Na França, a expressão abuso sexual foi paulatinamente abandonada, passando a ser
substituído pela expressão “ataques sexuais” às crianças e aos adolescentes pelos adultos,
nos termos da incriminação utilizada no Código Penal Francês. A utilização do termo
“ataques sexuais” corresponde ao agravamento das penalidades para os agressores
(GABEL, 1997).
Tais mudanças nos levam a compreender que naquele país, a utilização/desgaste do sentido
da expressão abuso sexual foi uma forma encontrada pela sociedade para amenizar a
7
Tradução própria.
25
conduta do agressor, tanto para ele (internamente), como para sua família e para toda a
sociedade.
No Brasil, não é diferente, uma vez que o autoritarismo, o machismo e os preconceitos se
manifestam nas relações afetivas e na sexualidade, definindo as relações do cotidiano das
famílias. Cuida-se do campo minado da sexualidade adulta com forte envolvimento
emocional e de ideologias historicamente presentes na sociedade. Este procedimento,
muitas vezes, busca negar ou minimizar o “ataque sexual”.
Nessa simbiose de cultura da cumplicidade e da impunidade, da dominação do poder do
homem sobre as categorias fragilizadas mulheres , crianças e adolescentes, negros, entre
outros , desde os primórdios da época da colonização do Brasil, da triste herança
histórica da escravidão, bem como das múltiplas formas de autoritarismo, criou-se e
difundiu-se a utilização do termo abuso, para amenizar o ataque sexual praticado contra os
dominados. No mesmo sentido, o mito criado em torno da sexualidade irrefreável do
macho contribui decisivamente para tal estado de coisa, com a precípua intenção de
beneficiá-lo e/ou amenizar a responsabilidade pela violência sexual por ele praticada.
Feita essa digressão, e mesmo considerando que, segundo a definição vernácula, o termo
abuso é compreendido como sinônimo de violência; que essa referida noção carrega
implicitamente a noção de domínio pela foa e que o seu entendimento, como equivalente
da violência, é consagrado pela sociedade e está consolidado por gerações, empregaremos,
tal como os franceses fizeram, a expressão ataque sexual, além do termo violência, sempre
que nos referirmos a essa conduta, ao longo do nosso trabalho. Acreditamos que assim
26
estaremos, pela densidade da palavra, agravando o significado e a dimensão do ato que ela
representa e encerra.
Também utilizaremos o termo violência, apesar de ele se prestar a inúmeros contextos e, a
nosso ver, ter sido banalizado. Por incrível que pareça, chamar uma pessoa de negro é um
ato de violência, pois segundo as regras do “politicamente correto” ela deveria ser chamada
afro-descendente. Galantear uma mulher pode, dependendo das suas intenções, ser
compreendido como ato de violência e ensejar penalização por assédio sexual, caso o
galanteador ocupe posição profissional superior a dela. Por estas razões, doravante
utilizaremos o termo ataque sexual, cabendo esclarecer que, numa situação de ataque,
geralmente ele é esperado pelo oponente, o que não ocorre no caso da criança —
freqüentemente amedrontada e sem ter noção de que se trata de um ato da perversão —
quando atacada. Quase sempre, depois do primeiro ataque, a sua reação é esperar que as
horas não passem para que não chegue o horário de ela ser novamente atacada. Ainda que
não seja usual tal expressão, ficamos agradavelmente surpresos pelo fato de, entre os atores
jurídicos, em um dos casos desta pesquisa, termos encontrado a utilização do termo
“ataque sexual”. (Tribunal – Caso 3pc
8
)
Nossa reflexão, em síntese, ganha mais sustentação se recorrermos a teorias psicológicas
que demonstram, de maneira inequívoca, o poder da palavra e dos termos empregados no
julgamento e mesmo o poder da sua influência para a realização de determinados crimes.
Soma-se a isso o fato de o agressor que pratica esse tipo de crime não ter a compreensão
prevista da lei, sobretudo entre os iletrados, economicamente desprivilegiados. Pode
8
Para uma melhor compreensão dos casos, veja em anexo um sumário de cada um deles.
27
ocorrer que o agressor não tenha estrutura psíquica para mensurar o seu comportamento
por entender que ao praticar o ato sexual com a criança ou com o adolescente ele
simplesmente a esteja usando inadequadamente, ou de forma excessiva e não praticando
um ato de violência ou um ataque sexual. Isto posto, reiteramos que, diante das
considerações mencionadas, na presente pesquisa serão utilizados os termos violência e
ataque sexual, abandonando-se a terminologia abuso.
1.2. O pacto do silêncio na família
1.2.1. Considerações gerais sobre a família
Com o passar do tempo, a família vem se transformando, assim como o próprio ser
humano e toda a sociedade, em razão das condições sócio-históricas vivenciadas a cada
momento. Em conseqüência, várias são as definições e as funções da família, as quais não
se afastam das abordagens naturalista e sociológica (ADORNO e HORKHEIMER, 1978).
Na Idade Média, a família originalmente não tinha função afetiva. Ela era responsável pela
transmissão da vida, dos bens e dos nomes, não havendo, ainda, a preocupação com a
educação e com a transmissão dos valores sociais. Após dispensar os cuidados das mães ou
amas, em torno de sete anos, as crianças iniciavam a participação em jogos e trabalhos do
dia-a-dia com os jovens, adultos ou velhos, e muitas eram enviadas para receber educação
em outras famílias (ARIÈS, 1981).
28
A família começa a se organizar, distanciando-se da sociedade, a partir do século XVIII,
quando se iniciou a valorização da intimidade da vida privada e a necessidade de uma
identidade, passando os seus membros, a se unirem também pelo sentimento. A família
começa a se responsabilizar pela transmissão de valores e conhecimentos, bem como pela
socialização da criança, enfatizando os laços afetivos para o processo de subjetivação dessa
criança (SCODELARIO, 2002).
Os estudos recentes mostram, de uma forma ou de outra, a dificuldade na busca de um
consenso na utilização do termo família e, ainda, a conseqüente necessidade de delimitação
e definição desse grupo. Constantemente, em diversos segmentos da ciência
9
, famílias
foram e são estudadas em diferentes dimensões espaço-temporais e, possivelmente,
nenhum estudo alcançará o esgotamento do assunto e fornecerá resposta para todos os
questionamentos (CERVENY, 2000).
Assim, encontramos na literatura vários autores que procuram definir o termo ou a
instituição família, entre eles, Cerveny (2000, p.23), que apresenta uma definição voltada
para uma visão sistêmica, vendo o grupo familiar como “um sistema de relações que são
significativas, mesmo que não haja interdependência entre os vários subsistemas”.
No mesmo diapasão — visão sistêmica —, Carter e McGoldrick (1995, p. 9) deixam claro
que compreendem a família como “todo o sistema emocional de pelo menos três, e agora
freqüentemente quatro, gerações. Esse é o campo emocional operativo em qualquer
momento dado”. As autoras descartam a hipótese de que a influência da família esteja
9
Filosofia, Antropologia, História, Psicologia Sociologia, etc.
29
restrita aos membros de uma determinada estrutura doméstica, ou a um dado ramo familiar
nuclear do sistema.
Já, Ruiz e Mattioli (2004) entendem a família, não como um agrupamento natural, mas
uma construção social, transformada com o passar dos tempos. Ainda, salientam que a
família sofre transformações assimétricas, o que significa dizer, que em uma mesma
sociedade podem existir agrupamentos familiares com estruturas diversas.
Na Psicanálise, temos a definição de família proposta por Lacan (1987), para quem a
família “é um grupo natural de indivíduos unidos por uma dupla relação biológica: por um
lado a geração, que dá as componentes do grupo; por outro, as condições de meio que
postulam o desenvolvimento dos jovens e que mantêm o grupo, enquanto os adultos
geradores asseguram essa função” (LACAN, 1987, p. 15).
A sociologia apresenta uma reflexão sobre a família, em que predominou a teoria da
função sociológica
10
, presente no pensamento norte-americano a partir da década de 50,
“com reflexos marcantes sobre a sociologia brasileira” (BRUSCHINI, 1997, p. 54).
Para o funcionalismo, a função primordial e básica da família consiste na socialização
primária das crianças e na estabilização das personalidades adultas da sociedade,
enfatizando a importância de a criança ter, nas primeiras fases de seu desenvolvimento, um
vínculo especial, íntimo e intenso com a mãe (ib., id.). Também Scodelario (2002, p. 95)
define família como um grupo de pessoas que “compartilham circunstâncias históricas,
10
O expoente dessa teoria foi Talcott Parsons, para quem a “a família é uma agência socializadora cujas
funções concentram-se na formação da personalidade do indivíduo” (BRUSCHINI, 1997, p. 54)
30
culturais, sociais, econômicas e, em especial, afetivas. Esse grupo ocupa um lugar
intermediário entre o indivíduo e a sociedade da qual ele faz parte, possuindo intimidade,
organização e dinâmicas próprias”.
Hamon (1997) traz como uma das características essenciais do sistema familiar o fato de
ele ser um grupo de pertencimento.
O pertencimento indica simplesmente a relação de um indivíduo com um
conjunto que o ‘contém’ e ao qual ele ‘pertence’. O grupo de pertencimento que
é a família, impõe uma solidariedade dos membros entre si. Os rituais de
pertencimento têm por função participar da constituição e da manutenção da
família
(NEUBURGER apud HAMON, 1997, p. 175).
A literatura antropológica apresenta vários dados que demonstram a multiplicidade das
estruturas familiares nos levando a pensar que, se existisse um grupo “natural,” este seria,
“quando muito, a mulher e sua prole” (BRUSCHINI, 1997, p. 50). As definições de família
apresentadas pelos antropólogos conservam alguns elementos comuns. Entre eles
destacam-se as regras que proíbem as relações sexuais entre parentes próximos; a divisão
do trabalho efetuada em razão do sexo; e o casamento como instituição socialmente
reconhecida, tornando-se as bases da paternidade social (ib., id.).
Apesar de não ser uma instituição natural, o que se extrai das concepções apresentadas,
sem pretensão de esgotar o tema, é que a família é sempre vista como um grupo, ou
agrupamento de pessoas. Também, que o liame estabelecido pelo vínculo de afetividade,
existente entre os componentes do grupo bem como as condições sociais, históricas e
culturais, próprias de cada sociedade, particularizaram a organização e a dinâmica de cada
grupo familiar.
31
Na sociedade ocidental, há a família nuclear pai, mãe e filhos e a família extensa
avós, tios, primos, sobrinhos etc. — entre outras composições (SCODELARIO, 2002). O
modelo nuclear de família, apesar de nos parecer tão natural, foi consolidado por volta do
século XVIII (ARIÈS, 1981).
Alguns outros autores, além de definir, apresentam funções para a família, como faz
Ferrari (2002) ao afirmar que as duas funções mais conhecidas da família referem-se à
socialização e à reprodução ideológica.
A primeira refere-se à família como núcleo de procriação, cuja função
principal é a formação da personalidade dos indivíduos e a socialização
primária das crianças. A segunda função diz respeito à família como
transmissão de hábitos, costumes, idéias, valores, padrões de
comportamento
(FERRARI, 2002, p. 89).
Muitos aspectos influenciam na singularização de uma família, tais como a forma de
organização e a dinâmica de relacionamento, que nasce a partir da união de duas pessoas, o
casal — influenciado por suas figuras parentais — e que, com o passar do tempo, vai se
configurando com a chegada dos filhos (SCODELARIO, 2002).
Assim, atualmente, uma teoria crítica sobre a família deve dirigir-se também para o nível
psicológico, formulando categorias que permitam a compreensão de estruturas familiares
divergentes em termos de seu padrão emocional (BRUSCHINI, 1997).
A família, além de ser o centro de formação da estrutura psíquica, apresenta-se como um
espaço social distinto, uma vez que gera e consubstancia hierarquias de idade e de sexo,
32
sendo um espaço social, no qual as gerações se defrontam mútua e diretamente e os sexos
definem suas diferenças e relações de poder (FERRARI, 2002).
1.2.2. A organização e a evolução da família no Brasil
11
Os textos apresentados por Gilberto Freyre (1963) demonstram que uma das principais
características da família brasileira é a estrutura doméstica patriarcal. Na sociedade agrária
e escravocrata do Brasil colonial, a família apresentava função fundamental, pois
desempenhava as funções políticas e econômicas. A família patriarcal era a base desse
sistema, fruto dos padrões culturais portugueses (BRUSCHINI, 1997). Com a subjugação
dos indígenas, a importação de escravos negros, aliados à imposição de seu domínio à
Colônia, os portugueses destruíram as formas familiares desses grupos.
Na estrutura doméstica despontava-se a importância do núcleo conjugal e da autoridade
masculina, direcionada para a figura do patriarca, chefe ou “coronel”, aquele que se
apresentava como dono do poder econômico e político (ib., id.).
Um dos fatores decisivos na caracterização dessa estrutura familiar, utilizada como forma
de controle social, principalmente dos escravos, foi o catolicismo, internalizando valores
como “conformismo, resignação e trabalho duro, formas de se chegar ao paraíso celeste”,
11
Para conhecimento e aprofundamento da evolução da família no Brasil, do ponto de vista jurídico, ver
Venosa (2005); Rodrigues (2004); e Monteiro (2004).
33
mesmo que os valores apregoados pela religião fossem desobedecidos pelos senhores
(PINSKY, 2004, p. 60).
O papel da esposa branca e legítima substanciava-se somente na proliferação da prole,
limitando-se às fronteiras da casa, casando-se cedo e desde cedo gerando filhos, cumprindo
rigorosamente seu papel. Era criada para ser servida pelos escravos, desde menina possuía
várias escravas lhe seguindo, sempre atentas às suas ordens. “Não se levantava para
levantar um lenço do chão, crescia balofa e vadia” (PINSKY, 2004, p. 62).
Evitava o “terrível” pecado original do prazer nas relações sexuais: na
verdade, isso lhes era implicitamente vedado. Tinha como modelo a
própria mãe de Deus, Maria, e supunha-se que deveria chegar perto de
Maria como mulher virtuosa. Engordava após o parto e dificilmente
voltava às curvas originais – com vinte anos já era uma matrona.
(PINSKY, 2004, p. 62)
Dessa forma, torna-se fácil compreender a frustração da mulher utilizada simplesmente
para procriar, ensinada a não ter prazer sexual. Ao contrário, o senhor, patriarca, cumpria
com sua mulher branca o papel de reprodutor e marido, mas buscava as escravas para
alcançar a vazão às suas atividades sexuais (ib., id.)
Os casamentos eram realizados por conveniência, geralmente de grupos econômicos, ou
entre parentes que desejavam vincular-se uns aos outros, em razão de diversos interesses.
Contudo, considerando que a atração sexual e a afetividade, em regra, eram estranhas à
união conjugal, a busca do homem por satisfação de suas necessidades sexuais e
emocionais fora do espaço conjugal legal tornava-se legítima, pois além das relações
34
sexuais com as escravas, mantinha concubinas, com diversos filhos ilegítimos, tantos com
estas como com aquelas.
BRUSCHINI (1997, p. 67-68), citando Gilberto Freyre, afirma que a família patriarcal
apresentava-se “como um extenso grupo composto pelo núcleo conjugal e sua prole
legítima, ao qual se incorporavam parentes, afilhados, agregados, escravos e até mesmo
concubinas e bastardos, todos abrigados sob o mesmo teto, na casa grande ou na senzala”.
Assim, a característica principal da família patriarcal brasileira assenta-se pela forma como
se davam as relações entre brancos e negros sob os domínios do senhor branco proprietário
e chefe de família (VIDAL E SOUZA, et alii, 2001).
O modelo de família patriarcal no Brasil colonial não foi predominante em todas as
camadas sociais, em razão principalmente dos elevados custos do casamento — que era
somente o religioso , estimulando os concubinatos e as uniões consensuais, afastando o
homem de suas responsabilidades pelos filhos o que provocou a elevada incidência de
mulheres como chefes de famílias. Também os escravos eram impedidos de constituir
famílias regulares (BRUSCHINI, 1997). O ato do casamento religioso para os escravos era
considerado um luxo e não decorrente de uma formação religiosa ministrada aos negros
desde a infância (PINSKY, 2004).
Apesar de os autores tradicionais
12
, que revisam a história da família brasileira,
apresentarem o modelo patriarcal como predominante no Brasil colonial até o século XIX,
12
Freyre (1963); Oliveira Viana ( 1952); Cândido (1951); Holanda (1936).
35
tal modelo, em razão dos novos rumos da pesquisa sobre a família e sua estrutura no Brasil
colonial, “prometem a imagem de uma “sociedade multifacetada, móvel, flexível e
dispersa, rompendo com a descrição tradicional quanto ao estreitamento de personagens e
de relações participantes da organização da casa e da família na colônia brasileira”
(VIDAL E SOUZA, et alii, 2001, p. 417)
13
.
Assim como na Europa, também no Brasil do século XIX, vários fatores influenciaram
para a modificação da organização da família brasileira e de toda a sociedade. A
urbanização, a industrialização, a abolição da escravatura e a imigração influenciaram para
a passagem da família extensa para o modelo conjugal, privilegiando-se as funções
afetivas.
Já em 1890, o casamento passou a ser regulado também pelas leis civis e não só pelas
religiosas, como ocorria anteriormente, o que, por si só, também influenciou na dinâmica e
na estrutura da família.
Ainda no começo do século XIX, o isolamento das mulheres e sua exclusão do convívio
social com os hóspedes ou visitantes do marido eram constantes. A mulher, da mesma
forma que em outras sociedades ou comunidades agrário-rurais apresentava um tipo de
retraimento doméstico e subordinação ao homem (COSTA, 1999).
A mulher tímida, reticente nas relações com o estranho, com o extra-familiar,
resumia em sua conduta as determinações sociais que a aprisionavam na casa. O
casamento de “razão” ou interesse; a inexistência de sentimento de amor entre os
cônjuges; a inferioridade de “raça” ou “espécie” que lhe foi tributada; a
dependência econômica para com o homem (pai, irmão, tio, tutor) e a rígida
13
Para maior aprofundamento na questão ver , ainda, Botelho (2001).
36
divisão do trabalho social compunham a moldura do confinamento da mulher
(COSTA, 1999, p. 102)
O isolamento da mulher representava a conseqüência da forma de contato da família com o
mundo. Não se vislumbrava uma alteração profunda nos papéis de gênero e na estrutura
tradicional da família, uma vez que a educação da mulher continuava voltada para o
casamento, para a vida doméstica e familiar e para melhor poder instruir os filhos
(BRUSCHINI, 1997).
As funções econômicas e políticas foram paulatinamente abandonadas pelas famílias,
passando a se concentrarem nas funções de procriação e de controle do impulso sexual. Os
filhos são libertados da rigorosa tutela patriarcal na medida em que a ampliação e a
diversificação do mercado de trabalho, bem como a valorização intelectual e da instrução
começam a ocupar espaço na sociedade.
Os castigos corporais impostos pelos pais aos filhos diminuem, pois a intimidade entre eles
começa a aumentar. A família apresenta novas características, entre elas, a maior igualdade
entre os sexos, o maior controle de natalidade, o maior número de separações e de novos
casamentos, o maior número de mulheres em atividades remuneradas, diminuindo, assim, a
autoridade paterna e o enfraquecimento dos laços de parentesco (BRUSCHINI, 1997).
Esta “nova” família conjugal guarda consigo uma característica típica da família anterior: a
presença predominante da dupla moral sexual, “que reprime a sexualidade feminina,
mantendo o tabu da virgindade e a intolerância para como adultério feminino, e reforça no
homem a prática da sexualidade”, trazendo em seu contexto a tolerância da sociedade para
37
com o adultério masculino e para com a prostituição, complemento natural e necessário
(BRUSCHINI, 1997, p. 69).
Na segunda metade do século XX, um novo modelo de família começa a se apresentar,
ocupando o lugar da família “hierárquica”, que era organizada em torno do poder
patriarcal: aquela em que o poder é distribuído de forma mais igualitária entre o homem e a
mulher, e também, aos poucos, entre pais e filhos (KEHL, 2003).
Esse contexto, aliado ao ingresso da mulher no mercado de trabalho e sua conseqüente
emancipação financeira, com o pátrio poder abalado, a estrutura e a dinâmica da família
sofreram profundas modificações. O número de separações e divórcio aumentou e também
a idade em que as mulheres decidem se casar – em proporção direta dos índices de
escolaridade feminina (ib., id.).
A liberdade sexual alcançada pelas mulheres há quase meio século, bem como a maior
independência financeira das jovens, proporcionou um aumento das relações conjugais
ocasionais, não legalizadas. A descoberta e a democratização dos métodos
anticoncepcionais foi uma das causas da derrocada do tabu da virgindade que sustentava o
casamento monogâmico (à custa da inexperiência e da frigidez femininas, como Freud
bem o percebeu). Contudo, o número de mulheres que se encontram sozinhas com filhos
para criar está aumentando, assim como os casos de gravidez não programada entre
adolescentes (KEHL, 2003).
38
No caminho trilhado pela mulher, na busca de sua posição na sociedade, não se enfrentou a
questão da família, deixando-a de lado, “contrapondo-a à afirmação da individualidade
feminina” (BRUSCHINI, 1997, p. 73).
Muitas vezes, conquistar a independência, transformar-se em cidadã, obter o
reconhecimento perante a sociedade, significava abrir mão da convivência familiar. Porém,
para muitas mulheres, mesmo com a clara visão de sua subordinação, a opção pelo
convívio familiar sempre esteve em primeiro lugar; para outras, a família pode apresentar-
se mais do que um espaço de opressão e/ou de conflito, mas como um lugar primordial
para o relacionamento afetivo (ib., id.).
As formas de convívio vêm sendo improvisadas em torno da dinâmica familiar que
continua a mesma — “de criar filhos, frutos de uniões amorosas temporárias a qual,
nenhuma lei, de Deus ou dos homens, consegue mais obrigar que se eternizem” (KEHL,
2003). Deve-se, assim, buscar muito mais a transformação de um modelo patriarcal e
opressivo da família do que propriamente decretar a sua falência (BRUSCHINI, 1997).
Segundo Kehl (op. cit., p. 173), “a relação entre a dissolução da família patriarcal, hoje, e a
correspondente dissolução dos costumes”, pode ocorrer de duas formas. A primeira delas
dirige-se do público ao privado. O modelo de socialização que ocorreu sob os auspícios da
família patriarcal só fazia sentido em sociedades em que havia algum tipo de continuidade
entre a vida pública e a vida privada, onde os valores adquiridos e as proibições que se
impunham aos indivíduos no espaço familiar se confundiam com os ideais e exigências
preponderantes para os papéis na vida pública. A dissolução do espaço público e a
39
transformação da ética de produção para ética de consumo, entre outros, são os grandes
responsáveis pela desmoralização da transmissão familiar dos valores.
Apesar de a sociedade ressaltar a importância da família, o transcorrer da história nos tem
demonstrado que sua organização não se fez sob os princípios fundamentais de respeito à
pessoa humana, caracterizando-se como um espaço de hierarquia e de subordinação pelo
poder e domínio dos homens sobre as mulheres e de adultos sobre as crianças (RIBEIRO et
alii, 2004).
Na busca de entendimentos acerca da violência intrafamiliar ou doméstica, deve-se ter uma
compreensão, em primeiro plano, histórico e psicossocial do indivíduo e da família.
Implica no entendimento das interações pai/mãe/filho (as) e a forma de relacionamento
interpessoal familiar. Implica, também, em conceber a violência como um fenômeno
construído e transmitido às novas gerações, e não, como um fenômeno natural (SOUSA E
SILVA, 2002).
Independentemente da definição que se alcance para a família, sabe-se que há diferentes
padrões de relacionamentos que envolvem sua dinâmica, considerando-se fatores internos
e externos ao grupo. Nesse viés, denota-se que, ao apresentar um padrão abusivo de
relacionamento interpessoal, a família revela as cicatrizes de sua história pessoal dentro de
um contexto histórico-cultural de determinada sociedade (AZEVEDO e GUERRA, 1995).
1.2.3. Violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes
40
O tema violência, conforme enfocado por Araújo (2002), tornou-se, nas últimas décadas,
um vasto campo de estudos de diversas disciplinas, sendo focalizado sob diferentes
vertentes analíticas.
A violência apresenta-se, nos dias atuais, como uma das grandes preocupações em nível
mundial, atingindo a sociedade como um todo, grupos ou famílias, e, ainda, o indivíduo
(RIBEIRO et alii, 2004). As várias culturas e sociedades trazem diversas definições de
violência, pois, não definiram e nem definem a violência da mesma maneira. Ao contrário,
dão-lhe conteúdos diferentes, segundo os tempos e os lugares (CHAUÍ, 2002).
O fenômeno da violência não encontra uma definição precisa, mas tem como algumas de
suas características a multideterminação e a ligação íntima com a sociedade:
As pesquisas relacionadas com esse tema abarcam uma multiplicidade de
metodologias e correntes teóricas. MICHAUD (1989) já constatava a dificuldade
de uma definição mais universal de violência, e mesmo considerando-a
objetivamente uma questão de agressão e maus tratos... [ ] que é evidente porque
deixa marcas, acentua que a definição de violência encontra-se nas normas que
regem uma sociedade... pode haver tantas violências quantas forem as espécies
de normas
(RUIZ e MATTIOLI , 2004, p. 113).
Assim como, em relação à definição de família, em razão da multicausalidade em torno do
fenômeno da violência, também são encontradas diversas definições sobre o que se
compreende por violência, pelas diferentes áreas do saber, podendo ser apreendida e
concebida de acordo com vários critérios e pontos de vistas até mesmo pessoais, de acordo
com a vulnerabilidade física ou a fragilidade dos indivíduos, não apresentando uma forma,
um regramento absoluto (MICHAUD, 2001).
41
A violência é, portanto, assimilada ao imprevisível, à ausência de forma, ao
desregramento absoluto. Não é de espantar se não podemos defini-la. Como as
noções de caos, de desordem radical, de transgressão, ela, com efeito, envolve a
idéia de uma distância em relação às normas e às regras que governam as
situações ditas naturais, normais ou legais. Como definir o que não tem
regularidade nem estabilidade, um estado inconcebível no qual, a todo o
momento, tudo (ou qualquer coisa) pode acontecer?
(2001, p. 12).
Segundo Guimarães e Negrão (2006), citando Mezan (1992), a Psicanálise, teoria
desenvolvida por Sigmund Freud (1898), tem disponível, pelo menos, três vertentes que
explicam o fenômeno da violência.
A vertente mais naturalista teria como representantes Freud (1856-1939) e Melanie Klein
(1882-1960), para quem, ressalvadas pequenas diferenças de ênfase, a agressividade é inata
ao ser humano, que busca manifestar-se e satisfazer-se por meio da destrutividade e auto-
destrutividade. Esta energia natural (agressividade), utilizando mecanismos psíquicos, seria
deslocada para atividades socialmente aceitas, o que seria possível a partir de um
funcionamento relativamente saudável dos mecanismos de canalização de energia.
Existem ainda duas outras vertentes que concebem a violência mais como decorrência de
fatores sociais. Estas vertentes têm como principais representantes Winnicott (1896-1971)
e Lacan (1901-1981), respectivamente. Para o primeiro, a violência deve ser entendida
como uma reação à frustração. Assim, quando um indivíduo encontra-se em situação de
intensa frustração, essa violência pode vir à tona. Já para Lacan, que relaciona a violência e
a agressividade à ruptura da imagem narcísica, algum acontecimento interno e externo que
ataque à imagem que a pessoa tem de si, pode resultar em manifestações de agressividade,
que teriam a finalidade de restaurar a auto-imagem.
42
Mesmo diante da amplitude do termo violência, o Código Penal Brasileiro
14
, que é a
normatização encarregada do controle social da violência, ao contrário do que muitos
imaginam, não traz, em nenhum de seus dispositivos, uma definição deste fenômeno. Não
poderia ser diferente, pois a regra legislativa demonstra que não cabe à lei trazer conceitos
e definições, pois, tal papel é atribuição da doutrina e da jurisprudência
15
.
Para Adorno (1993, p. 09), um indivíduo é considerado violento quando ele rompe o
pacto social existente. O rompimento com as regras, mesmo que não legítimas, mas
consideradas legais e morais numa sociedade em determinado momento de sua história,
caracteriza a violência.
Michaud (2001) traz outra definição de violência, levando em consideração aspectos que
dêem conta tanto dos estados, quanto dos atos de violência.
Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de
maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias
pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua
integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e
culturais
(MICHAUD, 2001, p. 11).
Sousa e Silva (2002) salienta que a violência se manifesta tanto nas relações entre as
classes sociais, quanto nas relações interpessoais, podendo estar presente nas relações de
14
Código Penal Brasileiro – Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940.
15
Doutrina – orientação estabelecida pelos estudiosos do Direito – teóricos encarregados da interpretação
das leis; jurisprudência – decisões reiteradas dos Tribunais em casos semelhantes – interpretação das leis
pelos Tribunais.
43
gênero, nas relações entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre brancos e
negros, entre certa identidade heterossexual e a chamada identidade homossexual.
Dessa forma, complementam os autores que o agressor da criança e do adolescente utiliza-
se da violência como forma de manifestação de dominação, “expressando claramente uma
negação da liberdade do outro, da igualdade e da vida” (Op. cit, p. 82).
Segundo Chauí (1985), temos a violência não como violação ou transgressão de normas,
regras e leis, mas sob dois ângulos:
Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa
relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e
opressão. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como
sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo
silêncio de modo que, quando a atividade e a falta de outrem são impedidas ou
anuladas, há violência
(p. 35).
Assim, diante das características apresentadas pela autora podemos definir a violência
como uma relação de força, tendo, como elementos principais, num pólo, a dominação e,
no outro, a coisificação a que o vitimizado é submetido, demonstrando passividade e
silêncio.
A definição de Chauí, considerando-se as peculiaridades da violência contra crianças e
adolescentes, parece-nos a mais adequada, em face das características apresentadas pelo
vitimizado — passividade e silêncio —, próprias das crianças e adolescentes vítimas de
violência.
44
As questões que envolvem o fenômeno da violência são múltiplas, assim, como suas
causas e determinantes. Porém, uma forma de violência que tem chamado a atenção dos
estudiosos e pesquisadores é a violência doméstica, ou intrafamiliar.
Alguns autores utilizam como sinônimo a expressão doméstica e intrafamiliar como
qualificadoras da violência. Porém, segundo Araújo (2002, p. 4), a violência intrafamiliar é
aquela que ocorre na família, sendo que seus atores (parentes) podem ou não viver sob o
mesmo teto, “embora a probabilidade de ocorrência seja maior entre os que convivem
cotidianamente no mesmo domicílio”. Esta autora salienta que a violência doméstica não
se limita à família, pois engloba todas as pessoas que convivem no mesmo universo
doméstico, com vínculo de parentesco ou não.
Segundo Azevedo (1995), a violência que ocorre dentro da família, ou seja, a violência
doméstica, define-se por,
...todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis, contra
crianças e adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou
psicológico à vítima – implica de um lado uma transgressão de poder do adulto
e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que
crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e como pessoa em
condição peculiar de desenvolvimento
(AZEVEDO, 1995, p. 36).
A violência doméstica ou intrafamiliar contra crianças e adolescentes pode ocorrer de
diversas formas, entre elas, a física, a psicológica (negligência/abandono) e a sexual.
Os autores hoje concordam, do ponto de vista conceitual, que a violência física
representa concretamente a utilização de força física excessiva e inapropriada e
que a negligência/abandono física significa o fracasso de pais/responsáveis na
realização adequada de seus deveres como pais, ou seja, no suprimento das
necessidades básicas da criança e do adolescente
(DUARTE e
ARBOLEDA apud SOUSA E SILVA, 2002, p. 83).
45
Assim, enquanto a violência física pode ser caracterizada pelo uso da força física contra a
criança e o adolescente, a negligência/abandono/psicológico/emocional podem ser
definidos tanto pela ausência de uma atenção positiva, de uma disponibilidade emocional,
de interesse dos pais ou responsáveis pela criança/adolescente como por ameaças
(expressas ou veladas); por comportamentos de isolamento social (privação de liberdade –
com violência física ou não); por atitudes de corrupção e exploração (trabalho infantil
forçado, mendicância) (SOUSA E SILVA, 2002).
Existem parcos estudos em relação à violência psicológica, sendo seus efeitos no
psiquismo pouco conhecidos. Sabe-se que, em geral, as conseqüências da violência
psicológica refletem no futuro da criança ou adolescente, e, quase sempre, são originárias
de outras espécies de violência (física ou sexual). Esta espécie de violência não deixa
marcas visíveis no corpo físico, porém, as marcas psíquicas estão relacionadas com as
relações de poder, opressão, educação, identidade, subjetividade, agressividade, e muitas
outras (RUIZ; MATTIOLI, 2004).
Balizadas em Gil (1984), Azevedo e Guerra (1989, p. 41), designam a violência
psicológica como “tortura psicológica” em relação à criança ou adolescente, ocorrendo
quando o adulto “deprecia a criança, bloqueia seus esforços de auto-aceitação, causando-
lhe grande sofrimento mental. Ameaças de abandono também podem tornar uma criança
medrosa e ansiosa, podendo representar formas de sofrimento psicológico”.
As autoras apresentam duas formas básicas de imposição de sofrimento psicológico:
negligência afetiva (falta de interesse com as necessidades e manifestações da criança ou
46
adolescente desprezo) e rejeição afetiva (manifestações de depreciação e
agressividade).
Já a violência sexual, inserida num contexto histórico-social e com profundas raízes
culturais, em razão de suas peculiaridades, bem como de sua complexidade, levando-se em
consideração as várias facetas apresentadas por ela, pode ser considerada como uma
terceira modalidade de violência, ou seja, violência qualificada, pois há a agressão física
(mesmo que não violenta) e, na grande maioria das vezes, a psíquica, podendo causar
traumas psicológicos irreparáveis. Atinge todas as faixas etárias, classes sociais e pessoas
de ambos os sexos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999).
A violência sexual é a forma de violência que pode desencadear um tipo de indignação que
poucos, ou raros tipos de violência conseguem provocar. A subjugação da vítima ao
agressor lhe incute um sentimento que ultrapassa, de forma incomensurável, qualquer
outro tipo de agressão ao ser humano.
A literatura mundial demonstra que a violência sexual ocorre universalmente, estimando-se
que produza cerca de 12 milhões de vítimas mulheres anualmente, atingindo desde recém-
nascidos até idosos (BEEBE apud RIBEIRO et alii, 2004).
Se a violência sexual contra "adultos" provoca e incute, na vítima, conseqüências sem
precedentes, podendo-lhe ocasionar traumas e seqüelas irreparáveis ou de difícil reparação,
em todas as áreas de sua atuação e conduta, estes danos são tanto maiores quando a vítima,
ou as vítimas são crianças e adolescentes.
47
Pode-se considerar violência/ataque sexual infanto-juvenil toda e qualquer conduta ou
manipulação sexual entre adultos e crianças/adolescentes, com a finalidade precípua de
estimulá-los sexualmente ou utilizá-los para obter estimulação sexual, sem
necessariamente haverem expedientes violentos ou força física, para obtenção do intento
do agressor.
Em Araújo (2002), para a caracterização da violência sexual “infantil devem estar
presentes relações de poder, coação e/ou sedução, bem como duas desigualdades básicas,
quais sejam, as de gênero e de geração, sendo freqüentemente praticado sem o uso da força
física, e sem deixar marcas visíveis.
Outros autores procuram a definição teórica de violência sexual contra crianças e
adolescentes, como Forward e Buck (1989), que definem violência sexual doméstica, ou o
incesto, como todo e qualquer contato abertamente sexual entre pessoas que tenham um
grau de parentesco, ou acreditem tê-lo. Nesta definição, estariam incluídos padrasto,
madrasta, meio-irmãs, avós por afinidade e até mesmo amantes, desde que morem junto
com o pai ou a mãe, caso eles assumam o papel de pais. Incesto caracteriza-se pela
violação da confiança especial, existente entre a criança e um parente, ou uma figura de pai
e mãe, por qualquer ato de exploração sexual.
Para Schechter e Roberg,
A exploração sexual das crianças refere-se ao envolvimento de crianças e
adolescentes dependentes, imaturos desenvolvimentalmente, em atividades
sexuais que eles não compreendem totalmente, às quais são incapazes de dar um
consentimento informado e que violam os tabus sociais dos papéis familiares...
(apud FURNISS, 1993, p.12)
48
Furniss (1993, p. 12) agrava esta definição, acrescentando-lhe características que
revelariam a intencionalidade do agressor, ao afirmar que a exploração sexual das
crianças, além do que já foi descrito, também, “objetiva(m) a gratificação das demandas e
desejos sexuais da pessoa que comete o abuso".
Já as pesquisadoras Azevedo e Guerra (1989), caracterizam a violência sexual como sendo
"todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual, ou homossexual, entre um, ou mais adultos
e uma criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança, ou
utilizá-la para obter estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra" (p. 42).
A Organização Mundial da Saúde definiu violência sexual contra a criança da seguinte
forma:
A exploração sexual de uma criança implica que esta seja vítima de um adulto ou
de uma pessoa sensivelmente mais idosa do que ela com a finalidade de
satisfação sexual desta. O crime pode assumir diversas formas: ligações
telefônicas obscenas, ofensa ao pudor e voyeurismo, imagens pornográficas,
relações ou tentativas de relações sexuais, incesto, ou prostituição de menores
(apud GABEL, 1997, p. 11).
A violência sexual, ocorrendo no seio familiar, intramuros, em um ambiente que por
diversos motivos vem se demonstrando propício para esta prática, surge também como
uma forma de violência doméstica, ou intrafamiliar, sendo denominada de incesto.
O termo “incesto” origina-se do latim “incestus”, que significa impuro, manchado, não
casto (COHEN, 1993).
49
Myre apud Azevedo e Guerra (1989, p. 42) afirma que incesto se define como “toda
atividade de caráter sexual, implicando uma criança de 0 a 18 anos e um adulto que tenha
para com ela, seja uma relação de consangüinidade, seja de afinidade, ou de mera
responsabilidade”.
O incesto também pode ser definido como uma violência sexual intrafamiliar, com ou sem
o uso de violência explícita, “caracterizado pela estimulação sexual intencional por parte
de algum dos membros do grupo que possui um vínculo parental pelo qual lhe é proibido o
matrimônio” (COHEN, 1993, p. 213), cujas principais características, segundo o autor, são
a violência sexual e o vínculo familiar.
