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JANAÍNA DE ASSIS RUFINO
AS MULHERES DE CHICO BUARQUE:
ANÁLISE DA COMPLEXIDADE DISCURSIVA DE CANÇÕES
PRODUZIDAS NO PERÍODO DA DITADURA MILITAR
BELO HORIZONTE
FACULDADE DE LETRAS DA UFMG
MARÇO DE 2006
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JANAÍNA DE ASSIS RUFINO
AS MULHERES DE CHICO BUARQUE:
ANÁLISE DA COMPLEXIDADE DISCURSIVA DE CANÇÕES
PRODUZIDAS NO PERÍODO DA DITADURA MILITAR
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da
Faculdade de Letras da Universidade Fede-
ral de Minas Gerais, como requisito parcial
à obtenção do título de Mestre em Lingüís-
tica.
Área de Concentração: Lingüística
Linha de Pesquisa: Análise do Discurso
Orientadora: Profª. Drª. Janice Helena Silva
de Resende Chaves Marinho.
BELO HORIZONTE
FACULDADE DE LETRAS DA UFMG
MARÇO DE 2006
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2
Ao meu pai, trabalho,
À minha mãe, dedicação,
Pela vida, pelos valores
E pelo colo, onde posso sempre
“Me-ninar”.
A todos os mortos e torturados, que sofreram
em nome da Liberdade de expressão.
3
E do amor gritou-se o escândalo
Do medo criou-se o trágico
No rosto pintou-se o pálido
E não rolou nem uma lágrima
Nem uma lástima pra socorrer
E na gente deu o hábito
De caminhar pelas trevas
De murmurar entre as pregas
De tirar leite das pedras
De ver o tempo correr
Mas, sob o sono dos séculos
Amanheceu o espetáculo
Como uma chuva de pétalas
Como se o céu vendo as penas
Morresse de pena e chovesse o perdão
E a prudência dos sábios
Nem ousou conter nos lábios o sorriso e a
paixão
Pois transbordando de flores
A calma dos lagos zangou-se
A rosa dos ventos danou-se
O leito do rio fartou-se
Inundou de água doce a amargura do mar
Numa enchente amazônica
Numa explosão atlântica
E a multidão vendo em pânico
E a multidão vendo atônita
Ainda que tarde
O seu despertar
Chico Buarque
4
AGRADECIMENTOS
Eu sou apenas um pobre amador,
Apaixonado,
Um aprendiz do teu amor.
Chico Buarque
Para agradecer a todos que participaram deste momento importante, gostaria de co-
brir de redondilhas meus agradecimentos. Sem o talento de meu grande ídolo, resta-me
agradecer “brincando de poetar” àqueles que estiveram de alguma forma ao meu lado...
A Deus por me fazer descobrir no último momento um tempo que refaz o que desfez, que
recolhe todo sentimento e que bota no corpo uma outra vez.
À prof.ª Dr.ª Janice Helena Silva de Resende Chaves Marinho que com a prudência, a ele-
gância, e a humildade dos sábios não ousou conter nos lábios um bom conselho, que foi
pra dar coragem pra seguir viagem quando a noite vinha.
À prof.ª Dr.ª Sueli Pires que de Súbito me encantou /A moça em contraluz/Arrisquei per-
guntar: quem és? Por, no início de minha caminhada, fazer-me compreender o valor das
inquietações teóricas.
Prof.ª Dr.ª Ana Maria Nápoles Villela, o meu chapéu te tiro muito humildemente por me
dizer para não perder aquela esperança de tudo se ajeitar no momento de maior ansiedade
e angústia deste mestrado.
Palmas aos ilustres cavalheiros e damas, professores do Pós-Lin, por mostrarem que con-
tra fel, moléstia e crime basta usar Bakthin, Ducrot, um pouco Charaudeau e até Fiorin. E
em especial ao meu maestro soberano Hugo Mari brasileiro por me soprar esta minha
toada.
Palmas também ao professor Heleno, que na graduação me ensinou que, para trilhar o ca-
minho do conhecimento, era preciso não andar com os pés no chão...
Um irmão, Um livro, um recado, uma eterna viagem... Ao Jefferson, à Carla e aos meus
primos e tias por entenderem não só minha ardente falação, mas também meus sufocantes
silêncios.
Tem certos dias em que eu penso em minha gente e sinto assim todo o meu peito se aper-
tar... À Tia Regina e Ao Tio Sebastião e sua família pelo pouso nos dias difíceis, pelo
colo e pelo carinho.
5
Às minhas meninas do meu coração Kika, Lê e Cíntia que passam por mim
E embaraçam as linhas da minha mão/Levando nossos destinos
Tão iluminados de sim.
Aos meus três cavalheiros, todos três chapéu na mão.
O primeiro, Beto, Oh pedaço de mim, por me mostrar a riqueza de ser um pobre a-
mador”.
O segundo, Takao, que de um modo sutil chega e me derrama na camisa todas as flo-
res de abril, por sua presença que não tem descanso nem nunca terá, que não tem cansaço
nem nunca terá, que não tem limite.
O terceiro, Mil, com o seu jeito manso, que é só seu, por chegar como quem chega do
nada, sumir por aí e me ensinar que nada é pra já, o amor não tem pressa e ele pode espe-
rar em silêncio.
À Maria José que em sua meninice um dia me disse que um dia eu chegava lá...
É comum a gente sonhar, eu sei... Pois eu também dei de sonhar... Aos amigos do Barone-
sa, que sonharam comigo o meu sonho lindo, em especial à São, sempre riso nunca pranto
como a primavera, à Laudes, a mais doce mulher de Atenas, e ao Maurício, meu querido
rapaz.
Bom dia, alegria/ A minha companhia/ Vai cantar... Aos amigos da UEMG-Barbacena por
me acolherem e cantarem comigo Em doce harmonia. E Pra te alegrar... Agradeço de mo-
do especial aos olhos do prof. Eduardo pela sua leitura “pontual”.
Aos amigos da UFMG por pararem pra ver a banda passar cantando coisas de amor. E ...
com açúcar e com afeto à minha fiel companheira contra os moinhos de ventos do mestra-
do: Regina.
Evoé jovens à vista, aos meus queridos alunos com quem divido a alegria de um dia afinal
ter direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chama carnaval, carnaval,
carnaval...
6
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS _______________________________________________7
LISTA DE QUADROS ______________________________________________8
RESUMO _________________________________________________________9
RESUMÉ ________________________________________________________10
APRESENTAÇÃO_________________________________________________11
CAPÍTULO 1 — Introdução_________________________________________13
1.1 Colocação do problema _______________________________________13
1.2 As mulheres de Chico: constituição do corpus_____________________15
1.3 Um instrumento de análise do discurso __________________________20
1.4 Percurso de análise___________________________________________24
CAPÍTULO 2 Histórico __________________________________________27
2.1 As quatro faces do Brasil ______________________________________27
2.1.1 Primeira face: a ditadura militar ______________________________29
2.1.2 Segunda Face: a esquerda ___________________________________33
2.1.3 Terceira Face: A cultura ____________________________________38
2.1.4 Quarta Face: Chico Buarque_________________________________45
CAPÍTULO 3 — Canção: objeto de estudo _____________________________49
3.1 As canções e o mundo: dimensão referencial______________________49
3.1.1 A canção engajada e sua representação praxeológica ______________50
3.1.2 O enquadre acional das canções engajadas ______________________52
3.1.3 A estrutura praxeológica das canções__________________________55
3.1.4 A representação conceitual da canção engajada __________________59
3.2 A materialidade das canções: dimensão interacional _______________61
3.2.1 A materialidade das canções e o mundo ________________________64
3.3 A estrutura das canções: módulo hierárquico _____________________73
3.3.1 A segmentação em atos _____________________________________79
3.2.2 Análise das estruturas hierárquicas das canções __________________80
CAPÍTULO 4 — As canções e a polifonia ______________________________88
4.1 As vozes das canções: organização enunciativa____________________88
4.2 A função das vozes nas canções: organização polifônica ____________90
4.3 Análise enunciativa e polifônica das canções ______________________91
CAPÍTULO 5 Conclusões _______________________________________109
BIBLIOGRAFIA _________________________________________________114
ANEXOS _______________________________________________________118
Anexo I_______________________________________________________118
Marcas Enunciativas ___________________________________________118
Anexo II ______________________________________________________130
Estruturas Hierárquicas ________________________________________130
7
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: As quatro faces do Brasil __________________________________________28
Figura 2: Representação praxeológica das canções de engajamento _________________51
Figura 3: Representação praxeológica de uma história. Fonte: Soares (2002:122) ______55
Figura 4: Estrutura praxeológica da canção A Rita ______________________________56
Figura 5: Estrutura praxeológica da canção Januária ____________________________57
Figura 6: Estrutura praxeológica da canção Carolina ____________________________58
Figura 7: Estrutura praxeológica da canção Benvinda ____________________________59
Figura 8: Representação conceitual genérica de canção __________________________60
Figura 9: Representação conceitual da canção de engajamento_____________________60
Figura 10: Esquema de negociação (Roulet, Filliettaz e Grobet, 2001)_______________73
Figura 11: Esquema de negociação das canções produzidas no período da ditadura_____74
Figura 12: Macroestrutura genérica __________________________________________76
Figura 13: Macroestrutura da canção Carolina _________________________________77
Figura 14: Macroestrutura da canção Angélica _________________________________77
Figura 15: Macroestrutura da canção Ana de Amsterdam _________________________78
Figura 16: Trecho da estrutura hierárquica de A Rita ____________________________81
Figura 17: Trecho da estrutura hierárquica da canção A Rosa______________________86
Figura 18: Trecho da estrutura hierárquica da canção A Rosa______________________86
Figura 19: Trecho da estrutura hierárquica da canção Luísa _______________________87
8
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Recorrências lexicais nas canções de Chico Buarque____________________18
Quadro 2: Canções que compõem o corpus ____________________________________20
Quadro 3: Versão atual do MAM (Roulet, Filliettaz e Grobet, 2001) ________________23
Quadro 4:Versão atual do MAM com destaque para do percurso de análise. __________25
Quadro 5: Categorias da dimensão referencial__________________________________50
Quadro 6: Proposta para o quadro acional 1____________________________________53
Quadro 7: Proposta para o quadro acional 2____________________________________54
Quadro 8: materialidade da divulgação/publicação das canções buarqueanas__________62
Quadro 9: Enquadre interacional geral das canções______________________________63
Quadro 10: Enquadre interacional de A Rita ___________________________________65
Quadro 11: Enquadre interacional da canção Ana de Amsterdam ___________________68
Quadro 12: Enquadre interacional de Angélica _________________________________70
9
RESUMO
Este trabalho identifica e analisa as marcas e estratégias discursivas
utilizadas por Chico Buarque em canções produzidas no período da
ditadura militar para burlar os censores e continuar conscientizando
seu público. O ponto de partida é a hipótese de que as canções popu-
lares produzidas durante o Regime Militar veiculam um discurso es-
pecífico de contestação e de mobilização. O suporte teórico-
metodológico adotado é o Modelo de Análise Modular desenvolvido
na Universidade de Genebra. Propomos, diante do objeto, da hipótese
e do referencial teórico-metodológico escolhido, analisar as canções
buarqueanas nos atendo às dimensões interacional, hierárquica e re-
ferencial, à organização elementar enunciativa e à organização com-
plexa polifônica. A adoção desse percurso nos permitirá evidenciar o
caráter sócio-histórico das canções e, além disso, detectar estratégias
nelas utilizadas que visem a burlar a censura.
10
RÉSUMÉ
Ce présent travail analyse les marques et les stratégies discursives
utilisées par Chico Buarque dans les chansons produites pendant le
période de la dictature militaire au Brésil pour tromper les censeurs et
continuer à conscientiser son public. Le point de départ c’est
l’hypothèse que les chansons populaires produites pedant le Régime
Militaire véhiculent un discours especifique de contestation et de
mobilisation. Le support théorique et méthodologique adopté est
l’approche d’Analyse Modulaire développée à l’Université de
Genevre. Nous proposons, devant l’objet, de l’hypothèse et du
support théorique et méthodologique choisi, d’analyser les chansons
de Chico Buarque en focalisant notre attention sur les dimensions
interactionnelle, hiérarchique et référentiel, à l’organisation
élémentair énonciative et à l’organisation complexe polyphonique.
L’adoption de ce parcours nous permettra de mettre en évidence le
caractère social et historique des chansons et de détecter les stratégies
y utilisées que visent à tromper la censure.
11
APRESENTAÇÃO
Este trabalho tem por objetivo analisar, em algumas canções produzidas no período
da repressão, as marcar e as estratégias discursivas, usadas por Chico Buarque, para burlar
os censores e contextualizar o momento histórico.
No Capítulo 1 “Introdução”, fazemos a colocação do problema. Em hipótese, as
canções produzidas veiculam um discurso específico de contestação e mobilização que
precisa ser disfarçado, mas que não poderia deixar de ser tratado em função da imposição
da situação social. Em um segundo momento, tratamos da constituição do corpus,
conformado a partir da definição do gênero canção e do levantamento na obra de Chico
Buarque de nuances e recorrências lexicais. Finalmente, selecionamos as canções
produzidas no período da ditadura militar (1964 1979), cujos títulos sejam um nome
feminino. Ainda no Capítulo 1, apresentamos o Modelo de Análise Modular, considerado
um eficaz instrumento de análise por considerar o caráter heterogêneo e complexo do
discurso e das relações discursivas.
No Capítulo 2 “Histórico”, procuramos construir um panorama do período da
ditadura militar nos apoiando em produções históricas, jornalísticas e até literárias sobre
este momento.
“Canção: objeto de estudo” é o título do terceiro capítulo. Iniciamos a atividade a-
nalítico-descritiva de nosso corpus e do instrumento de análise de acordo com o percurso
proposto no Capítulo 1. Primeiramente, abordamos a dimensão referencial, a fim de enten-
der as relações das canções com o mundo em que são produzidas. Passamos à análise des-
critiva da dimensão interacional com a finalidade de entender como materialidade intera-
12
cional interfere na produção de sentido das canções. Buscamos também uma relação entre
as informações de origem referencial e interacional.
Ainda no terceiro capítulo, tratamos da descrição analítica da dimensão hierárquica,
a fim de entender como as estruturas hierárquicas contribuem para a produção de sentido.
No Capítulo 4 “As Canções e a Polifonia”, descrevemos a forma de organização
elementar enunciativa. Em seguida, descrevemos a forma de organização complexa
polifônica. Finalmente passamos à análise da presença nas canções de discursos
produzidos e representados, bem como da função que eles nelas desempenham.
No Capítulo 5 “Conclusão”, apresentamos os resultados alcançados e suas
conseqüências para as hipóteses levantadas na “Introdução”.
13
CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO
1.1 Colocação do problema
“... Minha geração leva vantagem sobre as mais
novas, que já começaram a criar sob censura. A
minha geração conheceu a não-censura, conheceu o que
é criar com total liberdade. Até 68 eu tinha tido um
único problema com uma música e uma peça de teatro,
Roda-Viva, que foi mais um problema policial que
propriamente censura. Isso dá à gente uma certa
consciência... Você pensa que a censura é uma
anomalia, uma coisa provisória. Eu acho que para o
jovem compositor, a Censura é um monstro natural,
que existe, que sempre existiu, que não adianta
combater. E que está aí”.
Chico Buarque
Na década de 60, instalou-se no Brasil o Regime Militar, que pretendia assegurar o
avanço do Capitalismo e eliminar quaisquer influências que as idéias socialistas pudessem
exercer sobre a sociedade brasileira. A parte da sociedade brasileira comprometida com a
democracia, em seus diversos matizes, não só lutou contra o Estado, como foi obrigada a
encarar os valores autoritários presentes nas relações sociais como um todo.
Entender o regime militar é não só entender um momento específico de nossa His-
tória, mas iluminar questões que nos perturbam ainda hoje, potencializadas pela proximi-
dade cronológica daquela experiência. Nesse período, a produção cultural estava fortemen-
te influenciada pela situação sócio-política. A partir de 1964, a edição dos Atos Institucio-
nais I, II e III recrudesceu o regime militar e trouxe a cassação dos direitos políticos e o
controle do Congresso. Naquele ano, a censura passou a ser sistemática e era realizada por
14
bilhetes e telefonemas ameaçadores ou através da chamada censura prévia, mais freqüente
com as canções populares.
Os compositores, para burlar a censura, lançaram mão de um discurso metafórico,
marcado pela polifonia e pela heterogeneidade, e seguiram mobilizando e conscientizando
seu público. Uma frase muito difundida no meio artístico era: “Silêncio ou metáfora”.
Em vista disso, a hipótese que se formula é a de que as canções populares
produzidas durante o Regime Militar veiculam um discurso específico de contestação e de
mobilização que muitas vezes precisava ser disfarçado dos censores.
Por hipótese, as canções produzidas durante a repressão, especialmente as de Chico
Buarque, são documentos históricos que enunciaram um discurso de contestação e de
mobilização social. Em circunstancias peculiares, o compositor armou-se de certas marcas
e estratégias discursivas para burlar os censores, ao mesmo tempo em que contextualizou o
seu momento histórico.
15
1.2 As mulheres de Chico: constituição do corpus
Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela é bonita
Tem um olho sempre a boiar
E outro que agita
Chico Buarque
A intenção de analisar as composições de Chico Buarque não é aleatória, são dois
os motivos mais significativos. Em primeiro lugar, motiva-nos a constatação da
importância literária do compositor, pois suas canções são consideradas verdadeiras
“poesias”, tanto pelo traço estético, advindo da Antigüidade Clássica, que primava pelo
culto ao belo; como pela fonte de plurissignificação proposta por suas canções. Para o
lingüista e músico Luiz Tatit (1996:234), as canções buarqueanas são letras de canção e
não poesia em seu sentido estrito. Entretanto, é certo que são uma forma de expressão
artística.
Tatit afirma que “a canção popular é produzida na interseção da música com a
língua natural” (2002). A canção figura como um gênero híbrido, formado por uma parte
melódica e outra de substância verbal. A letra da canção seria um outro gênero que não
canção ou poesia. Ela traria características próprias, que a difeririam da poesia, que não
permitiriam que a chamássemos de canção simplesmente. Para ele, não podemos analisar a
letra da canção como analisamos um texto poético, tampouco podemos analisar somente a
substância sonora da canção.
Apesar de concordarmos com uma definição de canção que não a limite à letra ou à
melodia, não analisaremos as articulações texto/música. Por outro lado, analisaremos o
ritmo impresso pela oralidade internalizada das canções, que é característica de base para a
categorização do gênero canção. É essa a perspectiva de Adélia Bezerra Meneses em seu
16
livro Figuras do Feminino na canção de Chico Buarque. Trata-se de um estudo temático
das letras que modulam o feminino sob uma abordagem ora sociológica, ora psicanalítica.
Conforme suas palavras:
Evidentemente, parto do pressuposto de que, dada a grande
penetração, elas [as canções] já fazem parte integrante da sensibilidade
musical brasileira, tornando-se, assim, impossível simplesmente ler tais
canções, sem cantá-las mentalmente. Faço, assim, um apelo não apenas à
boa vontade, mas à memória musical do leitor.
1
O segundo motivo que nos leva à análise das canções é o seu papel sócio-político.
Para Maingueneau (1988,1995), a canção é uma prática intersemiótica intrinsecamente
vinculada a uma comunidade discursiva que habita lugares específicos da formação social.
As canções de Chico Buarque servem à contextualização sócio-política, o que o levou a ser
considerado não apenas um dos maiores alvos, mas também um exímio “driblador” da
censura.
A música popular brasileira, durante o período da ditadura militar, ocupou o espaço
de mídia formadora de opinião. Especialmente as canções de Chico Buarque, que durante
muito tempo foram consideradas, assim como o próprio compositor, unanimidades no país.
É possível estabelecer um paralelo entre a obra deste autor e a história recente do Brasil.
Pela extensão e qualidade, notamos sistematicamente uma tendência à divisão e à rotulação
da obra de Chico Buarque para fins comerciais e didáticos: “A poesia de Chico”, “A
narração de Chico”, “A crítica social”, “A Política”, etc. Meneses (2002) divide a obra
política e poética do compositor em quatro fases: Lirismo Nostálgico, as Canções de
Repressão, Variante (ou Canção) Utópica e Vertente Crítica.
Os três primeiros discos de Chico, representantes do Lirismo Nostálgico, revelam
em suas canções um distanciamento, fruto de uma decepção política. Essas canções possu-
1
Meneses (2001:15) chama seu objeto de estudo de poemas-canções.
17
em um valor nostálgico, uma certa recusa ao mundo industrializado como Januária (1967)
e Carolina (1967). Há uma crítica elaborada com uma tonalidade de saudosismo. “Não há
esperança de futuro” (MENESES, 2002:47). O saudosismo é, na verdade, não o desejo de
volta à infância, mas uma negação do presente.
As Canções de Repressão nasceram das sementes plantadas pela crítica social do
Lirismo Nostálgico que as antecedeu. Canções de protesto, elas assumiram forma de
ameaça, algumas criticaram o presente sem perspectiva de futuro e outras aliaram a
negação do presente à proposta de um futuro libertador, porém vingativo. Nesse período,
tínhamos canções como Ana de Amsterdam (1972/1973) e Angélica (1977).
Ao propor um futuro libertador e vingativo, percebemos a emergência da Variante
Utópica. A fase de Chico propõe o homem como ser livre da opressão, do cotidiano, da
pobreza, da falta de cultura e etc. A Rosa (1979) e Luísa (1979) exemplificam a produção
desse momento.
A produção mais recente de Chico encontra-se na chamada Vertente Crítica, que
faz crítica social, caracterizando-se como denúncia clara e direta não mais pela linguagem
indireta e metafórica das Canções de Repressão. Sua atual obra é marcada pela ironia,
sátira e paródia.
Para este trabalho, propomos analisar as canções de Chico Buarque produzidas
entre 1964 e 1979, canções que fazem parte dos períodos Lirismo Nostálgico, Canções de
Repressão e Variante Utópica. Essa particularidade se caracteriza como um recorte
indiscutivelmente vasto, dada a extensão da obra do compositor. Pensamos nas
regularidades temáticas das canções de Chico para propor um recorte aceitável ao tempo
previsto para este trabalho.
18
Podemos abordar a obra buarqueana observando as regularidades temáticas e os
conjuntos lexicais formados por elas. Percebemos que um dos mecanismos do compositor
é criar ambientes temáticos recorrentes. Temos, na obra de Chico, “o carnaval”, “a
malandragem”, “a homossexualidade”, “a prostituição”, “a rotina”, etc. Ele construiu sua
crítica social alicerçada em temáticas aparentemente sem compromisso com o social e o
político, principalmente no período da ditadura em que o projeto era que suas críticas ao
governo e ao social ficassem no espaço do pressuposto e do subentendido. Como exemplo,
temos a canção “Quem te viu quem te vê” 1966. Tal canção tem como recurso uma
cadeia lexical, que remete à temática do carnaval como: cabrochas, ala, mestre sala, festa,
samba, gingado, cadência, passos, cordão, fantasia, povo e turista. Entre tais palavras,
temos algumas que dividem sentido também com o campo lexical da ditadura ou do
governo como: Ala, mestre sala, cordão. Essas palavras abrem uma segunda possibilidade
de leitura que aponta para a situação política do país.
Há nas canções de Chico uma certa regularidade lexical que nos permite leituras
que não poderiam ser a leitura dos censores. Palavras, aparentemente ingênuas, em suas
canções, possuíam sentidos relativos ao contexto sócio-político:
Noite, morte, dura, escuro, negra, madrugada,
conter, prender, calar, negar, trancar...
Como metáfora para Ditadura
Canto, cantar, coro, música, canção, cordão,
violão, samba, fantasia...
Como metáfora para Resistência
Carnaval, dia, vida, claro, amanhecer, gozo,
graça, alegria, glória...
