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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LETRAS E CULTURA REGIONAL
CONTOS DE FADAS TRADICIONAIS E RENOVADOS: UMA PERSPECTIVA
ANALÍTICA
Patrícia Bastian Alberti
Profa. Dra. Cecil Jeanine Albert Zinani
CAXIAS DO SUL
2006
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1
Patrícia Bastian Alberti
CONTOS DE FADAS TRADICIONAIS E RENOVADOS: UMA PERSPECTIVA
ANALÍTICA
Dissertação apresentada
ao Programa de Pós-
Graduação em Letras e
Cultura Regional da
Universidade de Caxias
do Sul, como requisito
parcial para obtenção do
grau de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra.
Cecil Jeanine Albert
Zinani
CAXIAS DO SUL
2006
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2
Dedico e agradeço aos
meus amores e aos
meus amigos de fé que
sempre acreditaram em
mim.
3
RESUMO
Esta investigação propõe uma análise comparativa das obras Cinderela ou
Sapatinho de Cristal, de Charles Perrault; Cinderela, de Jacob e Wilhelm Grimm e
Cinderela: uma biografia autorizada, de Paula Mastroberti, com a finalidade de
constatar as transformações que ocorreram em cada versão devido à influência da
cultura regional, do espaço e do contexto histórico que representam. Tratando-se de
obras de interesse infantil, são revisados aspectos fundamentais dessa modalidade
de literatura. O trabalho está dividido em quatro partes: a primeira discute as
questões básicas que envolvem o gênero conto e suas aproximações conceituais; a
segunda aborda conceitos básicos sobre literatura infantil e infância; a terceira
apresenta a problemática da regionalidade, associando-a com literatura infantil
brasileira e riograndense; e a quarta, analisa os textos que compõem o corpus desta
pesquisa. A conclusão procura, por meio das obras analisadas, assinalar as relações
entre literatura infantil tradicional e renovada e entre literatura infantil e
regionalidade.
Palavras-chave: literatura infantil, contos de fadas, paródia, conto renovado.
4
ABSTRACT
This investigation proposes a comparative analysis of the books Cinderella,
by Charles Perrault, Cinderella by Jacob and Wilhelm Grimm and Cinderella: the
authorized biography, by Paula Mastroberti, aiming to verify the transformations each
version has suffered due to the influences from the regional culture, the space and
the historical context that they represent. Considering that these books are children’s
interest, the essential aspects of this genre will be reviewed. The task is divided in
four parts: the first one discusses the basic questions that involve the genre tale and
its conceptual approximations; the second approaches basic concepts about
children’s literature and childhood; the third presents the problematic of the
regionality, associating it with the Brazilian and South Brazilian children’s literature;
and the fourth analyses the texts that compose the corpus of this research. The
conclusion aims to point out, through the analyzed books, the relations between
traditional and renovated children’s literature and also between children’s literature
and regionality.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 06
1 ASPECTOS DO CONTO.................................................................................... 09
1.1 Conto: aproximações conceituais.................................................................... 09
1.2 Contos de fadas tradicionais ........................................................................... 18
1.3 Origem e história dos contos de fadas ............................................................ 21
1.4 Novos contos de fadas.................................................................................... 31
1.4.1 As fadas ....................................................................................................... 44
2 LITERATURA INFANTIL E O CONCEITO DE INFÂNCIA.................................. 50
2.1 A evolução do conceito de infância ................................................................. 53
3 LITERATURA INFANTIL E REGIONALIDADE .................................................. 60
3.1 Cultura e regionalidade ................................................................................... 60
3.2 Literatura infantil e regionalidade .................................................................... 69
3.3 Literatura infantil no Brasil .............................................................................. 79
3.4 Literatura infantil no Rio Grande do Sul .......................................................... 86
4 CINDERELA EM PERSPECTIVA ANALÍTICA................................................... 94
CONCLUSÃO...................................................................................................... 120
REFERÊNCIAS................................................................................................... 124
6
INTRODUÇÃO
As histórias populares que chamamos de contos de fadas exerceram
grande influência sobre o contexto cultural; sua universalidade e permanência até
hoje revelam a sua relevância para o ser humano.
Os contos que chegaram à Europa durante a Idade Média foram reescritos,
e transformados, para se adequarem ä sociedade em que se inseriram.
Sobreviveram e se espalharam por toda a parte, graças à memória e à habilidade
narrativa de gerações de contadores, que dedicavam parte das longas noites de
outrora para entreterem-se uns com outros contando e ouvindo histórias.
A partir do século XVII, as mudanças na sociedade européia permitiram que
o conto de tradição oral caminhasse em direção a formas mais elaboradas, deixando
de ser anônimo e passando a relacionar-se com um autor concreto, responsável
pela criação da obra. A passagem do tempo e o interesse de diversos autores
fizeram com que essas narrativas começassem a receber um tratamento literário,
atribuindo-se a elas um estilo mais sofisticado, em um processo que as transformou
nos contos de fadas que hoje se conhecem.
O presente trabalho busca organizar uma reflexão sobre os contos de fadas,
de sua origem e de sua significância para o mundo infantil, através do contraponto
do conto renovado. Embora esses contos, quando justapostos, permitam entrever
uma série de diferenças relativas ao tempo de execução de cada obra, ao espaço
em que foram realizadas, aos suportes utilizados e às concepções estilísticas e
imagéticas por eles veiculadas, é notório que, em meio a tantos outros contrastes,
realce um ponto em comum entre eles: a presença do maravilhoso.
O conto de fadas, como toda obra de arte, é uma representação e, como tal,
serve como instrumento valioso ao estudo da natureza humana. Seu vínculo com a
oralidade auxilia na tentativa de reconstrução do passado, condição fundamental
para uma reflexão no momento presente.
Os contos de fadas trazem, em seu conteúdo, informações importantes
acerca da realidade do seu local de origem, do momento histórico e da cultura da
região onde estão inseridos. Assim, o objetivo desta pesquisa consiste em investigar
como se relacionam contexto histórico, regionalidade, cultura e o conto de fadas
7
Cinderela, em diferentes versões, de acordo com o local de origem de cada uma
dessas histórias; da mesma forma, pretendemos expor o processo de renovação por
que passaram os contos, conforme sua transmissão para outros locais e culturas. A
renovação é, nesse caso, a palavra-chave.
Para realizar a investigação proposta, tomar-se-ão por base três textos: O
primeiro escrito no século XVII, era da literatura clássica, é Cinderela, ou Sapatinho
de Cristal de Charles Perrault. Outro texto escolhido, foi a Cinderela de Grimm, do
século XIX, romântico. E a terceira obra, Cinderela: uma biografia autorizada, da
escritora Paula Mastroberti, é uma versão contemporânea (2004).
Enquanto os contos de Perrault e de Grimm pertencem à tradição, o caráter
da obra de Paula Mastroberti é subversivo, já que moderniza o conto Cinderela,
transformando a estrutura do gênero.
Para encaminhar o problema, pretende-se analisar comparativamente as
obras que constituem o corpus do trabalho, considerando as características
singulares de cada uma, para que se possam identificar, então, os elementos de
cada versão do conto Cinderela que sofreram influências da cultura regional.
No trabalho feito por Mastroberti (2004), observamos que a autora retoma a
obra dos autores alemães, e dialoga com ela, num processo explícito de
intertextualidade. Sua apropriação é uma paródia dos personagens dos contos de
fadas, já que ela os transporta para o universo atual, retomando alguns elementos
da obra clássica e, com isso, enriquecendo a literatura infantil.
A literatura infantil, como gênero literário, apesar de estar sujeita às
circunstâncias de ordem externa, forma-se como um diferencial, uma vez que não
possui uma limitação temporal e acaba por se tornar objeto de predileção do seu
público central: as crianças.
Não podemos esquecer que os contos tradicionais, que atravessaram
séculos, são responsáveis pelo encantamento de milhões de crianças,
independentemente da passagem do tempo. No cenário contemporâneo em que a
infância se apresenta, o príncipe encantado se perpetua nos contos, como o eterno
sonho de qualquer menina, mesmo sem sapatinhos de cristal, fada madrinha ou
abóbora-carruagem; a magia, a realização dos sonhos e o final feliz permanecem.
As crianças modernas, observadoras e com um acesso à informação, como nunca
visto antes, são mais exigentes, não se deixando encantar completamente por uma
Cinderela pueril, “à moda antiga”. Nesse aspecto, ressalta-se a importância da
8
renovação dos tradicionais contos de fadas, em que a heroína se parece mais com
os sonhos dos jovens modernos, uma princesa em tempos de internet, uma
Cinderela “descolada”.
O estudo da renovação proposto não se refere tão somente à época, mas
ao processo de regionalização, que leva os contos de fadas a se adequarem à
cultura onde estão inseridos. Para isso, o presente trabalho divide-se em quatro
capítulos que visam explorar o universo da literatura infantil e sua relação com a
região.
O primeiro capítulo propõe-se esclarecer as diferenças que cercam os
conceitos de conto literário, conto de fadas tradicionais, conto popular, conto
folclórico, bem como a origem e a história dos novos contos.
No segundo capítulo, será conceituada a literatura de interesse infantil
enquanto gênero de extrema importância para a cultura de uma forma geral. Depois,
apresentaremos um panorama da realidade da criança, quando do surgimento das
primeiras histórias.
Compreendido este processo, consideraremos, no terceiro capítulo, a
regionalidade e cultura, destacando a relação entre literatura infantil e regionalidade,
literatura infantil produzida no Brasil e, em seguida, no Rio Grande do Sul.
O quarto capítulo consiste na análise simultânea dos três contos
selecionados, dois clássicos e um contemporâneo, por meio das seguintes obras:
Cinderela, dos Irmãos Grimm, Sapatinhos de Vidro, de Charles Perrault, Cinderela:
uma biografia autorizada, de Paula Mastroberti.
A estratégia dos autores, a articulação do texto, os recursos utilizados
demonstrarão as mudanças ocorridas nos contos de fadas. Através da análise e
comparação do corpus selecionado, procuraremos demonstrar a efervescência de
uma literatura infantil de qualidade, que se renova no sentido de se adequar ao leitor
contemporâneo.
9
1 ASPECTOS DO CONTO
Para contextualizar este estudo, serão revisados os aspectos fundamentais
relacionados ao conceito de conto, verificando as diferenças entre conto popular,
literário, folclórico e contos de fadas.
1.1 Conto: aproximações conceituais
Contar uma história é uma arte que atravessa os séculos.
Independentemente de época ou local, sempre há os que contam histórias reais com
pitadas de imaginação ou histórias fantasiosas, repletas de magia. O conto,
enquanto gênero, é estudado por inúmeros teóricos, entre eles: Câmara Cascudo
(2004) afirma que o conto popular é uma produção anônima e coletiva, que assume
a função de testemunho da atividade espiritual do povo, em sua forma espontânea,
diária e regular.
Gutfreind (2003) defende a possibilidade de haver distinções no conceito de
conto, mesmo que se use esse termo para qualificar qualquer material utilizado,
podendo-se distinguir os contos tradicionais dos contos frutos de criação moderna.
Da mesma forma, segundo o autor,
Considerar o conto tradicional como antigo, pertencendo ao patrimônio
mundial ancestral sob diferentes formas, conforme países e regiões, é
fundamental. Trata-se do conto “polido pelos séculos, engrandecido pela
sabedoria e a memória humana”, o que permite supor que adquiriu, no
fundo e na forma, certa maturidade. As histórias modernas, chamadas “de
autor”, não possuem essa densidade conferida pelo tempo.
(
GUTFREIND, 2003, p. 22).
Os contos tradicionais diferenciam-se dos contos modernos pela maturidade
adquirida com o passar do tempo. Em relação aos primeiros, Gutfreind (2003, p. 22)
acrescenta:
Quanto aos contos tradicionais, os autores concordam pelo menos em um
ponto: parecem ter ocupado desde sempre um lugar importante nas
sociedades, ao menos desde a pré-história (Propp, 1946; Simonsen, 1981
e 1984; Antonieta e Cunha, 1991; Velay-Vallantin, 1992; Lafforgue, 1995a;
Novaes Coelho, 1998; Belmont, 1999). Lendo-os, nos convencemos de que
10
o conto popular de transmissão oral pode, de certa forma, ter
acompanhado a humanidade.
Já as histórias modernas, produto da língua escrita, não possuem a mesma
profundidade dos contos tradicionais, faltando-lhes a densidade conferida pelo
tempo. Possuem, porém, reconhecida importância, e são incluídas em seu próprio
campo de investigação, por conterem as idéias do homem do nosso século. Pode-se
afirmar, também, que esse material literário tem desempenhado uma função
terapêutica ou, pelo menos, social. (GUTFREIND, 2003).
O conto é uma forma de expressão, oral ou escrita, cujo conteúdo é capaz
de retratar sua época, a cultura na qual estão inseridos os sonhos e desejos de seus
autores, os sonhos e desejos de seus leitores, conforme a interpretação pessoal do
autor. Um conto não é longo, não detalha, dá espaço ao leitor para imaginar,
completar, interagir com a história contada. “O conto oferece-nos, entretanto, dados
suficientes para que possamos observar uma parte, pelo menos, de sua história”.
(JOLLES, 1976, p. 188).
Segundo destaca Hohlfeldt (1988), o conto tradicional nasce do povo e é
feito também para ele, sendo, em sua origem, exclusivamente oral. Nos primórdios
dos tempos, os camponeses reuniam-se ao redor da fogueira: era o momento em
que alguém do grupo relatava histórias. Como eram contadas geralmente à noite, o
próprio clima estabelecido pela reunião de pessoas ao redor de uma fogueira gerava
o elemento maravilhoso, o suspense que lhes é peculiar.
O conto de criação popular não continha, em si, o conhecimento técnico da
língua, mas somente as histórias do povo. Por essa razão, durante longo tempo,
permaneceu como domínio exclusivo de um povo simples, que não pôde registrá-lo
com a escrita, mas passou-o, oralmente, de geração a geração. (HOHLFELDT,
1988).
Os contos apresentam-se diferentemente no mundo de hoje, caracterizado
pela velocidade e pelo conforto. As Bibliotecas tentam satisfazer uma necessidade
atual, visto que não existem mais amas, ou avós que se interessem em contar
histórias diariamente. Hoje, há contação de histórias nas escolas, em bibliotecas,
mas não é a mesma coisa contar uma história a propósito, no momento certo ou
segundo determinado horário. (MEIRELES, 1984).
Segundo Meireles (1984, p.145 - 146):
11
As Bibliotecas Infantis correspondem a uma necessidade da época, e têm
a vantagem não só de permitirem à criança uma enorme variedade de
leituras mas de instruírem os adultos acerca de suas preferências. Pois,
pela escolha feita, entre tantos livros postos a sua disposição, a criança
revela o seu gosto, as suas tendências, os seus interesses.
Definir conto é uma tarefa difícil, devido a sua trajetória histórica. Por um
lado, remontando a épocas e a povos primitivos, o conto é a mais antiga forma
narrativa ligada à tradição oral em seu sentido natural. Por outro, em sua concepção
moderna, determinada e autônoma, é um gênero recente da literatura. Conforme
Patrini (2005, p. 205), constatamos que
[...] o papel social e cultural do conto oral na sociedade atual e constatar
que a realização de uma performance original é decisiva na construção da
identidade dos novos contadores. Pude também constatar que, apesar da
sofisticação da tecnologia e da mídia, o homem tem necessidade de um
retorno à oralidade tradicional e do convívio e proximidade que ela pode
proporcionar às pessoas.
É fundamental que mencionemos as acepções do conceito de conto, para
que possamos entender essa forma literária. Um conto conserva economia de estilo
e suas situações são resumidas, pois relata um acontecimento; sua narração pode
ser oral ou escrita, a partir de um acontecimento falso ou não, através de fábulas
que se contam às crianças para diverti-las. (GOTLIB, 2004).
Etimologicamente, o termo conto vem do latim computare que se refere a
relatar uma história; entretanto, o próprio termo “relatar” remonta aos primeiros
registros do conto, sendo que relatar significa “trazer outra vez” (GOTLIB, 2004), ou
seja, uma história pode ser repetida quantas vezes for atrativa.
Dessa forma, o conto, segundo Gotlib (2004, p.12), pode ser conceituado da
seguinte forma:
O contar (do latim computare) uma estória, em princípio, oralmente, evolui
para o registrar as estórias, por escrito. Mas o contar não é simplesmente
um relatar acontecimentos ou ações. Pois relatar implica que o acontecido
seja trazido outra vez, isto é: re (outra vez) mais latum (trazido), que vem
de fero (eu trago). Por vezes é trazido outra vez por alguém que ou foi
testemunha ou teve notícia do acontecido.
O conto, na sua origem, é considerado uma forma simples de criação
espontânea, não sendo observadas regras ou formalizações na sua estrutura.
Existe, apenas, o compromisso para dar ao leitor aquilo que ele deseja: a punição
dos malvados, a justiça para os bons e o final feliz.
12
Sosa (1978), ao citar Godard, afirma que à criança não interessa a origem
ou a finalidade dos contos de fadas; interessa-lhe, sim, o que lhe desperta a
sensibilidade: a poesia neles contida, que é expressão de sentimentos fortes e
essenciais. Ali, ela se encontra com sua realidade e com os seres que nela habitam,
por meio desta poesia maravilhosa e onírica.
Para Jolles (1976, p. 198), os contos de fadas funcionam como agentes
emancipatórios, projetando o leitor para além do universo cotidiano. Assim,
As personagens e as aventuras do Conto não nos propiciam, pois, a
impressão de serem verdadeiramente morais; mas é inegável que nos
proporcionam certa satisfação. Por quê? Porque satisfazem, ao mesmo
tempo, o nosso pendor para o maravilhoso e o nosso amor ao natural e ao
verdadeiro mas, sobretudo, porque as coisas se passam nessas histórias
como gostaríamos que acontecessem no universo, como deveriam
acontecer.
Os contos são obras de arte, e, como tal, seduzem-nos com seus enredos e
personagens. Caracteristicamente, envolve algum tipo de magia, metamorfose ou
encantamento.
Para Propp (1984), o conto, antes de ser descrito, precisa ser elucidado;
sua origem e seus tipos serão definidos posteriormente, e só então se poderá dizer o
que é um conto. Por essa teoria, Propp posiciona-se contrário à classificação que
divide contos em histórias fantásticas, histórias tomadas da vida cotidiana e histórias
de animais, assim como a classificação que os divide por assuntos, como contos de
animais, contos propriamente ditos ou contos jocosos. O autor defende que os
contos, em especial os contos maravilhosos, devam ser classificados por unidades
estruturais.
Assim, explica Gotlib (2004), Propp propõe que a classificação seja
realizada pelo agrupamento entre a descrição do conto, as partes que o constituem
e as relações dessas partes entre si e com o conjunto do conto. Por essa análise,
Propp constatou que há ações constantes, comuns entre contos, com funções que
tornam essas histórias maravilhosas possíveis de serem classificadas como contos,
ou seja, suas funções são o aspecto em comum.
A brevidade, nos contos, é uma das características principais. É uma
história que promete ao leitor grandes emoções, sem, no entanto, aprofundá-las. Se
houver esse momento especial de emoção, o conto foi bem sucedido, visto que sua
brevidade o impede de tentar conquistar o leitor em outros momentos. Este
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momento, para muitos, reflete a necessidade de alguma ação específica dentro da
trama; o importante é que aconteça alguma coisa especial. (GOTLIB, 2004)
O conto tem a função de satisfazer a expectativa do leitor, de dar-lhe
exatamente aquilo que ele espera, sem deixá-lo muito tempo no aguardo. Para
definir a verdadeira função de um conto, basta que se compreenda aquilo que a
sociedade anseia em um dado momento. Segundo Jolles (1976, p. 199), “A idéia de
que tudo deva passar-se no universo de acordo com nossa expectativa é
fundamental, em nossa opinião, para a forma do conto; ela é a disposição mental
específica do conto”.
O conto é uma narrativa do mundo, uma maneira de reconhecer os povos
pela sua cultura, pelo período histórico e pela sua presença universal. Não seria
possível existir sociedade se não existisse narrativa, visto que, se não houvesse sua
perpetuação através dessas histórias, os tempos passariam e seriam esquecidos.
Os antropólogos, filósofos, historiadores, educadores têm, para cada uma de suas
respectivas áreas de conhecimento, uma maneira de definir o conto e sua cultura.
Gutfreind (2003, p. 24), citando Barthes, afirma:
Já no campo da lingüística, R. Barthes, (1966) situa o conto na categoria
de “narrativa do mundo” e reconhece a sua presença “em todos os tempos,
em todos os lugares, em todas as sociedades” (p.7). Não existiria
sociedade sem narrativa.
Quanto à origem dos contos, muitos autores referem-se aos primeiros
registros da comunicação escrita, cientes de que não podem, mesmo regredindo ao
passado e trazendo à tona contos muito antigos, declararem-se descobridores do
primeiro conto. Neste aspecto, Gotlib (2004, p. 06) aponta alguns dos contos mais
antigos entre os conhecidos, tentando datar pelo menos os primeiros que foram
escritos:
Embora o início do contar estória seja impossível de se localizar e
permaneça como hipótese que nos leva aos tempos remotíssimos, ainda
não marcados pela tradição escrita, há fases de evolução dos modos de se
contarem estórias. Para alguns, os contos egípcios – Os contos dos
mágicos – são os mais antigos: devem ter aparecido por volta de 4000
anos antes de Cristo. Enumerar as fases da evolução do conto seria
percorrer a nossa própria história, a história de nossa cultura, detectando
os momentos da escrita que a representam.
Desde o primeiro conto escrito até sua popularização, seu papel firmou-se e
se fortaleceu, conforme a passagem do tempo. Dentre eles, muitos foram
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acomodando-se a diferentes regiões. Nesse processo, muito foi sendo acrescido,
modificado, adaptado e/ou renovado, na medida em que os povos iam imprimindo
suas culturas nas narrativas. Com isso, Gotlib (2004, p. 07) afirma:
Se o conto transmitido oralmente ganhara o registro escrito, agora vai
afirmando a sua categoria estética. Os contos eróticos de Bocaccio, no seu
Decameron (1350), são traduzidos para tantas outras línguas e rompem
com o moralismo didático: o contador procura elaboração artística sem
perder, contudo, o tom da narrativa oral. E conserva o recurso das estórias
de moldura: são todas unidas pelo fato de serem contadas por alguém a
alguém.
O conto tradicional é a arte de contar uma história, livremente. Não exige
formas, não obriga o autor a “esculpir” o seu texto: deixa o leitor à vontade para
completá-lo com a sua imaginação. Dessa forma, um conto pode passar de geração
em geração, reformulando-se personagens, adaptando-se a ação, reconstruindo-se
o cenário; a história sempre terá, no entanto, o mesmo começo e o mesmo fim,
mesmo que deveras distorcido, como afirma Cascudo (2004, p. 12):
O conto é um vértice de ângulo dessa memória e dessa imaginação. A
memória conserva os traços gerais, esquematizadores, o arcabouço do
edifício. A imaginação modifica, ampliando pela assimilação, enxertias ou
abandonos de pormenores, certos aspectos da narrativa. O princípio e o
fim das histórias são as partes mais deformadas na literatura oral.
É permitido ao conto que ele seja contado e recontado, com o uso das
próprias palavras do narrador. Princípio e fim podem ser, como afirmou Cascudo,
deformados; entretanto, existe sempre uma proximidade com o original, a fim de se
conservar a fonte, o conto originário. A memória a qual o autor se refere é o
conhecimento popular, aquilo que nem todos viram, mas todos sabem contar
“exatamente” como aconteceu. Adentramos, assim, no conto popular, que o autor
conceitua: “O conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica,
jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, idéias, mentalidades,
decisões e julgamentos”. (CASCUDO, 2004, p. 12).
O conto literário escapa um pouco dessa teoria, sendo considerado uma
‘forma artística’, diferente da “forma simples” que descreve os demais tipos de
contos. Moisés (2006, p. 33) afirma: “E como “forma artística”, o conto seria o
literário propriamente dito, por apresentar autor próprio, desligado da tradição
folclórica ou mítica para colher na atualidade os temas e as formas de narrar”.
15
O conto literário é a arte de criar uma maneira de representar algo,
utilizando-se critérios de invenções e recursos literários, segundo as intenções do
autor.
Segundo Gotlib (2004, p. 13):
A história do conto, nas suas linhas mais gerais, pode se esboçar a partir
deste critério de invenção, que foi se desenvolvendo. Antes, a criação do
conto e sua transmissão oral. Depois, seu registro escrito. E
posteriormente, a criação por escrito de contos, quando o narrador assumiu
esta função: de contador-criador-escritor de contos, afirmando, então, o
seu caráter literário.
A existência de vários tipos de contos pode confundir o leitor. De fato, todos
têm algo em comum: relatam histórias, podem ser narrados livremente, sobrevivem
ao tempo e podem ser renovados, adaptando-se às características sociais do
momento em que são narrados e aos contextos socioistóricos específicos.
O conto popular exige anonimato, do tipo que todos contam e ninguém sabe
dizer nem quem o criou, nem quando surgiu. Deve ser antigo, para carregar consigo
a cultura própria de uma localidade e para ser de domínio público e popular,
omitindo dados concretos como nomes, datas fixadoras, locais geográficos. Para
Gutfreind (2003, p. 198):
Vários autores destacaram a capacidade dos contos de ajudar a criança a
melhor se situar no tempo e no espaço (Bettelheim, 1976). M. Runberg
(1993) observou: “Nos contos de fadas, o tempo não é medido em dias,
meses, anos, mas através de um certo número de provações. Desse ponto
de vista, a perspectiva do tempo torna-se mais fácil de ser identificada e
compreendida pela criança” (p.48). Já R. Diatkine (1989) ressaltou que o
tempo e o espaço aparecem simbolizados nos contos de fadas.
Em geral, os contos populares são tão antigos, que neles dificilmente se
ouve falar de armas de fogo, veículo, computadores e outros produtos tecnológicos.
Ouve-se, sempre de relatos de espadas, carruagens, reis, rainhas e princesas,
tempos remotos e, não raro, o contador altera o próprio sotaque para tentar imitar o
modo de falar de seus ancestrais. O sotaque em nada alteraria a narração, bem
como não seria uma distorção muito grande substituir a carruagem por um veículo,
uma espada por uma arma de fogo e uma serenata por uma mensagem de texto de
aparelho celular, mas é essa volta ao passado que mantém o conto vivo no
imaginário popular, esse elemento maravilhoso que o diferencia da realidade de
quem está tendo acesso a ele.
16
O conto folclórico, por sua vez, muito se parece com o conto popular,
caracterizando-se por retratar o passado, tornando-se documento de uma cultura
ancestral. O conto folclórico expõe como o comportamento humano atua em
circunstâncias específicas, sendo claro quando se trata de questões como
obediência ao patriarca, recompensa, casamento e dote, características sociais
praticamente inexistentes nos dias de hoje, mas bastante conhecidas através dos
contos folclóricos e populares. Como o conto popular, o conto folclórico permite ao
narrador contar ao seu modo, destacando, acrescentando ou omitindo ao seu bel-
prazer, trazendo a seu público uma nova visão da história a cada narração. Segundo
explica Gotlib (2004, p. 25):
A investigação do folclore, desenvolvida por Propp, seguindo a linha do
materialismo marxista, busca explicação dos fatos no exame da realidade
histórica do passado: a origem religiosa dos contos. Investiga a conexão do
folclore com a economia da vida material: esta é que gera determinados
mitos, ritos e contos. O rito desaparece, segundo Propp, quando
desaparece a caça como único e fundamental recurso de subsistência. E
atribui à sociedade, com ou sem castas, o destino da arte
folclórica/popular. Assim, o conto maravilhoso consta, segundo ele, de
elementos que remontam a fenômenos e representações existentes na
sociedade anterior às castas. E o conto, depois, passa a ser patrimônio das
classes dominantes, como na Idade Média, quando foi manipulado de cima
para baixo.
Percebe-se que a evolução nos métodos de sobrevivência do homem
permitiu o surgimento do folclore, que, com o passar do tempo, tornou-se classista, o
que explica o fato de as primeiras histórias coletadas terem sido adaptadas às
classes mais altas, enquanto sua origem vinha exatamente das classes inferiores.
Simplificando, de acordo com Canton (1994), a diferença entre conto
popular e conto folclórico é o público e a universalidade; o conto popular traz uma
história generalizada, que pode acontecer em qualquer lugar e até mesmo em
qualquer época. A história muda personagens, época e cenário, conforme as
necessidades locais, mas conserva, sempre, a mesma essência, sendo conhecida
em diversos locais. O conto folclórico, entretanto, é bem característico da região
onde surgiu. Exclusivo daquela determinada cultura, não ultrapassa tantas barreiras,
nem sofre muitas adaptações. Ele pode ser renovado, mas nunca demasiadamente
alterado.
O folclore e toda a literatura que o envolve acabam por tornar-se, ainda, um
instrumento pedagógico na medida em que auxiliam pais e educadores na tarefa de
17
ensinar aos pequenos o significado da vida e dos problemas existenciais.
Apropriando-se da notável semelhança entre conto folclórico e conto popular, o
folclorista brasileiro Câmara Cascudo (2004, p.12) reforça o poder didático do conto
popular, afirmando que é essa literatura que nos apresentam os primeiros ídolos.
“Para todos nós é o primeiro leite intelectual. Os primeiros heróis, as primeiras
cismas, os primeiros sonhos, os movimentos de solidariedade, amor, ódio,
compaixão vêm com as histórias fabulosas, ouvidas na infância”.