Ainda, Vaiciunas, Azevedo e Guerra (1993, p. 197), trazem o incesto como “modalidade
privilegiada de violência doméstica contra a criança”, por tratar-se de uma forma
qualificada de violência, uma vez que, além das práticas sexuais propriamente ditas, pode
implicar em agressões físicas e emocionais.
Assim, como uma das categorias da violência sexual encontramos o incesto, sendo que, na
maioria das vezes, em tal prática pode não haver a utilização de violência ou força física,
ocorrendo justamente o contrário, uma vez que entre o parente (pai, padrasto, avô, tio,
primo, irmão) e a vítima (filha, enteada, neta, sobrinha, prima, irmã) pode haver muito
afeto para que ela seja submissa ao agressor e permita que ele a utilize para saciar sua
lascívia, sendo para ela a única forma de aproximar-se e conseguir um mínimo de carinho.
No plano teórico das várias definições existentes sobre a violência sexual doméstica ou
intrafamiliar contra crianças e adolescentes, encontram-se pontos em comum, entre eles:
50
primeiro, o sexo, como não poderia deixar de ser; segundo, a relação simbiótica entre a
pessoa (vítima) em peculiar situação de desenvolvimento (criança/adolescente),
dependente, dominada, e a outra pessoa (agressor), desenvolvida, que exerce e abusa do
"poder" a ela inerente, em razão de sua própria condição pessoal (parental); e, terceira, o
ambiente familiar, de confiança, de dependência.
Apresentando-se como uma das várias formas de sexo-intergeracional, a violência sexual
contra crianças e adolescentes, consumada dentro do ambiente familiar reflete, de uma
banda, a evolução das concepções que as sociedades construíram acerca da sexualidade
humana; de outra, a posição das crianças e adolescentes nessas mesmas sociedades, e, por
fim, o papel da família na estrutura das sociedades ao longo do tempo e do espaço
(AZEVEDO; GUERRA, 1997).
A convivência em uma sociedade estritamente "androcêntrica" e "adultocêntrica", se torna
um estímulo à violência sexual infanto-juvenil, pois, baseia-se no poder do homem adulto,
e os desejos daquele que detêm o poder (homem adulto) devem ser satisfeitos por todos
aqueles que não o têm.
A cultura brasileira, patriarcal, cria e estimula comportamentos diferenciados, fomentando
a desigualdade entre homem/macho e mulher/fêmea, incumbindo ao homem a força física
e psíquica, a competitividade, a competição, a guerra, o poder, enfim a dominação;
enquanto à fêmea cabe a doçura, a sedução, a fragilidade, a subjetividade, ou seja, a
submissão (VERARDO, 2000).
51
A influência desses modelos, impostos pelas raízes socioculturais, religiosas e políticas,
divide a essência do gênero humano em duas espécies: homem e mulher, colocando-os em
pólos antagônicos, em constante esforço para adaptação àquilo que se espera deles.
Nesse contexto sociocultural, religioso e político, a criança do sexo feminino é criada,
educada para seduzir, com um gesto, um olhar velado, um sorriso dissimulado, o não-
talvez, o não-sim; educação oriunda da cultura ocidental, fundada em preceitos cristãos,
que produzem um paradoxo: a mulher sedutora é valorizada socialmente pela sua
capacidade de atrair, encantar, fascinar e deslumbrar os que a rodeiam (VERARDO, 2000).
Alimentado pelos fatores acima, o cenário mais adequado e fértil para a prática e
perpetuação do ataque sexual infanto-juvenil é o núcleo familiar, seja em sentido amplo —
família extensa (envolvendo pai, mãe, irmãos, avós, tios, primos etc), ou em sentido estrito
— família de origem (pai, mãe e irmãos). Tais evidências são corroboradas pelas
estatísticas existentes, pois entre os autores da violência sexual, figuram em primeiro lugar
os pais; em segundo, os padrastos; em terceiro lugar, os tios e primos; e, em quarto e
quinto lugares, respectivamente, os namorados e desconhecidos (VERARDO, 2000).
Nas diversas facetas que envolvem a violência sexual infanto-juvenil, devem ser
consideradas as questões normativa e política, bem como a clínica, incluindo-se aí,
aspectos sociológicos e antropológicos (FURNISS, 1993).
A dinâmica da família abusiva apresenta várias características diferenciadoras, dentre elas
dificuldade de comunicação entre seus membros; o complô do silêncio; o uso intenso dos
mecanismos de defesa; auto-estima rebaixada; dificuldade com limites e isolamento social
52
acentuado (SCODELARIO, 2002). As famílias incestogênicas
16
e seus componentes, na
maioria das vezes, se apresentam como “estruturas fechadas em que seus componentes têm
pouco contato social, principalmente com a vítima” (CRAMI, 2002, p. 19).
Um grande número de fatores de personalidade e diferentes experiências de vida dos pais,
bem como a grande variedade de fatores em que os grupos familiares se estabelecem, agem
como fatores etiológicos e precipitantes na formação do padrão de relacionamento comum
final de ataque sexual da criança na família (FURNISS, 1993).
Apesar dos demais aspectos da família violentadora, como a disfuncionalidade em relação
à comunicação, o uso intenso de mecanismos de defesa, a rigidez na obediência masculina,
o rebaixamento da auto-estima, etc. (SCODELARIO, 2002; FURNISS, 1993; GABEL,
1997; CRAMI, 2002, entre outros) intui-se que o mais marcante é o silêncio, o segredo que
envolve tanto a família quanto a sociedade e, muitas vezes, até mesmo os profissionais
envolvidos.
1.3. A síndrome do segredo
O silêncio que reveste o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes na
família é um dos diferenciais dessa espécie de violência, em relação a outras, praticadas
contra crianças e adolescentes na família. Como a síndrome do segredo para o vitimizado,
a violência sexual é determinada tanto por fatores externos por aspectos específicos de
16
Família que apresenta caso de violência sexual incestuosa.
53
segredo na própria interação abusiva , como por fatores psicológicos internos
(FURNISS, 1993).
A violência sexual contra crianças e adolescentes é uma das espécies de maus-tratos que
mais se ocultam, já que o vitimizado tem medo de falar e, quando o faz, o adulto tem medo
de ouvi-lo (GABEL, 1997).
A dificuldade de enfretamento do fenômeno da violência sexual infanto-juvenil ocorre em
razão de sua complexidade e se agrava em face da dificuldade da criança e da família em
denunciar o segredo (ARAÚJO, 2002). O silêncio existente no seio familiar, muitas vezes
não só da vítima, mas de todos, ou de alguns dos envolvidos, conduz à perpetuação do
fenômeno por várias gerações, podendo o mesmo tipo de violência ser praticado
inicialmente contra um filha/filho e, em seguida, contra a neta, podendo, ainda, estes
vitimizados se transformarem em agressores de seus próprios filhos/filhas, sobrinhos etc.
(SCODELARIO, 2002). O ambiente doméstico cultivado pela família apresenta-se como
local ideal para a prática da violência sexual contra crianças e adolescentes, uma vez que
os limites impostos pela privacidade afastam família e seus membros dos olhos e dos
ouvidos do domínio público, oferecendo aos agressores um local no qual os ataques
sexuais se tornam perfeitos, já que podem ser praticados sem testemunhas ou acobertados
pelo silêncio cúmplice (RIBEIRO et alii , 2004).
Com relação ao segredo da criança ou adolescente vítima, Furniss (1993) apresenta como
fatores externos para a sua ocorrência a falta de evidências médicas ou da prova Forense
para amparar as acusações verbais do vitimizado; ausência de credibilidade na revelação da
criança ou do adolescente vitimizado; medo de represálias, muitas vezes concretizado por
54
ameaças de castigo ou de violência, não só contra o vitimizado, mas tamm contra a
própria família; ganho secundário através de suborno e ansiedade em relação às
conseqüências da revelação. Como fatores internos, este autor destaca a negação — que se
refere ao conceito psicológico de crença e assunção da autoria —; a anulação do abuso na
própria interação abusiva — “pelo contexto em que ocorre o abuso, pela transformação da
pessoa que abusa na ‘outra pessoa’, por uma camada interacional adicional de negação
através dos rituais de entrada e saída” (FURNISS, 1993, p.31-32); a acomodação ao abuso
e a criação da pseudonormalidade – “resultado da impossível tarefa psicológica de
integrar a experiência” (ib., id., p. 35).
Para Lamour (1997), citando Summit (1983), o silêncio da criança vitimizada se dá em
razão de o fato ter ocorrido quando ela está sozinha com o adulto e porque jamais deve ser
partilhado com quem quer que seja. O segredo deve ser preservado pela ameaça, pela
coação, principalmente psicológica. Por exemplo: “não diga nada a sua mãe, senão ela vai
me odiar; se ela souber, vai matar você, vai mandá-la para o colégio interno”. Muitas
vezes, as ameaças tornam-se, para o vitimizado, mais perigosas do que o próprio ato.
Em relação à criança ou ao adolescente vítima, também Scodelario (2002) sugere algumas
possibilidades que contribuem para a perpetuação do segredo. Para esta autora, a vítima
pode sentir-se desprotegida, pois acredita que a mãe sabe, mas não consegue fazer nada
para interromper a agressão; teme pela perda do afeto do agressor quanto mais próximo
mais se cala; tem receio de que as pessoas não acreditem na revelação, ou ainda, que a
julguem culpada — principalmente se ainda estiver sofrendo violência; além de ter medo
de represálias — de ser retirada do lar ou de sofrer pressões. Assim, a criança nunca diz
55
nada, pois teme a punição, ou a incapacidade de os adultos em protegê-la da violência de
seu agressor (LAMOUR, 1997).
Já em relação ao silêncio dos envolvidos na dinâmica familiar abusiva, Scodelario (2002)
também apresenta algumas possibilidades. Dentre elas, em relação ao parceiro/cônjuge
“não agressor”, destaca-se o medo do agente da agressão; o ataque às próprias percepções;
vontade de manter o equilíbrio ou a unidade familiar, mesmo que de forma precária; não
querer enfrentar as próprias perdas, pois tomar uma atitude pode implicar em perda do
companheiro ou da filha; e fragilização do papel de protetora.
Para Scodelario (2002) uma das características apresentadas e que mais contribui para o
silêncio e o segredo da família e da vítima, refere-se aos aspectos relacionados com as
dificuldades de comunicação do meio familiar, quer seja em relação às próprias vivências,
quer pelo fato dessa poder se dar de forma indireta, como o uso de terceiros, formas não
verbais, gestos, etc. A comunicação no grupo familiar é feita com dificuldades de
simbolização e elaboração das experiências emocionais — conflitos intrapsíquicos de
forma menos consciente. Ainda, há a ausência de expressão livre dos sentimentos,
limitando-se ao superficial e utilizando outros padrões de comunicação — mentiras
segredos, mensagens de duplo sentido e discurso confuso — expressas em frases do tipo:
“É para o seu próprio bem”; “Ninguém vai acreditar em você”; “No fundo você gosta”;
“Você precisa aprender essas coisas desde cedo”; “Se eu não te ensinar dessa forma você
não vai aprender nunca”. A criança necessita de “carinho e proteção e recebe sensualidade
e humilhação, sendo desrespeitada e violentada” (SCODELARIO, 2002, p. 99).
56
O discurso do agressor é sempre sedutor — palavras carinhosas e elogios e exercido de
forma delicada e dissimulada, de tal forma que as pessoas acreditam ser ele incapaz de
prejudicar alguém e, quanto mais, de praticar os atos de violência e abuso.
Segundo Thouvenin (1997), o segredo do incesto comportou uma proibição não só de
verbalizar os fatos, mas também de pensá-los. Muitas vezes a proibição é explícita, mas na
maioria dos casos é tácita e relacionada ao modo de comunicação, não-verbal,
predominante nas famílias que maltratam as crianças. Dessa forma a criança, em busca de
ternura, entrega-se ao adulto, numa “confusão de línguas” (FERENCZI apud
THOUVENIN, 1997, p. 94). Nessa relação, a violência passional é exercida por um
simulacro de sexualidade genital.
Para Furniss (1993), a ruptura do silêncio, com a revelação
17
do ataque sexual da criança,
conduz a uma crise imediata nas famílias e nas redes de profissionais, igualmente,
salientando que a abordagem integrada à família deve, conseqüentemente, prestar tanta
atenção aos processos na rede profissional quanto aos acontecimentos na família. O pacto
velado do silêncio atinge todos os envolvidos, seja direta ou indiretamente, na prática
abusiva, desde a vítima, agressor, familiares, ou quaisquer outros que, de uma forma, ou de
outra, estejam inseridos no contexto.
Dessa maneira, o segredo, a culpa e a omissão continuam sendo comportamentos usuais no
âmbito da vítima, da família, e da sociedade em geral e traduzem, na prática, uma
17
A expressão revelação é utilizada no sentido de exteriorização do acontecimento — violência sexual —
por parte da vítima.
57
dificuldade de materializar a revelação e dar prosseguimento à desmobilização da ação do
agressor da violência e proteção da vítima (LEAL, apud LORENCINI, 2002).
A violência sexual infanto-juvenil no seio familiar, sempre foi, e ainda é um tabu, um
assunto proibido, protegido pelo silêncio, pelo "medo", pela relação de dependência entre
os envolvidos, apresentando diversas e inúmeras barreiras para os profissionais que atuam
ou tentam atuar na área.
A forma de comunicação existente na família violentadora (re) produz o silêncio da vítima
e dos demais membros da família, contribuindo de forma decisiva para que se mantenha a
síndrome do silêncio. O trauma grave do ataque sexual sofrido pela criança ou adolescente
é acompanhado da impossibilidade de verbalizar e de pensar os fatos. A criança é colocada
diante do desejo de assassinato, assassinato de si mesma enquanto criança. Para o
psicanalista americano Shengold (1977), citado por THOUVENIN (1997, p. 95), tais
crianças sofrem um “assassinato da alma”.
Para Cohen (1993) as vítimas o incesto o sentem como o equivalente mental de morte
biológica, isto é, a aniquilação interna de suas estruturas psicológicas, o que as torna
impedidas de se desenvolver e de modificar a sua vida mental. Já Vaiciunas et al. (1993)
afirmam que as vítimas das relações sexuais incestuosas sofrem o equivalente a uma
verdadeira “morte psicológica”, feita de ruptura, em face das conseqüências em curto
prazo.
Assim, este tipo de violência sexual, principalmente a praticada por familiares ou
conhecidos, apresenta-se como uma relação de força, imposta através de silêncios,
58
segredos, cumplicidades e sedução. Os pactos de silêncio mantidos por familiares, amigos,
vizinhos, profissionais e pela sociedade em geral, encobertam situações de ataques sexuais
infanto-juvenis domésticos, desqualificando revelações verbais e não-verbais das vítimas,
negando evidências e sinais, em nome de fidelidades, interesses diversos, medos, sigilos
profissionais e Justiça. Esses pactos, silêncios e sigilos contribuem para a re (produção),
bem como para a ocultação da freqüência e extensão do fenômeno, impondo barreiras para
o estudo, o conhecimento e o enfrentamento dessa problemática (FALEIROS et alii, 2003).
1.4. Revelação
O termo revelação deriva do latim revelatio, onis significando ação de descobrir, de
desvendar. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define revelação como
... ato ou efeito de revelar-se; divulgação de um segredo; uma confidência (fez-
lhe uma r. amorosa); informação que se presta como intuito de fazer outrem
conhecer alguma coisa ainda desconhecida, ignorada; declaração, ger.
incriminatória, a respeito de alguém ou algo; denúncia (sua r. causou um
rebuliço entre os presentes)....
(HOUAISS, 2001, p. 2451).
A revelação consiste na exteriorização do ato de violência sexual pela própria vítima, ou,
em outras palavras, a ruptura do silêncio, do segredo a respeito da violência sofrida.
A revelação, em seu sentido amplo, é uma das questões fundamentais para o enfrentamento
das situações de ataques sexuais contra crianças e adolescentes, e, ainda, para a elucidação
de qualquer crime. Assim, necessita de pessoas dispostas a correr riscos e a romper com o
59
pacto do silêncio que contribui para a impunidade e deixa as vítimas fragilizadas
(FALEIROS et alii, 2003).
O rompimento do pacto de silêncio nas situações de violência sexual é o primeiro e
principal passo para o enfrentamento do fenômeno. Trata-se de um desafio a ser enfrentado
não só pela vítima, mas por quem tem conhecimento do ataque sexual, pela sociedade,
pelos estudiosos, pelos profissionais e pelos defensores dos direitos e garantias das
crianças e adolescentes vitimizados (ib., id.).
No processo de descoberta e enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil doméstica,
a revelação ocupa posição de destaque. “É um momento crucial que pode, por si só,
apresentar um risco de trauma suplementar para a criança ou adolescente” (THOUVENIN,
1997, p. 93).
Ademais, uma das principais características da família incestogênica é o complô do
silêncio, ou seja, “a criança vítima se cala enquanto os demais membros da família se
negam a enxergar a realidade” (AZEVEDO e GUERRA apud CRAMI, 2002, p. 47),
fortalecendo ainda mais o mito da “sagrada família”. Caso a vítima esteja sendo ameaçada
ou seduzida para reforçar o complô do silêncio, ela sente-se insegura em revelar o fato que
ocorre com ela, não somente em razão das conseqüências que advirão para ela
internamente — medo, culpa, vergonha, etc. , mas também para a família, incluindo-se,
neste caso, o próprio agressor.
O sofrimento da vítima em face do ataque sexual pode não ser físico, mas será sempre
psíquico, com efeitos destruidores (BIGRAS apud THOUVENIN, 1997), aliado a uma
60
grande carga de vergonha e chaga narcísica (AGOSTINI apud THOUVENIN, 1997),
tornando-o difícil de ser exteriorizado.
TOMKIWEICZ (1997, p.84) afirma que as vítimas de violência sexual doméstica
dificilmente contam aos adultos o fato de que foram vítimas, pois “elas aprenderam que
todo discurso sobre sexualidade é sujo proibido”.
Por esse viés, assim como no incesto, para a vítima, a revelação também pode ser
entendida como um verdadeiro tabu, ao considerarmos a expressão tabu como divergente
em dois sentidos contrários: por um lado, significa ‘sagrado’, ‘consagrado’, e, por outro,
‘misterioso’, perigoso’, proibido’, ‘impuro’. Porém, o contrário de tabu em polinésio é
‘noa’, que denota ‘comum’ ou geralmente ‘acessível’. Portanto, tabu traz em si sentido de
algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições. “Nossa
acepção de ‘temor sagrado’ muitas vezes pode coincidir em significado com ‘tabu’”
(FREUD, 1974, p. 38).
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, encontramos várias definições da palavra
tabu
escrúpulo aparentemente injustificado, sem fundamento ou imotivado; interdição
cultural e/ou religiosa quanto a determinado uso, comportamento, gesto ou
quanto à linguagem; proibição imposta por costume ou social ou como medida
protetora; qualquer preceito de interdição em curso numa coletividade; que não
pode ser us., feito, tocado ou pronunciado, por crença, respeito ou pudor;
inviolável; sagrado; proibido; ilegal; relativo a pessoa sob proibição temporária
ou permanente de executar determinadas ações, consumir certos tipos de
alimentos ou de ter contato com os outros...
(HOUAISS, 2001, p. 2654)
61
Segundo Freud (1974, p.39) os objetivos do tabu são numerosos, e entre eles encontramos
“a guarda dos principais atos da vida – nascimento, iniciação, casamento e funções sexuais,
etc., contra interferências”.
Para Furniss (1993, p.167), “no abuso sexual da criança, como síndrome de segredo, a
revelação do segredo é geralmente igualada ao fato do abuso”, o que reforça a simetria
entre o tabu do incesto e da revelação.
Apesar da utilização do termo tabu por Freud (1974) para designar a proibição de atos
contraditórios com os padrões morais, a vítima do ataque sexual internaliza, de forma
simbiótica, a mensagem, em razão dos padrões sociais e culturais a que está submetida, de
que a revelação também é um tabu, mesmo que individual, pois para que ela ocorra, a
vítima deverá enfrentar diretamente seus mecanismos estruturais individuais e coletivos,
podendo, ainda, abalar frontalmente os mecanismos estruturais, coletivos e individuais da
“sagrada família” e da sociedade.
Diante disso, é imposto, mesmo que indiretamente, no imaginário da vítima, uma
interdição de ordem cultural e social, evitando-se revelar o ato sofrido, por pudor, crença
ou superstição, decorrendo daí uma das principais características do fenômeno da violência
sexual infanto-juvenil doméstica, qual seja, o manto do silêncio que permeia não só a
vítima e o agressor, mas a família, a sociedade e os profissionais em geral. O tabu em
relação à violência sexual consiste na interdição de falar sobre o assunto (ALVIN, 1997).
A revelação pode ser dividida em várias espécies. Ela pode ser espontânea ou intencional
quando a criança exterioriza voluntariamente a violência sexual sofrida, sem a
62
intervenção de outra pessoa , ou provocada — quando ocorre a intervenção de outras
pessoas, como vizinhos, amigos, profissionais ou familiares (mãe, pais avós , entre outros).
Ainda, a revelação pode ser parcial – quando a vítima apresenta sinais verbais ou não
verbais, indicando indiretamente que está sofrendo violência sexual , ou completa
quando a vítima exterioriza de forma explícita o ataque sexual sofrido.
Também, ao desvelar-se uma situação de violência sexual, devem-se distinguir dois fatos e
dois momentos distintos: a revelação e a notificação. Primeiramente, a revelação é privada,
ou seja, a vítima, ou outra pessoa que suspeita ou sabe da ocorrência do ataque sexual,
conta a alguém que pensa ser capaz de fazer algo em face da situação revelada e de quem
aguarda ajuda e ações. Contudo, o circuito pode ser — ou não interrompido neste
momento (FALEIROS et alii, 2003).
Caso a revelação não seja interrompida, tenha prosseguimento, atinge-se a segunda etapa
a da revelação pública — a qual se concretiza com a denúncia
18
e no registro da mesma
em uma instituição governamental ou não que, ao tomar conhecimento dos fatos, deve
encarregar-se da mesma.
Assim, a revelação entra na etapa da notificação, isto é, no registro policial, em Boletim de
Ocorrência, de que o crime de violência sexual ocorre (u), ou há suspeita que ocorra, e na
imediata instauração do inquérito policial (FALEIROS et alii, 2003).
18
Não no aspecto técnico — início da ação penal pelo Ministério Público — Promotor de Justiça —, nas
ações penais públicas, mas no sentido de levar o fato ao conhecimento de uma instituição, seja pública ou
privada, capaz de tomar providências.
63
Isto posto, compreende-se a revelação como um dos principais elementos para a
responsabilização do agressor incestuoso, bem como para terapêutica a ser empreendida,
tanto em face da vítima e da família, como do próprio agressor, devendo ser considerada
de extrema importância a forma de condução dessa revelação, o que levará ao sucesso ou
ao insucesso do processo que envolve o fenômeno da violência sexual infanto-juvenil
doméstica.
1.4.1. Os caminhos da revelação
Tendo em vista o objeto da pesquisa, o estudo da revelação (os caminhos percorridos por
ela e sua influência na responsabilização do agressor), constitui-se num dos focos
pesquisados, buscando-se uma sistematização sobre a questão.
Assim, todas as circunstâncias que envolvem a revelação são de grande importância para o
processo de responsabilização e terapêutica, especialmente quanto aos caminhos
percorridos, bem como a atenção que se deu para a mesma, seja na família, na sociedade,
ou nos órgãos públicos, os quais tomaram conhecimento.
Nos casos de violência sexual infanto-juvenil doméstica o processo de responsabilização
do agressor inicia-se com a revelação.
A expressão revelação não se confunde com o termo denúncia, pois esta, em razão do
objeto e das especificidades dos documentos utilizados na pesquisa, refere-se ao
documento formal, elaborado pelo Promotor de Justiça, através do qual inicia-se a ação
64
penal pública (condicionada ou incondicionada), ou seja, o processo judicial de
responsabilização do agressor.
Podem-se distinguir dois momentos da revelação: aquele que ocorre somente no seio
familiar, podendo ser denominada de revelação privada; e aquele em que a revelação
ultrapassa os limites da família, denominando-se revelação pública. A revelação torna-se
pública a partir do momento que ultrapassa as barreiras da família e exterioriza-se para o
início do processo responsabilização, ou seja, quando é levada ao conhecimento de alguém
capaz de iniciar o processo de responsabilização
19
.
Os profissionais que atuam na rede de enfrentamento do ataque sexual contra crianças e
adolescentes, bem como os estudiosos e pesquisadores do fenômeno, suscitam várias
dúvidas acerca da definição da(s) “Porta(s) de Entrada”
20
da revelação. Muitos
questionamentos surgem, entre quais seriam as melhores “Portas de Entrada”, onde devem
estar localizadas, quais suas funções, quais seus limites, e, especialmente que caminho
deve seguir a revelação (FALEIROS et alii, 2003).
Nos caminhos percorridos pela revelação, com auxílio dos documentos analisados — cf.
item discussão e resultados —, observa-se que a principal “Porta de Entrada” foi a
Delegacia de Defesa da Mulher
21
, conforme se verá mais à frente.
19
Professora, diretora de escola, membros do Conselho Tutelar, policiais militares, Delegado (a) de Polícia
etc.
20
Termo utilizado por Faleiros (2003) — refere-se ao início do percurso da revelação e da queixa em
situações de violência sexual.
21
Unidade Policial especializada, destinada ao recebimento de reclamações e tomada de medidas legais, nos
casos de crimes em que são vítimas mulheres.
65
Após o registro oficial da notícia do ataque sexual — revelação pública —, investiga-se o
crime e remete-se o Inquérito Policial ao Poder Judiciário, que o encaminha ao Ministério
Público — Promotor de Justiça —, o qual poderá denunciar o suspeito da violência sexual,
arquivar o Inquérito Policial, ou devolvê-lo à Delegacia de Polícia para realização de novas
diligências, caso entenda necessário.
Em sendo arquivado o Inquérito Policial, encerra-se, naquele momento, o processo de
responsabilização.
Caso o Promotor de Justiça denuncie o suspeito da agressão sexual, inicia-se uma nova
fase no processo de responsabilização, qual seja, o processo judicial, podendo ao final
encerrar-se com a absolvição ou condenação do agressor. Saliente-se que o processo
judicial de responsabilização, iniciado com a denúncia, encerra-se, por definitivo, somente
após a análise de recurso da decisão (absolvição ou condenação) pelo Tribunal Superior
(no Estado de São Paulo – Tribunal de Justiça), caso haja recurso do agressor ou do
Ministério Público.
Portanto, o processo de responsabilização do agressor inicia-se com o registro da
Ocorrência Policial e encerra-se com o recurso da decisão final, caso haja recurso,
passando, assim, pela Delegacia de Polícia, geralmente a de Defesa da Mulher, pelo
Ministério Público e pelo Poder Judiciário.
66
1.4.2. Fluxo de procedimentos adotados a partir da revelação
Diante da complexidade do fenômeno da violência sexual infanto-juvenil
doméstica/intrafamiliar, seu enfretamento deve ser feito através de múltiplas e
complementares áreas e eixos metodológicos, havendo a necessidade de articulação em
rede (FALEIROS et alii, 2003).
...a perspectiva do trabalho em redes e com redes, na área social, é recente,
merecendo destaque as contribuições de Speck nos anos 80, dos assistentes
sociais quebequenses, Rousseau e Bordeur, nos anos 80 e da Escola de Serviço
Social de Parma, na Itália, nos anos 90. As redes são invenções abstratas;
organizam-se a partir da articulação de atores/organizações/forças existentes no
território, para uma ação conjunta multidimesional, com responsabilidade
compartilhada (parcerias) e negociada
(FALEIROS et alii, 2003, p. 24).
A presente definição de redes apresenta uma visão relacional dos atores/forças numa
correlação de poder em que as perspectivas da totalidade e da complexidade predomina
sobre a da disseminação. Demonstra que as redes são processos dinâmicos e não entes
burocráticos formais, em que se entrelaçam organizações do Estado e da sociedade.
O trabalho deve ser pautado pelas ações articuladamente conjuntas, envolvendo
sujeitos/atores/forças, proporcionando o poder, os recursos e os dispositivos necessários
para a execução, a auto-organização e auto-reflexão dos participantes de forma individual e
institucional, contrariamente às ações pontuais, isoladas e desarticuladas.
A execução do trabalho de forma integrada com as instituições envolvidas nos
atendimentos favorece a visão ampliada em cada caso. Há maior facilidade de os
67
profissionais obterem mais informações e, com isso, sistematizar as ações de forma
integrada (LORENCINI et alii, 2002).
Um dos principais objetivos desta pesquisa foi identificar a tipologia dos fluxos de
procedimentos adotados a partir da revelação, até sua resolubilidade (decisão final do
processo de responsabilização).
Geralmente a revelação pública não deveria circular por um único caminho, mas seguir três
percursos distintos: o Fluxo de Defesa de Direitos, o Fluxo da Responsabilização e o Fluxo
do Atendimento (FALEIROS et alii, 2003).
Os caminhos são distintos, com atribuições e redes institucionais próprias: a
responsabilização penal do agressor, a defesa de direitos e o atendimento às pessoas
envolvidas na situação de violência sexual (a vítima, o acusado e os familiares).
A responsabilização ocupa-se do processo legal, da violação da lei, da punição do agressor;
já o atendimento cuida das pessoas, de suas dores e danos sofridos; enquanto a defesa de
direitos, ocupa-se da garantia da cidadania
22
, especialmente dos direitos e garantias
individuais das crianças e adolescentes.
As pessoas não nascem iguais, mas se tornam iguais como membros de uma coletividade,
em razão de uma decisão conjunta que garante a todos os direitos iguais, a igualdade, que é
22
Cidadania, segundo Marshal, (1967) abrange três tipos de direitos: “os civis - liberdade individual,
incluindo a justiça; os políticos - participação do exercício no poder político; e os sociais - bem-estar
econômico, segurança e benefícios da organização social” (SILVA, 2003, p. 29).
68
elaborada de forma conjunta pelos homens através da organização da comunidade política.
Pessoas que vivem fora de um mundo comum, “excluídas de um repertório compartilhado
de significados que uma comunidade política oferece e que a cidadania garante”, vêem-se
isoladas e sem perspectivas (LAFER, 1988, p. 150).
Nesse contexto, a garantia da cidadania deve ser entendida como garantia da própria
condição de ser humano, dos direitos humanos fundamentais das crianças e dos
adolescentes.
...os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como um fato e um
meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta
substancialmente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas
qualidades acidentais - o seu estatuto político – vê-se privado de sua substância,
vale dizer: tornado pura substância, perde a sua qualidade substancial, que é de
ser tratado pelos outros como um semelhante
(LAFER, 1988, p. 151).
Compreende-se a responsabilização do agressor deve ser alcançada de forma ampla e não
com a conotação de “pagar pelos erros cometidos”. A condenação deve representar uma
responsabilização em face dos atos de desrespeito à dignidade do ser humano, de violação
dos direitos de um cidadão, apesar de este cidadão ser “apenas uma criança ou
adolescente” (CRAMI, 2002, p. 32). Por outro lado, não deve atuar contra o agressor,
fazendo caracterizar a lei do “Talião — olho por olho, dente-por-dente (...) e sim como (...)
instrumento indispensável da contenção do fenômeno” (AZEVEDO E GUERRA apud
CRAMI, 2002, p. 37).
O fluxo de atendimento é formado pelas instituições de políticas sociais (de saúde,
educação, assistência, trabalho, cultura, lazer, profissionalização), bem como por serviços
69
de proteção especial e ONGs que atuam nestas áreas. Seu objetivo é cumprir as
determinações oriundas do fluxo de defesa de direitos e do fluxo de responsabilização, e,
ainda, prestar-lhes informações (FALEIROS et alii, 2003).
O fluxo de defesa de direitos é composto pelos Conselhos Tutelares, Varas da Infância e
Juventude, Ministério Público, Defensoria Pública e Centros de Defesa. Suas principais
funções consistem em garantir a defesa dos direitos de todos os envolvidos na situação de
violência sexual, para que não haja violação a seus direitos (ib., id.).
Por fim, o fluxo de responsabilização é composto pelas Delegacias de Polícia, Delegacias
Especializadas (de Proteção à Criança e ao Adolescente, de Defesa da Mulher), Instituto
Médico Legal, Varas Criminais, Ministério Público etc. A principal função é promover
judicialmente a responsabilização do agressor, proteger a sociedade, fazer cumprir a lei,
articulando-se com o fluxo de defesa de direitos e o de atendimento.
1.5. Interdito sexual das relações incestuosas: normatização
A observação superficial do interdito sexual do incesto pode levar à conclusão de que se
todos os homens criaram uma lei proibindo as relações entre parentes consangüíneos —
incestuosas —, é porque essa lei correspondia à própria “natureza humana”. Contudo, a
história demonstra que vários povos prescrevem o casamento entre parentes consangüíneos
(o casamento entre irmãos e irmãs era legítimo no Hawaí, no seio das dinastias faraônicas e
entre pessoas menos favorecidas no Egito romano, o mesmo ocorrendo entre pai e filha
entre os azande e mãe e filho entre os Mbuti) ( MIDDLETON apud SAFFIOTI, 1992).
70
Mesmo nas sociedades que hoje proíbem o incesto, alhures, encontramos exemplos de seus
membros mais ilustres que transgrediram as leis do incesto. No antigo Egito, as relações
incestuosas entre irmãos eram determinadas pelos faraós “em homenagem ao mito dos
deuses Ísis e Osíris, o que durou até a dinastia dos Ptolomeus Cleópatra casou-se com
seu irmão Ptolomeus XII” (COHEN, 1993, p. 15).
Outros exemplos são encontrados também entre os reis peruanos e no Extremo Oriente,
especialmente na Tailândia, na Birmânia, na China e no Japão. Ainda, o Antigo
Testamento e a Mitologia Grega apresentam inúmeros casos de incesto. Abraão casa-se
com Sara, sua meia-irmã; na Mitologia Grega, encontramos o caso de Zeus, que é o mais
conhecido, pois ele se disfarçou de serpente para manter uma relação incestogênica com
sua irmã Réia (COHEN, 1993).
Segundo Nathan (1997), as culturas “tradicionais”, especialmente aquelas que souberam
preservar sua coerência, possuem dificuldade em pensar o incesto biológico e, por
conseqüência, reprimi-lo. O incesto é cultural e diz respeito a determinado grau de
parentesco mais ou menos afastado (prima paralela ou cruzada ou, na pior das hipóteses,
co–esposa da mãe). Muitas vezes, de forma paradoxal, pensa-se em incesto somente no
caso de parceiras não-aparentadas.
Para Lévi-Strauss apud Cohen (1997) a ambigüidade existente diante do tabu do incesto
ocorre porque o ser humano é ao mesmo tempo um ser biológico (produto da natureza) e
um ser social (produto da cultura), o que provoca os conflitos existenciais.
71
A constituição da família é formada por dois grupos que se casam fora de seu próprio
grupo. A realização do casamento nas sociedades primitivas é proveniente dos interesses
dos grupos e não dos indivíduos. A proibição do incesto criava uma dependência recíproca
entre as famílias, impondo a criação de novas famílias, para que houvesse a perpetuação.
Assim, o conjunto de regras existentes sobre os relacionamentos sexuais — “o tabu do
incesto” — visava a impedir que as famílias se fechassem em unidades singulares, auto-
suficientes (LÉVI-STRAUSS, 1980).
As regras de proibição do incesto organizam, de forma dúplice, a identidade do grupo,
impondo seus limites com o mundo exterior proibições em relação ao mundo exterior
; e o esqueleto de sua estrutura interna proibições em relação ao interior . Assim, a
proibição cultural do incesto define, em um só movimento, atingindo todo indivíduo, uma
estrutura dicotômica do grupo os afins e os aliados , e os limites desse grupo os
humanos e os “bárbaros” (NATHAN, 1997).
Em face do parentesco biológico, as regras de proibição do incesto apresentam-se apenas
para evitar a possibilidade de homozigose de genes com efeito recessivo. Contudo, frente
ao parentesco cultural, a proibição de tais relações ganha relevância, diante de seu efeito
estruturante, ao proporcionar a convivência familiar, tornando-se possível que o filho
exerça uma diferenciação simbólica do pai (COHEN, 1997). Lado outro, o exercício da
função de pai permitirá ao indivíduo que ele saia do mundo das fantasias, onde tudo é
possível, proporcionando-lhe o ingresso no mundo dos fatos, onde existem limites e
proibições (COHEN, 1997).
72
Assim, segundo Cohen (1997, p. 212-213), a proibição do incesto oferece ao indivíduo
uma nova estrutura psíquica e social. Na esfera psicológica, “a proibição dos desejos
edípicos (incestuosos), o não é um ordenador mental e emocional (afetivo-cognitivo) e
permite ao indivíduo estruturar o superego e desenvolver o ego”.
O ego, mais enriquecido, dá ao indivíduo a noção de limites, proporcionando-lhe uma
maior autonomia; a estruturação do superego permite a simbolização da função paterna,
dando-lhe oportunidade para conhecer e aceitar a lei da cultura. Por fim, no âmbito social,
a proibição das relações incestogênicas permite o alcance da exogamia. Ao ser humano
cabe a difícil missão de dominar o complexo de Édipo, sendo que cada qual a enfrentará à
sua forma (COHEN, 1997).
Para Kehl (2003, p.173) “a proibição do incesto e da sexuação resumem o papel
fundamental que a família deve desempenhar na “constituição do sujeito””. Porém, diante
da necessidade de estruturação psíquica e social do indivíduo, e, como forma de controle
social das condutas humanas, surge a normatização das mesmas, o que é efetuado através
da lei. A normatização das condutas humanas através da lei, ou seja, da ingerência do
aparelho estatal nas relações sociais, traduz, ou deveria traduzir, na época de sua
elaboração e início de vigência — entrada em vigor —, os costumes, as convenções
sociais, as ideologias, os anseios etc. de determinado (s) grupo (s), por fim, a cultura de um
povo em uma determinada época. Contudo, as convenções sociais nem sempre são
observadas pela totalidade dos componentes daquele grupo e, ainda, as práticas sociais
podem representar um ritmo de modificação mais rápido do que a lei.
73
Pode-se considerar que essa normatização das condutas humanas através da lei encontra
legitimidade na interdição do incesto, pois esta é a base de todas as proibições, por tratar-se
da “primeira” lei. É a lei fundante e estruturante do sujeito, conseqüentemente da
sociedade e obviamente do ordenamento jurídico. Foi somente a partir desta primeira lei,
quando o indivíduo teve acesso à linguagem, que pôde perceber, com a proibição, que
haviam outros totens, e que pôde existir a cultura” (PEREIRA, 2003, p. 27).