Como metáfora para Fim da ditadura
Quadro 1: Recorrências lexicais nas canções de Chico Buarque
19
Chico Buarque também tematiza “os malandros” e “as mulheres”. Sobre estas últi-
mas é que ajustaremos nosso foco. Há um número grande de canções das décadas de 60 e
70 que remetem ao universo feminino. A que se deve esta recorrência temática? Uma razão
possível seria a necessidade de escapar à censura, uma vez que a instalação de personagens
femininas afastaria o censor do tema da política.
A regularidade temática “mulheres” nos indicou, portanto, o caminho para o nosso
recorte metodológico. Não podemos negar, como já mencionamos, o destaque dado às
personagens femininas, no momento em que tomamos o espaço temporal compreendido
entre 1964 e 1979. Notamos um número grande de canções que fazem referência ao
universo feminino e muitas delas especificamente com títulos, que se constituem por
nomes próprios femininos. É importante ressaltar que entre as canções produzidas na
chamada Vertente Crítica o número de canções cujos títulos sejam nomes femininos é bem
pequeno.
Analisaremos, portanto, doze canções, que representam o total das canções
produzidas por Chico Buarque no período de 1964 a 1979 que se apresentam com nomes
próprios femininos.
20
Canção Ano de publicação
1. A Rita 1965
2. Tereza Tristeza 1965
3. Carolina 1967
4. Januária 1967
5. Benvinda 1968
6. Ana de Amsterdam 1972/1973
7. Bárbara 1972/1973
8. Joana Francesa 1973
9. Angélica 1977
10. Terezinha 1977/1978
11. A Rosa 1979
12. Luísa 1979
Quadro 2: Canções que compõem o corpus
1.3 Um instrumento de análise do discurso
Hoje o samba saiu procurando você
Chico Buarque
As canções de Chico Buarque, assim como outras práticas discursivas, trazem em si
componentes de ordem lingüística, textual e situacional. Para analisá-las, buscamos um
instrumental teórico que abrangesse os aspectos constitutivos já mencionados, a fim de nos
possibilitar entender o caráter social e histórico das canções, e que buscasse revelar a
complexidade das relações discursivas. Finalmente, o modelo teórico deveria possibilitar a
busca de interpretações, que fossem além da descrição do discurso, mas que antes
procurasse refletir e descrever interpretações possíveis desse determinado fenômeno.
Em Genebra, um grupo de pesquisadores orientados pelo professor Eddy Roulet
propõe um quadro de análise do discurso. O Modelo de Análise Modular (MAM) nasce da
21
interseção de diversas pesquisas e trabalhos com o objetivo de conciliar as três dimensões
do discurso (lingüístico, textual e situacional) em uma perspectiva sócio-cognitivo-
interacionista.
O Modelo de Análise Modular (MAM), proposto por Roulet e sua equipe, parte de
uma teoria interacionista
2
inspirada em Bakthin, ao considerar a oposição ao objetivismo
abstrato de Saussure, de maneira a provocar o deslocamento do centro de interesse dos
estudos lingüísticos para a interação. Como ressalta Marinho (2002:26-36), “Bakthin, por
considerar a linguagem como atividade social e dialógica, oferece importante contribuição
para os estudos do discurso”.
Para os estudos genebrinos, o termo “discurso” é utilizado de maneira genérica
“para designar todo produto de uma interação dominantemente linguageira, seja dialógico
ou monológico, oral ou escrito, espontâneo ou fabricado, nas suas dimensões lingüística,
textual e situacional”
3
(ROULET, 2001:188). Portanto, sob essa perspectiva, o MAM se
mostra adequado à análise da complexidade e do caráter interacional das canções.
Roulet concebe a análise do discurso por módulos, uma vez que o discurso pode ser
decomposto em sistemas de informações que, por sua vez, podem ser descritos
independentemente. Além disso, as informações obtidas de cada módulo podem ser
relacionadas. Inclusive Marinho (2004) pensa no MAM como um interessante instrumento
de análise por oferecer um quadro teórico e metodológico que permite a compreensão da
complexidade e da heterogeneidade das atividades discursivas.
A análise do discurso, sob a perspectiva do MAM, é proposta em duas etapas:
2
Remetemos a Marinho (2002:26-36) para enfocar os elementos (teorias, vertentes e estudiosos)
fundadores desta proposta teórica até que esta chegasse a uma perspectiva interacionista da análise
do discurso.
3
Nossa tradução para “pour designer tout produit d’une interaction à dominante langagiére, qu`il
soit dialogique ou monologique, oral ou écrit, spontané ou fabriqué, dans ses dimensions linguisti-
que, textuelle et situationnelle”.
22
- Decomposição: fase que consiste na descrição das dimensões do discurso que
intervêm no fenômeno analisado, a partir de sistemas de informações simples reunidos em
torno dos componentes lingüístico, textual e situacional.
- Composição: fase que consiste no exame da forma na qual os sistemas de infor-
mação combinam-se discursivamente.
A organização do discurso é descrita passando-se sucessivamente da “descrição das
dimensões modulares à descrição das formas de organização elementares, seguindo-se à
descrição das formas de organização complexas, antes de abordar o estudo das inter-
relações significativas que se podem observar entre as formas de organização complexas”,
conforme Roulet (1999:148).
O MAM, em sua versão atual, apresenta módulos que definem cinco tipos de
informações básicas: os módulos lexical e sintático, que contemplam a dimensão
lingüística, o hierárquico, que contempla a dimensão textual, e os módulos referencial e
interacional, que contemplam a dimensão situacional. O MAM define que os módulos são
considerados sistemas de informação de base que têm origem nos três componentes do
discurso.
As formas de organização surgem da acoplagem entre informações nascidas dos
módulos e/ou de formas de organização. O MAM distingue dois tipos de formas de
organização: as elementares e as complexas. As formas de organização elementares fono-
prosódica, semântica, relacional, informacional, enunciativa, seqüencial e operacional
necessitam de uma articulação entre os módulos para serem descritas. Já as formas de
organização periódica, tópica, polifônica, composicional e estratégica são consideradas
complexas por surgirem da combinação de informações oriundas dos módulos e das
formas de organização elementares.
23
Para uma apresentação de todos os módulos e formas de organização, remeto mais
uma vez a Marinho (2004:86-97). O quadro a seguir representa o Modelo Modular de
Roulet em sua versão atual:
Formas de organização Módulos
<dimensões>
<elementares> <complexas >
LINGÜÍSTICO
TEXTUAL
SITUACIONAL
Quadro 3: Versão atual do MAM (Roulet, Filliettaz e Grobet, 2001)
referencial
interacional
hierárquica
lexical
sintática
Fono-prosódica
ou gr
á
fica
semânt
ca
relaci
o
nal
info
r
macional
enunci
a
tiva
seqüe
n
cial
oper
a
cional
periódica
tópica
polifônica
composicional
estratégica
24
1.4 Percurso de análise
Me diz pra onde é que ainda posso ir
Chico Buarque
Para analisar as canções de Chico Buarque focalizaremos os módulos e formas de
organização que possibilitem detectar estratégias nelas utilizadas que visem a burlar a
censura. E, além disso, evidenciar o caráter sócio-histórico das canções. Dessa forma,
examinaremos os módulos interacional, hierárquico, a organização elementar
enunciativa e a organização complexa polifônica.
Nosso percurso privilegia a dimensão situacional, por tratar seus dois componentes
modulares (módulos interacional e referencial). A dimensão textual será investigada ao
tratarmos do módulo hierárquico. A dimensão lingüística será abordada quando
passarmos à acoplagem das informações de origem modular e alcançarmos a descrição das
formas de organização elementar (enunciativa) e complexa (polifônica).
25
Formas de organização Módulos
<dimensões>
<elementares> <complexas >
LINGÜÍSTICO
TEXTUAL
SITUACIONAL
Quadro 4:Versão atual do MAM com destaque para do percurso de análise.
Tal percurso constituirá nossa hipótese metodológica para que possamos analisar
especificamente:
1º) As relações que a produção linguageira mantém com a situação na qual ocorreu,
a fim de compreender as relações entre as canções e o mundo em que foram compostas;
2º) A estrutura interacional das canções, a fim de compreender como ela interfere
nas interpretações possíveis das canções;
3º) A dinâmica hierárquico-textual das canções, suas recorrências e influências na
leitura das canções;
referencial
interacional
hierárquica
lexical
sintática
Fono-prosódica
ou gr
á
fica
semânt
ca
relaci
o
nal
info
r
macional
enunci
a
tiva
seqüe
n
cial
oper
a
cional
periódica
tópica
polifônica
composicional
estratégica
26
4º) A presença de vozes marcadas ou não-marcadas nas canções, a fim de
compreender como se origina e qual a finalidade da polifonia nas canções.
27
CAPÍTULO 2 HISTÓRICO
2.1 As quatro faces do Brasil
É estimulante pensar que o passado vai se modificar.
Em geral pensamos que o futuro é que está sujeito a
alterações. Não. O passado também é uma
reinvenção. Dependendo do que se determina no
passado, altera-se o nosso presente.
Affonso Romano de Sant’Anna
O Brasil viveu de 1964 a 1985 sob o comando da ditadura militar,
estigmatizada pela intransigência, censura, tortura e desaparecimento. Este período
histórico foi marcado por uma chuva de decretos-lei, atos institucionais e leis de segurança
nacional. Enfim, um regime cujo maior objetivo era manter a ordem considerando como
desordem qualquer tipo de manifestação contrária à sua.
Buscaremos construir neste capítulo um panorama do período da ditadura
militar nos apoiando em produções históricas, textos jornalísticos e até literários sobre este
momento. Nosso olhar não se deterá em todo o período de governo militar (1964 1985),
pois nossa proposta é enfocar o período compreendido entre 1964, ano do golpe militar, e
1979, quando se institui a anistia. Não consideraremos os seis anos finais do regime
ditatorial, uma vez que a partir de 1979 já existia, mesmo que em construção um panorama
de abertura política.
Para compor a imagem do Brasil, postulamos quatro faces a serem construídas
a partir de datas, eventos e pronunciamentos de quem testemunhou o período.
A primeira face a ser tratada será a ditadura militar. Será considerada como o
discurso oficial e delineada através de datas, eventos e trechos de proferimentos dos gene-
28
rais-presidentes. O governo militar arvorou-se responsável pela manutenção da ordem,
inclusive, intervindo na conduta dos cidadãos.
A face das organizações de esquerda se constituiu como resistência e oposição à
postura ditatorial do regime. A caracterização dessa face se constituirá basicamente de re-
latos de personagens pertencentes às organizações de esquerda.
Por fim, serão construídas as duas últimas faces: a cultural e a de Chico Buar-
que, que se complementam. A cultural é a imagem da produção no campo da cultura (tea-
tro, música, cinema, etc.) que por sua vez é fortemente influenciada pelas duas faces ante-
riormente mencionadas.
A face de Chico Buarque é, por conseguinte, amálgama dos reflexos gerados
pela tensão entre a ditadura versus a esquerda e seu ambiente sócio-cultural aliado certa-
mente à sensibilidade do compositor.
As canções analisadas nesta dissertação aparecem como produto social desse
objeto abstrato criado com essas faces.
Figura 1: As quatro faces do Brasil
CULTURA
DITADURA
CHICO BUARQUE
ESQUERDA
CANÇÕES
29
2.1.1 Primeira face: a ditadura militar
Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações saudades e cinzas
Foi o que restou
Chico Buarque
O período da ditadura militar pode ser dividido em três fases distintas com
características políticas peculiares, aspectos que influenciarão a análise desenvolvida nesta
dissertação. A primeira vai do início do golpe em 1964 à instituição do Ato Institucional V
(AI V) em 1968; a segunda corresponde ao período de maior truculência do regime, de
1968 a 1974; e a terceira fase corresponde ao processo de abertura política, de 1974 à
revogação do AI V em 1979.
João Goulart foi deposto e em 31 de março tomou posse o Marechal Humberto de
Alencar Castelo Branco. Instalou-se no país o regime militar cujo objetivo foi assegurar o
avanço do capitalismo e eliminar quaisquer influências socialistas da sociedade brasileira.
Com o pretexto de manter as leis e a segurança nacional, estruturou-se o discurso
da ditadura militar:
O remédio para os malefícios da extrema esquerda não será o
nascimento de uma direita reacionária, mas as reformas que se fizerem
necessárias [...] Meu governo será o das leis, o das tradições e princípios
morais e políticos que refletem a alma brasileira.
4
Sem a participação do povo, o golpe deu-se como um acerto entre generais. Posteri-
ormente, surgiram os ecos de um governo antidemocrático através das intervenções nos
4
Trecho do proferimento de posse de Castelo Branco, a 15 de abril de 1964 (WORMS;COSTA,
2002)
30
sindicatos e na zona rural. Os sindicatos do campo e da cidade organizavam-se, havia nos
dois setores uma grande movimentação grevista, o que sugeria uma expressiva liberdade
sindical, todavia, essa liberdade não era garantida em lei.
O Ato Institucional I (AI I) permitiu o controle da sociedade e dos poderes
públicos, a cassação dos direitos políticos dos cidadãos e o controle do Congresso. Castelo
Branco, em 1965, assinou o Ato Institucional II (AI II), que visava, principalmente,
controlar o Legislativo. Esse ato alterou o funcionamento do Judiciário, extinguiu partidos
políticos e estabeleceu eleições indiretas para a presidência em 1966. A edição do AI II não
deixou dúvida acerca das intenções de o regime perpetuar-se no poder. Para muitos que
ainda acreditavam na transitoriedade do regime, o texto do AI II trazia: “Não se disse que a
Revolução foi, mas que continuará”.
Complementando o AI II em fevereiro de 1966, editou-se o Ato Institucional III (AI
III), que estabeleceu também indiretas as eleições para governador.
No poder os militares adotaram o modelo econômico do desenvolvimento acelerado,
baseado na concentração de renda, expansão de crédito aos consumidores e abertura
externa da economia brasileira. A ampliação das margens de lucro dos empresários e os
incentivos fiscais aos estrangeiros deram segurança aos investidores para aplicações no
mercado brasileiro. O Brasil passou a ser o “paraíso das transnacionais”.
Em dezembro de 1966, um novo Ato Institucional (AI IV) foi baixado determinando
regras para a aprovação da nova Constituição. No primeiro mês de 1967, o Congresso foi
reaberto para fazer aprovar a Constituição que institucionalizou definitivamente a ditadura.
O presidente Costa e Silva, sucessor de Castelo Branco, subiu ao poder em 1967, proferin-
do as seguintes palavras em sua posse: “Prometo manter, defender e cumprir a Constitui-
31
ção. Observar as leis, promover o bem geral e sustentar a união, a integridade e a indepen-
dência do Brasil”.
O ano de 1968 terminou sob o AI V, que vigorou até 1979 e que concedeu ao
Presidente plenos poderes para fechar por tempo ilimitado todo o Poder Legislativo. O ano
de 1969 marcou a posse do General Emílio Garrastazu Médici, após o afastamento de
Pedro Aleixo, vice-presidente civil de Costa e Silva, impossibilitado de governar por
motivo de saúde.
O AI V foi considerado pelo Correio da Manhã como o “golpe dentro do golpe”.
Estava instalada a fase mais violenta da ditadura, na qual muitas prisões, torturas,
assassinatos e desaparecimentos de presos políticos foram praticados em nome da
segurança nacional.
S. Excia., O Sr Presidente da República, após ter ouvido os membros
do conselho de Segurança Nacional, resolve baixar um ato institucional
que tem como finalidade fundamental preservar a Revolução de Março de
1964, a fim de que possamos, saneando este clima de intranqüilidade, que
gera a desconfiança o desconforto e a procura de qualquer forma de
atingir o regime que precisamos defender, baixar um ato institucional.
5
Foi instalada a censura total nos jornais, periódicos, TVs, rádios, etc. E só se
veiculavam slogans como Brasil, ame-o ou deixe-o” ou Ninguém segura este país”,
numa referência ao “Milagre Econômico” que se iniciou em 1970 e ao tricampeonato
mundial de futebol também em 1970. Por outro lado, escondeu-se a face radical e
repressora do governo Médici (19691973).
Embora repressor, o início do governo Médici, em 1969, não vez antever de
imediato sua posição opressora ao extremo.
5
Trecho da justificativa do decreto do AI IV, (WORMS; COSTA, 2002)
32
O ano de 1973 foi considerado o auge do “Milagre Econômico”. Esse nome foi da-
do pelos capitalistas internacionais para qualificar o período de retomada do crescimento
econômico. A expansão industrial concentrou-se no setor de bens de consumo duráveis,
tais como eletrodomésticos e automóveis, e foi sustentada pelo crédito fácil, a juros baixos,
criando um clima de euforia entre os setores médios da sociedade, transformados então em
vorazes consumidores.
Com a posse do general Ernesto Geisel, que prometeu distensão (liberação do
regime e relaxamento da repressão), a economia passou a dar os primeiros sinais de crise e
o governo sofreu uma derrota significativa nas eleições parlamentares. Embora o governo
Geisel controlasse a linha dura, temia a oposição que exigia democracia e ganhou respaldo
social.
Ainda em 1977, Geisel destituiu o general Sílvio Frota do ministério do Exército,
uma vez que, com o apoio da linha dura, ele pretendia ser o próximo presidente. O
movimento operário voltou a se pronunciar publicamente contra a política do arrocho
salarial. Durante o período do governo do general Geisel, deu-se início à lenta abertura
política. Em maio de 1978, uma greve de metalúrgicos ocorreu em São Paulo, sob a
liderança de Luís Inácio da Silva.
Nas eleições de 1978, o Pacote de Abril
6
atingiu seus objetivos: o MDB ganhou em
número de votos, mas ficou com minoria de representantes no Congresso Nacional. O
governo anunciou o fim do AI V, prometendo continuar a abertura no próximo mandato.
6
Pacote que estabelecia mandato de seis anos para Presidente, manutenção de eleições indiretas
para governador e diminuição da representação dos estados mais populosos no Congresso Nacio-
nal.
33
2.1.2 Segunda Face: a esquerda
Essa moça é a tal da janela
Que eu cansei de cantar
E agora está só na dela
Botando só pra quebrar
Chico Buarque
Em oposição ao que chamamos de face da ditadura, aparece a face da esquerda. As
duas irão conviver num jogo de polaridades.
Logo após o golpe, o que vimos no cenário brasileiro foi uma esquerda fragmentada
no campo ideológico-estratégico. Ideologicamente tal fragmentação pôde observar-se pelas
várias tendências que a influenciaram: posicionamentos ora russo, ora chinês, ora cubano,
assim como a escolha das táticas de resistência. Houve, no país, uma profusão de siglas,
especialmente aquelas que nomearam partidos e organizações de esquerda, que
mantiveram em comum somente o fato de se posicionarem contrariamente ao regime
militar.
Traçar um perfil para a esquerda no Brasil torna-se uma tarefa hercúlea, na me-
dida em que ela é extremante fragmentada. Para tanto, selecionamos trechos e depoimentos
que refletem quatro posicionamentos da esquerda. Foram escolhidos dois trechos de docu-
mentos do PC do B
7
e do PC do B-AV
8
e dois depoimentos, um de Dom Luciano Mendes
Almeida e outro de Luís Inácio da Silva, pessoas importantes no contexto sócio-político de
nosso país no momento ditatorial.
7
Partido formado de uma luta política no interior do PCB. O PC do B também era conhecido como
partido comunista.
8
Partido originado do PC do B. Denominado Ala Vermelha, com tendências à luta armada.
34
Trecho 1 “União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neo-
colonialista”
9
O povo brasileiro sofreu duro revés com o golpe de 1º de abril e no
país ocorreu uma reviravolta política de sentido reacionário. Foi implan-
tada a ditadura militar. Ascenderam ao governo pessoas diretamente liga-
das ao Pentágono e ao Departamento de Estado e que não têm nada em
comum com os interesses nacionais. A orientação que preconizam, as so-
luções que apresentam e as medidas que executam são inspiradas ou
ditadas por Washington.
O povo se mantém passivo diante da política antipopular da ditadura.
O desencantamento das massas, que se revelou desde os primeiros dias
do golpe, generalizou-se e manifesta-se abertamente. O governo é odiado
pelos patriotas e democratas. Ações de diversas camadas sociais têm
lugar em todo país e contribuem para desmascarar e isolar a ditadura. Os
estudantes realizam, corajosamente, demonstrações públicas a favor da
liberdade. Promovem passeatas e, por mais de uma vez, entraram em
choque com as forças da repressão.
Trecho 2 “Crítica ao oportunismo e ao subjetivismo da União dos brasileiros para livrar
o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista”
10
Sobre a tática da Revolução Brasileira
Para levar a efeito a tarefa principal indicada pela estratégia, ou seja, a
destruição da ditadura militar neocolonialista através do aniquilamento
das Forças Armadas, é necessário encontrar a forma de luta adequada.
Como já vimos, as Forças Armadas exercem o papel de ocupação interna
e realizam a repressão preventiva. Como realizam a ocupação militar
interna do país, estão capacitadas para reprimir qualquer movimento de
massas de caráter pacífico ou armado, pois já empregam na prática a luta
armada contra-revolucionária. Assim, para que as forças revolucionárias
obtenham êxito, torna-se necessário o emprego da luta armada como
principal forma de ação. Na situação atual, como o fator dominante da
sociedade é a contra-revolução armada, as forças revolucionárias
necessariamente devem empregar as mesmas formas de luta empregadas
pelas forças contra-revolucionárias. (itálico no original).
Trecho 3 Depoimento de Dom Luciano Mendes de Almeida
11
9
Este documento embasou as discussões da VI Conferência Central do partido realizada em 1966.
10
PC do B-AV, 1967.
35
A “revolução”, entre aspas, de 1964 aconteceu quando eu estava ter-
minando um trabalho em Roma. A volta para o Brasil, no início de 1965,
foi uma profunda experiência, porque encontrei o nosso país sob a ação
repressiva dos militares, criando um clima de medo e de apreensão, parti-
cularmente no nível da comunicação. Era difícil saber com quem se fala-
va. Atuei na capelinha universitária. Fiquei muito preocupado com a situ-
ação de jovens, rapazes e moças desaparecidos e eliminados pelo poder
repressivo. Acompanhei, também, lideranças do operariado. Eram as duas
áreas mais visadas. Em nível da Igreja, agradeço a experiência de
colegas, companheiros de sacerdócio, que souberam expressar a sua
rejeição a essas atitudes e tomar a defesa dos perseguidos. Eu mesmo
visitei vários na prisão e procurei acompanhar suas famílias. Essa foi a
imagem de 1965 até vários anos depois.
Trecho 4 Depoimento de Luís Inácio da Silva
12
Quando houve o 31 de março, eu tinha exatamente dezoito anos de
idade. Trabalhava na Metalúrgica Independência. E eu achava que o
golpe era uma coisa boa. Eu trabalhava junto com várias pessoas de
idade. E pra essas pessoas, o Exército era uma instituição de muita
credibilidade. Como se fosse uma coisa sagrada. Uma coisa intocável. O
Exército era uma coisa que poderia consertar o Brasil. Quando houve o
golpe, a Metalúrgica Independência tinha 45 pessoas, e a gente tinha uma
meia hora para o almoço. Todo mundo de marmita, a gente sentava pra
comer e eu via os velhinhos comentarem: Agora vai dar certo, agora vão
consertar o Brasil, agora vão acabar com o comunismo. Era essa a idéia.
Essa era a visão que eu tinha na época do golpe militar.
Eu acho que a gente tem que dividir o regime militar entre a intenção
dos militares que deram o golpe em 1964 e aquilo em que se transformou
depois do golpe, a revolução. Pois eu acho que houve uma deformação,
se você tirar fora as questões políticas, as perseguições e tal, do ponto de
vista da classe trabalhadora o regime militar impulsionou a economia de
forma extraordinária. Hoje a gente pode dizer que foi por conta da dívida
externa, “milagre” brasileiro e tal, mas o dado concreto é que, naquela
época, se tivessem eleições diretas, o Médici ganhava.
Quando é que começou a classe trabalhadora a se rebelar contra o
regime militar? A classe trabalhadora despolitizada, a massa. Quando
acabou o “milagre brasileiro”. Exatamente a partir do final da década de
setenta, quando tivemos que pagar o que nós tínhamos tomando
emprestado na década de sessenta.