Todo conto folclórico é popular, está “na boca do povo”, é contado e
recontado através dos tempos; mas nem todo conto popular é folclórico e nem
sempre é possível definir a sua origem, pois quando este chega até nós, já não é
original e sofreu as alterações necessárias para alcançar coerência com a nossa
cultura. Os contos populares são trazidos, geração após geração, pela oralidade
popular. Todos que colaboraram para a criação desses contos vinham de diversos
níveis culturais, e sua transmissão se deu na migração para diversos povos e outras
regiões.
Além disso, os contos folclóricos são classificados em doze estilos
diferentes, estudados por Câmara Cascudo por meio de análise da tradição oral e
selecionados de acordo com os temas mais freqüentes. São eles: contos de
encantamento, contos de exemplo, contos de animais, contos de facécias
(anedóticos), contos religiosos, contos etiológicos, contos do demônio logrado,
contos de adivinhação, contos de natureza denunciante, contos acumulativos,
contos do ciclo da morte e contos de tradição (CASCUDO, 2004). São os contos de
encantamento que deram origem aos fairy-tales, contos de magia, ou, em sua forma
mais original, märchen. (PROPP, 1984). Contos de encantamento, magia, ou
maravilhosos são denominações que dizem respeito ao conto cujo estudo propomos,
o conto de fadas.
Os contos populares e folclóricos deixaram um legado muito além de seu
próprio conteúdo. Não sendo somente classificações de contos literários, com rica
bagagem cultural e vasto repertório de histórias vindas de séculos anteriores, os
contos populares e folclóricos são os precursores dos contos de fadas e dos contos
literários. De uma maneira simplificada, Canton (1994, p. 11) define: “Os contos de
fadas são versões escritas – relativamente recentes, ao contrário do que se costuma
pensar – de contos folclóricos de magia derivados de antigas tradições orais”.
18
Por sua vez, o conto maravilhoso, como precursor do conto de fadas, traz
ainda mais magia do que os contos populares e folclóricos, sendo considerado uma
forma simples, por se diferenciar do conto literário, podendo ser recontado inúmeras
vezes sem perder sua essência. Segundo Gotlib (2004, p. 17):
O conto, segundo a terceira acepção de Julio Casares, entendido como
“fábula que se conta às crianças para diverti-las”, liga-se mais
estreitamente ao conceito de estória e do contar estórias, e refere-se,
sobretudo, ao conto maravilhoso, com personagens não determinadas
historicamente. E narra como “as coisas deveriam acontecer”, satisfazendo
assim uma expectativa do leitor e contrariando o universo real, em que nem
sempre as coisas acontecem da forma que gostaríamos.
O maravilhoso se manifesta diferentemente, de acordo com a época, região,
gênero e estilo de cada autor. Tradicionalmente, tem uma origem remota e se
mantém nas histórias infantis. Na criação literária, é a intervenção de seres
sobrenaturais, divinos ou legendários (deuses, demônios, gênios e fadas) e na ação
narrativa ou dramática. É identificado, muitas vezes, com o efeito que provocam tais
intervenções no ouvinte ou leitor (admiração, espanto ou surpresa).
Nos contos de fadas, o elemento maravilhoso parece ser o ponto de partida
para identificação desse gênero. Cabe investigar de que forma os contos de
Perrault, Grimm e Mastroberti se apropriam de diferenças culturais e regionais que,
extrapolando os limites sincrônicos, têm diacronicamente falado a gerações, pela
permanência não apenas do gênero, mas, especialmente, do tema.
1.2 Contos de fadas tradicionais
Muitas são as tentativas de definição dos contos de fadas. Registremos a
reflexão de Ítalo Calvino, que os considera como histórias verdadeiras e reveladoras
da condição humana. Para Calvino (1992, p.14-15), são:
[...] uma explicação geral da vida, nascida em tempos remotos e
alimentada pela lenta ruminação das consciências camponesas até nossos
dias; são o catálogo do destino que pode caber a um homem e a uma
mulher, sobretudo pela parte de vida que justamente é o perfazer-se de um
destino: a juventude, do nascimento que tantas vezes carrega consigo
auspício ou uma condenação, ao afastamento da casa, às provas para
tornar-se adulto e depois maduro, para confirmar-se como ser humano.
19
Como foi discutido na seção anterior, os contos de fadas existem há muitos
séculos. Antes disso, eram contos folclóricos da tradição oral, que nada se pareciam
com histórias infantis, envolvendo questões adultas como sexo e canibalismo. Esses
contos foram propositadamente reformulados a fim de atender ao público infantil, o
que é bastante recente, visto que nem sempre a criança foi reconhecida como tal.
Coelho (1991, p. 34) afirma que
Essa violência ou crueldade vai desaparecendo desses contos
maravilhosos à medida que os tempos passam ou que a humanidade vai
refinando seus costumes. Isso é facilmente notado nas alterações que se
produzem em certos contos, ao passarem da versão de Perrault para a de
Grimm e deste para as versões contemporâneas. Hoje transformados em
literatura infantil, perderam toda a agressividade original.
O conto de fadas, assim como o conto folclórico, possui mérito de
desempenhar uma função social para o infante, possibilitando, através da história,
adentrar no seu cotidiano sem pedir licença, estabelecendo ali um reduto de
imaginação e esperança. A imaginação criadora opera na arte narrativa, produzindo
um determinado efeito, produto da arte do encantamento. O conto de fadas trará
benefícios para a criança se lhe propuser o desafio de conhecer a vida como ela é,
mostrando a maldade, a perda, os obstáculos e a certeza de que existe um final
feliz, de que a bondade compensa e que os desafios que essa criança terá que
enfrentar lhe trarão benefícios na vida adulta.
Magalhães (1982, p. 59), demonstra que, através dos contos:
A avaliação crítica é permanente, o que, é óbvio, não afasta a condução
ideológica das informações transmitidas, mas, cabe reconhecer, valoriza o
raciocínio e o exercício de interpretação, estimula a dedução e o
questionamento de status. Os adultos fornecem muitas informações ao
longo da história, mas as crianças também possuem determinados
conhecimentos que são confirmados ou reformulados pelas experiências
que elas vivem.
Contos que apresentam apenas alegria e final feliz, sem passar pelo
desafio, não trazem benefícios, sendo somente uma leitura de entretenimento,
conforme considera Bettelheim (1980, p. 13):
Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança, deve
entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve
estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar
claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e
aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo,
sugerir soluções para os problemas que a perturbam. Resumindo, deve de
uma só vez relacionar-se com todos os aspectos se sua personalidade – e
20
isso sem nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro crédito a seus
predicamentos e, simultaneamente, promovendo a confiança nela mesma e
no seu futuro.
O autor defende o valor dos contos folclóricos, os quais não se resumem,
em geral, em uma história de encantamento e cheia de magia, mas apresentam
também desafios. Através dos contos, mostra que a luta contra as dificuldades na
vida é inevitável, que muitas dessas lutas são inesperadas e injustas, mas que, a
partir da superação dos obstáculos, resultarão vitória e felicidade no final, ao
contrário das histórias modernas que evitam focar determinados problemas.
Nos contos de fadas, os personagens ou são bons ou são maus, o que não
acontece na vida real, mas mostram com plenitude ambos os lados, conferindo aos
pequenos a noção de bondade e maldade, necessária para ponderarem suas
atitudes ao longo da vida.
Muitos contos de fadas iniciam com a morte de um ente querido ou com
outros problemas decorrentes desse fato. Quase sempre o mal se mostra atrativo,
divertido e, com freqüência, permanece vitorioso por quase todo o conto. Outras
características tornam o conto de fadas um rico material para o crescimento
intelectual das crianças, conforme explicita Bettelheim (1980, p. 15):
É característico dos contos de fadas colocar um dilema existencial de
forma breve e categórica. Isto permite à criança aprender o problema em
sua forma mais essencial, onde uma trama mais complexa confundiria o
assunto para ela. O conto de fadas simplifica todas as situações. Suas
figuras são esboçadas claramente; e detalhes, a menos que muito
importantes, são eliminados. Todos os personagens são mais típicos do
que únicos.
Ao contrário do que acontece em muitas estórias infantis modernas, nos
contos de fadas o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente
todo conto de fadas o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas
figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida e as
propensões para ambos estão presentes em todo homem. É esta
dualidade que coloca o problema moral e requisita a luta para resolvê-lo.
O papel social do conto de fadas se estabelece na medida em que orienta a
criança acerca do funcionamento da vida em sociedade: a função de cada um, o seu
trabalho, a sua participação no convívio social. Desta forma Richter e Merkel (1993,
p. 28) consideram que:
A atração do conto folclórico para a criança reside [...] na elaboração de um
compreensível esboço da sociedade; isto é, a cada personagem é dado um
papel definido em relação às outras e sua posição é designada, no
contexto geral da organização social.
21
A magia é um fator primordial em todos os contos de fadas, tradicionais ou
renovados. A fada madrinha, com sua varinha de condão, aparece no conto de
Perrault, no conto dos irmãos Grimm, se manifesta através da intervenção das
pombas, e no conto de Mastroberti, através do estilista da corte. É essa a proposta
do conto de fadas: satisfazer os anseios do seu público, presenteando-o com um
final feliz e uma verdadeira perspectiva de um destino melhor, ao mesmo tempo em
que indica um caminho, expondo lados antagônicos da vida: a bondade e a
maldade, a tristeza e a felicidade.
O conto de fadas coloca a criança em situações fantasiosas que, de certa
forma, possibilitam a ela enfrentar os verdadeiros desafios da vida real, sem perder a
magia da infância, a ternura e a serenidade. Para Machado (2004, p. 24):
É preciso perceber a realidade do conto, do mundo encantando do pode
ser, para se compreender o efeito que as histórias milenares produzem até
hoje no ser humano que somos. Longe de ser ilusão, o maravilhoso nos
fala de valores humanos fundamentais que se atualizam e ganham
significado para cada momento da história das sociedades humanas, no
instante em que um conto é relatado. Assim como o mito, a lenda e a saga,
o conto maravilhoso não é só um relato circunscrito a um determinado
tempo histórico, mas traz na sua própria natureza a possibilidade atemporal
de falar da experiência humana como uma aventura que todos os seres
humanos compartilham, vivida em cada circunstância histórica de acordo
com as características específicas de cada lugar e de cada povo. Todas
essas formas narrativas falam do trabalho criador da imaginação, inspirada,
como disse Gilbert Durand, pela necessidade fundamental de transcender
o tempo e a morte.
No percurso de nosso estudo, constatamos como essas narrativas se fazem
presentes no imaginário infantil. Além disso, os contos presenteiam seu público com
o estímulo à criatividade, característica que lhe será útil a vida inteira. Percebemos,
assim, a importância dos contos de fadas na formação de futuros cidadãos.
1.3 Origem e história dos contos de fadas
A origem da literatura infantil está diretamente ligada aos contos folclóricos e
populares. Podemos dizer que os contos populares relacionam-se com o mito,
porque, através deles, expressam, simbolicamente, os desejos, os temores e
22
tensões inconscientes do homem, bem como tratam das primeiras noções de
formação de arquétipos reconhecidos historicamente.
Esses contos, que inicialmente foram orais, apresentam um somatório de
elementos históricos, simbólicos, sociais, psicológicos, numa riquíssima linguagem,
que, embora simples e objetiva, revela o pensamento da época. São textos
interessantes, que permitem mostrar, com singularidade, a evolução do pensamento
humano na sua forma de expressão. Sendo assim, servem como registro histórico,
emitindo notícias de tempos passados e de lugares distantes, como afirma Azevedo
(2001), ao dizer que:
[...] falar em tradições populares significa, ainda, remeter a algo transmitido
oralmente, ou seja, significa, em princípio, falar em culturas sem escrita.
Não é possível encontrar nos substratos populares algo como um ‘original’,
modelos iniciais únicos a partir dos quais teriam surgido histórias e
crenças. Contos, crenças e costumes vão sofrendo alterações e
atualizações através da boca e da memória de seus transmissores,
recebendo influências contextuais e até mesmo pessoais, afinal, todo
contador deixa sua marca individual na história que conta.
O valor dessas leituras lhes confere um ar de retidão, conclamando os
indivíduos a absorverem todas as qualidades essenciais do ser humano, a viverem e
aceitarem o seu próprio destino. Os valores tradicionais como beleza, feiúra,
pobreza e riqueza são questionados ironicamente, mostrando, às avessas, como
compensar o ideal imaginário do camponês pobre, feio, faminto.
Dessa forma, destaca-se o surgimento de um conto popular de magia,
elemento integrante de uma tradição oral pré-capitalista, que reflete os desejos das
classes inferiores para melhorarem suas condições de vida. Em contrapartida, o
termo conto de fadas indica uma forma literária construída sobre elementos
populares e adaptados à realidade aristocrática.
Segundo Canton (1994), as classes inferiores da sociedade conviviam com
uma realidade absolutamente brutal, realidade esta transformada simbolicamente
em suas histórias. Dessa forma, pelo menos nos contos, os camponeses sofredores
podiam tornar-se príncipes e princesas, enriqueciam e, posteriormente, eram felizes
para sempre. Para Canton (1994, p. 30):
O conto popular de magia faz parte de uma tradição oral pré-capitalista que
expressa os desejos das classes inferiores de obterem melhores condições
de vida, enquanto o termo conto de fadas indica o advento de uma forma
literária que se apropria de elementos populares para apresentar valores e
comportamentos das classes aristocrática e burguesa. O mundo oral do
23
conto popular de magia é habitado por reis, rainhas, soldados e
camponeses, e raramente contém personagens da burguesia. Além disso,
em suas origens, os contos de fadas eram amorais e abordavam a luta de
classes real e a competição pelo poder, apresentando uma dura realidade
de miséria, injustiça e exploração. Atos de canibalismo, o favorecimento do
primogênito, a venda e o rapto de uma noiva, assim como a transformação
de humanos em animais ou plantas faziam parte da realidade social e das
crenças de muitas sociedades primitivas.
Esses contos são resultados de criações populares, cujos autores
trabalharam coletivamente e permaneceram anônimos. Durante muitos séculos, eles
não foram escritos; sobreviveram e se espalharam por toda parte através da
memória e da habilidade narrativa de gerações de contadores de histórias, que
dedicavam parte das longas noites contando e ouvindo histórias. Até hoje, os
contadores adaptam as histórias aos diferentes públicos a que se dirigem,
influenciados por seu tempo e pelo lugar onde vivem. Assim, as histórias sofrem
mudanças, incorporando os modos de viver e de pensar das pessoas das diversas
épocas e regiões por onde circulam.
Há indicações de que essas histórias transitaram na Europa durante a Idade
Média, época em que o trabalho árduo nos campos, a pobreza e as doenças
tornavam a vida muito difícil. À noite, depois de muito trabalho, as pessoas reuniam-
se em roda, inventando e contando histórias. Não por acaso, havia sempre
dificuldades e obstáculos que os heróis precisavam vencer, contando com ajuda
mágica e milagres, presentes em todos os contos. Além disso, os finais eram
sempre felizes, pois se a realidade da vida cotidiana era difícil, ao menos as histórias
terminavam como um “conto de fadas”.
Gutfreind (2003, p.180) observa que:
O conto de fadas é como um vínculo entre quem se ocupa da criança e ela
e um instrumento com o qual essa pode receber ajuda e caminhar rumo a
um desenvolvimento positivo. E ainda: O conto de fadas oferece à criança
a oportunidade de expressar os sentimentos e, portanto, de aliviar-se de
uma tensão interna. Isso lhe dá a possibilidade de reparar, em um nível
simbólico, o que foi a imagem de uma mãe má ou, pelo menos, ajudá-la a
se fazer uma imagem materna mais positiva, tornando-se livre de certos
sentimentos.
No Ocidente, o surgimento de uma literatura dedicada especialmente ao
público infantil ocorreu na modernidade e esteve ligado à mudança no modo de a
sociedade ver a criança. Embora outras formas de criação literária destinadas ao
público infantil tenham surgido ao longo da história, os contos de fadas,
efetivamente, imprimem uma marca decisiva à literatura infantil, já que, por muito
24
tempo, configuram-se como paradigma do gênero. Tais histórias foram moldadas e
remoldadas por adultos, para crianças e para outros adultos. Esse processo de
transmissão oral provocou o acréscimo de elementos novos ou adaptados à história,
tornando-a mais significativa.
O que hoje se denomina literatura para crianças e jovens, teve início na
cultura oral européia, e foi disseminado pelo francês Charles Perrault, ao reunir em
um livro as histórias narradas pelas camadas populares francesas do Ancien
Régime. Ao coletar histórias populares, Perrault inicia um processo de resgate de
uma literatura que vinha sobrevivendo, durante séculos, de boca em boca, sendo
desprezada pela cultura erudita. Perrault não criou as narrativas de seus contos,
mas as adaptou, para que estas se adequassem à corte francesa do rei Luís XIV.
Foram as narrativas folclóricas contadas pelos camponeses, governantas e
serventes que inicialmente forneceram a matéria-prima para esses contos.
Ao documentar os contos, o escritor, um aristocrata, arquiteto da corte,
poeta e admirador do gênero, membro da Academia Francesa, realiza um trabalho
de adaptação, de maneira a introduzir essas narrativas populares à inteligência da
corte, atuando como ponto de contato entre universos diferentes, da cultura popular
à cultura de elite, da qual fazia parte. Nessa perspectiva, Darnton (1986, p. 32)
afirma que:
Os contos de fadas funcionam como uma ponte pênsil, leve como o ar,
balançando ligeiramente ao sabor de brisas diferentes de opinião e
economia, entre a cultura erudita e escrita, através da qual os contos de
fadas famosos chegaram até nós, e a cultura popular, oral e rústica e,
sobre essa ponte, o trânsito se move nas duas direções.
Na transcrição do popular para o erudito, Perrault faz alguns retoques,
suprimindo questões referentes à violência e à sexualidade presentes nos contos
originais, já que visa atender ao gosto refinado dos freqüentadores dos salões
parisienses. As histórias originais não possuíam compromisso com a moral e com os
bons costumes, tendo, freqüentemente, um final trágico ou ilógico, como o famoso
conto Chapeuzinho Vermelho, em que a versão recolhida por Perrault difere
drasticamente da versão conhecida que é uma adaptação do autor. (DARNTON,
1986).
A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho termina sem caçador, sem
resgate da vovó que estava dentro da barriga do lobo, sem final feliz. Perrault
25
manteve a trama da jovem menina que vai à casa de sua vovozinha e torna-se
vítima do malvado lobo, mas, mesmo mantida a essência, a diferença do conto
original para o popularizado por Perrault nessa época são grandes. Para seu
público, os nobres, não interessava a violência e a sexualidade presentes nos
contos da tradição oral, por isso Perrault entrou para a história como primeiro autor a
trabalhar de fato na perpetuação desses contos de forma socialmente aceitável.
Segundo Coelho (1991, p. 90):
Vulgarmente, tais estórias circulam na França (e daí para os demais
países) como “contos de fadas”, rótulo que os franceses usam até hoje
para indicar “contos maravilhosos” em geral. Nessa coletânea, a metade
não apresenta fadas. São apenas “contos maravilhosos”, por existirem em
um espaço “maravilhoso”, isto é, fora da realidade concreta. É o caso de
“Chapeuzinho Vermelho”, “O Barba Azul”, O “Gato de Botas”, e “O
Pequeno Polegar”.
Em 1697, Perrault publicou Contes de ma Mère l’oye (Contos da Mamãe
Gansa) (DARNTON, 1986), dando início à literatura infantil, ainda que, a priori, não
houvesse a intenção de se atingir o público infantil, mas apenas de criar uma forma
de entretenimento para a corte francesa. “[...] ”mère l’oye” é vista como uma velha
fiandeira. É sob esse aspecto, - uma velha que conta estórias, que “mère l’oye” se
universalizou, adquirindo em cada região um nome diferente”. (COELHO, 1991, p.
90).
Apesar de demonstrar grande satisfação em sua minuciosa pesquisa
relacionada à cultura dos camponeses, a aparente curiosidade de Perrault por uma
cultura tão diferente da sua foi uma surpresa para as pessoas do seu meio social,
como afirma o historiador Robert Darnton (1986, p. 89):
A julgar pela aparência, Perrault pareceria ser a última pessoa que,
provavelmente, iria interessar-se por contos populares. Um cortesão,
“moderne” de maneira autoconsciente, e um arquiteto da política cultural
autoritária de Colbert e Luís XIV, ele não tinha simpatia alguma pelos
camponeses e por sua cultura arcaica. No entanto, recolheu as histórias da
tradição oral e adaptou-as para o salão, com um ajuste de tom, para
atender ao gosto de uma audiência sofisticada.
O fato é que essas histórias provenientes de uma cultura arcaica, com as
devidas alterações e supressão dos temas mais polêmicos, passaram a ser muito
bem aceitas pelos nobres cortesãos. Entretanto, esses textos agradaram também a
um outro tipo de público: o público infantil.
26
Pelo fato de se apresentarem como narrativas simples, diretas e acessíveis
à criança, pertencentes a um mundo fantástico, os Contos Maravilhosos e os Contos
de Fadas tornaram-se importantes para o crescimento intelectual, afetivo e infantil,
integrando seu imaginário e passando a fazer parte do cotidiano dos pequenos
leitores. No estudo das origens desse gênero, ainda que a crítica literária relute em
classificar os contos como literatura, constatamos que, ao reunir as histórias
provenientes da oralidade e do folclore europeu, Perrault esboça e documenta não
apenas a cultura de um povo, mas, também traça um panorama sociológico da
mentalidade de uma determinada época. Sobre esse aspecto, Coelho (1987, p. 16),
afirma que:
A verdadeira origem das narrativas populares maravilhosas perde-se na
poeira dos tempos. A partir do século XIX, quando se iniciam
cientificamente os estudos de literatura folclórica e popular de cada nação,
mil controvérsias são levantadas por filólogos, antropólogos, etnólogos,
psicólogos e sociólogos, que tentavam detectar as fontes ou os textos-
matrizes desse caudal de literatura maravilhosa, de produção anônima e
coletiva. Produção que permanecia viva entre o povo e testemunhava, não
só os valores mais originais da língua por ele falada, como também sua
maneira mais verdadeira de ver e sentir a vida.
No que diz respeito às suas fontes, a autora aponta a impossibilidade de se
definir precisamente as origens das narrativas maravilhosas, já que elas vinham
sendo transmitidas oralmente, de geração em geração.
Ao coletar as narrativas populares, Perrault publica histórias, versões
imortais como A Bela Adormecida, A Gata Borralheira, Barba Azul, As Fadas, Pele
de Asno, entre outras. Verificamos que sua intenção não era apenas divertir o
público: seus textos também continham a idéia de moralizar e instruir, de trazer um
ensinamento para seus leitores, a princípio adultos, posteriormente crianças. Dessa
forma, a literatura infantil se constitui e se fortalece como um instrumento de
doutrinação pedagógica.
Seguindo o caminho iniciado por Perrault, um século após a publicação dos
Contos da mamãe gansa, surgem as obras dos Irmãos Grimm, textos que também
tentam redescobrir o mundo maravilhoso da fantasia que sempre seduziu a
imaginação do homem. Essas obras diferiam das obras de Perrault, pois não se
destinavam à leitura da corte, tendo como objetivo preservar o patrimônio literário
tradicional do povo alemão e dispor esse acervo para todos.
27
Na Alemanha, no século XIX, Jacob e Wilhelm Grimm coletavam materiais
folclóricos que, depois, transformavam em matéria-prima para as produções de seus
contos, marcando de outra forma os contos infantis universais. Impulsionados por
motivações de ordem filológica, os Irmãos Grimm viajavam pelo interior da
Alemanha e coletavam dados lingüísticos nas fontes. Conviviam e conversavam com
pessoas de várias procedências, tendo como objetivos levantar elementos
lingüísticos para fundamentar o estudo da língua alemã e fixar os textos do folclore
literário germânico como manifestação cultural de seu povo, procurando registrar as
palavras pronunciadas por cada pessoa, no contexto lingüístico dos contos
relatados. Assim, Coelho (2003, p. 23) diz que:
Em meio à imensa massa de textos que lhes servia para os estudos
lingüísticos, os Grimm foram descobrindo o fantástico acervo de narrativas
maravilhosas, que, selecionadas entre as centenas registradas pela
memória do povo, acabaram por formar a coletânea que é hoje conhecida
como Literatura Clássica Infantil.
Jacob e Wilhelm Grimm registraram por escrito os contos que eram muito
conhecidos em seu país e conservados pela tradição oral. Publicaram o livro Contos
da criança e do lar, do qual fazem parte histórias que também circulavam na França,
como A Bela Adormecida no bosque, Cinderela, Os músicos de Bremen, O Gato de
Botas. Além dessas histórias, outras também foram registradas por eles, como O
lobo e os sete cabritinhos, João e Maria, Rapunzel, Branca de Neve e os sete
anões, entre outras. Após uma série de modificações, os Grimm mudaram o foco de
seu trabalho, e as outras edições de Contos da infância e do lar passaram a ter
como público-alvo exclusivamente as crianças.
Os Irmãos Grimm recolheram novelas populares como documentação do
espírito germânico e as publicaram entre 1812 e 1822, de acordo com Sodré (1987).
O mesmo acontece com Charles Perrault, que publicou seus contos em verso e
prosa, dando forma a Histórias da Carochinha. Com isso, constatamos que:
Tanto em Grimm como em Perrault predomina a atmosfera de leveza, bom
humor ou alegria, que neutraliza os dramas ou medos existentes na raiz de
todos os contos. Daí essa literatura entender-se tão bem com o espírito das
crianças. (COELHO, 1987, p. 75).
Com essas compilações, intensificou-se o redirecionamento de um material,
antes indistintamente apreciado por todos, agora, para o público infantil. Por sua
28
vez, as camadas populares permaneceram, por um bom tempo, envolvidas no
ambiente cultural em que esses contos eram oralmente transmitidos. O
redirecionamento coaduna-se com importantes transformações culturais em curso
na Europa moderna, que, se de um lado engendraram novas concepções de
infância, de outro, levaram os adultos e, principalmente, a elite letrada a
identificarem-se com novos gêneros literários.
É interessante observar que mais de um século separam os contos de
Grimm das histórias de Perrault. Entretanto as inúmeras semelhanças estruturais e
temáticas entre as narrativas revelam o fundo histórico comum das fontes. Em todas,
há a clara intenção de transmitir crenças a serem respeitadas e seguidas pela
comunidade, ou incorporadas pelo comportamento de cada indivíduo. (SILVA,
2004).
Já nos contos modernos, como Cinderela: uma biografia autorizada, de
Paula Mastroberti, foram utilizados elementos tradicionais que possuem fundo
histórico de fontes comuns transplantando-os para um novo contexto, pois o fundo
histórico desses contos transcorre num mundo atual, com cultura diferente da que
existia outrora.
Como já ocorrera com Perrault e com os Irmãos Grimm, com Hans Christian
Andersen, cujas obras foram escritas entre 1830 e 1872, acontece a redescoberta
da literatura oral, aliada à criação de uma literatura própria, com o uso da
imaginação do autor. Ou seja, Andersen fez a comunhão entre os elementos
maravilhosos e o sentimentalismo romântico do século XIX, num misto de
pensamento mágico feérico, presente na memória popular, com o pensamento
racionalista dos novos tempos. Sendo ao mesmo tempo redescobridor e criador,
Andersen é considerado o “pai da literatura infantil mundial”. Para Coelho (1987, p.
76),
Consagrado, hoje, como o verdadeiro criador da literatura infantil, o poeta e
novelista dinamarquês Hans Christian Andersen publicou, com o título geral
de Eventyr (1835-1872), por volta de duas centenas de contos infantis.
Parte deles foi retirada da literatura popular, outra parte foi criação do
próprio escritor.
Andersen, diferentemente de Perrault e dos irmãos Grimm, não se limitou a
recolher e recontar histórias tradicionais que circulavam entre o povo, fruto de uma
criação secular coletiva e anônima. Ele, além de coletar contos, criou diversas
histórias novas, seguindo os modelos dos contos tradicionais e conservando sua
29
principal característica: visão poética misturada com melancolia. Assim, seu livro,
além dos contos de fadas compilados nos países nórdicos, trazia histórias como O
Patinho Feio, A Roupa Nova do Imperador, O Soldadinho de Chumbo, entre outras.
Através do minucioso trabalho de Perrault, Grimm e Andersen, que
realizaram uma verdadeira garimpagem na cultura e no folclore europeu, houve a
redescoberta de um verdadeiro tesouro histórico e cultural, já que, sem o esforço
desses escritores, seriam desconhecidas histórias como Cinderela, Rapunzel, entre
outras. Este tesouro está vivo nas bibliotecas, como descreve Meireles (1984, p. 49):
O gosto de contar é idêntico ao de escrever - e os primeiros narradores são
os antepassados anônimos de todos os escritores. O gosto de ouvir é
como o gosto de ler. Assim, as bibliotecas, antes de serem estas infinitas
estantes, com as vozes presas dentro dos livros, foram vivas e humanas,
rumorosas, com gestos, canções, danças entremeadas às narrativas.
Desde os salões parisienses do século XVII, e reproduzidos continuamente
nas versões de Perrault e dos Irmãos Grimm nestes últimos três séculos, os contos
de fadas permanecem vivos. Contados e recontados, este gênero não se esgota: os
contos de fadas servem, e seguirão servindo, como a forma mais pura de expressão
para artistas de todas as modalidades.
No Brasil, por muito tempo, os contos populares ocuparam lugar na vida das
crianças, principalmente por meio da comunicação oral. Diferentemente do que
ocorreu na Europa, eles não serviram como fonte para os primeiros livros que aqui
foram publicados para o público infantil, a partir da segunda metade do século XIX.