No que tange à normatização da proibição das relações incestuosas, isto é, à busca do
controle social das condutas através da lei, encontramos os interditos e sanções no Código
Civil (2002), no Código Penal (1940) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
1.5.1. Código Civil
23
O Código Civil brasileiro, que entrou em vigência em janeiro de 2003, na esteira do
Código Civil anterior (1917), trouxe em seu artigo 1.521 vários impedimentos para o
casamento, representando os costumes, as convenções sociais e as ideologias que
envolvem, ou envolveram, em determinado período, a família e a sociedade. Em seu caput,
o art. 1521 representa o interdito: não podem casar , cujo desrespeito acarreta a
nulidade do ato civil (casamento – art. 1548, inciso II – Código Civil).
Diante do propósito do presente estudo, interessam apenas os cinco primeiros incisos do
referido artigo:
23
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
74
I – Os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II – Os afins em linha reta, seja o vínculo legítimo ou ilegítimo;
III – O adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi
do adotante;
IV – Os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até terceiro grau
inclusive;
V - O adotado com o filho do adotante.
A preocupação do legislador civilista é clara, visa a evitar as uniões entre pessoas
investidas de autoridade com aquelas pelas quais devem ser responsáveis. Essa
preocupação é expressa nos três primeiros incisos (SAFFIOTI, 1992). Assim, o Código
Civil reforça, no plano legal, o tabu do incesto.
Embora haja um hiato entre o nível de Estado e o da sociedade civil, este reforço
faz sentido numa sociedade que perdeu ‘a consciência da importância
fundamental do tabu do incesto para o desenvolvimento e a totalidade
psicológica’. (STEIN, 1978, p. 81). O CC representa, poder-se-ia dizer, a
consciência jurídica das funções positivas do tabu do incesto. Rigorosamente, a
nível social, este tabu caiu no inconsciente, uma vez que verbalizá-lo tornou-se
um tabu maior. A consciência não pode, portanto, elaborar a precaução para não
se cometer o incesto, já que o tabu funciona de modo autônomo no
inconsciente.’Quanto então o instinto sexual ameaça transpor a barreira do
incesto, a sexualidade é vivida como algo perigoso e pecaminoso. Desta forma, o
conflito moral, que na verdade se refere antes ao mistério do incesto, passa a
enfocar a sexualidade instintiva. Ao invés de temer o incesto, tememos a
sexualidade, assim como nossos instintos em geral’
(STEIN, apud
SAFFIOTI, 1992, p. 15).
Também na primeira parte do inciso IV e no V temos a proibição dos casamentos díspares,
ou seja, entre irmãos e na segunda parte do inciso IV o matrimônio entre os colaterais, até
terceiro grau inclusive, o que representa a evidente preocupação com a eugenia, o que não
75
se pode negar nos outros quatro incisos. Contudo, nesse inciso, especificamente, deve-se
mencionar o disposto no Decreto-Lei nº 3.200, de 19/04/1941, dispositivo legal que prevê
que parentes de terceiro grau, ao pretenderem se casar devem requerer, ao juiz, a nomeação
de dois médicos para examiná-los e atestar sua sanidade.
O Decreto-lei nº 3.200/41 continua em vigor e reforça a ideologia de que os filhos de
parentes consangüíneos serão, com muita probabilidade, produtos teratológicos, mas, os
estudos contemporâneos não corroboram a referida ideologia, não havendo nenhum exame
a ser realizado no casal que demonstre a probabilidade de danos à prole.
Apesar dos avanços tecnológicos em relação às várias áreas do saber e, especificamente, da
medicina, o Decreto-lei nº 3.200/41 permanece em vigor, demonstrando desajuste com os
anseios sociais e científicos, pois em não havendo comprovado dano à prole não há razão
de manter-se a vigência do referido Decreto-lei, que não possui legitimidade nem social,
tampouco científica.
Questão curiosa é que, mesmo com a vigência do Código Civil Novo (2003), nenhum
avanço ocorreu em relação ao interdito das relações incestuosas, decorrido o lapso
temporal de mais de 80 anos entre o Código Civil anterior (1917) e o Novo (2003).
Mantém-se o arcaísmo das práticas sociais higienistas e sanitaristas do final do século XIX
e do início do Século XX.
Importante frisar que os interditos relacionados ao incesto, presentes no Código Civil, não
fazem a distinção entre relações incestuosas com ou sem violência. Proibe-se o matrimônio
76
entre os consangüíneos, por questões de eugenia — como mencionado acima , sem
fundamento científico, e, também, sob o manto da moral e dos bons costumes.
Em relação ao Código Civil de 1917, que inspirou as regras atuais concernentes aos
interditos do incesto o Código Civil de 2003 apenas as reproduziu, com pequenas
inovações sem relevância , nasceu sob o manto da “política higiênica” século XIX e
início do século XX , visando ao controle do corpo social através de parâmetros
estabelecidos pelos médicos.
Nesse sentido, as colocações do jurista Viveiros de Castro assumem um
significado claro: a justiça e o pensamento jurídico não ficariam diferentes à
formação de trabalhadores em seu sentido moral e sexual. As atenções sobre o
lado sexual dos indivíduos inseriram-se numa política sexual (produção da
sexualidade) mais ampla, iniciada na Europa, a partir do século XIX. Segundo
Foucault, os médicos primeiramente, os pedagogos e, mais tarde, os psiquiatras
vão higienizar as relações familiares, tentar normatizar as condutas e os prazeres
sexuais, tendo como alvos principais a mulher e a criança
(ESTEVES, 1989,
p. 27).
1.5.2. Código Penal
24
A normatização das proibições das relações incestuosas se completa com o Código Penal,
legislação codificada destinada a descrição dos crimes e suas penas. Esse Código é
encarregado da proibição das relações incestuosas, praticadas com violência, ou grave
ameaça, quando a vítima é tolhida de sua liberdade sexual. Contudo, no Brasil, Turquia,
Portugal, Luxemburgo, Bélgica, Espanha e França o incesto não é considerado como um
24
Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940.
77
crime autônomo, sendo que o Código Penal destes países considera o incesto apenas um
agravante de um crime sexual, ou seja, um plus para aumentar a pena (COHEN, 1997).
As definições legais sobre violência sexual variam de acordo com a legislação de cada
país. A maioria delas considera, para a incriminação, a necessidade do uso da força física
(violência) ou da intimidação (grave ameaça) e a discordância da vítima (HEIRICH apud
FERREIRA, 2000).
O termo vítima, no aspecto jurídico, considera o sujeito passivo do ilícito penal, isto é, da
pessoa contra a qual se comete o crime (FERREIRA, 1986).
No Brasil colônia, a responsabilização para o crime de estupro consistia na aplicação de
pena de morte, banida de nossa legislação com a promulgação do Código Penal de 1830.
Contudo, as sanções aplicadas por este Código variavam de acordo com a condição de
“honestidade” da vítima, mesmo não tendo a honestidade uma definição explícita.
Atribuía-se, na maioria das vezes, a condição de desonestidade para as mulheres solteiras e
não mais virgens, bem como para as trabalhadoras do sexo.
O segundo Código Penal brasileiro, de 1890, seguindo o mesmo diapasão do anterior, ou
seja, mesmo não esclarecendo o conceito de honestidade, distinguia, claramente, as
mulheres entre “virgens ou não, mas honestas”, daquelas consideradas “desonestas”
perante a lei (HUMAN RIGHTS WATCH apud FERREIRA, 2000).
78
Já o Código Penal de 1940, ainda vigente com suas inúmeras e incontáveis modificações,
retirou a referência expressa à honestidade, implantando a igualdade de proteção jurídica
para todas as mulheres.
Com a edição da Lei nº 8072, de 25 de julho de 1.990 — Lei dos Crimes Hediondos —, o
estupro e o atentado violento ao pudor passaram a ser assim considerados
25
. Dentre as
conseqüências introduzidas pela referida norma, além do aumento da pena, o agressor
perde o direito a vários benefícios, entre eles fiança, liberdade provisória, anistia, graça ou
indulto, devendo a pena ser cumprida integralmente em regime fechado.
No Código Penal vigente, os denominados crimes sexuais estão dispostos no Título VI e
seus Capítulos (I a VI). Esses crimes, de natureza sexual, mesmo diante de suas múltiplas e
complexas conseqüências para vítima, não são considerados crimes contra a pessoa, mas
contra os costumes.
Dentre as várias espécies de crimes sexuais descritos no Código Penal, os que mais
interessam ao presente estudo, em especial, são os elencados no Capítulo I do referido
Título, os chamados crimes contra a liberdade sexual, notadamente, o estupro (art. 213, do
Código Penal) e o atentado violento ao pudor (art. 214, do Código Penal).
Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
25
Apesar das discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da aplicação da Lei nº 8072/90 aos casos de
estupro e de atentado violento ao pudor, especialmente aqueles sem violência real, julgados recentes, como o
da “apelação” nº 907.963.3/8 – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo -, os Tribunais têm confirmado a
aplicação da referida Lei.
79
Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou
permitir que com ele se pratique ato libidinoso, diverso da conjunção carnal:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
A classificação do estupro e do atentado violento ao pudor como crimes contra os
costumes e não contra a pessoa demonstra o tratamento de descaso e de desvalorização da
pessoa agredida, os hábitos e costumes são valorizados, em detrimento da pessoa
(VERARDO, 2000).
Definir estupro como crime contra os costumes, e não contra a pessoa, significa
considerar a sociedade, e não a mulher, como vítima (...). O direito da mulher à
integridade física, quando subordinado ao bem jurídico maior “costumes”, abre
as portas para a distinção entre mulheres “honestas” e “desonestas”. Se a vítima
for descrita como não cumpridora do seu papel em relação aos costumes – se,
por exemplo, ela não for virgem ou tiver mantido relações sexuais fora do
casamento – fica muito difícil provar o estupro
(AMÉRICAS WATCH
apud VERARDO, 2000, p. 28).
Ao considerar os dois crimes como hediondos, a Lei nº 8.072/90 aumentou e igualou suas
penas, de forma abstrata, bem como impôs maior rigorismo ao proibir: anistia, graça e
indulto; fiança e liberdade provisória; e progressão de regime, com possibilidade de
livramento condicional com cumprimento mínimo de 2/3 da pena imposta, salvo aos
reincidentes específicos. Porém, eles continuam sendo considerados, legalmente, como
crimes contra os costumes.
No caso de estupro, somente o homem pode praticar a conduta criminosa, pois só ele pode
manter conjunção carnal com a mulher. A expressão refere-se ao coito denominado
normal, isto é, a penetração do membro viril — pênis —, na vagina da mulher (completa
80
ou incompleta). Contudo, nada impede que haja participação de outra pessoa na prática do
crime, até mesmo uma mulher — segurando a vítima, por exemplo —, o que fará com que
ela também seja responsabilizada. Também, pode ocorrer a responsabilização do sujeito
por omissão, quando ele podia ou tinha o dever de agir para evitar o fato e não o fez
(MIRABETE, 1999). Assim, somente a mulher pode ser vítima de estupro.
Essencial para a caracterização do estupro é a violência ou grave ameaça praticada pelo
agressor para alcançar seu objetivo. A violência caracterizadora do estupro é o emprego de
força física contra a vítima, causando-lhe ou não lesões corporais; enquanto a grave
ameaça, é aquela em que a vítima não pode resistir de acordo com as circunstâncias
pessoais, não importando se justa ou não a promessa do mal injusto (MIRABETE, 1999).
Já o crime de atentado violento ao pudor, ao contrário do que ocorre com o de estupro,
pode ser praticado tanto por homem como por mulher, que podem constranger outrem a
atos libidinosos diversos da conjunção carnal. Portanto, tanto o homem como a mulher
podem ser vítimas de atentado violento ao pudor. Para sua caracterização, é essencial
também que o agressor tenha utilizado violência ou grave ameaça contra a vítima.
A lei, ao se referir ao ato libidinoso diverso da conjunção carnal, inclui todo tipo de ação
atentatória ao pudor, praticada com o objetivo lascivo, sejam sucedâneos da conjunção
carnal ou não. Até mesmo o beijo lascivo ou com fim erótico é considerado ato libidinoso.
Ainda, a lei exige sempre o contato físico com o ofendido, uma vez que prevê a ação do
agente com ou sobre a vítima. Contudo, o ato pode ser praticado com terceiro.
Ato libidinoso, necessário à caracterização do crime de atentado violento ao
pudor, é todo aquele que serve de desafogo à concupiscência; assim é o ato
81
lascivo, voluptuoso, dirigido para a satisfação do instinto sexual (Tribunal de
Justiça de Santa Catarina – JCAT 77/690-1).
Há de se entender como libidinoso todo fato libidinoso diverso da conjunção
carnal que se apresenta como desafogo
(completo ou incompleto) da
concupiscência (Tribunal de Justiça de São Paulo – RJTJESP
17/493).
Segundo Eluf (1999) os dois crimes deveriam ser fundidos em um só, com o nome, talvez,
de “violação sexual”, abrangendo os dois sexos, pois a extensão do conceito de atentado
violento ao pudor é demasiadamente ampla e a pena, algumas vezes, excessiva para o
comportamento do agente, que pode ir de um simples beijo não consentido ao coito anal.
Nos dois crimes, estupro e atentado violento ao pudor, não há diferença de penalização —
ambos têm a mesma pena —, porém a diferença de tratamento jurídico é evidente, pois no
caso do estupro, a punição incide na interferência provocada por ele na organização
familiar. O estupro é elencado como um atentado contra a família, e não contra a mulher,
por essa razão ele está classificado nos crimes contra os costumes e não contra a pessoa. A
previsão legal da interrupção da gravidez em caso de estupro — “aborto sentimental” —,
confirma que o estupro é considerado um atentado contra a família e não contra a mulher
(VERARDO, 2000).
Tanto nos casos de estupro quanto de atentado violento ao pudor, a Lei nº 8.072/90, em seu
art. 9º, prevê um acréscimo de metade da pena, estando a vítima em qualquer das
condições do art. 224 do Código Penal (menor de catorze anos, alienada ou débil mental e
quando há impossibilidade de a vítima oferecer resistência), caso tenha ocorrido morte ou
lesões corporais graves em razão do crime praticado (art. 223 do Código Penal).
82
Também o artigo 226, do Código Penal, traz possibilidades de aumento de pena (quarta
parte), caso ocorra alguma das hipóteses nele previstas. Dentre as hipóteses previstas no
art. 226, temos: “se o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou
curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem
autoridade sobre ela” (grifos nossos).
Questão importante para o presente estudo é o disposto no art. 224, do Código Penal,
especialmente na alínea “a”, ou seja, a chamada presunção de violência nos casos de
crimes contra os costumes, e, portanto, também nos de estupro e atentado violento ao
pudor.
Art. 224. Presume-se a violência se a vítima:
a) não é maior de 14 (catorze) anos;
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.
O Código Penal traz um conjunto de condições nas quais não está presente o
constrangimento, pelo uso de força, ou a grave ameaça, mas que caracterizam, igualmente,
o estupro e o atentado violento ao pudor.
Em relação às vítimas alienadas ou débeis mentais, é fundamental ressaltar que essa
condição a impede da compreensão quanto aos valores sociais e morais relacionados com o
exercício da sexualidade.
83
As principais causas impeditivas para que a vítima ofereça resistência são: a idade
avançada, o estado de embriaguez, a hipnose, as enfermidades debilitantes e as deficiências
físicas limitadoras (LIMA apud FERREIRA, 2000).
Nos EUA, particular atenção tem sido dada, nos últimos anos, ao uso de
hipnoanalgésicos
26
potentes ou de drogas de ação similar que atuam sobre o sistema
nervoso central. Na maioria das vezes, esses tipos de medicamentos são misturados em
bebidas alcoólicas, sem o consentimento ou o conhecimento da vítima. O agressor,
aproveitando-se dos diferentes graus de rebaixamento do estado de consciência da vítima,
termina por promover a violência sexual. Mesmo considerando que os padrões desse uso
ilícito ainda sejam pouco conhecidos, tanto a justiça como os órgãos responsáveis por
políticas contra as drogas abordam a questão como um problema iminente (SAUM &
INCIARDI, 1997; ANGLIN, SPEARS, HUTSON, 1997; RICKERT & WIEMANN, 1998,
apud FERREIRA, 2000).
Os três casos previstos no artigo 224 demonstram com clareza que o legislador penalista -
criminal preocupou-se com a possibilidade de maior ou menor reação da vítima em relação
ao ato sofrido, não se exigindo qualquer prova de violência real ou grave ameaça para
caracterização do estupro ou do atentado violento ao pudor. Em relação à alínea “a”, o
Código Penal Brasileiro estabelece como marco cronológico, para a caracterização da
violência presumida, a idade de 14 anos. O fundamento legal do dispositivo, nesses casos,
26
“Analgésicos são depressores seletivos do sistema nervoso central empregados para aliviar a dor sem
causar a perda da consciência. Agem por elevar o limiar da percepção da dor”. Já os hipnoanalgésicos são
analgésicos que possuem sua capacidade potencializada para levar ao estado de inconsciência, além de aliviar
a dor, como alguns derivados da morfina, entre eles a codeína, oximorfona e, ainda, a endorfina, entre outros.
(KOROLKOVAS et alii, 1988, p. 159).
84
é determinado pela condição de innocencia consilii do sujeito passivo, traduzida por sua
completa falta de consciência em consentir validamente, pelo desconhecimento dos atos
sexuais e de suas conseqüências, o que torna o consentimento absolutamente nulo, frente
ao ordenamento jurídico. Portanto, mesmo na hipótese em que essas vítimas tenham
concordado com o ato sexual, considera-se esse “consentimento” destituído de valor legal
(PINHO, apud FERREIRA, 2000).
A doutrina criminal sempre discutiu sobre a natureza da presunção da idade da vítima. A
maioria dos doutrinadores inclina-se à presunção relativa (juris tantum admite prova em
contrário), mas há os defensores da presunção absoluta (juris et de jure — não admite
prova em contrário). Contudo, o entendimento dos Tribunais é praticamente pacífico no
sentido de que a presunção é relativa, ou seja, admite prova em contrário.
Uma corrente ganha força nos Tribunais, defendendo a posição de que o temor reverencial,
mesmo não estando presente expressamente na Lei, afasta a necessidade de violência real –
física - e grave ameaça contra a vítima, presumindo-se a violência.
Estupro de pai em relação à filha. Resistência da vítima inibida pela submissão à
vontade paterna decorrente do temor reverencial. Condenação mantida
(Tribunal de Justiça de Santa Catarina – JCAT – 69/500).
Na cópula de mulher virgem maior de 14 anos de idade com ascendente há,
necessariamente, da parte deste, violência moral acrescida de temor reverencial,
por si só capaz de tolher a defesa da vítima pelo respeito e obediência devidos ao
ofensor, irrelevante, portanto, para a configuração do estupro que não tenha
havido grave ameaça direta ou explícita
(Tribunal de Justiça de São Paulo
RT – 639/292).
85
Outro aspecto relevante é o disposto no art. 225, inciso II, do Código Penal, ou seja, o fato
de, em se tratando de crime praticado com “abuso de pátrio poder, ou da qualidade de
padrasto, tutor ou curador, a ação penal é pública incondicionada”, isto é, o processo de
responsabilização do agressor perante o Poder Judiciário não depende da vontade da vítima
ou de seu(s) representante(s) legal (legais).
O Código Penal não contempla expressamente o incesto ou as relações sexuais incestuosas,
como criminosas por si só - portanto, passíveis de aplicação de pena. Entretanto, visando a
impedir tais relações entre parentes consangüíneos, por possuírem a característica da
prevalência da autoridade estabelecida em razão da condição do agressor (pai, padrasto,
irmão, avô, tio etc.), o Código Penal traz causas de aumento de pena e, também, a
possibilidade de início da ação judicial de responsabilização do agressor
independentemente da vontade da vítima ou de seu (s) responsável (eis).
1.5.3. Estatuto da Criança e do Adolescente
27
No Estatuto da Criança e do Adolescente, ao contrário do que muitos pensam, não há a
previsão legal para nenhum crime ou violação sexual praticada contra a criança ou o
adolescente. Dentre os vários artigos existentes em legislação especial
28
, excluindo-se os
princípios gerais que norteiam todas as condutas e atividades voltadas ao público infanto-
27
Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990.
28
Criada especificamente para contemplar e zelar pelos direitos e deveres das crianças e dos adolescentes.
86
juvenil (princípio da proteção integral e da prioridade absoluta), dois nos chamam a
atenção, em razão da proposta do estudo.
O art. 129, trata das medidas aplicáveis aos pais ou responsável:
Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável:
................................................
X – suspensão ou destituição do pátrio poder.
O presente artigo deve ser analisado em conjunto com o art. 1.637 e artigo 1.638, incisos
III e IV, do Código Civil. A saber:
Art. 1637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a
eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum
parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela
segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando
convenha.
Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou
à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena
exceda a 2 (dois) anos de prisão
.
Art. 1638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
.........................................................
III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
Portanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente, juntamente com o Código Civil,
contemplam a possibilidade de perda ou suspensão do poder familiar (denominado alhures
como pátrio poder), pela prática de violência sexual contra a criança e contra o
87
adolescente. Importante que o inciso III demonstra que não há necessidade de a vítima ser
o filho ou a filha do agressor para que este incida na perda do poder familiar.
Também, o Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê a possibilidade de afastamento do
agressor da moradia comum, nas hipóteses de maus-tratos, opressão ou violências sexuais
impostas pelos pais ou responsáveis (art. 130).
Apesar da existência de previsão legal, tal medida deve ser aplicada com cautela diante do
caso concreto, pois muitas vezes, de imediato, pode não ser a mais adequada.
No aspecto criminal, em um dos casos analisados para a realização da presente pesquisa
29
,
mas que não foi inserido porque não satisfazia os requisitos de estudo, houve a aplicação
do artigo 232, do Estatuto da Criança e do Adolescente
30
, sendo o agressor condenado à
pena de 06 (seis) meses de detenção em regime aberto.
No próximo capítulo tratamos da metodologia utilizada para a realização da presente
pesquisa.
29
Caso em que B49MT importunava A11F constantemente, convidando-a para “fazerem besteirinha” (sic),
tentando entrar em seu quarto e passar as mãos por seu corpo.
30
“Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a
constrangimento”.
88
Capítulo II
O DESENHO DA PESQUISA
89
2.1. Metodologia
2.1.1 A produção do conhecimento
... o espírito científico é essencialmente uma justificação do saber, um
alargamento dos quadros do conhecimento. Julga seu passado histórico,
condenando-o. Sua estrutura é a consciência de suas faltas históricas.
Cientificamente, pensa-se o verdadeiro como retificação histórica de um longo
erro, pensa-se a experiência como a retificação da ilusão comum e primeira.
Toda a vida intelectual da ciência move-se dialeticamente sobre esta diferencial
do homem, na fronteira do desconhecido. A própria essência da reflexão, é
compreender que não se compreendera
(BACHELARD, 1968, p. 147-
148).
Em razão da situação existencial do homem no mundo, surge a necessidade de desvelar
esse mundo, de dominá-lo e, para desvelar e dominar o mundo, o homem precisa
interpretar a si próprio e ao mundo em que vive, atribuindo-lhe significados. Na busca de
seu mister, o homem cria intelectualmente reproduções significativas da realidade. Essas
representações da realidade podem ser chamadas de conhecimento (KÖCHE, 1997).
Dependendo a forma como se chega a essa representação significativa, o conhecimento é
classificado em diversos tipos: empírico, filosófico, teológico, artístico e cientifico
(KÖCHE, 1997; CERVO e BERVIAN, 1996).
O senso comum, conhecimento ordinário ou empírico é a forma mais utilizada pelo homem
na busca da representação significativa (KÖCHE, 1997). O conhecimento empírico é
também denominado conhecimento vulgar, do povo, pois é obtido ao acaso, de forma
ametódica e assistemática (CERVO e BERVIAN, 1996).
90
Esse conhecimento surge como conseqüência da necessidade de resolver
problemas imediatos, que aparecem na vida prática e decorrem do contato direto
com os atos e fenômenos que vão acontecendo no dia-a-dia, percebidos
principalmente através da percepção sensorial
(KÖCHE, 1997, p. 24).
A necessidade de o homem não assumir uma posição meramente passiva, de espectador
dos fenômenos, sem ação e controle sobre os mesmos, faz surgir o conhecimento científico
que vai além do empírico, buscando conhecer, além do fenômeno, suas causas e leis
(CERVO e BERVIAN, 1996).
A ciência pode ser considerada como um outro mundo, artificial, construído sobre o
mundo físico e emocional do homem, tratando-se de uma tentativa de reconstrução do
mundo e do homem, através de termos simbólicos e conceituais (MOREIRA, 2002).
A ciência, como modalidade de conhecimento, só se processa como resultado de
articulação do lógico como real, do teórico ao empírico. Não se reduz a um mero
levantamento e exposição de fatos a uma coleção de dados. Estes precisam ser
articulados mediante uma leitura teórica. Só a teoria pode caracterizar como
científicos os dados empíricos. Mas, em compensação, ela só gera ciência se
estiver articulando dados empíricos
(SEVERINO, 2000, p. 149).
Acrescente-se, assim, que para a construção de conhecimento científico faz-se necessário
não apenas pesquisar, em sentido estrito, mas em sentido amplo, explorar o objeto de
conhecimento, expondo-o e correlacionando-o aos paradigmas epistemológicos e teóricos
existentes e aceitos pela comunidade científica.
Para que ocorra tal produção de conhecimento, há um leque de perspectivas de
investigação, que se enquadram as diversas visões que se podem ter sobre o social. Dentre
91
elas tem-se, o positivismo, o interpretativismo, a ciência social crítica e o relativismo
31
. Em
outras palavras, há vários paradigmas. Tais paradigmas ou perspectivas paradigmáticas
estão, deliberadamente ou não, subjacentes às abordagens de investigação.
Nesse sentido faz-se necessário ao pesquisador conhecer e dominar, de acordo com sua
perspectiva e suas necessidades, e de "forma adequada" ao seu objeto, o referencial teórico
que lhe dará suporte para que transforme os dados obtidos em informação e os analise. Isso
distingue a pesquisa de um simples amontoado de dados e de informações meramente
descritivas, exigindo, também, e tendo como critério de validação a análise ou descrição de
tais dados.
Cabe sublinhar que o conhecimento dos referenciais teóricos, ou paradigmas tem-se
tornado cada vez mais dificultoso ao pesquisador, pois os questionamentos aos
pressupostos e procedimentos que desde muito orientavam as atividades científicas e
conferiam credibilidade aos seus resultados são cada vez mais constantes e
avassaladores, não só no que tange à própria ciência, mas também em outras áreas do
conhecimento, como na filosofia, na religião e na arte.
Falar sobre ciência e conhecimento científico atualmente constitui uma tarefa
difícil. Novos paradigmas, gerados tanto no âmbito da própria ciência como em
outras áreas do conhecimento, vêm questionando pressupostos e procedimentos
que até então orientavam a atividade científica e conferiam credibilidade aos
seus resultados...
(ALVES-MAZZOTTI e GEWANDSZNAJDER ,
2002, p. 109)
31
Ponto de vista epistemológico (adotado pela sofística, ceticismo, pragmatismo etc.) que afirma a
relatividade do conhecimento humano e a incognoscibilidade do absoluto e da verdade, em razão de fatores
aleatórios e ou subjetivos (tais como interesses, contextos históricos etc.) inerentes ao processo cognitivo –
doutrina segundo a qual valores morais não apresentam validade universal e absoluta, diversificando-se ao
sabor de circunstâncias históricas, políticas e culturais (HOUAISS, 2001, p. 2421).
92
Destarte, frise-se que na escolha do referencial o importante é a adequação ao que se
pretende investigar. Contudo, isso não significa um verdadeiro "vale tudo", sob o pretexto
de que a minha "lente", "meu olhar" é o melhor, é este, julgando poder prescindir de
evidências e de argumentação sólida.
A falácia do "vale tudo" encontra resistência na necessidade de validação dos resultados
frente ao paradigma escolhido e a argumentação sólida, exigindo-se, “além do referencial
epistemológico preciso e rigoroso, capacidade de domínio e manuseio de um conjunto de
métodos e técnicas específicos de cada ciência” (SEVERINO, 1996, p. 58). Então, faz-se
necessária a aplicação de métodos e técnicas de investigação, adequados aos objetos
pesquisados (SEVERINO, 2002).
O princípio fundamental para o pesquisador, em seus trabalhos, é a consciência de que ele
se encontra em processo de construção do conhecimento.
Ninguém possui uma compreensão total de todas as coisas, nem mesmo a
compreensão total de uma única coisa. Vamos arranhando as coisas passo a
passo, momento a momento, descobrindo novos sentidos, ampliando
compreensões, penetrando mais a fundo no seu mistério
(GUARESCHI,
2001, p. 245).
O objetivo de todos é alcançar a verdade, porém, nenhum mortal é seu dono. A
representação das coisas e objetos que o homem busca conhecer se oculta e se manifesta
sob múltiplas formas. Nem sempre aquilo que se manifesta, que aparece em dado momento
é a totalidade do objeto, da realidade investigada (CERVO e BERVIAN, 1996).
93
Questionamos uma concepção de verdade com caráter transcendental e absoluto.
Os critérios de verdade são construções, contingentes e determinados pelas
práticas sociais, convencionados socialmente e sofrem modificações constantes
em função das próprias transformações sofridas pelos grupos sociais
(FERREIRA et alii, 2002, p. 248).
Mesmo diante de todos os fatores que influenciam na investigação, sejam individuais,
"sociais" ou "estruturais" do fenômeno, ou ainda, as características individuais,
psicológicas das pessoas envolvidas sujeito, pesquisador o investigador jamais pode
perder de vista o objeto da pesquisa. Segundo Guareschi (2003), o mais importante é que
sempre se examine o objeto.
2.1.2. A escolha da metodologia
Em sentido genérico, podemos conceituar o método de pesquisa como a ordem que deve
ser imposta aos diferentes processos necessários para atingir uma finalidade, ou resultado
desejado. Entende-se por método, nas ciências, o conjunto de processos que o espírito
humano deve empregar na investigação e demonstração da verdade (CERVO e BERVIAN,
1996).
Método não se inventa. Na escolha de um método, considera-se o objeto da pesquisa. A
opção por um método em pesquisa corresponde à escolha de um procedimento sistemático
adequado à descrição e à explicação do fenômeno investigado. A escolha de um bom
método torna-se fator de segurança e economia para a pesquisa.
94
Na construção do conhecimento, a pesquisa científica exige a busca e a transformação de
informações, utilizando-se se um trabalho metódico, seguindo preceitos e regras pré-
determinadas, de forma sistemática, organizada, racional e obediente. Podem-se
reconhecer duas categorias fundamentais de pesquisa científica empírica: a “pesquisa
experimental e a pesquisa não-experimental” (MOREIRA, 2002).
A pesquisa experimental é aquela em que se realizam experimentos para a comprovação de
hipóteses, com a manipulação de algumas variáveis e a observação dos efeitos das devidas
manipulações. Ela sempre foi tida como padrão nas áreas físicas e biológicas (MOREIRA,
2002).
A definição de pesquisa não-experimental é alcançada por exclusão. Toda aquela que não
se enquadra na categoria de pesquisa experimental é considerada não-experimental. Não se
trata de metodologia inferior de pesquisa, mas muitas vezes é mal compreendida, e pouco
aceita, pois, historicamente, o termo “experimento”, em vários momentos, se confundiu
com o termo “pesquisa científica” (MOREIRA, 2002).
Na categoria de pesquisa não-experimental temos duas vertentes: a pesquisa qualitativa e a
pesquisa quantitativa. A pesquisa quantitativa também é uma espécie de pesquisa
experimental , é aquela associada à necessidade de precisão numérica, de mensuração
dos fenômenos.
A expressão investigação qualitativa é utilizada como termo genérico que agrupa diversas
estratégias de investigação que partilham determinadas características, segundo Bogdan e
Biklen (1994). Ainda, para os autores, a denominação qualitativa aos dados recolhidos
95
significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais conversas, e de
complexo tratamento estatístico. A pesquisa é formulada com o objetivo de investigar os
fenômenos em toda a sua complexidade e em contexto natural.
A pesquisa qualitativa não é feita com o objetivo de responder a questões prévias ou de
testar hipóteses, como ocorre na quantitativa, o que se considera como primazia é a
compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação.
A base da pesquisa qualitativa reside na abordagem interpretativa da realidade social.
Trata-se de um modo de estudo da sociedade que prioriza a forma como as pessoas
interpretam e dão sentido às suas experiências e ao mundo em que elas vivem. Este tipo de
investigação traz diferentes abordagens, mas o objetivo da maioria é sempre o mesmo:
compreender a realidade social das pessoas, grupos e culturas (HOLLOWAY, 1999).
Várias expressões estão associadas com a investigação qualitativa, tais como:
interacionismo simbólico, perspectiva interior, Escola de Chicago, fenomenologia, estudo
de caso, etnometodologia, ecologia e método descritivo. Contudo, não significa que todas
as expressões possuem o mesmo significado, nem que algumas delas não tenham um
significado preciso quando utilizadas por determinados autores (JACOB apud BOGDAN e
BIKLEN,1994).
Em síntese, a pesquisa qualitativa permite, ao longo da investigação, uma flexibilidade
para maior aprofundamento e detalhamento dos dados coligidos, cabendo ao pesquisador
construir a realidade a partir do quadro referencial dos próprios sujeitos do estudo,
decifrando o resultado da ação humana, e não apenas descrevendo os comportamentos
96
observados. Não se trata de mera observação, mas de observação e interpretação de
situações e acontecimentos.
Por essas razões, optou-se por esse método na realização presente pesquisa. Contudo, não
foram desprezados os dados quantitativos para a realização da inferência do ponto de vista
qualitativo, razão pela qual pode-se afirmar que a presente pesquisa apresenta característica
quali-quantitativa, na perspectiva descrita por Gomes e Araújo (2003, p.7), para quem o
campo científico aponta uma tendência para o surgimento de um novo paradigma
metodológico, com vistas a atender as necessidades dos pesquisadores e superar a
dicotomia positivista x interpretativo versus quantitativo x qualitativo. Para esses autores, a
busca de superação desses modelos resultou na emergência de um modelo alternativo de
pesquisa, o chamado quanti-qualitativo, ou o inverso, quali-quantitativo, dependendo do
enfoque do trabalho.
Ao tratarmos das ciências sociais não podemos adotar o mesmo modelo de
investigação das ciências naturais, pois o seu objeto é histórico e possui uma
consciência histórico-social. Isto significa que tanto o pesquisador como os
sujeitos participantes dos grupos sociais e da sociedade darão significados e
intencionalidade às ações e às suas construções
(BARROS e LEHFELD,
2003, p.32).
Ainda, segundo Gomes e Araújo (op. cit.), “apesar da clara oposição existente entre as
duas abordagens (quantitativa x qualitativa), diferentes autores, especialmente os da área
social, colocam que o ideal é a construção de uma metodologia que consiga agrupar
aspectos de ambas perspectivas”. Demo (1995), por exemplo, afirma que “embora
metodologias alternativas facilmente se unilateralizem na qualidade política, destruindo-a
97
em conseqüência, é importante lembrar que uma não é maior, nem melhor que a outra.
Ambas são da mesma importância metodológica” (p. 231).
2.1.3. A utilização de documentos como fonte de dados
O ponto fundamental da investigação qualitativa é o modo como os seres humanos
interpretam e atribuem sentido a sua realidade subjetiva. Os pesquisadores não abordam as
pessoas como individualidades, no vazio, mas, exploram "os mundos" em que estas
pessoas estão inseridas, na globalidade do seu contexto de vida.
Para atingir o seu objetivo, a perspectiva qualitativa oferece ao cientista uma série de
ferramentas, tais como, história de vida e autobiografia, estudo de caso, entrevistas,
observação participante, análise de documentos, produção/análise de imagens etc. As
ferramentas são as formas com que o pesquisador irá coletar os dados que entende
necessários para a realização da pesquisa. Assim, uma das ferramentas utilizadas para a
coleta de dados é a pesquisa documental.
Considera-se como documento qualquer registro escrito que possa ser usado
como fonte de informação. Regulamentos, atas de reunião, livros de freqüência,
relatórios, arquivos, pareceres, etc., podem nos dizer muita coisa sobre os
princípios e normas que regem o comportamento de um grupo e sobre as
relações que se estabelecem entre os diferentes subgrupos
(ALVES-
MAZZOTTI; GEWANSDSZNAJDER, 2002, p. 169).
Um documento geralmente descreve um processo de desenvolvimento de um indivíduo ou
de um grupo, contudo, apresenta uma limitação quanto à complexidade das situações
98
referentes à capacidade do autor para compreendê-las e analisá-las adequadamente
(ANGELL; FREEDMAN, 1974).
Portanto, o recorte de jornal, a fotografia de uma cena de rua, o recorte de diário oficial, os
processos, os inquéritos, os relatórios oficiais, são tão presentativos (no sentido de estar
presentes) quanto uma entrevista ou discussão de grupo não há primazia. Nenhum pode
ser considerado mais representativo do que o outro, todos existem num determinado
momento têm uma presença, tornando redundante a própria noção de representatividade
(SPINK , 1999) .
Os Psicólogos Sociais tendem a privilegiar entrevistas, questionários e discussões de grupo
práticas discursivas do aqui e agora, em detrimento dos documentos. Já os historiadores
ainda suspeitam da utilidade de relatos pessoais e outras formas de recordações orais, tendo
preferência por trabalhar com documentos, registros, anotações, mesmo quando possuem à
sua disposição aquelas outras técnicas potencialmente disponíveis (SPINK, 1999).
Em seu estudo sobre a história e a teoria social, incluindo aí a Psicologia Social, Peter
Burke (apud SPINK, 1999) despertou sua atenção para um fato curioso de que, mesmo
sendo disciplinas vizinhas, as visões de uma sobre a outra tendem a ser estereotipadas e seu
diálogo inexistente.
A preocupação e a necessidade de explicitar o como, tão privilegiada nas investigações
sociais, notadamente na Psicologia Social, não é encontrada com o historiador que se
preocupa, a priori, em registrar as fontes.
99
Os Psicólogos incorrem na tentação criada pela possibilidade de falar, conversar com o
foco de seus estudos, buscar novos dados, recentes ou originais, o que demonstra a
valorização da entrevista como parte da identidade dos Psicólogos, esquecendo-se de que
as práticas discursivas, como linguagem em ação, estão presentes, de forma ubíqua tanto
nas imagens e artefatos como nas palavras (SPINK, 1999).