No governo do Médici, eu tava me formando politicamente. Aí
quando foi em 1975, eu fui ser presidente do Sindicato.
11
Em entrevista para o livro “Memória Viva do regime militar” de Ronaldo Costa Couto.
12
Em entrevista para o livro “Memória Viva do regime militar” de Ronaldo Costa Couto.
36
A conjunção dos trechos selecionados cria uma imagem da esquerda que se asseme-
lha a uma visão de um caleidoscópio, pois era influenciada por outras organizações de es-
querda espalhadas pelo mundo e principalmente na América Latina.
Os trechos e depoimentos fazem referência inicialmente à influência americana que
foi sem dúvida um ponto de apoio para a implantação do golpe em nosso país, pois via
com maus olhos a influência de países que apoiavam o comunismo como Cuba, por
exemplo.
Outro aspecto abordado foi a posição de resistência contra o regime ditatorial. Os
primeiros ensaios de resistência foram ouvidos através da enorme vaia recebida pelo
general-presidente Castelo Branco durante uma visita à Universidade Federal do Rio de
Janeiro em 1965. Naquele ano, o Rio assistiu a uma passeata contra o AI II. Um ano após,
em Belo Horizonte, a UNE
13
estabeleceu o Dia Nacional de luta contra a ditadura. Em
1968, foram presos 1.240 estudantes em Ibiúna (SP), onde se realizava o 30º Congresso da
UNE. A crise estudantil chegou a seu ápice.
Quanto mais o governo recrudescia a repressão, mais a resistência se firmava e
alguns grupos mais extremistas, como o PC do B-AV, aderiram à luta armada.
Organizaram-se os primeiros grupos guerrilheiros contra o regime. Entre esses muitos
confrontos violentos podemos destacar o seqüestro do embaixador norte-americano,
Charles Elbrick, em 1969, visando à troca por presos políticos. Para manter suas
organizações, os guerrilheiros assaltaram também agências bancárias em São Paulo.
A Igreja, que inicialmente havia se colocado junto da classe média favoravelmente
ao golpe militar, conforme Dom Luciano, reviu sua posição à medida que foi percebendo
as atitudes antidemocráticas, posicionando-se de forma contrária ao regime. Tal posição se
13
União Nacional de Estudantes.
37
confirmaria em muitos episódios tais como a participação efetiva de religiosos na Comis-
são “dos Cem Mil” designada para dialogar com o governo e que contava também com
professores, estudantes, profissionais liberais e artistas. E em fevereiro de 1978, o Vaticano
mandou uma Delegação de padres para o Brasil a fim de apurar os crimes de tortura.
Com a posse do general Ernesto Geisel, que prometeu distensão, surgiram os
primeiros sinais de crise na economia que levaram governo a sofrer uma derrota
significativa nas eleições parlamentares.
Já nas palavras do líder sindical Lula, o Brasil, por completo, só se deu conta dos
efeitos do regime militar quando se efetivou o fim do “milagre econômico”. Em abril de
1977, trabalhadores distribuíram panfletos contra o governo no ABC paulista. O ano de
1979 assistiu a muitas greves e em especial à do ABC paulista, em que os sindicatos
sofreram intervenções e Lula foi preso pela primeira vez.
Cresceu a oposição contra o regime. A crise econômica era um fato consumado. O
movimento popular organizava grandes manifestações. Em março de 1979, metalúrgicos
do ABC entraram novamente em greve. O governo interveio destruindo as lideranças
sindicais. Nessa conturbação ocorreu também a posse do general João Baptista Figueiredo
como presidente.
Em agosto de 1979, a União Nacional dos Estudantes foi reorganizada, embora sem
reconhecimento oficial. Nesse mesmo ano, foi aprovada a Lei da Anistia, proposta pelo
presidente Figueiredo. E no início de 1980 os presos políticos foram libertados e os
exilados puderam voltar ao país.
38
2.1.3 Terceira Face: A cultura
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Chico Buarque
O mundo fervilhou com idéias filosóficas, críticas a condutas sociais, manifestações
contrárias à Guerra do Vietinã. Houve uma grande euforia com a expansão tecnológica. A
juventude foi influenciada pela conquista da lua, pelos ecos da guerra do Vietinã, pela
liberação das pílulas anticoncepcionais e a conseqüente emancipação feminina e outras
tantas idéias. Especialmente no Brasil, além de tudo isso, ocuparam a idéia da juventude
preocupações com um país governado por militares. Foram os estudantes, os intelectuais e
os artistas que, principalmente, sentiram as profundas transformações geradas pela
instalação de um regime militar.
Com o endurecimento da ditadura, fechou-se o cerco sobre os artistas. Já contra o AI
II os artistas se mobilizaram em reações contra o fechamento da UNE e dos Centros
Populares de Cultura (CPCs). Toda a movimentação da juventude brasileira, no campo
cultural, foi como um espelho refletindo os protestos comandados pelos jovens do mundo
inteiro.
As atividades culturais passaram a ser o suporte para a organização de mais um ponto
de resistência ao julgo dos militares. Os jornais, o teatro, o cinema e a música passaram a
estabelecer-se como lugar para discussão e resistência até por serem formadores de opinião
e comportamento.
39
2.1.3.1 – Os jornais
Nos primeiros momentos do golpe de 1964, a grande imprensa apoiou aos militares,
com exceção do jornal “Última Hora”. O jornal da manhã chegou a informar: “A nação
saiu vitoriosa com o afastamento do Sr. João Goulart da presidência da República...”
14
Inicialmente alguns jornalistas não viram os efeitos da ditadura, porém, em 1967,
com a edição da Lei de imprensa, os resquícios de liberdade de imprensa foram extintos. A
censura passou a ser realizada a qualquer meio de comunicação. Em represália à censura,
os jornais deixaram espaços em branco ou publicaram versos ou receitas culinárias, de
modo a denunciar ao leitor a presença do veto arbitrário.
Como forma de descrever o sentimento coletivo da passagem do ano 67 para 68,
disse o jornalista Zuenir Ventura:
De qualquer maneira, a ditadura havia trocado de ditador, a legislação
revolucionária fora substituída por uma Constituição tudo bem, mas era
uma Constituição -, um presidente bonachão se dizia preocupado com a
“normalização democrática” e uma nova geração parecia disposta a
deixar a marca de sua presença em todos os campos da História. Muitas
vezes o ano iria dar a impressão, repetindo Millor Fernandes, de que o
país corria o risco de cair numa democracia.
E como complementação às palavras irônicas do jornalista temos as de Betinho:
em 64 a Nação recebeu um tiro no peito. Um tiro que matou a alma
nacional. (...) Os personagens que pareciam fazer parte da história natural
brasileira, ou da História do Brasil como nós imaginávamos, esses perso-
nagens de repente sumiram. Ou fora do poder, ou presos ou mortos. E em
seu lugar surgiram outros, que eu nunca sequer percebera existir. Atores
bárbaros que eu nunca tinha visto. Idiotas que nem mereciam ser notados.
De repente, eles eram mais do que donos do poder, eram donos da reali-
dade! Aí me veio a percepção clara de que o Brasil havia mudado para
sempre. (...) Havia sido cometido um assassinato político. Ali morreu um
país, morreu uma liderança popular, morreu um processo. Uma derrota
política de um período histórico do qual você jamais vai se recuperar nos
14
Correio da Manhã 02 de abril de 1964.
40
mesmos termos. (...) Não se matam somente as pessoas, também se ma-
tam os países, os processos históricos.
15
Não podemos deixar de mencionar o Pasquim, que foi o primeiro e mais influente
jornal de oposição à ditadura militar. Surgiu, em julho de 1969, das “mentes” dos jornalis-
tas de Ziraldo, Millôr Fernandes, Jaguar, Fortuna, Prósperi, Claudius, entre outros, como
uma resposta à promulgação do ato AI V dos militares.
De uma tiragem inicial de 20 mil exemplares, que a princípio parecia exagerada, o
semanário atingiu a marca de mais de 200 mil em seu auge, no meio dos anos 70. O Pas-
quim foi se tornando mais politizado à medida que aumentava a repressão da ditadura,
passando a ser um dos porta-vozes da indignação social brasileira.
Além de um grupo fixo de jornalistas, a publicação contava com a colaboração de
nomes como Henfil, Paulo Francis, Ivan Lessa e Sérgio Augusto, e também dos colabora-
dores eventuais Ruy Castro e Fausto Wolff.
Ziraldo em entrevista publicada no jornal "Esquinas de S.P." nº 19, de novembro de
1999 diz:
Um dia perguntaram ao Armando Falcão, que era um ministro da
Justiça dos mais reacionários que o Brasil já teve, se nós tínhamos
alguma possibilidade de abertura, de voltarmos à democracia. E ele: ‘O
futuro a Deus pertence’. Essa frase ficou famosa. Aí eu desenhei o
Armando Falcão dizendo a frase para o repórter e apontando para o céu,
onde estavam quatro estrelas em carreira. E quatro estrelas é general.
Com a charge, Ziraldo dizia o que todos sabiam, mas ninguém podia falar: a volta à
democracia estava nas mãos dos militares.
Em novembro de 1970 a redação inteira do Pasquim foi presa depois que o jornal
publicou uma sátira do quadro de Dom Pedro às margens do Ipiranga, de autoria de Pedro
15
Sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho, o “irmão do Henfil” dos combates pela Anistia,
resume de modo definitivo o que aconteceu naquela época (NAPOLITANO, 1998).
41
Américo. Os militares esperavam que o semanário saísse de circulação e seus leitores per-
dessem o interesse, mas durante todo o período em que a equipe esteve encarcerada - até
fevereiro de 1971 - o Pasquim foi mantido com colaborações de Chico Buarque, Antônio
Callado, Rubem Fonseca, Odete Lara, Gláuber Rocha e diversos intelectuais cariocas.
As prisões continuariam nos anos seguintes, e na década de 80 as bancas que
vendiam jornais alternativos como o Pasquim passaram a ser alvo de atentados a bomba.
Aproximadamente metade dos pontos de venda decidiram não mais repassar a publicação,
temendo ameaças. Foi o princípio do fim do Pasquim.
A repressão aos jornais começou a decair anos mais tarde com a extinção do AI V.
2.1.3.3 – O Teatro
Em 1964, estreou “O Opinião”, que trouxe à tona a miséria das populações urbanas
e rurais, misturando música e teatro. “O Opinião” foi referência a quem procurava
repertório para fazer oposição ao regime. Esse show, assim como todos os espetáculos do
Teatro Arena, colocaram em cena propostas que mais tarde se radicalizaram em lutas
armadas.
Outro espetáculo relevante foi “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo
Neto, com música de Chico Buarque, que em 1966 tratou do percurso de um retirante, um
homem do agreste que viaja rumo ao litoral, e se depara, em cada canto, com a morte,
presença ao mesmo tempo anônima e coletiva, até que, em Recife, seu destino, fica
sabendo do nascimento de um menino: sinal de que ainda existe algo que resiste à
constante negação da vida.
Em 1968, “Roda Viva”, de Chico Buarque, usando deboche e irreverência para
demonstrar as condições reais do Brasil, teve muita repercussão tanto pela estética quanto
por ser vítima de marcantes episódios de violência. Como exemplo, temos o fato ocorrido
42
durante o 1º espetáculo, quando os membros do Comando de Caça aos Comunistas, invadi-
ram o teatro e, armados, espancaram o elenco da peça, despiram as atores e obrigaram Ma-
rília Pêra e Rodrigo Santiago a irem nus para a rua.
Também “Calabar”, de Ruy Guerra e Chico Buarque, foi proibida em 1974, na
véspera de sua estréia, assim como muitas outras montagens da época. A proibição
inesperada desta montagem, ironicamente, assemelhou-se a uma emboscada ou traição, um
dos temas centrais da peça.
Depois de 1979, com a revogação do AI V, o teatro brasileiro voltou a se expressar
mais livremente contando com novos caminhos e possibilidades.
2.1.3.3 – Cinema
A sociedade e mais especificamente a juventude viveram um momento de
contestações aos valores tradicionais. A liberdade foi a arma para combater a violência da
repressão.
Foi com esta inspiração cultural que o cinema se estruturou como mais um
formador de opinião. O Cinema Novo foi definido por seu idealizador Glauber Rocha da
seguinte maneira:
No Brasil o Cinema Novo é uma questão de verdade e não de
fotografismo. Para nós a câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é
um instrumento de conhecimento, a montagem não é uma demagogia,
pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social
do Brasil. (Hollanda, 1984:39)
Glauber Rocha possuía naquela época, entre muitas produções, dois expoentes da
cinematografia brasileira de resistência. Ele, em seus filmes, propositalmente, utilizava
luzes e planos sujos, marginais marcando nossa situação social de terceiro mundo diferen-
temente do que era proposto no cinema mundial. Lembramos então “Deus e o Diabo na
Terra do sol”, cujo título se inspira nas imagens sobre o Estado, presentes no pensamento
43
social latino-americano e no enfrentamento dos interesses dominantes estabelecidos que
caracterizam os estudos sobre o papel do Estado brasileiro ao longo do processo de indus-
trialização. E “Terra em Transe”, que também mistura poesia e política e traz em seu texto
trechos de poesias barrocas e frases marxistas.
As críticas e a resistência persistiram até o final da ditadura entre 1969 e 1974. E
temos, como exemplo, o filme “Macunaíma”, de José Pedro de Andrade, inspirado na obra
de mesmo título de Mário de Andrade, que trata das espertezas de um herói preguiçoso e
sem caráter.
2.1.3.4 – A Música
De 1964 a 1968 percebeu-se uma grande diversidade de estilos musicais. Vimos
duas fortes tendências: os que trouxeram uma influência do Ie-ie-ie americano para o
Brasil A Jovem Guarda - e os que foram influenciados pela Bossa Nova e pelo Samba,
que possuíam uma forte tonalidade político-ideológica.
A Jovem Guarda declarou o descompromisso com os rumos políticos do país e deu
preferência às “festas de arromba”. O hino foi uma música chamada “Quero que tudo vá
para o inferno”, de Roberto e Erasmo Carlos, e que foi considerada pelos engajados como
o “hino dos alienados”. A Jovem Guarda, com o seu forte apelo popular, influenciou as
roupas, os cabelos e até as gírias da juventude.
Já as canções de protesto se subdividiam em tendências: os Tropicalistas, com Cae-
tano e Gilberto Gil como expoentes; O Clube da Esquina, com Milton Nascimento e Os
irmãos Borges; a ala mais radicalizada, cujo objetivo era produzir música participante, com
Geraldo Vandré, que em certa ocasião disse: “A música tem de servir para alertar o po-
vo.”Havia ainda uma classe de compositores que, mesmo fazendo uma canção conteudista,
44
não via a música como um instrumento de mobilização popular, mas como forma de ex-
pressar uma idéia, uma momento político, a luta de classes, etc.
Em 1965 as músicas de protesto começaram a ganhar grande expressão, através dos
Festivais da Canção organizados pelas TVs Excelsior, Record e Globo, que conseguiram
enormes audiências ao vivo e também pelas transmissões televisivas. Esses festivais
acabaram se tornando verdadeiros centros de discussão musical.
Instalou-se a época dos festivais promovidos pela televisão brasileira. Os principais
festivais e as canções vencedoras foram:
- 1965 – (TV Excelsior) Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes.
- 1966 – (TV Excelsior) Porta-estandarte, de Geraldo Vandré e Fernando Lona.
- 1966 – (TV Record) A banda, de Chico Buarque.
- 1967 – (TV Record) Ponteio, de Edu Lobo.
- 1968 – (TV Globo) Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque.
Os festivais foram levados a sério não só pelos artistas, mas também pelo público
que considerou as canções como sua própria voz, por isso muitas vezes as canções que
eram mais conteudistas e preteridas pelos jurados eram aclamadas pelo público. Muitos
artistas e muitas canções sofreram com a censura, uma vez que, por causar tão forte o
envolvimento social, eram muito observados pelos órgãos censores.
Os artistas procuraram meios de burlar os censores utilizando-se de pseudônimos
como Julinho da Adelaide e Leonel da Paiva (ninguém menos que Chico Buarque de
Holanda) e também através de metáforas.
Instalou-se o momento em que, para driblar a censura, era preciso dizer, sem dizer,
era preciso usar como pano de fundo a desilusão do amor ou futilidades cotidianas para se
45
falar da repressão. Foi preciso chamar de “Você” seu grande opressor como Chico fez com
Médici em Apesar de você
16
.
Portanto, indubitavelmente, as maiores vítimas da censura foram: a música popular,
a imprensa e o teatro. Fechou-se, a partir daí, o cerco sobre os artistas. Muitos deles, como
Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo Vandré, foram exilados.
Em 1974, houve um episódio contundente no confronto da Ditadura e
os artistas. Trata-se da censura da Photo 73 Show da Phonogram,
gigantesca exposição de cantores e composição na qual seria cantada a
música Cálice por seus autores Chico e Gil. Mas ela foi proibida na hora
da apresentação, mesmo tendo sua letra publicada em jornal. Para
impedir que a palavra Cálice (Cale-se) fosse pronunciada, cortaram o som
de todos os microfones do Anhembi, um após o outro. Chico com raiva
começava a cantar num deles, o som era desligado; ele pegava outro,
também faziam o mesmo, e outro e outro. E assim iconizou-se,
transformou-se em imagem concreta aquela palavra. Para que ninguém
ouvisse “Cale-se”, a censura levou aquelas três mil pessoas presentes ao
show a verem o “Cale-se” dramaticamente concretizado nos microfones
calados.
17
2.1.4 Quarta Face: Chico Buarque
Não é preciso insistir na importância de Chico
Buarque para a cultura brasileira. [...] É exatamente
essa a sensação que nos transmite o contato com a
criação de Chico. Ela não apenas registra a nossa
história, como freqüentemente a revela para nós sob
ângulos insuspeitados, amarrando e comunicando a
experiência coletiva aos segredos e abismos da
subjetividade de cada um.
18
Chico Buarque é filho de Maria Amélia Alvim Buarque, pianista amadora, e do
historiador Sérgio Buarque de Holanda. Nasceu no Rio de Janeiro, em 19 junho de 1944.
16
Apontamos que se comentava que o alvo de Apesar de você era, de fato, o General Golberi de
Couto e Silva (eminência parda do poder, o grande mentor dos golpes e, particularmente, da edição
do AI V) e não o Médici.
17
MENESES, 2002.
18
Fernando de Barros e Silva falando sobre a obra de Chico (SILVA, 2004).
46
Durante sua infância, seu pai recebeu um convite para ministrar aulas na Universidade de
Roma, aceitou e se mudou com toda a família. Uma das grandes influências de Sérgio Bu-
arque a seu filho foi a sua amizade com Vinícius de Moraes que futuramente seria também
grande amigo e parceiro em muitas canções de seu filho.
Chico Buarque foi politicamente influenciado pelo trabalhismo getulista, na
infância, e pelo desenvolvimento nacional de JK na adolescência. Culturalmente, suas
influências são vanguardistas seja na poesia, cinema ou arquitetura. Leu os grandes
clássicos: Sartre, Flaubert, Kafka, Dostoiésviski e Tolstoi sugeridos pelo pai. Ouviu
sambas: Noel Rosa, Ataulfo Alves e Dorival Caymmi, músicas italianas e francesas que
ouvira na Europa e aprendera a gostar.
Iniciou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo,
mas abandonou o curso três anos depois, influenciado pelo clima de repressão, que
assaltava as Universidades após o golpe. Casou-se com Marieta Severo, que lhe foi
apresentada pelo amigo Hugo Carvana. Com a companheira teve três filhas: Sílvia, Helena
e Luísa.
Chico decididamente nasce para o país logo após o golpe de 1964, quando
esvaiu a fantasia de uma civilização brasileira, como sonhada a partir do final dos anos 50.
Nos anos 50 havia um projeto coletivo, ainda que difuso, de um Brasil
possível, antes mesmo de haver a radicalização da esquerda em 60. [...]
Aquele Brasil foi cortado evidentemente em 64. Além da tortura, de todos
os horrores do país. A perspectiva do país foi dissipada pelo golpe.
19
Chico driblava a censura com sua poesia que contava a história de seu tempo e
ao fazê-lo contava a história do próprio homem. Assim Chico Buarque se auto-definiu em
19
Entrevista à Folha de São Paulo em 18 de março de 1999.
47
sua canção “O Futebol”, de 1989: Para tirar efeito igual/ Ao jogador/Qual composi-
tor/Para aplicar uma firula exata.”
Em 1968 participou da passeata “dos Cem Mil” e logo depois foi detido em sua
própria casa e levado ao Ministério do Exército para prestar depoimento sobre a sua parti-
cipação na passeata e sobre as cenas exibidas na peça Roda Viva, consideradas
subversivas. Decidiu-se por um auto-exílio e partiu mais uma vez para Roma, onde não
deixou de fazer suas composições e discos.
Retornou ao Brasil, fazendo grande barulho, por sugestão do amigo Vinícius de
Moraes, e retomou os protestos políticos lançando Apesar de Você. Tal canção causou
grande polêmica porque a personagem “você” foi identificada como o general-presidente
Médici. Chico tentou se defender dizendo que o então “você” se referia a uma namorada
que tivera e que possui uma atitude muito autoritária. “É, que era muito, muito
mandona
20
.”
Para driblar a censura, criou o personagem heterônimo Julinho da Adelaide. A
investida deu certo e as canções Acorda, amor, Jorge Maravilha e Milagre brasileiro
passaram sem grandes problemas pela censura. O público só tomou conhecimento da
verdade por meio de uma reportagem publicada em 1975.
Quase impossibilitado de gravar suas próprias canções, lançou o disco Sinal fe-
chado, com músicas de outros compositores, exceção feita à Acorda amor, composta em
parceria com Julinho da Adelaide, ou seja, com ele mesmo.
Foi mais uma vez detido pelo DOPS, ao regressar de uma viagem a Cuba,
quando iniciava um processo de aproximação entre a cultura desse país e o Brasil.
20
Palavras de Chico quando convocado a dar explicações sobre a personagem da canção “Apesar
de Você”. Entrevista à revista Playboy, disponível no site www.chicobuaque.com.br.
48
Em 1978 lançou a canção “Fantasia”, cujo próprio título se revelou como um
dos significantes mais recorrentes nas canções de protesto com o sentido de burla. Nesse
ano a sociedade começou a se organizar, articulando greves e paralisações, literalmente
tirando a “fantasia”.
49
CAPÍTULO 3 CANÇÃO: OBJETO DE ESTUDO
Ao som de uma canção
Então, eu te convidaria
Pra uma fantasia
Do meu violão.
Chico Buarque
3.1 As canções e o mundo: dimensão referencial
A atividade social tem um poder estruturante sobre as situações de discurso,
performa as ações dos participantes e permite uma representação da estrutura do meio
ambiente. Pautada nas inquietações sobre a situação social e a relação que estas
estabelecem com as produções linguageiras, a equipe genebrina desenvolveu seus estudos
sobre a dimensão referencial. O módulo referencial é definido como um componente
elementar do discurso (ROULET; FILLIETTAZ & GROBET, 2001:103), e trata das
relações que as produções linguageiras mantêm com as situações nas quais foram
produzidas. Como expõe Marinho,
21
o módulo referencial é um componente do modelo
que estuda os elos do discurso com mundo no qual ele é produzido, bem como suas
relações com o(s) mundo(s) que ele representa.
A abordagem genebrina da dimensão referencial possui um caráter metodológico
psicossocial, pois leva em consideração o papel das “mediações sociais” na construção da
forma pela qual os agentes, engajados em uma certa linha de conduta, representam os
contextos de atividades. Para detalhar mais o módulo referencial, toma-se em
consideração, de uma parte, as ações linguageiras e não linguageiras, determinadas ou
designadas pelos locutores, e, de outra parte, os conceitos implicados nas tais ações.
21
Texto apresentado em mesa redonda no 1º Encontro Mineiro de Análise do Discurso realizado na
UFMG em 22 a 24/06/2005.