Produziram-se, sim, traduções e adaptações dos contos europeus compilados por
Perrault e pelos Irmãos Grimm, em versões para o público brasileiro. Segundo
Patrini (2005, p. 209):
[...] em certas regiões do Brasil, há a presença ainda viva do contador
tradicional que com um repertório próprio pratica sua arte e transmite seu
saber. Este contador merece, sem dúvida, ser não somente estudado, mas
ter o seu repertório coletado e conservado. A diversidade e
heterogeneidade do nosso patrimônio pedem com urgência um trabalho de
coleta, de catalogação e caracterização dos contos da tradição oral e de
suas versões ainda tão vivas no Brasil.
Desse modo, ao incorporar os modelos estéticos, sociais, lingüísticos, éticos
ou religiosos, o texto revela-os enquanto convenções destinadas a um certo tipo de
público, contribuindo assim para seu conhecimento e transformação. Assim,
30
escrever para um indivíduo em formação torna-se, ao mesmo tempo, uma exigência
da época ou dos planos econômico e social implementados e um ato que pode
sugerir relação com a menoridade da infância. O gênero infantil, apesar de ser
condicionado às circunstâncias de ordem externa, forma-se como distintivo, uma vez
que resiste ao longo da história e torna-se objeto de predileção das crianças, como
descreve Colomer (2003, p. 51):
Os esforços se centraram então, mais do que em procurar marcas
literárias, em definir os traços específicos da literatura para crianças e em
julgar as obras pelo seu êxito no uso das convenções do gênero. Muitos
autores se aplicaram em estabelecer estas características próprias em
listas que incluíam estes traços, como por exemplo o protagonismo de
crianças e jovens, a flexibilidade especial das possibilidades dos
acontecimentos narrados, determinados elementos recorrentes nas tramas
(a prova, a viagem através do tempo, golpes de sorte e formas distintas de
iniciação à idade adulta), etc. Nesta visão se entende que a imaturidade
lingüística, emocional e intelectual dos receptores determina, precisamente,
as limitações inerentes ao gênero, e passou-se a assinalar, repetidamente,
que qualquer gênero literário tem limitações e que a literatura infantil e
juvenil não é uma exceção.
A produção de contos de fadas continua, embora tenha sofrido mudanças
formais, ao atender às exigências da linguagem moderna. O modo como a realidade
foi transposta para os livros infantis permite que o leitor as atualize constantemente
e, por conseguinte, traga a obra para o presente, sem, no entanto, perder de vista a
sua época de produção. Nesse sentido, percebemos as mudanças ocorridas,
através dos tempos, no Conto Cinderela, de Perrault, de Grimm e Cinderela: uma
biografia autorizada, de Paula Mastroberti.
Ao longo destes três séculos, a literatura para crianças e jovens vem
tomando outros rumos, visando a uma nova consciência de mundo e fugindo, assim,
da pura exemplaridade ou da transmissão de valores já definidos ou sistematizados,
fato demonstrado pela sua flexibilidade através dos tempos “[...] há uma relação
direta entre as peculiaridades da vida histórico-cultural desses povos e a natureza da
literatura que eles criaram ou adotaram, adaptando-a às exigências específicas de
cada época ou região”. (COELHO, 1991, p.22).
Atualmente, a literatura infantil ocupa um grande e importante espaço de
produção, caracterizando-se como uma literatura de qualidade, admirada por
crianças e adultos. Para Coelho (2000, p. 134):
Em nossos dias, a produção literária destinada às crianças e jovens
continua em franca expansão. Escritores, escritoras, artistas plásticos,
31
designers multiplicam suas invenções, cujo espaço começa a ser
magicamente ampliado pela magia eletrônica e dos computadores.
Nesse meio de efervescência criativa, multiplicam-se livros onde vêm sendo
utilizadas ilustrações e diferentes linguagens, segundo Coelho (2000, p.134). A
visualidade imagísitica (através dos desenhos, pinturas, colagens, montagem,
fotografia, etc.) ganha igual (ou maior) importância do que o texto. Ou melhor, o
“texto” passa a ser a fusão de palavras e imagens (ou narrativa-em-imagens, uma
história-sem-texto) que desafia o olhar e a atenção criativa do leitor para a
decodificação da leitura.
1.4 Novos contos de fadas
Para contextualizar melhor este estudo, serão examinadas as alterações dos
contos de fadas na cultura vigente, estabelecendo suas influências na produção
literária, para, assim, buscar a compreensão do que seja um novo conto de fadas.
Contos de fadas, contos populares, contos maravilhosos, contos de
encantamento e contos orais, são narrativas que traduzem o imaginário humano
através de séculos, costurados pela palavra que expressa desejos e tensões, o
semear de sonhos capazes de reordenar o mundo do não-vivido, da revelação das
verdades humanas. Talvez, por isso, iremos encontrar diversas versões para o
mesmo conto através dos tempos: no entanto, algo de essencial, que nem sempre é
dito, continua imutável e pode ser visto através das suas imagens.
Do passado imaginário aos dias de hoje, percebemos que Cinderela, Gata
Borralheira, entre outros personagens, não pertencem apenas ao mundo geográfico
fixo. Antes, personagens e aventuras revelam-se através de um intrincado mapa de
narrativas, e o encontro entre leitor e texto literário acontece nas leituras e releituras.
Atualmente, esse gênero literário pode ser entendido sob outro prisma,
quando Machado (2004, p. 15) diz que
Os contos milenares são guardiões de uma sabedoria intocada, que
atravessa gerações e culturas; partindo de uma questão, necessidade,
conflito ou busca, desenrolam trajetos de personagens exemplares,
ultrapassando obstáculos e provas, enfrentando o medo, o risco, o
fracasso, encontrando o amor, o humor, a morte, para se transformarem ao
32
final da história em seres outros, diferentes e melhores do que no início do
conto.
Esse gênero, mesmo ganhando seu espaço no mercado editorial, não deixa
de ser uma expressão artística, revela a visão do mundo, a cultura e o momento
histórico em que o artista vive. Para Coelho (2000, p. 150-151), é preciso considerar
[...] obras inovadoras e [...] de obras continuadoras. O que as diferencia
entre si (partindo do princípio que ambas atingiram o nível do literário
autêntico) é, basicamente, a intencionalidade que as move: as primeiras
questionam o mundo – procurando estimular seus pequenos leitores a
transformá-lo um dia; as segundas representam o mundo – procurando
mostrar (ou denunciar) os caminhos ou os comportamentos a serem
assumidos (ou evitados) para a realização de uma vida mais plena e mais
justa. Dessa intencionalidade (consciente ou inconsciente) derivam as
diferenças literárias que as distinguem.
Ambas as diretrizes (se bem realizadas literariamente) cumprem papéis
importantes e complementares no processo de evolução em que estamos
envolvidos e no qual tradição e inovação se defrontam. Evidentemente,
está implícito que o primeiro objetivo das obras, em qualquer dessas duas
direções, é dar prazer ao leitor, diverti-lo, emocioná-lo ou envolvê-lo em
experiências estimulantes ou desafiantes.
O valor literário de cada livro não depende, obviamente, do simples fato de
ele pertencer a uma ou a outra diretriz, mas sim da coerência orgânica (que
deve existir em toda obra literária) entre a visão de mundo que o alimenta e
as soluções estilísticas/estruturais escolhidas pelo autor, tendo em vista o
momento em que escreve.
A literatura infantil contemporânea revitaliza os contos antigos, gêneros de
origem folclórica e contos dos tempos de Perrault e Grimm, dando às histórias novo
tratamento e levantando discussões sobre temáticas atemporais.
Os contos contemporâneos, como forma literária, têm como característica a
inovação realizada por um grupo de escritores que, ao criarem uma imagem
diferente, contestam os estereótipos veiculados por um tipo de produção
convencional, que perdurou durante muito tempo nas obras dirigidas à infância.
Segundo Coelho (2000, p. 131-132):
Realidade e imaginação adquirem igual importância no novo universo
literário infantil, onde se cruzam linhas narrativas bem diferentes entre si –
desde a que se volta para o real-objetivo, fixado diretamente por um olhar
crítico e questionador, até a indefinição de fronteiras entre a Realidade e o
Imaginário. Em qualquer um desses registros está patente ou latente a
valorização da palavra literária (ou da imagem) como agente de criação de
novas realidades ou de nova consciência-de-mundo.
Essas diferentes posturas podem ser detectadas em linhas narrativas como
a do realismo cotidiano (registrado de modo crítico, lúdico ou documental) e
a do realismo mágico (no qual a realidade concreta e o imaginário se
misturam). Em diferentes estilos, formas ou linguagens (principalmente a
da imagem, a visual), a invenção literária nos anos 70-80 oferece ao
pequeno leitor histórias vivas e bem-humoradas que buscam diverti-las e
33
ao mesmo tempo torná-las conscientes de si mesmas e do mundo com que
devem entrar em relação dinâmica e afetiva.
Essa literatura assume sua modernidade como realismo maravilhoso. Para
estabelecermos a relação, tomamos a mágica como ponto de partida, contribuindo
para forjar uma estética diferente daquela que é apresentada como modelo de
criação.
Hoje, a intertextualidade e o dialogismo, cada vez mais, são utilizados por
escritores, até porque o ato criador é o entrecruzamento de textos, e esses são
contaminados pela prática atual. O leitor torna-se um interlocutor ativo no processo
de significação, na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o autor.
Segundo Zilberman (1982, p. 66):
O texto vive de uma dinâmica interna, que denomina estrutura, e externa, a
saber, sua relação com a tradição literária, passada ou simultânea.
Portanto, ele é necessariamente transformação: enquanto organização
onde os camponeses interagem uns sobre os outros; e enquanto forma em
mutação ao longo da história, contrariando as expectativas
institucionalizadas pela presença de uma convenção literária. É a partir daí
que o leitor é constantemente invocado e componente fundamental do
processo.
Histórias infantis renovadas como Cinderela: uma biografia autorizada,
narram a partir de uma outra história, provocando a inteligência e o senso crítico
infantil, por sua relação intertextual com os contos de fadas. Apenas com uma leitura
atenta, percebemos que a não linearidade da história utiliza-se de elementos de
outras histórias. Implica uma nova versão da realidade, mais complexa do que a
narrativa anterior. Mastroberti, em seu conto, faz uma paródia do conto dos irmãos
Grimm. A capa remete a livros de biografias autorizadas de celebridades, muito
presentes na cultura atual.
Deve-se salientar, sobre este narrador, o fato de ser ele o autor desta
“biografia autorizada”, literatura em moda, muito difundida no mundo inteiro. A
escrita de biografias autorizadas, ou não, que narram e descrevem a vida de
pessoas há séculos já era utilizada. Bakhtin (1999) ao tratar do contexto de Rabelais
na Idade Média e Renascimento, aborda que na obra rabelaisiana, na França, há o
registro da prática de recolher os acontecimentos da vida privada, social e política,
mesmo que entorpecidos e abafados, para se transformarem em biografias. No
Brasil, segundo Lajolo; Zilberman (1985), até 1950, o passado histórico brasileiro
34
alimentou a literatura infantil (para crianças) através da biografia de vultos da história
brasileira.
Há uma ruptura na narrativa Cinderela: uma biografia autorizada, e essa
ruptura descaracteriza o estereótipo de conto de fadas, contrariando alguns modelos
do gênero, numa perfeita paródia bem estruturada, causando algum grau de
estranhamento. De um modo leve e suave, esses contos estabelecem uma
cumplicidade com o leitor rumo à subversão dos contos, das estruturas pré-
acabadas, levando humor, ironia e diversão ao público leitor.
No entanto, apesar desse nível mais complexo de leitura e de
desvirtualização dos contos de fadas, o livro não perde o encanto nem a magia,
típicos do gênero. Há, de certa forma, um verdadeiro conto de fadas na negação do
próprio conto. Assim, a paródia, como na arte contemporânea, processa, no campo
literário, a inversão dos padrões narrativos clássicos. Expressa, através do riso, a
dessacralização dos valores éticos, subvertendo padrões de comportamento social
e, a partir desses elementos, inverte o ethos das personagens e repõe a oralidade
das narrativas antigas na escritura carnavalizada.
Nesse universo às avessas das histórias infantis da atualidade, o imaginário
dos contos de fadas é substituído pelo compromisso com a verossimilhança,
valorizando o cotidiano.
Essa literatura propõe, em sua maneira de se desenvolver, uma história rica
em conteúdo, uma leitura ágil e ativa não permitindo a acomodação do leitor,
tornando-o não apenas um elemento de recepção da mensagem, mas sim parte
integrante dela, um agente que possui a missão de perpetuar a história. Para
Hutcheon (1985) é necessário ter conhecimento das obras clássicas para
compreender o texto alusivo ou paródico, obrigando o leitor trabalhar, no sentido de
readquirir a herança ocidental.
A recepção completa-se quando o leitor compara a obra com os elementos
de sua cultura, sendo as informações e experiências construídas e acumuladas pelo
recebedor associadas à sua leitura. Assim, o leitor e o texto dialogam, constituíndo
um ato comunicativo. Entretanto, isso ocorre de forma única, diferentemente de
outros atos comunicativos, já que a troca de informações ocorre em momentos
distintos; o escritor escreve/comunica em um determinado momento, e o leitor
recebe/comunica em outro. Conforme Aguiar et al. (2001, p. 148):
35
O método recepcional baseia-se na idéia de que a obra literária é um
cruzamento das concepções que sobre ela se fizeram e se fazem nos
vários contextos históricos em que foi e é lida. Assim sendo, uma obra é
atualizada a cada leitura, isso porque sua recepção já vem concebida na
própria estrutura. No momento de sua produção, o leitor já está presente,
pois o autor, ao escrever o texto, leva em conta o tipo de receptor que tem
em vista, criando, assim, o sujeito possível a quem ele pretende falar, com
quem quer conversar.
Isso acontece porque o escritor não explicita tudo o que tem a dizer,
deixando espaços em branco para o leitor completar. Por exemplo, ao
narrar uma história, não anuncia todos os passos dos personagens, dá
saltos no tempo e no espaço e não descreve completamente as criaturas
que inventa. Cabe ao leitor construir as imagens mentais e ir
acrescentando dados de acordo com suas vivências, suas leituras, enfim,
sua compreensão do mundo. Só assim a leitura adquire um sentindo.
Entre o texto e a leitura há o distanciamento e a liberdade do leitor para
interpretar o que foi escrito, completando-o. O discurso oral, por sua vez, apresenta
o distanciamento em menor grau, uma vez que o narrador, pela entonação da voz,
gestos e pela forma de conduzir a narrativa, condiciona o ouvinte ao entendimento
do narrado.
Em contrapartida, o texto oral é sempre aberto à participação do ouvinte,
sendo essa a essência da oralidade. O texto oral pode ser diferente cada vez que for
narrado, pois a recriação e a invenção fazem parte dele. O autor contemporâneo cria
e recria com liberdade, usando fontes populares, exatamente como ocorria séculos
atrás, conferindo aos contos novas versões. Segundo Coelho (2000, p. 154-155):
A consciência desse poder criador – palavra-imagem – é uma das Bases
da Literatura Infantil contemporânea que se vem revelando como um dos
férteis campos de experimentação do verbal e do visual para a invenção de
novos modos de ver, sentir, pensar, etc. A partir dessa nova interpretação
da palavra como construtora do real vai-se difundir a técnica da
metalinguagem, a palavra sobre a palavra. A preocupação com o como
narrar se sobrepõe a o que narrar. O experimentalismo verbal é explorado
nos jogos verbais, brincadeiras com a linguagem, etc. Explora-se também a
técnica da intertextualidade (a absorção de um texto antigo por um texto
novo), técnica resultante da consciência de que não há texto original, pois
cada texto novo depende visceralmente de um texto anterior e este, de
outro, e assim ad infinitum, até chegar até chegar a um hipotético (ou
esquecido) texto inaugural. (Nessa linha estão as sátiras, paródias ou
reinvenção dos antigos contos de fadas, fábulas, contos maravilhosos,
etc.).
Dessa forma, a linguagem se transforma no processo de reutilização de
fontes populares orais para a forma escrita. Quando manifestações de cunho
seculares passam a ser incorporados aos livros, essa integração provoca uma
mudança estrutural, tanto em termos de conteúdo quanto de forma. Assim, a
36
renovação de histórias é uma forma, proposta por autores contemporâneos, de criar
uma imagem capaz de contestar estereótipos e modelos moralistas que se
mantiveram atrelados às obras infantis por muito tempo.
Nesse sentido, Sant’Anna (2003, p. 27-28) comenta:
[... ] a paródia, por estar do lado do novo e do diferente, é sempre
inauguradora de um novo paradigma. De avanço em avanço, ela constrói a
evolução de um discurso, de uma linguagem, sintagmaticamente. Em
contraposição, se poderia dizer que a paráfrase, repousando sobre o
idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem. Ela se oculta
através de algo já estabelecido, do velho paradigma.
Mesmo de origem tão antiga, o conto de fadas sempre se fez presente na
evolução do homem em sociedade. As histórias narradas pelos contos atraem
ouvintes de todas as idades, demonstrando prazer no encontro com o
encantamento. Tornam-se, invariavelmente, o reflexo de um momento, servindo
como um instrumento valioso no estudo da natureza humana e da discussão a
respeito da transformação da sociedade.
Meireles (1984, p.36) argumenta que:
Diríamos que tudo é novo, que os livros infantis se multiplicaram
imensamente [...] Mas aos poucos vemos que muitas dessas narrativas nos
são muito familiares, apenas um pouco desfiguradas, às vezes, pela
redação ou a apresentação. Haverá narrativas novas. Inspiradas muito de
perto noutras que conhecemos. Haverá mais novas ainda, atuais e
originais. Destas, a criança escolherá as que vão perdurar; as que se vão
incorporar àquele tesouro que vem de longe. Outras, desaparecerão
suavemente, depois de viverem seu precário momento, apesar de tantas
cores, tantas ilustrações; as vezes, tanta propaganda, e até da animadora
venda de algumas edições.
Podemos afirmar que a Cinderela, dos Grimm, é uma paráfrase da obra de
Perrault, visto que, de acordo com Discini (2004, p. 205), “[...] a paráfrase, como
qualquer situação de comunicação, tece simulacros [...]”
Quando escritas como paródias, as produções atuais exigem do leitor um
conhecimento prévio do texto clássico para que o entendimento se estabeleça. É o
que propõe o conto Cinderela, de Paula Mastroberti, em que encontramos a paródia.
Para Discini (2004, p. 11), [...] na intertextualidade não há fronteiras, não há
linha divisória entre o eu e o outro, não há ruptura. Intertextualidade é a retomada
consciente, intencional da palavra do outro, mostrada, mas não demarcada no
discurso da variante”.
37
Discini (2004) explicita que não é possível uma análise que se faça num
contexto fechado, numa única linguagem, um único sujeito de um discurso. Deve-se
entender que numa análise do corpus proposto, há a palavra do outro, junto com
outras palavras que estão incorporados nos contos, havendo um diálogo entre textos
que permeiam as variantes intertextuais, que estão presentes no texto-base.
Do ponto de vista estrutural, houve poucas mudanças. Entretanto, com a
passagem do tempo, o comportamento dos personagens centrais, seus anseios
mais profundos e suas idéias de felicidade apresentam constantes reviravoltas nos
enredos. O interesse em redescobrir o universo fantástico dos contos de fadas a
cada releitura comprova sua versatilidade e, ao mesmo tempo, oferece ao leitor um
instrumento de aproximação com o passado, permitindo um diálogo com tempos
remotos, requisito indispensável para discussão do momento presente.
A narrativa de histórias tem acompanhado o desenvolvimento da
civilização, de maneira variável; os contos mudam de configuração e
adquirem diferentes significados conforme as pessoas que os contam e os
contextos a que pertencem. (CANTON, 1994, p. 29)
Enredos modificam-se e tornam-se coerentes com as transformações da
própria sociedade, em todos os aspectos. Neste ponto, Canton (1994) acredita que
somente a literatura moderna desse gênero pode esvaziar conceitos moralizantes e
incompatíveis com o nosso tempo.
A literatura infantil nasce do desejo de levar o leitor ao universo
desconhecido da aventura, seja por mar, por terra ou pelos ares. Seria uma
expressão literária longe da perspectiva da reflexão sobre o próprio código. Esse
tema tão complexo e reflexivos, estaria (ou deveria estar) à margem de tal
expressão, se considerar o público e sua expectativa. Antes, interessariam
mecanismos de linguagem, em que a imaginação fosse acionada e os efeitos
catárticos fossem atingidos. Interessaria, sobretudo, apagar as marcas da
enunciação, para fazer emergir o mundo da ficção, pois assim estamos habituados.
(ZILBERMAN, 2003).
Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, representando a literatura
universal em meados do século XIX, e Monteiro Lobato, representando a literatura
brasileira no início do século XX, alteraram o estatuto da literatura infantil. Alteraram
esse “efeito fantasia” para voltar-se ao próprio código. Ambos criaram personagens
similares: Alice e Emília questionavam, cada uma ao seu modo, a fantasia, o contar.
38
Constata-se, por esse prisma, que existe intertextualidade entre a obra da
autora Mastroberti com os contos de fadas de Perrault e Grimm, não só porque os
conteúdos de ambos estão relacionados ao gênero de fadas, mas também ao uso
de temáticas comuns. Através da sátira ou do jogo descompromissado, percebemos
o questionamento das estruturas clássicas, formas estáveis e definidas, que também
são elementos decisivos na construção desse universo fantástico.
Diante da multiplicidade de aspectos e da heterogeneidade de formas
assumidas pela produção literária e artística que, através dos tempos, vêm sendo
consagradas pelos pequenos leitores, Coelho observa que o artista contemporâneo
está atento às transformações à sua volta e realiza o que chamamos de coerência
orgânica entre sua visão do mundo e a estética que emprega.
Coelho (2000, p. 151) afirma :
Enfim, o que hoje define a contemporaneidade de uma literatura é sua
intenção de estimular a consciência crítica do leitor; levá-lo a desenvolver
sua própria expressividade verbal ou sua criatividade latente; dinamizar sua
capacidade de observação e reflexão em face do mundo que o rodeia; e
torná-lo consciente da complexa realidade em transformação que é a
sociedade, em que ele deve atuar quando chegar a sua vez de participar
ativamente do processo em curso.
Hoje, são inúmeras as edições dos contos de fadas tradicionais, como
também são inúmeros os autores que os revisitaram, dando sua própria versão
literária ou fazendo novas viagens por antigos caminhos. Novaes Coelho (2000)
observa que processos narrativos arcaicos são redescobertos e recriados de acordo
com a perspectiva contemporânea. Desse modo, temas considerados universais, e,
portanto, atemporais, são tratados com uma nova roupagem, de acordo com as
peculiaridades de seus novos narradores e as circunstâncias de sua época.
Novos contos de fadas propõe uma revisão estética, apresentando novos
conceitos, novos valores e modelos comportamentais; a investigação dessas novas
formas de literatura comprova a capacidade de eternizar as histórias da cultura
folclórica na forma escrita e revisitada.
A necessidade de renovar os contos de fadas tradicionais é imposta pelo
surgimento de outras formas narrativas, conforme Canton (1994, p. 26):
Uma forma de libertar os contos de fadas de seu status ”mitificado” é
restaurar a historicidade dos textos e levar em conta revisões pessoais e
reinterpretações das histórias. Isso se aplica tanto às novas
reinterpretações de contos preexistentes em outros meios quanto à criação
39
de novas histórias, como na edição de Zipes de Don’t bet on the prince
(Não aposte no príncipe), uma coleção contemporânea.
Por se tratar do resultado da criação pessoal, fruto de autoria coletiva, o
conto de fadas pode ser considerado como uma rica fonte de investigação para
estudos em diversas áreas do pensamento. Kátia Canton (1994) considera-os como
documentos socioistóricos e estéticos, salientando que é errôneo pensar que
autores como Perrault e os irmãos Grimm não adicionaram às narrativas recolhidas
na tradição oral suas próprias impressões e suas visões de mundo.
Canton (1994, p. 12) afirma que essas versões do conto
São trabalhos criados por autores específicos, projetados em contextos
sócio-históricos e culturais particulares. Perrault escreveu seus contos
segundo os códigos da corte de Luís XIV, ao passo que os Grimm
imprimiram novos valores da burguesia alemã às suas histórias. É por isto
que esses contos devem ser reavaliados e encarados como documentos
sócio-históricos e estéticos tanto quanto como resultado de criação
pessoal.
Sob forma oral ou escrita, cada narrador conta a seu modo, acrescentando
particularidades, sofisticando, resumindo ou adicionando passagens e personagens.
A linguagem simbólica, cheia de fantasia e magia, faz com que as narrativas
maravilhosas pareçam corresponder aos anseios da modernidade. Os contos de
fadas foram revisitados com maior intensidade a partir dos anos 1970. Autores como
Marina Colassanti e Ana Maria Machado utilizaram o gênero de maneira
diferenciada daquela de tempos atrás, fugindo dos conceitos moralistas que os
contos recebiam.
Como a passagem do tempo traz em si mudanças no comportamento social
e artístico, a releitura dos contos de fadas é considerada como "[...] uma atitude
alegórica, uma historicidade nostálgica que inclui o empréstimo de referências do
passado, paralelamente, na arte e na arquitetura, a uma volta à narrativa, ainda que
fragmentada". (CANTON, 1994, p. 22).
Essa atitude alegórica está ligada à idéia de símbolo e processa-se a partir
da utilização de significados que se refere a outros conceitos. A mensagem de uma
obra alegórica está associada a referências anteriores e pressupõe algum
conhecimento por parte do receptor. Histórias são lidas através de outras histórias e,
mesmo fragmentadas, são reconhecíveis. O processo de alegoria, permeado pelo
elemento maravilhoso, permite que se discutam assuntos que nem sempre estão
disponíveis em textos tradicionais. (CANTON, 1994).
40
Na alegoria e na paródia, elementos convencionais são reorganizados
dando margem a novas perspectivas de interpretação. As constantes releituras de
narrativas encantadas refletem a preocupação do artista em estabelecer contato
com o leitor. A autora lembra que, diferentemente da abstração, a releitura de contos
de fadas permite maior interação com o leitor, já que este reconhece as matrizes da
matéria narrada. Para Canton (1994, p. 59):
Desde o seu surgimento como produto literário na Europa, no século XVII,
o conto de fadas representou um diálogo contínuo com as tradições
passadas e presentes. É a sua própria maleabilidade que o torna um
elemento prototípico da herança cultural ocidental. É o seu potencial para
transformações constantes e impulsos utópicos que cria sua força
narrativa. As estruturas das histórias de contos de fadas foram
constantemente transformadas de forma paralela às alterações sócio-
históricas. Estas transformações foram incorporadas internacional e
interdisciplinarmente, já que os contos foram escritos de diversas maneiras,
narradas em diferentes línguas e encenados sob variadas circunstâncias.
Quando um novo produto cultural – seja um livro, um balé, ou uma peça de
dança – teatro contemporâneo – utiliza o conto de fadas como paradigma,
estabelece um diálogo, mesmo que não exclusivo, com Charles Perrault e
a França do século XVII e com os Irmãos Grimm na Alemanha do século
XIX.
Dessa forma, a autora afirma que a paródia, como estilo de escrita que
modifica o texto sem perder o verdadeiro significado, conduz a uma visão conjunta:
inovação e convenção, ou seja, incorpora o passado, respeitando-o e mantendo-o
como padrão, acrescentando um novo sentido, permitindo que histórias de tempos
distantes sempre se tornem adequadas com a realidade, seja ela qual for. A autora
também atenta para o dado de que,
[...] enquanto a cultura de massa homogeiniza o significado, esvaziando-o
de seu contexto original, a paródia pós-moderna tenta enfrentar essa
uniformização e mercantilização afirmando ironicamente as diferenças, em
vez da identidade ou da alteridade alienada. (CANTON, 1994, p. 144).
Ao comentar sobre paródia, Huchteon (1985), considera-a como forma para
a modernidade dialogar com o passado e apresenta o termo reapropriação, com o
sentido de “empréstimo”, “roubo paródico”.
Sant’Anna (2003, p. 08), afirma ser a paródia “[...] uma forma de a
linguagem voltar-se sobre si mesma”, discutindo também o termo intertextualidade.
Afirma que a paródia ocorre quando um autor utiliza textos de outros, opondo-se a
ela, a intertextualidade acontece quando o escritor retoma e reescreve sua obra.
Comentando diferentes reações estabelecidas entre textos diferentes,
Affonso Romano Sant’Anna discute as noções de deslocamento e desvio,
41
estanhamento que ocorre quando “[...] tirado de sua normalidade, o objeto é
colocado numa situação diferente, fora de seu uso” (2003, p. 44-45), isto é, quando
um texto recebe outro texto como contexto:
Assim como um texto não pode existir fora das ambivalências
paradigmáticas e sintagmáticas, paráfrase e paródia se tocam num efeito
de intertextualidade, que tem a estilização como ponto de contato. Falar de
paródia é falar de intertextualidade das diferenças. Falar de paráfrase é
falar de intertextualidade das semelhanças. (SANT’ANNA, 2003, p.28).
Os novos contos de fadas são revisões estéticas e contam uma história
além da trama literária (ZILBERMAN, 2003), abrem espaço para julgamentos e
interpretações que variam de leitor para leitor. Como em um jogo, a paródia de
histórias antigas configuram na tentativa de inovação de convenções, tanto do ponto
de vista formal quanto de seu conteúdo. Novos contadores de histórias assimilam
referências ancestrais e as modificam, apresentando soluções condizentes com seu
tempo, daí a validade da releitura desses contos.