Os documentos podem ser classificados em dois grupos: os de domínio público e os de
domínio privado. Os de domínio público refletem duas práticas discursivas diferentes. Na
primeira, como gênero de circulação, como artefatos do sentido de tornar público e, na
segunda, como conteúdo, em relação àquilo que está impresso em suas páginas (SPINK,
1999). Este autor transcreve um "alerta" apresentado pelos arquivistas, quando da
realização de uma pesquisa nas minas de carvão na Inglaterra (1951-1955):
O grande problema com os arquivos é que eles nunca são organizados para
responder a perguntas que queremos fazer, especialmente as perguntas que
vocês, investigadores, mais tarde, querem elaborar. Ao contrário, são
organizados de acordo com os usos que os depositários querem fazer deles, de
guardar material que não precisam, mas que pertence à NCB. As categorias que
eles usaram são as que eles precisam para depois retirar, se necessário: por
departamento, por área, por prédio, e sempre por ano e mês, raramente por
assunto. Não serão categorias ligadas aos conceitos que vocês usam. É um
trabalho de detetive, vocês vão ter que indagar aonde podem estar as
informações úteis para seu estudo
(SPINK,1999, p. 132).
A análise de documentos pode ser a única fonte de dados, principalmente quando os
sujeitos envolvidos na situação estudada não podem mais ser encontrados (ALVES-
MAZZOTTI; GEWANSDSZNAJDER
, 2002).
100
Assim, considerando-se o objeto da presente pesquisa, diante da impossibilidade de
localização dos sujeitos envolvidos na situação estudada e outros impedimentos de
natureza ética, a análise de documentos como fonte de dados foi a que se demonstrou mais
eficaz. Além desses motivos, tamm atuou em favor da opção o fato reconhecido de que o
objeto de estudo, por implicar a análise de inquéritos policiais e processos judiciais, resulta
numa dificuldade na coleta de dados, em razão de aspectos estruturais do Poder Judiciário,
somados à falta de tradição na realização de pesquisas empíricas na área jurídica
(PIMENTEL et alii, 1998).
Outra questão que deve ficar clara é que os conteúdos dos processos (policiais e judiciais)
traduzem o próprio contraditório da Justiça. Em razão disto, pode ocorrer a perda de
informações, o desaparecimento de processos e a ocultação de dados. Muitas vezes, o
conteúdo do processo pode não revelar, de forma fiel, a realidade dos fatos, uma vez que
há situações em que ocorre um jogo entre acusação e defesa na busca de informações que
interessam a cada um, de provas, segundo as possibilidades e capacidade de cada ator em
formá-las, formulá-las e apresentá-las (FALEIROS et alii, 2003).
2.1.4. A escolha da técnica para análise dos dados
As pesquisas qualitativas apresentam características multimetodológicas, pois colocam
uma grande variedade de procedimentos e instrumentos de coleta de dados à disposição
dos pesquisadores (ALVES-MAZZOTTI e GEWANSDSZNAJDER, 2002). Igualmente, para a
análise dos dados obtidos através de documentos, existem várias cnicas, dentre elas, a
Análise Discursiva e a Análise de Conteúdo, que foi aquela pela qual optamos.
101
A Análise de Conteúdo pretende investigar principalmente as formas de comunicação
verbal, escrita, ou não escrita, que se desenvolvem entre os indivíduos. Pode ser utilizada
em textos literários, em entrevistas e discursos. Enfim, tudo é passível de análise por essa
técnica (QUEIRÓS, 2003). Portanto, aplica-se à análise de textos escritos ou de qualquer
comunicação (oral, visual, gestual) reduzida a um texto ou documento.
A técnica de Análise de Conteúdo envolve vários procedimentos e surgiu nos Estados
Unidos no início do século XX, podendo-se destacar duas funções na sua aplicação: uma
referente à verificação de hipóteses e/ou questões, e outra que diz respeito à descoberta do
que está por trás dos conteúdos manifestos (GOMES, 1994).
Uma se refere à verificação de hipóteses e/ou questões. Ou seja, através da
Análise de Conteúdo, podemos encontrar respostas para as questões formuladas
e também podemos confirmar ou não as afirmações estabelecidas antes do
trabalho de investigação (hipóteses). A outra função diz respeito à descoberta do
que está por trás dos conteúdos manifestos, indo além das aparências do que está
sendo comunicado. As duas funções podem, na prática, se complementar e
podem ser aplicadas a partir de princípios da pesquisa quantitativa ou qualitativa
(GOMES, 1994, p. 74).
A Análise de Conteúdo tem como principal objetivo compreender criticamente o sentido
das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou
implícitas, podendo se utilizar diferentes procedimentos para a decodificação de um
documento. Dentre esses, destacamos as unidades léxicas (análise lexicológica), a
classificação por categorias (análise categorial), o desvelamento ou a revelação do sentido
de uma comunicação no momento do discurso (análise de enunciação), os significados dos
conceitos em meios sociais diferenciados (análise de conotações) ou qualquer outra
102
forma de decodificação de comunicações impressas. Tudo depende do material a ser
analisado, dos objetivos da pesquisa, e da posição ideológica e social do pesquisador.
Se existe um primeiro passo para análise das informações coletadas através dos
documentos, seria parar de pensar sobre o que interessa e prestar atenção ao que é criado,
guardado ou deixado pela passagem do cotidiano, iniciando-se, assim, a desfamiliarização
do dia-a-dia, parando de assumi-lo como dado, expressão dos etnometodológicos, taken for
granted, para registrar seus elementos e artefatos. Às vezes não é um documento ou uma
série específica de documentos que importa, mas a presença ubíqua de uma temática de
documentos distintos que serve como sinal para a desfamiliarização inicial (SPINK, 1999).
Pimentel (2001) afirma que se trata de um processo de garimpagem, pois se as categorias
de análise dependem dos documentos, há a necessidade de eles serem encontrados,
"extraídos" das prateleiras, dando-lhes um tratamento que, orientado pelo problema
proposto pela pesquisa, estabeleça a montagem das peças como num quebra-cabeça.
Muitas vezes, a delimitação do problema da pesquisa é resultante do que os documentos
apontam sobre o contexto em que se insere.
Na análise documental há a construção de quadros de atores, termos-chave, observações ou
comentários com as possíveis relações com as questões da pesquisa.
A análise de conteúdo deve ser feita cronologicamente, abrangendo as seguintes
fases: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e
interpretação. A primeira fase é a de organização do material a ser analisado, de
acordo com os objetivos e questões de estudo, definindo-se a unidade de registro,
unidade de contexto, trechos significativos e categorias. Na segunda fase, aplica-
se o que foi definido na fase anterior, podendo ser a mais longa, exigindo-se
várias leituras de um mesmo material. A terceira fase inicia-se a partir de um
pressuposto quantitativo, contudo, deve-se tentar desvendar o conteúdo
subjacente ao que está sendo manifesto, centrando-se a busca para ideologias,
103
tendências e outras determinações características do fenômeno analisado
(GOMES, 1994).
Portanto, os dados coletados devem ser decifrados, atingindo-se o núcleo emergente que
serve ao propósito da pesquisa, num verdadeiro processo de decodificação, interpretação e
inferências sobre as informações contidas nos documentos, desvelando seu conteúdo
manifesto e latente (PIMENTEL, 2001).
A principal limitação na utilização de documentos refere-se ao fato de que suas definições
operacionais, e as possibilidades de sua manipulação experimental fogem ao controle do
pesquisador. Apesar dessas restrições quanto a sua utilidade, os documentos são de grande
importância, apresentando-se como o único meio de apreciar situações sociais passadas e
algumas atuais, em que a observação por outra forma seria difícil e onerosa. Ademais, são
dados coletados em um ambiente natural. A impossibilidade de o pesquisador impor seus
próprios padrões de validade e fidedignidade é clara (ANGELL e FREEDMAN, 1974).
Uma crítica marcante à Análise de Conteúdo é aquela que entende essa análise como uma
técnica de interpretação de textos, com pouca articulação com os contextos das mensagens
veiculadas (GOMES, 1994).
2.1.5. A amostra e a seleção dos casos pesquisados
A capacidade de refletir o fenômeno investigado em suas diversas dimensões é uma das
características da amostragem qualitativa, que não privilegia o critério numérico devendo
ser adequada a cada objeto, bem como à proposta individual de estudo de cada
pesquisador, considerando-se a situação pessoal e as limitações das questões a serem
104
respondidas (PATTON, 1990). Na abordagem qualitativa, despreza-se total, ou quase
totalmente, as análises matemáticas dos dados, utilizando-se, principalmente, as palavras
oral e escrita, com sons, imagens, símbolos etc. (MOREIRA, 2002).
Geralmente, fazem parte da amostra os casos considerados ricos em informações sobre o
tema, utilizando-se, assim, amostras intencionais. Na presente pesquisa foi utilizada a
amostragem com critério, pois foram selecionados os documentos (inquéritos policiais e
processos judiciais) ricos em informações, e que atendessem determinados critérios
previamente definidos, considerados de importância para o tema (PATTON, 1990). Assim,
foram selecionados, inquéritos policiais e processos judiciais referentes a casos de
violência/ataques sexuais domésticos, arquivados, já decididos em primeira instância,
ocorridos no período compreendido nos anos de 1992 e 2003, cujo início do período
refere-se ao ano de instalação da Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher no município
pesquisado.
A seleção dos casos pesquisados também obedeceu a uma série de outros critérios, com o
objetivo de atingir a uma amostra variada e diversificada, visando alcançar o maior número
de casos que atendesse ao objeto do estudo, quais sejam:
Vítimas do sexo feminino, de diferentes idades (crianças e adolescentes);
Situações de violência sexual notificadas, referentes a diferentes crimes sexuais;
Agressores com alguma relação de parentesco (consangüíneo ou afetivo) com a
vítima; do sexo masculino e feminino; com idades diversas, inclusive adolescentes;
Diferentes denunciantes (não só familiares);
105
Inquéritos policiais e processos judiciais arquivados (decididos ao menos em
primeira instância
32
);
A seleção dos casos pesquisados exigiu um trabalho preliminar de consulta a arquivos,
prontuários, inquéritos policiais e processos judiciais (Delegacia de Defesa da Mulher e
Cartório Distribuidor do Fórum), num total de 65 documentos (inquéritos policiais e
processos), dos quais, por exclusão, 22 preencheram os requisitos mínimos estabelecidos,
para o início da coleta de dados.
Dos 22 casos, 06 foram excluídos posteriormente. Dos quais, 03, por se tratarem de casos
de favorecimento à prostituição; e mais 03 por se tratarem casos que não preencheram os
requisitos mínimos para análise, sendo 1 em que a vítima era do sexo masculino; 1
agressor do sexo feminino; e 1 referente ao art. 232, do Estatuto da Criança e do
Adolescente
33
.
2.1.6. Aspectos éticos
A palavra ética possui uma forte carga emocional e é plena de significados ocultos. Nada
pode ser mais terrível para um pesquisador do que ser acusado de falta de ética (BOGDAN
e BIKLEN, 1994).
32
Significa que o agressor já foi julgado em primeira instância, podendo, ainda, em alguns casos, a situação
jurídica (absolvição ou condenação) ser alterada, caso haja recurso para segunda instância (Tribunal), ainda
não apreciado (julgado).
33
“Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a
constrangimento”.
106
Particularmente no caso da nossa pesquisa, a fonte de dados da pesquisa foi estritamente
documental, assim, não houve a necessidade de avaliação e aprovação pelo Comitê de
Ética, pois a pesquisa não foi realizada diretamente com seres humanos, como prescreve a
Resolução/MS nº 196/96. Contudo, tratando-se de pesquisa envolvendo crianças e
adolescentes, notadamente casos em que os mesmos foram vítimas de violência sexual, o
sigilo dos documentos que serviram como fonte de dados (o acesso aos mesmos ocorreu
através de autorização judicial, cf. anexos), é condição essencial para a preservação das
vítimas e de seus familiares, sendo que os feitos afetos aos casos analisados são
considerados segredo de justiça.
Assim, por se tratar de documentos velados pelo segredo de justiça, visando à preservação
do anonimato das pessoas envolvidas, especialmente das crianças e adolescentes, adotou-se
uma série de cuidados neste sentido, explicitados, mais à frente, quando realizamos a
análise e a discussão dos resultados.
2.1.7. A Coleta dos dados
O termo dados refere-se a todo material bruto que os investigadores coletam do universo
pesquisado, formando a base da análise. Podem ser incluídos nos dados os materiais que os
pesquisadores registram em entrevistas, trabalhos de campo e também aquilo que os outros
criaram e que o investigador os encontra, tais como diários, fotografias, documentos
oficiais, artigos de jornais, entre outros (BOGDAN e BIKLEN, 1994).
107
O processo de coleta de dados resume-se em verdadeiro processo de “garimpagem”, pois,
se as categorias de análise dependem dos documentos, eles precisam ser encontrados,
“extraídos” das prateleiras, dos arquivos, para receber um tratamento orientado pelo objeto
da pesquisa (PIMENTEL, 2001).
Ao utilizar amostras qualitativas, torna-se fundamental que o investigador busque, em seu
universo, a maior diversidade possível de perfis, de forma a abranger as diferentes
perspectivas do problema, saturando adequadamente os dados (VÍCTORA et alii, 2000).
Assim, em razão da metodologia empregada, a validade e a significância das informações
geradas têm maior relação com a quantidade e riqueza de informações dos casos
pesquisados, capacidade de observação e de análise do pesquisador, do que com o tamanho
da amostra (PATTON, 1990).
O tamanho da amostra deve ser suficiente para assegurar a inclusão de todos os perfis a
serem analisados e que satisfizessem aos critérios estabelecidos. Tal conclusão decorre da
redundância das informações coletadas, atingindo um ponto de saturação teórica, isto é, as
informações se tornaram repetitivas, não se apresentando nenhuma informação nova e os
dados não mais contribuíam para compreensões adicionais (PATTON, 1990; MINAYO,
1993). Ressalte-se que cada situação pesquisada exige muitas horas de trabalho, com
diversas consultas ao mesmo documento e às instituições, visando a garantia das
informações.
108
É preciso salientar que, na presente pesquisa, em todos os casos e situações estudadas, os
inquéritos policiais e os processos judiciais encontravam-se arquivados e decididos
34
em
primeira instância. Assim, havendo o julgamento dos agressores, ao menos em primeira
instância, pode ocorrer, em determinados casos (raros), a possibilidade de modificação da
situação jurídica, pois os recursos jurídicos ainda podem não ter sido julgados, isto é, o que
pode mudar são as decisões tomadas, e não os fatos e evidências tais como descritos no
processo. Contudo, não há a possibilidade de fatos novos que venham a modificar as
decisões, bem como as trajetórias das vítimas, de suas famílias e dos agressores.
A fase de coleta de dados teve início nos arquivos e prontuários da Delegacia de Polícia de
Defesa da Mulher, onde foram “garimpados” os casos existentes nos períodos
mencionados. Posteriormente, a “garimpagem” prosseguiu nos arquivos e prontuários do
Cartório Distribuidor do Fórum da Comarca, com a finalidade de descobrir para qual das
Varas Judiciais eles foram distribuídos. Na seqüência, os trabalhos prosseguiram junto aos
arquivos e prontuários das Varas Judiciais, com o objetivo de levantar os inquéritos
policiais e os processos judiciais com decisão final, já analisados, julgados e arquivados.
Já nesta fase inicial do manuseio dos documentos, observou-se que a Polícia Civil dispõe
apenas de dados estatísticos gerais, ou seja, conta apenas como registro do total das
situações atendidas, sem classificações ou tipologia (idade e sexo da vítima e agressores,
locais de residência, tipo de ataque, autoria do ataque, situação familiar, entre outras). O
mesmo ocorre com o Poder Judiciário e o Ministério Público que, ainda, não dispõem, ao
34
Os inquéritos policiais e processos judiciais ainda o decididos/finalizados pelo Juiz local não foram
incluídos na pesquisa.
109
menos, de estatísticas gerais, ou sistemas informatizados para atendimento das situações
notificadas.
Como se verá no próximo capítulo, a ausência de um sistema informatizado e articulado de
dados estatísticos, além de impedir a quantificação exata do fenômeno da violência sexual
infanto-juvenil doméstica, pode contribuir para a não responsabilização criminal do
agressor, o que corrobora estudo realizado por Faleiros e outros (2003).
Após a organização e sistematização das informações e dos dados mais relevantes, para os
objetivos da pesquisa, iniciou-se o processo de decodificação, interpretação e inferências
sobre as informações contidas nos documentos, o que representa o conteúdo do próximo
capítulo.
110
Capítulo III
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
111
3. Caracterizando os casos
O processo de análise dos dados compreende várias etapas, como a sua organização, a
divisão em unidades manipuláveis, síntese, procura de padrões, descoberta dos aspectos
tidos como importantes, entre outros (BOGDAN e BIKLEN, 1994).
Esta fase da pesquisa iniciou-se com a organização do material, a qual se tornou
indispensável para um olhar analítico sobre o conjunto de documentos, com a finalidade de
averiguar qual o caminho para torná-los inteligíveis, nos termos do objetivo proposto.
Na organização do material, deve-se realizar uma leitura de acordo com os critérios da
análise de conteúdo, seguindo suas técnicas, tais como fichamentos, levantamento
quantitativo e qualitativo de termos e assuntos recorrentes, criação de códigos para facilitar
o controle e manuseio, entre outros (PIMENTEL, 2001). Assim, o primeiro passo adotado
para a organização do material foi o fichamento dos inquéritos policiais e processos
judiciais, com base nos critérios de classificação e na tipologia, mencionados no capítulo
anterior. Foram realizadas leituras flutuantes dos documentos, principalmente das decisões
que resultaram no arquivamento do inquérito policial, na absolvição ou condenação dos
agressores.
Após o fichamento do material, os dados foram tabulados e sintetizados em tabelas e
quadros, com o objetivo de facilitar a sua visualização e análise. Cada tabela ou quadro
aparece secundado por comentários pertinentes e contextualizados sobre a literatura
disponível e consultada. Antes, porém, é necessária uma visão geral sobre como se
organizou o sistema de referências às vítimas e agressores, de forma a preservar as suas
identidades.
112
3.1. A referência às vítimas e agressores
Diante da necessidade de preservação da identidade das vítimas e agressores, cada um
deles foi identificado com um código alfanumérico, significando, pela ordem:
Inicial do nome;
Idade;
Sexo (F – feminino ou M – masculino);
Grau de parentesco do agressor (P – pai; Pa – padrasto; I – irmão; T – tio; Pr
primo).
Assim, por exemplo, M12F, poderia ser Maria, com doze anos de idade, do sexo feminino;
enquanto J40MP, poderia referir-se a João, com 40 anos de idade; do sexo masculino, pai
da vítima.
Na seção seguinte, são apresentados os dados, referentes aos casos e situações estudadas,
objetivando proporcionar uma melhor compreensão sobre a natureza e a amplitude do
fenômeno pesquisado.
3.2. Resultados e discussão
As tabelas 1 e 2, a seguir, sintetizam a classificação geral de todo o material coletado, ou
seja, uma visão geral de todos os casos de violência/ataque sexual infanto-juvenil,
encontrados no período determinado (1992-2003).
113
Tabela 1. Casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. – (1992 –
2003)
Tipos de casos
35
Desfecho
Família Não-família Totais
Arquivados 8 18 26
Absolvidos 7 17 24
Condenados 7 08 15
Totais 22 43 65
Fonte: Arquivos do Fórum da Comarca pesquisada
O total de casos ocorridos na família foi 22. Contudo, apenas 16 preencheram os requisitos
mínimos estabelecidos no item 2.1.5 (Capítulo II), pois 03 deles referem-se a
favorecimento à prostituição; 1 em que o agressor é do sexo feminino; 1 em que a vítima é
do sexo masculino; e 1 refere-se ao crime descrito no art. 232, do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Na tabela 1, acima, estão representados todos os casos de violência sexual infanto-juvenil
no período estudado, levando-se em conta se a ocorrência se deu na família, ou não, e a
respectiva resolubilidade na responsabilização do agressor, ou seja, arquivamentos dos
inquéritos policiais, absolvição ou condenação dos agressores nos processos judiciais.
Assim, estão representadas, inclusive, aquelas situações em que o agressor não possui
laços de consangüinidade (pai, irmão, tio, primo etc) ou afetividade (padrasto, enteado etc.)
com a vítima.
35
Incluídos inquéritos policiais e processos judiciais.
114
As raras estatísticas que existem sobre ataques sexuais infanto-juvenis demonstram que a
grande incidência se dá no núcleo familiar.
A Delegacia de Defesa da Mulher da zona leste de São Paulo comprova esse
enunciado. Em 1990 foram denunciados 59 casos de crimes sexuais e 25
atentados ao pudor, sendo que, destes, 22 foram cometidos por parentes
próximos, 1 pelo namorado e 2 por desconhecidos. Foram denunciados
também 34 casos de estupro: 16 provocados por parentes, 5 pelos namorados e
13 por desconhecidos
(VERARDO, 2000, p. 40).
Vários outros autores (AMAZARRAY; KOLLER, 1998; KAPLAN; SADOCK, 1990;
FALEIROS et alii, 2003; SAFFIOTI, 1997) apontam a maior incidência — sempre acima
de 50% — de casos de violência sexual sendo cometidos por pessoas da família.
Curiosamente, os nossos dados revelam uma situação contrária àquela encontrada na
literatura pesquisada, isto é, os dados da tabela 1, revelam que, no período pesquisado, a
violência sexual contra crianças e contra adolescentes teve maior incidência fora da família
(43 casos), do que em situações envolvendo entes familiares (22 casos), que caracterizam
relações sexuais incestuosas violentas.
Segundo Cohen (1997) há uma grande dificuldade na avaliação real da freqüência das
transgressões ao tabu do incesto, uma vez que as ocorrências de casos não notificados e/ou
revelados, deste tipo de violência, são grandes. Vários motivos podem influenciar para que
ocorra o silêncio frente à sociedade: “temor pela reação da própria família; para manter a
aparência da família sagrada; por conivência entre as pessoas que sabem do fato e não o
denunciam; por uma idéia de que nada pode ser feito para resolvê-lo; por ser um assunto
tabu; por não se saber o que fazer” (COHEN, 1997, p. 213).
115
Suspeita-se que vários fatores abordados na presente pesquisa podem ter contribuído para
que a revelação pública não se concretizasse, entre eles, na mesma linha apresentada por
Cohen (1997), destacando a questão da “família sagrada”; a sociedade “adultocêntrica” e
androcêntrica”; a ausência de políticas públicas que amparem a vítima e seus familiares
durante e após a revelação pública; e, ainda, de mecanismos de responsabilização do
agressor — o que pode ter impedido ou dificultado a revelação pública de todos os casos
de violência sexual infanto-juvenil doméstica que realmente ocorreram no período.
Tabela 2. Vínculo de parentesco entre o agressor e a vítima.
– (1992 – 2003)
Grau de parentesco
Desfecho dos
casos
Pai Padrasto Tio
Tia Irmão Totais
Arquivados
3 4 - 1 - 8
Absolvidos
2 2 1 - 1 6
Condenados
1 3 - - 1 5
Totais 6
9
1 1
2 19
Fonte: Arquivos do Fórum da Comarca pesquisada, 2005.
Na tabela 2, acima, os dados estão organizados pelo critério da relação de parentesco entre
a vítima e o agressor, tomando-se como referência o conceito de incesto, proposto por
Azevedo e Guerra (1989), excluindo-se três casos (favorecimento à prostituição) que,
apesar de ocorridos na família, não preenchem os demais requisitos apresentados no item
2.1.5 (Capítulo II). Trata-se de uma conceituação bastante ampla para incluir como
116
agressor todo aquele que tenha um vínculo de responsabilidade para com a criança (pai
adotivo, tutor, padrasto etc.) e cujas relações sexuais seriam interditas por lei ou costume.
Em caso de violência sexual incestuosa, a vítima deve sempre ser considerada como
alguém que sofreu um ato violento, o qual pode variar segundo o grau de agressão física ou
psíquica com que o ato foi praticado e segundo o tempo de duração da violência. Contudo,
existe uma variável que deve ser avaliada, que é o grau de parentesco entre a vítima e o
agressor, uma vez que a observação destas características, diferenciando os casos de
ataques sexuais incestuosos, influenciará tanto no processo penal quanto na sua terapêutica
(COHEN, 1997).
Como se vê na tabela 2 o padrasto aparece como o grande vilão, com a maior incidência
(09); seguido pelo pai biológico (06); por irmãos (02), por tio (01) e tia (01).
Em que pese o pequeno número de casos estudados, chama a atenção, o fato de termos
encontrado números que conflitam com os resultados de pesquisas existentes sobre o
fenômeno, que apontam que o maior agressor é o pai, seguido pelo padrasto, conforme
descrevem vários autores (BRINO e WILLIANS 2003; VERARDO, 2000; AZEVEDO e
GUERRA apud SAFFIOTI, 1997; FALEIROS et alii 2003; AMAZARRAY e KOLLER,
1998; RIBEIRO et alii, 2004; COHEN e MATSUDA apud COHEN, 1997 e
DESLANDES apud RIBEIRO, 2004).
Nesta pesquisa, onde ocorreu a inversão desta ordem — é maior o número de padrastos
(09) do que o de pais (06) —, pode-se presumir que a dificuldade de revelação do ataque
sexual quando o pai é o agressor é maior do que em relação ao padrasto, considerando o
fato de o padrasto não possuir nenhum vínculo de consangüinidade com a vítima.
117
Noutra direção, o resultado corrobora que, sendo a maioria dos agressores do sexo
masculino (padrastos e pais), as crianças/adolescentes vitimizados internalizam a
mensagem de que sempre estão subordinados ao adulto/homem que exerce seu domínio,
mesmo contra sua vontade (GARCIA, 2002). Como exceção, encontramos um único caso
de agressão cometida por agressora do sexo feminino (uma tia). Como em Cohen (1997),
pode-se questionar se este dado demonstra a realidade das relações incestogênicas ou, ao
contrário, tratando-se de agressora mulher, se a dificuldade para sua caracterização é
maior, tornando a sua percepção e representação ainda mais complexa.
Tabela 3. Idade das vítimas. – (1992-2003)
Tipos de casos
Faixas etárias
36
Família Não-família
Outros
37
Totais
1 ano
- - - -
2 anos
- 1 - 1
3 anos
- - - -
4 anos
1 1 - 2
5 anos
- 2 - 2
6 anos
- 2 - 2
7 anos
2 - - 2
8 anos
- - - -
9 anos 1 3 - 4
10 anos 2 1 1 4
11 anos 4 2 1 7
Subtotais – crianças 10 12 2 24
36
Idade em que a vítima sofreu o primeiro ataque sexual.
37
Casos considerados para outras análises e mantidos aqui apenas para reforçar a idéia de que os ataques
sexuais de natureza incestogênicas, aparentemente, tendem a acontecer sob algum tipo de “refreador”
relacionado à idade das vítimas.
118
Tabela 3. Idade das vítimas. – (1992-2003) (continuação)
12 anos - 2 1 3
13 anos 3 10 1 14
14 anos 1 1 3 5
15 anos 1 3 2 6
16 anos 4 3 3 10
17 anos - 4 1 5
Subtotais - adolescentes 9 23
11 43
Subtotais - crianças 10 12 2 24
Totais 19 35
13 67
Fonte: Arquivos do Fórum da Comarca pesquisada, 2005.
Não há correlação entre o total de casos analisados no trabalho e o número de vítimas, pois,
existem casos em que há mais de uma vítima.
Na tabela 3, os dados estão organizados segundo a idade das vítimas, com o objetivo de
explorarmos a relevância desta variável, já que, quanto mais nova a criança, maiores os
riscos que ela corre, considerando-se que suas oportunidades de defesa — no caso de
violência sexual doméstica é praticamente nula, independentemente da idade — serão
ainda menores (CRAMI, 2002).
Do total dos casos estudados, os dados revelam que das 19 vítimas, 10 são crianças e 09
são adolescentes. Entre as crianças, as ocorrências concentraram-se na faixa etária dos 10
aos 11 anos (6), com preponderância para a idade de 11 anos (04). Já entre os adolescentes,
os ataques sexuais ocorreram, com maior freqüência, na faixa etária compreendida entre os
15 e os 17 anos (5), mais preponderantemente aos 16 anos (04), destacando-se , também
que na idade de 13 anos temos 03 casos.
119
Malgrado não fazer parte do objetivo desta pesquisa, convém ressaltar que nos casos de
violência sexual extrafamiliar, contra crianças e adolescentes, os dados noticiam que a
preferência dos agressores incidiu sobre adolescentes 23 casos , enquanto a
incidência sobre as crianças alcançou 12 casos.
Intui-se, pelos dados acima mencionados que no ambiente familiar, diante de suas diversas
características, já apresentadas neste trabalho, não há uma prevalência para ataques sexuais
contra crianças ou contra adolescentes. Vale acrescentar que o contexto entre os dois
grupos se desdobra por motivos diferentes. Contudo, nos casos ocorridos fora da família, a
preferência dos agressores recai sobre as adolescentes (23).
No caso dos adolescentes, aparentemente, os ataques se devem não apenas em razão da
dominação do macho, mas também ao fato do desenvolvimento corporal da vítima, que
começa a se aproximar mais do corpo de uma mulher adulta. Esse dado é ressaltado
quando observado que o padrasto ocupa o primeiro lugar nos casos de violência sexual
infanto-juvenil doméstica, sendo a vítima apenas “mais uma mulher”, desprezando-se os
vínculos afetivos e o respeito à sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento. Já
em relação às crianças, a violência sexual ocorre em razão da maior submissão destas em
relação ao poder do adulto macho.
Como subproduto desta característica do fenômeno, constata-se a ausência de credibilidade
nas revelações das crianças. Isso se justifica, pois, mesmo que as crianças relatem a
ocorrência da violência sexual, ocorre uma desqualificação das suas revelações verbais e
não–verbais, negando-se evidências em nome de fidelidade, sigilos profissionais e de
justiça (FALEIROS; FALEIROS apud RIBEIRO, 2004). Esta assertiva se manifesta na
120
presente pesquisa, pela análise dos Casos 2i, 3i, 4i, 7i e 3pa, em que as responsabilizações
dos agressores não foram alcançadas
38
.
Também, na presente pesquisa, a análise dos casos 2pc e 3pc, envolvendo crianças,
demonstra que a responsabilização somente foi alcançada em face da presença de vários
elementos, pois não fossem eles, provavelmente, a dúvida instalada e o “preconceito”, por
tratar-se de criança vitimizada, levariam à não condenação do agressor.
Apesar de o resultado apresentado pelos dados, bem como o fato de a opinião pública estar
propensa a minimizar os efeitos da violência sexual contra adolescentes, mostrando-se
mais sensível aos ataques sexuais contra crianças, símbolo de inocência e pureza, não há
justificativa para minimização dos efeitos da violência sexual contra aqueles, já que, da
mesma forma que nas crianças, a violência sexual contra adolescentes pode “provocar
graves perturbações (fobias, problemas sexuais), que eventualmente culminam na atuação
(fuga, tentativas de suicídio, suicídio...)” (BOUHET, 1997, p. 38).
A tabela 4 mostra a relação de parentesco entre a vítima e a pessoa a quem ocorreu a
revelação privada, enquanto na tabela 5, o notificante (revelador público), o que justifica
que sejam analisados de forma conjunta, uma vez que revelam a relação entre a o revelador
público e a pessoa que primeiro tomou conhecimento do fato, através da revelação inicial.
38
Para uma melhor compreensão dos casos, veja em anexo um sumário de cada um deles.
121
Tabela 4. Relação entre a vítima e a pessoa a quem
ocorreu a revelação. – (1992-2003)
Grau de parentesco Número de casos
Mãe 11
Pai 0
Irmãos 2
Tios 1
Outros 2
Total 16
Fonte: Arquivos do Fórum da Comarca analisada, 2005.
Tabela 5. Notificante/Revelador Público. - (1992-2003)
Notificantes Notificações
Vítima 4
Mãe 6
Pai 1
Irmãos 1
Tios 1
Avós 1
Outros 2
Total 16
Fonte: Arquivos do Fórum da Comarca analisada, 2005.
Os dados exibidos na tabela 4 demonstram que a mãe foi a principal notificante/reveladora
pública da violência sexual (6), seguida da própria vítima (04), bem como a principal
pessoa a quem ocorreu a revelação privada (11). A categoria “outros” inclui Diretor de
Escola e Médico-legista.
122
Saliente-se que nos casos em que há 02 reveladores públicos, apenas 01 foi considerado,
respeitando a seguinte ordem de preferência: Mãe, Pai, Irmão, Tio e Amigos. Ainda, nos
casos em que a vítima foi acompanhada para fazer a revelação pública do ataque,
considerou-se apenas o seu acompanhante.
A mãe, na maioria dos casos de violência sexual infanto-juvenil doméstica, apresenta-se
submissa ao seu companheiro (agressor), desempenhando o papel de protetora deste e
ajudando-o a manter o complô do silêncio, procurando, ainda, justificar e encobrir o que
acontece (CRAMI, 2002).
Muitas vezes, há mães que permanecem em silêncio, durante anos (Casos 3pa; 1pc; 2pc e
3pc); outras que retiram a queixa (Caso 6i); em que a genitora da vítima não quis
representar para a responsabilização do agressor e, mais grave ainda, outras que culpam e
desprotegem as vítimas, atribuindo-lhes a responsabilidade pela violência sexual sofrida
(Casos 1i; 3i; 4i; 6i; 2pa; 4pa; 5pa e 6pa).
Contudo, mesmo diante dessas características, na análise dos dados apresentados, a mãe
surge como o principal adulto para quem a vítima concretiza a revelação privada e, ainda,
como a principal notificante do ataque sexual, ainda que possuindo parcos recursos para
proteger a vítima e, quando efetiva a proteção, ela o faz com dificuldades, pois ela pode
também ser uma vítima do agressor, o que corrobora pesquisa de Faleiros et alii (2003).
Deve-se considerar que, até mesmo, as mães protetoras podem se apresentar muito
perturbadas e extremamente divididas durante a revelação, entre suas lealdades para com a
vítima e ao agressor.
123
Em casos de suspeita de violência sexual infanto-juvenil doméstica, o processo de
revelação inicia-se na rede profissional. Nos casos de revelação parcial, as vítimas tentam
conscientemente testar um profissional específico, como a “Pessoa de Confiança”, para se
sentirem seguras, visando uma revelação completa (FURNISS, 1993). As suspeitas
iniciais, que são denominadas “suspeitas de primeira linha”, podem ser despertadas por
diversas formas, como “desenhos das crianças pequenas, composições escolares de
crianças mais velhas, comportamento sexualizado em todas as idades, por referências
verbais indiretas...” (FURNISS, 1993, p. 170). As comunicações das vítimas podem ser
conscientes ou não.
Por suspeita de primeira linha entende-se a percepção das pessoas que,
em contato com as crianças ou adolescentes, percebem indícios de que
algo está acontecendo, seja através de desenhos, brincadeiras, jogos,
comportamentos e falas sexualizados/erotizados e até mesmo por
pedidos indiretos de ajuda. A suspeita de primeira linha precisa ser
aprofundada, fundamentada por profissionais especializados para depois
se formalizar em denúncia (CRAMI, 2002, p. 22).
A “suspeita de primeira linha” jamais pode ser compartilhada com membros da família,
mas deve permanecer de forma firme dentro da rede multidisciplinar, para que possa ser
conduzida, a seu tempo, a uma suspeita de “segunda linha” (FURNISS, 1993).
A vantagem das suspeitas dos profissionais é que ainda não induziram a crise inicial da
revelação da vítima, podendo, assim, ser conduzida para alcançar a revelação parcial e
completa, com tempo necessário para que os profissionais reflitam e preparem a
intervenção no nível interdisciplinar e em relação à vítima e a família (ib., id.).
Em um dos casos estudados (Caso 1pc), em que houve a condenação do agressor, a
revelação completa da vítima na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher foi originada
124
por uma “suspeita de primeira linha”, por parte da Diretora da Escola em que a vítima I16F
estudava. Naquele caso, a “pessoa de confiança” — Diretora da Escola — não
acompanhou a vítima durante a intervenção da Assistente Social e da Psicóloga, nem
tampouco na realização do exame médico-legal, o que, segundo Furniss (1993) pode ter
retardado a revelação completa e pública da vítima, bem como lhe proporcionado
insegurança para iniciar a comunicação da realidade sofrida da violência sexual, pois a
“pessoa de confiança”, como dito acima, oferece segurança emocional, autorizando
explicitamente a vítima a revelar a violência sexual sofrida.
A “suspeita de primeira linha” exige tempo e paciência essenciais para a coleta de fatos
necessários e fundamentados, antes de uma revelação completa, pois agir de forma
precipitada, sem planejamento poderá conduzir à negação inicial da vítima e dificultar a
revelação completa.
No caso mencionado (Caso 1pc), diante de uma vaga suspeita da Diretora da Escola, a
vítima entrou em crise e, sem saber qual conduta adotar, acionou a Delegacia de Polícia de
Defesa da Mulher, cuja titular reproduziu a conduta precipitada da Diretora e, sem nenhum
planejamento ou evidência de capacitação pela então Delegada da Mulher, a vítima foi
intimada a comparecer na Unidade Policial. Como resultado dessa forma equivocada de
encaminhamento, no início, a vítima negou que sofrera ou que estava sofrendo o ataque
sexual e, posteriormente, revelou parcialmente.
Intui-se que na busca e urgência de estabelecer fatos legais, tanto a Diretora da Escola
quanto a Delegada da Mulher submeteram a vítima a entrevistas prematuras, sem que
houvesse um preparo anterior, uma permissão explícita para que a vítima concretizasse a
revelação.
125
Outras constatações merecem ser destacadas, no que se refere aos dados das tabelas 4 e 5.
Uma delas é que não houve nenhuma denúncia anônima, podendo presumir-se a
fragilidade deste instrumento de denúncia, ou o fato de que a maioria dos casos ocorre na
clandestinidade. Outra é a que sugere certa relação de solidariedade feminina entre os
notificantes, uma vez que a grande maioria é composta por mulheres — mães e avós —,
mesmo quando se considera o fato de que a pesquisa cuidou apenas dos casos em que as
vítimas são do sexo feminino.
Esta constatação se torna mais relevante, quando nos confrontamos com o Caso 3i, em que
o pai biológico da vítima M7F tomou conhecimento dos fatos através de terceiros (avô
materno). Contudo, não houve uma revelação completa por parte da vítima, apenas parcial.