50
As categorias da dimensão referencial aliam e descrevem as atividades, as ações e
os conceitos envolvidos numa dada interação e são quatro: Representações praxeológicas e
conceituais (consideradas subjacentes ao discurso), e estruturas praxeológicas e conceituais
(consideradas emergentes, resultantes de realidades particulares).
Representações Estruturas
Praxeológica Conceitual Praxeológica Conceitual
Corresponde à
descrição das ações
que se realizam para
a produção de um
tipo de interação.
Elenca certo número
de características de
determinado objeto
independentemente
de uma interação
particular.
Representa como se
realiza determinada
interação e descreve
as ações coordenadas
dos seus
participantes.
Combina os
elementos da
representação
conceitual de uma
determinada maneira
numa interação
particular.
Quadro 5: Categorias da dimensão referencial
3.1.1 A canção engajada e sua representação praxeológica
Filliettaz (1997) evidencia que a representação praxeológica é um construto coleti-
vo interiorizado pelos agentes, que não pretende somente determinar as ações, mas opera
como um guia cognitivo subjacente, pois retrata alguns percursos acionais típicos ligados a
uma situação de interação determinada. Em nossa análise, propomos uma representação
praxeológica de canção de engajamento produzida em período da ditadura militar.
51
Figura 2: Representação praxeológica das canções de engajamento
Temos dois grupos acionais, um relacionado às ações desenvolvidas no ato da
composição das canções e outro relacionado ao ato da leitura/audição.
Para atingir, persuadir e conscientizar seu público, o compositor constrói sua
identidade de acordo com sua posição num dado momento histórico, que influencia direta
ou indiretamente a produção do discurso das canções. Os compositores engajados, como já
dissemos, posicionaram-se contrariamente ao governo ditatorial. Assim seu público
reconhecia a identidade de um compositor nas ações com que procuravam denunciar as
atitudes antidemocráticas do militarismo.
Ao produzir suas canções, o compositor buscava estratégias que, concomitantemen-
te, denunciassem o momento histórico e burlassem a censura. As canções eram, total ou
Composição
Cancão
Audição/leitura
Construção da identidade do
compositor
Estratégias de produção da canção
Atuação da censura
Divertimento/conscientização
Construção da confiabilidade do
compositor
Procedimentos de persuasão
Adesão total - parcial
Aceitação /contestação
52
parcialmente, censuradas quando faziam alguma crítica ao governo ou quando denuncia-
vam problemas sociais. Na divulgação, as canções atingiam seu objetivo de conscientiza-
ção ou mera diversão quando eram aceitas, ou serviam como instrumentos de contestação
social.
3.1.2 O enquadre acional das canções engajadas
O quadro acional procura explicitar algumas propriedades de uma interação efetiva,
do ponto de vista das configurações das ações. Enquanto as representações praxeológicas
se destinam a esquematizar as atividades, os quadros acionais configuram-se como
instrumentos de análise das ações desencadeadas em contextos efetivos, explicitando-se a
forma de organização das mesmas, por meio de cinco parâmetros interdependentes:
i. o modo: segundo Filliettaz (2000:63), os modos de ação dividem-se em ações
individuais e ações conjuntas;
ii. a finalidade:constitui o “núcleo” ou o “centro” da natureza de uma determinada
interação.
iii. os papéis praxeológicos: considerados como as identidades situacionais que os
agentes de uma determinada interação assumem.
iv. a direção e o grau de engajamento: a direção pode apresentar-se em convergência
ou em divergência, já o grau de força diz respeito à intensidade da participação dos
agentes na interação.
v. o complexo motivacional: diz respeito aos motivos que sustentam o engajamento
dos participantes.
53
Uma vez apresentados sucintamente os parâmetros sobre os quais se configura o
quadro acional, vamos esquematizar dois quadros acionais propondo um leitura analítico-
descritiva dos parâmetros especialmente dos mais relevantes.
No nível da interação entre Compositor (Chico Buarque) e público/censura, temos
duas configurações para o quadro acional que vão se diferenciar basicamente quanto à
identificação dos papéis praxeológicos dos interactantes envolvidos.
Chico Buarque
Papéis
Praxeológicos
Público
Complexo motivacional
-Divertir, desabafar, provocar
ironizar;
-Propor um pacto de
cumplicidade interpretativa;
-Denunciar um momento
histórico;
-Conscientizar a sociedade.
Modo:
atividade conjunta
Complexo motivacional
-Divertir, apreciar,
delietar-se com;
-Compactuar com;
- Identificar um momento
histórico;
- Conscientização
Quadro 6: Proposta para o quadro acional 1
O quadro acional acima evidencia as modalidades praxeológicas da atividade con-
junta estabelecida na interação genérica em relação à canção. As ações (divertir, desabafar,
provocar, ironizar, propor um pacto de cumplicidade interpretativa, denunciar um momen-
to histórico, conscientizar a sociedade / divertir, apreciar, delietar-se com compactuar com,
identificar um momento histórico e conscientização) representativas da interação, organi-
zam-se em torno da finalidade “canção”. Essas ações pressupõem “objetos acionais” seme-
lhantes e demonstram um engajamento convergente de indivíduos que exercem papéis pre-
Canção
Finalidade
54
xeológicos determinados Chico Buarque e público. No quadro interacional, os papéis pra-
xeológicos são representados como Compositor e Leitores-ouvintes. O complexo motiva-
cional relacionado ao compositor revela a intenção de produzir canções e, por outro lado, a
intenção do público, que é ouvir as canções. O aparente complexo motivacional disfarça a
intenção de denúncia do momento histórico e da conscientização, uma vez que as canções
poderiam ser consideradas documentos históricos, pois não se podia escrever em jornais,
debater em rádios ou na TV assuntos relativos à ditadura militar.
Chico Buarque
Papéis
Praxeológicos
Censura
Complexo motivacional
- Divertir;
- Contar uma história;
- Bular a censura, provocar;
- Denunciar um momento
histórico ;
- Conscientizar a sociedade
Modo:
atividade conjunta
Complexo motivacional
- Censurar o que se
diz do momento
histórico e contra
o governo;
- Autorizar, validar
Quadro 7: Proposta para o quadro acional 2
O quadro acional exposto acima se diferencia do anterior por apresentar como posi-
ções de papéis praxeológicos Chico Buarque e censura e por evidenciar as modalidades
praxeológicas da atividade conjunta estabelecida na interação de dois indivíduos em rela-
ção à canção. As ações que presidem tal interação se organizam em torno de um “núcleo”
conjunto (canção) que pressuponha “objetos acionais” distintos e opostos, como, por e-
xemplo, burlar a censura e censurar. Nesse caso há uma freqüente recusa por parte ora do
compositor, ora da própria censura e vice-versa, o que coloca em perigo a permanência do
Canção
Finalidade
55
quadro conjunto e deixa clara uma ameaça constante à face de ambos, constatada quando o
compositor utiliza-se de estratégias e consegue burlar a censura ou quando os censores
percebem alguma estratégia de burla e censuram a canção.
3.1.3 A estrutura praxeológica das canções
As estruturas praxeológicas devem representar a realização de determinada
interação. Segundo Lopes (2002:232), a estrutura praxeológica não se confunde com o
instrumento de representação praxeológica que a sustenta. A estrutura praxeológica dá
conta das propriedades emergentes de uma interação efetiva ao contrário da
representação praxeológica, concernente à dimensão tipificante orientadora das linhas de
conduta.
Ao consideramos as canções e sua estruturação interna, podemos dizer que as
canções do nosso corpus obedecem a uma representação assemelhada a uma representação
prototípica das histórias narrativas como proposto por Soares (2003:122):
Figura 3: Representação praxeológica de uma história. Fonte: Soares (2003:122)
As narrativas que compõem o nosso corpus apresentam, no plano referencial, uma
estrutura praxeológica relacionada com a representação praxeológica de uma história.
Organizam-se cronologicamente e estabelecem entre os fatos certa sucessão temporal.
ESTADO INICIAL
COMPLICAÇÃO RESOLUÇÃO ESTADO FINAL
REAÇÃO
56
As semelhanças entre os percursos acionais, por sua vez, reforçam a hipótese de
que, embora as representações possam variar de um interlocutor para outro, existem, entre
os membros de uma comunidade, representações relativamente estáveis dos referentes,
como ressalta Filliettaz (1996). Assim, para cada canção teremos uma estrutura
praxeológica peculiar que a represente segundo sua estrutura narrativa. Cabe ainda lembrar
que o esquema narrativo proposto na figura três não se apresenta com a simplicidade
descrita. É possível que etapas fiquem pressupostas. Tal fato pode ser demonstrado na
estrutura praxeológica proposta para a canção “A Rita”, que apresenta, como pressuposto,
o seu estado inicial.
A Rita
Figura 4: Estrutura praxeológica da canção “A Rita”
Como evidencia esse esquema, o compositor pressupõe o estado inicial, a junção do
casal (personagens da canção). Por algum motivo, o casal se separa e Rita deixa a relação
levando com ela tudo o que lhe pertencia e ao seu parceiro também, atitude que causa no
ESTADO INICIAL
União das perso-
nagens
Rita e narrador.
COMPLICAÇÃO
A Rita vai embo-
ra.
RESOLUÇÃO
“A Rita levou meu
sorriso...
...Levou seu retra-
to, seu trapo, seu
prato...
... A Rita matou
nosso amor de
vingança...”
ESTADO FINAL
“.... Me deixou
mudo um vilão.”
57
narrador espanto “Que papel!” e silêncio diante de tal atitude “me deixou mudo um
violão” –.
Os dois percursos adotados por Chico Buarque se mostraram peculiares, pois a
construção narrativa busca mudar o estado inicial de passividade das canções, mas não
consegue. Vejamos:
Januária
Figura 5: Estrutura praxeológica da canção Januária
ESTADO INICIAL
“...Januária na
janela...”
COMPLICAÇÃO
“... Toda gente
homenageia...
O pessoal desce
na areia e batuca
por aquela”
RESOLUÇÃO
... O pessoal se
desaponta vai pro
mar, levanta vela...
ESTADO FINAL
“.... Januária na
janela se penteia e
não escuta quem
apela...
Ela faz que não dá
conta.”
58
Carolina
Figura 6: Estrutura praxeológica da canção Carolina
A complicação, no primeiro caso, apresenta-se como uma série de homenagens e no
segundo como um arrolamento de argumentos. Já na resolução, nos dois exemplos, vemos
a desistência de quem propõe a mudança. O estado final é na verdade a manutenção, nos
dois casos, do posicionamento do estado inicial marcado por um estado de passividade. Há
também no estado final uma recorrência temática ao se dizer que ambas as personagens
encontram-se diante da janela.
Em oposição a esse percurso que expressa como estado final a passividade, temos o
caminho acional adotado pelo compositor na canção “Benvinda”, que expressa a atitude de
volta da personagem, a qual atende ao apelo do narrador.
ESTADO INICIAL
“...Carolina nos
seus olhos fundo
guarda tanta
dor..”
COMPLICAÇÃO
“... Eu já expli-
quei...
Eu já convidei...
RESOLUÇÃO
... O barco partiu,
uma festa acabou
nosso barco partiu
ESTADO FINAL
... “ O tempo
passou na janela
só Carolina não
viu.”
59
Benvinda
Figura 7: Estrutura praxeológica da canção Benvinda
O narrador, que inicialmente se encontrava triste com a ausência de sua Benvinda,
comunica que está preparado para recebê-la e em seguida pede que sua amada volte.
Benvinda volta e releva, diferentemente das outras canções, cujas estruturas praxeológicas
propomos, uma mudança no estado final da narrativa.
3.1.4 A representação conceitual da canção engajada
As representações conceituais, segundo Filliettaz (1996:39-40), são propostas a par-
tir de um inventário de certo número de características de determinado objeto, independen-
temente de uma interação particular. Propor uma representação conceitual para as canções
ESTADO INICI-
AL
“...Dono do a-
bandono e tris-
teza...
....Cheio de an-
seios...
... Certo de estar
perto
COMPLICAÇÃO
“... Comunico
oficialmente...
que há lugar na
minha mesa...
RESOLUÇÃO
“... Venha ilumi-
nar meu quarto
escuro...
venha entrando
como o ar puro”
ESTADO FINAL
“.... E você che-
gou tão linda...”
60
do nosso corpus é engendrar um conjunto de propriedades ligadas a elas. Poderíamos es-
boçar da seguinte maneira uma representação conceitual genérica para as canções:
Figura 8: Representação conceitual genérica de canção
As canções possuem, ligadas a elas, propriedades típicas como os conceitos de
compositor, público, diversão/expressividade e por estarem atreladas a um dado momento
histórico, aceitação ou não. Podemos ainda propor uma representação ativada na mente dos
sujeitos para as canções de engajamento, que expressaríamos a partir de propriedades
tipicamente associadas a elas:
Figura 9: Representação conceitual da canção de engajamento
As canções de engajamento possuem propriedades típicas como os conceitos de
compositor, censores, conscientização e censura por estarem de forma decisiva ligadas não
a um dado momento histórico, mas especificamente ao momento da ditadura militar. Ao
consideramos a hipótese de que as canções são documentos históricos, afirmamos a impor-
CANÇÃO
DIVERSÃO / EX-
PRESSIVIDADE
AUTOR/ COMPOSI-
TOR
LEITOR/ OUVINTE
PÚBLICO
ACEITAÇÃO / NÃO-
ACEITAÇÃO
CANÇÃO DE EN-
GAJAMENTO
AUTOR/ COMPOSITOR
CONSCIENTIZAÇÃO
LEITOR/ OUVINTE
CENSORES
ACEITAÇÃO / CENSU-
RA
61
tância das informações evidenciadas com a análise da dimensão referencial, as quais per-
passarão todas as análises proposta a seguir.
3.2 A materialidade das canções: dimensão interacional
Uma vez que o discurso é concebido como algo construído a partir do uso do
repertório lingüístico em uma determinada situação de interação, as estruturas lingüísticas
devem ser vistas como resultado do caráter dinâmico e dialógico do discurso. Todo
discurso implica um modo de interação. Faz-se importante identificar a posição dos
interactantes no tempo e no espaço. Enfim, toda situação de interação posiciona-se dentro
dos limites dos parâmetros de ordem material. De acordo com Roulet (Roulet; Filliettaz &
Grobet, 2001), os elementos da materialidade do discurso são:
o canal refere-se ao suporte físico utilizado pelos interactantes: oral,
escrito, visual.
o modo refere-se à co-presença ou distância temporal e espacial dos
interactantes.
o tipo de vínculo refere-se à retroação, reciprocidade ou não
reciprocidade dos interactantes.
Outra informação importante para o MAM é identificar a posição que os
interactantes ocupam nas interações. O termo posição de interação procura, de acordo com
o grupo genebrino, refletir a identidade particular de cada interactante sob o ângulo das
condições materiais de sua participação na interação e no discurso.
As informações fornecidas pela dimensão interacional podem ser representadas por
meio de um enquadre interacional. Se considerarmos, por exemplo, a interação que se efe-
62
tiva com a publicação/divulgação das canções de Chico Buarque, poderíamos dar a essa
interação a seguinte forma.
22
Compositor/
Intérprete
<Chico Buarque>
Leitor/ouvinte
<Público
ou Censura>
Cana Canal oral
23
/escrito
Distância espaço
-temporal
Relação de não
-reciprocidade
< DIVULGAÇÃO/PUBLICAÇÃO>
Quadro 8: materialidade da divulgação/publicação
24
das canções buarqueanas
Como já mencionado, o módulo interacional contempla a materialidade de uma
situação de interação. As posições de interação são ocupadas pelo compositor e seu
leitor/ouvinte que interagem numa relação de não-reciprocidade, distância espaço-
temporal através de um canal que pode ser oral/escrito.
As canções de Chico analisadas em nosso estudo revelam materialidades
interacionais consideradas complexas, com várias interações encaixadas no nível da
interação efetivamente realizada. A referida complexidade remete-nos ao enquadre
interacional da interação romanesca
25
por, como já citado na seção anterior, possuírem uma
estrutura que se assemelha a uma narrativa. As canções analisadas podem representar sua
materialidade através de um enquadre geral, como proposto a seguir:
22
As informações entre colchetes apontam informações de ordem referencial, que foram introduzi-
das para facilitar a leitura do enquadre.
23
Consideramos o canal também como oral referindo-nos à audição das canções, mesmo cientes de
nossa escolha de não analisarmos a melodia das canções.
24
Em disco e não em show.
25
cf. Roulet, Filliettaz e Grobet (2001:157)
63
Compositor/
Intérprete
<Chico
Buarque>
Interlocutor
<narrador>
Interlocutor Interlocutor
<personagem> <personagem>
Canal oral/visual
Co-presença espaço-temporal
Reciprocidade
<RELAÇÃO ENTRE AS PERSONAGENS>
Interlocutor
<narratário>
leitor/ouvinte
<público/
censura>
Canal oral/escrito
Distância espaço-temporal
Não-reciprocidade
< NARRAÇÃO DA CANÇÃO>
Canal oral/escrito
Distância espaço-temporal
Não-reciprocidade
<PUBLICAÇÃO DA CANÇÃO>
Quadro 9: Enquadre interacional geral das canções
Verificamos que o enquadre geral das canções nos apresenta as seguintes posições
de interação:
a) No nível mais externo: compositor / leitor-ouvinte;
b) No nível intermediário: narrador / narratário;
c) No nível mais interno: personagem / personagem
O enquadre interacional obtido é considerado um quadro complexo, pois apresenta
seis posições de interação em três níveis de encaixamento. No nível mais externo, da di-
vulgação/publicação das canções, temos a figura do compositor e do leitor/ouvinte numa
relação de não-reciprocidade em distância espaço-temporal e canal oral/escrito. No nível
médio, da narração da canção, temos a interação entre o narrador instituído pelo autor e seu
narratário, que se apresenta como um sujeito que interage na narração. A materialidade
desse nível intermediário se constrói com um canal oral/escrito, em distância espaço-
temporal e numa relação de não-reciprocidade. Fixando-nos na interação conversacional
relacionada aos personagens, temos o nível mais interno marcado pela linha pontilhada
64
(para salientar o simulacro criado pela separação didática entre narrador e personagem).
Nesse nível o canal é oral/visual, pois temos uma interação realizada em presença espaço-
temporal e com reciprocidade.
A complexidade do enquadre geral das canções, assim com o próprio quadro
interacional romanesco, revela um afastamento do interactante que se posiciona no nível
mais externo do quadro, pois o mesmo, além de instaurar um narrador, faz com que este,
por sua vez, instaure também personagens que sejam, enfim, os porta-vozes efetivos da
interação.
3.2.1 A materialidade das canções e o mundo
Na versão atual do Modelo, considera-se que as informações interacionais, em si
mesmas, têm relativamente pouco interesse; no entanto, elas interferem como elementos
importantes quando considerados outros componentes, como, por exemplo, os de origem
enunciativa e hierárquica e referencial.
Todos os enquadres representativos das materialidades das canções analisadas
classificam-se como complexos. Eles apresentam particularidades que podemos relacionar
principalmente à posição do narrador. Assim propomos uma análise da materialidade das
canções conjugando a elas informações de outros módulos e formas de organização, mais
especificamente com informações de origem referencial.
Nas canções, A Rita, Carolina e Januária, temos instituído um narrador em terceira
pessoa. E nas canções, Ana de Amsterdam, Bárbara, Joana Francesa, Teresinha, A Rosa,
Luiza, Tereza Tristeza e Benvinda, o narrador se apresenta em primeira pessoa, sendo que
neste último caso, nas quatro primeiras canções, o narrador em primeira pessoa é represen-
tado por um eu-feminino, característica comum na obra buarqueana, e, nas quatro últimas,
65
o narrador é representado por um eu-masculino. Já na canção Angélica, temos dois narra-
dores: um em terceira pessoa e outro em primeira.
Outra particularidade interacional apresentada pelas canções, cujo narrador
apresenta-se em terceira pessoa, refere-se às informações evidenciadas com a posição
interacional da “mulher” (nível mais interno do enquadre), pois ela, embora citada e,
algumas vezes até a temática central da canção, é, em nosso entendimento, considerada
não-pessoa, de acordo com a teoria benvenistiana.
26
As mulheres são citadas, mas não
participam de maneira ativa nos processos comunicacionais. Como enquadre
representativo desse grupo de canções, temos o enquadre interacional de A Rita:
Compositor/
Intérprete
<Chico
Buarque>
Interlocutor
<narrador>
<3ª pessoa>
Interlocutor Interlocutor
<personagem> <personagem>
< Ex de Rita> < Rita>
27
Canal oral/visual
Co-presença espaço-temporal
Reciprocidade
<RELAÇÃO ENTRE AS
PERSONAGENS>
Interlocutor
<narratário>
leitor/ouvinte
<público/
censura>
canal oral/escrito
distância espaço-temporal
não-reciprocidade
<NARRAÇÃO DA CANÇÃO>
canal oral/escrito
distância temporal e espacial
não-reciprocidade
<PUBLICAÇÃO DA CANÇÃO>
Quadro 10: Enquadre interacional de A Rita
Esse enquadre interacional apresenta seis posições de interação:
26
“A partir do eu que representa uma pessoa em posição de sujeito, surge o tu, que é igualmente
pessoa, só que em posição de não-sujeito, e o ele, forma pronominal da não-pessoa” (MARI, 2001:
234).
27
Informações inseridas no quadro com a finalidade de explicitação.
66
a) No nível mais externo, temos o compositor (Chico Buarque) / leitor-ouvinte
(censura e público);
b) No nível intermediário, temos narrador (alguém escolhido pelo compositor
para narrar a separação)/ narratário (ser abstrato que escuta e /ou lê a história
do narrada);
c) No nível mais interno, temos personagem (o ex-companheiro de Rita)/
personagem (a Rita).
No nível mais externo, temos a figura do compositor e do leitor/ouvinte numa
relação de não-reciprocidade, com distância espaço-temporal e canal oral/escrito. Em nível
intermediário, temos a interação entre o narrador instituído pelo autor e seu narratário. A
materialidade desse nível se constrói com um canal escrito, com distância espaço-temporal
e com uma relação de não-reciprocidade. Na interação conversacional relacionada aos
personagens, temos o nível mais interno marcado pela linha pontilhada. A materialidade
aqui é formada por um canal oral/visual, o modo é expresso em distância espaço-temporal
e o tipo de vínculo é de não-reciprocidade.
A mulher A Rita aparece marcada no título da canção, mas ela não interfere de
forma ativa na comunicação, pois o narrador conta a história de sua separação e de todo
mal que ela causou. A Rita não nos remete à dor da mulher, mas à dor que a mulher causa
com a separação. Temos a mulher como agente de repressão “A Rita levou meu sorriso... A
Rita matou nosso amor... Me deixou mudo um violão...”. As informações de origem
referencial parecem nos mostrar que a Rita citada é, na verdade, a personificação da
ditadura militar, pois suas ações se assemelham com as da ditadura militar.
67
É interessante ressaltar que, mesmo com características repressoras, A Rita não tem
voz, ela é personagem citado no enquadre. Por se tratar de uma canção produzida apenas
um ano após a instalação do golpe, essa “mulher” não está totalmente configurada,
reforçando a interpretação de o compositor não querer dar voz à ditadura em suas canções.
Já em Carolina e Januária, temos a representação da não-pessoa como metáfora
para a passividade ou alienação.
28
Diferentemente do caso de A Rita. Em Carolina, a janela
aparece através de seu próprio significante nos penúltimos versos de cada estrofe. O
mesmo acontece com Januária nos segundos versos de cada estrofe. Em Januária, o
próprio nome da canção retoma o significado (do latim janus) para salientar a relação de
passividade. Para Meneses (2002:46), janela significa uma relação de contigüidade, de não
inserção. Portanto, torna-se eloqüente, em nosso ponto de vista, o silêncio dessas mulheres
nos seus respectivos enquadres interacionais.