No momento em que um autor contemporâneo seleciona um conto clássico
e o transforma em uma paródia, ele assume uma postura renovadora, desafiando o
pré-estabelecido através da revisão dos códigos, da subversão de padrões
comportamentais e estilísticos. A paródia que é utilizada nas obras preenche novos
significados, símbolos e mensagens que questionam o passado, readaptam
situações e propõem novos conceitos. A releitura libera padrões estabelecidos e
estabilizados através dos tempos.
Utilizando índices que remetem a outros conceitos, o artista atual permite-se
a interação com o público. Coelho (2000) afirma que a ênfase no receptor é a
característica que melhor define a contemporaneidade de uma obra. Sabendo que
seu produto deve despertar no leitor a consciência das transformações do mundo, o
autor contemporâneo conduz sua obra em direção à crítica e à reflexão. A autora
defende a importância da literatura infantil no sentido de fornecer instrumento ao
leitor jovem, levando-o a amadurecer o olhar em direção ao mundo em sociedade.
Coelho (2000) defende que a literatura infantil é um gênero em que o leitor
poderá fazer uso para alcançar um amadurecimento quanto à sua vida intelectual e
social.
A literatura, em especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir
nesta sociedade em transformação: a de servir como agente de formação,
42
seja no espontâneo convívio leitor/livro, seja no diálogo leitor/texto
estimulado pela escola. (COELHO, 2000, p. 151).
A literatura infantil, assim como todos os outros gêneros de literatura,
apresenta-se como rica fonte de conhecimento e proporciona a renovação de
conceitos e ampliação da percepção do mundo do leitor. De maneira alegórica, as
histórias infantis, sejam elas quais forem, expõem um momento histórico, um
contexto social, conflitos e contradições, sem o risco de transformar essas histórias
em lições moralistas.
Afirma Zilberman (2003, p. 132) que,
Nessa medida, o gênero pode exercer o propósito de ruptura e renovação
característico da arte literária, evitando que a operação de leitura
transforme seu beneficiário num observador passivo dos produtos triviais
da indústria cultural. Em outras palavras, pode impedir que seu leitor se
torne um dissidente da literatura e arte de seu tempo e um mero
consumidor de uma cultura despersonalizada.
Zilberman observa que o texto literário deverá romper com as expectativas
do leitor e, para tal, precisa ter uma mensagem genuína e criativa. O estranhamento
provocado definirá o caráter inovador do texto, até porque toda novidade causa, a
princípio, uma certa restrição e gera, ao longo do tempo, o incentivo necessário para
manter a atenção do leitor; sua originalidade acarretará no rompimento com
modalidades ordinárias de expressão e também com clichês ou ideologias de certa
época.
Para a autora, uma obra literária criativa é inovadora na sua forma inusitada,
explora através de linguagens o rompimento e questionamentos ideológicos,
rompendo com os padrões presentes de visão de realidade.
Por isso, o valor literário tão-somente emergirá da renúncia ao normativo, o
que implica abandono do ponto de vista adulto, ampliação do horizonte
temático de representação e incorporação de uma linguagem renovadora,
atenta ao discurso da vanguarda, às modalidades da paródia, enfim,
acompanhando a evolução da arte literária, que se dá sempre como
ruptura e não como obediência. (ZILBERMAN, 2003, p. 69).
O grande dilema da literatura infantil é o fato de que o livro resida como fator
de uso pedagógico conforme descreve a autora, e, ao mesmo tempo em que
pretende ser reconhecido como obra de arte. Mesmo nos contos de fadas, em que a
forma é aparentemente fechada e desgastada, a originalidade também pode se
fazer notar na re-utilização do gênero se vier acrescida de crítica e questionamento.
43
No Brasil, na época em que sucedeu o início da década de 1970, ocorreu
grande movimento editorial direcionado para o público infanto-juvenil, responsável
por um novo conceito em literatura, revolucionando esse gênero.
O período foi tão importante na história dos contos de fadas que permitiu um
crescimento extraordinário da literatura infantil e de todo o seu processo de
renovação, o que se reflete até hoje. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2004). A qualidade
alcançada pela literatura infantil, no Brasil, permitiu que esse gênero se tornasse
uma forma de arte, e o livro infantil, uma modalidade de conhecimento.
Assim, os autores contemporâneos transformam suas obras em diálogos
ativos com seus leitores, sejam eles crianças ou adultos, buscando, nas suas
histórias mágicas, não apenas a atenção do leitor, mas também provocar alguma
mudança. Para Machado (2004, p. 42):
A experiência da história, assim como a apreciação estética do quadro, é
singular e inquestionável; depende do momento da história pessoal de
cada expectador e é sempre uma conversa entre dois reinos de imagens: o
reino de imagens presentes na obra de arte e o reino de imagens que
constitui a experiência de mundo de quem entra em contato com essa
obra.
Temas que constantemente geram discussões na literatura infantil
contemporânea estão ligados às questões modernas. As obras servem-se do
distanciamento próprio das narrativas alegóricas, atingindo, através da
atemporalidade do “Era uma vez...”, que universaliza sua temática central, a
liberdade de escolha.
Segundo Khéde (1986, p. 16), “Pode-se dizer que os contos de fadas, na
versão literária, atualizam ou reinterpretam, em suas variantes, questões universais
como os conflitos do poder e a formação dos valores, misturando realidade e
fantasia no clima do ”Era uma vez...”.
Segundo Corso; Corso (2006, p. 27):
O elemento fantástico presente enquanto maravilhoso nessas narrativas
cumpre a função de garantir que se trata de outra dimensão, de outro
mundo, com possibilidades e lógicas diferentes. Assim fazendo, os
argumentos da razão e da coerência já são barrados na porta, e a festa
pode começar sem suas incômodas presenças, bastando pronunciar as
palavras mágicas Era uma vez [...] como uma senha de entrada.
A reflexão sobre essas novas tendências nos textos infantis, alicerçada pelo
gosto do público leitor e acompanhados de uma análise literária criteriosa podem
demonstrar as produções realizadas para este público. A visão da literatura universal
44
destinada ao público infantil vai exatamente configurar os rumos dessa literatura e
da carga literária presente. A seguir, identificaremos algumas temáticas e diretrizes
que durante séculos permearam a literatura infantil, para observarmos sua
realização no presente.
1.4.1 As fadas
Os contos de fadas, como seu próprio nome já diz, trazem em si uma
herança do extinto paganismo nas sociedades ocidentais, usando em seu enredo
uma divindade que representa o destino, pois a palavra “fada” deriva do latim “fatum
que significa destino, fatalidade, fado. Mesmo com certa dificuldade para encontrá-
las entre as crenças e a imaginação das crianças cristãs, não tardou para que as
fadas passassem a habitar o imaginário popular, como uma figura praticamente
obrigatória em qualquer história que indicasse alguma esperança de final feliz.
Diversas ciências estão envolvidas no estudo dos contos de fadas,
passando da ciência do Folclore à Psicologia, da Antropologia à História das
Mentalidades. (WARNER, 1999). O interesse dessas ciências do pensamento está
intimamente ligado à sua difusão entre os diversos públicos através dos tempos,
uma vez que os contos de fadas já encantaram e fascinaram pessoas de todas as
idades, em todas as partes do mundo. O enredo é um dos responsáveis pelo poder
de atração, através do elemento maravilhoso, oferecendo ao leitor ou espectador da
história todos os elementos mágicos que transformam, mesmo que por alguns
minutos, a sua realidade.
Como visto anteriormente, a fantasia foi se transformando e seu tratamento
foi sendo modificado conforme a passagem do tempo e as reapropriações culturais.
Dessa forma, o maravilhoso deixou de ser uma forma ideológica do dominador, para
transformar-se em elemento questionador de um sistema estabelecido.
A moda dos contos de fadas iniciou entre 1697 e 1700, quando a
comunicação entre escritores e público começou a se estabelecer por intermédio da
imprensa. Entretanto, não se tratou apenas de moda, mas sim o aproveitamento da
literatura oral, que, durante longo tempo, constituiu uma das expressões artísticas
45
populares e que, com o fortalecimento da burguesia, mesmo sendo transformada,
ganhou espaço, mantendo-se fiel à origem ou transformando-se ao gosto da época.
O termo contes de fées é, todavia, estranhamente inapropriado, já que nem
sempre existem fadas nas histórias. Na verdade, ele foi criado para
distinguir o que pertencia aos incultos e camponeses do que era culto e
aristocrático. Formulando um termo distinto, “conto de fadas” os escritores
também estabeleceram a distinção entre o que vinha diretamente da
experiência e da luta social e o que se transformou em fantasia. (CANTON,
1994, p. 33).
Reconhecidos como forma de arte, os contos orais dos camponeses
passaram por transformações para serem empregados entre as classes mais altas,
com mudanças de enredo e até mesmo o perfil de muitos personagens. No entanto,
a história clássica, retirada da boca do povo, não se perdeu, e manteve sua
essência, possível de ser percebida até hoje, mesmo após ter sofrido tantas
adaptações ao longo dos séculos. (PONDÉ, 1986).
Face ao racionalismo dominante, muitos filósofos, especialmente do século
XVIII, desprezavam o valor dos contos de fadas, uma vez que histórias envolvendo
uma divindade pagã não poderiam ofertar-lhes a dose de realismo que julgavam
necessária para o desenvolvimento da sociedade. Entretanto, uma grande parte do
público, particularmente as pessoas simples, continuaram a lê-los. Isso se explica
pelas sucessivas reedições das obras de Perrault, tanto para consumo popular,
como para o público culto, que recebiam edições de livros ilustrados, com produções
mais elaboradas.
Não tardou para que os contos entrassem na vida social, em especial das
crianças, pois, quando se fala em fadas, a imaginação das pessoas, de qualquer
faixa etária, se solta num mundo ilusório, onde tudo é possível, onde a realidade
deixa de ser tão cruel, para tornar-se amena e mágica. Essa magia e envolvimento
do público acabaram por chamar a atenção de escritores e intelectuais, os mesmos
que antes desprezavam essa forma de arte, e que se renderam ao imenso sucesso
das histórias, para torná-las imortais. Quando se fala de fadas, tudo é possível: o
maravilhoso povoa os espaços recônditos do inconsciente e desperta a atenção de
todos na manifestação dos contos. (COELHO, 2003).
Nas narrativas tradicionais, o símbolo da personagem, como Cinderela, é o
símbolo da personagem humilhada e maltratada que sempre alcança um final feliz.
O protagonista, antes sofredor, demonstrava uma tendência ao conformismo e ao
46
escape da responsabilidade de garantir o próprio destino, uma vez que todas as
soluções eram fruto de magia, de fatos sobrenaturais, jamais do esforço próprio do
herói da história; este fato torna o maravilhoso um agente de conformismo, pois
sugere que aquele que é submisso e crédulo terá a sua chance, mesmo sem lutar
por ela, e que esta será tão somente um golpe do destino, um lance de sorte. “Nos
contos de fadas os personagens são tipos (marcados por um único traço), ou
caricatura (quando este traço é muito reforçado), daí surgindo os estereótipos: a
bruxa malvada, a fada bondosa, o sapo que vira príncipe, e assim por diante”.
(KHÉDE, 1986, p. 19).
Em contrapartida, pode-se constatar que o uso da fantasia é um recurso
válido para a percepção do personagem e de sua própria inadaptação. Por outro
lado, embarcar no mundo mágico do personagem demonstra a incapacidade do
leitor, em especial a da criança, de elaborar um plano racional para a sua própria
realidade, muitas vezes distante daquilo que ela torna real em sua imaginação. O
uso da fantasia para reconhecer o mundo é mais uma forma de contestação e
reação aos problemas para os quais não encontra maneiras práticas de resolver.
[...] o Conto é incompreensível sem o maravilhoso. Que os andrajos da
Cinderela se convertam em roupas opulentas ou que os sete cabritos
saiam do ventre do lobo nada tem de maravilhoso; é isso o que se espera
aconteça e que se exige dessa forma; o que seria maravilhoso, no contexto
dessa forma e, portanto, despido de sentido, seria que tais coisas não
acontecessem; o conto e seu universo peculiar perderiam então a validade.
(JOLLES, 1976, p. 202).
Sendo assim, a fada pode ser um agente para tornar a criança preparada a
enfrentar as adversidades reais de sua vida, com a certeza de que existem meios de
alcançar seus sonhos e objetivos, e, conforme essa criança vai amadurecendo, ela
vai aprendendo a discernir entre as soluções reais e as soluções mágicas.
(BETTELHEIM, 1980).
Nos contos, as fadas despertam a fantasia, podendo servir como
denunciadoras simbólicas de problemas de ordem social e existencial. Elas não
apenas protegem o herói, como também proporcionam a justiça que se busca. Os
contos de fadas podem ainda realizar uma função terapêutica, como atesta o
psicanalista Bruno Bettelheim (1980), justificando sua posição ao afirmar que os
leitores, na medida em que se identificam com os problemas do herói, tendem a se
47
emancipar de seus próprios conflitos interiores, ainda mais se motivados pela
certeza de um final feliz.
Durante a leitura, ou ao ouvir uma história, no transcorrer das situações do
enredo, as emoções tornam-se mais claras, e observando os comportamentos do
herói, a criança naturalmente passa a perceber o que lhe parece correto.
Identificando-se com o protagonista, ela poderá atingir uma compreensão, mesmo
que não racional, a respeito de dilemas, rivalidades, dependências e, a partir disso,
desenvolver habilidades para lidar com esses fatores.
[...] os contos de fadas têm um valor inigualável, com quanto oferecem
novas dimensões à imaginação da criança que ela não poderia descobrir
verdadeiramente por si só. Ainda mais importante: a forma e estrutura dos
contos de fadas sugerem imagens à criança com as quais ela pode
estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida.
(BETTELHEIM, 1980, p. 16).
Dessa forma, a fada é o agente transformador, que converte ingenuidade
em experiência e, como num passe de mágica, ensina lições cruciais para o
desenvolvimento da criança, sem que ela sequer perceba. O maravilhoso está ligado
à intervenção das fadas boas ou más. Para Khéde (1986, p. 21),
O maravilhoso atende a uma função literária e a uma função psicossocial.
Como os contos de fadas são exemplos das primeiras narrativas, ou seja,
das narrativas mínimas e de estrutura mais estável, o maravilhoso será o
elemento mais propício para a passagem de uma situação de equilíbrio
para outra de desequilíbrio, ou vice-versa, geralmente com o retorno ao
equilíbrio inicial, modificado.
Como seres mágicos, as fadas aparecem nas histórias como um ideal de
mulher, com muita beleza e personificação do afeto, surgindo em momentos
específicos e ajudando os protagonistas. Esses seres maravilhosos são dotados de
poderes especiais que interferem de maneira decisiva no destino de seu protegido,
auxiliando-o quando não há soluções naturais ou concretas ao seu alcance.
(COELHO, 2003).
A origem dessa personagem tão significante encontra-se no folclore
europeu ocidental, de onde migrou, posteriormente, para outros locais. Acredita-se
que sua origem é celta, uma vez que esse povo possuía uma espiritualidade
bastante elevada e sua cultura permitia um delírio amoroso, dando à mulher um
poder inexistente entre os demais povos e culturas. Coelho (2003, p. 72) afirma que:
48
Entrando no mundo da literatura mediante as novelas de cavalaria, os
romances corteses e os lais, as Fadas (ou Damas com poderes mágicos),
por meio de múltiplas personificações, acabam fazendo parte do folclore
europeu e, através dos séculos, levadas por descobridores e
colonizadores, emigraram para as Américas. Tornaram-se conhecidas
como seres fantásticos ou imaginários, de grande beleza, que se
apresentavam sob forma de mulher. Dotadas de virtudes e poderes
sobrenaturais, interferem na vida dos homens, para auxiliá-los em
situações-limite, quando já nenhuma solução natural seria possível.
Conforme a etimologia da palavra, a fada representa o destino do homem.
Esse destino, na existência humana, gera um conflito entre ternura e tragédia,
intimidade e universalidade, representando, dessa forma, as forças secretas da
natureza. Coelho (2003, p. 71) argumenta que:
Venerando como sagradas todas as manifestações da natureza (fertilidade
do solo, plantas, árvores, bosque, frutos...), os celtas consideravam os rios,
as fontes e os lagos lugares sagrados. A água era reverenciada como a
grande geradora da vida. Foi na água que a figura da fada surgiu entre os
celtas.
Contrapondo-se à beleza das heroínas e à bondade das fadas, as
horripilantes bruxas são estereótipos de feiúra e de sentimentos negativos. Invejosas
e cruéis, as bruxas são em geral mulheres mais velhas, algumas retratadas como
madrastas das princesas ou suas irmãs.
Analisando as tradições celtas, Coelho afirma que as fadas possuíam “[...]
poderes paranormais do espírito ou potencialidades da imaginação.” (1991, p.34).
Porém, assim como as dualidades da própria existência, as fadas possuem o seu
lado oposto: as bruxas. Bruxas são seres reconhecidamente maus, que usam seu
poder em prol da destruição, mas com uma sedução inigualável. O mal, em geral,
apresenta-se, em um primeiro momento, como algo extremamente atraente. Por
isso, a sua representação também é feita na personificação e exploração dos
desejos mais primitivos do homem, presentes em qualquer ser humano, mesmo que
de forma controlada e disfarçada. Com tamanho poder de sedução, explica-se o
fascínio que provoca em adultos e crianças.
Entretanto, mesmo que à primeira vista o mal pareça demasiadamente
atraente para se oferecer resistência a ele, o conto de fadas mostra o quanto pode
ser negativo, no futuro, deixar-se levar por ele, e que o final feliz é exclusivo
daqueles que possuem virtudes para merecê-lo. Segundo Dieckmann (1986, p.15),
As bruxas e monstros são então nossos próprios temores e incapacidades
personificados, contra os quais temos de lutar; os animais solícitos e as
49
fadas são as nossas capacidades e possibilidades ainda desconhecidas,
que nestas situações podemos obter. Desta maneira se realiza, em outro
plano, aquilo que no conto de fada é imagem ou fantasia.
O conto Cinderela explora bem o lado da menina genuína e da vilã. Não há
uma bruxa com descrições definidas nessa história; há uma mulher sedutora que
usa artifícios para alcançar seus objetivos, uma madrasta e duas irmãs, que sequer
bonitas são, mas possuem mais riquezas materiais que Cinderela. Este conto se
aproxima da realidade da criança, já que não existem bruxas próximas a ela, e sim
pessoas que lhe querem mal, que ferem seus sentimentos e que a tornam, de
maneira simbólica, inferior aos demais. No conto, Cinderela é uma moça que utiliza
a imaginação para sonhar, pois é órfã e não tem saída aparente; é neste ponto que
surge o elemento maravilhoso, a fada, que irá salvá-la da “bruxa” representada pela
madrasta e irmãs.
Enquanto os contos antigos previam castigos terríveis, nos contos
renovados novas linguagens são incorporadas em novos finais, e aposta-se mais no
perdão e no destaque à felicidade do protagonista, indiferente ao destino do vilão.
50
2 LITERATURA INFANTIL E O CONCEITO DE INFÂNCIA
No encontro com qualquer forma de literatura, os homens têm a
oportunidade de ampliar, transformar e enriquecer sua própria vida. Muitas histórias
pertencem ao caudal de narrativas nascidas entre os povos da Antigüidade, que,
fundidas e transformadas, se espalharam por toda parte e permanecem até hoje.
A literatura é ampla e intransitiva, independente de classificações ou
adjetivos que delimitam o público a que as obras se destinam. Dessa forma, associar
o termo “infantil” à literatura, não a restringe, não a torna exclusiva para crianças; a
verdade é que a literatura infantil é tão somente aquela que corresponde e atende
aos anseios do leitor que se identificar com ela, independente de qualquer condição.
Segundo Meireles (1984, p. 20):
São as crianças, na verdade, que o delimitam, com a sua preferência.
Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que para elas se escreve.
Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas lêem com utilidade
e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil a priori, mas a posteriori.
A confusão resulta de propormos o problema no momento em que já se
estabeleceu uma “literatura infantil”, uma especialização literária visando
particularmente os pequenos leitores. Mais do que uma “literatura infantil”
existem “livros para crianças”. Classificá-los dentro da Literatura Geral é
tarefa extremamente árdua, pois muitos deles não possuem, na verdade,
atributos literários, a não ser os de simplesmente estarem escritos. Mas o
equívoco provém de que se a arte literária é feita de palavras, não basta
juntar palavras para se realizar obra literária.
É da literatura infantil a responsabilidade de formar novos leitores e mantê-
los pela vida toda. Falando da natureza da literatura infantil, Coelho (2003, p. 123)
afirma que ela é essencialmente arte,
É ela, dentre as diferentes manifestações da Arte, a que atua de maneira
mais profunda e essencial para dar forma e divulgar os valores culturais
que dinamizam uma sociedade ou uma civilização. Daí a importância da
Literatura Infantil, tanto a dos tempos arcaicos quanto a pós-moderna,
essencialmente sintonizada com estes tempos de mutação. De maneira
lúdica, fácil e subliminar, ela atua sobre seus pequenos leitores, levando-os
a perceber e a interrogar a si mesmos e ao mundo que os rodeia,
orientando seus interesses, suas aspirações, sua necessidade de auto-
afirmação, ao lhes propor objetivos, ideais ou formas possíveis (ou
desejáveis) de participação no mundo que os rodeia.
A literatura infantil se constitui o “filho” mais célebre da cultura folclórica e
popular; os contos de fadas nada mais são do que adaptações para o público infantil
51
de contos provindos da tradição oral e da Novelística Popular Medieval.
(COELHO,1991). Nesse sentido, existe uma contrariedade em qualquer tentativa de
datar a literatura infantil, porque as histórias originais que a compõem são talvez a
forma de expressão literária mais antiga que existe.
Constatamos que a criança, em outras épocas, não era vista como criança e
as histórias só se tornaram infantis muito tempo depois. Meireles (1984, p. 55) afirma
que:
É que não se pode pensar numa infância a começar logo com gramática e
retórica: narrativas orais cercam a criança da Antigüidade, como as de
hoje. Mitos, fábulas, lendas, teogonias, aventuras, poesia, teatro, festas
populares, jogos, representações várias [...] – tudo isso ocupa, no passado,
o lugar que hoje concedemos ao livro infantil. Quase se lamenta menos a
criança de outrora, sem leituras especializadas, que as de hoje, sem os
contadores de histórias e os espetáculos de então [... ]
Ao longo da história da humanidade, os contos de fadas invadiram o
imaginário de crianças e adultos de diferentes países e culturas. Não há, na
civilização ocidental, uma sociedade que não tenha sido enriquecida por essas
narrativas onde as figuras solidificaram seus espaços sociais. (ESTÉS, 2005).
Como visto no capítulo anterior, a literatura infantil, precisamente os contos
de fadas, possuem um caráter fundamental na formação do futuro adulto. Sosa
(1978) defende que a literatura infantil não se restringe somente às histórias antigas,
aos contos de fadas e às fábulas, considerando que não bastam boas ilustrações e
um final feliz para que se obtenha literatura infantil. Para Meireles (1984, p. 31):
O fato de a criança tomar um livro nas mãos, folheá-lo, passar os olhos por
algumas páginas não deve iludir ninguém. Há mil artifícios e mil ocasiões
para a tentativa de captura desse difícil leitor. São os aniversários, são as
festas, são as capas coloridas, são os títulos empolgantes, são as
abundantes gravuras.
Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma
criança livremente descobriu, pelo qual se encantou e, sem figuras, sem
extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda [...] tu,
sim, és um livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal.
Pois não basta um pouco de atenção dada a uma leitura para revelar uma
preferência ou uma aprovação. É preciso que a criança viva a sua
influência, fique carregando para sempre, através da vida, essa paisagem,
essa música, esse descobrimento, essa comunicação [...]
O surgimento dessa literatura está ligada a quatro fatores que, embora
tenham contribuído para a sua difusão, dificultaram a sua valorização como gênero:
o aparecimento da burguesia, o reconhecimento da infância como fase importante, a
52
necessidade de orientar o ser em formação e a criação da escola. Narrativas
fechadas, que não abrem espaço para a criatividade, também podem ser
consideradas vilãs da literatura infantil ideal.
Apesar da noção pedagógica que os adultos atribuem à literatura infantil,
Zilberman (2003, p. 46) afirma que:
Em vista dessas peculiaridades estruturais, a literatura infantil contraria o
caráter pedagógico antes referido, compreensível com o exame da
perspectiva da criança e o significado que o gênero pode ter para ela. Sua
atuação dá-se dentro de uma faixa de conhecimento, não porque transmite
informações e ensinamentos morais, mas porque pode outorgar ao leitor a
possibilidade de desdobramento de suas capacidades intelectuais. O saber
adquirido dá-se, assim, pelo domínio da realidade empírica, isto é, aquela
que lhe é negada em sua atividade escolar ou doméstica, desencadeando
um “alargamento da dimensão de compreensão” e a aquisição de
linguagem, produto da recepção da história enquanto audição ou leitura e
de sua decodificação.
Além disso, a literatura infantil, em especial os contos de fadas, é a forma
de arte mais presente na realidade das crianças, cuja assimilação, como toda a arte,
depende da maturidade e da necessidade da criança num dado momento.
Bettelheim (1980, p. 20-21) pondera:
Os contos de fadas são ímpares, não só como uma forma de literatura,
mas como obras de arte integralmente compreensíveis para a criança,
como nenhuma outra forma de arte o é. Como sucede com toda grande
arte, o significado mais profundo do conto de fadas será diferente para
cada pessoa, e diferente para a mesma pessoa em vários momentos de
sua vida. A criança extrairá significados diferentes do mesmo conto de
fadas, dependendo de seus interesses e necessidades do momento. Tendo
oportunidade, voltará ao mesmo conto quando estiver pronta a ampliar os
velhos significados ou substituí-los por novos.
Dessa forma, a literatura infantil é muito mais do que uma forma de
expressão ou uma subdivisão da arte literária, com um público definido. A literatura
infantil desempenha um papel importante para despertar o gosto pela leitura, de uma
forma lúdica e prazerosa, possibilitando ao leitor um posicionamento crítico sobre si
e sobre o mundo circundante.
Essa literatura deve ser um instrumento para sensibilização da consciência,
para a expansão da capacidade de analisar o mundo, sem estar a serviço de
qualquer interesse.
53
2.1 A evolução do conceito de infância
Ser criança, atualmente, representa estar passando por um período de
crescimento e amadurecimento intelectual, de uma forma como não ocorria antes.
Nem sempre, porém, a infância mereceu o destaque que tem hoje na nossa
sociedade.
Os mais remotos registros sobre a criança sinalizam que foi na Grécia que o
ser infantil foi considerado. São poucos aqueles que apontam para a representação
da infância em situações cotidianas, mostrando a criança nos hábitos e costumes
gregos, mas é através desses indícios que se reconhece que a pedagogia surgiu na
Grécia, diante da preocupação com os infantes, quanto a formação e cuidados.
Os gregos foram os primeiros a considerar que os anos iniciais da vida da
criança são um período fértil que deveria ser bem atendido. As famílias abastadas
queriam ocupar o tempo de seus filhos, e, para atender esse desejo, começa a
surgir a idéia de escola. A proposta de educação grega não era voltada para a
descoberta, mas somente para a recepção de saberes.
Os romanos, ao conquistarem a Grécia, absorveram sua filosofia de
educação, ora com retrocessos, ora com avanços.
Também destacou-se o educador MARCO FÁBIO QUINTILIANO (por volta
de 35- depois de 96), que põe o peso principal do ensino no conteúdo do
discurso. O estudo devia dar-se num espaço, de alegria (schola). O ensino
da leitura e da escrita era oferecido pelo ludi-magister (mestre do
brinquedo). SÊNECA (por volta de 4 a. C.-65) insiste na educação para a
vida e a individualidade: “non scholae, sed vitae est docendum” (não se
deve ensinar para a escola mas para a vida). (GADOTTI, 1993, p. 43).
Já na Idade Média, a infância era ignorada, havendo falta de cuidados e
desinteresse pelas crianças. Para Archard (apud HEYWOOD, 2004, p. 27) “[...] o
mundo medieval provavelmente teve algum conceito de infância, mas suas
concepções sobre ela eram muito diferentes das nossas”. Heywood (2004, p. 30),
por sua vez, defende:
Esse interesse limitado na infância em si pode ser mais bem compreendido
no contexto das condições sociais de uma sociedade pré-industrial. Ariès
certamente estava correto ao apresentar as crianças medievais inseridas
gradualmente no mundo dos adultos a partir de uma idade precoce,
ajudando os pais, trabalhando na condição de servas ou desenvolvendo o
aprendizado de um ofício.
54
O historiador Philippe Ariès revela que o sentimento de infância é uma
construção social, oriunda de uma nova forma de organização da sociedade e de
uma nova mentalidade que passa a ver o “não adulto” como alguém que precisa ser
cuidado, educado e preparado para a vida futura. (ARIÈS, 1981).
De acordo com o autor, o conceito de infância começa a surgir no final do
século XVII, consolidando-se no final do século XVIII. Antes disso, a criança era
ignorada pela sociedade dos adultos, não sendo merecedora de qualquer atenção
ou cuidados específicos.
Na sociedade medieval européia, a infância era reduzida a seu período mais
frágil, pois, assim que a criança adquiria algum desembaraço físico, era misturada
aos adultos, devendo partilhar de seus trabalhos e jogos.