Presume-se que a falta da “pessoa de confiança” e do apoio, e ou a solidariedade da
genitora da vítima, que não acreditou no ocorrido, tenha influenciado para que a vítima não
realizasse a revelação completa da violência sexual sofrida.
Noutra situação (Caso 6i), mesmo com a revelação pública da vítima K16F, o agressor
A50MPa não foi responsabilizado, acreditamos, em face da ausência de solidariedade
feminina, pois a genitora afirmou não acreditar nos fatos revelados pela vítima, mesma
posição adotada pela avó. Ambas, mãe e avó, manifestaram o desejo de não representar
contra o agressor.
Igualmente, especulamos que a falta de solidariedade feminina também pode ter levado ao
arquivamento dos inquéritos policiais ou à absolvição dos agressores em outros 3 casos
(2pa; 5pa e 6pa).
126
Tabela 6. Local da revelação pública.
- (1992-2003)
Locais Número de casos
DDM
39
14
Del. Polícia 2
Total 16
Fonte: Arquivos do Fórum da Comarca analisada, 2005.
Na tabela 6, os dados estão organizados de acordo com os locais em que as revelações
públicas ocorreram, devendo-se, para efeito de análise, considerar que a primeira revelação
é um momento privilegiado, pois se estará mais perto dos fatos se houver uma ação correta
(THOUVENIN, 1997). Por isso, deve-se buscar um ambiente adequado no qual a vítima se
sinta segura e à vontade para revelar a violência sexual.
O processo de revelação pode durar horas, uma vez que é preciso adquirir/conquistar a
confiança da vítima, sempre muito intimidada pelas ameaças do agressor — medo —,
envolvida pela vergonha e pela culpa, e, não raro, em razão do ambiente policial hostil, e
sem nenhuma condição de acolhê-la. A(o) policial não possui tempo para percorrer a
trajetória necessária para o relato da vítima, tampouco é(são) treinada(s)(o/os) para isto
(SAFFIOTI, 1997).
As vítimas de ataque sexual infanto-juvenil intrafamiliar, geralmente, são levadas pelos
parentes — adulto não agressor e comumente as mães — às Delegacias de Polícia em geral
e, posteriormente, são encaminhadas para as Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher,
39
Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher.
127
onde, em tese, o ambiente seria menos hostil, portanto, mais favorável à acolhida da vítima
e à revelação.
Os dados da presente pesquisa demonstram que a revelação completa ocorreu, na maioria
dos casos (em 14 deles), na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, corroborando as
afirmações/as idéias de Faleiros et alii (2003) para quem, em face da grande procura da
Polícia pela população, pode-se presumir que existe uma consciência de que a violência
sexual é um crime, devendo ser denunciada a autoridades policiais. Por outro lado, deve-se
considerar que as Delegacias de Polícia são as instituições mais conhecidas e próximas da
população em geral, em grande número e com funcionamento ininterrupto, o que facilita o
acesso.
Não há elementos suficientes nos documentos analisados para afirmar que as vítimas e os
notificantes internalizaram a noção de que a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher
seria o local mais adequado para a concretização da revelação. Entretanto, as notificações
efetuadas em outras Unidades Policiais são encaminhadas à Delegacia de Polícia de Defesa
da Mulher, especializada no atendimento às vítimas mulheres, crianças e adolescentes.
Assim, os dados e informações existentes nos documentos são insuficientes para se
estabelecer uma análise da representação social que as vítimas e os notificantes possuem
da Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher e se realmente estas cumprem o papel para o
qual foram criadas.
A primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, cujo papel principal é o atendimento
à mulher, foi criada em 1985. Hoje há 340 Delegacias desse tipo em todo o país, sendo 175
só no Estado de São Paulo (VEJA, 2006). Essas Unidades Policiais comportariam, em tese,
policiais capacitadas(os) para o atendimento e encaminhamento da mulher vítima.
128
Contudo, mesmo sendo a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher a principal “Porta de
Entrada” da revelação, a análise dos casos estudados demonstra que a criação da Delegacia
de Polícia de Defesa da Mulher no município não foi precursora do que poderia ser a
constituição de uma rede de apoio suficiente e necessária para as vítimas e seus familiares,
notadamente as vítimas de agressões sexuais infanto-juvenis domésticas, o que, de resto, é
mais ou menos regra noutras localidades.
Ainda, a pesquisa demonstra a ausência de capacitação dos profissionais que atuam na
Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, especialmente as Delegadas de Polícia que
presidiram os inquéritos policiais analisados, uma vez que os conduziram de forma
precária e insuficiente.
Note-se que nos casos estudados, exceto no Caso 1pc, as Delegadas de Polícia apenas
ouviram a vítima, seus familiares, algumas testemunhas e o agressor, não efetuando
qualquer outra diligência e/ou encaminhamento da vítima e seus familiares aos fluxos de
atendimento e de defesa da criança e do adolescente, ou a outros profissionais, como
Psicólogos (as), Assistentes Sociais, Médicos, Conselho Tutelar — com exceção de
encaminhamento esporádico ao Médico Legista.
No Caso 2i a vítima D4F não quis se manifestar acerca dos fatos, mantendo-se calada na
Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher. Mesmo diante do silêncio da vítima, apesar de
sua tenra idade, e de constar nos documentos que a vítima tinha revelado os fatos à sua
genitora (vide Caso 2i) a Delegada de Polícia que conduziu o inquérito não efetuou o
encaminhamento da vítima a um profissional da área de Psicologia, ao Conselho Tutelar,
ou a qualquer outro profissional, para uma entrevista legal ou terapêutica, visando, ao
menos, a ruptura do seu silêncio.
129
No Caso 3i a vítima M7F verbalizou, de forma indireta, a agressão sexual que sofrera ou
estava sofrendo, afirmando que “... às vezes gosto de meu padrasto (C27MPa — agressor
—), mas às vezes eu sinto raiva, quando lembro de alguma coisa, que não quero falar...”.
Saliente-se que, neste caso, num primeiro momento, a vítima teria revelado a agressão
sexual que sofrera à mãe, que não acreditou em sua versão, diante da negativa do agressor.
A vítima dirigiu-se à sua mãe, dizendo que C27MPa “... teria colocado o dedo em sua
vagina...”.
A falta de capacitação da Delegada de Polícia de Defesa da Mulher que atuou neste caso é
clara e assustadora, uma vez que, mesmo diante da revelação parcial da vítima, “gritando
veladamente por socorro”, a Delegada de Polícia permaneceu inerte, também não
encaminhando a vítima a um Psicólogo(a), ao Conselho Tutelar, ou a qualquer outro
profissional, para uma entrevista legal ou terapêutica com a criança, visando ao menos o
ruptura de seu silêncio.
No Caso 4i temos duas vítimas, a A7F e a E10F. A vítima A7F, ao menos, foi ouvida pela
Delegada de Polícia, sendo que a revelação parcial de E10F ficou isolada no contexto. A
Delegada da Mulher não tomou nenhuma providência para o encaminhamento do caso e
das vítimas, visando à revelação completa por parte da vítima E10F, bem como a evolução
da “suspeita de primeira linha” em “suspeita de segunda linha”, para posterior revelação
completa pela vítima A7F.
De maneira geral, nos demais casos estudados, exceto aquele mencionado acima, ficou
evidenciado a ausência de capacitação das Delegadas de Polícia que atuaram.
130
Tabela 7. Natureza da revelação. - (1992-2003)
Revelação Número de casos
Espontânea/Intencional 6
Provocada 9
Outros* 1
Total 16
Fonte: Arquivos do Fórum da Comarca analisada, 2005.
* Testemunha.
Na tabela 7, os dados estão organizados segundo a forma como se deu a revelação, o que é
um aspecto interessante para análise, já que pode ter influência decisiva tanto para o
processo de responsabilização do agressor quanto para o processo terapêutico.
Assim, caracterizamos o tipo de revelação em duas categorias mais amplas. Ela pode ser
espontânea ou intencional, que é aquela em que a vítima exterioriza a violência sexual
sofrida voluntariamente, com a intenção de transmitir a mensagem de que está suportando,
ou do que já suportou, um ataque sexual doméstico. Já a revelação provocada ocorre nos
casos em que há uma “suspeita de primeira linha”, que é desenvolvida geralmente pela
rede profissional, ou por alguns profissionais, mesmo que não em rede, para alcançar a
revelação completa, como no Caso 1pc, já mencionado.
Retomando a tabela 7, nela, a maioria das revelações (09 casos) ocorreu de forma
provocada, ou seja, em razão de alguma situação que deu origem à “suspeita de primeira
linha”, reforçando, em conjunto com as demais características que envolvem a revelação,
que as vítimas não encontraram segurança ou conhecimento suficiente para superar seus
131
medos, suas culpas, suas vergonhas etc., para romperem as barreiras do silêncio e
revelarem de forma espontânea seus segredos.
Cumpre destacar que no único caso em que ocorreu o atendimento e a atuação
multidisciplinar (Caso 1pc), resultando na responsabilização do agressor, a revelação foi
provocada.
Na maioria das vezes, a revelação do ataque sexual não se dá imediatamente após a sua
ocorrência. Ela pode ser tardia e pouco convincente, ou ensejar uma retratação diante dos
adultos, “que ficarão muito felizes com isso” (THOUVENIN, 1997, p. 101).
O processo de revelação mal conduzido pode levar à retratação posterior, em razão da
“síndrome da adaptação” (SUMMIT apud FURNISS, 1993), que faz com que a vítima
negue os fatos, ou apresente versão diversa, de forma a inocentar o agressor.
De forma breve, considera-se que presentes alguns elementos específicos dos casos de
violência sexual infanto-juvenil doméstica, como o segredo, a falta de defesa da vítima em
relação à lei familiar — “desconfiar sempre de estranhos”, “na família tudo é permitido
—, bem como a ausência de credibilidade na palavra da vítima em confronto com a palavra
do agressor, levam a vítima a conviver com a violência.
Isto é o que pode ter ocorrido em pelo menos 3 dos casos pesquisados (Casos 3pa; 5pa e
6pa), pois as vítimas, mesmo diante de vários elementos que demonstravam a ocorrência
da violência sexual, inclusive, no caso 6pa com histórico de tentativa de suicídio,
retrataram-se de suas revelações, resultando, em razão da inércia e/ou da ineficiência dos
atores responsáveis pelo fluxo de responsabilização, na absolvição do agressor.
132
A seguir, na tabela 8, estão contabilizados os tipos de violência sexual sofridos pelas
vítimas, em princípio, classificáveis como atentado violento ao pudor
40
, estupro
41
, tentativa
de estupro
42
e outros
43
.
Tabela 8. Espécie de violência sexual sofrida.
(1992-2003)
Violência Número de casos
Atentado Violento ao Pudor 8
Estupro 8
Outros 6
Total 22
Fonte: Arquivos do Fórum da Comarca analisada, 2005.
Na tabela acima, o total de casos (22) representa aqueles ocorridos na família, dos quais,
16 preencheram os requisitos mínimos estabelecidos, conforme item 2.1.5 (Capítulo II) e já
explicitado nos comentários à tabela 1.
Os dados coligidos demonstram que, para os casos pesquisados, o número de estupros e de
atentados violentos ao pudor são iguais, não havendo preferência deste ou daquele tipo de
ataque sexual, deixando de corroborar os levantamentos de dados apresentados por Saffioti
(1997), em que as cifras referentes ao estupro sempre superaram os outros tipos de crimes
sexuais.
40
Código Penal Brasileiro – “Art. 214: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar
ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Inclui-se nessa categoria
qualquer ato sexual diferente do coito vaginal, como anal e oral.
41
Código Penal Brasileiro – “Art. 213: Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça”.
42
Quando, apesar das tentativas do agressor, o crime não se consumou por circunstâncias alheias à sua
vontade.
43
Por exclusão os casos que não se encaixam nas categorias anteriores.
133
Segundo Verardo (2000, p. 17) o estupro se apresenta como a forma mais cruel de
violência sexual, e aquela que revela uma “tentativa de destruição, uma humilhação, um
exercício de poder, uma utilização do corpo do outro para ser penetrado contra a sua
vontade, para ser manipulado sem seu consentimento... [...], explicita quem tem o poder e
quem de obedecer,... trata-se de uma violência de gênero”.
Apesar de o crime de estupro não ter sido o mais praticado, presume-se que, para suas
práticas, como “fase preliminar”, os agressores tenham, também, praticado atos libidinosos
contra as vítimas, tais como carícias pelo corpo, sexo oral e anal, entre outras, antes da
penetração vaginal. Contudo, para a responsabilização do agressor, em regra, considera-se
apenas o crime de estupro, diante de sua progressão criminosa.
No Caso 1pc a progressão criminosa do agressor V44MP é evidente, pois ele, num
primeiro momento, para iniciar os ataques sexuais, passou a acusar a vítima I16F de estar
“saindo com homens”. Então, a pretexto de examiná-la, tirou suas roupas à força, tocando
em sua vagina — atentado violento ao pudor — e, após, estuprou-a. Posteriormente,
mesmo na presença de sua genitora, V44MP procedeu da mesma forma, ou seja, tirou as
roupas da vítima e, a pretexto de examiná-la tocou em sua vagina, mas não a estuprou
defronte sua mãe, que sabia de tudo, mas nada fez.
Também nos casos 5i, 3pa, 4pa e 6pa, antes da prática das relações sexuais vaginais —
estupro — os agressores cometeram vários atos sexuais contra as vítimas, que configuram
atentados violentos ao pudor.
Acredita-se que o agressor utiliza-se dos atos preliminares — atentado violento ao pudor
— para testar e/ou ganhar a confiança da vítima, com o intuito de consumar a penetração
vaginal, muitas vezes considerado pela vítima como ato mais grave do que os outros. É o
134
que se extrai do Caso 6pa, em que a vítima procurou a Delegacia de Polícia de Defesa da
Mulher, revelando, espontaneamente, os ataques sexuais sofridos, porque ela tinha medo
de que o agressor D41MP consumasse a penetração vaginal — estupro.
Diante dos dados coletados, intui-se que os casos configurados como atentado violento ao
pudor podem não ter evoluído para estupro por diversas razões, entre elas, porque a vítima
rompeu o pacto do silêncio, ou porque os atos sexuais foram flagrados pela mãe, por
irmãos, ou por outros familiares.
3.3. Fluxo de procedimentos adotados a partir da revelação
Há na literatura, como já indicamos no primeiro capítulo, várias sugestões sobre como
deveria ser o fluxo ideal de procedimentos para o atendimento das denúncias de ataques e
outras situações que coloquem em riso a integridade de crianças e adolescentes.
Infelizmente, as mesmas insuficiências existentes noutras áreas do serviço público, de
maneira geral e, em especial, nas áreas da segurança e dos direitos humanos, têm
implicações mais graves, que resultam em acentuar o descrédito nos mais jovens quando
estes se dão conta do quanto estão desassistidos e vulneráveis, nos seus mais elementares
direitos de proteção.
Em tese, a partir da revelação pública instaura-se um inquérito policial que tem como
principal função a coleta de informações, visando à atuação do Promotor de Justiça. Ao
término do inquérito policial, presidido por um(a) Delegado(a) de Polícia, nos casos
estudados, por uma Delegada de Polícia da Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, ele
é remetido ao Ministério Público (Promotor de Justiça) que terá três alternativas: arquivar,
135
denunciar o agressor ou devolver para a Delegacia para a realização de novas diligências,
para melhor subsidiar sua convicção. Com a denúncia, inicia-se a ação penal em Juízo, ou
seja, a formalização da acusação ao agressor.
Nesta pesquisa, foram constatadas várias situações em que este fluxo ideal de ações não se
materializa, colocando em xeque o mito da justiça justa, porque, para que ela seja exercida
na sua plenitude requer, antes, condições materiais imprescindíveis e mudanças culturais e
de costumes, das quais estamos ainda longe.
Os casos estudados demonstram que não há articulação em rede dos diversos fluxos,
quando a ocorrência da violência sexual infanto-juvenil doméstica é revelada, deixando a
desejar pela ausência de uma rede de atendimento para dar suporte à vítima e aos seus
familiares, durante e após a revelação, seja no aspecto jurídico ou terapêutico, o que,
inevitavelmente leva à falta de responsabilização do agressor, bem como aos traumas
irreparáveis na vítima e na dinâmica familiar em que ela está inserida.
A seguir, a partir de casos
44
e situações escolhidas, apresenta-se a categorização do fluxo
de procedimentos adotados desde o momento da revelação e suas possíveis implicações no
desfecho dos casos.
44
Para uma visão mais abrangente dos casos, vide anexos.
136
3.4. Sobre como as falhas nos encaminhamentos atuam contra as vítimas
Do total dos casos estudados (16
45
), 07 inquéritos policiais foram arquivados pelo
Promotor de Justiça; e 09 denunciados, sendo que dos 09 denunciados, 06 agressores
foram absolvidos e 03 condenados.
Figura 1. Desfecho dos casos pesquisados – (1992 – 2003).
A análise da tipologia dos fluxos de procedimentos adotados a partir da revelação
demonstra a desarticulação entre os fluxos de atendimento, de defesa de direitos e de
responsabilização.
45
Refere-se ao total de casos que preencheram os requisitos mínimos estabelecidos para a pesquisa,
conforme item 2.1.5. (Capítulo II)
16
Casos
7
Arquivados
9
Denunciados
6
Absolvidos
3
Condenados
137
Também, ficou caracterizado que após a revelação completa e pública dos casos, nenhum
outro procedimento se adotou, ao menos não há notícia nos documentos analisados,
esgotando-se no fluxo de responsabilização do agressor.
Os procedimentos de responsabilização não levaram em conta as peculiaridades do
fenômeno em questão e a condição especial da criança e dos adolescentes vítimas.
Depreende-se que houve uma abordagem “policialesca” ou inadequada das vítimas,
levando-as a omitir os fatos ou a deturpá-los, o que leva a, além de na maioria dos casos
estudados não ter ocorrido a responsabilização do agressor, a possibilidade de ter-se
permitido a revitimização
46
desnecessária da vítima, bem como sérios danos emocionais
(CRAMI, 2002).
Os casos analisados corroboram a assertiva de Furniss (1993), pois a atuação do fluxo de
defesa de direitos, quando houve, reduziu-se somente à materialização da revelação
pública, levando-a ao conhecimento da Vara da Infância e Juventude, não havendo notícia
de nenhum dos outros fluxos.
O Ministério Público (Promotor de Justiça), como fluxo de defesa de direitos e de
responsabilização, não cumpriu adequadamente seu papel, pois não tomou nenhuma
medida na defesa dos direitos das vítimas e, quanto à responsabilização do agressor,
limitou-se a denunciar
47
, ao menos recorreu das decisões absolutórias, quando estas se
deram em primeira instância, que foram contrárias ao seu pedido (o Promotor de Justiça
46
Ocorre quando a criança/adolescente que sofreu violência sexual relata, desnecessária e repetidamente, as
agressões sofridas, fazendo com que reviva inúmeras vezes o trauma sofrido. Em cada depoimento, em cada
declaração, a vítima revive os fatos, sofrendo nova violência (DIAS, 2006)
47
Iniciar o processo judicial de responsabilização do agressor, através da ação penal em juízo.
138
requereu a condenação e o Juiz absolveu – mas não houve recurso ao Tribunal), como nos
casos 1pa e 3pa.
Nos casos em que os agressores foram responsabilizados, apenas em um deles (Caso 1pc),
conforme já mencionado, houve a intervenção de vários profissionais e a atuação
multidisciplinar. Neste caso, apesar de não ter ocorrido uma abordagem sistêmica
(CRAMI, 2002), o conjunto de ações foi isolado, iniciado pela Diretora da Escola que ao
acionar o fluxo de responsabilização (Delegacia de Defesa da Mulher) deu origem ao
processo de responsabilização, envolvendo ações multidisciplinares (Ministério Público,
Setor Social do Fórum e Psicológico do Centro de Saúde). Os fluxos de atendimento e
responsabilização agiram em conjunto, mas sem articulação. Entretanto, não fosse a ação
conjunta dos diversos fluxos, a “suspeita primária” ao menos poderia ter se concretizado
efetivamente na revelação pública. Assim, mesmo que ocasionalmente, sem a articulação
em rede (FALEIROS et alii, 2003), a ação em conjunto dos diversos fluxos pode ter sido
decisiva no desfecho da responsabilização do agressor, isto é, em sua condenação.
Ainda, quanto aos inquéritos policiais arquivados, o Ministério Público, como fluxo de
responsabilização, satisfez-se com as diligências realizadas pelas Delegadas de Polícia, não
tomando nenhuma outra providência — avaliação psicológica da vítima, do agressor, da
dinâmica familiar, estudo social com visitas domiciliares etc —, para buscar mais
elementos e informações acerca dos casos, seguindo o mesmo caminho percorrido pelas
Delegadas de Polícia.
Os dados colhidos dos inquéritos policiais arquivados bem como nos processos em que
resultou na absolvição dos agressores chegam a ser assustadores, diante da manifesta
ausência de articulação entre os atores do fluxo de responsabilização, bem como entre os
139
demais fluxos — de defesa dos direitos e de atendimento, e, ainda, da falta de capacitação
dos profissionais envolvidos -, conforme veremos a seguir.
3.5. Inquéritos policiais arquivados (i
48
)
Nos inquéritos policiais arquivados, como poderá ser observado na descrição sumarizada
dos casos 1i, 2i, 3i, 4i, 5i, 6i, 7i (vide anexos), há fragilidade e insuficiência nos
procedimentos adotados pelas Delegadas de Polícia de Defesa da Mulher que conduziram
as investigações. Nota-se que em nenhum dos casos (1i, 2i, 3i, 4i, 5i, 6i, 7i) houve a
participação dos fluxos de defesa dos direitos ou de atendimento.
Mesmo no caso em que a vítima se calou quando ouvida na Delegacia de Polícia, após sua
genitora ter flagrado uma situação em que a criança estava sendo atacada sexualmente
(vide caso 4i) não há registro de acionamento ou intervenção do Conselho Tutelar, nem
tampouco de qualquer outro profissional, a não ser o médico, que realizou o exame
médico-legal, que também integra o fluxo de responsabilização do agressor.
Conforme consta dos documentos analisados, no caso 3i, não houve revelação expressa por
parte de M7F. Contudo, está claro que ela tentou sinalizar que algo estava errado ao dizer
“... às vezes eu sinto raiva, quando lembro de alguma coisa, que não quero falar...”.
Porém, mesmo diante da verbalização simbólica por parte da vítima de que algo estava
ocorrendo, os documentos demonstram que não houve o acionamento ou intervenção do
Conselho Tutelar, nem de outros profissionais (Psicólogos, Psiquiatras etc.), apenas a
48
A sigla “i” após o número do caso significa inquérito policial arquivado.
140
realização de um estudo social, com uma visita domiciliar, o qual constatou, entre outros, a
ocorrência de maus-tratos ou negligência por parte da genitora da vítima e do agressor
C27MPa.
Em todos os casos analisados, as Delegadas de Polícia se limitaram a ouvir a vítima, a
genitora, o agressor e algumas testemunhas e, quando muito, as vítimas foram submetidas
a exame de corpo de delito. No caso 2i a Delegada de Polícia somente ouviu a vítima, pois
esta se calou e nenhuma providência foi adotada.
Nos casos de inquéritos policiais arquivados, também o Promotor de Justiça não acionou
nenhum outro fluxo, dando-se por satisfeito com as diligências efetuadas pelas Delegadas
de Polícia, por mais insuficientes que fossem, promovendo o arquivamento.
3.6. Processos-criminais – absolvidos (pa
49
)
Nos processos em que os agressores foram absolvidos, houve apenas a participação do
fluxo de responsabilização, sendo que os demais fluxos — de atendimento e de defesa dos
direitos da criança e do adolescente — não foram acionados, não havendo registros de
nenhuma intervenção.
Os processos reduziram-se à reconstituição dos depoimentos prestados no inquérito
policial, não havendo o acionamento e/ou intervenção de nenhum outro profissional
49
A sigla “pa” após o número do caso significa que o agressor respondeu a um processo criminal, mas foi
absolvido – não foi responsabilizado.
141
(Psicólogo, Assistente Social, Psiquiatra etc). Há apenas o registro de realização do exame
médico-legal nas vítimas.
Como na maioria das situações estudadas, diante da complexidade do fenômeno, o caso foi
tratado de forma negligente, com ausência de articulação entre os profissionais envolvidos,
como se poderá verificar na descrição sumarizada dos casos 1pa; 2pa; 3pa; 4pa; 5pa e 6pa,
todos em anexo.
3.7. Processos-criminais – condenados (pc
50
)
Conforme já mencionamos no item 1.4.2. (Capítulo I), a condenação do agressor deve
representar uma responsabilização em face dos atos de desrespeito à dignidade do ser
humano, de violação dos direitos de um cidadão, apesar de este cidadão ser “apenas uma
criança ou adolescente” (CRAMI, 2002, p. 32).
A responsabilização do agressor deve ser buscada como um dos instrumentos
indispensáveis à contenção do fenômeno da violência sexual infanto-juvenil doméstica,
seja no sentido da prevenção geral ou individual.
Em relação aos processos em que a condenação do agressor se concretizou, conforme
casos 1pc, 2pc e 3pc, sintetizados em anexo, não houve o acionamento ou intervenção do
Conselho Tutelar, nem de outros profissionais (Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes Sociais
etc.). Houve apenas o acionamento do fluxo de responsabilização.
50
A sigla “pc” após o número do caso significa que o agressor respondeu a um processo criminal e foi
condenado –foi responsabilizado.
142
Somente no caso 1pc, apesar da ausência de articulação, houve a participação dos fluxos de
responsabilização, de atendimento e de defesa dos direitos. Neste caso, o processo de
responsabilização do agressor teve início com uma “suspeita de primeira linha”, por parte
da Diretora da Escola na qual a vítima e seus irmãos estudavam.
Diante da suspeita da violência sexual, a Diretora da Escola acionou a Delegacia de Polícia
de Defesa da Mulher, cuja titular dirigiu-se até a residência da vítima, intimando-a a
comparecer na Unidade Policial, local em que a vítima revelou parcialmente a existência
da violência sexual. Nesse caso, a “pessoa de confiança” era a Diretora da Escola.
Contudo, não há notícia de que ela tenha acompanhado a vítima durante as intervenções da
Assistente Social e da Psicóloga, tampouco na realização do exame médico-legal,
oportunidade em que a vítima revelou o ataque sexual por completo, concretizando a
revelação pública na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher.
O conjunto de ações integradas, executadas por uma equipe interdisciplinar, mesmo que
ocasionalmente, sem a especialização necessária, levou à responsabilização do agressor
com sua condenação à pena de 07 (sete) anos e 06 (seis) meses de reclusão, em regime
fechado, por um Juiz de Direito, atendendo ao pedido do Promotor de Justiça. O agressor
recorreu da decisão do Juiz da Comarca, tendo o Tribunal de Justiça mantido a
responsabilização, confirmando a condenação do Juiz. Após a decisão final, o agressor foi
preso para cumprir a pena aplicada 06 (seis) anos após os ataques sexuais praticados
contra I16F.
A revelação parcial foi concretizada na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, depois
de acionada pela Diretora da Escola em que a vítima estudava, sendo que a revelação
completa somente ocorreu após a intervenção da Assistente Social e da Psicóloga, o que,
143
ainda que se tenha ocorrido de forma isolada, pôde ser caracterizada como um bom
exemplo de ação multidisciplinar, sem que tenha se dado sob a forma de uma rede dos
diversos fluxos que envolvem a revelação.
Nos casos 2pc e 3pc, apesar da ausência de participação dos fluxos de atendimento e de
defesa dos direitos, bem como de articulação entre os profissionais do fluxo de
responsabilização, houve a condenação dos agressores.
3.8. Análise das manifestações dos atores jurídicos
O conhecimento dos procedimentos técnicos de elaboração do processo que levará à
condenação ou não do agressor sexual é essencial para que se conclua quais as peças que
possuem mais interesse para a análise dos aspectos (supervalorizações, subjetivações,
lacunas, omissões etc., deliberados ou não) que podem ter sido decisivos para o desfecho
dos casos. De forma geral, todas as peças que representam a intervenção dos agentes
jurídicos nos casos, possuem especial interesse para a análise.
Os momentos em que os agentes jurídicos são chamados a intervir no caso
são momentos de decisão, etapas de construção da verdade que são
representadas por diferentes versões que vão se agregando ao relato inicial,
somando-se e compondo para formar, ao final dos procedimentos jurídicos,
com a sentença final, aquela que será aceita como a única versão do caso
(IZUMINO, 1998, 65).
Na análise das peças do processo, considerando-se o objeto da pesquisa, foram
enfatizadas, como peças-chave, as promoções de arquivamento dos inquéritos policiais
pelos Promotores de Justiça, bem como suas alegações finais e suas manifestações em
144
recursos, além da manifestação do Procurador de Justiça
51
, as sentenças dos Juízes e os
Acórdãos
52
do Tribunal, quando houve recurso.
Saliente-se que as denúncias do Ministério Público não foram objetos de análise, pois,
trata-se de uma peça descritiva e objetiva dos fatos, não havendo nela elementos
suficientes para a análise proposta.
A representação jurídica do fenômeno da violência sexual infanto-juvenil doméstica é
externada através das peças, inclusive através das decisões que dão andamento aos
processos.
O início do processo de responsabilização criminal do agressor ocorre com a denúncia do
Promotor de Justiça. Caso o Promotor de Justiça arquive o inquérito policial, encerra-se,
naquele momento, a possibilidade de responsabilização do agressor.
Após a denúncia, o acusado da agressão é ouvido, bem como a vítima e as testemunhas.
Encerrada a fase de instrução
53
, o processo é remetido ao Promotor de Justiça que
apresentará suas alegações finais
54
e, após, ao Advogado de Defesa, que também
apresentará suas alegações finais
55
. Com as alegações finais do Promotor de Justiça e do
Advogado de Defesa, o Juiz sentenciará o processo, decidindo pela condenação –
responsabilização - , ou absolvição do agressor.
51
Promotor de Justiça de Justiça que atua junto ao Tribunal, em grau de recurso.
52
Decisão do Tribunal no recurso – sentença de Segunda Instância.
53
Produção de provas, especialmente testemunhal.
54
Quando requererá a condenação ou a absolvição do acusado, de acordo com sua convicção e as provas do
processo.
55
Que deverá requerer a absolvição do acusado e/ou, alternativamente, algum benefício.
145
A decisão do Juiz no processo pode ser reapreciada pelo Tribunal, caso haja recurso, seja
do Promotor de Justiça, seja do Advogado de Defesa. No Tribunal, antes da análise do
processo pelos Desembargadores, o processo é remetido ao Procurador de Justiça, que
emitirá um parecer, pela manutenção ou reforma da sentença do Juiz, para, posteriormente,
os Desembargadores julgarem.
O saber jurídico, a carreira e os debates que ocorrem no curso do processo de
responsabilização concorrem para formação da cultura que está por trás da linguagem e da
ação dos agentes jurídicos.
A linguagem técnica jurídica cria a “atmosfera de oficialidade” e funciona
como “distanciador”, ao mesmo tempo em que imprime uniformidade à
argumentação de todos os operadores do direito (Sousa Santos, 1988). Este
saber técnico ou “discurso argumentativo” constitui a fonte da competência
jurídica dos promotores e demais operadores do direito e, por conseguinte,
sua fonte de poder
(SILVA, 2001, p. 31).
Os aspectos referentes às supervalorizações, às lacunas, às omissões, e aos valores morais,
sociais e pessoais de cada ator jurídico, que podem ter sido decisivos para a condenação ou
para a absolvição do agressor, são encontrados nos fundamentos apresentados pelos
Promotores e Procuradores de Justiça, em suas manifestações, bem como pelos Juízes e
Desembargadores em suas decisões.
Deve-se considerar que as manifestações dos Advogados de Defesa não representam
necessariamente seus valores sociais, morais e pessoais, pois esses atores jurídicos devem
sempre buscar a absolvição de seus clientes.
A construção das categorias para análise do conteúdo dos discursos dos atores jurídicos nas
peças-chave ocorreu de forma paulatina, de acordo com a evolução das leituras dos
146
documentos, bem como da repetição das mesmas, considerando-se o eixo principal da
pesquisa, qual seja, a revelação da violência sexual infanto-juvenil doméstica na
responsabilização do agressor.
Foram realizadas leituras verticais das peças-chave de forma a entrar em contato exaustivo
com o material. O desmembramento da peças-chave e o agrupamento dos fundamentos, de
acordo com o objeto da pesquisa, isto é, uma preparação do material, permitiu a
categorização das informações. As categorias foram formuladas a partir de consensos
construídos durante a análise dos documentos, sem que houvesse questões e tópicos pré-
determinados.
Após a análise dos documentos (inquéritos policiais e processos judiciais), ressaltando-se
as peças-chave, somaram-se às informações obtidas dados da literatura e tópicos
possivelmente relevantes, estudados para a elaboração da categorização. No total, esse
processo resultou na caracterização de 05 (cinco) categorias principais, a saber:
1. Falta de testemunhas presenciais;
2. As “palavras da vítima”;
3. A desvalorização da vítima e a supervalorização da moralidade e dos costumes;
4. Relativizações entre a conduta da vítima e a revelação;
5. A questão do Gênero.
A seguir, com base nessas cinco categorias, passamos a descrever como elas estão
representadas em cada um dos casos aqui considerados para efeito de análise e quais
147
elementos foram essenciais, na percepção daquele que decidiu, para o arquivamento,
condenação ou absolvição do agressor.
3.8.1. Falta de testemunhas presenciais
Fato notório e incontroverso, entre os atores jurídicos e na literatura, é que o ataque sexual
infanto-juvenil intrafamiliar/doméstico, ocorre sem a presença de testemunhas, na
clandestinidade, o que dificulta a responsabilização do agressor, uma vez que permanece a
revelação da vítima — fragilizada e subestimada — em confronto com as palavras de
negação dos fatos do agressor. Entretanto, mesmo diante da ausência de testemunhas e de
outros elementos que corroborem as palavras da vítima ou a desqualifiquem, nenhuma
outra providência foi adotada pelos Promotores de Justiça, que se limitaram a arquivar os
inquéritos policiais.
“No caso em tela, a versão apresentada por S não encontra o menor respaldo
nas demais provas carreadas aos autos. Não há prova da materialidade e nem
tampouco testemunhas oculares. O certo é que, no caso em foco, a prova
indiciária é por demais frágil, não fornecendo elementos para a propositura
da competente ação penal. Doutra parte, também não se vislumbram
elementos que permitam o prosseguimento das investigações”.
(PROMOTOR DE JUSTIÇA - CASO 1i)
No caso 2i, em que a vítima permaneceu calada na Delegacia de Polícia, nenhuma
providência foi adotada pelo Promotor de Justiça, mesmo reconhecendo que o fato
investigado era “extremamente grave”, demonstrando absoluta falta de capacitação e
sensibilidade. Ainda, neste caso para fundamentar sua decisão, o Promotor de Justiça
argumentou no sentido de que o laudo de exame de corpo de delito não encontrou lesões
no ânus da menor.
148
“D, não respondeu as perguntas da Autoridade Policial , conforme fls. 09,
possivelmente por ter ficado encabulada. O laudo pericial de fls. 06 não
encontrou lesões no ânus da menor. O fato investigado é extremamente
grave, mas não há indícios mínimos e sérios, a imputar ao indiciado a prática
dos atos libidinosos contra sua filha”.
(PROMOTOR DE JUSTIÇA -
CASO 2i)
“Inexistem, por outro lado, testemunhas presenciais que possam corroborar a
versão apresentada pela vítima”.
(PROMOTOR DE JUSTIÇA -
CASO 7i)
Também no caso 5i em que a vítima chegou a verbalizar, na Delegacia de Polícia, de que
algo estava errado, nada foi feito.
“Ademais, não se vislumbra no presente caso a existência de outras pessoas
que assistiram o ocorrido. Com efeito, a prova testemunhal e documental que
emerge dos autos é no sentido de que tudo não passou de criação mental dos
menores, cujo padrasto, o indiciado, repreendia quando faziam arte. Por
derradeiro, o indiciado nega veementemente a prática da infração penal
praticada e a própria ofendida não confirma o imputado constrangimento,
nem mesmo a conjunção carnal”.
(PROMOTOR DE JUSTIÇA -
CASO 5i)
De outra banda, pode-se observar que a ausência de testemunhas para comprovação da
revelação ou outros elementos para a confirmação de uma suspeita de um ataque sexual
infanto-juvenil doméstico, desloca a atenção do fato para o comportamento dos envolvidos.
Nos inquéritos policiais arquivados não consta nenhuma requisição dos Promotores de
Justiça para a realização de avaliação psicológica, psicodiagnóstico, estudo social com
visitas domiciliares, exames psiquiátricos, manifestação do Conselho Tutelar, isto é, o
acionamento de qualquer outro fluxo, seja de atendimento, seja de defesa dos direitos,
atuando o Promotor de Justiça apenas como fluxo de responsabilização do agressor.
A supervalorização da ausência de testemunhas também aparece nas manifestações
processuais, não somente como fundamento para o arquivamento dos inquéritos policiais.
149
“Realmente, não há testemunhas do ocorrido sendo que apenas ouviram
dizer, sendo que o que foi dito veio da boca da suposta vítima, não havendo
testemunho de vizinhos ou de outras pessoas”.
(JUIZ - CASO 1pa)
“... Assim, não é comum nestes delitos a existência de testemunha
presencial”.
(PROCURADOR DE JUSTIÇA - CASO 2pa)
“Como assim não fosse, estaríamos diante da seguinte equação: delito
cometido na clandestinidade seria igual à impunidade, o que,
indiscutivelmente não pode ocorrer”.
(PROMOTOR DE JUSTIÇA -
CASO 4pa)
Assim, requerem-se testemunhas para a certeza da existência do fato que acontece no
segredo de quatro paredes, buscando-se, ainda, provas materiais, quando nem sempre os
vestígios são físicos. Os laudos sociais
56
e psicológicos são desvalorizados. Nem ao menos
são requisitados. Por conseguinte, o arquivamento dos inquéritos policiais ou a absolvição
dos agressores por falta de provas foi o que encontramos na maioria dos processos
analisados (13 em 16).
3.8.2. As “palavras da vítima”
Há uma enorme dificuldade de emprestar credibilidade à palavra da vítima. Quando são
crianças, costuma-se pensar que elas usam da imaginação ou que foram induzidas a mentir.
Quando são adolescentes, acredita-se que elas provocam o abusador, seduziram-no,
insinuaram-se a ele, justificando, assim, a prática do delito
(DIAS, 2006, p. 2).