Entre as canções em que a “mulher” é considerada pessoa nas interações,
chamaram-nos a atenção aquelas em que a mulher se apresenta não só como personagem,
mas também como narradora. Exemplificando esse grupo (Teresinha, Joana Francesa Ana
de Amsterdam e Bárbara), passamos a análise do enquadre interacional de Ana de
Amsterdam:
28
“Alienação: uma palavra-chave nos estudos sobre comportamento feminino. Pode-se acompan-
har, a respeito, uma nítida evolução da mulher na canção de Chico Buarque. De início, suas perso-
nagens femininas estão com bastante freqüência na janela e, portanto, na posição de quem fica à
margem das coisas, vendo a vida e a banda passarem.” (Meneses, 2001: 89).
68
Interlocutor
<narrador >
<1ª
pessoa>
Interlocutores
<personagem >
<Ana de
Amsterdam>
Interlocutores
<personagem>
<Alguém que conversa com
Ana>
29
Interlocutor
<narratário>
canal oral/visual
presença espaço-temporal
reciprocidade
<DIÁLOGO ENTRE PERSONAGENS>
Compositor/
Intérprete
<Chico
Buarque>
Canal escrito
distância espaço-temporal
não-reciprocidade
<NARRAÇÃO DA CANÇÃO >
leitor/ouvinte
<Público
Censura>
canal escrito/oral
distância espaço temporal
não-reciprocidade
<DIVULGAÇÃO DA CANÇÃO >
Quadro 11: Enquadre interacional da canção Ana de Amsterdam
Esse enquadre nos apresenta as seguintes posições de interação:
a) No nível externo, compositor (Chico Buarque) / leitor-ouvinte (público de
Chico Buarque e a censura);
b) No nível intermediário, narrador em 1ª pessoa (Ana) / narratário (quem escuta
ou lê a história do narrador-personagem);
c) Mais internamente, personagem (Ana)/ personagem (quem conversa com Ana)
O enquadre interacional obtido apresenta, além das seis posições de interação, três
níveis de encaixamento. No nível mais externo, temos a figura do compositor e do leitor-
ouvinte numa relação de não-reciprocidade com distância espaço-temporal e canal oral ou
escrito. No segundo nível, temos a interação entre o narrador instituído pelo autor e seu
narratário (quem escuta ou lê a história narrada na canção). A materialidade desse segundo
29
Informações inseridas no quadro com a finalidade de explicitação.
69
nível se constrói com um canal escrito/visual, distância temporal e espacial e relação de
não-reciprocidade. Fixando-nos na interação conversacional relacionada aos personagens,
temos o nível mais interno marcado pela linha pontilhada. Nesse nível o canal é oral, temos
presença espaço-temporal e reciprocidade.
A canção Ana de Amsterdam possui a mesma estrutura do enquadre interacional de
A Rita. Aliando a sua materialidade às informações referenciais poderíamos dizer que a
complexidade do enquadre aliada à representação de um narrador feminino procura
mostrar o “afastamento” do compositor. A maledicente canção, como foi considerada pela
censura, é uma auto-descrição de Ana, uma prostituta levada à vida pela obrigação Sou
Ana, obrigada / Até amanhã, sou Ana”. O tom agressivo de Ana de Amsterdam é
característica das canções do período “As canções de Repressão”, marcadas pela crítica
social de um presente sem perspectiva de futuro. A dicotomia explicitada pelos
sentimentos de Ana, em relação a sua vida, relaciona-se à dicotomia vivida pelos
compositores no período da ditadura. Nesse período estes eram obrigados a produzir sob a
censura e não deixavam, ainda assim, de acreditar no fim da repressão.
Também em Joana Francesa, temos como personagem e narradora uma prostituta.
Ela conversa com seu parceiro, o “mulato mole”, utilizando palavras de forte apelo erótico.
Em Joana Francesa, há uma grande passagem da canção em francês que, analisada
juntamente com o enfoque do enquadre interacional, corrobora para a explicitação de mais
uma estratégia de burla.
Tanto em Ana de Amsterdam, quanto em Joana Francesa, percebemos que a
aparente temática erótica construída a partir de uma estrutura interacional complexa é um
recurso sutil para a produção de sentido, quando consideramos fatores referenciais.
70
Em contrapartida, a canção Teresinha nos apresenta uma mulher já não mais silen-
ciosa como Rita, não mais erotizada como Ana de Amsterdam e Joana Francesa, mas o-
primida, por não poder fazer livremente a sua escolha. Mesmo dizendo não ao primeiro e
ao segundo cavalheiros, ela é arrebatada pelo sentimento do terceiro, que se instala feito
um posseiro em seu coração.
Essa canção nasce de uma dupla estrutura intertextual: de um lado se pauta na
canção folclórica, muito popular nos meios infantis, Terezinha de Jesus; de outro lado
advém da canção “Barbara’s Lied”, da ópera dos Três Vinténs, de Brecht. Tanto da
primeira, quanto da segunda canção há uma influência na estrutura narrativa, porém é da
segunda que notamos a permanência do foco narrativo, de primeira pessoa.
Por fim, a canção Angélica apresenta uma estrutura interacional um tanto mais
complexa que as demais canções do corpus:
Compositor/
Intérprete
<Chico
Buarque>
Interlocutor
<narrador>
3ª pessoa
Interlocutor
<narrador>
1ª pessoa
Interlocutor Interlocutor
<personagem> <personagem>
Angélica Filho
canal oral
distância temporal e espacial
não-reciprocidade
<RELAÇÃO ENTRE AS
PERSONAGENS >
Interlocutor
<narratário>
Interlocutor
<narratário>
leitor/ouvinte
<Público
Censura>
canal oral/escrito
distância espaço-temporal
não-reciprocidade
<NARRAÇÃO DA CANÇÃO>
canal oral/escrito
distância espaço-temporal
não-reciprocidade
< NARRAÇÃO DA CANÇÃO >
canal oral ou escrito
distância temporal e espacial
não-reciprocidade
<PUBLICAÇÃO DA CANÇÃO>
Quadro 12: Enquadre interacional de Angélica
71
O enquadre interacional de Angélica nos apresenta oito posições de interação e qua-
tro níveis interacionais:
a) No nível mais externo, temos compositor (Chico Buarque) / leitor-ouvinte
(censura e público);
b) No segundo nível, temos narrador (alguém que pergunta “quem é essa
mulher”/ narratário (ser abstrato que escuta e /ou lê a história do narrada );
c) No terceiro nível, temos o narrador em 1ª pessoa (a própria “Angélica”)/
narratário (e alguém que escuta a história narrada por “Angélica”).
d) No nível mais interno, temos personagem (Angélica )/personagem (filho de
Angélica).
No nível mais externo, temos a figura do compositor e do leitor/ouvinte numa
relação de não-reciprocidade com distância espaço-temporal e canal oral/escrito.Temos os
dois níveis intermediários em que se verifica a interação entre o narrador instituído pelo
autor e seu narratário. A materialidade desses níveis constrói-se com um canal escrito/oral,
distância espaço-temporal e com uma relação de não-reciprocidade. Na interação
conversacional relacionada aos personagens, temos o nível mais interno, marcado pela
linha pontilhada. Ocupam as posições de interação do nível mais interno um interlocutor,
que deseja saber quem é essa mulher”, e seu interlocutor, alvo da pergunta. A
materialidade aqui é formada por um canal oral/visual, o modo é expresso em distância
espaço-temporal e o laço é de não-reciprocidade.
As duas primeiras estrofes de cada verso são narradas em 3ª pessoa e delas ecoam a
mesma pergunta: “Quem é essa mulher?”
Não dar status de pessoa à Angélica, nos primeiros versos de cada estrofe, parece-
nos uma estratégia de burla, pelo fato de a canção ter um referencial histórico. Na verdade,
72
foi Zuzu Angel quem inspirou tal canção. Ela ficou conhecida como uma espécie de ante-
passada latino-americana das “Mães da Plaza de Mayo” por se posicionar contra a ditadura
após o desaparecimento de seu filho, preso político em 1971. Sobre Angélica, Meneses
(2001: 56) fala:
de se meditar sobre o percurso dessa mulher, figurinista, cuja
atividade profissional era a moda, campo aberto à fantasia, à beleza,
sensualidade e imaginação humanas: uma necessidade cultural. De uma
atividade arquetipicamente feminina, de lidar com tecidos, com
tecelagens, com costuras, ela se lança numa cruzada de denúncia e de
enfrentamento do poder militar, que lhe custará a vida. Passa da “ordem
da festa” para a “ordem do trágico”: e ela, que nas suas confecções
utilizava motivos de anjos e mais anjos, numa fase posterior passará a
figurar soldados e tanques blindados. Torna-se um símbolo de resistência
à ditadura brasileira.
A configuração dessa personagem seria, de imediato, um elemento que dispararia
uma leitura mais direta da censura, que poderia proibir a divulgação da canção. A resposta
para a pergunta que inicia cada uma das estrofes da canção, na verdade, não está na própria
canção, está no seu referencial histórico. Segundo Meneses (2001), Angélica é um papel
limite do feminino: paradigma da função da mulher, de denunciadora da injustiça e da
repressão máxima ao instinto de vida, que é a tortura e o assassinato.
Não instituir Angélica como “pessoa” participante da interação nos primeiros
versos de cada estrofe é, em nosso ponto de vista, uma estratégia de burla, pois mostra a
voz emudecida de Zuzu Angel que também encontrou a morte, como seu filho, de uma
forma inexplicada. A própria estrutura narrativa que mescla terceira e primeira pessoas
parece-nos, aliada ao complexo quadro interacional, querer distanciar a voz do compositor
e ao mesmo tempo obscurecer a configuração referencial de Angélica, representando assim
uma complexa estratégia de burla.
73
3.3 A estrutura das canções: módulo hierárquico
A dimensão hierárquica é considerada, juntamente com os módulos sintático e
referencial, a espinha dorsal do modelo, por fornecer informações básicas da produção de
um grande número de textos. É também determinada pelo conceito central do MAM
chamado processo de negociação discursiva.
Na concepção de Roulet (Roulet, Filliettaz e Grobet, 2001), o discurso é o resultado
do emprego conjugado de construções lingüísticas e de representações situacionais no
âmbito de uma negociação determinada pelos objetivos e interesses dos participantes.
Desse modo, as intervenções linguageiras desencadeiam sempre uma discussão entre
interlocutores para chegar a um acordo. O quadro abaixo representa o processo de
negociação segundo o MAM. A partir da hipótese de que toda atividade linguageira
apresenta o seguinte esquema de negociação:
Figura 10: Esquema de negociação (Roulet, Filliettaz e Grobet, 2001)
PR
RE
RA
RE
PR
RA
PR
RE
RA
Proposição
Reação
Ratificação
74
Uma proposição pode provocar dois tipos de reação: uma resposta desejada e clara
ou uma reposta carente de clareza que necessita de uma negociação secundária. O processo
apresenta-se da mesma forma com as reações que também podem ser claras ou não. O que
se objetiva é a conclusão da negociação em que as faces dos interlocutores estejam preser-
vadas.
Nossa proposta é analisar a organização das canções, considerando, como Roulet
(1999), que todo discurso deve ser concebido como um processo de negociação entre inter-
locutores, através do qual estes apresentam uma informação, formulam uma pergunta ou
uma resposta, desenvolvem uma discussão, etc.
Nossa hipótese é a de que para todas as canções haveria um macro esquema de ne-
gociação formado de uma proposição, uma reação e uma ratificação. Sendo assim acredita-
amos no seguinte esquema:
Figura 11: Esquema de negociação das canções produzidas no período da ditadura.
Temos todo um contexto histórico em que a sociedade sentia-se incomodada pelas
pressões geradas pelos abusos autoritários instaurados com o lançamento dos Atos Institu-
cionais, que a cada momento restringiam mais a liberdade de expressão do povo, o qual
procurou formas de expressar seu descontentamento com o regime.
PROPOSIÇÃO
Incita
ção lançada pelo
momento histórico
REAÇÃO
Produção da canção
RATIFICAÇÃO
Liberação/aceitação ou
o-aceitação e censura
75
Como reação, os compositores tornaram-se porta-vozes das idéias de contestação e
de liberdade e produziram canções que contextualizaram o momento político, mas que
também enfrentaram as burlas da censura para serem finalmente divulgadas.
Os textos, como as canções analisadas, que não se configuram como explicitamente
dialogais (não são produzidos por dois enunciadores), correspondem à fase de reação e se
realizam sob forma de uma intervenção.
O módulo hierárquico define três categorias de constituintes: a troca (T), a
intervenção (I) e o ato (A) bem como relações de dependência, interdependência e
independência entre esses constituintes de base da estrutura do texto.
A estrutura hierárquica é considerada a face emergente da dinâmica do processo de
negociação (Roulet, 1999:46). Essa estrutura é regida pelas seguintes regras:
i. toda troca é formada por intervenções, em princípio duas para a troca
conformativa, três para a troca reparadora, e mais de três em caso de reação
negativa.
ii. uma intervenção é formada no mínimo de uma intervenção ou de um ato,
que pode ser precedido (a) ou seguido (a) de uma ato, de uma intervenção
ou de um troca.
iii. todo constituinte pode ser formado de constituintes do mesmo nível,
coordenados.
De acordo com tais regras, são definidos três tipos de relações existentes entre os
constituintes do texto. São elas: de dependência (quando um constituinte, considerado
subordinado, pode ser suprimido, ligando-se a um constituinte principal), independência
(quando os constituintes são independentes, como no caso dos atos e intervenções coorde-
76
nados), e finalmente interdependência (quando um constituinte não pode existir sem o
outro, como nas intervenções de reposta, que só existem em função da pergunta e vice-
versa).
Para determinar as relações de dependência na estrutura hierárquica, Roulet
(1999:148) sugere a supressão como critério heurístico. Sua sugestão segue o raciocínio de
um resumo: se quiséssemos resumir um texto em um único ato, qual seria? E se
quiséssemos reter alguns poucos atos que constituíssem um breve resumo do conjunto?
De acordo com Marinho (2003), a estrutura hierárquica possibilita a visualização
das hierarquias e relações existentes entre os constituintes, sendo assim considerada uma
ferramenta preciosa para a descrição do discurso. Chegamos à estrutura hierárquica de um
texto a partir de hipóteses interpretativas das interações. Tais hipóteses devem ser
levantadas e testadas visando-se chegar às mais defensáveis, segundo Marinho (2002).
Nossa hipótese é a de que o processo instaurado entre a incitação do momento
histórico, compositor e seu público e/ou censura pode ser representado de forma
hierarquizada no esquema abaixo:
I
Incitação do momento histórico
T I
Canção
I
Aceitação/ não-aceitação e/ ou censura
Figura 12: Macroestrutura genérica
A estrutura hierarquizada demonstrada acima articula, em uma troca (T), três
intervenções (I): a primeira, com função ilocutória iniciativa, a segunda, com função
reativa e por fim a terceira, com função avaliativa.
Como já dissemos ao tratar da organização referencial, cada canção possui uma es-
trutura narrativa particular, o que confere a cada uma também macroestruturas hierárquicas
particulares. Porém podemos notar que todas as canções constituem-se como intervenções
77
reativas complexas que se constituem de outras intervenções ou trocas complexas. As in-
tervenções que constituem a “intervenção-canção” nas canções A Rita, Januária, Carolina,
Benvinda, Bárbara, Joana francesa, Angélica são estabelecidas, de acordo com a segmen-
tação do gênero canção, em estrofes. Como exemplo representativo desse grupo, vejamos
a macroestrutura hierárquica da canção Carolina:
Is 1 – 10
Is
Ip 11 – 13
I
Is 14 – 24
Ip
Ip 25 – 27
Figura 13: Macroestrutura da canção Carolina.
A grande intervenção reativa que representa a própria canção se constitui de duas
intervenções complexas: uma secundária e outra principal, que coincidem com a
organização do texto em estrofes. Essas intervenções são formadas por outras intervenções
que visam à completude dialogal.
Em Angélica percebemos a coincidência entre o número de estrofes e trocas
coordenadas que estruturam a canção.
T 1 – 3
T 4 – 6
I
T 7 – 9
T 10 – 12
Figura 14: Macroestrutura da canção Angélica.
78
Assim como nas canções já citadas em que a quantidade de estrofes coincide com o
de intervenções que compõe a intervenção-canção, em Angélica as quatro estrofes que
compõem a canção coincidem com quatro trocas coordenadas.
Nas canções Tereza Tristeza, Ana de Amsterdam, Terezinha, A Rosa e Luísa, não
há coincidência entre o número de estrofes das canções e as intervenções-canções.
Acreditamos que nessas canções o número de estrofes é maior que o de intervenções. Ou
seja, as intervenções compreendem segmentos contidos em mais de uma estrofe. Vejamos
com se estrutura uma canção que exemplifica a particularidade mencionada acima:
Is 1 - 11
Is
Ip 12 - 22
I
Is 23 - 28
Ip
Ap 29
Figura 15: Macroestrutura da canção Ana de Amsterdam
A intervenção reativa (canção) é formada por duas intervenções complexas que não
coincidem com as estrofes que compõem a canção. Essas intervenções se estruturam numa
relação de dependência sendo uma Is complexa formada por duas intervenções também
dependentes e outra Ip mais simples que a primeira. Em nossa hipótese, esta última, é
considerada principal por não poder ser suprimida da canção, como sugestão já citada por
Roulet.
79
3.3.1 A segmentação em atos
Para que possamos propor a descrição da estrutura hierárquica de um discurso, ini-
cialmente procedemos à segmentação dos textos em unidades mínimas ou atos e a posteri-
ori à análise de sua estrutura hierárquica.
Ato para a Escola Genebrina é a menor unidade delimitada de uma parte a outra por
uma passagem pela memória discursiva. Sua definição parte das proposições de
Berrendonner (1893; 1990) que dizem respeito à definição da unidade mínima da
macrossintaxe, cujas fronteiras se determinam por uma única passagem pela memória
discursiva
30
.
A discussão sobre o problema da segmentação no discurso vem sendo abordada por
diversos autores a fim de se encontrar uma solução plenamente satisfatória
31
. Porém não é
nossa proposta aprofundarmo-nos em tais discussões, por considerarmos que, em se
tratando de nosso corpus, menos ainda se há falado, uma vez que os trabalhos já
publicados se propõem a analisar textos como narrativas orais, entrevistas, interações em
sessões de hipnoterapia, ópera, acadêmicos, filosóficos, políticos e narrativos. Tais textos
possuem, sem dúvida, uma segmentação que se difere da segmentação de um texto poético
e principalmente de uma canção.
Quanto aos problemas práticos relacionados à segmentação em atos, Roulet (1999)
sugere que eles sejam também solucionados heuristicamente, utilizando-se como recurso
informações de outras dimensões do discurso ou desenvolvendo-se de paráfrases que per-
mitam um co-referente. Como afirma Lanna (2005), podemos também recorrer à forma de
30
Conjunto de conhecimentos partilhados pelos interlocutores, que lhes servem de axiomas para
desenvolver uma atividade dedutiva, que são alimentados permanentemente pelos eventos extralin-
güísticos e pelas enunciações sucessivas que constituem o discurso (Grobet, 2002).
31
Para uma visão mais aprofundada da questão da segmentação do discurso remeto a Marinho
(2002: 53-64)
80
organização relacional, e considerar ato um segmento discursivo ao qual se possa atribuir
uma função interativa e recorrer também a indícios de contextualização fornecidos pela
inter-relação de informações de diferentes dimensões, sejam lingüísticas, prosódicas ou
referenciais. As informações prosódicas serão nesse momento relevantes, pois considera-
mos que o gênero canção é formado por versos. Chamamos de verso à linha poética agra-
dável ao movimento rítmico, que se presta à expressão dos sentimentos e emoções. Ele
seria o que denominamos na Introdução item 1.2 de “oralidade internalizada das canções”.
Nossa proposta de segmentação das canções orienta-se pelo critério da
impossibilidade de divisão da seqüência discursiva, como sugere Marinho
32
. Assim,
consideramos que se chega “definitivamente a um ato quando não existem mais relações
interativas no interior de uma seqüência discursiva composta por constituintes que mantém
entre si relação de dependência”. Admitimos também manter minimamente as
características do gênero canção. Assim, consideramos cada verso das canções como uma
unidade textual mínima, quando o mesmo se baseia no critério de impossibilidade de
divisão da seqüência. Muitas vezes, mas nem sempre, haverá coincidência entre o verso e o
ato. Não serão considerados atos os versos que se constituem de vocativos, orações
relativas restritivas e termos e/ou expressões enumerativos.
3.2.2 Análise das estruturas hierárquicas das canções
Em muitos casos, a estrutura hierárquica das canções configura-se como estratégia
de burla. As estruturas hierárquicas
33
que propomos guardam algumas características que
evidenciam uma possível tentativa de burla.
32
Cf. MARINHO, Janice Helena Chaves. A determinação da unidade textual mínima. In MARI-
NHO & PIRES. Análise do discurso: ensaio sobre a complexidade discursiva. Belo Horizonte.
FALE/UFMG. 2006. No prelo.
33
Todas as propostas de estruturas hierárquicas seguem em anexo. (Anexo II)
81
A Rita, primeira canção de nosso corpus, lançada um ano após a instalação do re-
gime militar, como já dito, conta a história da separação de um casal e das atitudes da mu-
lher. Tal canção se estrutura em duas intervenções: a primeira, complexa, traz as ações da
Rita em uma Is e uma Ip, que visa a descrever mais detalhadamente as conseqüências sen-
timentais e culturais da separação sob a perspectiva do narrador; a segunda intervenção,
também complexa, é formada por uma Is, que mais uma vez descreve as ações de Rita, e
por uma Ip, mas com uma peculiaridade. Essa Ip é formada por uma Is complexa e uma
Ip, que representa o estado final da narrativa.
A (11) A Rita matou nosso amor de vingança
Is
A (12) Nem herança deixou
Ap (13) Não levou um tostão
Is
Ip
As (14) Porque não tinha não
Is
Ip
Ap (15) Mas causou perdas e danos
Ap (16) Levou os meus planos
Is
Ap (17) Meus pobres enganos
Is
A (18) Os meus vinte anos
Ip Is
A (19) O meu coração
Ap (20) E além de tudo/ Me deixou mudo/ Um violão
Figura 16: Trecho da estrutura hierárquica de A Rita
A estrutura do Ap (20) E além de tudo/ Me deixou mudo/ Um violão representa o
estado final da narrativa. O referido ato se estrutura em três intervenções com estatuto de
principal e se fôssemos resumir a canção em um só ato, poderíamos representá-la no Ap
(20), que traz como mensagem principal o silêncio deixado pela “A Rita” ou pela “A Dita”
(forma como era chamada a ditadura). A estrutura narrativa da canção confere uma aparen-
te relevância da temática em uma leitura linear, porém a estrutura hierárquica revela-nos
82
que a temática é um subterfúgio ou uma estratégia de burla, pois o objetivo do compositor
em mobilizar seu público e contextualizar o momento histórico encontra-se de acordo com
a estrutura hierárquica em constituintes que não podem ser dispensados na construção de
sentido das canções.
A canção Tereza Tristeza é formada por duas intervenções complexas, a primeira se
estrutura em uma Is complexa, formada por uma Is, que representa o estado inicial
tristeza da Tereza com a separação e uma Ip, que narra o esforço do narrador em
convencer Tereza da separação. A Ip, que representa a última estrofe, estrutura-se em duas
intervenções: uma Is que traz a voz de Tereza
34
, e uma Ip que representa o estado final.
A canção Tereza Tristeza possui três intervenções bastante semelhantes. O que as
diferencia é o sentido dos segundos atos que as compõem.
As (1) Oh Tereza essa tristeza/ Não tem solução
Is
Ap (2) Tire o meu lugar da mesa
...
As (9) Oh Tereza essa tristeza/ Não tem solução
Is
Ap (10) Ser mulher é muito mais/ Do que pregar botão
...