Na sociedade antiga, não havia a “infância” nenhum espaço separado do
“mundo adulto”. As crianças trabalhavam e viviam junto com os adultos,
testemunhavam os processos naturais da existência (nascimento, doença,
morte), participavam junto deles da vida pública (política), nas festas,
guerras, audiências, execuções, etc, tendo assim seu lugar assegurado
nas tradições culturais comuns: na narração de histórias, nos cantos, nos
jogos. (RICHTER, 1977, apud ZILBERMAN, 1982, p. 05).
Sem saneamento básico, com pestes que dizimavam e com a falta de auxílio
na área da saúde, durante os séculos XVII e XVIII, altas taxas de mortalidade infantil
e a estimativa de vida de trinta a trinta e cinco anos obrigavam as crianças a
trabalhar muito cedo, para complementar a força de trabalho adulta e garantir sua
subsistência.
Cedo afastada da família, sua educação era garantida pelo que Ariès (1981)
chama de “aprendizagem”, que se dava espontaneamente, por meio do convívio
com os adultos. A família não tinha o caráter afetivo que tem hoje, estando essa
afetividade identificada com o grupo mais extenso da comunidade. Nesse período,
mesmo participando de modo igualitário da vida adulta, a criança era excluída das
decisões. Ela era vista como um adulto em miniatura, e, dessa maneira, as histórias
que entretinham adultos e crianças eram as mesmas.
No final da Idade Média e, por muito tempo ainda, depois do início dos
tempos modernos, nas classes populares, as crianças misturavam-se aos adultos,
sendo consideradas capazes de dispensar a ajuda das mães, poucos anos depois
de um desmame tardio, mais ou menos aos sete anos de idade. A partir desse
55
momento, ingressavam imediatamente na comunidade dos homens, participando,
com seus amigos, jovens ou velhos, dos trabalhos e dos jogos de todos os dias. A
família cumpria sua função de transmissão da vida, dos bens e do nome, não
penetrando muito na afetividade. Nas tradições populares, crianças e adultos
sempre compartilharam o mesmo universo. Coelho (1991, p. 31) afirma que:
[...] o rótulo histórico “Idade Média”, embora aponte para as diferenças de
civilização entre a Idade Antiga e os Tempos Modernos, na verdade foi
gerado pelo fator religião, pois foi o período intermediário entre a civilização
pagã e a civilização cristã, que é a nossa. Interessa-nos, aqui, realçar a
origem religiosa do rótulo histórico, porque ela já aponta para a natureza
dos valores ideológicos que servem de diretriz aos textos literários que
surgem nessa aurora da literatura ocidental.
Por outro lado, não podemos perder de vista o fato de que os marcos
históricos que delimitam a Idade Média são apenas pontos de referência,
pois nenhuma transformação histórico-cultural se processa do dia para a
noite.
Conforme Ariès (1981), até mesmo na arte sacra, a criança era vista tão
somente como um adulto em miniatura. As esculturas e pinturas que representavam
crianças, as expunham com um corpo tipicamente adulto, como musculatura definida
e traços maduros, diferenciando-as dos adultos somente pela altura. Muitas dessas
obras mostravam personagens bíblicos cercados por homenzinhos, que eram, na
verdade, seus filhos. Essa situação se estendeu até o século XVIII, época em que a
representação da criança começou a ficar um pouco mais fiel à realidade.
Mesmo nesse novo momento de reconhecimento das diferenças entre
adultos e crianças, pelo menos no que se refere ao porte físico, a representação da
criança ainda apresentava poucas semelhanças com a realidade. As crianças
passaram a ser representadas com traços demasiadamente afeminados e
geralmente eram representadas como anjos. Entretanto, poucos artistas aderiram à
nova maneira de retratar a criança, e o uso dos traços infantis era quase exclusivo
de retratações do Menino Jesus.
Segundo Ariès (1981), na questão do comportamento familiar e social, os
relatos datados entre o fim do século XVI e o princípio do século XVII mostram que
as crianças não só não eram respeitadas como tal, como integravam brincadeiras
sexuais dos adultos; a descoberta da sexualidade iniciava muito cedo, antes mesmo
dos 4 anos de idade. O jovem menino aos 14 anos estava casado. Pouco depois,
tornou-se menos comum o casamento de um menino de 14 anos; em contrapartida,
56
durante muito tempo, ainda permaneceu comum, e plenamente aceito pela
sociedade, o casamento de meninas aos 13 anos.
As práticas acima citadas eram tão corriqueiras e aceitas pelo senso comum
que as mudanças no comportamento social demoraram a ocorrer. Os professores
começavam a impor certos limites à liberdade sexual das crianças, iniciando
inclusive um trabalho de limitação da literatura a que as mesmas teriam acesso.
Neste período, o único aspecto que ainda permitia lembrar as práticas dos
séculos anteriores era a inclusão do casamento como prática comum entre crianças.
Segundo Ariès (1981, p. 91),
O sentido da inocência infantil resultou portanto numa dupla atitude moral
com relação à infância: preservá-la da sujeira da vida, e especialmente da
sexualidade tolerada – quando não aprovada – entre os adultos; e
fortalecê-la, desenvolvendo o caráter e a razão.
A partir do final do século XVII, esse quadro começa a sofrer
transformações, quando, gradativamente, a infância passa a ser considerada como
uma etapa singular da vida, que exige cuidados especiais. A educação infantil
começa a ocupar um lugar especial na organização familiar, contando com
instâncias cada vez mais diversificadas para complementar a tarefa, entre as quais,
a própria literatura. Surgem estudos sobre a infância nas várias áreas do
conhecimento, acreditando-se ser possível conhecer e analisar as particularidades
dessa fase, com o objetivo de formar homens melhor preparados para a vivência
social.
Um outro entendimento de infância começa a ser instituído. O infante é visto,
então, como um ser frágil, inocente e, ao mesmo tempo, imperfeito, necessitando ser
educado e transformado em um adulto inteligente e adaptado ao seu meio.
Dentro desse processo renovador, a criança é descoberta como um ser
que precisava de cuidados específicos para sua formação humanística,
cívica, espiritual, ética e intelectual. E os novos conceitos de Vida,
Educação e Cultura abrem caminho para os novos e ainda tateantes
procedimentos na área pedagógica e na literária. Pode-se dizer que é
nesse momento que a criança entra como um valor a ser levado em
consideração no processo social e no contexto humano. (COELHO, 1991,
p. 139).
A estrutura econômica e social passa por drásticas transformações: a família
começa a organizar-se diferentemente, momento em que se instala o modelo
burguês da família unicelular, fundada no individualismo, na privacidade e na
57
promoção do afeto entre pais e filhos, provocando alterações na forma de se
visualizar a infância e todas as instituições com ela relacionadas. Até então, não
havia uma visão da infância enquanto período do desenvolvimento humano, com
particularidades que deviam ser respeitadas. Essas modificações ocorrem com a
decadência do modelo aristocrático de organização social, cujas relações familiares
reproduziam a estrutura feudal.
Segundo Ariès (1981), a família deixou de ser apenas uma instituição de
direito privado para a transmissão dos bens e do nome, assumindo uma função
moral e espiritual, passando a formar corpos e almas. A moral da época oferecia
uma formação assegurada pela escola a todos os filhos, e não apenas ao mais
velho, chegando, no fim do século XVII, até mesmo às meninas. Ficou
convencionado que a escola deveria servir às crianças como uma preparação para a
vida. Devido à preocupação com a educação, em um primeiro momento, publicaram-
se tratados de educação e códigos de boas maneiras. No início da modernidade, a
concepção de infância começa a ser construída a partir da constatação da influência
dos fatores sociais e políticos. Os pais passam a se relacionar com suas crianças, a
gostar mais delas e a vê-las como a promessa de adultos no futuro, por isso,
passam a educá-las com severidade, talhando-as sob modelos castradores.
A partir da modernidade, segundo Corso; Corso (2006, p. 26):
[...] começou a haver uma distinção entre produtos culturais para adultos e
produtos para crianças, nosso tempo levou isso ao extremo, e cada idade
passou a ter seus produtos bem delimitados. A cultura assimilou as leis do
mercado, incorporando suas prerrogativas de consumo e publicidade. Em
função das intenções pedagógicas e mercadológicas, passa então a ser
importante a definição de um público-alvo.
A evolução do conceito de infância torna-se ainda mais visível quando, a
partir do século XVII, passa-se a verificar um interesse especial pela criança,
marcado pela edição dos primeiros tratados de pedagogia, tendo como autores os
protestantes ingleses e franceses. Já o século XVIII consagra essa nova
preocupação ao colocar a criança no centro de suas considerações. Por isso,
descrevendo os traços que caracterizam a família neste período, comenta Stone
(1979, apud ZILBERMAN, 1982, p. 07):
Um quarto sinal era a identificação das crianças como um grupo de status
especial, distinto dos adultos, com suas instituições especiais próprias,
como as escolas, e seus próprios circuitos de informação, dos quais os
58
adultos tentaram excluir, de modo crescente, o conhecimento sobre o sexo
e a morte.
O acesso à alfabetização foi facilitado com o surgimento da imprensa.
Soletrando palavra por palavra, os escribas estabelecem um método de
alfabetização. Apesar das dificuldades de entendimento do que liam, devido ao
método, as crianças tinham acesso aos mesmos livros que os adultos;
conseqüentemente, a infância fica afastada das vivências próprias da sua idade.
Rousseau foi um dos primeiros pensadores a chamar a atenção para este
período especial da vida humana: a infância. Critica como a alfabetização e os textos
que eram oferecidos, reprimem o sentimento infantil. Considerava que essa leitura
era um flagelo, pois transformava as crianças em adultos prematuramente, fazendo
entender que a leitura pertencia apenas ao mundo adulto e que só ele tinha a
capacidade de ler. Para Gadotti (1993, p. 87- 88):
Entre os iluministas, destaca-se JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-
1778), que inaugurou uma nova era na história da educação. Ele se
constituiu no marco que divide a velha e a nova escola. Suas obras, com
grande atualidade, são lidas até hoje. Entre elas citamos: Sobre a
desigualdade entre os homens, O contrato social e Emílio. Rousseau
resgata primordialmente a relação entre a educação e a política. Centraliza,
pela primeira vez, o tema da infância na educação. A partir dele, a criança
não seria mais considerada um adulto em miniatura: ela vive em um mundo
próprio que é preciso compreender; o educador para educar deve fazer-se
educando de seu educando; a criança nasce boa, o adulto, com sua falsa
concepção de vida, é que perverte a criança.
Gadotti estuda as estruturas do desenvolvimento infantil, buscando diretrizes
para dar condições adequadas para atender as crianças. A partir de suas teorias,
inicia-se a popularização da escola e a família passa a cuidar melhor de suas
crianças estruturando-se. Os alicerces que edificam o sentimento de infância
passam a ser a família e a escola.
Em meio à ascensão social, a infância, torna-se como entidade social,
despontando a partir da Revolução Industrial. Os princípios cristãos passam a ser
usados no aprendizado da escrita e da literatura, assim como os contos e as
parábolas de origem popular.
Mais tarde, as crianças passaram a usufruir diretamente de um setor da
produção literária que nasceu com as primeiras compilações dos chamados contos
de fadas. Segundo Zilberman (2003), a aproximação entre a instituição escolar e o
59
livro infantil não é inopinada, uma vez que os primeiros textos para as crianças foram
escritos por pedagogos e professores, apresentando um formato educativo.
Ao longo do tempo, tal posicionamento didático se solidificou e muitas foram
as produções que surgiram comprometidas com esse modo de encarar o texto.
Entretanto, apesar das orientações didáticas, muitas obras produzidas na época
permaneceram por suas qualidades estéticas.
O conceito atual de infância é recente e foi construído há cerca de um século
e meio, com o conjunto de forças políticas, culturais, sociais e econômicas, sempre
sujeito a sofrer alterações conforme as mudanças da sociedade. A literatura infantil
acompanha cada período histórico e é portadora dos valores subjacentes da
sociedade, levando à reflexão e à crítica as idéias e as práticas que surgem em cada
período. A família, a escola e a literatura foram utilizadas para a formação do modelo
burguês vigente.
É no final do século XX e neste novo século que se percebe significativas
mudanças nas relações humanas, familiares e políticas, sinalizando para uma nova
infância, proporcionando uma reflexão sobre as alterações que fundamentaram o
conceito de infância e de escola, bem como o modelo de família.
60
3 LITERATURA INFANTIL E REGIONALIDADE
3.1 Cultura e regionalidade
É imprescindível lembrar que vivemos em um mundo globalizado, fenômeno
que traz na sua essência a tentativa de forjar uma sociedade homogênea, em que
nem sempre são respeitadas as singularidades regionais ou as diversidades étnico-
culturais. Diante do fenômeno da globalização sem fronteiras, deve-se salientar a
questão da cultura que constitui um elemento importante de afirmação regional ou
nacional. É ela, em última instância, que diferencia uma região da outra, dando
significado às vivências dos grupos sociais. Pensar nas identidades regionais
significa tentar compreender o mundo em que estamos inseridos, entender as
formas de cultura locais. A cultura perpassa a literatura e, para compreender o
mundo, é necessário que o ser humano conheça a sua própria história, seja familiar,
social ou literária.
Para compreendermos a chegada e assimilação das histórias infantis no
Brasil, é preciso entender a adaptação dos contos à realidade local e à
regionalidade. Para isso, estudamos aqui o que é região, regionalidade e também a
importância da cultura local.
Sobre região, Pozenato (2003, p.150) afirma, “[...] a região, sem deixar de
ser em algum grau um espaço natural, com fronteiras naturais, é antes de tudo um
espaço construído por decisão, seja política, seja da ordem das representações,
entre as quais as de diferentes ciências”.
Esse conceito é de fundamental importância para a compreensão da região
como um conjunto de relações, sejam elas acerca da proximidade ou referentes à
distância, uma vez que, através de um conceito superestrutural, essas relações são
capazes de transformar o regional em universal, no momento em que “[...] a parte se
apresenta como imagem do todo”. (POZENATO, 1974, p. 17).
A determinação de região é constituída de acordo com o tipo, o número e a
extensão das relações adotadas para defini-la, sendo possível que as fronteiras da
região se desloquem conforme seja utilizado, com maior ou menor ênfase, um ou
outro critério para sua delimitação. Nesse aspecto, dentro de uma nação, as regiões
61
podem ser divididas seguindo diferentes critérios, delimitando, inclusive, territórios
nacionais. Segundo Pozenato (2003, p.150), “[...] é possível falar de região histórica,
região cultural, região econômica e assim por diante, com fronteiras distintas no
mesmo território físico”.
A relação entre região e cultura não deve ser relegada a uma simples
influência do meio natural ou espaço físico, pois o homem tem capacidade, a partir
do meio, de criar símbolos capazes de definir sua própria identidade.
Dado o interesse que suscita, o conceito de região tem sido objeto de
estudos. Paviani (2004, p. 81) afirma que
Os desafios da globalização e da internacionalização, em suas múltiplas
formas e conseqüências, assumem aspectos peculiares em cada grupo e
comunidade. Isso se deve ao fato de que não é possível ter uma clara
percepção das relações culturais em suas manifestações dialéticas entre o
regional, o nacional e o universal ou internacional. O todo e as partes, a
totalidade e os fragmentos são mediados necessariamente pela região. O
conceito de cultura designa o tempo e o espaço da atividade criadora do
homem. Nesse sentido, pertence à cultura, quase por essência, ser
regional.
As expressões lingüística e literária são relevantes nos estudos sobre
cultura regional. A língua é um elemento integrante da identidade regional, ela
compõe a rede de relações, ou seja, a região funciona também como traço de
peculiaridade lingüística cultural. Reforçando a questão, Paviani (2004, p.81-82)
acrescenta:
Um dos aspectos mais relevantes, de uma cultura regional é, sem dúvida, a
expressão lingüística e literária em conexão com os estudos de história, de
sociologia e de economia. A língua, como traço antropológico fundamental,
e a literatura, como manifestação da totalidade dos saberes de um povo,
de uma comunidade ou grupo, são fontes inesgotáveis de pesquisa sobre
idéias, crenças, hábitos, comportamentos, valores, tipos de organização e
de instituição, sonhos e desejos, sucessos e fracassos de uma cultura
delimitada pela região e, assim, vista como síntese orgânica do conjunto de
“lugares”, de “tópicos”, de aproximações e distanciamentos interculturais.
Segundo Paviani (2004), é nas categorias de região e regionalidade que as
relações culturais e seus desafios estéticos e éticos encontram as ferramentas ideais
para análise, descrição e compreensão, bem como interpretação de fenômenos
sociais e históricos. Muitos objetos de pesquisa sofrem influência direta, no seu
processo de investigação, da dialética do universal e do regional, uma vez que todas
as questões que envolvem a sociedade fazem referência às diferenças entre os
povos, determinadas pela região. Dessa forma, para Paviani (2004, p.82):
62
Só assim será possível compreender o que somos dentro dos horizontes
largos de nosso tempo. Assim, a categoria “cultura regional” é muito mais
do que um recurso metodológico. É, de fato, o núcleo sobre o qual a
investigação interdisciplinar poderá dar visibilidade ao agir e ao fazer
humanos, num retrato de corpo inteiro, porém, enquadrado no seu
verdadeiro cenário.
A afirmação abaixo reforça a proposição de que região é um objeto de lutas
entre as diversas áreas de estudo. Bourdieu (2004, p. 108) registra:
[...] a região é o que está em jogo como objecto de lutas entre os cientistas,
não só geógrafos é claro, que, por terem que ver com o espaço, aspiram
ao monopólio da definição legítima, mas também historiadores, etnólogos
e, sobretudo desde que existe uma política de ‘regionalização’ e
movimentos ‘regionalistas’, economistas e sociólogos.
Pozenato (2003, p. 151) enfatiza que, quando,
[...] os movimentos regionalistas – de modo especial quando se
contrapõem à idéia de nação, com intuito separatista e de acentuação das
diferenças – tomaram corpo, a região passou a ser assunto da sociologia.
E, é possível acrescentar, desde que se caracterizou o processo de
globalização ou de mundialização das relações, somou-se o interesse
renovado de historiadores, de etnólogos e também, numa outra esfera, dos
planejadores e administradores.
Existe uma confusão bastante comum entre os conceitos de regionalismo e
regionalidade, não raro atribuindo-se ao regionalismo o conceito próprio da
regionalidade. Acerca disso, Pozenato (2003, p. 155) esclarece que:
Por sua proximidade semântica [...] podem ser facilmente confundidos [...],
isto tem acontecido com as palavras regionalidade e regionalismo. Ao
menos no campo da literatura brasileira, o conceito de regionalismo tem
sido utilizado para identificar e descrever todas as relações do fato literário
com uma dada região. Penso que este significado deve ser reservado para
o conceito de regionalidade. O regionalismo pode ser identificado como
uma espécie particular de relações de regionalidade: aquelas em que o
objetivo é o de criar um espaço – simbólico, bem entendido.
Torna-se evidente que, com o deslocamento do conceito de região, a
identidade de cada região ganha novos significados.
Um importante deslocamento do conceito de região vem sendo operado
nas últimas décadas, quando a referência da região à nacionalidade
começa a ser substituída, pelo menos em parte, pela referência à
globalidade das relações políticas, econômicas e culturais. Com isso, a
identidade de cada região ganha novo significado e, até mesmo, novo
realce. (POZENATO, 2003, p. 152).
63
E explicita: “[...] a percepção das relações regionais é vista como um modo
adequado de entender como funciona, ou pode funcionar, o processo de
mundialização de todas as relações humanas”. (POZENATO, 2003, p. 149).
Oliven (1992), conclui que a construção da identidade regional foi elaborada
a partir de relações de proximidade cultural e, ao estabelecer esse distanciamento,
acabou gerando as diferenças entre as demais que contribuíam para formar a
cultura regional em sentido amplo.
A afirmação de identidades regionais no Brasil pode ser encarada como
uma reação a uma homogeneização cultural e como uma forma de
salientar diferenças culturais. Esta redescoberta das diferenças e a
atualidade da questão da federação numa época em que o país se
encontra bastante integrado do ponto de vista político, econômico e cultural
sugere que no Brasil o nacional passa primeiro pelo regional. (OLIVEN,
1992, p. 43)
Já sobre a expressão “cultura regional”, Paviani (2004, p. 84- 85) expõe:
A expressão cultura regional não é a soma ou a associação de cultura mais
região, mas o fenômeno da cultura delimitado por uma particularidade
específica, particularidade que todas as formas de cultura necessariamente
assumem antes de alcançar a dimensão de uma cultura nacional ou
universal. São as particularidades (no sentido hegeliano dessa categoria)
que definem a regionalidade e não as características individuais ou de cada
manifestação isolada. São as particularidades (formas e manifestações de
vida comum) das experiências sociais e históricas a base dos múltiplos
conceitos empírico-científicos de região. Afirmar que o conceito de região é
constituído de elementos como espaço, tempo, história, e outras
características ou variáveis, é útil e necessário para qualquer investigação
científica, porém não significa ainda mostrar a gênese do conceito de
região, suas determinações ontológico-existenciais, suas reais
possibilidades epistemológicas.
A universalidade do conceito de região é um modo de se preencher o
conceito à partir de um habitus. Assim, o conceito de região proposto por Pozenato,
é um modo de realizar essa função, através de uma prática científica, sujeita às lutas
simbólicas.
Como conceito central da sociologia de Bourdieu (2004), o habitus é o
agente que fornece os relacionamentos e articula a sociedade entre o sujeito
individual e o grupo (sociedade), sendo que esse conceito representa o alicerce da
teoria que explica como são produzidos, socialmente, os agentes sociais e suas
relações lógicas.
Essa teoria baseada no conceito de habitus tornou-se vigente no momento
pós-estruturalista, retornando o interesse pelo processo que a história instaura nas
64
relações humanas e sociais, ou seja, os elementos que ligam as relações através
dos tempos. Segundo os teóricos desse movimento, não há cultura que se possa
considerar como pura, uma vez que todas as culturas surgem ou sofrem influência
no contato com outras, transformando uma cultura específica em um apanhado de
influências. Dessa forma, na teoria da cultura como sistemas de práticas, a noção de
habitus demonstra uma relação inseparável entre o passado e o presente.
Habitus é conceituado como “[...] um sistema de disposições duradouras
adquirido pelo indivíduo durante o processo de socialização” BOURDIEU, 1980 apud
BONNEWITZ, 2003, p. 77). Para Bourdieu, o habitus produz a unificação do
indivíduo na classe enquanto grupo que compartilha o mesmo habitus; assim, esse
conceito, que está na base da reprodução da ordem social, faz com que cada
indivíduo encontre seu grupo na sociedade e a ele pertença. O conceito explicitado
de habitus permite compreender de que maneira o homem se torna um ser social,
ressaltando que a vida em sociedade supõe que o indivíduo seja socializado, isto é,
mantenha alguma característica semelhante ao restante de seu grupo social.
Dessa forma, e simplificando, o habitus nada mais é do que uma série de
disposições que perduram durante e depois do processo de socialização do
indivíduo, sendo essas disposições responsáveis pela formação de sua própria
personalidade enquanto ser social, de suas atitudes, percepções, maneira de pensar
e outras características que tornam o comportamento aprendido marcado por
atitudes praticamente intuitivas. Seguindo esse conceito, compreende-se que a
própria noção de classes depende da criação desta percepção. (BONNEWITZ,
2003).
Bourdieu defende que habitus é uma incorporação do passado, do qual o
indivíduo ou o grupo é produto. Já o campo pode ser tratado como uma
representação arbitrária, que é imposta ao indivíduo ou ao grupo a que ele pertence.
Os campos possuem ligações articuladas entre si, mantidas pela tensão existente
entre os indivíduos que dominam e aqueles que se permitem dominar.
O sociólogo Bourdieu conceitua a região como sendo uma forma de incluir
na realidade a luta das representações do real, assumindo que a questão está
situada no campo das lutas simbólicas, onde “[...] o real é um efeito de
representações do real”. (FELTES, 2004, p. 101).
Nesse caso, pode-se considerar que a identidade social é fruto das lutas
simbólicas e remete à distinção, pois trata da possibilidade real de se afirmar a
65
diferença. Logo, “[...] região é um construto, uma representação, que resulta de uma
“luta classificatória”, uma luta por demarcações de caráter e poder simbólicos”.
(FELTES, 2004, p. 102).
Ao tratar do estudo de diferenciação social, Bourdieu explicita que os grupos
sociais podem estar divididos conforme o capital. Entretanto, capital não se refere
tão somente ao aspecto econômico, refere-se também aos aspectos cultural, social
e simbólico, sendo que a posição de cada indivíduo nessa sociedade depende da
quantidade e da disposição de seus capitais. Bourdieu vê a sociedade como um
espaço multidimensional que se constitui sob os princípios de diferenciação ou de
distribuição.
Segundo Bourdieu (2004), o espaço social é preenchido conforme sua
própria evolução. O capital dominante é geralmente o econômico em relação à
hierarquia social; assim, a posição das diferentes classes no espaço social é
modificada de acordo com a evolução estrutural. Para cada grupo, está presente
uma cultura, assim também cada região possui características culturais próprias que
influenciam na formação de seus cidadãos e na maneira como será recebida
qualquer manifestação cultural externa ao grupo social e/ou à região.
A região pode, também, ser entendida como o lugar onde o homem está
integrado, ambientado, onde ele expressa seus desejos, aspirações e emite juízos.
É o universo do indivíduo, visto enquanto espaço de vivência.
Para Costa (1997, p. 37), a idéia de região, mais do que expressão de um
espaço geográfico, é uma representação simbólica, portanto, uma produção cultural,
Distinção entre território como instrumento de poder político (quase sempre
de caráter estatal, ligado à questão da cidadania) e território como espaço
de identidade cultural, instrumento de um grupo cultural e/ou religioso, é
fundamental no mundo contemporâneo, dentro do debate entre
universalistas (defensores de uma “cidadania-mundo”, calcada ou não na
territorialidade-padrão dos Estados-nações) e multiculturalistas (defensores
do respeito às especificidades culturais, que pode incluir as diferentes
concepções de territorialidade moldadas no interior de cada cultura).
Além disso, região não é somente espaço, mas sim uma representação
simbólica das relações dos homens entre eles mesmos, com o espaço e com o
tempo que as caracterizam, podendo-se entender como conceito do grupo social ao
qual o indivíduo pertence. O sentido de identidade regional não pode ser entendido
como região, um lugar reduzido geograficamente, posto que regionalismo, como
representação simbólica sob o estereótipo da tradição e do folclore, insere nos
66
indivíduos formas que são coletivamente partilhadas. Segundo Pozenato (2003, p.
157), a região é “[...] um feixe de relações a partir do qual se estabelecem outras
relações, tanto de proximidade como de distância”. Entende-se como proximidade,
as relações que criam identidade e, como distância, as que marcam as diferenças.
Na obra Cinderela: uma biografia autorizada, de Mastroberti, constata-se o
esforço da autora em significar, por meio da cultura popular contemporânea, uma
identidade cultural, que, não é somente individual, é coletiva, essencialmente
comunitária, sem ser obrigatoriamente uma identidade nacional. Sendo a cultura o
conjunto das manifestações de uma comunidade, é também a totalidade de suas
formas de existir.
Em suas expressões encontram-se as práticas que se transformam em
obras, textos literários, verbalizações. Nessas manifestações é a cultura que totaliza
essas formas de vida, esses traços individuais que podem ser universais. As marcas
comuns entre eles constituem a particularidade que forma a cultura.
É importante caracterizar as regionalidades e não a região, pois o que
caracteriza a região é o tipo de relação que se quer examinar, assim, a idéia de
região é construída. Segundo Pozenato (2003, p. 151),
A regionalidade pode ser definida como uma dimensão espacial de um
determinado fenômeno tomada como objeto de observação. Isto implica
em admitir que o mesmo fenômeno, visto sob a perspectiva da
regionalidade, pode ser visto sob outras perspectivas. A existência de uma
rede de relações de tipo regional num determinado espaço ou
acontecimento não os reduz a espaços ou acontecimentos puramente
regionais. Serão regionais enquanto vistos em sua regionalidade.
Através do estudo da literatura, percebe-se que devemos levar em conta sua
estreita relação com o termo região, pois este é um vínculo forte, como afirma
Kaliman (1994, p. 05-06):
Hay un lugar donde se escribe […] hay un lugar como tema sobre el que se
escribe […] el lugar en que circula la literatura, sea la comunidad […]
aunque esté lejana en el tiempo y en el espacio de esa producción, recibe
el texto y lo acoge en su seno.
Portanto, pode-se dizer que há uma relação entre literatura e espaço, devido
às implicações no horizonte da escritura, da circulação e da recepção das obras
literárias. Conforme Cândido (2002), é necessário ter cuidado, pois ao mesmo tempo
67
em que a literatura tem função social humanizadora, ela pode, também, ser
alienadora.
Para Bourdieu (2004), cultura é o meio de compreender como os
dominantes garantem seu poder pela aceitação natural do dominado, sendo também
uma forma de gerar a luta entre os grupos sociais. Atribui à cultura as propriedades
de um capital; assim, a cultura, que é simbólica, também configura-se como um
mercado.
É no campo simbólico que surgem as noções de luta de classes, podendo-
se, neste sentido, considerar a cultura como elemento do processo de violência
simbólica. Promovendo a dominação de alguns grupos sobre o todo, através de uma
cultura que acaba por tornar-se aceita, faz com que o oprimido não tenha
consciência de sua própria condição e integre-se naturalmente na cultura do grupo
dominante.
Por sua vez, Geertz (1989) busca uma definição do próprio homem,
inspirada na definição de cultura, submergindo em questões paradoxais que geram
o conflito entre a grande diversidade cultural e a unidade da espécie humana. Neste
aspecto, defende que a cultura deve ser vista como um mecanismo de controle, com
regras e instruções que, difundidas, tornam os homens todos geneticamente aptos à
recebê-la.