56
Relatórios elaborados por Assistentes Sociais.
150
A materialização da revelação ocorre pelas “palavras da vítima”. Diante da ausência de
testemunhas, estas “palavras da vítima” se revestem de especial atenção nos processos.
Assim, na grande maioria das vezes, salvo raras exceções, por terem os ataques sexuais
sido praticados na clandestinidade. Eles permanecem como registro do ocorrido, em
confronto com as palavras do agressor sexual.
Os estudos mais recentes indicam que as declarações/revelações falsas em casos de
violência sexual contra crianças e adolescentes são extremamente raras, oscilando entre 3 e
8%, no máximo, aumentando a proporção em razão da idade da vítima (TESONE, 1998).
Nos casos considerados nesta pesquisa, sempre que houve confronto entre as “palavras da
vítima” e as do agressor, tendo que “optar” entre uma, ou outra, nenhuma providência foi
adotada pelas Delegadas de Polícia e/ou pelos Promotores de Justiça, no sentido de buscar
outros elementos que fornecessem maiores possibilidades para analisar os casos, para uma
decisão mais consistente.
É fato que nos discursos dos atores jurídicos, em relação aos crimes sexuais, por serem
praticados na ausência de testemunhas, as “palavras da vítima” se revestem de especial
importância.
“... devemos ter em mente, aliás, como posição pacífica em nossos Tribunais
que, em seara de delitos sexuais, a palavra da vítima se reveste de
importância crucial, posto que, como sabido, em tais delitos, em sua
esmagadora maioria, perpetram-se desprovidos da presença de testemunhas,
amparados no manto da clandestinidade...”.
(PROMOTOR DE
JUSTIÇA - CASO 1pc)
“... não tinha a vítima motivo para mentir em juízo, acusando o réu
injustamente de ter praticado estupro, pois os demais atos praticados contra
ela — agressões físicas e toques vaginais — já eram suficientes para
qualquer persecução penal por tais delitos contra o réu”.
(JUIZ – CASO
1pc)
151
“... é mister observar que, em sede de crimes contra os costumes, a palavra da
vítima é de suma importância...”
(JUIZ – CASO 2pc)
“De se ressaltar, por oportuno, que a jurisprudência reinante em nossos
Tribunais, em tema de delito contra os costumes, norteia no sentido de
aceitar, até mesmo, somente a palavra da vítima mesmo quando se trata de
criança de tenra idade”.
(PROMOTOR DE JUSTIÇA – CASO 2pa)
“A palavra da vítima assume relevo em delitos como os imputados ao
acusado, pois são atos praticados longe de testemunhas. Assim, não é comum
nestes delitos a existência de testemunha presencial”.
(PROCURADOR
DE JUSTIÇA – CASO 2pa)
“Em crimes sexuais, normalmente cometidos às escondidas, longe da vista
das testemunhas, as declarações da vítima merecem relevo especial sob pena
de fornecer um escudo protetor para seus autores”.
(PROCURADOR DE
JUSTIÇA – CASO 4pa)
Contudo, apesar de enfatizarem em seus fundamentos que as “palavras da vítima” se
revestem de essencial importância nos crimes sexuais, os atores jurídicos apresentam
contradição e obscuridade, pois dificilmente essas “palavras da vítima”, por si só, levam à
responsabilização do agressor.
Ao mesmo tempo, e muitas vezes na mesma peça em que os operadores do direito
procuram demonstrar a importância das “palavras da vítima”, elas só são consideradas
como decisivas, se houver outros elementos de prova que as corroborem.
“... a palavra da vítima, carreada às declarações testemunhais, em especial de
[...], e ainda o exame de corpo de delito de fls. [...] são provas cabais da
autoria e da materialidade do delito...”
(PROMOTOR DE JUSTIÇA –
CASO 1pc)
152
“As declarações da vítima [...] que se harmonizam com o resto do
apurado – conservam o grande valor probatório que lhes é atribuído
pelo entendimento doutrinário e jurisprudencial”.
(DESEMBARGADOR – CASO 3pc)
“.... não pode ser olvidado que em crime cometido contra os costumes a
jurisprudência leva em conta as palavras da vítima, desde que acompanhado
pelo contexto das demais provas produzidas nos autos”.
(JUIZ – CASO
1pa)
“É bem verdade que nos crimes sexuais, quase sempre praticados às
escondidas, reveste-se a palavra da vítima de fundamental importância. Mas,
para tanto, é preciso que a versão por ela apresentada seja coerente e que não
haja conflito com os demais elementos de convicção colhidos. Ademais, não
pode ela, por si só, embasar a condenação, ainda mais quando apresentada
somente na fase policial, sem ser confirmada em Juízo, como ocorreu na
hipótese em testilha”.
(JUÍZA – CASO 3 pa)
“Como podemos observar, aliás, como brilhantemente explanado pelo
Magistrado prolator da sentença ora combatida, a palavra da vítima, realizado
com firmeza durante as fases policial e judicial, está respaldada pelos
elementos de prova carreados aos autos durante a instrução, não havendo
como se conceder provimento ao inconformismo do apelante”.
(PROMOTOR DE JUSTIÇA – CASO 4pa)
Resumindo. Apenas as palavras de [...] incriminava o apelante. E os fatos
que cercaram sua revelação colocavam em dúvida sua palavra”.
(DESEMBARGADOR – CASO 4pa)
“No caso concreto, a ofendida apresentou declarações coerentes e seguras,
estando as palavras confirmadas pelos depoimentos das testemunhas que
ouviram sua narrativa dos fatos”.
(PROCURADOR DE JUSTIÇA –
CASO 4pa)
153
3.8.3. Desvalorização da vítima e supervalorização da moralidade e dos costumes
O discurso higienista do final do Século XIX e do início do Século XX parece assombrar
os atores jurídicos, mesmo que inconscientemente, até os dias de hoje, sendo muitas vezes
decisivo em suas manifestações, exercendo forte influência nas decisões.
Os crimes sexuais, sejam contra crianças e adolescentes, sejam contra adultos, na família
ou fora dela, são considerados, conforme descrito no item 1.5.2, do Capítulo I, como
crimes contra os costumes, sendo o estupro considerado, até mesmo, crime contra a
família. Já o incesto, podendo ser tipificado como crime, ou não, é considerado uma
afronta à moralidade e aos “bons costumes”.
Ocorre que muitas vezes, os atores jurídicos supervalorizam a moralidade pública e os
costumes, em detrimento da vítima, relativizando o dano sofrido, esquecendo-se do ser
humano.
“No caso, está claro, através do exaustivamente demonstrado retro, que o
apelante ofendeu à moralidade pública, constrangendo uma menor de apenas
13 (treze) anos de idade a praticar a conjunção carnal”.
(PROMOTOR
DE JUSTIÇA - CASO 4pa)
“Tendo em vista as circunstâncias dos crimes, onde o réu demonstrou
elevado grau de desvio comportamental, não atendendo aos padrões éticos
exigidos pela coletividade da qual faz parte, atuando com insensibilidade e
perversão, deverá iniciar o cumprimento da pena em regime fechado...”
(JUIZ DE DIREITO – CASO 4pa)
154
“A vida social necessita de moralidade pública, sendo essa um conjunto de
normas que ditam o comportamento a ser observado nos domínios da
sexualidade. O Estado, por sua vez, através da Justiça, não pode quedar-se
inerte à tutela da moralidade pública e dos bons costumes, deixando impunes
agentes que afrontem à moralidade pública”.
(PROMOTOR DE
JUSTIÇA – CASO 3pc)
Mesmo nos casos 3pc e 4pa em que o Promotor de Justiça enfatiza a idade da vítima em
relação ao crime sofrido, o fundamento do requerimento de condenação do agressor sexual
se baseia no desrespeito à moralidade pública, desvalorizando a pessoa agredida.
3.8.4. Relativizações entre a conduta da vítima e a revelação
Muitas vezes os fundamentos jurídicos que ensejaram a decisão apresentam a conduta total
do indivíduo, que irá redimi-lo, ou não, do ato praticado; não se discute o fato
propriamente dito, mas aquilo que o agressor e a ofendida eram, poderiam ser ou seriam.
Nesse sentido, o comportamento da vítima e o do agressor, não em relação ao ato, mas em
relação aos seus hábitos e valores, ganham relevância e são debatidos em confronto com a
revelação ou com a negativa do agressor.
“Ressalte-se, ainda, que mesmo se a vítima fosse “boca-dura” com os pais e
namorasse, nenhuma dessas circunstâncias podia justificar, por parte do réu, as
agressões físicas, os toques vaginais para a constatação da virgindade e, muito
menos, o constrangimento à manutenção de relação sexual com sua
[...]”
(JUIZ – CASO 1pc)
“Não há prova suficiente para que o réu seja mandado para o cárcere, longe do
seio de sua família, quando esta, segundo os depoimentos colhidos, já está
vivendo em harmonia e o incidente já foi superado”.
(JUIZ – CASO 1pa)
155
“É certo, outrossim, que as alegadas ameaças de morte não se destinavam à
permissão do contato sexual, mas, segundo a mãe da vítima, foram feitas nas
ocasiões posteriores para impedir que os fatos fossem relatados à autoridade
policial”.
(DESEMBARGADOR – CASO 3pa)
“Além do mais, como se não bastasse a segurança e firmeza, em Juízo e na
Polícia, das declarações da ofendida, temos que esta sempre teve postura
idônea, mantendo relações sexuais posteriormente apenas com um rapaz com
o qual pretendia se casar, não demonstrando qualquer perturbação mental...”
(JUIZ – CASO 4pa)
Apesar de não constar nenhuma avaliação psicológica da vítima no processo, em sua
fundamentação para requerer a absolvição do agressor, o Promotor de Justiça afirma que a
revelação foi fruto da imaginação da vítima. Saliente-se que neste caso (5pa) a vítima foi
ouvida três vezes em Juízo, e acabou por ocorrer a retratação da revelação, podendo ter
ocorrido a síndrome da adaptação.
“Pelo exposto, verifica-se que os fatos não passaram de produto da
imaginação da vítima, que por não ser mais virgem e com medo que seu pai
descobrisse; e por querer ter mais liberdade indo morar longe da casa
paterna, juntamente com sua madrinha, houve por bem inventar tal estória
incriminando o pai. Dos depoimentos prestados pela vítima, conclui-se
claramente e sem sombra de dúvidas, que o fato do qual o réu está sendo
acusado, jamais ocorreu”.
(PROMOTOR DE JUSTIÇA – CASO
5pa)
Noutro caso, o comportamento da vítima também foi decisivo para a relativização de sua
revelação, apresentando-se como decisivo para a absolvição do agressor. Saliente-se que
neste caso (3pa) a vítima foi ouvida em Juízo, confirmando o que disse na Delegacia de
Polícia. Contudo, o Tribunal afirmou, em sua fundamentação, que ela teria sido ouvida
somente na fase policial.
“A vítima, foi ouvida apenas na fase policial.... Aliás, o fato de a vítima
manter-se calada durante tanto tempo, não relatando os fatos a sua mãe e nem
saindo de casa, como só o fez da última vez, também coloca em dúvida seu
156
dissenso quanto àquelas práticas libidinosas”. (DESEMBARGADOR –
CASO 3 pa)
3.8.5. A questão do Gênero
Ao considerarmos as relações de gênero como relações sociais, devemos considerar o fato
de que as relações de gênero também são relações de poder (IZUMINO, 1998). A adoção
do gênero como categoria de análise apresenta-se pertinente face ao objeto e objetivos da
pesquisa, e encontra respaldo na literatura existente e naquela que consultamos sobre o
assunto.
O conceito de violência de gênero deve ser compreendido como mais amplo do que o de
violência contra a mulher, uma vez que nele se incluem não só mulheres, mas também
crianças e adolescentes, objetos da violência masculina que,
“no Brasil, é constitutiva das relações de gênero [...] a ordem patriarcal é
vista como um fator preponderante na produção da violência de gênero, uma
vez que está na base das representações de gênero que legitimam a
dominação masculina internalizada por homens e mulheres”
(ARAÚJO et
alii, 2004, P. 18).
Nesse contexto, no Caso 1pa, a dominação do macho sobre a fêmea, como valor essencial
do julgador aparece de forma clara para fundamentar a absolvição do agressor.
Convém salientar que o julgador do Caso 1pa ressaltou o “valor” das “palavras da
vítima” nos casos de crimes “contra os costumes” e direcionou a decisão para a
responsabilização do agressor. Todavia, ficou claro que o gênero masculino foi
supervalorizado para amparar a argumentação da absolvição.
157
“... não pode ser olvidado que em crime cometido contra os costumes a
jurisprudência leva em conta as palavras da vítima, desde que acompanhado
pelo contexto das demais provas produzidas nos autos”.
(JUIZ – CASO
1pa)
“Dos autos pode-se extrair que o réu não consegue segurar seus impulsos e
desejos sexuais, pois sua libido, ao menos em tese, estaria além do desejo de
todos os homens normais e carnais...”
(JUIZ – CASO 1 pa)
A agressão sexual foi reconhecida implicitamente pelo Juiz, que, entretanto, absolveu o
agressor sob o argumento de que as provas eram insuficientes para confirmar as
“palavras da vítima” e que ele assim agiu porque é “homem e como homem pode
possuir desejos sexuais que estaria além dos normais e carnais” (grifos nossos).
158
Considerações Finais
159
Na ótica de abordagem da presente pesquisa, considerando os desdobramentos que
surgiram no processo de análise, como pano de fundo, mesmo não se apresentando como
um dos objetivos, a primeira questão a ser destacada refere-se à utilização da expressão
abuso sexual como sinônimo de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Tal utilização gera ambigüidade, uma vez que ninguém possui permissão para o uso sexual
de uma criança ou de um adolescente. Todo ato sexual, praticado contra crianças ou
adolescentes, pressupõe um determinado grau de violência, mesmo que violência
psicológica.
Não se trata simplesmente da utilização dessa ou daquela terminologia, mas da necessidade
de ruptura “com o dito e com o não dito”, criado em torno da utilização da palavra abuso,
com a herança da cultura da cumplicidade e da impunidade, da dominação do poder do
homem sobre as categorias fragilizadas (que impera desde o início da época da colonização
do Brasil), da triste herança histórica da escravidão, bem como das múltiplas formas de
autoritarismo.
A problemática não é de simples terminologia, mas do valor simbólico e da influência
sobre a sociedade e sobre as condutas, que representa a utilização do termo abuso. O
abandono da utilização deste termo se faz necessário.
Para a substituição do termo abuso propõe-se (e adotamos), na presente pesquisa, a
utilização do termo violência, apesar da banalização do referido termo e em face dos
inúmeros contextos em que ele pode ser utilizado; ou da palavra ataque, como na França,
pois ambos apresentam a verdadeira densidade que o ato representa, sem minimização da
conduta do agressor.
160
Outro ponto que merece destaque refere-se ao número de casos de violência sexual
infanto-juvenil na família, em comparação aos casos ocorridos fora dela. O número de
casos ocorridos na família foi relativamente inferior àqueles outros. Porém, há uma grande
dificuldade na avaliação real da freqüência das transgressões ao tabu do incesto, uma vez
que a falta de notificação deste tipo de violência é grande. Vários motivos podem
influenciar para que o silêncio ocorra frente à sociedade. Entre eles, o temor em face da
reação da própria família; a manutenção da família sagrada; a conivência entre as pessoas
que sabem do fato e não o denunciam; a idéia de que nada pode ser feito para resolvê-lo;
etc.
Ademais, cumpre observar que um dos fatores que pode ter contribuído para que não haja a
revelação dos casos dos ataques sexuais na família refere-se à ausência da existência e do
atendimento em rede e mecanismos ou instrumentos que proporcionem à vítima o
exercício dos direitos de cidadania plena, tais como proteção e atenção dos órgãos estatais,
sobre o que trataremos mais adiante.
Lado outro, a peculiar condição das crianças e adolescentes, como seres em
desenvolvimento, psicológica e moralmente, aponta para o fato de que eles não conseguem
resistir a um familiar adulto, que lhes impõe sua autoridade, seus desejos e sua força,
transformando-os em objetos sexuais.
O que se deduz é que em razão de uma das principais características do segredo de família,
apresentadas pela agressão incestuosa, o fenômeno acaba por ser acobertado por um
pesado e espesso véu, imposto pela família, pela sociedade e pelo próprio agressor, este,
sentindo-se protegido por esse manto, pela facilidade de conquistar a confiança de suas
vítimas, e pelas relações de poder existentes nesta dinâmica.
161
Ademais, o segredo é potencializado pelo sentimento de culpa da vítima e pelo sentimento
de impunidade do agressor diante da dominação imposta na relação de autoridade e de
poder para com a criança e/ou adolescente.
Outro aspecto relevante é o fato de o padrasto figurar como principal agressor sexual das
crianças e adolescentes. Em se tratando de padrasto, especula-se, ainda, que a revelação
possui maior aceitação, apesar de, no momento, não estar estabelecida nenhuma relação,
que justifique tal presunção.
Porém, mesmo diante da discrepância com algumas pesquisas existentes sobre o assunto,
aparecendo o padrasto e o pai como principais agressores, pode-se confirmar a hipótese de
ser a violência sexual muito mais proveniente da necessidade de afirmação do poder do
macho do que de seu desejo sexual, em consonância com Saffioti (1997).
O argumento de que a sexualidade feminina é domável, enquanto a masculina é
incontrolável, é inaceitável, uma vez que o agressor sexual infanto-juvenil doméstico não
ataca suas vítimas em todos os momentos em que experimenta o desejo sexual. Ao
contrário, os dados apresentados na presente pesquisa demonstram que os agressores
atacam suas vítimas de forma planejada com antecedência, geralmente quando a mãe está
ausente ou quando ela está entretida com alguma atividade como cuidar de um filho que se
encontra doente, ou amamentá-lo. O mito criado em torno da sexualidade irrefreável do
macho, nessas circunstâncias, possui a precípua função de beneficiá-lo.
O aumento do número de separações oficiais e divórcios em relação às décadas anteriores -
anos 80 e 70 , desconstituindo-se, assim, na maioria das vezes, a família nuclear (pai,
mãe e filhos) pode ser uma das causas que contribuíram para que o padrasto tenha sido
apontado como categoria prevalente em relação ao número de agressores, em detrimento
162
dos pais. Segundo o IBGE, houve mais de 126 mil separações oficiais em 2002, três vezes
mais que a média da década de 70. Ainda, nas separações oficiais no Brasil, todo ano cerca
de 200 mil filhos (crianças na maioria) vivenciam o fim do casamento dos pais (REVISTA
ÉPOCA, 2005).
Mais um ponto de destaque apresentado na pesquisa refere-se ao fato de que a maior
quantidade de vítimas se encontra concentrada na faixa etária estabelecida entre os 7 e
os13 anos de idade, o que corrobora o levantamento realizado por Azevedo e Guerra
(1987) citado por Saffioti (1997), através do qual, a maior incidência do fenômeno da
violência sexual recaiu sobre as crianças na referida faixa etária; e o estudo realizado por
Ribeiro et alii (2004), em que a maioria das vítimas de violência sexual eram crianças.
Também confirma o fato a assertiva apresentada por Bouhet et alii (1997, p. 37) de que “o
conjunto dos estudos de prevalência demonstra que a criança está mais exposta entre os
nove e doze anos de idade”.
Convém acrescentar que a maioria das pesquisas e a literatura sobre gênero referem-se,
genericamente, a crianças como vítimas, sem, contudo, especificar as suas faixas etárias,
ou mesmo, diferenciá-las dos adolescentes vítimas, como em Furniss (1993), Gabel (1997),
Cohen e Matsuda apud Saffioti (1997), entre outros, o que dificulta a comparação.
A gravidade da realidade apresentada se vê aumentada se considerarmos a idade das
vítimas de violência sexual não na data da notificação (revelação pública), mas a idade das
vítimas quando do início do ataque sexual. Intui-se que a preferência por crianças sugere a
violência sexual enquanto afirmação do poder, e não como resultado de uma pulsão sexual
irreprimível, pois além de o ambiente familiar apresentar condições favoráveis aos ataques
163
sexuais contra crianças e adolescentes, as crianças demonstram certas características que
fazem delas vítimas potenciais desse tipo de violência.
Nos casos de violência sexual em que as mães possuem contato afetivo próximo com as
filhas, a violência não possui um efeito duradouro, uma vez que a própria mãe tem
condições de perceber o que está ocorrendo e tomar a iniciativa de medidas de proteção às
vítimas.
Na maioria das vezes, a revelação completa da violência sexual é desencadeada pela mãe,
pela vítima ou por profissionais de uma forma ou de outra com eles envolvidos
(profissionais da área da saúde, da educação, entre outros). Nos três casos, as várias formas
de revelação devem ser manejadas diferentemente.
A presença da “pessoa de confiança” no processo de revelação é de grande importância,
pois mesmo não sendo necessariamente especialista em violência sexual doméstica, tal
pessoa poderá controlar a ansiedade que costuma conduzir à compreensível negação e
mentira, quando as vítimas são encaminhadas a entrevistas de revelação com pessoas
estranhas, proporcionando o suporte emocional necessário e dando à criança a licença
explícita pra revelar a violência sexual sofrida.
Nos casos em que a própria mãe conduziu a vítima e iniciou a revelação, ela própria pode
ser considerada a “pessoa de confiança”. Contudo, o “ideal” seria que uma terceira pessoa,
estranha aos quadros familiares fosse esta “pessoa de confiança”.
Outra característica apresentada pela pesquisa é que a principal “pessoa de confiança” foi a
mãe, o que demonstra um certo grau de cumplicidade e solidariedade entre a mãe e as
filhas, mesmo que, em alguns casos estudados, as mães não tenham acreditado no relato
164
das vítimas e, ainda, tenham tentado desqualificar suas revelações, ou até a pessoa da
vítima.
O fato de os crimes sexuais contra crianças e adolescentes serem praticados na
clandestinidade, sem testemunhas, foi marcante na pesquisa. Dessa forma, a revelação da
vítima, comumente denominada de “palavras da vítima” pelos atores jurídicos, representa
especial importância, tanto do ponto terapêutico quanto no processo de responsabilização
do agressor. Também não foi possível estabelecer uma correlação entre as declarações das
vítimas, pois, nos casos estudados exceção do caso 1pc , não há elementos suficientes
para demonstrar se as revelações das vítimas eram falsas ou verdadeiras.
Assim, a pesquisa demonstra a necessidade de buscar outros elementos que procurem
confirmar ou não a revelação da vítima, notadamente os psicológicos e sociais, o que é de
suma importância no processo de responsabilização do agressor, influenciando não só do
ponto de vista legal, como também do terapêutico.
Os atores jurídicos apresentam comportamento conflitante, uma vez que, a despeito da
importância atribuída às “palavras da vítima”, ao mesmo tempo em que eles, “na teoria”,
supervalorizam-nas, “na prática”, o que se constata é que elas só possuem valor se aliadas
a outros elementos de prova existentes nos processos. As “palavras da vítima” são,
portanto, sub-valorizadas.
Apesar de a entrevista terapêutica não se confundir com a entrevista legal, a psicologia
pode contribuir para formar o conjunto de elementos necessários para confirmar ou não os
fatos apresentados na revelação.
165
Muitas vezes é o testemunho da vítima aliado às evidências físicas que irá determinar ou
não a validade da alegação. Porém, na maioria dos casos analisados, além de praticados na
clandestinidade, não há evidências físicas ou médicas suficientes para identificar um
agressor específico.
Portanto, a presença do profissional de psicologia se faz necessária para tentar colher um
relato mais objetivo e menos viesado das vítimas, principalmente com auxílio de técnicas
especiais para abordar as questões sexuais
57
.
A aproximação da psicologia com o direito, principalmente nas questões envolvendo
violência sexual infanto-juvenil doméstica é importante e necessária para as duas áreas do
saber, pois uma oferece à outra as ferramentas e instrumentos na busca, não só da
responsabilização criminal do agressor, mas também no processo terapêutico de
“reestruturação” pessoal da vítima, da família e do próprio agressor.
Nesse contexto, aliado à literatura existente e apresentada nesta pesquisa, muitas vezes
diante da dificuldade de a vítima verbalizar os fatos, e, até mesmo pela ausência de
testemunhas, e vários outros fatores já abordados, que fragilizam a revelação, levando-a,
até mesmo à retratação “síndrome da adaptação”, propõem-se que a criança ou o
adolescente vítimas sejam entrevistados pelo profissional de psicologia em uma “sala de
espelhos”, em que o Juiz, o Promotor de Justiça e o Advogado de Defesa assistam e
acompanhem a entrevista do outro lado, sem prejuízo do relatório a ser apresentado pelo
57
Tais como o uso de bonecos anatomicamente coretos (com os órgãos genitais) (FURNISS, 19993; BOAT e
EVERSON, 1998), a procura de sinais específicos em testes psicológicos gráficos (MOORE, 1994;
HERNANDEZ et al., 2000) e modelos conceituais para testar a veracidade das alegações feitas por crianças
(YONG, 1986), (SHINE, 2003, p. 242)
166
psicólogo que realiza entrevista, atendo-se não só a esta, mas à dinâmica familiar e a todos
os envolvidos direta ou indiretamente, tais como a companheira, o agressor, os irmãos, etc.
Abordando o aspecto da revelação, observa-se que se deve evitar o processo de
revitimização da criança e/ou do adolescente, principalmente quando da submissão da
mesma a várias e desnecessárias entrevistas legais, e, também, por meio das perguntas do
(a) advogado(a) de defesa do agressor que, na tentativa de fragilizar a pessoa da vítima,
aproveitando-se do momento que ela vive, de conflitos internos e externos, muitas vezes,
de forma habilidosa e sem pudores, sujeita-a à potencialização da culpa, do medo, da
vergonha, etc, como no exemplo: “O agressor é um bom pai de família; ele é um bom
marido para sua .....; ele trabalha; é honesto; etc.”
Também é relevante a constatação de que uma das principais lacunas existentes para a
responsabilização do agressor refere-se à ausência de gerenciamento em rede, envolvendo
o fluxo de responsabilização, de atendimento e de defesa dos direitos.
A intervenção nas situações incestogênicas não pode ser um ato isolado de um ou outro
profissional, como apresentado na análise dos casos estudados. Exige um delicado
processo organizado e coordenado, com uma sólida e consistente rede de profissionais, tais
como Assistentes Sociais, Médicos, Psicólogos, Psiquiatras, Promotores de Justiça,
Conselho Tutelar, Delegadas de Polícia etc.
As revelações iniciais pelas vítimas podem ser apenas parciais. Num primeiro momento,
revelam uma agressão menor antes de criarem coragem de contar todos os fatos,
geralmente muito mais tarde. Posteriormente, quando passam a confiar é que revelam por
completo o ataque sexual sofrido.
167
A entrevista legal com a vítima em busca da revelação pode variar em face da idade e do
estágio de desenvolvimento da vítima, fator de extrema importância na condução do
processo de responsabilização do agressor.
A participação de outros profissionais, de forma multidisciplinar, a criação de uma rede, e
o atendimento em rede, com a participação dos outros fluxos de atendimento e de
defesa dos direitos é essencial, tanto do ponto de vista terapêutico, quanto do ponto de
vista legal, podendo contribuir para corroborar as “palavras da vítima”, diante da ausência
de testemunhas presenciais.
Quando se trata de violência sexual infanto-juvenil deve-se considerá-la tanto uma questão
normativa e política quanto clínica, pois ela apresenta importantes aspectos psicológicos,
sociológicos e antropológicos. O tema é sexista, e constitui um campo minado para fortes
opiniões. Para os profissionais que precisam lidar com as conseqüências. A violência
sexual contra a criança é um campo repleto de complexidade e confusão, tanto pessoal
como profissionalmente, assim como uma ameaça aos papéis profissionais tradicionais.
Isto sugere a necessidade de (re)-organização da rede profissional responsável pelo manejo
e pelo tratamento das vítimas de ataque sexual em suas respectivas famílias.
Como o fenômeno da violência sexual infanto-juvenil doméstica/intrafamiliar envolve
vários fatores complicadores, de natureza multidisciplinar, para o trabalho com as vítimas e
com suas famílias, ele requer estrita e ampla cooperação de grande diversidade de
profissionais com diferentes tarefas. Ainda, diante do enfoque legal e terapêutico, todos os
profissionais envolvidos devam ater-se aos conhecimentos legais para responsabilização do
agressor e de proteção da criança, assim como dos aspectos psicológicos, afastando-se
sentimentos e visões reducionistas do fenômeno e de seu enfrentamento.
168
Apenas em um dos casos analisados - 1pc – houve a participação de vários profissionais,
de forma multidisciplinar, apesar de ter ocorrido aleatoriamente, sendo alcançada a
responsabilização criminal do agressor. Note-se que no caso 1pc a participação
multidisciplinar dos vários profissionais foi decisiva, pois a revelação só ocorreu após a
intervenção dos profissionais de Psicologia e de Assistência Social, sendo consumada pelo
médico-legista.
Nos demais casos, em nenhum deles, seja nos inquéritos policiais arquivados, nos
processos em que ocorreu a condenação, ou naqueles em que ocorreu a absolvição, houve
intervenção multidisciplinar, ou ao menos, a participação de outros fluxos, apenas do fluxo
de responsabilização do agressor.
Saliente-se que nos casos 2pc e 3pc, mesmo não havendo a intervenção multidisciplinar e a
participação dos fluxos de atendimento e de defesa dos direitos, houve a condenação dos
agressores. Porém, a análise dos dois casos demonstra que os atores jurídicos se mostraram
satisfeitos com os elementos existentes no processo (testemunhas e confissão dos
agressores), subestimando a vítima, a família e o próprio agressor.
A complexidade do fenômeno violência sexual contra crianças e adolescentes também os
envolve como seres humanos estruturalmente dependentes, pois são pessoas com seus
próprios direitos, e que não podem exercê-los por si próprias, necessitando da proteção e
do cuidado dos pais ou responsáveis. A natureza específica da violência sexual contra
crianças e adolescentes apresenta-se como uma “síndrome conectadora” de segredo para a
vítima, a pessoa que cometeu a agressão e a família, e como “síndrome de adição” para o
agressor, complicando tanto a intervenção legal quanto a intervenção protetora da criança,
assim como a própria terapia (FURNISS, 1993).
169
Neste contexto, por fim, surge a falta de capacitação das Delegadas de Polícia e dos
Promotores de Justiça que atuaram nos casos analisados, como uma das principais questões
resultantes da análise realizada. Apesar de a criação da Delegacia de Polícia de Defesa da
Mulher trazer consigo o pressuposto de profissionais capacitadas (os) e treinadas(os) para o
atendimento à mulher, os casos estudados demonstram o contrário, que a ausência de
capacitação das Delegadas de Polícia pode ter sido um dos fatores decisivos para o
arquivamento dos feitos e absolvição dos agressores, e, por conseguinte, da potencialização
de graves traumas às vítimas, além da revitimização e da permissão tácita para o agressor
continuar realizando o ataque sexual.
Importante frisar que a análise dos casos nos demonstra que a capacitação das Delegadas
de Polícia de Defesa da Mulher, bem como das demais agentes policiais que atuam
naquelas unidades policiais é de crucial importância para a condução dos casos, pois elas,
em tese, estão encarregadas, num primeiro momento, de receber “formalmente” as
revelações das vítimas, o que exige, conforme já demonstrado, capacitação e preparo
especiais.
Por outro lado, a forma de agir dos Promotores (as) de Justiça que atuaram nos casos
analisados também demonstra que a falta de capacitação dos mesmos pode ter sido
essencial para o arquivamento dos inquéritos policiais, ou para a absolvição dos agressores,
pois nenhuma diligência realizaram para complementar a atuação das Delegadas de Polícia
e alcançar a elucidação dos fatos.
Anote-se que, também, nos três casos em que houve a condenação dos agressores, tanto a
conduta das Delegadas de Polícia como as dos Promotores (as) de Justiça não
demonstraram qualquer coordenação ou planejamento dos atos praticados. Assim, intui-se
170
que somente a formação jurídica dos atores para a atuação em casos de violência sexual
infanto-juvenil doméstica, sem um conhecimento específico e mais acurado, seja
insuficiente para o enfrentamento do fenômeno e para a responsabilização do agressor.
Deve-se buscar uma mínima capacitação para a atuação com famílias, crianças e
adolescentes, e, por fim, com violência sexual. A aplicação isolada da lei através dos
instrumentos jurídicos colocados à disposição de seus atores não é suficiente. Leva,
inevitavelmente à não responsabilização do agressor e à transformação dos ataques sexuais
em rotina. O agressor sente-se “autorizado” a continuar atacando: hoje a filha, amanhã a
sobrinha, a neta etc.; e a vítima sofrendo no calabouço do silêncio, da culpa, da vergonha, e
da discriminação, simplesmente por ter sido vítima.
Além da necessidade de criação e do atendimento em rede — de forma dialética —
envolvendo os vários fluxos — de atendimento, de responsabilização e de proteção dos
direitos — a pesquisa nos demonstra, dentro dos limites já apresentados e mencionados,
que um dos fatores essenciais para o enfrentamento do fenômeno da violência sexual
infanto-juvenil doméstica, e, ainda, para a responsabilização do agressor, está relacionado
à formação e à capacitação dos profissionais envolvidos, principalmente, nos casos
estudados, das Delegadas de Polícia, dos Promotores de Justiça e dos Magistrados.
A ação dos atores jurídicos nos inquéritos policiais e nos processos de responsabilização
dos agressores é decisiva e influenciam diretamente na vida das vítimas, dos agressores e
das famílias envolvidas. Portanto, os modelos estereotipados pelos atores jurídicos deve ser
questionado, buscando-se maiores aprofundamentos nas questões estruturais e individuais,
principalmente naquelas relacionadas à formação e à capacitação dos encarregados pela
171
responsabilização dos agressores, bem como pela trajetória da vida da vítima e de sua
família.
Cumpre consignar que se pretende aprofundar a presente pesquisa, em outra fase, tendo-se
como objeto principal de estudo a formação e a capacitação dos atores jurídicos envolvidos
diretamente na responsabilização do agressor sexual infanto-juvenil.
172
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182
ANEXOS
183
RESUMO DOS CASOS
CASO 1 I
No caso de S13F, F38P, mediante violência e grave ameaça a teria estuprado por várias
vezes, aproveitando-se da ausência dos demais familiares, ou durante o repouso noturno.
Para conseguir seu objetivo e para manter o segredo, o agressor ameaça a vítima. O autor
negou os fatos narrados por S13F, dizendo que ela inventou os fatos porque ele havia
tomado algumas medidas para “corrigi-la” e, em virtude disso, ela fugiu de casa e
inventou tudo. A vítima foi voluntariamente na Delegacia de Polícia e consumou a
revelação. Os documentos analisados demonstram que a revelação teve início na Delegacia
de Polícia de Defesa da Mulher. Sua mãe e demais familiares (irmãos) não acreditaram na
vítima. A genitora da vítima informou disse que ela inventou tudo para poder sair de casa e
viver pelas ruas, pois ela apresentava um comportamento “imoral e promíscuo”, tendo
fugido de sua casa por quatro vezes.
A irmã da vítima e mais duas pessoas estranhas ao ambiente familiar disseram que a vítima
teria inventado a estória para se vingar de seu pai que a estava repreendendo, pois ela fugia
de casa constantemente. Foi realizado exame médico legal, o qual constatou a ruptura
himenal completa em data não recente. Não há registro de acionamento ou intervenção do
Conselho Tutelar, nem tampouco de qualquer outro profissional, a não ser o médico, que
realizou o exame médico-legal. A única providência adotada pela Delegada de Polícia que
presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima, sua genitora, o agressor e
algumas testemunhas.
CASO 2 I
Neste caso M22MP , aproveitando a ausência da mãe, teria “colocado o pinto no bumbum”
de D4F – atentado violento ao pudor. Quando a mãe chegou em sua residência, a vítima
D4F contou o ocorrido à sua mãe, que compareceu na Delegacia de Polícia e consumou a
revelação pública, pois, quando “examinou” a criança, “ela tirou sua calcinha e, além de
exalar um forte cheiro estava manchada de sangue.... tinha um corte no ânus que ainda
sangrava” . Ainda, a mãe afirmou que a vítima lhe disse que M22MP lhe daria dinheiro
184
para que ela nada contasse. Logo após os fatos, a mãe de D4F viu o agressor tomando
banho e constatou que ele tinha “ ...uma substância amarelada no pênis, parecendo ser
fezes...”. A genitora salientou que M22MP é compulsivo por sexo e queria praticar sexo
anal com ela, bem como relações sexuais a todo o momento. Diante da negativa, ele a
espancava e a ameaçava de morte. A notícia dos fatos foi levada pela genitora, passados
alguns dias (03 - três) do ocorrido, diretamente na Delegacia de Polícia do Município,
sendo encaminhada para a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher. Quando ouvida na
Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, a vítima D4F não quis se manifestar,
permaneceu calada, nada falando sobre os fatos. Os documentos analisados demonstram
que não houve revelação por parte de D4F, pois esta permaneceu calada. O procedimento
teve início na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher. Não há registro de acionamento
ou intervenção do Conselho Tutelar, nem tampouco de qualquer outro profissional, a não
ser o médico, que realizou o exame médico-legal. Os demais fluxos – de atendimento e de
defesa dos direitos da criança e do adolescente-, não foram acionados, não havendo
registros de nenhuma intervenção. A única providência adotada pela Delegada de Polícia
que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima - que se calou - , sua
genitora, o agressor e algumas testemunhas (vizinhos).
CASO 3I
No caso de M7F, C27MPa teria praticado relações sexuais com ela – estupro. A notícia dos
fatos foi levada à Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher através do pai biológico da
criança, que ficou sabendo através de terceiros (avô materno). A vítima M7F não
confirmou os fatos, de forma limitada afirmou que “...as vezes gosto de meu ´C27MPa –
agressor -´, mas as vezes eu sinto raiva, quando lembro de alguma coisa, que não quero
falar... ”. A genitora não acreditou nos fatos noticiados, dizendo que a vítima havia levado
dois tombos e machucado a vagina (nas duas vezes). Posteriormente, M7F lhe dissera,
“muito envergonhada” que C27MPa “havia colocado o dedo em sua vagina...brigou com
C27MPa que negou tudo, e como acreditou não ser grave, não tomou nenhuma outra
atitude. Em decorrência desses fatos tratados agora nestes autos, pediu para C27MPa sair
da casa e os deixar em paz”. Conforme consta dos documentos analisados, não houve
revelação expressa por parte de M7F, apenas revelação simbólica. Os documentos
185
demonstram que não houve o acionamento ou intervenção do Conselho Tutelar, nem de
outros profissionais (psicólogos, psiquiatras etc.), apenas a realização de um estudo social,
com uma visita domiciliar, o qual constatou, entre outros, que maus-tratos e negligência
por parte da genitora da vítima e do agressor C27MPa. O estudo social mencionado não foi
realizado em face da notícia da violência sexual, mas porque o irmão da vítima, de 12
anos, teria abandonado a residência, utilizando-se a Autoridade Policial, de forma precária,
de cópia do estudo social. Há ainda, o registro do exame médico-legal que não comprovou
a conjunção carnal investigada, mas, também não a afastou, colocando em dúvida, tendo o
médico-legista tirado várias fotos da vagina da vítima, para demonstrar que não houve
ruptura do hímen. O procedimento teve início na Delegacia de Polícia de Defesa da
Mulher.