As (20) Oh Tereza / É tão pouca tristeza
Ip
Ap (21) Tem gente que nem carnaval / Não tem não
Nas duas primeiras intervenções, tais atos representam a separação e a justificativa
para a mesma, sem nenhuma palavra que propicie uma relação metafórica com o período
histórico. Já a última intervenção finaliza a estrofe e a própria canção. Ela representa o
34
Tal informação será desenvolvida na análise eununciativa-polifônica.
83
estado final da narrativa e relata que a tristeza da separação (que não tem solução) nas in-
tervenções anteriores, é pouca em relação à tristeza de quem não tem carnaval. Como dis-
semos no item 1.2, a palavra carnaval nas canções de Chico possui um sentido metafórico,
que aponta para o fim da ditadura militar. Carnaval é metáfora de liberdade. Notamos que
a estrutura hierárquica da canção, assim como em A Rita, apresenta-se como uma narrativa
de assunto aparentemente corriqueiro com a finalidade de não abordar diretamente fatos
referentes ao momento histórico. A finalidade é a de burla.
Já a canção Benvinda narra a espera e a preparação do narrador para a volta da sua
amada. A disposição dos atos marca a seqüência narrativa. Inicialmente o narrador se a-
presenta como As (1) Dono do abandono e da tristeza. A espera é evidenciada pelo As
(12) Cheio de anseios e esperança, que inicia a segunda intervenção ou segunda estrofe. A
volta se marca pela presença do ato As (32) Certo de estar perto da alegria no início da
última intervenção, que tem o estatuto de principal. A canção se compõe de duas interven-
ções, sendo a primeira mais complexa visto que é formada por outras duas intervenções
complexas, que apresentam em sua estrutura uma forma típica do discurso político apre-
sentada no ato:
A (2) Comunico oficialmente
Como estratégia de burla, Chico Buarque utiliza uma forma cristalizada em nossa
sociedade que é a do discurso utilizado pelo governo ao anunciar o que julgava de
importância para o seu público.
As (12) Cheio de anseios e esperança
Is
Ap (13) Comunico a toda a gente/ Que há lugar na minha dança
84
Na segunda ocorrência, o tom oficial dá lugar ao popular, uma vez que a comunica-
ção passa a ser a toda gente. Essa passagem pode evidenciar a relação estabelecida entre o
governo ditador e povo dominado, que não participava das decisões políticas a não ser
como ouvinte.
As (32) Certo de estar perto da alegria
Is
Ap (33) Comunico finalmente/ Que há lugar na poesia
A última intervenção também retoma a estrutura cristalizada como marca temporal
pelo uso do advérbio finalmente. A recorrência dessa estrutura, ao longo da canção, releva
ironia ao se referir ao discurso político oficial, de forma que pode ser considerada uma
estratégia de burla por se encontrarem em Ap que não podem ser suprimidos da canção.
As canções Ana de Amsterdam e Bárbara são trechos da peça Calabar
35
, que,
segundo Silva (2004), possuem uma relação evidente com o país dos militares. As duas
canções sofreram censura, porque segundo os censores atentaram contra a moral e os bons
costumes. Os atos censurados foram: em Ana de Amstredam, As (6) Sou Ana da cama /Da
cana, fulana, bacana (sacana) *, que se posiciona a uma Ip; em Bárbara: A (13) E
mergulhar no poço escuro de nós duas *, que é trecho representado hierarquicamente em
uma I - A.
Em Ana de Amsterdam, a personagem se descreve como prostituta de uma maneira
bem peculiar, ela busca chocar o público com a sua auto-descrição. Para isso utiliza enu-
merações como as representadas nos atos (1)-(3) Sou Ana do dique e das docas/ Da com-
pra, da venda, da troca das pernas/ Dos braços, das bocas, do lixo,dos bichos, das fichas;
As (6) Sou Ana, da cama/ Da cana, fulana, bacana (sacana)*; A (14) Sou Ana do Oriente,
35
Em nossa análise consideramos a canção de forma individualizada.
85
Ocidente, acidente, gelada; As (17) sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos; Ap
(28) sou Ana/ Das marcas, das macas, das vacas, das pratas.
Tais enumerações parecem seguir uma gradação que ultrapassa a imagem sexual da
prostituta até chegar à degradação moral, cultural e social. Porém a auto-descrição de Ana
é entrecortada por lampejos de esperança de uma vida diferente como nos atos: Ap(15) Sou
Ana, obrigada,; A(16) Até amanhã, Ap(19) Arrisquei muita braçada e As(20) Na
esperança de outro mar. Mesmo com esperança de mudança, Ana não se esquece de sua
situação no presente: A(21) Hoje sou carta marcada, A(22) Hoje sou jogo de azar. A
canção termina com a reiteração do nome de Ana de Amsterdam que se estrutura em todas
as ocorrências em um Ap. Podemos estabelecer uma relação entre a dureza da vida de Ana
e a vida dos que ousaram se colocar à margem do sistema político do país. A esperança
também é comum aos dois campos semânticos. Fato que comprova a estratégia de burla de
Chico mais uma vez.
A Rosa é uma canção que nos remete à primeira canção de nosso corpus: A Rita.
Esta que relatava a separação e as ações autoritárias da personagem principal, difere-se
daquela, não só pela estrutura da narrativa, como também pela impressão que temos da
personagem. A Rita trazia como principal traço o autoritarismo e A Rosa apresenta-se co-
mo contraditória além de autoritária. Sua contradição pode ser notada na estrutura hierár-
quica. A canção é formada por 27 atos que se dividem em 6 estrofes, as três últimas são a
repetição hierárquica das primeiras. A contradição mencionada evidencia-se no nível dos
atos: As (1) Arrasa o meu projeto de vida/ Querida, estrela do meu caminho/ Espinho cra-
vado em minha garganta/ Garganta. A estrela que deveria apontar o caminho, chamada de
querida , é o agente que impede a ação do cantor. De acordo com nosso ponto de vista, o
ato apresentado acima faz uma referência ao momento histórico e ao próprio papel praxeo-
86
lógico de Chico Buarque. A estratégia de burla se configura quando percebemos que o
trecho da canção que nos remete ao momento histórico pertence a constituintes subordina-
dos.
Há contradição entre atos e intervenções de uma mesma intervenção:
A (6) Artista, é doida pela Portela
I
Ip
A (7) Ói ela
A (8) Ói ela, vestida de verde e rosa
Figura 17: Trecho da estrutura hierárquica da canção A Rosa
A idéia de contradição e dúvida com relação às atitudes de Rosa se evidencia,
quando o narrador na Ip, que representa a última estrofe, estrutura a sua dúvida:
As (23) Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
Is
A (24) Bandida, cadê minha estrela guia
Ip Ip
A (25) Vadia, me esquece na noite escura
A (26) Mas jura
Ip
A (27) Me jura que um dia volta pra casa
Figura 18: Trecho da estrutura hierárquica da canção A Rosa
É importante notar que a Ip formada pelos atos (26) e (27), de acordo com nossa
hipótese, pode ser a unidade de significação da canção, uma vez que é constituinte somente
de intervenções com estatuto de principal. A época da composição da canção é a época de
abertura da ditadura, que prometia uma volta gradual da liberdade e dos deportados.
87
Em Luísa, última canção do nosso corpus, o tom pessimista das canções anteriores
dá espaço a um sentimento mais concreto. A canção é formada por duas intervenções inde-
pendentes complexas compostas por 16 atos, dos quais 15 possuem formas verbais no pre-
sente, com exceção do último. Não é mais caso de pensar no passado, o que importa é o
hoje. Apesar de o passado duro da repressão ser lembrado, como por exemplo, na Ip:
As (7) E quando ela está nos meus braços/
Is
Ip
Ap (8)As tristezas parecem banais
Ap (9) O meu coração aos pedaços/ Se remenda prum número a mais
Figura 19: Trecho da estrutura hierárquica da canção Luísa
Luísa é o nome de uma das filhas de Chico Buarque, assim como liberdade pode
representar o nome da “filha” dos compositores que, assim como Chico, enfrentaram a
censura fazendo trapaça, cartaz espantando de casa as sombras da rua.
Ap (16) Pra Luísa dormir em paz é o verso que justifica todas as ações apresenta-
das na canção. Mais uma vez, há uma referência ao momento histórico, pois as famílias,
com o início da abertura, já podiam dormir em paz sem a sensação de que poderiam ser
acordados no meio da noite para prisões e depoimentos, como era o hábito na época mais
dura da ditadura militar.
As estruturas hierárquicas das canções evidenciam sutileza ao tratar questões histó-
ricas. Notamos que as estruturas hierárquicas “apagam” ou “reacendem” termos, palavras e
idéias diretamente ligados à ditadura militar, sem fazer com que as canções percam seu
compromisso poético, e ao mesmo tempo mantenham seu papel social de denúncia.
88
CAPÍTULO 4 AS CANÇÕES E A POLIFONIA
Agora falando sério
Eu queria não mentir
Não queria enganar
Driblar, iludir
Chico Buarque
4.1 As vozes das canções: organização enunciativa
A forma de organização elementar enunciativa constitui-se com a acoplagem de in-
formações advindas da relação dos discursos com os níveis do quadro interacional (módu-
lo interacional), da ordem lingüística, quando os discursos representados são marcados
(módulo lexical) e, caso os discursos não venham marcados, das informações que são de
origem situacional (módulo referencial).
O componente enunciativo diz respeito à inscrição do locutor em seu discurso, com
suas opiniões e atitudes, seu posicionamento em relação a esse discurso. Diz respeito à
subjetividade do locutor.
A organização enunciativa define e distingue os segmentos de discursos produzi-
dos e representados no interior de um discurso mantido por um autor/compositor, em di-
ferentes níveis. Por discurso produzido, entende-se “aquilo que o locutor diz” e ocupa o
nível mais externo da interação (informações evidenciadas no enquadre do módulo intera-
cional). O que o locutor diz está situado na interação entre o compositor e o seu lei-
tor/ouvinte. Já o discurso representado será “aquilo que o locutor diz que alguém disse” e
ocupa os níveis mais internos na interação. A forma enunciativa se preocupa, pois, com os
discursos produzidos e representados. Ambos discursos estão presentes na superfície do
texto em diferentes planos de encaixamento. Os discursos representados podem apresentar-
se sob as seguintes formas:
89
i. Formulado
a) seja sob a forma de uma representação direta, eventualmente introduzida por um
verbo de fala, dois pontos, travessão e/ou aspas:
Anna: A[Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva]
b) seja sob a forma de representação indireta, caracterizada por uma modificação
dos dêiticos e/ou eventualmente introduzida por um verbo de fala e um complementador:
Diz TT [que não tem café]
Diz TT [que não tem feijão
Nem sandália pro pé
Nem aliança pro dedo da mão]
c) seja sob a forma de representação indireta livre, em que as fronteiras entre os
dois discursos são diluídas.
C[N[O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
ii. Designado: o discurso pode ser designado por um verbo ou por um sintagma
nominal, geralmente uma nominalização: verbo (suplicar, achar, pressupor...); sintagma
nominal (súplica, chamada...) entre outros:
Que o luar está chamando L[ ]
Que o meu samba está pedindo S[ ]
iii. Implicitado: a implicitação, em geral, é marcada por conectores que têm a fun-
ção de estabelecer um encadeamento implícito com o discurso de um interlocutor, portanto
não ocorre em intervenções monológicas. É própria do diálogo e é introduzida por conecti-
vos interativos tais como “bem”, “mas”, no início de réplica.
90
A acoplagem entre as informações enunciativas e interacionais nos possibilita dis-
tinguir o discurso em diafônico (que representa o discurso do interlocutor), polifônico
(que representa o discurso de terceiros) e autofônico (que representa o discurso do próprio
locutor no passado ou no futuro). Quanto à acoplagem entre as informações enunciativas e
as referenciais, o discurso pode se classificar em efetivo (que representa palavras formula-
das) e potencial (que representa de forma imaginária e antecipatória um discurso que po-
deria ser produzido). A análise das canções sob a perspectiva enunciativa tem como objeti-
vo identificar a pluralidade de vozes que emana delas.
Os discursos representados na abordagem modular têm as seguintes formas de re-
presentação: discurso representado formulado marcado por colchetes preenchidos [...];
discurso representado designado marcado depois da expressão que o designa por colche-
tes vazios [ ]; discurso representado implícito representado por colchetes vazios na fren-
te do conector [ ]. Para a descrição enunciativa das canções de nosso corpus em nossas
análises serão usadas as seguintes convenções de transcrição: uso de colchetes à direita da
ocorrência da voz (C Chico Buarque, N narrador, e as iniciais de cada personagem de
acordo com cada canção).
4.2 A função das vozes nas canções: organização polifônica
A descrição da organização enunciativa é a primeira etapa de análise da organiza-
ção polifônica. A segunda e mais importante é a etapa que nos permite refletir sobre a fun-
ção dos discursos representados no discurso produzido.
O componente polifônico da abordagem modular do discurso refere-se à inscrição
da subjetividade de outro locutor em um discurso, assim como a atitude adotada pelo locu-
tor, em seu próprio discurso, face às outras vozes que nele se fazem ouvir. Diz respeito a
91
uma outra subjetividade, diferente da subjetividade do locutor. Uma estrutura é polifônica
quando o locutor repete ou retoma um outro ponto de vista, independente de sua interven-
ção, posicionando-se em relação a ele.
Polifonia, para o MAM (Roulet; Filliettaz e Grobet, 2001), parte da definição acima
para uma definição mais ampla, pois considera também o resultado da acoplagem das aná-
lises concernentes às formas e às funções dos discursos produzidos e representados.
4.3 Análise enunciativa e polifônica das canções
As formas de organização enunciativa
36
e polifônica são interdependentes e torna-
se importante lembrar que, até as versões do modelo apresentadas em Roulet (1999; 2000),
eram tratadas separadamente, porém em Roulet, Filliettaz e Grobet (2001), passaram a ser
tratadas conjuntamente no capítulo 10.
A fim de buscar argumentos que possam consolidar minha hipótese de pesquisa,
passo à tarefa de evidenciar e examinar como os discursos produzidos e representados se
apresentam e quais as suas funções nas canções de Chico Buarque e se estão relacionados à
tentativa de burla da censura.
A canção A Rita, como já apresentamos, caracteriza uma mulher e suas ações auto-
ritárias numa referência ao próprio momento histórico. Quanto às marcas e à presença dos
discursos produzidos e representados, percebemos que toda a canção é estruturada a partir
de um discurso produzido pelo compositor que se inicia no primeiro verso e termina no
último. Há na relação interacional estabelecida nesse nível uma força referencial
37
muito
36
Todas as canções com suas respectivas marcas enunciativas encontram-se em anexo.(Anexo I)
37
Por força referencial entenda-se as informações evidenciadas no Capítulo 2, item 3.1 As canções
e o mundo: dimensão referencial.
92
expressiva, uma vez que o compositor é Chico Buarque e que seu leitor/ouvinte oscila en-
tre seu público e a censura.
O discurso representado formulado indireto livre ocupa o segundo nível interacio-
nal, que trata da interação entre o narrador instituído pelo compositor e seu narratário. A
ausência de marcas próprias do discurso formulado indireto livre funciona como uma estra-
tégia de burla, pois o narrador, por se tratar de um contador de história, afasta a responsabi-
lidade do compositor.
No nível mais interno do enquadre interacional de A Rita, temos a relação entre as
personagens “Homem” (ex marido de Rita) e “Rita”. Nesse nível notamos a presença de
um discurso designado autofônico, justamente no trecho para o qual chamamos a atenção
na descrição da estrutura hierárquica:
E além de tudo
Me deixou mudo H[ ]
Um violão]]
O discurso designado pode ser identificado pela presença da nominalização mudo.
Esse trecho, marcado pela autofonia, ironicamente não deixa claro se o que ficou mudo foi
o homem ou o violão. Ou, na verdade, quer dizer do silenciamento do músico/compositor,
que com a instalação do Regime Militar, passou a, como diz o próprio Chico Buarque,
murmurar entre as pregas
38
.
Em 1965, um ano após do golpe, assim como A Rita, foi lançada Tereza tristeza,
que também relata os desencontros de um casal. O homem (narrador) consola Tereza e, ao
mesmo tempo, diz que não mais pretende voltar para casa, mesmo querendo fazê-lo. A
canção Tereza Tristeza apresenta as seguintes marcas enunciativas:
38
Trecho da canção Rosa dos Ventos. Cara Nova/ (P) 1970.
93
C[N[Oh Tereza essa tristeza
Não tem solução
Tire o meu lugar da mesa
Não me espere não
Não vou, não
Ao menos sou sincero
H [Que te adoro
Que te quero]
Mas não passo bem sem carnaval
Não
Oh Tereza essa tristeza
Não tem solução
Ser mulher é muito mais
Do que pregar botão
Não vê não
Que o homem quando é homem
Passa frio passa fome
Mas não bem sem desse carnaval
Diz TT [que não tem café]
Diz TT [que não tem feijão
Nem sandália pro pé
Nem aliança pro dedo da mão]
Oh Tereza
É tão pouca tristeza
Tem gente que nem carnaval
Não tem não]]
Ao retomar informações do quadro interacional, temos, no nível mais externo, a in-
teração entre o compositor e seu leitor/ouvinte. Esse nível é formado por um discurso pro-
duzido que precisava ser disfarçado para não ser censurado.
No segundo nível interacional, temos um discurso todo representado formulado, por
se haver instituído um narrador em primeira pessoa, que se confunde com a voz da perso-
nagem integrante do nível mais interno do enquadre interacional. Tal fato classifica ainda o
discurso formulado aqui apresentado como indireto livre.
94
No nível mais interno do enquadre, temos um discurso formulado indireto livre au-
tofônico, em que a personagem, e também narrador, alerta Tereza Tristeza de que não vai
mais voltar:
[C[N[...Tire o meu lugar da mesa
Não me espere não
Não vou, não...]]
Para dizer que, mesmo não querendo, ele não voltará, o narrador argumenta através
de um discurso representado formulado indireto autofônico, que possui o verbo “digo”
subentendido no início do trecho:
H [Que te adoro
Que te quero]
Mas não passo bem sem carnaval
Não
A intenção dessa escolha é dar força à argumentação do narrador que precisa falar
de sua tristeza com a separação. Porém ele prefere a tristeza da separação a ficar sem o
carnaval. Em outros termos, percebemos o mesmo sentimento do compositor, camuflado
por tal estratégia, com relação à liberdade de expressão.
A voz de Tereza Tristeza também se faz ouvir através de um discurso formulado
indireto, porém diafônico no nível mais interno da interação:
Diz TT [que não tem café]
Diz TT [que não tem feijão
Nem sandália pro pé
Nem aliança pro dedo da mão]
Podemos também classificar esse discurso como potencial por antecipar imaginari-
amente o discurso de Tereza Tristeza. Nessa canção notamos que a voz de Tereza é inseri-
da na canção através de um discurso formulado indireto. Sua função nos parece mostrar
95
uma confusão entre as vozes do homem (personagem), do narrador, do compositor e da
mulher personagem. Em nosso país, a princípio, alguns setores consideravam a ditadura
como algo positivo, foi apenas com o passar do tempo e o recrudescimento do regime que
as posições foram se marcando. Daí, pensarmos que o estabelecimento das marcas
enunciativas não tenha a intenção de esclarecer posições, mas sim de confundi-las.
Por outro lado, como já dissemos, na canção Carolina, que marca a alienação e a
passividade, não notamos a manifestação da voz da personagem Carolina. Esse fato pode
ser também corroborado através da identificação da presença dos discursos produzidos e
representados:
C[N[Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei H[que não vai dar
Seu pranto não vai nada mudar]
Eu já convidei H[ ] para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, H [ói que lindo]
Mas Carolina não viu
Carolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, H[vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar]
H[Mil versos cantei pra lhe agradar]
Agora não sei como explicar
H[Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu]
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
96
Só Carolina não viu]]
O discurso produzido situa-se no nível mais externo do enquadre interacional e cor-
responde àquilo que o locutor diz. No segundo nível, onde temos a relação entre o narrador
e seu narratário, há a presença de um discurso todo formulado indireto livre, pois, como já
dissemos, a falta de marcas confunde a narração em terceira pessoa com a narração da per-
sonagem em primeira. Tal fato pode ser considerado estratégia de burla com a finalidade
de afastar a força da voz do compositor.
Internamente, onde poderíamos perceber a voz de Carolina através de um discurso
representado, vemos a reiteração da voz do homem-personagem (que explica, convida,
mostra sorrindo, avisa e canta) tentando tirar Carolina do seu estado de alienação através
de um discurso formulado indireto autofônico. Ressaltamos a primeira ocorrência:
Eu já lhe expliquei H[que não vai dar
Seu pranto não vai nada mudar]
Carolina, em nosso entender, é a representação de uma parcela da sociedade, que se
mostrava passiva diante dos desmandos do governo. Esse discurso formulado indireto que
clama por uma mudança é, na verdade, uma forma de burla, pois o que vemos é a voz do
compositor mobilizando e conscientizando seu público pela configuração enunciativa-
polifônica
Há uma única ocorrência de discurso representado designado também autofônico,
que introduz também a voz do personagem cuja função é reiterar a mobilização já citada.
Eu já convidei H[ ] para dançar
Januária, a mulher da janela, símbolo da alienação junto com Carolina, parece fa-
vorecer o processo de identificação entre personagem e público (posições interacionais de
níveis diferentes). A canção, de acordo com o nível mais externo do enquadre interacional,
possui um discurso produzido que se constitui na interação entre compositor e seu público.
97
O compositor instaura um narrador em terceira pessoa para narrar a história de Ja-
nuária para seu narratário no segundo nível interacional. Configura-se então um discurso
formulado indireto livre. Novamente tal estratégia afasta a figura de Chico Buarque, sendo
a história de Januária de responsabilidade do narrador. No terceiro nível, o mais interno,
há a relação interacional estabelecida entre as personagens. Notamos, na canção, duas pas-
sagens de discurso designado polifônico, usado com função de convencer:
Toda gente homenageia TG [ ]
...
E não escuta quem apela TG [ ]
Enquanto, em Carolina, ouvíamos a voz do narrador em primeira pessoa, aqui o
discurso designado polifônico tem a função de reforçar a voz de uma coletividade. O con-
vite à mudança não é feito somente por uma pessoa, mas por toda gente, aqueles que, ao
ouvirem Carolina, saíram da janela e se juntaram a toda gente que acredita em um país
democrático.
Assim como Carolina e Januária, Benvinda pertence a uma linhagem de canções
de Chico Buarque que convidam à mudança. Em Carolina, a mulher (que Nos seus olhos
fundos/ Guarda tanta dor) e em Januária, a mulher (que não escuta quem apela) não acei-
tam o convite à mudança.
Porém em Benvinda, o homem (que se sente Dono do abandono e da tristeza) con-
vida sua amada a voltar e, à medida que vai construindo sua argumentação, vai também
mudando ao se encher de esperança (Cheio de anseios e esperança/ Certo de estar perto
da alegria). E diferentemente de Carolina e Januária, Benvinda aceita o pedido e traz de
volta a alegria para o coração do homem-personagem.
A estrutura interacional de Benvinda é complexa e há também na canção marcas de
discurso representado. O nível mais externo é marcado pela representação de um discurso
98
produzido. No nível intermediário, verificamos um discurso formulado autofônico, cujo
narrador apresenta-se em 1ª pessoa. Mais internamente, notamos a recorrência da presença,
no início de cada parágrafo, do discurso formulado indireto autofônico, que marca a escala
argumentativa da personagem para tentar convencer Benvinda a voltar:
Comunico H[oficialmente
Que há lugar na minha mesa]
...
Comunico a toda a gente
H[Que há lugar na minha dança]
...
Comunico H[finalmente
Que há lugar na poesia]
Chamamos a atenção para as passagens acima, já na análise do módulo hierárquico,
pois o homem-personagem utiliza uma estrutura cristalizada, típica do discurso político,
com a finalidade de ironizar a ditadura e reforçar sua argumentação.
Na tentativa de tornar mais eficaz sua argumentação, o narrador-personagem con-
voca as vozes do luar, na primeira estrofe, e do samba, na segunda estrofe, através de um
discurso representado designado polifônico.
Que o luar está chamando L[ ]
...