Ainda conforme Geertz, considera-se a cultura como um sistema simbólico
cujos símbolos são compartilhados entre os membros do grupo social, de domínio
público e disponíveis a todos. Assim, tornam-se parte integrante do indivíduo, de
modo que este, intuitivamente, saiba como se portar ou de que maneira deva
proceder em determinadas situações, sem possuir, no entanto, meios para prever
como agirá diante delas. Destaca, ainda, que não existem culturas superiores ou
inferiores; o que existe são culturas diferentes, com identidades culturais
diferenciadas umas das outras.
Paviani (2004) destaca que as relações culturais estabelecidas pelo homem
indicam um conjunto de aspectos que expressam relações, aspectos estes que
apontam para características comuns, como convivência, hábitos, costumes e
modos de produção, expressando-se através da fala, das idéias e pensamentos,
veiculados na linguagem do grupo. Ele afirma que “[...] a cultura caracterizada como
produção objetiva pode ser definida como o conjunto dos modos de agir e fazer
(produzir), dos modos de pensar e conhecer, presentes no tecido social e nas
68
relações dos homens com a natureza”, (PAVIANI, 2004, p. 75), definições essas que
acabam por atribuir valor sobre todas as formas de cultura.
Geertz (1989) entende a cultura como uma rede de significados tecida pelo
homem durante todo o período de sua existência. Propõe que cada sociedade tem
uma rede particularizada a ser tecida, sob um determinado número de traços
culturais específicos que caracterizam essa sociedade e que irão gerar os aspectos
de identidade necessários para inserir o indivíduo dentro desta sociedade.
Sob esse ponto de vista, considera-se que cada cultura deva receber seu
merecido valor, uma vez que mantém em si os elementos que definem sua
identidade, por meio de conteúdos simbólicos, que resgatam os indivíduos e seus
valores em direção às suas identidades particulares.
Outro aspecto importante na conceituação de regionalidade é a educação,
cabendo destacar que ela é primordial na formação de futuros leitores e cidadãos.
Bourdieu (2004) traz contribuições para a educação, quando fala em violência
simbólica. Referindo-se ao processo de reprodução cultural, mostra que ele é, ao
mesmo tempo, um fenômeno social e uma forma pelo qual o poder se traduz em
dominação cultural. Segundo o autor, a escola serve como uma forma de ultrapassar
a barreira das classes e de permitir a todos os indivíduos um processo de
socialização justo e semelhante. Entretanto, destaca o autor, o sistema escolar
acaba fazendo o contrário: a cultura elitista é dominante, e as classes
hierarquicamente inferiores ficam sujeitas a uma cultura que não lhes pertence,
ocasionando poucas oportunidades de progresso e tornando-as socialmente
excluídas.
A mensagem da comunicação pedagógica esconde uma relação externa
que é fundamental: a da força. De acordo com Bourdieu (2004, p. 116) “A eficácia do
discurso performativo que pretende fazer sobrevir o que ele enuncia no próprio acto
de o enunciar é proporcional à autoridade daquele que o enuncia [...]” Para o autor, a
escola, que, num sistema democrático, é aparentemente neutra, contribui para
perpetuar as relações de classe, e sua função social é de legitimar, conservar
privilégios e vantagens sociais das classes dominantes. A partir da escola, transmite-
se às crianças o capital cultural e social, através dos livros, colocando-as numa
posição diferenciada no espaço social.
O campo de estudo referente aos valores de determinadas culturas está
estritamente ligado às questões referentes à identidade. É importante considerar a
69
questão do valor na educação, pois o trabalho educativo está calcado em
determinados valores culturais, ainda que isso ocorra de forma implícita.
Mesmo indiretamente, a realidade é aglutinada pelo universo artístico que
incorpora elementos cotidianos, absorve as contradições do mundo, expõe reflexões
e questões existenciais. O livro infantil, mesmo servindo à escola e à transmissão de
saber, poderá também oferecer arte, se existir, junto ao comprometimento com
aspectos sociais, como nos contos renovados.
Nos contos de fadas, cuja forma é aparentemente fechada e desgastada, a
originalidade também pode se fazer notar, se a-reutilização do gênero vier acrescida
de crítica e questionamento. A fim de aprofundar essa questão, serão tecidas
considerações, buscando estabelecer relações entre literatura infantil e
regionalidade.
3.2 Literatura Infantil e regionalidade
Contemporaneamente, a literatura para crianças vem tomando outros rumos,
visando a uma nova consciência de mundo e fugindo, assim, da pura exemplaridade
ou da transmissão de valores já definidos ou sistematizados.
Os contos de fadas invadiram o imaginário de crianças e adultos de
diferentes países e culturas. Não há, na civilização ocidental, sociedade que não
tenha sido enriquecida por estas narrativas.
Meireles (1984, p. 81-82), comenta:
Em todas as grandes vidas, esse elemento tradicional aparece como raíz
profunda, que penetra igualmente o solo da pátria e o solo do mundo; que
vem da infância de cada um e da infância de todos, e concorre para essa
fusão do individual no coletivo, do coletivo no individual, essa identificação
do homem com a humanidade.
Meireles (1984, p. 78-79), ainda acrescenta:
Assim, leituras sagradas; mas que antes foram, também, narrativas orais; a
tradição religiosa que, em meio às tradições profanas, são o alimento
profundo da humanidade.
A Literatura Tradicional apresenta esta particularidade: sendo diversa em
cada país, é a mesma no mundo todo. É que a mesma experiência humana
sofre transformações regionais, sem por isso deixar de ser igual nos seus
70
impulsos e idêntica nos seus resultados. Se cada um conhecer bem a
herança tradicional do seu povo, é certo que se admirará com a
semelhança que encontra, confrontando-a com a dos outros povos.
O Brasil é grande divulgador de histórias infantis, algumas adaptadas,
algumas renovadas e outras tantas elaboradas, para atender o público criado no
país e influenciado pela cultura regional. Magalhães (1982, p. 152) acrescenta:
O desenvolvimento das formas literárias não pode ser pensado
independemente das condições de recepção e do papel peculiar à literatura
na vida social. Ainda no século passado, no Brasil, a publicação das
histórias infantis sofria restrições, pois a função lúdica desses textos
conferia-lhes o cunho de inutilidade. O surgimento de uma obra literária
infantil nacional ocorreu há pouco mais de cinqüenta anos, não se
justificando, pois, falar de uma história do gênero em nosso país, mas da
presença de alguns autores cuja originalidade e fôlego narrativo atestam a
formação de uma literatura infantil brasileira.
Enfim, o que se constata na atualidade, em termos de qualidade da literatura
de interesse infantil, é que ela nada deixa a desejar, se comparada com a literatura
adulta. Qualquer outra circunstância, tal como o excesso de pedagogismo ou a
puerilidade de outrora, em nada afeta a alta categoria da produção literária
contemporânea para crianças e jovens.
As histórias que nos levam de volta a tempos passados são
extraordinariamente recheadas de verdades. Mesmo parecendo impossíveis ao
nosso pensamento racional e existindo no plano do “Era uma vez”, constroem
mundos habitados por crianças, adultos, fadas, bruxas, monstros, seres mágicos ou
animais falantes para, em seu conjunto, indicar fatos que, em sua ordem, fizeram
referência a um sistema organizado sob a face simbólica do imaginário. Esses fatos,
ao mesmo tempo latentes e calados pela força da palavra, fazem da regionalidade
um assunto de grande relevância e com múltiplas maneiras de ser estudado.
Segundo Warner (1999, p. 41):
Embora o tempo e o lugar originais de um conto de fadas nunca possam
ser realmente determinados, às vezes sabemos quem é o narrador de uma
fábula antiga numa determinada variação, e outras vezes é possível
identificar quem formava o círculo de ouvintes em determinado tempo e
lugar.
Warner (1999, p. 21) acrescenta:
Embora sejam distribuídos universalmente, os contos emergem em
diferentes lugares temperados com sabores diferentes, características
71
diversas, além de detalhes e contextos regionais que proporcionam ao seu
público a satisfação de uma identificação especial.
Inúmeras vezes recontados, reavaliados e recriados ao longo do tempo, os
contos de fadas e suas narrativas mágicas transformaram-se, adequando-se aos
contextos histórico, social e local, colocando em voga a discussão acerca da
influência da regionalidade.
Certamente Cinderela é um dos mais populares contos de fadas, sua
estrutura é simples, seu apelo é forte e não há quem não se emocione com
esse destino. Historiadores têm encontrado variações sobre essa narrativa
em quase todas as culturas, e sua antiguidade é proporcional à sua
difusão. Já foi documentada uma versão chinesa do século IX da nossa
era. (CORSO; CORSO, 2006, p. 106).
A fantasia é parte imprescindível na vida das crianças, e os contos, através
das histórias infantis, disputam espaço em suas memórias com fatos, ditos e
imagens de seu passado. Para Corso; Corso (2006, p. 306),
A história real dos homens nunca foi fácil de aceitar. A violência, a
ignorância e a injustiça triunfam com maior freqüência do que gostaríamos
de admitir. Pelo menos, nossa capacidade de criar, de contar histórias,
parece ter encontrado formas de sobreviver e questionar. Afinal, certa dose
de otimismo é possível, pois, embora a ficção não tenha o poder de salvar
o mundo, como tantos heróis contemporâneos têm tentado, ela pelo menos
o enriquece.
Nas criações dos contos de fadas, a análise histórica enfoca principalmente
os contextos da França do século XVII, dos contos do Perrault, com sua singular
validação pela corte de Luís XIV, e da Alemanha do século XIX, através da
glorificação dos irmãos Grimm pelos ideais burgueses e nacionalistas. (CANTON,
1994).
É interessante destacar que mais de um século separam os contos de
Grimm das histórias de Perrault. Entretanto, as inúmeras semelhanças estruturais e
temáticas entre as narrativas revelam o fundo histórico comum.
Tais influências atuam sobre o potencial criador do artista, resultando no
que se convencionou chamar estilos de época, possibilitando, à história da literatura,
organizar em clássicos, românticos, realistas, os escritores e as obras, numa
seleção, ainda que superficial, orientadora da época e do contexto em que os contos
nasceram.
72
Perrault, com seus contos, foi considerado o representante do gênero numa
época em que a literatura para crianças não era priorizada. Este autor, durante a
monarquia absolutista de Luís XIV, o Rei Sol, apresenta os Contos da Mãe Gansa
(1691 / 1697) e os Contos de Fadas (em 8 volumes – 1696 / 1699), uma literatura
resultante da valorização da fantasia, da imaginação, construída a partir de textos da
Antiguidade Clássica ou de narrativas que estavam presentes oralmente entre o
povo, sendo, por isso, um contraste vivo com a alta literatura produzida na época.
Ele descobriu as fontes populares dos contos e fez deles matéria imortal para a
literatura de todos os tempos.
Foi o precursor dos adaptadores dos contos de fadas e sua obra guarda os
germes que desencadearão o movimento pré-romântico de busca do passado e da
tradição nas fontes populares. “Essas condições determinaram, por exemplo, a
institucionalização do conto de fadas como um gênero aristocrático especialmente
valioso para a educação das crianças – por intermédio das obras de Charles
Perrault, na França do século XVII”. (CANTON, 1994, p. 31). Perrault,
contemporâneo de La Fontaine, se tornou o maior opositor na “Querela dos Antigos
e dos Modernos” (defendia os modernos), entrando para a história da Literatura
Universal, não como poeta clássico (Academia Francesa, 1671), mas como autor de
uma literatura popular, desvalorizada pela estética de seu tempo.
O encanto das obras desse acadêmico cortesão do Rei do Sol, porém,
reside justamente no tratamento crítico da moral burguesa que, aparentemente,
pretendia reforçar nos seus textos. Graças ao exercício da genialidade literária,
Perrault passa, pela linguagem simbólica utilizada, vários níveis de significação que
atribuem, também, uma conotação crítica aos valores da época. (ZILBERMAN,
2003; COELHO, 1991; CANTON, 1994; WARNER, 1999).
Importa ressaltar que esse período corresponde não só ao declínio ou
desgaste da estética clássica, mas à deterioração do governo de Luís XIV; tempo,
portanto, de abuso de poder, política de conquistas e tensões terríveis, que
provocaria problemas religiosos, aumento de miséria do povo e um clima geral de
mal-estar, temor e insegurança.
Perrault declara, no prefácio à edição de 1695 dos seus contos em versos,
que eles encerram uma moral útil, ensinando às crianças a vantagem que há em ser
honesto, paciente, avisado e obediente. Uma arte moral, tal como o autor julgava
necessária no momento. (CANTON, 1994).
73
Da ampla literatura popular – folclórica – que Perrault dispunha, selecionou
oito contos que perfaziam a coletânea Contes de Ma Mére I’Oye, indicadora de sua
ligação com as narrativas populares, pois, Mãe Gansa era a personagem de um
antigo fabliaux que contava histórias para os seus filhotes. Ou, segundo uma
tradição que moderniza a antiga, a Mére I’Oye seria uma velha fiandeira que, pelas
suas histórias, universalizou-se e adquiriu, em cada região, um nome diferente.
Publicado em 1697, a coletânea trazia os mais belos dos contos, que encantaram o
mundo da literatura, são conhecidos até hoje.
Ao contrário do que possa ser pensado, Perrault não criou as narrativas de
seus contos, mas as adaptou, para que essas se adequassem à audiência da corte
do rei Luís XIV (1638 – 1715), a partir da cultura dos camponeses daquela época,
que forneceram a matéria-prima para as narrativas folclóricas destes contos. Apesar
do distanciamento da camada popular e do desprezo pela sua cultura, a classe
nobre conhecia tais narrativas através do inevitável contato como conseqüência do
comércio ou pela presença das governantas em suas residências. (ZILBERMAN,
2003; COELHO, 1991; CANTON, 1994; WARNER, 1999).
Após coletar as narrativas, Perrault eliminou o quanto pôde as passagens
obscenas ou repugnantes que continham incesto, sexo e canibalismo, visando
manter o apelo literário junto aos salões letrados parisienses.
Dois fatores principais podem ser apontados para esclarecer a transferência
dos contos de fadas do universo adulto para o infantil. O primeiro é que, até o século
XVII, a criança não era percebida como um ser socialmente distinto do adulto.
Assim, circulando entre adultos, as crianças entravam em contato com as histórias e
sentiam-se atraídas para o universo imaginário. Outro ponto foi o papel das
governantas que, vindas da camada popular, desempenharam um papel importante,
pois contavam os contos folclóricos para os filhos dos nobres, que ficavam sob seus
cuidados.
A partir de meados do século XVII até o início do século XIX, após a
Revolução Industrial, a diminuição da mortalidade infantil e o aumento da
expectativa de vida contribuíram para o desenvolvimento da noção social de
infância.
Uma vez configurada socialmente a criança, a Igreja, os moralistas e
pedagogos perceberam o potencial educativo e disciplinador dos contos. Este é o
74
segundo ponto, a exemplaridade, que através dos contos de fadas, fazia-se
presente.
O conservadorismo se mostra nas narrativas e na pedagogia do exemplo:
os personagens que agem de acordo com as regras estabelecidas são gratificados,
já os que as desobedecem e as transgridem recebem castigo físico, incluindo até
mesmo a morte. Esta rigidez dos corretivos educacionais traduz idéias pedagógicas
daquela época. Mesmo com o objetivo da revolução burguesa, que era derrubar os
valores da nobreza, a mudança expressa nesses contos de fadas foi superficial,
havendo, apenas, uma troca de papéis na hierarquia do poder.
Dentre os muitos valores transmitidos, aqueles relacionados à noção de
pertencimento social ocuparam lugares privilegiados e são exemplificados por
muitos contos de fadas.
A mudança, como por passe de mágica, caracteriza a presença do
elemento maravilhoso que Perrault sabe usar de forma magnífica. Lidar com o
maravilhoso, esse fantástico jogo de poder diante do inusitado, do impossível, foi e
continua sendo um dos exercícios mais importantes para a formação do espírito e
para o alimento da mente. A Psicanálise tem tentado provar e comprovar “[...] que os
significados simbólicos dos contos maravilhosos estão ligados aos eternos dilemas
que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional” (COELHO,
1993, p. 50). Esses contos, tomando as ansiedades e os dilemas existenciais com
seriedade, dirigem-se diretamente ao homem: a busca pela identidade, a
necessidade de amar e ser amado, o medo de não ser valorizado, o medo de viver,
de ousar e de morrer. Para todos eles, essas fabulosas histórias oferecem soluções
que podem ser aprendidas nos vários níveis da vida e da compreensão humana,
ainda que por meio de lições de moral como fez Perrault em cada um dos seus
contos, cuja intenção não era apenas entreter o público leitor, mas, especialmente,
transmitir lições e ensinamentos de moralidade.
O público passaria por uma evolução social, econômica e cultural, o que
alterou, de certo modo, o conhecimento no plano das idéias, do cotidiano e do
artístico-literário, resultando, assim, uma nova representação.
Talvez por ser um nobre burguês, Perrault tenha desprezado o povo, suas
crenças e superstições tão enraizadas. Como homem culto, deixava transparecer,
em alguns dos seus contos, ironia e um certo sarcasmo em relação ao popular.
Apesar desse pretendido distanciamento de Perrault com o popular, no dizer de
75
Cadermatori (1994, P. 36), “[...] a intenção burlesca, depreciativa, em relação aos
motivos populares, não impediu, em muitos momentos, a adesão afetiva àquelas
personagens carentes que delineia”.
Não se pode perder de vista que essas narrativas, ao serem coletadas,
levaram em conta dois momentos: um primeiro instante, o do conto folclórico que
circulava entre os adultos, sem endereçamento à criança, e um outro de adaptação
pedagógica, direcionado à infância. É nesse segundo momento que elas ganham o
caráter de advertência, quando apresentam as personagens sendo punidas por que
se afastarem das regras estabelecidas.
Antes, porém, consideraremos, em Perrault, algumas características
tradicionais que vão estruturar suas narrativas. A princípio, observa-se que a
efabulação inicia-se de imediato pelas circunstâncias que preparam o espírito do
leitor para o desenvolvimento da situação problema; por exemplo, em Chapeuzinho
Vermelho, Era uma vez uma menina; em Cinderela, Há muitos anos vivia um
homem; em As Fadas, Era uma vez uma viúva. Assim, em todos esses contos, a
narrativa vai obedecer a uma seqüência linear, apresentando uma preocupação com
a objetividade e economia de detalhes (herança das narrativas novelescas),
peculiaridades do conto. Quanto ao verbo utilizado no pretérito imperfeito, ele visa
registrar a ação interrompida, suspensa, pois, tal noção de tempo resulta da
consciência mítica, peculiar à humanidade no início dos tempos. Em decorrência
disso, o ato de contar, que é outra característica dessas narrativas, é referido no
corpo da própria história e corresponde, portanto, à voz familiar de um narrador,
recurso muito antigo e válido, porque serve de gancho para prender a atenção dos
ouvintes. (COELHO, 2000).
Segundo Warner (1999, p. 14):
Partir do epicentro formado pelos contos de Perrault implicou dirigir o foco
sobre contos de fadas que tinham como cerne dramas familiares, e não
sobre chistes e charadas, sobre fábulas animais ou contos proverbiais e
admonitórios, freqüentemente agrupados sob o título mais abrangente de
contos de fadas.
Aparentemente, os contos de fadas são histórias simples, eternas,
apaixonantes, cheias de magia. No entanto de forma sutil, figurativa, elas sempre
inculcaram na criança, desde a mais terna idade, preceitos morais, éticos e valores
76
“eternos” de uma ideologia dominante, procurando garantir a sustentação do sistema
vigente. Canton (1994, p. 48-49), acrescenta:
A moda dos contos de fadas declinou com o estouro da Revolução
Francesa, quando os interesses das classes superiores tiveram de se
defrontar com os das classes inferiores. Ainda assim, a onda dos contos de
fadas na França, que durou do final do século XVII ao final do XVIII, foi
diretamente responsável pelo florescimento do conto de fadas na Europa e
nas Américas a partir do século XIX. Os valores e comportamentos-padrão
estabelecidos pelos contos de Perrault exerceram e continuam a exercer
poder sobre a forma como lemos e interpretamos contos de fadas hoje em
dia, seja por intermédio das coleções ilustradas para crianças, das versões
cinematográficas de Walt Disney, dos anúncios de televisão ou de outras
utilizações nos veículos de comunicação de massa.
Posteriormente, os irmãos Grimm, naturais da Alemanha, tornaram-se
conhecidos pelos seus estudos filológicos provenientes da coleta e impressão dos
contos populares, que até hoje se acham difundidos no mundo. Integrados no
movimento romântico, buscavam em suas pesquisas, primordialmente, a pureza e a
simplicidade da poesia popular, estabelecendo as bases científicas do folclore.
Verifica-se que, no Romantismo, a violência será um dos recursos usados para
estabelecer a oposição entre o sublime e o grotesco, o que influenciará também as
versões dos contos de fadas. Essa tendência também apresenta matrizes que
remetem à questão da regionalidade:
Enquanto os contos germânicos mantêm um tom de terror e fantasia, os
franceses enfatizam o humor e a domesticidade. Pássaros de fogo
acomodam-se nos galinheiros. Elfos, demônios, espíritos da floresta, toda
panóplia indo-européia de seres mágicos reduz-se, na França, as duas
espécies, os ogres e as fadas. (DARNTON, 1986, p. 38).
Na perspectiva dos estudos culturais, Darnton, (1986, p. 74-75) assinala as
diferenças entre contos franceses e alemães:
Os narradores camponeses abordavam os mesmos temas e lhes faziam
modificações características, os franceses de uma maneira, os alemães de
outra. Enquanto os contos franceses tendem a ser realistas, grosseiros,
libidinosos e cômicos, os alemães partem para o sobrenatural, o poético, o
exótico e o violento. Naturalmente, as diferenças culturais não podem ser
reduzidas a uma fórmula – astúcia francesa contra crueldade alemã – mas
as comparações possibilitam que se identifique o tom peculiar que os
franceses davam às suas histórias; e a maneira como eles contam histórias
fornece pistas quanto à sua maneira de encarar o mundo.
Na Alemanha, os contos visavam estabelecer a “língua oficial alemã”, em
meio aos dialetos falados e serviam,além de “meros entretenimentos”, como
77
transmissores dos valores de bases dos grupos sociais, “[...] consolidando-se, assim,
o sistema de comportamentos consagrados pelo grupo”. (COELHO, 2003, p. 99).
Já Canton (1994, p.52) aponta:
As tendências dos Grimm eram nacionalistas na mesma medida em que
sua obra agradava ao nacionalismo alemão na época da Unificação. E o
fato de que a sua obra foi aceita e reverenciada como um documento de
pura tradição popular relaciona-se intrinsecamente com as circunstâncias
históricas. Os motivos patrióticos dos Grimm estavam enraizados na
necessidade urgente de legitimar a sua própria cultura.
O Romantismo do início do século XIX, na Alemanha, se caracteriza pelo
culto das tradições e por uma renovação da fé, bem como pela pesquisa folclórica e
pela tomada de consciência nacional. Com efeito, não se trata apenas de uma volta
ao passado ou às raízes populares simplesmente. Desde o começo do século, nas
diversas regiões da Europa, toma corpo um movimento infinitamente mais amplo do
que qualquer corrente literária ou política. O movimento é geral e aparece mais cedo
ou mais tarde, segundo as condições econômicas, o equilíbrio de força ou as
tradições nacionais do país ou da região. Os intelectuais e artistas que dele
participaram exprimiam-se ou na adesão a partidos teóricos, ou em explosões
sangrentas, ou ainda por uma orientação conservadora, liberal ou revolucionária.
Os irmãos Grimm recolheram, diretamente da memória popular, as antigas
narrativas, lendas ou sagas germânicas, conservadas pela tradição oral. Buscando
encontrar as origens da realidade histórica germânica, os pesquisadores encontram
a fantasia, o fantástico e o mítico em temas comuns da época medieval.
Essa pesquisa está no volume dos Contos de Fadas dos irmãos Grimm
para crianças e adultos e foi publicada em meados de 1813. Os contos fazem parte,
portanto, de uma literatura que reflete as mudanças rápidas e profundas que a
sociedade da época experimentava. Viajando pela Alemanha, os dois irmãos iam
colhendo de diversos contadores, as histórias que eram contadas pelo povo e
camponeses, cheias de tradições e, ao mesmo tempo, cheias de sonhos de
renovação.
Uma vertente da literatura infantil contemporânea insiste em revitalizar
gêneros de origem folclórica, como nos tempos passados de Perrault, dos irmãos
Grimm, das fábulas e das lendas. Os contos de fadas ganham, assim, novo
tratamento e trazem à discussão temáticas atemporais.
78
Diante dos vários contos Cinderela, à medida que a narrativa se desdobra,
percebemos os conceitos de região e regionalidade através das inúmeras versões
impressas ao longo dos séculos.
A versão Cinderela: uma biografia autorizada, de Paula Mastroberti, é
contemporânea, transferindo-se do ambiente rural, característica do período feudal
dos contos clássicos, para o ambiente urbano, envolvendo o sujeito no mundo
moderno.
O texto de Mastroberti não está inscrito no repertório clássico é uma
releitura de obras inseridas da tradição literária. Caracteriza-se como uma paródia
do conto de fadas clássico, constituindo-se como uma obra renovada pela ruptura
dos moldes tradicionais e criação de novas expectativas.
Na literatura infantil, o processo também revelou alterações que refletiam
um Brasil urbano e com ambições progressistas. O espaço rural, até então
onipresente, passou a se confundir com lugar de lazer para as
personagens que residiam na cidade. O universo urbano introduziu-se nos
livros para crianças, representando a primeira aproximação da literatura
infantil [...] A adesão ao urbano legitimou o tom de oralidade e
coloquialismo na linguagem, o que facilitou o diálogo entre leitor e obra.
(MARCHI, 2000, p. 166).
A percepção da presença de recursos ligados à intertextualidade, operando
com maior ou menor descontinuidade nos contos em relação à tradição, pressupõe a
participação ativa do leitor. Se o leitor não tem acesso ao acervo que compõe a
memória cultural, não observará determinados efeitos de linguagem, nem a
referência a elementos míticos e à figura da literatura universal.
Todavia os contos de fadas sobrevivem às críticas. Mesmo com tantas
transformações sócio-comportamentais, as narrativas maravilhosas continuam
encantando leitores nas mais variadas culturas.
Cabe-nos refletir e observar a literatura produzida para crianças nas últimas
décadas e atentar para as mudanças encontradas no gênero, como veremos na
próxima seção.
79
3.3 Literatura infantil no Brasil
A literatura voltada para a infância iniciou tardiamente no Brasil,
considerando que, na Europa, já em 1697, Perrault publicara seus primeiros contos.
Apesar de ocorrerem esporádicas publicações de traduções a partir de 1808, é no
final do século XIX que começa a transitar uma literatura de interesse infantil no
Brasil, com a mesma visão das raízes e da conjuntura do panorama da literatura
universal.
Nesse período, o país atravessava uma fase em que a expectativa dos
adultos era de que as crianças se tornassem sérias e maduras o quanto antes.
Textos e obras serviam como doutrina, criados para valorização e instalação da
cultura nacional. O acesso à escola era restrito às classes mais abastadas, e os
professores exigiam dos alunos o estudo e a compreensão de textos clássicos, com
uma linguagem elaborada e temas nada atrativos. Foi nesse cenário que surgiram,
vindos da Europa, os primeiros contos populares, repletos de magia e aventuras,
que correspondiam aos anseios literários dos pequenos leitores, iniciando uma
jornada de descobertas e transformações.
A história da literatura de interesse infantil no Brasil atravessou quatro fases,
conforme Becker (2001), sendo a primeira a partir do final do século XIX. Essa fase
trouxe consigo os moldes europeus, com seus temas e costumes. Pela primeira vez,
via-se uma nova perspectiva para a criação de uma literatura infantil genuinamente
brasileira, bem como uma mudança na concepção da infância no país, visto que a
origem deste tipo de literatura, na Europa, esteve estritamente ligada às mudanças
ocorridas na mentalidade social acerca das diferenças entre crianças e adultos.
Conforme Arroyo (1968, p.163):
A reação nacional ao enorme predomínio de literatura didática e literatura
infantil que nos vinha de Portugal, em obras originais e traduzidas,
manifestou-se de forma isolada em algumas regiões mais desenvolvidas
culturalmente no país. Mas foi particularmente na área escolar que ela
começou, passando depois a dar exemplo de inconformismo pleno na área
das traduções. A rigor foi uma reação teórica, que se compreende
facilmente em face dos profundos laços de identidade que nos ligava a
Portugal.
Um grande marco desse período foi o trabalho de Carlos Jacob Jansen,
que, ao chegar da Alemanha em 1851, deparou-se com o descontentamento dos
80
intelectuais brasileiros pela carência de boas traduções de obras estrangeiras.
Jansen passou a se dedicar a essa tarefa, o que resultou na publicação traduzida e
adaptada de obras como Robinson Crusoé, Dom Quixote de La Mancha, As viagens
de Gulliver, As aventuras do Barão de Münchhausen, Contos seletos das mil e uma
noites, entre outros clássicos da literatura universal.
“Pode-se destacar com justiça, a esta altura, na paisagem cultural brasileira
enquanto interessado na literatura para a infância, o nome de Figueiredo Pimentel”,
(ARROYO, 1968, p. 176), que também se encarregou da tradução e adaptação de
obras estrangeiras para crianças. Em 1896, fez traduções de Perrault, de Grimm e
de outros autores com o título de Contos de Fadas, como os Contos da Carochinha,
Histórias da Avozinha, Histórias da Baratinha e Histórias do Arco da Velha.