Os fluxos de atendimento e de defesa dos direitos da criança e do adolescente não foram
acionados, não havendo registros de nenhuma intervenção. A única providência adotada
pela Delegada de Polícia que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima -
que se calou - , sua genitora, o agressor e algumas testemunhas (parentes).
CASO 4 I
No caso de A7F e E10F, o agressor H19MPa , mediante ameaça, fez com que A7F
“chupasse seu pênis” , por várias vezes, “até ejacular”, bem como fazia com que E10F
visse revistas pornográficas, beijava suas pernas e sua vagina, e fazia com que ela pegasse
em seu pênis. Certo dia, H19MPa tentou amarrar as pernas de E10F para “fazer alguma
coisa de ruim com ela” . A genitora das crianças confirmou que tinha conhecimento dos
fatos, mas não tomou nenhuma providência, apenas, posteriormente, diante da intervenção
dos tios, “mandou H19MPa sair de casa”. A notícia dos fatos foi levada à Delegacia de
Polícia de Defesa da Mulher através dos tios das crianças, que tomaram conhecimento
através das mesmas. Os tios salientaram que em determinado dia presenciaram a boca de
A7F cheia de esperma, após H19MPa ter obrigado que ela “chupasse seu pênis” . A vítima
E10F revelou publicamente os fatos, narrando com detalhes todos os acontecimentos. Já a
vítima A7F ao menos foi ouvida pela Autoridade Policial. O agressor H19MPa negou os
fatos e, ainda, disse que após os fatos “não está mais morando com D – mãe das vítimas -,
entretanto, algumas noites, vai dormir na casa dela”. Os documentos demonstram que não
186
houve o acionamento ou intervenção do Conselho Tutelar, nem de outros profissionais
(Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes Sociais etc.). Há ainda, o registro do exame médico-
legal realizado apenas na vítima E10F. O procedimento teve início na Delegacia de Polícia
de Defesa da Mulher. Os fluxos de atendimento e de defesa dos direitos da criança e do
adolescente não foram acionados, não havendo registros de nenhuma intervenção. A única
providência adotada pela Delegada de Polícia que presidiu e conduziu a investigação foi a
de ouvir a vítima E10F - que revelou parcialmente - , sua genitora, o agressor e algumas
testemunhas (parentes).
CASO 5 I
Neste caso, C13F estava em seu quarto dormindo quando P45MP, aproveitando-se da
ausência da genitora de C13F adentrou no local retirou a roupa e nu, mostrou o pênis para
C13F, mandando que ela o segurasse a convidou para manter relações sexuais, tentando
retirar sua bermuda. C13F conseguiu se desvencilhar de P45MP e correu para o quarto de
seu irmão, momento em que P45MP foi para seu quarto e deitou-se em sua cama como se
nada tivesse ocorrido. Quando a genitora chegou, C13F lhe relatou o ocorrido, sendo que
ela chamou a polícia e P45MP foi colocado para fora da casa pelo próprio filho, irmão de
C13F. A vítima disse que não é a primeira vez que P45MP tentou manter relações sexuais
com ela e, ainda, que ele já tentou também como sua irmã. A mãe de C13F informou que
foi casada com P45MP por 17 anos e que se separou do mesmo ao tomar conhecimento
que ele estava importunando sexualmente as filhas, inclusive que ele tirava a roupa e
mandava que elas pegassem em seu pênis. Apesar da separação, P45MP não saiu da casa.
A revelação pública ocorreu na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, sendo que a
vítima C13F narrou os fatos com detalhes. Os fatos foram confirmados pelas testemunhas
ouvidas, inclusive pelos irmãos da vítima C13F, que estava na residência no momento. O
agressor P45MP negou os fatos, afirmando que é alcoólatra e que nunca “importunou
sexualmente suas filhas, pelo que se recorda”. Os documentos informam que não houve o
acionamento ou intervenção do Conselho Tutelar, nem de outros profissionais (Psicólogos,
Psiquiatras, Assistentes Sociais etc.). Não há registro do exame médico-legal realizado na
vítima C13F, pois, segundo consta, P45MP não chegou a retirar a roupa da vítima. O
procedimento teve início na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher. Os demais fluxos –
187
de atendimento e de defesa dos direitos da criança e do adolescente-, não foram acionados,
não havendo registros de nenhuma intervenção. A única providência adotada pela
Delegada de Polícia que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima-, sua
genitora, o agressor e algumas testemunhas (irmãos da vítima).
CASO 6 I
Neste caso o agressor A50MPa manteve relações sexuais mediante grave ameaça com
K16F por aproximadamente 03 anos. K16F salientou que mantinha o segredo porque tinha
medo que A50MPa cumprisse as ameaças e lhe matasse. A50MPa dizia a K16F que “se
você não der para mim eu te mato” . Disse que chegou a contar para sua genitora, mas
A50MPa inverteu a situação, falando que era K16F quem “estava dando em cima dele”. A
vítima K16F foi expulsa da casa pelo agressor A50MPa, indo residir com sua avó materna,
pois sua genitora “está do lado dele e não quer fazer nada para prejudicá-lo”.
Posteriormente, voltou para a casa da mãe e os “abusos” reiniciaram , sendo que A50MPa
tinha muito ciúmes dela, pois não a deixava sair de casa, nem ter amizades, xingando-a
constantemente de “vagabunda, piranha , biscate” . Ela disse que diante dos fatos, tinha “a
sensação de que era ela a mulher de A50MPa e não sua mãe” . Chegou a sofrer agressões
físicas por parte de A50MPa simplesmente porque estava conversando com um colega. Os
fatos foram confirmados pela avó, que disse que sempre desconfiou que “algo errado
estava ocorrendo” porque A50MPa tinha muito ciúmes de K16F, e que a própria genitora
de K16F confirmou que tinha conhecimento que “K16F já tinha para a cama com
A50MPa” . Quando K16F estava em sua casa A50MPa foi até o local e disse que a estava
procurando para matá-la “porque nem para sabão a menina servia”. A genitora da vítima
disse que percebeu que “algo de errado estava ocorrendo” em razão do ciúmes exagerado
do agressor em relação a K16F, não deixando nem sequer que esta saísse de casa e que
tivesse amizades. Em determinada ocasião, A50MPa expulsou K16F de casa e está disse
que já “tinha dormido com ele”. Disse que “não queria acreditar” no que estava ouvindo,
embora já desconfiasse. Não acreditou, acrescentando: “...se eu tivesse visto com meus
olho, seria a primeira a denunciá-lo” . Manifestou o desejo de não representar
58
contra o
58
Para que o agressor fosse responsabilizado pelo crime que cometeu, não havia necessidade de
representação do representante legal da vítima - art. 225, inciso II, do Código Penal.
188
agressor da vítima, dizendo que só tomou conhecimento dos fatos quando recebeu o
chamado para comparecer na Delegacia. Também a avó manifestou o desejo de não
representar contra o agressor da vítima. O agressor A50MPa, após a revelação pública,
desapareceu da cidade, não sendo localizado para expressar sua versão sobre os fatos. A
revelação pública ocorreu na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, sendo que a
vítima K16F narrou os fatos com detalhes. Os documentos demonstram que não houve o
acionamento ou intervenção do Conselho Tutelar, nem de outros profissionais (Psicólogos,
Psiquiatras, Assistentes Sociais etc.). Há apenas o registro do exame médico-legal
realizado na vítima K16P, que confirmou a conjunção carnal em data não recente. O
procedimento teve início na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher. Os demais fluxos –
de atendimento e de defesa dos direitos da criança e do adolescente -, não foram acionados,
não havendo registros de nenhuma intervenção. A única providência adotada pela
Delegada de Polícia que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima - , sua
genitora e sua avó, não nenhuma outra diligência, nem ao menos para tentar localizar o
agressor.
CASO 7 I
Neste caso, enquanto a mãe de T11F saia de casa para trabalhar, o agressor J29MPa
passava as mãos por seu corpo, tirava suas roupas e as dele e passava o pênis em sua
vagina, ameaçando-a de morte e, ainda de se suicidar. A vítima T11F disse que o agressor
“lhe convidava para brincar e pedia para que ela sentasse em seu colo, momento em que
tirava sua calcinha, abria suas pernas, chupava seus peitos e enfiava o dedo...ainda ficava
esfregando seu pênis na sua vagina...” . Após tomar conhecimento dos fatos, a mãe de
T11F resolveu sair de casa. A mãe da vítima só tomou conhecimento dos fatos na
delegacia de polícia, quando T11F revelou publicamente o ocorrido. O agressor J29MPa
negou que tenha violentado sexualmente T11F , afirmando que “ ela é uma criança e que
ama muito” . A revelação pública ocorreu na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher,
sendo que a vítima K16F narrou os fatos com detalhes. Os documentos demonstram que
não houve o acionamento ou intervenção do Conselho Tutelar, nem de outros profissionais
(Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes Sociais etc.). Há apenas o registro do exame médico-
189
legal realizado na vítima T11F. O procedimento teve início na Delegacia de Polícia de
Defesa da Mulher.
Os demais fluxos – de atendimento e de defesa dos direitos da criança e do adolescente-,
não foram acionados, não havendo registros de nenhuma intervenção. A única providência
adotada pela Delegada de Polícia que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a
vítima - , sua genitora e algumas pessoas que tomaram conhecimento dos fatos através da
mãe da vítima.
CASO 1 PA
No caso da vítima C15F, A38MP , na ausência de sua esposa, teria jogado-a na cama,
agarrando-a por trás e, passando as mãos por seu corpo, pedia para que ela o ajudasse a
gozar. Ainda, A38MP disse à vítima que “caso ela colaborasse ele lhe daria de tudo”.
Conforme consta dos documentos analisados, a revelação teve início no Conselho Tutelar,
portanto, no fluxo de defesa de direitos. O Conselho Tutelar não foi procurado pela vítima
ou sua mãe para revelar a violência sexual, mas acionado na Delegacia de Polícia
ocasionalmente, em razão de maus-tratos sofridos pelo irmão de C15F. Posteriormente, o
Conselho Tutelar encaminhou a notícia do abuso à Vara da Infância, tendo esta requisitado
a instauração de Inquérito Policial. In casu, o exame médico legal chegou a ser requisitado
pela Autoridade Policial, contudo, o caso foi encerrado com a absolvição do agressor (sem
recurso do Promotor de Justiça – mesmo tendo pedido a condenação), e o exame de corpo
de delito não foi juntado ao processo judicial. A revelação pública foi concretizada no
Conselho Tutelar, mas de forma ocasional, pois este fora acionado para comparecer na
Delegacia de Polícia em face de outro fato. Após a revelação pública não houve mais
nenhuma intervenção ou notícia de atuação do Conselho Tutelar no caso e, também, a
ausência de notícia de atuação do fluxo de atendimento, o que presume a não ocorrência de
tal atuação. A revelação esgotou-se nos relatos do Conselho Tutelar e, após, nas
declarações da vítima no Inquérito Policial ( Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher) e
no processo judicial (Fórum), mantendo a mesma versão de forma coerente e harmônica.
190
CASO 2 PA
Neste caso, o agressor J38MPa, utilizando-se de violência e grave ameaça, constrangeu
I16F a permitir que com ele se praticasse ato libidinoso
59
, diverso da conjunção carnal.
Ainda, consta dos documentos, que no período de dois anos os mesmos fatos ocorreram
por pelo menos quatro vezes. Conforme consta dos documentos analisados, a notícia dos
fatos ocorreu, dando início ao processo de responsabilização, na Delegacia de Polícia de
Defesa da Mulher, através da avó materna da vítima.A violência sexual de J38MPa contra
a vítima I16F perdurou por mais de dois anos, quando se tornou pública.
Quando compareceu na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, I16F revelou
publicamente a violência sofrida, narrando com detalhes dos fatos. A mãe da vítima disse
que tinha conhecimento dos fatos, mas apenas repreendia J38MPa, o qual se limitava a
“promoter que não faria mais aquilo” . Ainda, a mãe da vítima disse que J38MP a ameaça
de morte, bem como aos demais da família, ara que não contassem nada a ninguém. O
agressor J38MPa confessou os fatos narrados por I16F, contudo, disse que tudo não
passava de “....brincadeira, não queria abusar da garota, não pretendia fazer dela sua
mulher, pois sempre foram ligados, tinham muita amizade, desde que ela era pequenina...”.
Não houve o acionamento ou intervenção do Conselho Tutelar, nem de outros profissionais
(Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes Sociais etc.). Há apenas o registro do exame médico-
legal realizado na vítima I16F. Os demais fluxos – de atendimento e de defesa dos direitos
da criança e do adolescente -, não foram acionados, não havendo registros de nenhuma
intervenção. A única providência adotada pela Delegada de Polícia que presidiu e conduziu
a investigação foi a de ouvir a vítima, sua genitora, sua avó, e algumas pessoas que
tomaram conhecimento dos fatos através da mãe da vítima, e de sua avó. A revelação
pública relatada pela vítima no inquérito policial ( Delegacia de Polícia de Defesa da
Mulher), foi renovada no processo judicial (Fórum), quando ouvida novamente sobre os
fatos. A genitora da vítima negou-se a depor contra J38MP em Juízo, a pretexto de não
prejudicá-lo, apesar de confirmar no inquérito policial que sabia dos fatos e que J38MP lhe
teria confessado. No processo reduziu-se à reconstituição dos depoimentos prestados no
inquérito policial, não havendo o acionamento e/ou intervenção de nenhum outro
59
“O agressor J38MPa tirou a roupa de I16F e começou a se esfregar nela, de modo a tentar a conjunção
carnal, e ejaculou sobre sua perna...”(sic)
191
profissional (Psicólogo, Assistente Social, Psiquiatra etc.). Não houve a intervenção e/ou
atuação dos fluxos de atendimento ou de defesa dos direitos, o que presume a não
ocorrência de tal intervenção/atuação. O agressor J38MP foi condenado à pena de 08
(oito) anos e 09 (nove) meses de reclusão, em regime integralmente fechado, por uma juíza
de direito, em primeira instância. Contudo, ele foi absolvido pelo Tribunal de Justiça, por
unanimidade, sob o argumento de que a grave ameaça e a violência física não ficaram
comprovadas nos autos.
CASO 3 PA
O agressor V26MI constrangeu V11F a praticar atos libidinosos com ele, diversos da
conjunção carnal
60
. Ainda, consta dos documentos, que os atos sexuais foram praticados
repetidamente por longo período. Conforme consta dos documentos analisados, a notícia
dos fatos ocorreu, dando início ao processo de responsabilização, na Delegacia de Polícia
de Defesa da Mulher, no fluxo de responsabilização o agressor, através da mãe da vítima.
A mãe da vítima procurou a Delegacia de Defesa da Mulher, dizendo que há
aproximadamente dois ou três anos percebeu que sua filha estava “apresentando sérios
problemas de ordem emocional, chorava muito, procurava ficar isolada de todo pessoal,
pelas margens do rio, no sito onde moravam, até dias atrás falava em se matar” .
Aproximadamente quinze dias antes de procurar a Delegacia de Polícia, a vítima resolveu
contar o que estava ocorrendo, falou para sua mãe e suas irmãs que “desde pequena V26MI
mexia com ela...deitava-se com ela na cama e tentava fazer as coisas”, disse , ainda, que
ele tirou sua virgindade. Salientou que tinha percebido “algo estranho” no comportamento
de V26MI e que ele era “chegado” em crianças, mas até então, não sabia de nada. A
vítima V11F concretizou a revelação pública na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher,
narrando com detalhes os fatos. Há registro que a vítima só conseguiu revelar
publicamente os fatos em face de “tratamento psicológico”, mas não há nenhum relatório
psicológico, ou documento que comprove a atuação do profissional de psicologia. Um dos
irmãos da vítima chegou a presenciar V26MI violentando V11F, mas não tomou nenhuma
providência, apenas repreendeu V26MI, pois tinha vergonha e medo de contar o que
60
“O agressor V26MI despia V11F e esfregava seu pênis em sua genitália, fazendo, também, com que ela o
masturbasse, segurando em seu pênis”(sic).
192
presenciou. Durante o inquérito policial, o agressor V26MI não foi encontrado para
apresentar sua versão sobre os fatos. Mas, quando ouvido em Juízo, no processo crime,
V26MI negou os fatos revelados por V11F. Não houve o acionamento ou intervenção do
Conselho Tutelar, nem de outros profissionais (Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes Sociais
etc.). Há apenas o registro do exame médico-legal realizado na vítima V11F. Os demais
fluxos – de atendimento e de defesa dos direitos da criança e do adolescente -, não foram
acionados, não havendo registros de nenhuma intervenção. A única providência adotada
pela Delegada de Polícia que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima, sua
genitora, seus irmãos, e algumas pessoas que tomaram conhecimento dos fatos através da
vítima e de sua mãe. A revelação pública relatada pela vítima no inquérito policial (
Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher), não foi renovada no processo judicial (Fórum),
porque nem ela nem sua mãe foram encontradas para falar novamente sobre os fatos. O
processo reduziu-se à reconstituição dos depoimentos prestados no inquérito policial, não
havendo o acionamento e/ou intervenção de nenhum outro profissional (psicólogo,
assistente social, psiquiatra etc). Não houve nenhuma intervenção e/ou atuação dos fluxos
de atendimento ou de defesa dos direitos, o que presume a não ocorrência de tal
intervenção/atuação. O Ministério Público – fluxo de responsabilização e de defesa -,
através de uma Promotora de Justiça, pediu a condenação do agressor, mas ele foi
absolvido em primeira instância, por uma Juíza de Direito, e não houve recurso do
Ministério Público – que tomou ciência da decisão através de um Promotor de Justiça.
CASO 4 PA
Neste caso, LF27MT, mediante violência presumida, manteve conjunção carnal (estupro)
com S14F. A vítima S14F foi dormir na casa de LF27MT quando este, sorrateiramente,
enquanto sua esposa dormia, dirigiu-se ao local em que ela estava dormindo (sala) e a
estuprou, desvirginando-a. Após a consumação do fato, LF27MT disse para S14F não
contar nada para ninguém, pois poderia “complicar para ambos” . Com o passar dos dias,
LF27MT continuou a assediar a vítima S14F, inclusive na escola em que ela estudava, que
não cedeu aos seus pedidos. A notícia dos fatos ocorreu, dando início ao processo de
responsabilização, na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, no fluxo de
responsabilização o agressor, através da vítima, acompanhada de seus pais, seis meses após
193
os fatos. A vítima revelou publicamente os fatos na Delegacia de Polícia de Defesa da
Mulher, afirmando que estava dormindo na sala da residência de LF27MT, quando este, a
pretexto de assistir televisão, enquanto sua esposa dormia, deitou-se ao seu lado e começou
a acariciá-la e a beijá-la, consumando a relação sexual. O agressor LF27MT disse para a
vítima S14F não contar nada para ninguém, especialmente para seu pai. O agressor
LF27MT negou os fatos, dizendo que S14F inventou tudo. A esposa do agressor LF27MT
disse que S14F mentiu, pois LF27MT “...sempre foi um bom esposo e pai, e nunca lhe deu
motivos para que a mesma desconfiasse de seu comportamento....” . Em Juízo, quando
ouvida no processo crime para responsabilização do agressor, aproximadamente dois anos
e meio depois dos fatos, a vítima manteve a revelação pública apresentada na Delegacia de
Polícia, narrando os fatos com coerência. Não houve o acionamento ou intervenção do
Conselho Tutelar, nem de outros profissionais (Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes Sociais
etc.). Há apenas o registro do exame médico-legal realizado na vítima S14F. Os demais
fluxos – de atendimento e de defesa dos direitos da criança e do adolescente -, não foram
acionados, não havendo registros de nenhuma intervenção. A única providência adotada
pela Delegada de Polícia que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima,
seus genitores, e algumas pessoas que tomaram conhecimento dos fatos através da vítima e
de seus pais. O processo reduziu-se à reconstituição dos depoimentos prestados no
inquérito policial, não havendo o acionamento e/ou intervenção de nenhum outro
profissional (Psicólogo, Assistente Social, Psiquiatra etc). Não houve nenhuma intervenção
e/ou atuação dos fluxos de atendimento ou de defesa dos direitos, o que presume a não
ocorrência de tal intervenção/atuação. O Ministério Público – fluxo de responsabilização e
de defesa -, através do Promotor de Justiça , pediu a condenação do agressor, que foi
condenado pelo Juiz de Direito. O agressor recorreu da decisão, sendo que o Tribunal de
Justiça o absolveu, por unanimidade.
CASO 5 PA
O agressor N28MP, mediante grave ameaça exercida com um tijolo, manteve relações
sexuais com G11F. O agressor N28MP ameaçou G11F, dizendo que se ela contasse para
alguém ele a mataria e, ainda, ela não contou o ocorrido para a mãe porque “sabia que sua
mãe não iria acreditar nela”. Conforme consta dos documentos analisados, a notícia dos
194
fatos ocorreu, dando início ao processo de responsabilização, na Delegacia de Polícia de
Defesa da Mulher de outra Comarca, através da tia da vítima, acompanhada desta, quatro
meses após os fatos. A tia da vítima afirmou que G11F foi passear em sua casa e não
queria mais retornar, dizendo que não queria mais ver o agressor N28MP. Caso fosse
obrigada a retornar para sua casa e conviver com N28MP iria se matar. Então, após
conversa com sua tia, G11F revelou os fatos para ela. A vítima revelou publicamente os
fatos na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, seis meses após, afirmando que
N28MP sempre foi agressivo com ela. No dia dos fatos, ela acompanhou N28MP até a
casa de um parente. No caminho, foram “beriando a linha do trem ” , N28MP jogou-a no
chão e mandou que ela tirasse a roupa, como ela se negou, ele mesmo tirou sua roupa. A
vítima G11F começou a gritar e a chorar, pedindo para que ele não fizesse aquilo com ela,
tendo N28MP tampado sua boca com as mãos. Posteriormente, N28MP pegou um tijolo e
disse: “...se você gritar eu te bato com este tijolo e te mato...” , momento em que retirou
seu pênis para fora e introduziu em sua vagina, tendo ela sofrido intensa dor, com grande
sangramento. Com a consumação do ato, N28MP a ameaçou, dizendo: “...não conta nada
para ninguém, senão eu te mato...”. Não contou nada para sua mãe porque pensou que ela
não acreditaria nela, pos todas as vezes que N28MP batia nela e em seus irmãos, sua mãe
ficava do lado dele. Ainda, sua mãe nada percebeu de anormal. O agressor N28MP foi
preso preventivamente
61
durante o inquérito policial e negou os fatos, dizendo que G11F ,
juntamente com sua irmã (tia da vítima) inventaram tudo. A mãe da vítima disse que ficou
sabendo dos fatos somente na Delegacia de Polícia e que N28MP “....às vezes bate nas
crianças, mas isso quando é preciso...” , que a vítima G11F tinha muito medo dele. Em
Juízo, quando ouvida no processo crime para responsabilização do agressor,
aproximadamente nove meses depois dos fatos, a vítima manteve a revelação pública
apresentada na Delegacia de Polícia, narrando os fatos com coerência, estando consignado
que “...a vítima chorou muito durante o depoimento, que foi acompanhado pela Assistente
Social ...” . Posteriormente, ouvida mais duas vezes em Juízo, onze meses e um ano após
os fatos , a vítima informou que tinha inventado os fatos e que eram inverídicos, que tinha
mantido relações sexuais anteriormente com dois adolescentes, sendo que pretendia voltar
a residir com sua mãe e com o agressor. Não houve o acionamento ou intervenção do
Conselho Tutelar, nem de outros profissionais (Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes Sociais
61
Preso antes da decisão absolutória ou condenatória.
195
etc.). Há apenas o registro do exame médico-legal realizado na vítima G11F. Os demais
fluxos – de atendimento e de defesa dos direitos da criança e do adolescente -, não foram
acionados, não havendo registros de nenhuma intervenção. A única providência adotada
pela Delegada de Polícia que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima,
seus genitores, e algumas pessoas que tomaram conhecimento dos fatos através da vítima e
de seus pais. O processo reduziu-se à reconstituição dos depoimentos prestados no
inquérito policial, não havendo o acionamento e/ou intervenção de nenhum outro
profissional (Psicólogo, Assistente Social, Psiquiatra etc.). Não houve nenhuma
intervenção e/ou atuação dos fluxos de atendimento ou de defesa dos direitos, o que
presume a não ocorrência de tal intervenção/atuação. O Ministério Público – fluxo de
responsabilização e de defesa -, através de uma Promotora de Justiça, pediu a absolvição
do agressor, que foi absolvido pelo Juiz de Direito.
CASO 6 PA
Neste caso, o agressor D41MP durante aproximadamente 09 anos, quando na ausência da
genitora de A16F, ou quando ela estava dormindo, mediante violência e grave ameaça,
praticou atos libidinosos
62
com A16F, que tinha medo de D41MP, por isso, não contou a
ninguém. Conforme consta dos documentos analisados, a notícia dos fatos ocorreu, dando
início ao processo de responsabilização, na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher,
através da própria vítima que, não suportando mais os ataques sexuais, com medo de que
D41MP consumasse o estupro, procurou a Delegacia e, espontaneamente, revelou
publicamente a violência sofrida. A vítima revelou que sua irmã sofria os mesmos ataques
sexuais por parte de D41MP, e disse que no início D41MP “... fazia isso quando estava
bêbado, mas depois passou a fazer mesmo não estando..” . A partir do momento em que
D41MP começou a tentar penetrá-la, A16F contou os fatos para sua mãe, que não
acreditou e “... levava tudo como gozação...”. Não suportando mais os ataques sexuais
sofridos por parte de D41MP, A16F fugiu de sua residência, indo morar de “favor” na
casa de diversas pessoas que a acolhiam, inclusive com um homem. A vítima disse que
62
D41MP ia até a cama de A16F e começava a acariciá-la, passando as mãos sobre seu corpo e na vagina.,
com o pênis ereto sobre seu corpo. D41MP ficava nu e deixava A16F também nu, inclusive beijando-a na
boca.
196
sofre de intensas dores de cabeça, que às vezes fica violenta, agressiva, atira objetos nas
pessoas, que às vezes não se recorda de algumas coisas que fez. Ainda, salientou que ficou
sabendo, através de sua mãe, que “... estava falando em se matar... e foi encontrada a
caminho do pontilhão, pois iria se atirar embaixo dos carros...” . Todas as vezes em que
fica sozinha pensa em se enforcar, se queimar, se cortar, pois já não tem mais “...amor na
vida...” . A genitora de A16F confirmou que ela, por diversas vezes, lhe narrou os fatos e
que conversou com D41MP, mas ele disse que “... estava apenas brincando com ela...” .
Disse que sua outra filha, que já é casada, também reclamou, dizendo que D41MP “mexia
sexualmente com ela ... sendo que o caso foi parar na polícia..., mas ela posteriormente
retirou o que disse....” . Salientou que não sabe muito bem em quem acreditar, uma vez que
acredita que A16F está mentindo “...na maior parte do que diz...” para prejudicar D41MP,
pois nunca viu “...nada de anormal em seu lar...” . Continuou, afirmando que A16F “não
está muito bem da cabeça” , pois vive falando em se matar, fica violenta e foi surpreendida
querendo se jogar embaixo dos carros. Informou que estava preocupada com a vítima,
porque ela não se cuida mais, vive suja e xinga constantemente D41MP. O agressor
D41MP negou os fatos, dizendo que A16F , inventou tudo. Em juízo, durante o processo
crime para sua responsabilização, o agressor negou novamente os fatos, aduzindo que
A16F tinha voltado a morar em sua casa e que estava grávida. Em Juízo, quando ouvida no
processo crime para responsabilização do agressor, aproximadamente dois anos após a
revelação pública, a vítima negou a revelação pública apresentada na Delegacia de Polícia,
dizendo que tinha inventado tudo, simplesmente para prejudicar D41MP, para vingar-se
ele porque ele a retirou da escola em razão de notas baixas. Também, a genitora da vítima
negou que tinha conhecimento dos fatos e que, nem A16F , tampouco sua outra filha
tinham reclamado de ataques sexuais de D41MP. Não houve o acionamento ou intervenção
do Conselho Tutelar, nem de outros profissionais (Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes
Sociais etc.). Há apenas o registro do exame médico-legal realizado na vítima A16F. Os
demais fluxos – de atendimento e de defesa dos direitos da criança e do adolescente -, não
foram acionados, não havendo registros de nenhuma intervenção. A única providência
adotada pela Delegada de Polícia que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a
vítima, seus genitores, e algumas pessoas que tomaram conhecimento dos fatos através da
vítima. O processo reduziu-se à reconstituição dos depoimentos prestados no inquérito
policial, não havendo o acionamento e/ou intervenção de nenhum outro profissional
197
(Psicólogo, Assistente social, Psiquiatra etc.). Não houve nenhuma intervenção e/ou
atuação dos fluxos de atendimento ou de defesa dos direitos, o que presume a não
ocorrência de tal intervenção/atuação. O Ministério Público – fluxo de responsabilização e
de defesa -, através de um Promotor de Justiça, pediu a absolvição do agressor, que foi
absolvido pelo Juiz de Direito.
CASO 1 PC
Neste caso, a vítima I16F foi constrangida, mediante violência e grave ameaça, por
V44MP , na ausência de sua esposa, a tirar suas roupas , estuprando-a, desvirginando-a.
Ainda, V44MP teria ameaçado a vítima, para que não contasse nada a ninguém. O
processo de responsabilização do agressor teve início através da Diretora da Escola em que
a vítima e seus irmãos estudavam. Diante da suspeita da violência sexual, a Diretora da
Escola acionou a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher. A Delegada da Mulher
dirigiu-se até a residência da vítima, intimando-a para comparecer na Unidade Policial,
local em que a vítima revelou parcialmente a existência da violência sexual. Não há notícia
nos documentos analisados de que ela tenha acompanhado a vítima durante as intervenções
da Assistente Social e da Psicóloga, tampouco na realização do exame médico-legal,
oportunidade em que a vítima revelou o ataque sexual por completo, concretizando a
revelação pública na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher. Portanto, houve a
realização do exame de corpo de delito – conjunção carnal -, bem como intervenção do
Setor Social do Poder Judiciário e do Setor de Psicologia do Centro de Saúde local. Não há
notícia de intervenção do Conselho Tutelar. O agressor foi denunciado pelo Ministério
Público e ao final condenado. A revelação parcial foi concretizada na Delegacia de Polícia
de Defesa da Mulher, após acionada pela Diretora da Escola em que a vítima estudava,
sendo que a revelação completa somente ocorreu após a intervenção da Assistente Social e
da Psicóloga. Após a revelação pública não há notícia de nenhuma intervenção do
Conselho Tutelar ou de outros representantes dos Fluxos de Defesa de Direitos ou de
Atendimento, apenas a atuação do Ministério Público, como Fluxo de Responsabilização.
Os documentos demonstram que a revelação pública ocorreu em razão das ações
articuladas entre a Delegada da Mulher, a Assistência Social do Fórum e o Setor de
Psicologia do Centro de Saúde, a partir da suspeita da Diretora da Escola. O conjunto de
198
ações integradas, executadas por uma equipe interdisciplinar, mesmo que ocasionalmente,
sem a especialização necessária, levou à responsabilização do agressor com sua
condenação à pena de 07 (sete) anos e 06 (seis) meses de reclusão, em regime fechado, por
um Juiz de Direito, atendendo ao pedido do Promotor de Justiça. O agressor recorreu da
decisão do Juiz da Comarca, e Tribunal de Justiça manteve a responsabilização do
agressor, através da condenação do Juiz. Após a decisão final, o agressor foi preso para
cumprir a pena aplicada, 06 (seis) anos após os ataques sexuais praticados contra I16F.
CASO 2 PC
Neste caso, J57MPa, aproveitando-se da ausência, ou quando a genitora de C11F estava
dormindo, por aproximadamente 06 anos, desde que a vítima possuía 05 anos de idade,
manteve relações sexuais com a criança, estuprando-a, e, ainda praticando atos
libidinosos
63
. A notícia dos fatos foi levada pelo pai biológico da vítima C11F à Delegacia
de Polícia de Defesa da Mulher, sendo que tomou conhecimento dos fatos através de outra
filha e, posteriormente, em conversa com C11F, esta lhe confirmou que vinha sendo
estuprada por J57MPa desde os 05 anos de idade. O genitor de C11F disse que desconfiava
que a mãe de C11F tinha conhecimento dos fatos e nada fez. A vítima C11F esteve na
Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, em companhia de sua irmã e revelou
publicamente a violência sexual sofrida, confirmando o narrado por seu pai, salientando
que nunca relatou os fatos porque era ameaçada por J57MPa. Disse que em certa ocasião
J57MPa tentou estuprar suas sobrinhas de 06 e 07 anos, fato que presenciou, mas não
conseguiu porque elas começaram a gritar. C11F informou que “...acha que sua mãe sabe,
de toda a história, apesar de nunca ter dito nada, com medo de J57MPa...” . A irmã de
C11F, disse que sua mãe sabia dos fatos, pois certa vez flagrou J57MPa estuprando C11F,
mas não tomou nenhuma providência. A genitora de C11F confirmou que flagrou J57MPa
em atitudes suspeitas, parecendo que estavam praticando um ato sexual. O exame-médico
legal realizado na vítima confirmou o estupro sofrido por C11F. O agressor negou que
tenha estuprado C11F, ou que tenha praticado qualquer outro ato de violência sexual contra
a mesma. Após a revelação pública da violência sofrida, a vítima C11F foi
63
Penetração anal.
199
institucionalizada em um abrigo para crianças e adolescentes. Em juízo, a vítima manteve a
mesma versão apresentada na Delegacia de Polícia, narrando com detalhes os ataques
sexuais sofridos. A genitora da vítima não foi localizada para prestar declarações em juízo.
Não houve o acionamento ou intervenção do Conselho Tutelar, nem de outros profissionais
(Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes Sociais etc.). Há apenas o registro do exame médico-
legal realizado na vítima C11F. Os demais fluxos – de atendimento e de defesa dos direitos
da criança e do adolescente -, não foram acionados, não havendo registros de nenhuma
intervenção. A única providência adotada pela Delegada de Polícia que presidiu e
conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima, seus genitores, e algumas pessoas que
tomaram conhecimento dos fatos através da vítima, ou de sua mãe. O processo reduziu-se
à reconstituição dos depoimentos prestados no inquérito policial, não havendo o
acionamento e/ou intervenção de nenhum outro profissional (Psicólogo, Assistente Social,
Psiquiatra etc). Não houve nenhuma intervenção e/ou atuação dos fluxos de atendimento
ou de defesa dos direitos, o que presume-se a não ocorrência de tal intervenção/atuação. O
Ministério Público – fluxo de responsabilização e de defesa -, através de um Promotor de
Justiça, pediu a responsabilização do agressor, que foi condenado pelo Juiz de Direito à
pena de 07 (sete) anos e 06 (seis) meses de reclusão em regime integralmente fechado. O
agressor J57MPa não recorreu da decisão, que foi preso para cumprir a pena aplicada, 03
(três) anos após a prática dos ataques sexuais praticados contra C11F.
CASO 3 PC
Neste caso, R46MPa, de forma reiterada, durante aproximadamente oito meses,
aproveitando-se da ausência de sua genitora, estuprou E10F, mediante violência
presumida. A notícia dos fatos foi levada pela mãe da vítima E10F à Delegacia de Polícia
de Defesa da Mulher, uma vez que flagrou R46MPa mantendo relações sexuais com E10F.
A genitora de E10F , mesmo tendo flagrado R46MPa estuprando sua filha, não acionou a
polícia imediatamente. A notícia foi levada à Delegacia após decorridos seis dias do
flagrante. A vítima E10F esteve na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, em
companhia de sua genitora e revelou publicamente o ataque sexual sofrido, confirmando o
narrado por sua mãe, salientando que R46MPa , em troca das relações sexuais, lhe dava
presentes, como televisão, bicicleta, roupas e outros. Disse que durante o período em que
200
manteve relações sexuais com R46MPa sua mãe estava ausente, pois estava grávida e
encontrava-se na casa de uma prima e, posteriormente, mesmo com o retorno de sua mãe,
as relações seuxias continuaram, enquanto ela dormia. As relações sexuais ocorriam cerca
de duas ou mais por semana, sendo que R46MPa a desvirginou. O exame-médico legal
realizado na vítima confirmou o estupro sofrido por E10F. O agressor confessou que
mantinha relações sexuais com E10F sem violência, e disse que “... está apaixonado por
ela...” . Durante o inquérito policial o agressor R46MPa foi preso provisoriamente, e, após,
preventivamente. Em Juízo, o agressor também confessou o ato, mas disse que a mãe de
E10F sabia que ele mantinha relações com ela e nada fazia, pois era ele quem “sustentava a
casa” . A vítima, em Juízo, manteve a mesma versão apresentada na Delegacia de Polícia,
narrando com detalhes os ataques sexuais sofridos. Sua mãe negou que tinha conhecimento
dos fatos. Não houve o acionamento ou intervenção do Conselho Tutelar, nem de outros
profissionais (Psicólogos, Psiquiatras, Assistentes Sociais etc.). Há apenas o registro do
exame médico-legal realizado na vítima E10F. Os demais fluxos – de atendimento e de
defesa dos direitos da criança e do adolescente -, não foram acionados, não havendo
registros de nenhuma intervenção. A única providência adotada pela Delegada de Polícia
que presidiu e conduziu a investigação foi a de ouvir a vítima, sua genitora, e algumas
pessoas que tomaram conhecimento dos fatos através da vítima, ou de sua mãe.