Que o meu samba está pedindo S[ ]
Através de um discurso representado formulado indireto livre autofônico, a perso-
nagem reitera a mudança de Benvinda, que cede e volta ao lar.
Eu não cantei H[em vão
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Benvinda
No meu coração]
99
Finalmente, verificamos a incursão da voz de Benvinda através de um discurso re-
presentado designado diafônico:
Pode vir até mentindo BV[ ], ai
Benvinda
Benvinda
Benvinda
A complexa rede de discursos representados nessa canção aponta para uma apurada
tentativa de burla. Benvinda não é a ditadura como em A Rita, não é o povo como em Ca-
rolina e Januária. Benvinda é a liberdade há muito esperada pela sociedade a ponto de a
mesma poder vir até mentido. Mesmo que ela só exista em histórias inventadas nas can-
ções. É importante ressaltar o próprio nome da canção, que nos parece escolhido como
mais um elemento no processo de argumentação do narrador-personagem.
Quanto à canção Ana de Amsterdam, notamos que possui uma estrutura enunciativa
menos complexa que as outras analisadas até aqui. No nível mais externo da interação, há a
relação entre o compositor e seu leitor/ouvinte. No nível intermediário, instaura-se um nar-
rador feminino, que representa a voz de uma minoria marginalizada. Sobre as canções bu-
arqueanas, Meneses (2001) diz: “Seu discurso dá voz àqueles que não têm voz”. Instaurar
um eu-feminino não é só dar voz à mulher, mas também, é encorajar os marginalizados de
uma maneira geral e em especial aqueles marginalizados pelo regime ditatorial. Ana de
Amsterdam, mesmo ao se considerar um fardo social (por ser além de mulher, prostituta),
entrecorta sua descrição com lampejos de esperança de mudança, assim como os que luta-
vam pelo fim da repressão social.
A canção Bárbara, cuja personagem título também é uma prostituta, entre todas as
canções de nosso corpus é a única em que podemos perceber a marca de um discurso for-
mulado direto. A letra da canção se estrutura como um texto teatral. As marcas do discurso
100
direto, representadas pelos nomes das personagens, aparecem antes de cada uma de suas
falas:
Anna: C[N[A[Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor, vem me buscar]
Bárbara: B[O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua]
Anna: A[Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva]
As duas: A[B[Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar]]
Anna: A[Vamos ceder enfim à tentação das nossas bocas cruas
E mergulhar no poço escuro de nós duas]
Bárbara: B[Vamos viver agonizando uma paixão vadia
Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia]
As duas: A[B[Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar]]]]
No primeiro nível interacional, notamos a interação entre o compositor e seu lei-
tor/ouvinte. O discurso é produzido. No segundo nível há presença de um discurso repre-
sentado, porém não marcado. No nível interacional das personagens, ocorre o diálogo esta-
belecido entre Ana e Bárbara. O discurso aqui é representado formulado direto cuja função
é mais uma vez evidenciar a voz da mulher prostituta.
A temática da homossexualidade apresenta-se também como uma estratégia de bur-
la, pois ressalta o caráter marginal da posição das personagens. É importante pontuar que a
canção Bárbara, dentro da estrutura da peça teatral, não tem o tom chocante da canção
101
tomada de forma individual. Ela é uma conclusão à história de cumplicidade entre Ana e
Bárbara.
O discurso formulado direto que representa a voz de Bárbara é um gatilho para uma
leitura sócio-política:
B[O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua]
A palavra noite é, como já dissemos no Capítulo I, uma metáfora para ditadura. E
ao falar do fim da noite, quer dizer do fim da ditadura, momento em que as duas, Ana e
Bárbara (compositor e liberdade), poderão enfim ficar juntas(os). A segunda intervenção
de Bárbara corrobora nossa leitura:
B[Vamos viver agonizando uma paixão vadia
Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia]
Os termos associados à paixão são contraditórios: vadia, maravilhosa e
transbordante. A própria estrutura verbal Vamos viver agonizando remete-nos a uma
situação que trata do presente, que está sendo realizada no tempo do agora. Assim essa
paixão vadia das personagens é a mesma paixão dos compositores pela liberdade, com
todas as suas contradições.
As vozes das personagens Ana e Bárbara se juntam na passagem:
A[B[Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar]]
Percebemos que Bárbara, junto com Ana, chama por ela mesma, tal fato abre pre-
cedentes para pensarmos na estrutura das personagens como metafórica. Bárbara é, para
102
nós, a “liberdade” (que Nunca é tarde, nunca é demais) tão sonhada pelos que lutavam
pelo direito de expressão.
A canção Joana francesa foi produzida para a personagem tema de um filme. Joana
é a dona de um prostíbulo em São Paulo. Um cliente alagoano, apaixonado por ela, leva-a
para sua fazenda de cana-de-açúcar. Lá, Joana entra em contato com costumes que acabam
por arrebatá-la a um mundo ético e cultural que nunca havia conhecido antes. Ela acaba
por assumir a liderança da família, em plena decadência.
Quanto à análise enunciativa-polifônica, no nível interacional mais externo, temos
um discurso produzido, a relação existente se estrutura entre o compositor e o seu lei-
tor/ouvinte. No nível intermediário, temos a relação entre o narrador e seu narratário. Há
um discurso representado formulado indireto livre, que mistura dois idiomas (português e
francês). O nível mais interno trata da relação interacional entre as personagens Joana fran-
cesa e Mulato mole e é marcado pela presença do discurso formulado indireto diafônico.
Chamamos a atenção para o fato de que todas as ocorrências de tal discurso evidenciam
somente a voz do “Mulato mole”. Em três passagens, o mulato mole geme:
Geme MM[de loucura e de torpor]
...
Geme MM[de prazer e de pavor]
...
Geme MM[de preguiça e de calor]
Há, nessa passagem, uma referência situacional bem clara. Os presos e torturados,
quando açoitados, eram ouvidos através de seus gemidos.
Na primeira estrofe, a narradora utiliza a língua francesa para marcar sua identida-
de. Na segunda estrofe ela assume a identidade do seu parceiro brasileiro e utiliza apenas
um verso em francês. Na terceira estrofe, a narradora, utiliza somente o trecho de um verso
em francês. E traz no discurso representado formulado indireto diafônico, que introduz a
103
voz do Mulato mole, um verso em francês. Percebemos um jogo de influências, em que
ambos se influenciam a ponto de criarem uma nova identidade cultural (nem brasileira,
nem francesa). Assim como os compositores aprenderam a gerenciar a sua relação com a
censura sem perderem a sua identidade contestadora. O narrador, através do discurso for-
mulado, presente no segundo nível, em que sempre usa o português, remete-nos também ao
momento sócio- político:
Já é madrugada
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda
Tal passagem é utilizada para finalizar as estrofes primeira, terceira e quinta. Há
nas canções buarqueanas algumas recorrências lexicais marcantes, e a palavra madrugada
é utilizada como metáfora para a ditadura, e acordar, como metáfora para a utopia de se
viver sem os desmandos do regime ditatorial. Também em outra canção, Chico utiliza o
trecho Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda para fazer referência à forma como eram
feitas as batidas policiais à casa dos suspeitos nas madrugadas.
A canção Angélica, como já dissemos quando tratamos da análise interacional, pos-
sui um enquadre com oito posições de interação e quatro níveis de encaixe. O primeiro
nível se assemelha aos das canções já analisadas. As diferenças começam com a presença
de dois narradores, um em terceira pessoa, que ocupa o segundo nível interacional, e outro
em primeira, que ocupa o terceiro nível. Nesses dois níveis, temos a presença de um dis-
curso representado formulado indireto livre. Os dois primeiros versos de cada estrofe evi-
denciam através do discurso formulado indireto, a voz de alguém que pergunta uma sobre
mulher.
C[N[Quem é essa mulher
Que canta A[ ]sempre esse estribilho
104
Essa pergunta não encontra resposta na própria canção, ela pode sim ser encontrada
nas informações referenciais, como já dissemos. As intervenções principais das estrofes
são estruturadas com os últimos versos de cada estrofe. Nesse momento temos um discurso
formulado indireto que traz como narrador uma mulher que se constitui através de seus
desejos como no exemplo:
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
No nível mais interno, há a relação entre as personagens. Notamos a presença de
um discurso formulado designado introduzido pelo verbo cantar. Esse verbo, nas canções
de Chico Buarque, também significa resistência. Assim a voz de Angélica é uma forma de
resistência e contestação reiterada em quatro versos da canção.
Que canta A[ ]sempre esse estribilho
...
Que canta A[ ]sempre esse lamento
...
Que canta A[ ]sempre o mesmo arranjo
...
Que canta A[ ]como dobra um sino
A voz dessa mulher sem nome ressurge, quando Angélica, nos versos finais de cada
estrofe, apresenta-se como narradora e canta sua dor e seu desejo de poder ter seu filho
novamente, mesmo que seja para enterrá-lo Só queria agasalhar meu anjo/ e deixar seu
corpo descansar”.
Há na canção uma ocorrência de discurso designado diafônico, que introduz a voz
(mesmo silenciada) do filho de Angélica também introduzida pelo verbo cantar:
Que ele já não pode mais cantar FA [ ]
105
O canto de seu filho morto (que já não pode mais cantar), portanto, fica como
símbolo de resistência tanto do filho quanto da mãe.
A canção Teresinha integra a peça teatral Ópera do Malandro. Anteriormente vimos
suas características intertextual e dialógica, que apresentam um espaço fecundo para a ma-
nifestação de discursos representados.
39
Teresinha é uma canção que permite a manifesta-
ção da voz da “mulher”. Na análise enunciativa, lembramos que a distribuição dos discur-
sos representados marcados obedeceram à estrutura narrativa, que já vimos ser bem orga-
nizada no Capítulo 3.
C[N[O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou PH [suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio]
Me chamava PH [de rainha]
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava PH[ ]nada
E, assustada, eu disse T[não]
O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou SH[o meu passado]
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava SH[de perdida]
Me encontrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
E, assustada, eu disse T[não]
O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
39
Por escolha metodológica, não representamos no enquadre interacional a interação típica de uma
peça teatral.
106
Ele não me trouxe nada
Também TH[nada] perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo T[ ] o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama TH[de mulher]
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse T[ ]não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração]]
O discurso produzido que trata da relação entre compositor e seus leitores/ouvintes,
ocupa o nível mais externo da interação.
No segundo nível, notamos um discurso representado formulado. Instaura-se mais
uma vez um narrador feminino para contar sua história em primeira pessoa. Além disso há
uma relação muito interessante entre Terezinha e o próprio compositor. A estratégia é bus-
car um apagamento da figura do compositor. Porém, em nossa leitura, a relação é muito
tênue, pois a história narrada por Terezinha é uma metáfora para a vida de Chico Buarque.
No terceiro nível, o mais interno, verificamos a interação entre os personagens. No-
tamos não só a presença do discurso representado formulado, como também a presença do
discurso designado autofônico e diafônico.
As vozes dos homens que passam pela vida de Teresinha apresentam-se através de
um discurso diafônico representado formulado e designado:
Me chamava PH [de rainha]
...
Me chamava SH[de perdida]
...
E me chama TH[de mulher]
O primeiro homem é uma metáfora para público. Chico Buarque era uma unanimi-
dade no país, porém ele não lidava muito bem com o assédio por isso ele disse não. O se-
gundo homem é uma metáfora para a ditadura. Ela vasculhava gavetas, e ao (Chico) cha-
107
mava de perdido. Isso se comprova, quando Chico, para continuar a compor, precisava
usar pseudônimos, pois tudo que ele assinava era censurado. O terceiro homem é uma me-
táfora para o sentimento de liberdade, que o tratou como ele era em sua essência, sem más-
caras, um compositor.
A voz de Teresinha é marcada pelos discursos representado designado e represen-
tado formulado, ambos autofônicos:
E, assustada, eu disse T[não]
...
E antes que eu dissesse T[ ]não
Nas duas primeiras estrofes, Terezinha mostra-se capaz de escolher e diz não. Po-
rém quando se trata do sentimento de liberdade, não há o que se dizer, pois ele, antes que
se diga algo, se instala nos corações.
A canção Terezinha é, a nosso ver, a canção que melhor representa a hipótese le-
vantada em nossa pesquisa. Há uma complexa estrutura interacional, enunciativa e polifô-
nica com a finalidade de burla, pois deixa traços bem sutis de sua verdadeira finalidade,
que é conscientizar o público.
A canção A Rosa foi produzida em 1979, ano em se que inicia a abertura política. O
nível mais externo do enquadre interacional dessa canção retrata a relação entre o composi-
tor e o seu leitor-ouvinte. O discurso nesse nível é produzido. No nível intermediário, te-
mos um discurso formulado indireto, pois a relação interacional representada é entre o nar-
rador instituído pelo compositor e seu narratário. Assim como as canções anteriores, repre-
senta uma estratégia de disfarce, de afastamento entre a voz do compositor e a do narrador.
Já a relação entre as personagens enquadra-se no nível mais interno. As vozes das persona-
gens são marcadas por um discurso formulado indireto e por um discurso designado.
108
De maneira especial a voz de Rosa é marcada pelo discurso designado diafônico,
que se faz notar em oito estrofes das doze que formam a canção. Como já dissemos, a per-
sonagem Rosa apresenta-se contraditória em suas ações , fato que pode ser também refor-
çado com os discursos designados.
A Rosa garante R[ ] que é sempre minha
...
Odara, gravou R [ ] meu nome na blusa
...
Abusa, me acusa R[ ]
...
Me jura R[ ]que um dia volta pra casa
A Rosa parece-nos um disfarce para a voz do presidente Castelo Branco, que,
mesmo mantendo algumas ações autoritárias, promete uma abertura lenta e gradual. Assim
a jura de um dia voltar para casa é a mesma promessa feita pelo presidente-general.
Inicialmente a canção Luísa, com seu tom paternal, revela-nos que não há mais uma
preocupação com o hoje, pois o presente já não mais assusta como nas Canções de Repres-
são. O quadro interacional da canção possui seis posições de interação e três níveis. No
primeiro, o discurso é produzido e há a relação entre o compositor e o seu leitor-ouvinte.
No segundo nível, em que temos a relação entre o narrador em terceira pessoa e seu narra-
tário, notamos um discurso formulado indireto livre. No terceiro, o mais interno dos níveis,
a relação representada é a estabelecida entre as personagens. Mais uma vez o discurso se
apresenta como formulado indireto e é importante pontuar que a voz de Luísa não é repre-
sentada. Luísa é metáfora mais uma vez para liberdade, que pouco a pouco vai se instalan-
do no país. E que permite que se possa dormir em paz.
109
CAPÍTULO 5 CONCLUSÕES
Mulher, vou dizer quanto eu te amo
Catando a flor
Que nós plantamos
Que veio a tempo
Nesse tempo que carece
Dum carinho, duma prece
Dum sorriso, dum encanto
Chico Buarque
A análise nos possibilitou identificar possíveis estratégias utilizadas por Chico Bu-
arque em suas canções para burlar a censura. Estas estratégias conferem às suas canções a
condição de documento histórico, uma vez que trazem marcas de um modelo discursivo
próprio dos anos em que o país mergulhava no “silêncio” imposto pela ditadura militar. A
identificação de tais estratégias foi possível a partir das informações das dimensões refe-
rencial, interacional e hierárquica e das organizações enunciativa e polifônica.
As informações providas pela análise da dimensão referencial são, em nosso ponto
de vista, relevantes, já que, em nossa hipótese, as canções analisadas comportam-se com
documentos históricos.
A dimensão referencial nos possibilitou verificar que a representação praxeológica
das canções de engajamento possui dois grupos acionais: um relacionado à composição e
outro relacionado à leitura/audição da canção. O primeiro verifica a intenção do composi-
tor de divertir e conscientizar seu público. O segundo mostra a aceitação do público ou a
possível censura. Assim, o compositor constrói sua identidade de acordo com o momento
sócio-histórico em que se encontra. As canções de Chico Buarque, falam de uma situação
social e política muito particular, conforme evidenciada no Capítulo 2 “Histórico”.
110
A identificação dos papéis praxeológicos possibilitou a constituição de dois quadros
acionais. O primeiro, cujos papéis são Chico Buarque e Público, apresenta um complexo
motivacional que disfarça a intenção de denúncia do momento histórico e a de conscienti-
zação social. As canções poderiam ser consideradas documentos históricos, uma vez que
não se podia escrever em jornais, debater em rádios ou na TV, assuntos relativos à ditadura
militar. O segundo, cujos papéis são Chico Buarque e Censura, evidencia a necessidade
burlar a censura. O quadro conjunto deixa claro uma ameaça constante à face de ambos,
constatada quando o compositor utiliza-se de estratégias e consegue burlar a censura, ou
quando os censores percebem alguma estratégia de burla e censuram a canção. As estrutu-
ras praxeológicas das canções analisadas assemelham-se a estrutura praxeológica de uma
história/narrativa. Mais especificamente, à narrativa em que uma das personagens é uma
mulher. A temática das narrativas trata da separação, da vida e da postura da mulher. Em
nossa perspectiva, essa estrutura configura-se uma estratégia de burla, pois encobre através
de suas “inocentes” temáticas o caráter de protesto das canções.
Outra informação relevante, oferecida pela dimensão referencial, relaciona-se às
propriedades típicas da representação conceitual das canções de engajamento como os
conceitos de compositor, censores, conscientização e censura, por estarem decisivamente
ligadas, não a um dado momento histórico, mas especificamente ao momento da ditadura
militar.
A análise do módulo interacional revelou a complexidade da interação estabelecida
entre os interactantes. Ao que parece, a complexidade do quadro demonstra a tentativa do
compositor em ocultar-se com a organização a interação em no mínimo três níveis. Outra
informação relevante evidenciada nesse módulo é o fato de, no nível mais externo das inte-
111
rações, termos a relação entre Compositor e seu Leitor/ouvinte, que, na práxis, se subdi-
vide em papéis com objetivos e atividades acionais distintas, como já dito anteriormente.
Ao estabelecermos relações entre informações interacionais e referenciais, pudemos
perceber que os quadros representativos das materialidades das canções apresentavam par-
ticularidades quanto à posição do narrador e a relação com os nomes femininos das can-
ções. Nas canções A Rita, Carolina e Januária, o narrador instituído é de terceira pessoa e
nos três casos as personagens-título são consideradas não-pessoa, por serem apenas citadas
até o segundo nível interacional. Já nas canções Ana de Amsterdam, Bárbara, Joana Fran-
cesa, Teresinha, A Rosa, Luísa, Tereza Tristeza e Benvinda, o compositor instaura um nar-
rador em primeira pessoa. Nas quatro primeiras canções citadas o narrador é eu-feminino e
nas quatro últimas o narrador é eu-masculino. Em Angélica destacou-se um enquadre com
oito posições de interação e quatro níveis. Fato que revela a presença de dois narradores:
um em primeira pessoa e outro em terceira pessoa. Finalmente, destacamos que a leitura da
dimensão referencial possibilitou todas as leituras subseqüentes.
O módulo hierárquico mostrou-nos a organização da canção em atos e intervenções
que possibilitam a produção de sentidos e, entre eles, o sócio-políticos. Percebemos que as
estruturas hierárquicas organizam-se de acordo com a estrutura narrativa da canção das
canções, porém, ora em constituintes principais, como em A Rita, ora em constituintes su-
bordinados, como em Benvinda, posicionam-se elementos que disparam um plano de leitu-
ra sócio-político. Leitura essa, de acordo com a própria estrutura narrativa e temática da
canção e sua relação com o momento histórico.
As informações obtidas na análise da forma de organização enunciativa-polifônica
revelam que o discurso produzido, realçado no nível mais externo da interação, é o elo das
canções com o mundo em que são produzidas. Como as canções em sua maioria são narra-
112
tivas, o segundo nível interacional é marcado pelo discurso representado indireto livre.
Este, porém, não apresenta marcas lingüísticas. Esse fato evidencia nossa hipótese de ocul-
tamento da voz do compositor, que se faz confundir com o seu narrador, configurando uma
estratégia de burla. Essa característica fica mais evidente nas canções cujo narrador é um
eu-feminino como em Terezinha, por exemplo.
Nas canções Tereza Tristeza, Carolina, Benvinda, notamos a presença de um dis-
curso formulado indireto livre autofônico que realça e voz do homem posicionado como
narrador. A voz masculina também é marcada com discurso representado designado auto-
fônico em Carolina, Terezinha e Angélica.
Mesmo com nomes femininos, as canções não trazem predominantemente a voz
feminina. A voz feminina é velada através do discurso formulado indireto livre nas canções
cujo narrador é uma mulher, como em Ana de Amsterdam. E ainda, através de discursos
formulados ou designados diafônicos, como exemplo do primeiro Tereza Tristeza, e do
segundo A Rosa.
Chamamos atenção para as canções de Chico que mesmo possuindo nomes femini-
nos, não são representantes de um discurso da mulher. Parece-nos que a temática da mu-
lher é utilizada como subterfúgio, ou seja, estratégia de burla. Elas não retratam o momen-
to histórico sob a perspectiva da mulher, mas sim, paradoxalmente, sob a masculina.
Houve duas ocorrências de polifonia de acordo com a convenção do MAM. Tanto
na canção Januária como em Benvinda, a voz de terceiros foi utilizada com a finalidade de
tentar convencer seu público à mudança, relacionada com a temática apresentada pela nar-
rativa e também com o contexto sócio-político. Uma das características das canções popu-
lares, nesse momento, era o discurso de mobilização.
113
As ocorrências de discurso formulado, designado, autofônico e polifônico compor-
taram-se em nossas análises como elementos que contribuíram para as estratégias de burla.
114
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REIS, Daniel Aarão. Ditadura Militar, esquerdas e sociedade. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.
ROCHA, Fátima Cristina Pessoa. As relações interpessoais nos domínios do contar e fazer
contar narrativas populares da Amazônia Paraense. Belo Horizonte, Faculdade de Letras
da UFMG, 2004.(Tese - Doutorado em Lingüística ).
ROULET, FILLIETTAZ, e GROBET, A Un modéle et um instrument d’ analyse de
l’organisation du discours. Berne:Lang, 2001.
ROULET, Eddy. La description de l’ organisation du discours: du dialogue au texte.
Paris: Didier, 1999.
ROULET, Eddy. Um modelo e um instrumento de análise obre a organização do discurso.
In: MARI et all. (org) Fundamentos e dimensões da análise do discurso. Belo Horizonte.
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RUFINO, J.A. & BRUNETTI, R.V. A organização enunciativa/polifônica em Uma Histó-
ria Distraída, de Cida Chaves. In: MELLO, R. Análise do Discurso & Literatura. Belo
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SILVA, Fernando de Barros.Chico Buarque / Fernando de Barros Silva. São Paulo: Publi-
folha, 2004 (Folha explica).
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SOARES, Izabel Cristina Rodrigues. As narrativas orais populares da Amazônia paraen-
se: vozes múltiplas que contam as histórias do povo. Belo Horizonte, Faculdade de Letras
da UFMG, 2003. (Tese - Doutorado em Lingüística).
TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
TATIT, Luiz, O cancionista: composição de canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: EDUSP,
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TATIT, Luiz. Semiótica da canção: melodia e letra. 2. ed. São Paulo: Escuta, 1996.
VILLELA, Ana Maria Nápoles. O caráter interacional da segmentação periódica de uma
troca epistolar entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2003. (Tese de Doutorado)
WORMS, Luciana Salles e COSTA, Wellington Borges. Brasil século XX Ao pé da letra
da canção popular. Curitiba: Nova Didática, 2002.
118
ANEXOS
Anexo I
Marcas Enunciativas
A Rita
Chico Buarque/1965
C[N[A Rita levou meu sorriso
No sorriso dela
Meu assunto
Levou junto com ela
E o que me é de direito
Arrancou-me do peito
E tem mais
Levou seu retrato, seu trapo, seu prato
Que papel!
Uma imagem de São Francisco
E um bom disco de Noel
A Rita matou nosso amor
De vingança
Nem herança deixou
Não levou um tostão
Porque não tinha não
Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos
Meu pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu coração
E além de tudo
Me deixou mudo H[ ]
Um violão]]
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Paulo SP.