(ARROYO, 1968).
No percurso histórico da literatura infantil, muitas obras que se vincularam às
escolas não se restringiram apenas a elas, tornando-se leituras favoritas de todos.
Segundo Zilberman (2005, p. 18):
Na mesma época em que se inauguravam linhas editoriais brasileiras de
textos para crianças, encaminhadas pelos trabalhos de pioneiros como Carl
Jansen e Figueiredo Pimentel, editavam-se também os primeiros livros
didáticos. Chamavam-se, muitos deles, Seletas, Antologias ou Livros de
Leitura, e eram adotados pelos professores, que os recomendavam aos
alunos ou reproduziam, em voz alta, trechos deles para todo o grupo. Nem
todas essas obras restringiam-se à sala de aula, e alguns tornaram-se a
leitura favoritas de nossos tataravós. Um dos autores mais difundidos foi
Olavo Bilac (1865 – 1918), cujas poesias foram recitadas e memorizadas
por várias gerações. Alguns poemas estão cheios de civismo, como “A
Pátria”, que convoca os leitores ao brio nacionalista, dizendo, na abertura:
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! Não verás nenhum país como este!
O surgimento de uma literatura voltada aos pequenos refletiu a tentativa
implantada pelos intelectuais do final do século XIX de levar o país a um maior
desenvolvimento no âmbito cultural, justificada pela demanda do mercado. Buscava-
se, também, fazer surgir, através das crianças, um inédito sentimento de
nacionalismo, com a publicação de obras que se mostravam como uma primeira
tentativa de atender a esse público em formação.
Ao mesmo tempo em que aumentavam as traduções e adaptações de livros
estrangeiros no mercado editorial infanto-juvenil brasileiro, ocorria o despertar da
consciência da importância de uma literatura própria, com temáticas nacionais,
sendo essa necessidade percebida como urgente para satisfazer os anseios
81
culturais do público infantil, tal como vinha acontecendo na literatura considerada
adulta. (COELHO, 1991).
Entre as primeiras obras brasileiras destacam-se O livro do povo (1861), de
Antônio Marques Rodrigues, O amiguinho Nhonhô (1882), de Meneses Vieira,
Contos Infantis (1886), de Júlia Lopes de Almeida, Coisas Brasileiras (1893), de
Romão Puiggari. (BECKER, 2001).
Data igualmente do final do século passado o livro Contos infantis (1886),
de Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira. Em 1904, Olavo Bilac e
Coelho Neto editam seus Contos pátrios e, em 1907, Júlia Lopes de
Almeida lança as Histórias da nossa terra. Em 1910, surge a narrativa
longa Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manoel Bonfim; sete anos depois,
Júlia Lopes de Almeida retorna com uma historia: Era uma vez. Em 1919,
com o romance Saudade, Tales de Andrade praticamente encerra esse
primeiro período da literatura infantil brasileira.(LAJOLO; ZILBERMAN,
2004, p. 29-30).
Apesar disso, até as primeiras décadas do século XX, as temáticas
apresentadas nas narrativas infantis eram, em geral, as mesmas trazidas da Europa,
fenômeno especialmente claro na cultura letrada, que se adaptou à linguagem
nacional com muito menos agilidade que a cultura oral. A partir deste período, foram
realizados os primeiros esforços para inserir nas narrativas infantis as temáticas
nacionais, enfocando a linguagem e suas variações, a geografia, os costumes, as
lendas e todas as formas de cultura que gerassem a identificação nacionalista do
pequeno leitor. Dessa forma, inicia-se a segunda fase de literatura infantil no Brasil,
fase que compreende o período de 1920 a 1945, conforme Becker (2001).
A década de 1920 apresentou turbulências em todas as áreas da sociedade,
cada classe reivindicando seus direitos e interesses. A classe artística revolucionou
a arte no país com a Semana de Arte Moderna, de 1922, e a educação também
sofreu notáveis mudanças, “[...] quando ocorreu a consolidação da literatura infantil
brasileira através da multiplicação do público, de títulos e de autores, e a renovação
dos temas”. (MARCHI, 2000, p. 16). Ainda, segundo Marchi (2000, p. 69), “Muitos
escritores de destaque no panorama literário nacional passaram a escrever para
crianças: Graciliano Ramos, Menotti del Picchia, Viriato Correia, José Lins do Rego,
Cecília Meireles, Érico Veríssimo e, principalmente, Monteiro Lobato”.
A educação, até esse período, não era exatamente prioridade, resultando
em altos índices de analfabetismo em todo o país, situação que exigiu a criação de
um novo modelo educacional que ocuparia a criança em tempo integral e visaria à
82
estimulação do intelecto, bem como o gosto por artes e esportes. Becker (2001)
define o período como de grandes mudanças sociais, impulsionado por uma nova
consciência que influenciava todas as áreas do pensamento.
A obra infantil de Monteiro Lobato, a partir de 1921, constituiu o grande
marco na nova tendência cultural de afirmação de uma linguagem e de temáticas
brasileiras. Lobato costumava afirmar que fazia livros onde as crianças pudessem
morar.
O papel de Monteiro Lobato, na literatura, foi como um divisor de águas,
separando o Brasil em dois, um antigo e um atual, trazendo à tona a herança do
passado. Dessa forma, Lobato criou um novo e precioso caminho para literatura
infantil, rompendo as convenções estereotipadas, e abrindo portas para as
novidades exigidas pelo novo século.
Entretanto, sua criação foi fruto de largo amadurecimento literário. Quando
publicou, em 1920, A menina do narizinho arrebitado, Monteiro Lobato já estava com
38 anos de idade, tendo iniciado sua carreira com as letras ainda na adolescência,
com crônicas e artigos para a imprensa paulista. Neste aspecto, “Lobato foi um dos
que se empenharam a fundo nessa luta pela descoberta e conquista da brasilidade
ou do nacional. A princípio na área da Literatura, seja para adultos ou para crianças;
mais tarde, no campo econômico e político”. (COELHO, 1991, p. 226).
As décadas de 1930 e 1940 foram de grande turbulência no âmbito mundial,
culminando na maior onda de violação dos direitos civis e da democracia, com a
eclosão da Segunda Guerra Mundial. O mundo estava tomado por uma onda de
fúria resultando a ruína de diversas economias. No Brasil, nesse período, ocorreu a
ditadura implantada por Getúlio Vargas com o Estado Novo. Realizou-se a transição
do país arcaico para o moderno, através de mudanças econômicas, na indústria e no
comércio, com reivindicações e conquistas sociais, modernizando-se a sociedade
brasileira. Na literatura, essas mudanças encontram sua melhor expressão no
Romance Regionalista. (COELHO, 1991).
O sistema escolar do Brasil, conseqüentemente, também se modificou para
acompanhar este desenvolvimento. O Estado instituiu a obrigatoriedade da
educação primária, valorizou-se o ensino técnico e foi ampliado o ensino superior.
No âmbito literário, passaram a surgir personagens heróicos, situados
geograficamente no interior do Brasil, obedecendo à tendência nacionalista que há
muito influenciava as áreas artísticas. (BECKER, 2001)
83
Outro escritor importante, contemporâneo de Lobato, que deixou intensa
produção literária, foi Viriato Correia que publicou, em 1938, Cazuza, História do
Brasil para Crianças, Meu Torrão, A Descoberta do Brasil e A Bandeira de
Esmeraldas.
Dentre os que se iniciaram como escritores para crianças ou jovens nos
anos 30 e que hoje apresentam uma produção já integrada no acervo
literário brasileiro, estão: Baltasar Godói Moreira, Carlos Lebeis, Érico
Veríssimo, Gondim da Fonseca, Graciliano Ramos, Jerônimo Moneteiro,
Luís Jardim, Luiz Gonzaga de Campos Fleury, Malba Tahan, Narbal
Fontes, Ofélia Fontes, Orígenes Lessa, Viriato Correia e Vicente
Guimarães (Vovô Felício). (COELHO, 1991, p. 241).
A terceira fase da literatura de interesse infantil no Brasil compreendeu as
décadas de 1950 e 1960. (BECKER, 2001). O período foi marcado por intensas
mudanças políticas no país, desde a eleição de Getúlio Vargas, com uma política
nacionalista e intervencionista, passando pela profunda crise econômica enfrentada
pelo então presidente Jânio Quadros, até a instauração da Ditadura Militar, em 1964.
O crescimento do gênero infantil, na literatura nacional, acompanhou a
modernização social do país, contando já com um público bastante expressivo. Essa
terceira fase, porém, não foi um período muito favorável à produção propriamente
dita, mas serviu como preparação para o “boom” no mercado editorial infantil
brasileiro, iniciado na década de 1970, quando o regime ditatorial entrava em
decadência.
Conforme afirmou Marchi (2000, p.16) “Com uma escola mais liberal e
politizada, os livros para crianças incorporaram formas e procedimentos típicos da
indústria cultural, abrindo espaço para temas e linguagem adequados”.
Desse modo, a literatura infantil entrou na quarta fase, marcada pelas
décadas de 1970 e 1980. (BECKER, 2001). Com a falência do regime militar, a
produção editorial retomou o percurso iniciado por Lobato rumo à modernização e
nacionalização dos contos populares, com o enriquecimento das narrativas infantis.
O período compreendido pela quarta fase foi também de imensas mudanças sociais
e econômicas, que levaram o Brasil a uma crise econômica sem precedentes. As
narrativas produzidas nesse período valorizavam o viver como uma grande aventura
e demonstravam os prazeres da liberdade limitada pelo antigo regime. Foram
abandonadas, em quase sua totalidade, as obras de cunho didático e chegaram às
84
prateleiras das livrarias obras com os mais diversos temas, variando desde o
cotidiano agrícola até a ficção científica e tramas policiais.
A esse respeito, Coelho (2000, p. 130) afirma que:
[...] a nova literatura infantil/juvenil obedece às novas palavras de ordem:
criatividade, consciência da linguagem e consciência crítica. Palavras que
emanam de uma nova concepção de mundo: o homem entendido como
“ser histórico e criador de cultura” (sendo a infância seu estágio
fundamental); a palavra descoberta como “poder nomeador” do Real (com
a conseqüente exigência de experimentalismo formal); o saber ou o
conhecimento entendidos como “prática da liberdade” (Paulo Freire) e,
conseqüentemente, a valorização do espírito questionador, lúdico,
irreverente e, sobretudo, bem-humorado (que desafia as certezas e os
paradigmas de comportamento, defendidos pela Tradição).
A história da literatura brasileira de interesse infantil, portanto, enfrentou
distintos períodos que a levaram à maturidade enquanto estilo literário recém
explorado em território nacional. Foram períodos cuja ênfase, em alguns, se
centrava na qualidade, em outros na quantidade, outros buscando explorar terrenos
virgens e outros meramente traduzidos do modelo europeu. É neste cenário que
surgem obras de grande destaque como Marcelo, marmelo, martelo (Ruth Rocha),
História meio ao contrário (Ana Maria Machado), Chapeuzinho Amarelo (Chico
Buarque de Holanda), A casa da madrinha, Os colegas (Ligia Bojunga Nunes), Uma
idéia toda azul (Marina Colassanti) e muitas outras obras que se tornaram a base do
novo universo da literatura infantil brasileira.
Na década de 1980, o mercado editorial voltado ao público infantil abre
portas para o surgimento de novos escritores e ilustradores. Atualmente este
mercado permanece em expansão, atraindo um público cada vez mais amplo e
colocando o Brasil no circuito mundial de produção de obras infantis que atraem um
público bastante generalizado.
Houve, segundo Coelho (2000, p. 127),
[...] eclosão de uma nova qualidade literária e/ou estética que transformou
o livro infantil em um objeto novo. Isto é, um ser-de-linguagem que se
constrói como espaço de convergência de multilinguagens: narrativas em
prosa ou poesia que se desenvolvem através de palavras, desenhos,
pinturas, moldagem, fotografia, cerâmica, processos digitais ou virtuais.
Um dos aspectos mais importantes dessa nova roupagem literária é a
mistura de linguagens, de ritmos e perspectivas que tornam único o novo livro
infantil. Segundo Zilberman (2003, p. 175), com isso,
85
O exame dos diferentes processos de que se vale a literatura para atingir
esse fim permite que se dimensione se se trata ou não de uma criação de
vanguarda. É, pois, com base em seus índices de ruptura, qual seja, de
seu maior ou menor comprometimento com a vanguarda, que todo o texto
é analisado e valorizado. Tal fator determina a índole eminentemente
histórica da literatura, pois ela está em constante transformação, ao reagir
de maneira ativa às circunstâncias sociais de onde procede.
A criação literária, seja voltada para a criança, seja para outro tipo de
público, visa à ruptura com o convencional, sem, entretanto, abandonar as relações
sociais, que introduz o leitor em seu próprio meio, ajudando-o a compreender a sua
realidade e a de seus semelhantes. Assim, ao incorporar modelos estéticos, sociais,
lingüísticos, éticos ou religiosos, o texto os expõe, objetivando manter-se como
veículo de informação no meio do qual faz parte, contribuindo para adequação do
leitor ao seu meio social, seu conhecimento e sua transformação.
Entretanto, um aspecto importante que deve ser levado em consideração é a
transformação do conto de fadas em um produto em que os fins são apenas
lucrativos. Hohlfeldt (1988, p. 204) alerta para a chamada “indústria cultural”,
afirmando:
Creio que devemos, para uma análise abrangente, levar em conta o fato de
que também a literatura integra-se naquilo que Theodor Adorno
denominou, ainda na década de 40, como “indústria cultural”, isto é, um
conjunto de procedimentos que, de maneira ampla e extensiva, são
praticados por empresas capitalistas que fazem da cultura uma alternativa
de acumulação e de produção de mais-valia.
O perigo da transformação de cultura em mero produto de comercialização
é a completa banalização de seu conteúdo. A descoberta de um gênero lucrativo
pode acabar por extinguir sua verdadeira função. Porém, como pondera Hohlfeldt
(1988, p. 204-205), a situação não se agravou a tal ponto, já que somente se viu um
enorme lançamento de livros desse gênero. Apontando:
Verificamos assim que, se houve um gênero que ganhou notoriedade e
espaço junto às editoras, este foi o que se convencionou denominar de
“literatura infanto-juvenil”, apesar de toda a ambigüidade que a designação
provoca. O fenômeno inicia-se na segunda metade da década de setenta e
já tendo completado mais de dez anos prossegue, com uma enorme
quantidade de lançamentos e uma qualidade significativa que, se não
mantém relação direta com tal quantidade, nem por isso deixa de ser
significativa.
86
Mesmo os editores querendo várias publicações que gerassem lucros,
passaram a buscar uma “matéria-prima” de boa qualidade para vender aos leitores,
o que acabou trazendo bons resultados à literatura brasileira, como assinala
Hohlfeldt (1988, p. 205):
Neste caso, não apenas buscou-se o concurso de novos autores quanto
redescobriram-se textos de autores já consagrados, bastando-se lembrar
nomes como os de Erico Verissimo, Clarice Lispector, Graciliano Ramos,
José Lins do Rego, dentre os prosadores, Mario Quintana, Vinicius de
Moraes ou Cecília Meireles, dentre alguns dos poetas mais conhecidos. Os
editores correm em busca de novos títulos, fazem encomendas, modificam
até mesmo os critérios de pagamento de direitos autorais, apostando no
lucro imediato, sem dúvida, mas provocando, ao mesmo tempo, duas
ocorrências importantes para o futuro do livro no Brasil: a valorização do
ilustrador, muitas vezes reconhecido como um co-autor, pela sua decisiva
interferência no produto final que é o livro e, por outro lado, apostando mais
decisivamente (assim esperamos nós) na formação e manutenção de um
leitor que, mesmo após seu distanciamento dos bancos escolares, seja em
nível de primário, secundário ou universitário, mantenha o hábito de leitura
[...]
Como destacou o autor, a produção de livros infantis acabou favorecendo o
leitor brasileiro, pois incentivou a edição de inúmeros títulos de qualidade na
produção nacional e, como veremos na próxima seção, na produção
sulriograndense.
3.4 Literatura infantil no Rio Grande do Sul
A história da literatura infantil riograndense também é recente, pois as
primeiras obras genuinamente gaúchas foram escritas no final do século XIX e início
do século XX.
As traduções e adaptações da literatura européia também fizeram parte da
leitura dos gaúchos, pois os livros escolares eram trazidos pelos imigrantes, e os
textos nacionais utilizados nas escolas eram doutrinários.
As características políticas que envolveram a Província em constantes
guerras e a distância do centro cultural do país, colaboraram para que o
desenvolvimento da literatura no Rio Grande do Sul fosse diferente e tardio. Para
Marchi (2000, p.13):
87
Na Europa, no Brasil ou no Rio Grande do Sul, algumas semelhanças
apareceram ao se tratar da história da literatura infantil. No princípio, foi o
surgimento de uma literatura infantil espontânea conforme Marc Soriano
(1959, p. 17), ou seja, diante da carência de livros a elas dirigidos, as
crianças apropriaram-se, deliberadamente, de obras do território adulto.
Depois, começou a surgir, lentamente, a literatura criada especialmente
para o público infantil. No entanto, no decurso do primeiro período, as
crianças suportaram o fluxo de livros didáticos ou moralizadores, cujo
objetivo era educar e formar esse futuro homem.
O crescimento da literatura infantil foi motivado pela percepção dos autores
e editores do verdadeiro desejo das crianças, que não gostavam dos livros feitos
especialmente para elas, uma vez que esses livros tinham caráter exclusivamente
didático, enquanto muitos livros para adultos apresentavam a magia e fantasia que
essas crianças buscavam.
No Brasil, o surgimento de uma literatura que agradava às crianças, refletiu
na própria evolução do país. Motivado por uma literatura local que refletia seus
gostos, o público infantil passou a ser grande impulsionador do mercado editorial,
tanto no Rio Grande do Sul quanto no resto da nação.
No estado, o fator mais importante para o advento de uma literatura
específica foi o “gauchismo”, uma postura de valorização regional muito forte,
marcada pela riqueza em lendas e histórias populares, tal com visto na Europa. A
“idade de ouro” do regionalismo no Rio Grande do Sul foi registrada entre 1890 e
1930, com publicações de várias obras de Simões Lopes Netos, com temáticas que
exploravam toda a magia dos contos e lendas gauchescas. (MARCHI, 2000).
Além disso, as histórias tradicionais gaúchas foram enriquecidas com o
mesmo “charme” das histórias provindas da Europa, uma vez que o Rio Grande do
Sul, sem apoio do governo federal a quem recorrera para suprir as precárias
condições de ensino de crianças e adultos imigrantes, foi buscar na Europa
educadores, que trouxeram consigo os livros que por lá circulavam.
A princípio, a literatura produzida no sul permaneceu como produto
exclusivo dos gaúchos, fato que foi se alterando aos poucos, especialmente com
obras de autores riograndenses já consagrados que adentravam o universo infantil,
apresentando a mesma qualidade com a qual atendiam o público adulto.
A literatura infantil gaúcha foi marcada por três períodos distintos, sendo o
primeiro iniciado em 1882, o segundo em 1935 e o terceiro em 1959, cujas obras e
autores fizeram do Rio Grande do Sul um grande celeiro de talentos literários que
marcaram época no cenário nacional. Apesar da temática reforçar os costumes
88
locais, é notável que esta literatura tenha fortes pilares em todo o país, fazendo
parte do acervo nacional de literatura infantil, com alguns dos maiores autores de
todos os tempos, conforme explica Marchi (2000).
O primeiro período da literatura infantil gaúcha foi assim designado por
conter as primeiras adaptações de obras européias e, mais importante ainda, por
contar com o lançamento das primeiras obras de autoria de escritores gaúchos,
fortemente influenciados pelas obras que vinham de fora do país.
A primeira obra gaúcha realmente voltada às crianças foi Flores do Campo
– Poesias Infantis, publicada por José Fialho Dutra, em 1882. Posteriormente, seus
originais foram resgatados, sendo republicada no ano de 1982.
Em 1928, ainda na primeira fase, houve o lançamento do livro Contos
riograndenses – Leituras escolares, de Darcy Azambuja, obra que marcou o início do
sentimento gauchesco nas crianças, característica presente, há tempos, nas obras
adultas. Expondo a cultura e os hábitos dos gaúchos, recheados de nostalgia e
descrições de locais típicos da figura simbólica do Rio Grande do Sul, conseguiu
despertar nos novos leitores o entusiasmo pela cultura sulista. (MARCHI, 2000).
O sentimento regionalista desta obra foi tamanho que, até mesmo na hora
de descrever alguns personagens, falou-se em “Fogão gaúcho”: “um menino, uma
menina e um gauchinho” (MARCHI, 2000, p. 52). O menino provindo dos pampas
não era tão somente mais um menino, era um gaúcho, personagem que, ao aguçar
o sentimento de orgulho pela própria terra, procurava garantir a perpetuação da
cultura local pelas próximas gerações. Marchi (2000, p. 53) completa:
Esta obra marcou, definitivamente, a literatura infantil gaúcha, por ser a
única no período de temática regionalista e, em especial, a encaminhar o
leitor a uma reflexão sobre as alterações sociais por que passava a
sociedade agrícola sul-rio-grandense na década de 1930.
A inexistência de outras obras originárias da vertente regionalista dirigidas
ao público infantil, nesse primeiro período, revelou a desconsideração da
criança como ser social e como público leitor a ser formado e conquistado,
sobretudo se comparada com a vasta produção regionalista da literatura
adulta.
Dessa forma, os autores da época procuravam incentivar as crianças a
seguirem padrões ideais de comportamento, com grande destaque para a
religiosidade. Ainda neste período, mesmo com um maior enfoque no ser humano,
as histórias continuavam a tratar a criança como mera ouvinte, sem que os autores
compreendessem, em profundidade, as necessidades do seu verdadeiro público.
89
Assim, como ocorria em todo o Brasil e em outras partes do mundo, a literatura
infantil gaúcha tratava a criança como um modelo estereotipado, acrescentando, em
seu conteúdo, atributos da educação e transformando a literatura em mero
instrumento pedagógico.
O marco inicial da segunda fase foi o lançamento da obra A vida de Joana
D’Arc, de Érico Veríssimo, que refletiu o correr do sentimento regionalista presente,
com semelhança à primeira fase, a valorização gauchesca. Escreveu outras obras
infantis que até hoje agradam às crianças como: As aventuras do avião vermelho,
Os três porquinhos pobres, Rosa Maria no castelo encantado, O urso com música na
barriga, Outra vez os três porquinhos e A vida do elefante Basílio.
Outro grande destaque do período foi o surgimento, primeiro em âmbito
local, do poeta Mário Quintana, um escritor que seguia princípios simbolistas pré-
modernistas e que trabalhou intensamente para o público infantil, lançando, em
1948, O batalhão das letras, obra marcante, que carrega em si um misto de
entretenimento e educação à moda européia. Escreveu também Pé de pilão,
Menininho doente e outros poemas, Lili inventa o mundo, Nariz de vidro, Sapo
amarelo, Baú de espantos.
O segundo período da literatura infantil gaúcha marcou o aumento da
participação feminina nas narrativas, resultado do que já se passava na vida das
mulheres na sociedade daquela época. Embora, o domínio fosse de adultos
homens, começa a crescer também o número de personagens crianças, bem como
a divisão entre dois tipos infantis: a criança virtuosa, representada por meninos e
meninas obedientes, corajosos, inteligentes, generosos e religiosos; e a criança
negligente, marcada por meninos e meninas sujos, preguiçosos e desobedientes,
que geralmente representavam o opositor do mocinho. (MARCHI, 2000).
Nesse período, tanto os adultos quanto crianças foram presenteados com a
instalação da primeira Feira do Livro de Porto Alegre, em 1953. O evento, além de
agradar aos leitores, provocou um notável aumento do público consumidor de livros.
A produção literária gaúcha, nesse período, destacou-se pela criação de
obras próprias, mas não parou por aí. A tradução e adaptação de outras obras
também marcaram época, com o aumento da qualidade no processo de adequação
à língua e da seleção das obras, tendo como grande nome a tradutora e escritora
Pepita de Leão. Houve, também, o princípio das coleções, que lançavam em
conjunto obras com algum grau de semelhança. (MARCHI, 2000).
90
A terceira e última fase da história de literatura infantil no Rio Grande do Sul
teve início em 1959, época marcada por profundas mudanças políticas, sociais,
econômicas e culturais que alteraram drasticamente o cotidiano nacional. Foi um
período em que a literatura brasileira, como um todo, alcançava um certo grau de
maturidade.
Na literatura infantil, o crescimento brasileiro dessa época deixou reflexos
profundos: o universo rural, até então bastante explorado pela literatura, passa a ser
coadjuvante em histórias predominantemente urbanas, sendo o campo somente um
local de refúgio para os personagens. Da mesma forma, surgiu um movimento de
denúncia nas obras destinadas a crianças, passando-se a ilustrar a vida das que
viviam em condições muito diferentes daquelas que tinham acesso ao livro,
utilizando-se o livro infantil como uma ferramenta para conscientizar os futuros
adultos acerca dos graves problemas sociais existentes no país.
Nesse período, muito da magia tradicional dos contos de fadas juntou-se a
uma literatura mais realista que queria denunciar os problemas sociais e demonstrar
que final feliz é privilégio de alguns. A literatura infantil, na medida em que perdia
seu caráter mágico, se aproximava cada vez mais da literatura adulta, seguindo,
inclusive, os passos dos romances policiais. Entretanto, mesmo com tamanha
aproximação com a literatura adulta, a literatura infantil manteve-se ligada às suas
origens pedagógicas, tendo sua circulação focada no meio escolar. (MARCHI, 2000).
O Rio Grande do Sul, reconhecido pólo editorial, passa a contar com um
público ainda mais generalizado, na medida em que autores gaúchos migram para o
centro do país; essa movimentação fez com que os livros não fossem mais
publicados e consumidos somente no Estado, mas também em todo o território
brasileiro. O crescimento editorial infantil foi notável, provocando e aguçando ainda
mais o interesse dos editores, que passaram a publicar inúmeras obras que
consideravam vendáveis, abolindo a preocupação com a qualidade e conteúdo.
Dessa forma, a variação de temas foi imensa, como expõe Marchi (2000, p. 177):
Diante do conturbado quadro social instalado, o surto na produção da
literatura infantil gaúcha, no período de 1959 a 1990, teve em si refletida as
mais diversas correntes. De um lado, autores engajados que transportaram
para as suas obras questões e reflexões sobre o processo social
vivenciado pela criança; de outro, os reacionários que tiveram sua visão
obliterada pelo funcionalismo da literatura como formadora, ocupando-se
em transmitir conceitos batidos e ultrapassados a uma criança idealizada,
inexistente. Ainda nesse período, permaneceram produzindo os autores
91
ligados à temática regionalista que uniu à tradição a história e o humor
principalmente, numa atitude de respeito ao mundo infantil.
Essa terceira fase da literatura infantil gaúcha, iniciada pela publicação das
obras Peripécias na lua, de Walmir Ayala e O último dos Tangarás, de Sérgio
Raupp, contou com mais de trezentos títulos publicados, sendo marcante o resgate
da fala gaúcha e de expressões regionais, reforçando o perfil do bravo gaúcho, um
homem que valoriza sua tradição e sua história, mesmo que não esteja mais ligado à
vida campeira.
A exploração da regionalidade na literatura infantil gaúcha esteve marcada
em obras como As aventuras de Gauchito (1984), de Dirceu Antônio Chiesa, que,
juntamente com outras obras do mesmo autor, relatou “causos” de crianças não-
urbanas, que mantinham estreita ligação com a natureza nos pampas gaúchos. O
mesmo ocorre com A família Treme - Treme nas Missões (1988), de Maria Beatriz
Papaléo, que relata as aventuras de uma família de fantasmas em um dos pontos
turísticos mais famosos, no interior do Rio Grande do Sul.
Os tradicionais contos de fadas, no entanto, não se perderam no tempo: a
literatura infantil gaúcha, através da paródia e da renovação, continou oferecendo
um espaço para a magia dos contos antigos, como mostra Marchi (2000, p. 184):
Maria Dinorah parodiou o conto de fadas no livro Histórias de fadas e
prendas (Rio de Janeiro, Rio Gráfica, 1986), misturando fadas e prendas,
num tempo e espaço muito próximos, através de três pequenas histórias:
“O casamento do rei”, que chega ao leitor pela narrativa de uma lâmpada
antropomorfizada; “Espelho mágico”, onde a protagonista acaba fazendo
uma cirurgia plástica a fim de conquistar um gaúcho; e “Um amor de
cinderela”, que não tem fada madrinha, mas tem uma abóbora mágica que
ajuda a protagonista a encontrar o seu par. O livro, com humor, histórias
ágeis e muitos diálogos, fez sucesso fora do Estado, conforme atesta a
apresentação na nova edição da Editora Ática, de São Paulo. Sua
veiculação para um outro público leitor fez com que fosse agregada uma
relação de palavras e termos típicos da fala sulina.
Nesse aspecto, ressalva-se que o humor sempre se fez bastante presente
nas narrativas infantis gaúchas, com os famosos “causos”, histórias que vão
aumentando de tamanho conforme aumenta o número de pessoas que as relatam.
Grande parte desse humor se deu por meio da intertextualidade, o que permitia
múltiplas interpretações, tanto na renovação de histórias antigas da cultura letrada,
quanto na transformação literária de lendas e mitos da cultura oral, tal como ocorrera
na Europa, na época do surgimento dos primeiros contos de fadas.