O processo reduziu-se à reconstituição dos depoimentos prestados no inquérito policial,
não havendo o acionamento e/ou intervenção de nenhum outro profissional (Psicólogo,
Assistente Social, Psiquiatra etc). Não houve nenhuma intervenção e/ou atuação dos fluxos
de atendimento ou de defesa dos direitos, o que presume a não ocorrência de tal
intervenção/atuação. O Ministério Público – fluxo de responsabilização e de defesa -,
através de um Promotor de Justiça, pediu a responsabilização do agressor, que foi
condenado pelo Juiz de Direito à pena de 09 (nove) anos de reclusão em regime fechado. O
agressor R46MPa recorreu da decisão ao Tribunal de Justiça , que reduziu a pena imposta
para 06 (seis) anos de reclusão, permanecendo R46MPa preso para cumprimento de sua
pena pelos ataques sexuais praticados contra E10F.
201
MANIFESTAÇÕES DOS ATORES JURÍDICOS
CASO 1I
64
Vítima: S13F
Agressor: F38MP
No caso em tela, a versão apresentada por S não encontra o menor respaldo nas demais
provas carreadas para os autos. Não há prova da materialidade e nem tampouco
testemunhas oculares. As provas existentes nos autos revelam a existência do interesse de
S em usar tal fato para justificar sua saída da casa dos pais. O certo é que, no caso em foco,
a prova indiciária é por demais frágil, não fornecendo elementos para a propositura da
competente ação penal. Doutra parte, também não se vislumbram elementos que permitam
o prosseguimento das investigações.
CASO 2I
Vítima: D4F
Agressor: M22MP
D, não respondeu as perguntas da Autoridade Policial, conforme fls...., possivelmente por
ter ficado encabulada. O laudo pericial de fls.... não encontrou lesões no ânus da menor.
Estranho, ainda, é que, mesmo após estes fatos, que originaram a separação do casal, a Sra.
L continua a deixar seus filhos aos cuidados do ex-amásio, conforme relato de fls.... O fato
investigado é extremamente grave, mas não há indícios mínimos e sérios, a imputar ao
indiciado a prática dos atos libidinosos contra sua filha.
CASO 3I
Vítima: M7F
Agressor: C27MPa
64
As manifestações nos inquéritos policiais arquivados referem-se aos Promotores (as) de Justiça.
202
Não há elementos para a propositura de uma ação penal contra o indiciado, senão vejamos:
Com efeito, a prova testemunhal e documental que emerge dos autos é no sentido de que
tudo não passou de criação mental dos menores, cujo padrasto, o indiciado, repreendia
quando faziam arte. Desde logo, observa-se do depoimento pessoal de fls...., no qual a
própria genitora dos menores, amasiada como increpado, admite que a vítima levou dois
tombos antes da ocorrência dos fatos imputados, ocasião em que havia machucado a
vagina. O menor R, irmão da vítima, foi quem fez o alarde a toda a família acerca do
eventual estupro, mas esclarece que a menor machucou-se na verdade quando pulava na
cama, levando ao conhecimento de todos a ocorrência do estupro porque a menor adiantou
que o indiciado “havia feito besteira com ela”. De qualquer sorte, o Laudo de Exame de
Corpo de Delito é conclusivo no sentido de que a cicatrização das lesões apontam para o
traumatismo vulvo vaginal, sendo este mais provável do que a alegada conjunção carnal
(fls....). Por derradeiro, o indiciado nega veementemente a prática da infração penal
praticada (fls....) e a própria ofendida não confirma o imputado constrangimento, nem
mesmo a conjunção carnal.
CASO 4I
Vítima: A7F e E10F
Agressor: H19MPa
Trata-se de crime de ação penal privada, visto não ter sido praticado mediante violência a
menores. Não vislumbro tamm a possibilidade do crime ser de ação penal pública
condicionada, conforme dispõe o artigo 225, § 1º, I do Código Penal, visto não existir
Representação de qualquer forma, da representante legal das menores, legitimando este
órgão. Assim, face a ilegitimidade do membro do Ministério Público exercer o direito de
ação, e também em razão de ter ocorrido o prazo decadencial para a apresentação de
queixa-crime ou representação, requeiro a extinção da punibilidade......
203
CASO 5I
Vítima: C13F
Agressor: P45MP
Ademais, não se vislumbra no presente caso a existência de outras pessoas que assistiram o
ocorrido. Muito embora , nos crime sexuais, a palavra da vítima mereçam grande
credibilidade, há de se levar em consideração que trata-se de crime grave cuja pena é por
demais exacerbada, devendo, pois, o “dominus litis”estar seguro do conjunto probatório
eficaz. O que não ocorre no presente caso. É que no caso não se sabe se realmente o
indiciado retirou as roupas da sua filha ou tentou retira-las ou se, ainda, pediu para ela
retirá-las. A intenção ao agente também não ficou patenteada, vez que face a uma pequena
reação da vítima o autor desistiu do seu intento, isso se realmente ele queria estuprá-la.
Como se vê, as provas são por demais frágeis, não podendo ser considerada a tentativa de
retirar o shorts da menina como indício dos tos de execução do estupro, nem mesmo de ato
libidinoso, pois qual seria o pretendido pelo autor?
CASO 6I
Vítima: K16F
Agressor: A50MPa
Os fatos ocorreram anteriormente ao mês de abril de 1998. Assim, requeiro a extinção da
punibilidade do autor da infração, tendo em vista o transcurso do prazo decadencial, haja
vista que a representante da menor não deseja oferecer representação.
CASO 7I
Vítima: T11F
Agressor: J29Mpa
Inexistem , por outro lado, testemunhas presenciais que possas corroborar a versão
apresentada pela vítima, já que o laudo pericial realizado não teve o condão de atestar a
prática de atos libidinosos porque a vítima apresentou hímen íntegro, e, nos órgãos genitais
204
externos não foram encontradas quaisquer lesões, como fissuras ou equimoses. Destarte,
impossível imputar o delito de atentado violento ao pudor ao averiguado, mormente porque
J negou o crime, inexistem testemunhas presenciais e o laudo nada constatou. Finalmente,
vale ressaltar o depoimento de C, fls. , empregadora da mãe da vítima, a qual afirmou que,
após os fatos, a genitora de T voltou a namorar o acusado. Ato este, incompatível com a
conduta de quem teve a sua filha molestada pelo próprio amásio.
CASO 1PA
Vítima: C15F
Agressor: A38MP
PROMOTOR DE JUSTIÇA
...o acusado possui personalidade agressiva e não é a primeira vez que o mesmo tenta
molestar a sua filha sexualmente. Consta, inclusive, informações de que a genitora da
menor teria lhe pedido que não comunicasse o fato à polícia, pois o acusado poderia ser
preso. A violência real restou comprovada pelas declarações da vítima que afirmou que o
denunciado a segurou pelo braço e jogou-a na cama.
JUIZ DE DIREITO
Dos autos poderia se extrair que o réu não consegue segurar seus impulsos e desejos
sexuais, pois sua libido, ao menos em tese, estaria além do desejo de todos os homens
normais e carnais, todavia, a questão não deve ser analisada sob esse prisma, não podendo
ser olvidado que tratando-se de crime cometido contra os costumes a jurisprudência leva
em conta as palavras da vítima, desde que acompanhado pelo contexto das demais provas
produzidas nos autos. Realmente, não há testemunhas do ocorrido sendo que apenas
ouviram dizer, sendo que o que foi dito veio da boca da suposta vítima, não havendo
testemunho de vizinhos ou de outras pessoas. O fato de documentos se referirem ao réu
como pessoa de personalidade agressiva e de que não teria sido esta a primeira vez em que
tenha tentado molestar sexualmente sua filha, não pode pesar contra o réu que se defende
dos fatos narrados na denúncia e não dos relatórios do Conselho tutelar e do Juizado da
Infância e da Juventude desta Comarca. Não há prova suficiente para eu o réu seja
mandado ao cárcere, longe do seio da família, quando esta, segundo os depoimentos
colhidos, já está vivendo em harmonia e o incidente já foi superado.
205
CASO 2PA
Vítima: I16F
Agressor: J38MPa
PROMOTOR DE JUSTIÇA
Na fase policial, o acusado confessa a prática dos delitos, sendo certo que este é um
precioso elemento para a condenação, já que em consonância com todo o quadro
probatório. Corroborando com a confissão na fase policial do acusado está a palavra da
vítima que com riqueza de detalhes descreve os atos libidinosos a que foi submetida
mediante grave ameaça e violência pelo próprio.... A mãe da vítima negou depor
contra.....em juízo, para não prejudicá-lo, deixando, assim, evidenciado que sabia dos fatos
narrados na peça acusatória. Destaca-se, outrossim, que na fase policial confirma que sabia
dos fatos indicados na inicial, afirmando que ainda que o réu havia lhe confessado a prática
dos atos narrados a ela pela vítima. Assim, o quadro probatório é robusto e conclusivo para
a condenação ressaltando-se entretanto que o réu é primário e de bons antecedentes.
CONTRA RAZÕES DE RECURSO – PROMOTOR DE JUSTIÇA
... a causa extintiva de punibilidade prevista no art. 107, inciso VIII, do Código Penal,
nenhuma aplicação tem no caso sub-judice, uma vez que os crimes foram cometidos com
violência real e grave ameaça, conforme sobejamente comprovado nos autos e
expressamente reconhecido na sentença condenatória.... Ao ser interrogado na polícia, o
apelante confessou a autoria das infrações, sempre com a justificativa inaceitável de que
assim agira por mera “brincadeira” tendo confirmado, que para satisfazer sua lascívia, fazia
uso de “ camisinha”. Em juízo...negou tivesse cometido as infrações. De se ressaltar, por
oportuno, que a jurisprudência reinante em nossos Tribunais, em tema de delito contra os
costumes, norteia no sentido de aceitar, até mesmo, somente a palavra da vítima, mesmo
quando se trata de criança de tenra idade.
JUÍZA DE DIREITO – (condenou)
O depoimento da vítima, das testemunhas e a confissão do acusado são suficientes para
fundamentar um decreto condenatório. Aliás, a jurisprudência dominante de nossos
Tribunais considera até mesmo somente a palavra da vítima em crimes contra os costumes,
já que obviamente, em regra, não há testemunhas presenciais do fato.
206
PROCURADOR DE JUSTIÇA
Realmente, pelas declarações da vítima, coerentes e seguras, o réu praticou com ela
atentado violento ao pudor, várias vezes, mediante violência e grave ameaça. A palavra da
vítima assume relevo em delitos como os imputados ao acusado, pois são atos praticados
longe de testemunhas. Assim, não é comum nestes delitos a existência de testemunha
presencial.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA – (absolveu)
Tal condenação , entretanto, não pode subsistir, já que a prova colhida é insuficiente para
tanto, pois não demonstra, com segurança, a ocorrência da violência ou da grave ameaça,
elementos indispensáveis para a caracterização dos delitos imputados ao apelante.
...embora confessando as práticas libidinosas, negou ele o emprego de violência ou grave
ameaças. A vítima, ouvida apenas na fase policial, confirmou a ocorrência de tais práticas,
mas jamais se referiu, com segurança necessária, ao emprego de violência ou de grade
ameaça. Aliás, o fato de a vítima manter-se calada durante tanto tempo, não relatando os
fatos a sua mãe e nem saindo de casa, como só o fez da última vez, também coloca em
dúvida seu dissenso quanto àquelas práticas libidinosas. É certo, outrossim, que as
alegadas ameaças de morte não se destinavam à permissão do contato sexual, mas,
segundo a mãe da vítima, foram feitas nas ocasiões posteriores para impedir que os fatos
fossem relatadas à autoridade policial. Em tais circunstâncias, a melhor solução é o
reconhecimento do “non liquet”, em face do princípio “in dúbio pro reo”.
CASO 3PA
Vítima: V11F
Agressor: V26MI
PROMOTORA DE JUSTIÇA
Nos crimes contra os costumes a jurisprudência ‘iterativa no seguinte sentido: “Nos crimes
contra os costumes a palavra da vítima surge com o coeficiente probatório de ampla
valoração , ainda mais se corroborada com os demais elementos dos autos” ( TJSP – AC
– Rel. Aníbal Pacheco – RT 666/295). Observação: não há fundamentação na manifestação
da Promotora de Justiça, limitou-se a transcrever trechos dos depoimentos das
testemunhas.
207
JUÍZA DE DIREITO
O conjunto probatório reunido nos autos, notadamente em Juízo, sob o crivo do
contraditório, revelou-se frágil e precário para embasar o decreto condenatório. É bem
verdade que nos crimes sexuais , quase sempre praticados às escondidas, reveste-se a
palavra da vítima de fundamental importância. Mas, para tanto, é preciso que a versão por
ela apresentada seja coerente e que não haja conflito com os demais elementos de
convicção colhidos. Ademais, não pode ela, por si só, embasar a condenação, ainda mais
quando apresentada somente na fase policial, sem ser confirmada em Juízo, como ocorreu
na hipótese em testilha. Aliás, sobre o tema assim têm decidido nossos Tribunais:
“Embora verdadeiro o argumento de que a palavra da vítima, nos crimes contra os
costumes, tem relevância especial, não deve, ser recebida sem reservas, quando outros
elementos probatórios se apresentam em conflito com suas declarações”( TJSP – Rel.
Dês. Adalberto Spagnuolo – RJTJSP 59/504. No mesmo sentido: RT 401/101, 566/308,
598/398, 647/283, 681/330, dentre outros julgados). No presente caso tal conflito restou
patente. O acusado, interrogado na fase judicial, negou veementemente a prática da
infração, afirmando de modo firme e seguro não entender por que ... formulou tal
acusação, uma vez que o relacionamento entre eles sempre foi normal (fl...)Outrossim, as
demais provas colhidas não derrubaram, de modo escoimado de dúvida, a versão fornecida
pelo acusado. Nem a vítima, nem sua genitora foram localizadas para prestar
esclarecimentos em juízo. Apenas na fase policial acusaram o réu. A prova pericial, por
seu turno, nada de concreto trouxe aos autos, a não ser informar que a vítima não foi
estuprada, como inicialmente pensou sua mãe, pois atestaram os peritos que a vítima
apresentada “hímen integro até o momento da realização do exame” (fl...). Poder-se-ia,
quando muito, falar na presença de indícios reveladores da autoria. No entanto, para que se
chegue à condenação por intermédio de fatos circunstanciais ou indícios “é indispensável o
concurso das condições seguintes: a) que os elementos materiais do crime estejam
plenamente provados; b) que, em recíproco apoio por forma inequívoca e concludente,
incriminem o acusado ,importando a exclusão de qualquer hipótese favorável a este”
(TACRIM SP – Rel. Manuel Carlos – RT 169/76), o que, na hipótese em exame , como
acima explanado, não ocorreu. Como se vê, seria temerária a condenação do réu, ante a
prova colhida nos autos.
208
CASO 4PA
Vítima: S14F
Agressor: LF27MT
PROMOTOR DE JUSTIÇA
Tal versão foi corroborada pelo seu pai, ........ e pelo seu ex-namorado, ...........(fls. )
Não bastasse, ... (fl...) confirmou os fatos alegando que tomou conhecimento do ocorrido
por intermédio da vítima que lhe relatou como tudo ocorreu, aduzindo que o denunciado
pedia a ela para ficar quieta. Destarte, comprovada a materialidade e a autoria do delito,
deve o denunciado arcar com a reprimenda legal a ser-lhe imposta.
CONTRA RAZÕES DE RECURSO – PROMOTOR DE JUSTIÇA
Inicialmente, antes de adentrarmos a análise dos fatos, devemos ter em mente, aliás como
posição pacífica em nosso tribunais que, em se de delitos sexuais, a palavra da vítima
reveste-se de importância crucial, posto que, como sabido, tais delitos, em sua esmagadora
maioria, perpetram-se desprovidos da presença de testemunhas, amparados sob o manto da
clandestinidade. Como assim não fosse, estaríamos diante da seguinte equação: delito
cometido na clandestinidade seria igual à impunidade, o que, indiscutivelmente não pode
ocorrer. “CRIME CONTRA OS COSTUMES – Prova – Condenação baseada em
depoimento de vítima menor que constitui a única prova direta para elucidação da autoria
– Admissibilidade se encontra razoável ressonância do contexto probatório e se inexiste
justificativa plausível para se admitir que a versão da menor é inverídica ou fantasiosa –
Voto vencido. Tratando-se de crime contra os costumes, se o depoimento da criança não
afronta a prova mas, antes, encontra razoável ressonância no contexto probatório, se não
se depara com justificativa plausível para a admissão de que sua versão é inverídica ou
fantasiosa, não há, evidentemente, fundamento legal para recusa da única prova direta de
que se dispõe para elucidação da autoria do fato delituoso” (Ap. No. 80.161-3 – 2ª C. Do
TJSP – j. 13.8.90 – rel. Des. CANGUÇU DE ALMEIDA. RT 663/285). Como podemos
observar, aliás, como brilhantemente explanado pelo Magistrado prolator da sentença ora
combatida, a palavra da vítima, realizado com firmeza durante as fases policial e judicial,
está respaldada pelos elementos de prova carreados aos autos durante a instrução, não
havendo como conceder-se provimento ao inconformismo do apelante. A vida social
necessita de moralidade pública, sendo essa um conjunto de normas que ditam o
209
comportamento a ser observado nos domínios da sexualidade. O Estado, por sua vez,
através da Justiça, não pode quedar-se inerte à tutela da moralidade pública e dos bons
costumes, deixando impune agentes que afrontem à moralidade pública, deixando impunes
agentes que afrontem a moralidade pública. No caso, claro está, através do exaustivamente
demonstrado retro, que o apelante ofendeu à moralidade pública, constrangendo uma
menor de apenas 13 anos (treze) anos de idade a praticar a conjunção carnal. Desta forma,
vemos que amplamente configurado está o delito imputado ao apelante, não merecendo
prosperar suas razões do inconformismo.
JUIZ DE DIREITO – (condenou)
A materialidade delitiva está demonstrada pelo laudo pericial de conjunção carnal acostado
a folhas 10 dos autos, onde se constata que a vítima apresenta ruptura himenal completa já
cicatrizada. Quanto à autoria temos que a vítima apresentou versão dos fatos em completa
harmonia com os depoimentos prestados pelas testemunhas de acusação, tudo de acordo
com a prova da materialidade delituosa. Com efeito, diz a vítima.....Tais declarações não
guardam qualquer contradição com os relatos testemunhais, sendo certo que a vítima
noticiou o ocorrido de forma segura e precisa, tanto que para isso solicitou , quando ouvida
em Juízo, que o réu fosse retirado da sala, posto que a sua presença lha causava
constrangimento. Outrossim, não obstante as declarações da vítima tenham suporte na
prova oral colhida, a jurisprudência tem emprestado especial relevância às suas palavras
nos crimes contra os costumes, mormente porque a regra é de que estes seja praticados às
escondidas, como é o caso do julgamento, tendo o réu esperado que o restante da família
fosse dormir para dar vazão ao seu intuito criminoso. “Os crimes contra os costumes são
dos que se procura cometer entre quatro paredes às ocultas, horas mortas, sem vigília de
ninguém. Bem por isso as vítimas são suas grandes testemunhas. Descrer delas, só quando
se arregimentam elementos seguros de eu têm imaginação doentia ou agem por vingança
irracional”(RT 455/332). “Nos crimes contra os costumes, de violência carnal, em que a
prova da autoria fica reduzida praticamente às declarações da vítima, não devem ser
infirmadas quando uníssonas e firmes. Têm valor preponderante, superior à do acusado”
(RT 60/335). No mesmo diapasão RT 620/328, 448/339, 534/393, 594/408, 593/412,
569/307 e diversos outros julgados. Além do mais, como se não bastasse a segurança e
firmeza, em Juízo e na Polícia, das declarações da ofendida, temos que esta sempre teve
postura idônea, mantendo relações sexuais posteriormente apenas com um rapaz com o
210
qual pretendia se casar, não se demonstrando que sofresse de qualquer perturbação mental
e também porque inverossímil a assertiva do réu de que a vítima pretendia responsabilizá-
lo pelo seu desvirginamento, considerando-se que não há qualquer razão ou elemento
plausível nos autos que possa corroborar esta afirmativa. No que tange à presunção de
violência.... Essa presunção, mesmo sendo de caráter relativo, não cede diante do que se
demonstrou. Como acima exposto, a vítima não possuía comportamento imoral, pediu ao
réu que não consumasse a cópula e este, sendo tio, tinha conhecimento da idade da vítima,
não havendo qualquer evidência que pudesse elidir tal presunção, cabendo ressaltar que a
violência ficta a que se refere o artigo 224 do Código Penal tem fundamento justamente
nas hipóteses em que a mulher, diante das circunstâncias que expõe, não possui
desenvolvimento suficiente que lhe dê aptidão para consentir, assim decidindo os
Tribunais: “O só fato de manter relações sexuais com menor de 14 anos, deflorando-a,
configura o delito de estupro” (RT 506/336). “Quem com mulher de 14 anos mantém
relações sexuais consentidas comete estupro e, em conseqüências, deve sofrer os rigores
da lei”(RT 577/353). “Em todo relacionamento sexual com menor de 14 anos é presumida
a violência, de modo que o congresso sexual normal com menina em tal faixa etária
caracteriza o crime em questão”(RT 613/371). Tendo em vista as circunstâncias dos
crimes, onde o réu demonstrou elevado grau de desvio comportamental, não atendendo aos
padrões éticos exigidos pela coletividade da qual faz parte e atuando com insensibilidade e
perversão, deverá iniciar o cumprimento da pena privativa de liberdade no regime fechado,
inclusive diante da previsão da Lei no. 8972/90 em seu artigo 2º, § 1º. O depoimento da
vítima, das testemunhas e a confissão do acusado são suficientes para fundamentar um
decreto condenatório. Aliás, a jurisprudência dominante de nossos Tribunais considera até
mesmo somente a palavra da vítima em crimes contra os costumes, já que obviamente, em
regra, não há testemunhas presenciais do fato.
PROCURADOR DE JUSTIÇA – (pela absolvição)
O defloramento em data não recente foi comprovado por exame pericial realizado no dia
22 de julho de 1993 (fls... ). A vítima em depoimentos coerentes e seguros, confirmou a
imputação feita ao réu na inicial, atribuindo-lhe o defloramento na noite do ano novo de
1992 (fls. ..). Em crime sexuais, normalmente cometidos às escondidas, longe da vista das
testemunhas, as declarações da vítima merecem relevo especial sob pena de se fornecer um
escudo protetor pra seus autores. No caso concreto, a ofendida prestou declarações
211
coerentes e seguras, estando suas palavras confirmadas pelos depoimentos das testemunhas
que ouviram sua narrativa dos fatos. Contudo, há circunstâncias nos autos que favorecem o
acusado, que não podem ser simplesmente desprezadas, sob pena de violação do princípio
do in dúbio pro reo. 1ª) O álibi do réu foi confirmado integralmente por sua ex-esposa, por
duas vezes, na Delegacia de Polícia (fls. ...). A circunstância desta testemunha não ter sido
localizada na fase do contraditório, por ter mudado para local incerto e não sabido (fls. ...),
não invalida, por si só, os depoimentos anteriormente prestados. Mesmo porque não existe
uma especial prevenção contra a fase inicial da persecução criminal, tornando suspeitos
todos os atos probatórios produzidos pela Autoridade Policial. 2ª) A revolta da família da
vítima e a incriminação do acusado só ocorreram quando a ofendida teve seu casamento
desmarcado com outra pessoa em razão de não ser mais virgem (fl...). Desta forma, a tese
defensiva de que o verdadeiro sedutor foi o namorado ......, com quem a ofendida
confessadamente manteve relação sexual completa, não pode simplesmente ser
desconsiderada.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA – (absolveu)
Como se nota, dês a fase policial a prova apresentava-se duvidosa. A menor apenas
resolveu acusar o apelante, por fato acontecido há mais de dez meses, quando forçada pelo
pai, após desmarcado o casamento. Outrossim, os peritos concluíram que a ruptura himenal
não era recente, sem poderem precisar a data da primeira cópula vagínica. Em Juízo, o
quadro duvidoso não ficou aclarado. Apenas foi afirmado que o relacionamento de... com
..... foi posterior a janeiro. No entanto, o apelante continuou a negar a imputação.
Resumindo. Apenas a palavra de .... incriminava o apelante. E os fatos que cercaram sua
revelação colocavam em dúvida a sua palavra. Ainda mais, e como lembrado no parecer da
lavra do Exmo. Dr..........., d. Procurador de Justiça oficiante, em favor do apelante, álibi ,
que foi confirmado por sua esposa.
CASO 5PA
Vítima: G11F
Agressor: N28MP
PROMOTORA DE JUSTIÇA -
212
Pelo exposto, verifica-se que os fatos não passaram de produto da imaginação da vítima,
que por não ser mais virgem e com medo que seu pai descobrisse; e por querer ter mais
liberdade indo morar longe da casa paterna, juntamente com sua madrinha, houve por bem
inventar tal estória incriminando seu pai. Observa-se também, que os depoimentos
prestados pela vítima são contraditórios, e que cada um, dos dois últimos depoimentos, a
mesma apresenta uma justificativa diversa da acusação que fez contra seu pai; ora ela diz
que acusou-o porque queria ir morar com sua madrinha, ora ela diz que acusou-o porque
tinha medo que o mesmo descobrisse que ela não era mais virgem. Assim já se proclamou
nossos Tribunais: “Escudando-se a prova de estupro essencialmente na palavra da vítima
e sendo esta contraditória e inverossímil, impõe-se a absolvição do réu”(RT 25/357). Dos
depoimentos prestados pela vítima, conclui-se claramente e sem sombra de dúvidas, que o
fato, do qual o réu está sendo acusado, jamais ocorreu. Ante o exposto, por ter fico
claramente demonstrado que os fatos narrados jamais ocorreram, e que tais, não passaram
de invenção da vítima, requeiro que o réu seja absolvido....
JUIZ DE DIREITO
É importante verificar que a vítima prestou depoimentos marcados pela contradição,
porque ora alega que acusou o pai para encontrar justificativa para ir morar com sua
madrinha e ora diz que acusou o pai porque tinha medo que ele descobrisse o seu estado de
moça não virgem. Assim, embora o caso noticiado na denúncia seja grave, em verdade, os
diferentes e contraditórios depoimentos prestados pela vítima, aliados à precariedade de
prova testemunhal e a negativa do réu, não autorizam, com segurança, chegar a um
convencimento sereno de que apenas o primeiro depoimento, aquele incriminador, seja o
verdadeiro. Ora, se nem mesmo a vítima, embora menor, trouxe para os autos declaração
uniforme e segura, sabendo-se do reflexo de uma sentença condenatória em crime desta
natureza acarreta longos anos de prisão, no caso , o bom senso aponta que a absolvição é
medida que se impõe.
CASO 6PA
Vítima: A16F
Agressor: D41MP
PROMOTOR DE JUSTIÇA
213
Em que pese existirem indícios na fase policial de que efetivamente o réu havia molestado
sua filha, sob o crivo do contraditório, nada se apurou. Ademais, a própria vítima retratou-
se da versão por ela apresentada na fase policial, isentando seu pai dos fatos narrados na
denúncia. Observação: manifestação em audiência.
JUIZ DE DIREITO
O exame de corpo de delito pouco esclarece acerca dos fatos trazidos na inicial. Por sua
vez, a vítima, ouvida em Juízo, nega sua versão apresentada na fase policial, esclarecendo
que acusou o réu, seu pai, em virtude de desentendimentos que teve com este, sentindo
vergonha do que fez. A mãe da vítima informa que nunca presenciou o acusado
molestando qualquer das filhas. Nega suas declarações feitas na polícia. Assim, inexistindo
qualquer prova segura dos fatos trazidos na acusação, a absolvição é de rigor, motivo pelo
qual JULGO IMPROCEDENTE a Ação Penal que a Justiça Pública.....
CASO 1PC
Vítima: I16F
Agressor: V44MP
PROMOTOR DE JUSTIÇA
..... devemos ter em mente , aliás como posição pacífica em nossos Tribunais que, em seara
de delitos sexuais, a palavra da vítima se reveste de importância crucial, posto que, como
sabido, em tais delitos, em sua esmagadora maioria, perpetram-se desprovidos da presença
de testemunhas, amparados no manto da clandestinidade.... A materialidade do delito
restou devidamente comprovada através do laudo de exame de corpo de delito (conjunção
carnal) ..., que atestou que a vítima apresenta ´hímen anelar´ carnoso, apresentando três
rupturas completamente cicatrizadas. ... a genitora da vítima [...] confirmou ter presenciado
e participado do exame ginecológico feito pelo acusado na adolescente-vítima.... .... a
palavra da vítima, carreada às declarações testemunhais, em especial de [...], e ainda o
exame de corpo de delito de fl.s [...] são provas cabais da autoria e da materialidade do
delito....
JUIZ DE DIREITO
A vítima, segundo o laudo de fl...., apresentava “três rupturas completas e cicatrizadas” em
seu hímen, ou seja, “ruptura himenal completa já cicatrizada, caracterizando-se
214
defloramento de data não recente...” [...] ...não auxilia o réu a declaração prestada por sua
esposa [...] , no sentido de que a vítima manteve relação sexual com o namorado e não com
o réu [...], circunstância inexplicavelmente omitida de seu depoimento na polícia. Ressalte-
se, ainda, que mesmo se a vítima fosse “boca-dura” com os pais e namorasse, nenhuma
dessas circunstâncias podia justificar, por parte do réu, as agressões físicas, os toques
vaginais para a constatação da virgindade e, muito menos, o constrangimento à
manutenção de relação sexual com sua... [...] ...não tinha a vítima motivo para mentir em
juízo, acusando o réu injustamente de ter praticada estupro, pois os demais atos praticados
contra ela – agressões físicas e toques vaginais – já eram suficientes para qualquer
persecução penal por tais delitos contra o réu. De fato, a vítima foi estuprada pelo réu,
calou-se pelo temor que inspira a autoridade paterna e, posteriormente, viu-se instada a
relatar os vergonhosos fatos porque foram descobertos na escola em que estudava.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A materialidade do delito está atestada pelo laudo de exame médico de fl...., que revela que
a vítima apresentava três rupturas no hímen, de data não recente. O réu, ao que tudo indica,
é dono de desvio sexual e é (ou era), obcecado pela vítima, pois mantinha relações sexuais
com animais [...] e costumava tocar a vagina da..... com o dedo para saber se ela era
virgem. A esposa dele tentou livra-lo da acusação, dizendo que a menina fora deflorada por
um namorado [...] Ora, fosse essa a verdade, ela já a teria dito quando ouvida no inquérito
[...], oportunidade em que apenas confirmou que o marido colocava o dedo na vagina da...
para constatar se ela continuava virgem. Nada veio para os autos que pudesse levar à
conclusão de que a vítima mentiu para somente prejudicar o próprio... Nenhuma referência
a um possível mau comportamento por parte dela, de desentendimentos com o genitor.
Pois nos crimes sexuais, porque cometidos quase sempre na clandestinidade, a palavra da
ofendida é de enorme importância e valor, até porque, não raro, é a única prova que se
consegue.
CASO 2PC
Vítima: C11F
Agressor: J57MPa
PROMOTOR DE JUSTIÇA
215
..... devemos ter em mente , aliás como posição pacífica em nossos Tribunais que, em seara
de delitos sexuais, a palavra da vítima se reveste de importância crucial, posto que, como
sabido, em tais delitos, em sua esmagadora maioria, perpetram-se desprovidos da presença
de testemunhas, amparados sono manto da clandestinidade.... A materialidade do delito
restou devidamente comprovada através do laudo de exame de corpo de delito (conjunção
carnal) ..., que atestou que a vítima apresenta “hímen anelar carnoso, apresentando ruptura
completa cicatrizada”. Em depoimento prestado [...], a vítima asseverou ter mantido
relação sexual com o acusado por diversas vezes, tendo sido por ele ameaçada de morte
caso relatasse a alguém o que ocorria entre eles. Ainda, relatou que sua mãe, ... do acusado,
deveria saber dos acontecimento, pois “... ela já pegou, certa vez, J57MPa tentando agarrar
a declarante, com o zíper da calça abaixado, mas não falou nada...” Esclarece que nunca
teve marca, tampouco realizou exame médico, sabendo apenas que “...depois que J57MPa
faz ´tudo´, fica alguma coisa ´gosmenta e branca´ na vagina da declarante...” [...] .A
genitora da vítima [...] afirmou ter surpreendido, em certa ocasião, C11F e o acusado
saindo de dentro de um quartinho, ambos com ares assustados. Relativamente à
voluntariedade da conduta da vítima, manifestando-se de acordo com o ato, quando esta é
menor de 14 (quatorze) anos é irrelevante, face à presunção legal de violência nestes casos,
nos termos do artigo 224, “a”, do Código Penal. Conforme podemos observar, a palavra da
vítima, carreada às declarações testemunhais e, ainda, ao exame de corpo de delito de [...],
são provas cabais da autoria e materialidade do delito.
JUIZ DE DIREITO
A vítima também declara que foi penetrada por seu padrasto, dizendo que nunca havia
mantido relações sexuais antes. Declara que tinha medo do seu padrasto, recordando-se
que, numa ocasião, o padrasto disse que se a vítima contasse os fatos à polícia, quando
saísse da cadeia iria matá-la.... [...] ...é mister ressaltar que, em sede de crimes contra os
costumes, a palavra da vítima é de suma importância... O depoimento da ofendida encontra
forte amparo nos demais depoimentos consignados nos autos. ...houve a prática de delito
de estupro, com violência presumida, pelo fato de a vítima não ser maior de catorze anos,
além de o delito ter sido cometido pelo......da ofendida.
216
CASO 3PC
Vítima: E10F
Agressor: R46MPa
PROMOTOR DE JUSTIÇA
..... devemos ter em mente , aliás como posição pacífica em nossos Tribunais que, em seara
de delitos sexuais, a palavra da vítima se reveste de importância crucial, posto que, como
sabido, em tais delitos, em sua esmagadora maioria, perpetram-se desprovidos da presença
de testemunhas, amparados sono manto da clandestinidade.... A materialidade delitiva está
demonstrada através do laudo de exame de corpo de delito (Conjunção Carnal) de fls. ...,
que atestou que a vítima apresenta “hímen anelar carnoso, apresentando rotura completa
cicatrizada” ...vemos que o próprio acusado confessou que manteve relações sexuais com a
vítima, informando, ainda, o que é mais importante, ter ciência da idade daquela.
Confirmando a confissão judicial do réu e as declarações da vítima, a testemunha ..... [.....]
assim asseverou: “São verdadeiros os fatos narrados na denúncia. Naquela noite ouvi um
barulho que vinha da cama do réu e constatei que E estava lá dentro com ele. Além do
barulho não ouvi mais nada. Chamei por E ela veio. Ela contou para mim que estava na
cama do réu mantendo relações sexuais com ele. Em seguida, o réu veio e confirmou para
mim que mantinha relações sexuais com E. Aquela não foi a primeira vez que eles
mantiveram relações. Isso já acontecia há mais de seis meses. Apesar da tentativa em vão
da combativa defesa em achincalhar a idoneidade moral da vítima, uma criança de tenra
idade, pois conta atualmente com 10 (dez) anos de idade, devemos lembrar que tal fato,
para a lei não possui qualquer importância, pois para a caracterização da violência
presumida basta apenas a prova da idade, independentemente da conduta e da moral da
vítima. O que a lei defende são as pessoas que devido à sua pouca idade não tiveram tempo
de formar sua personalidade, que certamente serão influenciadas por condutas reprováveis
como a vista nos autos. [...] ...a confissão judicial do acusado e as declarações da vítima
estão amparadas pelos laudos periciais e pelos testemunhos retro mencionados. A vida
social necessita de moralidade pública, sendo essa um conjunto de normas que ditam o
comportamento a ser observado nos domínios da sexualidade. O Estado, por sua vez,
através da Justiça, não pode quedar-se inerte à tutela da moralidade pública e dos bons
217
costumes, deixando impune agentes que afrontem à moralidade pública. No caso, claro
está, através do exaustivamente demonstrado retro, que o acusado se ofendeu à moralidade
pública, constrangendo uma menor de apenas 10 (dez) anos de idade a praticar a conjunção
carnal.
JUIZ DE DIREITO
Se não bastasse a ratificação, convalidando as declarações anteriores em forma de
representação, não há como deixar de consignar que o réu exercia poder sobre a ofendida
e, em razão deste fato, a representação não era de rigor. ...verifica-se que o laudo pericial
noticia que a vítima não mais virgem. Tem-se assim que ao réu é atribuída a acusação de
relacionar-se sexualmente com a menor E e que os atos sexuais foram
diversos...interrogado em Juízo confessou [...] amplamente e sem rebuços que a menor E
vivia com a mãe e que há mais ou menos quatro meses começou a manter relação sexual
com E e que antes ela era virgem...confessou que realizou ato sexual com a menor em
diversos locais, na cama, no mato e nas proximidades do rio. Nem se diga que pelo fato de
a menor ter ido encontrar-se com o réu e sua residência, que a responsabilidade penal fica
excluída. É que o próprio réu admitiu que a menor tinha somente dez anos de idade,
portanto, com capacidade intelectual incompleta para aferir a gravidade do ato. ...observo
que a responsabilidade do réu ficou acentuada, considerando que ele aproveitou-se da
situação de estar amasiado com a mãe da vítima e com esta relacionou-se, também
sexualmente.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA -
...não se há de levar o magistrado a examinar questões absolutamente impertinentes, feitas
ao acaso e sem qualquer respaldo probatório ou jurídico , como ocorre com a tese que a
própria defesa tem em conta de controvertida. Esse resultado vem demonstrado pelo exame
de corpo de delito [...], também constando dos autos a certidão de nascimento [...], da qual
se extrai que a pequena vítima contava com dez anos de idade quando se iniciou a
repugnante prática da qual se está a tratar. As declarações da vítima [...] – que se
harmonizam com o restante do apurado – conservam o grande valor probatório que lhes é
atribuído pelo entendimento doutrinário e jurisprudencial. A lei não quer que as pessoas,
ainda mais quando crianças, sejam atacadas sexualmente, tanto que empresta a esses casos
a presunção de violência, a qual, apesar do empenho defensivo, não cede lugar nestes
autos. É que nada autoriza dizer-se que a ofendida, em seus poucos anos e virgem fosse
218
uma devassa. Habituada, ou não, a presenciar relações sexuais, animada a procurá-lo em
sua residência para a ele se entregar, não passava de uma criança e como tal deveria ter
sido tratada. A propósito a ousada tese invocada pela defesa não tem o menor cabimento...
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Autorizo a reprodução deste trabalho para fins de pesquisa
Assis, 04 / dezembro / 2.006.
Luis Fernando Rocha
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