119
Tereza tristeza
Chico Buarque/1965
MPB 4 - ELENCO
C[N[Oh Tereza essa tristeza
Não tem solução
Tire o meu lugar da mesa
Não me espere não
Não vou, não
Ao menos sou sincero
H [Que te adoro
Que te quero]
Mas não passo bem sem carnaval
Não
Oh Tereza essa tristeza
Não tem solução
Ser mulher é muito mais
Do que pregar botão
Não vê não
Que o homem quando é homem
Passa frio passa fome
Mas não bem sem desse carnaval
Diz TT [que não tem café]
Diz TT [que não tem feijão
Nem sandália pro pé
Nem aliança pro dedo da mão]
Oh Tereza
É tão pouca tristeza
Tem gente que nem carnaval
Não tem não]]
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120
Carolina
Chico Buarque/1967
C[N[Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei H[que não vai dar
Seu pranto não vai nada mudar]
Eu já convidei H [para dançar]
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, H [ói que lindo]
Mas Carolina não viu
Carolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, H[vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar]
H[Mil versos cantei pra lhe agradar]
Agora não sei como explicar
H[Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu]
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
Só Carolina não viu]]
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no Brasil.
121
Januária
Chico Buarque/1967
C[N[Toda gente homenageia TG [ ]
Januária na janela
Até o mar faz maré cheia
Pra chegar mais perto dela
O pessoal desce na areia
E batuca por aquela
Que, malvada, se penteia
E não escuta quem apela TG [ ]
Quem madruga sempre encontra
Januária na janela
Mesmo o sol quando desponta
Logo aponta os lados dela
Ela faz que não dá conta
De sua graça tão singela
O pessoal se desaponta
Vai pro mar levanta vela]]
1967 © by Editora Musical Arlequim Ltda. Av. Rebouças, 1700 CEP 057402-200 - São
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122
Benvinda
Chico Buarque/1968
C[N[Dono do abandono e da tristeza
Comunico H[oficialmente
Que há lugar na minha mesa]
Pode ser que você venha
Por mero favor
Ou venha coberta de amor
Seja lá como for
Venha sorrindo, ai
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Que o luar está chamando L[ ]
Que os jardins estão florindo
Que eu estou sozinho
Cheio de anseios e esperança
Comunico a toda a gente
H[Que há lugar na minha dança]
Pode ser que você venha
Morar por aqui
Ou venha pra se despedir
Não faz mal
Pode vir até mentindo BV[ ], ai
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Que o meu pinho está chorando
Que o meu samba está pedindo S[ ]
Que eu estou sozinho
Venha iluminar meu quarto escuro
Venha entrando como o ar puro
Todo novo da manhã
Venha minha estrela madrugada
Venha minha namorada
Venha amada
Venha urgente
Venha irmã
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Que essa aurora está custando
Que a cidade está dormindo
Que eu estou sozinho
Certo de estar perto da alegria
Comunico H[finalmente
Que há lugar na poesia]
Pode ser que você tenha
Um carinho para dar
Ou venha pra se consolar
Mesmo assim pode entrar
Que é tempo ainda, ai
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Ah, que bom que você veio
E você chegou tão linda
Eu não cantei H[em vão
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Benvinda
No meu coração]]]
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no Brasil.
123
Ana de Amsterdam
Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973
Para a peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra
C[N[Sou Ana do dique e das docas
Da compra, da venda, da troca das pernas
Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas
Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana, da cama
Da cana, fulana, bacana (sacana)
Sou Ana de Amsterdam
Eu cruzei um oceano
Na esperança de casar
Fiz mil bocas pra Solano
Fui beijada por Gaspar
Sou Ana de cabo a tenente
Sou Ana de toda patente, das Índias
Sou Ana do Oriente, Ocidente, acidente, gelada
Sou Ana, obrigada
Até amanhã, sou Ana
Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos
Sou Ana de Amsterdam
Arrisquei muita braçada
Na esperança de outro mar
Hoje sou carta marcada
Hoje sou jogo de azar
Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, das vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam]]
1972 © by Cara Nova Editora Musical Ltda. Av. Rebouças, 1700 CEP 057402-200 - São
Paulo SP. Todos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso
no Brasil.
Termo original vetado pela censura.
124
Bárbara
Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973
Para a peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra
Anna: C[N[A[Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor, vem me buscar]
Bárbara: B[O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua]
Anna: A[Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva]
As duas: A[B[Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar]]
Anna: A[Vamos ceder enfim à tentação das nossas bocas cruas
E mergulhar no poço escuro de nós duas]
Bárbara: B[Vamos viver agonizando uma paixão vadia
Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia]
As duas: A[B[Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar]]]]
1972 © by Cara Nova Editora Musical Ltda. Av. Rebouças, 1700 CEP 057402-200 - São
Paulo SP. Todos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso
no Brasil.
Trecho abafado por aplausos, na gravação, em função da censura.
125
Joana francesa
Chico Buarque/1973
Para o filme Joana Francesa de Cacá Diegues
Tu ris, tu mens trop
Tu pleures, tu meurs trop
Tu as le tropique
Dans le sang et sur la peau
Geme MM[de loucura e de torpor]
Já é madrugada
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda
Mata-me de rir
Fala-me MM[de amor]
Songes et mensonges
Sei de longe e sei de cor
Geme MM[de prazer e de pavor]
Já é madrugada
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda
Vem molhar meu colo
Vou te consolar
Vem, mulato mole
Dançar dans mes bras
Vem, moleque me dizer
MM[Onde é que está
Ton soleil, ta braise]
Quem me enfeitiçou
O mar, marée, bateau
Tu as le parfum
De la cachaça e de suor
Geme MM[de preguiça e de calor]
Já é madrugada
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda
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presso no Brasil.
126
Angélica
Miltinho - Chico Buarque/1977
C[N[Quem é essa mulher
Que canta A[ ]sempre esse estribilho
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta A[ ]sempre esse lamento
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta A[ ]sempre o mesmo arranjo
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta A[ ]como dobra um sino
Queria cantar A[ ] por meu menino
Que ele já não pode mais cantar FA [ ] ]]
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127
Teresinha
Chico Buarque/1977-1978
Para a peça Ópera do malandro, de Chico Buarque
C[N[O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou PH [suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio]
Me chamava PH [de rainha]
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava PH[ ]nada
E, assustada, eu disse T[não]
O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou SH[o meu passado]
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava SH[de perdida]
Me encontrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
E, assustada, eu disse T[não]
O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também TH[nada] perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo T[ ] o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama TH[de mulher]
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse T[ ]não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração]]
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128
A Rosa
Chico Buarque/1979
Arrasa o meu projeto de vida
Querida, estrela do meu caminho
Espinho cravado em minha garganta
Garganta
A santa às vezes troca R[ ] meu nome
E some
E some nas altas da madrugada
Coitada, trabalha de plantonista
Artista, é doida pela Portela
Ói ela
Ói ela, vestida de verde e rosa
A Rosa garante R[ ]que é sempre mi-
nha
Quietinha, saiu pra comprar cigarro
Que sarro, trouxe umas coisas do Norte
Que sorte
Que sorte, voltou toda sorridente
Demente, inventa cada carícia
Egípcia, me encontra e me vira a cara
Odara, gravou R [ ] meu nome na blusa
Abusa, me acusa R[ ]
Revista os bolsos da calça
A falsa limpou a minha carteira
Maneira, pagou a nossa despesa
Beleza, na hora do bom me deixa, se
queixa R [ ]
A gueixa
Que coisa mais amorosa
A Rosa
Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
Bandida, cadê minha estrela guia
Vadia, me esquece na noite escura
Mas jura
Me jura R[ ]que um dia volta pra casa
Arrasa o meu projeto de vida
Querida, estrela do meu caminho
Espinho cravado em minha garganta
Garganta
A santa às vezes me chama R[ ]Alberto
Alberto
Decerto sonhou com alguma novela
Penélope, espera por mim bordando
Suando, ficou de cama com febre
Que febre
A lebre, como é que ela é tão fogosa
A Rosa
A Rosa jurou R[ ] seu amor eterno
Meu terno ficou na tinturaria
Um dia me trouxe uma roupa justa
Me gusta, me gusta
Cismou de dançar um tango
Meu rango sumiu lá da geladeira
Caseira, seu molho é uma maravilha
Que filha, visita a família em Sampa
Às pampa, às pampa
Voltou toda descascada
A fada, acaba com a minha lira
A gira, esgota a minha laringe
Esfinge, devora a minha pessoa
À toa, a boa
Que coisa mais saborosa
A Rosa
Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
Bandida, cadê minha estrela guia?
Vadia, me esquece na noite escura
Mas jura
Me jura R[ ]que um dia volta pra casa
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Paulo - SPTodos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso no
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129
Luísa
Francis Hime - Chico Buarque/1979
Gravada por Francis Hime, no álbum Passaredo
C[N[Por ela é que eu faço bonito
Por ela é que eu faço o palhaço
Por ela é que eu saio do tom
E me esqueço no tempo e no espaço
Quase levito
Faço sonhos de crepom
E quando ela está nos meus braços
As tristezas parecem banais
O meu coração aos pedaços
Se remenda prum número a mais
Por ela é que o show continua
Eu faço careta e trapaça
E pra ela que eu faço cartaz
É por ela que espanto de casa
As sombras da rua
Faço a lua
Faço a brisa
Pra Luisa dormir em paz]]
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130
Anexo II
Estruturas hierárquicas
A Rita
A (1) A Rita levou meu sorriso
Is
A (2) No sorriso dela / Meu assunto
As (3) Levou junto com ela
Is
Is
As (4) E o que me é de direito
Ip
Ap (5) Arrancou-me do peito
Ip
As (6) E tem mais
Ip
Ap (7) Levou seu retrato, seu trapo, seu prato
Ip
I
As (8) Que papel!
Is
A (9) Uma imagem de São Francisco
Ip
A (10) E um bom disco de Noel
A (11) A Rita matou nosso amor de vingança
Is
A (12) Nem herança deixou
Ip
Ap (13) Não levou um tostão
Is
Is
As (14) Porque não tinha não
Is
Ap (15) Mas causou perdas e danos
Ip
Ap (16) Levou os meus planos
Ip
Ap (17) Meus pobres enganos
Is
A (18) Os meus vinte anos
Is
A (19) O meu coração
Ap (20) E além de tudo/ Me deixou mudo/ Um violão
131
Tereza tristeza
As (1) Oh Tereza essa tristeza/ Não tem solução
Is
Ap (2) Tire o meu lugar da mesa
Is
Ap (3) Não me espere não
Ip
Is
As (4) Não vou, não
Ap (5) Ao menos sou sincero
Is
A (6) Que te adoro
Is
Ip
A (7) Que te quero
Is
Ap (8) Mas não passo bem sem carnaval/ Não
As (9) Oh Tereza essa tristeza/ Não tem solução
Is
Ap (10) Ser mulher é muito mais/ Do que pregar botão
Ip
I
As (11) Não vê não/ Que o homem/
As (12) quando é homem
Is Ip
Ip
A (13) Passa frio/
Ip
A (14) passa fome
Ap (15) Mas não bem sem desse carnaval
A (16) Diz que não tem café
A (17) Diz que não tem feijão
Is
A (18) Nem sandália pro pé
Ip
A (19) Nem aliança pro dedo da mão
As (20) Oh Tereza / É tão pouca tristeza
Ip
Ap (21) Tem gente que nem carnaval / Não tem não
132
Januária
Ap (1) Toda gente homenageia/ Januária na janela
As (2) Até o mar faz maré cheia
Is
I
Ap (3) Pra chegar mais perto dela
Is
A (4) O pessoal desce na areia
I
Ap (5) E batuca por aquela
I
As (6) Que, malvada, se penteia
I
Is
Ap (7) E não escuta quem apela
Ap (8) Quem madruga sempre encontra/ Januária na janela
Is
As (9) Mesmo o sol quando desponta
Ip
Is
Ap (10) Logo aponta os lados dela
As (11) Ela faz que não dá conta/ De sua graça tão singela
Ip
As (12) O pessoal se desaponta
Ip
Ap (13) Vai pro mar levanta vela
133
Carolina
Ap (1) Carolina/Nos seus olhos fundos/Guarda tanta dor
Ip
As (2) A dor de todo esse mundo
Is
As (3) Eu já lhe expliquei que não vai dar
I
Ap (4) Seu pranto não vai nada mudar
Is
Is
As (5) Eu já convidei para dançar
I
Ap (6) É hora, já sei, de aproveitar
As (7) Lá fora, amor
Ip
A (8) uma rosa nasceu
Is
Ip
A (9) Todo mundo sambou
A (10) Uma estrela caiu
Ap (11) Eu bem que mostrei sorrindo
Is
Ip
As (12) Pela janela, ói que lindo
Ap (13) Mas Carolina não viu
A (14) Carolina/ Nos seus olhos tristes/Guarda tanto
amor
I
Is
A (15) O amor que já não existe
I
A (16) Eu bem que avisei,
As
I
A (17) vai acabar
Ap (18) De tudo lhe dei para aceitar
Ip
Is
As (19) Mil versos cantei pra lhe agradar
I
Ap (20) Agora não sei como explicar
As (21) Lá fora, amor
Ip
A (22) uma rosa morreu
Ip
Ip
A (23) Uma festa acabou
A (24) Nosso barco partiu
Ap (25) Eu bem que mostrei a ela
Is
Ip
As (26) O tempo passou na janela
Ap (27) Só Carolina não viu
134
Benvinda
As (1) Dono do abandono e da tristeza
Is
A (2) Comunico oficialmente
Ip
Is
A (3) Que há lugar na minha mesa
Ap (4) Pode ser que você venha
I
Is
As (5) Por mero favor
A (6) Ou venha coberta de amor
Ip
As (7) Seja lá como for
Ip
Ip
Ap(8) Venha sorrindo, ai/Benvinda/Benvinda/Benvinda
A (9) Que o luar está chamando
Is
Is
A (10) Que os jardins estão florindo
A (11) Que eu estou sozinho
As (12) Cheio de anseios e esperança
Is
Ap (13) Comunico a toda a gente/ Que há lugar na minha dança
Ip
A (14) Pode ser que você venha/ Morar por aqui
As
Is
A (15) Ou venha pra se despedir
Ip
Ap
(16) Não faz mal
Ap(17) Pode vir até mentindo,ai/Benvinda/Benvinda/Benvinda
Ip
A (18) Que o meu pinho está chorando
I
Is
A (19) Que o meu samba está pedindo
A (20) Que eu estou sozinho
135
A (21) Venha iluminar meu quarto escuro
Is
A (22) Venha entrando como o ar puro
Ip
I
A (23) Todo novo da manhã
Ip
Ap (24) Venha minha estrela madrugada
A (25) Venha minha namorada
Is
Is
A (26) Venha amada
A (27) Venha urgente
Ap (28) Venha irmã/Benvinda/Benvinda/Benvinda
Is
A (29) Que essa aurora está custando
Is
A (30) Que a cidade está dormindo
A (31) Que eu estou sozinho
As (32) Certo de estar perto da alegria
Ip
Is
Ap
(33) Comunico finalmente/ Que há lugar na poesia
Is
A (34) Pode ser que você tenha / Um carinho para dar
Is
Ip
A (35) Ou venha pra se consolar
Ap (36) Mesmo assim pode entrar
Ip Ip
As (37) Que é tempo ainda, ai / Benvinda /Benvinda /
Benvinda
A(38) Ah, que bom que você veio
Is
A (39) E você chegou tão linda
Ip
Ap (40) Eu não cantei em vão/Benvinda/Benvinda/ Benvinda/
Benvinda / Benvinda / No meu coração
136
Ana de Amsterdam
Ap (1) Sou Ana do dique e das docas
Is
A (2) Da compra, da venda, da troca das
pernas
Is
A (3) Dos braços, das bocas, do lixo,dos
bichos, das fichas
Is
A (4) Sou Ana das loucas
Ap
A (5) Até amanhã
Ip Ip
As
(6) Sou Ana, da cama / Da cana, fulana,
bacana (sacana)*
Is
Ap (7) Sou Ana de Amsterdam
Ap (8) Eu cruzei um oceano
Is
As (9) Na esperança de casar
Is
A (10) Fiz mil bocas pra Solano
Ip
A (11) Fui beijada por Gaspar
A(12) Sou Ana de cabo a tenente
Is
A (13) Sou Ana de toda patente, das Índias
Is
Is
As (14) Sou Ana do Oriente, Ocidente,
acidente, gelada
Is
Ip
Ap (15) Sou Ana, obrigada
Ip
A (16) Até amanhã,
Ap
A (17) sou Ana / Do cabo, do raso, do rabo, dos
ratos
Ip
Ap (18) Sou Ana de Amsterdam
Ap (19) Arrisquei muita braçada
Is
As (20) Na esperança de outro mar
Is
I
A (21) Hoje sou carta marcada
Ap
A (22) Hoje sou jogo de azar
137
As (23) Sou Ana de vinte minutos
Is
A (24) Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Ip
Is
A (25) Que apaga charutos
Is Ap
(26) Sou Ana dos dentes rangendo/ E dos olhos enxutos
Ip
A (27) Até amanhã,
Ip
A (28) sou Ana / Das marcas, das macas, das vacas, das
pratas
Ap (29) Sou Ana de Amsterdam
138
Bárbara
A (1) Bárbara, Bárbara/ Nunca é tarde, nunca é demais
I-A
A (2) Onde estou, onde estás
A
A (3) Meu amor, vem me buscar
Ap (4) O meu destino é caminhar assim
Ip
I
As (5) Desesperada e nua
As (6) Sabendo que no fim da noite serei tua
Ap (7) Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
I
As (8) Acumulando de prazeres teu leito de viúva
A (9) Bárbara, Bárbara/ Nunca é tarde, nunca é demais
I-A
A (10) Onde estou, onde estás
A
T
A (11) Meu amor, vem me buscar mudar
A (12) Vamos ceder enfim à tentação das nossas bocas cruas
I-A
A (13) E mergulhar no poço escuro de nós duas *
Ap (14) Vamos viver agonizando uma paixão vadia
I
As (15) Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia
A
(16) Bárbara, Bárbara/ Nunca é tarde, nunca é demais
I-A
A (17) Onde estou, onde estás
A
A (18) Meu amor, vem me buscar
139
Joana francesa
A (1) Tu ris,
A (2) tu mens trop
Is A
A (3) Tu pleures,
A (4) tu meurs trop
A(5) Tu as le tropique / Dans le sang et sur la peau
I
Ap (6) Geme de loucura e de torpor
As(7) Já é madrugada
Ip
Ap(8) Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda
A(2) Mata-me de rir
I
A(3) Fala-me de amor
Is
As(4) Songes et mensonges
Is
I
Ap(5) Sei de longe e sei de cor
I
Ap (6) Geme de prazer e de pavor
As (7) Já é madrugada
Ip
Ap (8) Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda
A (9) Vem molhar meu colo
I A
Is
A (10) Vou te consolar
I
A (11) Vem, mulato mole / Dançar dans mes brás
Ap
(18) Vem, moleque me dizer /Onde é que está / Ton soleil, ta braise
A (19) Quem me enfeitiçou
A
A (12) O mar, marée, bateau
Is
A (13) Tu as le parfum / De la cachaça e de suor
I
Ap (14) Geme de preguiça e de calor
As (15) Já é madrugada
Ip
Ap (16) Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda
140
Angélica
I - A (1) Quem é essa mulher/ Que canta sempre esse estribilho
T
Ap (2) Só queria embalar meu filho/
I
As-(3) Que mora na escuridão do mar
I A (4) Quem é essa mulher/ Que canta sempre esse lamento
T
Ap (5) Só queria lembrar o tormento
I
As-(6) Que fez o meu filho suspirar
I
I A (7) Quem é essa mulher/ Que canta sempre o mesmo arranjo
T
As (8) Só queria agasalhar meu anjo
I
Ap (9) E deixar seu corpo descansar
I A (10) Quem é essa mulher/ Que canta como dobra um sino
T
Ap (11) Queria cantar por meu menino
I
As (12) Que ele já não pode mais cantar
141
Teresinha
Ap (1) O primeiro me chegou
Ip
As (2) Como quem vem do florista
I
A (3) Trouxe um bicho de pelúcia
Is
Is
A (4) Trouxe um broche de ametista
A (5) Me contou suas viagens
I
A (6) E as vantagens que ele tinha
I
Is
A (7) Me mostrou o seu relógio
I
A (8) Me chamava de rainha
Ap (9) Me encontrou tão desarmada
Is
As (10) Que tocou meu coração
Ip
A (11) Mas não me negava nada
Ip
A (12) E, assustada, eu disse não
Is
A (13) O segundo me chegou
I
A (14) Como quem chega do bar
I
A (15) Trouxe um litro de aguardente
I
Is
A (16) Tão amarga de tragar
A (17) Indagou o meu passado
I
A (18) E cheirou minha comida
I
Ip
A (19) Vasculhou minha gaveta
I
A (20) Me chamava de perdida
A (21) Me encontrou tão desarmada
I
A (22) Que arranhou meu coração
I Ip
142
A (23) Mas não me entregava nada
I
A (24) E, assustada, eu disse não
A (25) O terceiro me chegou
I
A (26) Como quem chega do nada
I
A (27) Ele não me trouxe nada
I
Is
A (28) Também nada perguntou
A (29) Mal sei como ele se chama
I
A (30) Mas entendo o que ele quer
I
Ip
A (31) Se deitou na minha cama
I
A (32) E me chama de mulher
A (33) Foi chegando sorrateiro
I
Ip
A (34) E antes que eu dissesse não
Ap (35) Se instalou feito um posseiro/ Dentro do meu coração
143
A Rosa
As (1) Arrasa o meu projeto de vida/ Querida, estrela do meu
caminho/ Espinho cravado em minha garganta/ Garganta
Is
A (2) A santa às vezes troca meu nome
Ip
A (3) E some
A (4) E some nas altas da madrugada
Is Is
A (5) Coitada, trabalha de plantonista
Ip
A (6) Artista, é doida pela Portela
I
Ip
A (7) Ói ela
A (8) Ói ela, vestida de verde e rosa
Is
Ap (9) A Rosa garante que é sempre minha
A (10) Quietinha, saiu pra comprar cigarro
Is
Ip
A (11) Que sarro, trouxe umas coisas do Norte
Is
A (12) Que sorte
Is
Ip
A (13) Que sorte, voltou toda sorridente
A (14) Demente, inventa cada carícia
Is
A (15) Egípcia, me encontra e me vira a cara
Ip
I
A (16) Odara, gravou meu nome na blusa
A (17) Abusa, me acusa
Ip
A (18) Revista os bolsos da calça
144
A (19) A falsa limpou a minha carteira
I
A (20) Maneira, pagou a nossa despesa
Is
A (21) Beleza, na hora do bom me deixa, se queixa / A gueixa
I
Ip
A (22) Que coisa mais amorosa/ A Rosa
As (23) Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
Is
A (24) Bandida, cadê minha estrela guia
Ip Ip
A (25) Vadia, me esquece na noite escura
A (26) Mas jura
Ip
A (27) Me jura que um dia volta pra casa
145
Luísa
A (1) Por ela é que eu faço bonito
A (2) Por ela é que eu faço o palhaço
I A (3) Por ela é que eu saio do tom
A (4) E me esqueço no tempo e no espaço
Is
A (5) Quase levito
I I
A (6) Faço sonhos de crepom
As (7) E quando ela está nos meus braços/
Is
Ap (8)As tristezas parecem banais
Ip
Ap (9) O meu coração aos pedaços/ Se remenda prum número a mais
I
As (10) Por ela é que o show continua
Is
A (11) Eu faço careta e trapaça
Ip
A (12) E pra ela que eu faço cartaz
I
A (13) É por ela que espanto de casa/ As sombras da rua
Is
A (14) Faço a lua
I
Ip
A (15) Faço a brisa
Ap(16) Pra Luisa dormir em paz
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