92
Com a modernização dos livros infantis e sua aproximação com a literatura
adulta, houve perda da identidade infantil, fato contornado pela autora Lygia Bojunga
Nunes, que se tornou precursora de um movimento de resgate dessa identidade,
considerada um marco significativo no movimento renovador da literatura infantil, na
década de 70, tanto no Rio Grande do Sul como no Brasil. Ela foi acompanhada por
diversos autores, com dezenas de obras que buscavam trazer de volta a identidade
perdida, sem subestimar o grau de amadurecimento da criança contemporânea, que
abandona a infância e se depara com temáticas adultas cada vez mais cedo.
(MARCHI, 2000). Com uma produção extremamente qualificada, a autora entregou
aos leitores as obras: Os colegas, O meu amigo pintor, Corda-bamba, O sofá
estampado, Angélica, A bolsa amarela, A casa da madrinha, 7 cartas e 2 sonhos,
Tchau, Nós três, entre outras obras.
O elemento maravilhoso e os tradicionais personagens dos contos de fadas
também foram vítimas dessa perda, fato explorado por Josué Guimarães, em A
última bruxa (1986), que trata justamente da frustração da personagem em não mais
fazer mágicas e não ter verruga no nariz. Nesse ponto, para não se perder por
completo, a bruxa se tornou uma linda jovem habitante do meio urbano. (MARCHI,
2000).
As temáticas, como anteriormente enfatizado, variam bastante, abrangendo
um universo riquíssimo de histórias. Passam de temas urbanos para denúncias
sociais, de histórias de escravos para narrativas com personagens negros,
motivando uma reflexão acerca das injustiças entre as classes, analisando a questão
da imigração, valorizando o gauchismo rural e a natureza, até chegar às elaboradas
tramas policiais, da mesma forma como a literatura adulta o faz.
Nessas obras policiais, a criança ou o jovem, auxiliando o adulto ou agindo
por conta própria, é sempre o grande solucionador do mistério, desvendando casos,
denunciando o bandido e tornando-se o grande herói; na maioria dos casos, a
criança o faz por sua própria força de vontade e esperteza, sem contar com auxílios
mágicos, como ocorre nos contos de fadas clássicos. (MARCHI, 2000).
Estimulado pela confirmação da existência de um público infantil regional, o
terceiro período da literatura infantil no Rio Grande do Sul presenteou seus leitores
como uma imensa gama de títulos, o que motivou ainda mais a exploração de temas
mais próximos à realidade dessas crianças, tanto no que se refere à denúncia social,
quanto à urbanização de personagens. Tudo isto, no entanto, sem abandonar a
93
tradição gaúcha, com uma vasta literatura tratando do meio rural. Inúmeros autores
escreveram sobre estas temáticas especificamente nas décadas de 80 e 90, entre
eles: História das Missões, O tesouro de Arroio do Conde e o Negrinho do Pastoreio,
escritos por Barbosa Lessa; Ana de salto alto e Meg Foguete, Vovô fugiu de casa,
de Sergio Caparelli; A menina das bolhas de sabão, de Antônio Hohlfeldt; A gatinha
do Seu Zé, O discurso amarelo, Que falta que ela nos faz, escritos por Maria
Dinorah; Bate bate coração, Quebrando a cara, de Zahyra Petry, O rio que ficou
triste, Capitão Morcego, de Mary Bastian; Aventura no rio escuro, de Charles Kiefer;
O rapto da Dorotéia, A casa das quatro luas, de Josué Guimarães; A vaca invisível,
de Edy Lima; Álbuns de figurinhas, de Carlos Urbim. (MARCHI, 2000; COELHO,
1991; ZILBERMAN, 2003).
Neste mesmo período, as produções de literatura infantil cresceram em
larga escala com diferentes escritores no Rio Grande do Sul, destacando-se:
Cinderela: uma biografia autorizada, de Paula Mastroberti; Família sujo, de Gustavo
Finkler; O enigma das caixas, de Eloir Alves Fernandes e Heloisa Carla Coin
Bacichette.
Em muitos desses casos, a magia fica por conta das descobertas dos
protagonistas, sendo abolidas, em certos aspectos, as soluções milagrosas e a
figura tradicional da fada, que resolve qualquer problema com sua varinha de
condão, como no conto Cinderela, da gaúcha Paula Mastroberti. A literatura infantil
passa a se deter mais na orientação para a vida cotidiana da criança, do que nas
ilusões acerca de um mundo maravilhoso, exclusivo da sua imaginação. (MARCHI,
2000).
94
4 CINDERELA EM PERSPECTIVA ANALÍTICA.
Os estudos apresentados nos capítulos anteriores permitem organizar uma
reflexão sobre os contos contemplados pelo corpus deste trabalho: Cinderela ou
Sapatinho de Cristal, de Charles Perrault; Cinderela, de Jacob e Wilhelm Grimm e
Cinderela: uma biografia autorizada, de Paula Mastroberti.
Para tal, pretendemos analisar os modelos de comportamento presentes
nesses contos e as diferenças entre os personagens clássicos e modernos,
apontando como se dá a ruptura de paradigmas na produção artística da atualidade,
identificando as mudanças ocorridas no conto, em sua versão brasileira
contemporânea, verificando a importância da regionalidade.
As obras, sucessivamente, atualizaram o famoso clássico Cinderela,
incorporando à cena nacional o elemento universal. A partir da versão dos
camponeses, de Perrault e dos irmãos Grimm, identificamos as diferenças em
relação ao texto de Mastroberti, determinando que elementos fazem da Cinderela
brasileira uma paródia dos contos de fadas. É interessante assinalar que, a partir da
história original, a obra foi sendo adaptada, modificando-se em cada versão.
Segundo Gastal (2003, p. 186) ”As culturas tradicionais são energizadas
pelo passado, que se sobrepõe ao presente, e este tempo, em seu eterno retorno,
tem sido visto como cíclico”. E acrescenta: “[...] que o passado seja
recontextualizado, glamourizado e, muitas vezes, sirva de canal não para mostrar
uma anterioridade, real ou fictícia, mas para analisar questões contemporâneas”.
(GASTAL, 2003, p. 189).
Esses três contos têm em comum a personagem central Cinderela, e
também valores e comportamentos que, independente de sua época e local de
origem, apresentam novas possibilidades e padrões de interpretação.
Para Cashdan (2000, p. 108),
[...] três versões muito diferentes de Cinderela. Todas retratam uma criança
inocente, uma madrasta malévola e suas geniosas filhas. Todas elas
incluem uma festa ou um baile e um sapatinho perdido. Mas as
semelhanças terminam aí. Em uma das histórias, uma fada madrinha
transforma uma abóbora em carruagem; em outra, a madrasta obriga as
próprias filhas a se mutilarem [...]
95
Assim, como tantas outras histórias, a Cinderela dos contos de fadas, tem
se perpetuado há milênios, atravessando a força e a perenidade do folclore dos
povos. Para Canton (1994, p. 25), “Os contos de fadas têm uma história. Suas
diferentes versões têm autores que, por sua vez, criaram sob a influência de valores
sociais, políticos e culturais de seu meio”. O contexto cultural é tudo aquilo que faz
parte do ambiente ou do entorno dele, resultando na formação e no desenvolvimento
da cultura de um grupo humano específico, através de sua regionalidade.
Contata-se, pois, que os contos de Perrault e dos irmãos Grimm fixam-se
em espaço geográfico definido: a zona rural, própria do feudalismo da Idade Média.
Já o conto Cinderela: uma biografia autorizada tem como espaço geográfico um
centro urbano contemporâneo.
É imprescindível reforçar no estudo em questão, “[...] o autor, o seu
momento cultural e sua obra, naquilo que apresenta de peculiar e novo para a época
em que surge”. (COELHO, 1991, p. 85).
A evolução, a transformação de um conto ou sua persistência numa forma
literária é de difícil compreensão se ignorarmos seus contextos socioistóricos e suas
transformações através do tempo. Segundo Marchi (2000), como já foi explicitado na
seção anterior, autores gaúchos nascidos no estado e que aqui se encontram, com
produções literárias que aqui produziram e publicaram, possuem uma identidade
regional. O que não inviabiliza que suas obras se tornem universais.
Estés (2005, p. 11-12) afirma que:
Quer entendamos um conto de fadas cultural, cognitiva ou espiritualmente
– ou de outras maneiras, como quero crer –, resta uma certeza: eles
sobreviveram à agressão e à opressão políticas, à ascensão e à queda de
civilizações, aos massacres de gerações e a vastas migrações por terra e
mar. Sobreviveram a argumentos, ampliações e fragmentações. Essas
jóias multifacetadas têm realmente a dureza de um diamante, e talvez
nisso resida o seu maior mistério e milagre: os sentimentos grandes e
profundos gravados nos contos são como o rizoma de uma planta, cuja
fonte de alimento permanece viva sob a superfície do solo mesmo durante
o inverno, quando a planta não parece ter vida discernível à superfície. A
essência perene resiste, não importa qual seja a estação: tal é o poder do
conto.
Artistas contemporâneos apropriaram-se de antigas formas, através da
intertextualidade e do uso da paródia, para tratar de temas atuais. Consideramos
importante comparar essas histórias clássicas e modernas, procurando elencar
elementos que serão analisados simultaneamente, através do conto Cinderela, nas
96
suas diferentes versões.
Estas histórias são amostras das inúmeras Cinderelas que existem. Nestas
e em outras versões, Cinderela é uma jovem que tem sua vida transformada a partir
do momento em que se vê órfã devido à morte de sua mãe e, posteriormente, com o
casamento de seu pai.
Em todo o mundo, histórias centradas numa heroína, uma jovem que sofre
uma longa provação antes de sua redenção e triunfo, freqüentemente
escalam mulheres como as agentes do seu sofrimento. A versão mais
antiga existente de ‘Cinderela’, em que aparece o sapatinho perdido, foi
registrada por volta de 850-60 d. C. na China. (WARNER, 1999, p. 234).
Os arquétipos universais são mantidos nas três narrativas de Cinderela. Eles
nos falam do encantamento, da paixão, da festa e do desejo da mulher de ir ao
encontro do seu par.
Segundo Bettelheim (1986), Cinderela foge do príncipe porque deseja ser
escolhida por quem ela é na realidade e não por sua aparência. Quando o príncipe a
vir no seu estado mais desvalorizado e ainda assim desejá-la, então ela será dele.
Na versão renovada da Cinderela, a mulher é agente do seu destino, não
mais sendo obrigada a apelar para soluções mágicas. Esta é uma evidência da
ruptura do texto com a previsibilidade do esquema narrativo e das funções dos
personagens dos contos tradicionais, denunciando um estranhamento a uma ordem
natural, sendo um dos indícios de que está em curso uma leitura comparativa que
contribui para a riqueza do intertexto numa proposta de renovação literária.
Os contos de fadas atuais têm como intencionalidade a mudança, estando a
favor da desconstrução de estereótipos que aprisionam as atitudes
comportamentais, inscrevendo-se a partir da paródia e da crítica social.
Cinderela: uma biografia autorizada, apropria-se, parodísticamente, do conto
de fadas Cinderela, dos irmãos Grimm. Por meio da intertextualidade, a nova versão
é utilizada para desconstruir o texto de origem, sentido característico de algumas
narrativas contemporâneas. Como já foi explicitado na origem dos contos de fadas,
os irmãos Grimm viajavam pelo interior da Alemanha e coletavam, para seus
estudos, elementos lingüísticos do povo. Seus contos, mostram a partir das histórias,
a cultura e costumes de cada região alemã, bem como as diferenças lingüísticas, já
que os alemães falavam dialetos diferentes.
O lugar do “era uma vez”, conhecida senha de acesso ao maravilhoso, no
97
princípio da narração, desencadeia a fantasia e pressupõe sair da mesmidade,
ingressando no mundo do faz-de-conta.
Quando ouvimos um conto – adultos ou crianças –, temos uma experiência
singular, única, que particulariza para cada um de nós, no instante da
narração, uma construção imaginativa que se organiza fora do tempo da
história cotidiana, no tempo do “era”. Tal experiência diz respeito à
universalidade do ser humano e, ao mesmo tempo, à existência pessoal
como parte dessa universalidade. (MACHADO, 2004, p. 23).
E acrescenta:
À medida que ouvimos a história, somos transportados para “lá”, esse local
desconhecido que se torna imediatamente familiar. A história só existe
quando é contada ou lida e se atualiza para cada ouvinte ou cada leitor.
“Era uma vez” quer dizer que a singularidade do momento da narração
unifica o passado mítico – fora do tempo – com o presente único – no tempo
– daquela pessoa que a escuta e a presentifica. É a história dessa pessoa
que se conta para ela por meio do relato universal. (MACHADO, 2004, p.
23).
Como foi visto anteriormente, Perrault adaptava suas histórias para a
sociedade aristocrática. Essa sociedade sabia como adotar e adaptar o melhor de
outras culturas. A narrativa de Perrault, através de sua trama sintetizada, tem como
foco um roteiro eficiente, que preserva a essência da história, como no conto
Cinderela:
[...] a boa alma, companheira da beleza, encontra o devido reconhecimento
apesar dos trapos que a ocultam. A jovem joga um esconde esconde com o
príncipe e com sua família, que se nega a ver nela algum valor. Ele
investiga, a descobre, lhe declara seu amor, e só então ela revela que é a
bela dama do baile. Por isso, não convém julgar qual é a melhor versão,
acreditamos que o tempo faz uma seleção natural dos aspectos da história
adequados a cada época e, se ela continua sendo contada, é porque em
sua essência ainda tem algo a dizer. (CORSO; CORSO, 2006, p. 110).
Da mesma forma, a literatura infantil, estando sintonizada com a
contemporaneidade, acompanha as mudanças de valores, costumes de uma época
e de uma civilização. Canton (1994, p. 31) acrescenta:
Desde a sua institucionalização no século XVII, o conto de fadas manteve o
seu caráter de narrativa prototípica na civilização ocidental. Embora suas
estruturas permaneçam, os valores subjacentes a contos como Cinderela
ou A bela adormecida têm sido constantemente remodelados, conforme
interesses específicos de editoras, da indústria cinematográfica e outros
meios de comunicação de massa.
Faz-se necessário sempre ter presente a contextualização do tempo, o
98
reconhecimento da vida das sociedades e as diferenças entre os povos de cada
região. (PAVIANI, 2004). Os contos clássicos de Perrault remetem o leitor ao
reconhecimento do espaço rural típico dos feudos da Idade Média, mostrando, de
um lado, a vida pobre do povo e, do outro lado, a delicadeza e o refinado gosto da
corte.
Os irmãos Grimm retratam, além das questões da língua alemã, os
elementos violentos da vida e, conforme Coelho (1991, p. 140): “[...] recolhem
diretamente da memória popular as antigas narrativas, lendas ou sagas germânicas,
conservadas por tradição oral”.
A versão de Mastroberti é um conto atual, sendo uma releitura
contemporânea de obras clássicas. Este texto contextualiza-se na zona urbana,
onde tudo acontece. Os discursos e imagens falam das cidades e são eles que
constroem a história cultural do urbano. Esta construção se faz através do conjunto
das representações de seu imaginário social. Contemporaneamente a realidade está
sendo construída pelo domínio das imagens, pela realidade virtual, pela expansão
da mídia. (PESAVENTO, 2002).
Pesavento (2002, p, 09) acrescenta:
Sendo a cidade, por excelência, o “lugar do homem”, ela se presta à
multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar,
abordam o real na busca de cadeias de significados.
Essa postura, que coloca a história cultural urbana na ordem do dia,
pressupõe o que se chamaria de “metaforização do social”. Ou seja, as
representações da cidade tendem a assumir uma forma metafórica de
expressão, com apelo a palavras e coisas que, associadas ao conceito de
cidade, lhe atribuem um outro sentido.
No mundo atual, as metáforas visíveis são expressas pelas imagens
retratadas na publicidade, no traçado das ruas, nos prédios com suas parabólicas.
Na história de Cinderela: uma biografia autorizada, as garotas exibem camisetas
promocionais com estampas do príncipe. Imagens atuais são veiculadas através dos
comerciais de roupas íntimas, imagens nos álbuns de família, madrastas e filhas
flagradas pelas lentes de um paparazzi numa ilha tropical, recortes de jornais, todos
elementos presentes no cotidiano atual.
[...] a literatura, como representação das formas urbanas, tem o poder
metafórico de conferir aos lugares um sentido e uma função[...]
Acrescentaríamos que essa potencialidade metafórica de transfiguração do
real não apenas transmite as sensibilidades passadas do “viver em
cidades” como também nos revela os sonhos de uma comunidade, que
99
projeta no espaço vivido as suas utopias. (PESAVENTO, 2002, p. 13).
Através do conto renovado, há uma importância de compatibilizar o
ambiente urbano com a fantasia e a sensibilidade da criança.
O conto de Perrault inicia diretamente falando do casamento do pai de
Cinderela uma mulher arrogante e orgulhosa, que tem duas filhas muito parecidas
com ela.
Era uma vez um fidalgo que se casou em segundas núpcias com a mulher
mais orgulhosa e mais arrogante que já existiu até hoje. Ela tinha duas filhas
com o mesmo temperamento seu e que se pareciam com ela em tudo. O
marido, por seu lado, tinha uma filha que era a doçura em pessoa, e de uma
bondade exemplar. Tinha herdado isso de sua mãe, que havia sido a
melhor criatura do mundo. (PERRAULT, 1994, p. 113 )
Nessa narrativa, a Gata Borralheira ou simplesmente Borralheira em
algumas versões, é conhecida também como Cinderela, tradução do francês
Cendrillon (cendre: cinza, cinzas). O nome Cinderela advém do fato de viver em um
canto sujo de cinzas, no borralho, num estado de degradação - sinal da condição de
rebaixamento em relação às suas irmãs, de submissão total ao pai e à madrasta,
fazendo os serviços mais grosseiros da casa, diferente do que se costuma pensar
sobre uma relação com princesas, o que só é possível depois da união com o
príncipe. Segundo Warner (1999, p. 239):
Cinderela é uma criança em luto pela mãe, como seu nome nos diz; suas
vestes penitenciais são as cinzas, sujas e inferiores como a pele de um
jumento ou um casaco de capim, pom mais particularmente o sinal da
perda, o símbolo da mortalidade, que o padre usa para marcar a testa dos
fiéis na Quarta-feira de Cinzas, dizendo: “Das cinzas às cinzas, do pó ao
pó...”. Basile explica o nome da heroína apenas parcialmente – Gatta
Cenerentola – quando diz que ela termina dormindo sobre as cinzas do fogo
como uma gata; Perrault também, quando escreve que a mais bondosa das
duas irmãs muda o apelido dela de Cucendron (Traseiro-de-borralhos,
Rabo-de-borralhos) para o mais suave Cendrillon. Mas Perrault retira a
obscenidade preservando a sugestão de poluição ritual em antigos
costumes fúnebres, sem aparentemente dar-se conta disso.
Analisando o perfil da heroína nesta história, observa-se, nas primeiras
partes do conto, o modelo de obediência: Cinderela é dócil e submissa, aceitando o
tratamento que lhe é imposto pela madrasta. Ela desistiu de sua condição de
herdeira, suportando tudo com paciência, não se queixando de maus tratos, porque
sabia da possível repreensão que sofreria de seu pai, pois ele era inteiramente
dominado por sua nova mulher.
100
Depois que terminava o seu trabalho, ela se recolhia a um canto da
chaminé, no meio das cinzas do borralho, o que fez com que passasse a ser
chamada na casa de Borralheira. A irmã caçula, que não era tão maldosa
quanto a mais velha, chamava-a de Cinderela. Apesar dos trapos que
vestia, Cinderela era cem vezes mais bela do que suas irmãs com seus
suntuosos vestidos. (PERRAULT, 1994, p. 114).
Depois que Borralheira terminava seu trabalho, ela se recolhia a um canto
da chaminé, no meio das cinzas do borralho. Darnton (1986) afirma que:
Os camponeses, no início da França moderna, habitavam um mundo de
madrastas e órfãos, de labuta inexorável e interminável, e de emoções
brutais, tanto aparentes como reprimidas. A condição humana mudou tanto,
desde então, que mal podemos imaginar como era, para pessoas com vidas
realmente desagradáveis, grosseiras e curtas. (DARNTON, 1986, p. 47).
Cinderela, no desenrolar dos contos estudados, paradoxalmente, vive
diferentes situações sociais. De filha de um fidalgo, passa a ser escrava servil,
transforma-se em princesa e posteriormente torna-se uma rainha. Segundo Tatar
(2004, p. 12):
Hoje reconhecemos que os contos de fadas versam tanto sobre conflito e
violência quanto sobre encantamento e desfechos do tipo “e foram felizes
para sempre”. Ao ler Cinderela, ficamos mais fascinados por seus
sofrimentos e provocações no borralho que por sua ascensão social.
Passamos mais tempo pensando na cantilena mortífera do gigante que na
fortuna que João conquista. E o encontro de João e Maria com a bruxa
aparentemente magnânima na floresta impregna nossa imaginação muito
depois que terminamos de ler a história.
As roupas usadas por Cinderela, após a magia, retratam o luxo e a
suntosidade das vestimentas usadas na corte, contrastando com os trapos que
Cinderela e o povo usavam no dia-a-dia. Outro indicativo das cruéis diferenças
sociais são os castelos e o mobiliário dos nobres, contrastando com as casas onde o
povo vivia, que não ofereciam as mínimas condições de higiene, saúde e
saneamento básico, já descritas por Ariès (1981), Darnton (1986) e Heywood (2004).
O sentimento do povo era de revolta por esse abandono, pela exploração que
sofriam e pelos altos impostos pagos para sustentar o luxo dos que detinham o
poder.
Cinderela, de Mastroberti, vive num centro urbano contemporâneo,
ambientado no final do século XX, numa sociedade onde a monarquia se faz
presente, onde há também diferenças entre as classes sociais. Pelos indícios
101
apresentados esta sociedade passa por significativas mudanças.
De um lado apresenta-se a decadência do aristocrata, de outro a provável
corrupção, pois a ascensão social se faz através de um sobrenome importante,
aliado a negócios escusos feitos pela madrasta. Apesar de ser uma jovem séria e
doce, Cinderela, diante da ameaça de perder o que seu pai lhe deixou, também
visualizou a possibilidade de ser privilegiada através da ajuda do rei, por ter um
sobrenome importante, fato comum na sociedade e nos meios políticos. Cin, de
Mastroberti, vive provavelmente numa sociedade individualizada onde os valores
particulares se sobrepõem ao coletivo havendo profundas injustiças sociais, devido à
desigualdade na distribuição de riquezas, onde os fatos do mundo acontecem aqui e
agora, ao contrário do que ocorria no tempo de Perrault e dos irmãos Grimm.
Segundo Giddens (1990, apud Hall, 2005, p. 72):
Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente
coincidentes, uma vez que as dimensões espaciais da vida social eram,
para a maioria da população, dominadas pela presença” – por uma
atividade localizada [...] A modernidade separa, cada vez mais, o espaço
do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão “ausentes”, distantes
(em termos de lugar), de qualquer interação face-a-face. Nas condições da
modernidade [...], os locais são inteiramente penetrados e moldados por
influências sociais bastante distantes deles. O que estrutura o local não é
simplesmente aquilo que está presente na cena; a “forma visível” do local
oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza.
Hall (2005, p. 72-73) acrescenta:
Os lugares permanecem fixos; é neles que temos “raízes”. Entretanto, o
espaço pode ser “cruzado” num piscar de olhos – por avião a jato, por fax
ou por satélite. Harvey chama isso de “destruição do espaço através do
tempo” (1989).
O conto Cinderela adaptado pelos irmãos Grimm reflete, segundo Darnton
(1986), a maneira alemã de abordar o sobrenatural, o poético e o exótico. Narra a
história sofrida de uma doce jovem que passa por privações materiais, maus tratos e
menosprezo familiar, inclusive pelo seu pai, mas que supera todas as dificuldades e
obstáculos impostos para encontrar a felicidade junto com o seu príncipe.
No conto dos irmãos Grimm, o sofrimento de Cinderela é percebido já no
início, com a morte de sua mãe. Ela demonstra sua devoção, dedicação e a imensa
dor que sente ao visitar seu túmulo, onde deixa suas lágrimas.
A esposa de um homem rico ficou doente e quando sentiu que seu fim
estava próximo, chamou sua única filha ao pé de seu leito e lhe disse, “Sê
sempre uma boa moça e eu olharei dos céus e velarei por ti”. Pouco depois
102
ela fechou os olhos e morreu, sendo enterrada no jardim. A garotinha ia
todos os dias até seu túmulo e chorava, e sempre foi boa e gentil com todos
que a cercavam. (GRIMM, 2001, p. 159).
A Cinderela, dos Irmãos Grimm, é mais sofrida e submissa às vontades da
madrasta e de suas duas irmãs, se sujeita a árduas tarefas, degradada à condição
servil, trabalhando da manhã à noite nos serviços mais pesados. Sofre com as
zombarias que as “irmãs” lhe fazem, mas não há qualquer referência explícita no
texto sobre a aceitação de suas novas funções. Sua passividade é conseqüência
dos ensinamentos deixados pela mãe, sendo tolerante diante dos fatos vividos em
seu novo círculo familiar.
Mesmo sendo filha do dono da casa, Cinderela torna-se a serviçal de todos,
perde seu legítimo papel na família e também seu espaço físico, passando a dormir
ao lado do fogão, em meio às cinzas. Tiram-lhe seus lindos vestidos, dão-lhe um
avental e mandam-na trabalhar da manhã à noite para ganhar sua comida.
Então elas lhe tomaram suas belas roupas e deram-lhe um avental para
vestir, e riam dela e mandavam-na para a cozinha.
Ali era obrigada a trabalhar duro; levantar antes do dia clarear, trazer água,
acender o fogo, cozinhar e lavar. Além disso, as irmãs a importunavam de
todos os jeitos e riam dela. À noite, quando estava cansada, não tinha cama
onde se deitar, tendo que dormir ao lado do forno, entre as cinzas; então,
como estava sempre empoeirada e suja de cinzas, elas a chamavam de
Cinderela. (GRIMM, 2001, p. 159).
Imaginar Cinderela sendo obrigada a tirar seus lindos vestidos, a usar trapos
de cor cinza e pesados sapatos de madeira, remete à imagem de sofrimento que
essa menina sofreu nesse processo.
As cinzas geralmente estão ligadas ao luto e à purificação. Cobrir-se de
cinzas por ocasião de uma perda era bem usual em culturas
mediterrâneas. Como o fogo tem um papel purificador, seus restos são
puros também. Isso nos leva a uma posição ambígua: ela estaria pura
estando suja. Não é sem razão que certos autores viram em Cinderela uma
remanescente das vestais, as guardiãs do fogo sagrado na cultura romana.
De qualquer maneira, a Borralheira é suja por fora, mas pura por dentro,
isso ela demonstra com seu bom caráter, que se mantém apesar dos
maus-tratos. (CORSO; CORSO, 2006, p. 113).
A respeito do sofrimento imposto pela madrasta e suas filhas à Cinderela,
Warner (1999, p.23) procurou examinar “[...] a dolorosa rivalidade e ódio entre
mulheres em contos como “Cinderela [...]”.
A presença do pai, no conto de Grimm, é introduzida quando, antes de
viajar, pergunta às suas filhas o que gostariam que trouxesse da feira. As duas filhas
103
mostraram o apego a bens materiais ao pedirem roupas finas e jóias. Cinderela, ao
contrário de suas irmãs, mostra seu desprendimento material ao pedir ao seu pai o
primeiro ramo de árvore que encontrar. O pai traz-lhe somente um ramo de aveleira,
que ela corre a plantar no túmulo de sua mãe. Devidamente cultivado com lágrimas,
o ramo brotou e transformou-se numa bela árvore na qual, toda vez que Cinderela
voltava ao local, havia um pássaro branco pousado em seus galhos.
A aveleira passa a ter significado para Cinderela, uma vez que possui a
certeza de que a felicidade não está morta, podendo ainda ser alcançada. Um
pássaro faz seu ninho em um galho e, a partir desse momento, passa a atender
seus pedidos. Cinderela é circundada de amigos pássaros, sempre presentes nos
momentos difíceis e prontos a ajudar.
Ela pegou o ramo, levou-o ao túmulo de sua mãe e ali o planou. E foi
tamanho seu pranto que o regou com suas lágrimas. Ali o ramo cresceu e
se transformou numa linda árvore. Três vezes ao dia ela ia até ali e chorava;
e logo veio um passarinho construir seu ninho sobre a árvore. Ele
conversava com ela, zelava por ela e trazia-lhe tudo que ela desejava.
(GRIMM, 2001, p. 160).
No conto Cinderela: uma biografia autorizada, ocorre uma mudança radical,
tanto estética quanto comportamental. Cinderela possuí esse nome e o apelido de
“Cin”, sendo uma garota “descolada”, moderna e independente, fugindo
completamente ao estereótipo de menina frágil, sofrida e inocente explorado pelos
demais autores.
A partir de “Era uma vez”, a autora estabelece a comunicação com os contos
de fadas. “Era uma vez uma moça que se chamava... bom, o nome de verdade não
importa”. Nesse início, já é possível observar o jogo que vai se estabelecer na obra
de Mastroberti: o jogo do real e do fantástico, ao dizer que “o nome de verdade” não
importa, de onde se depreende que a personagem tem um nome real, mas o que
importa é o nome fantasia: o encantado. Constata-se, então, que Cinderela recebe,
nessa trama, nome e apelido, o que difere dos demais contos.
Nesse conto, o cenário é urbano, característica de um conto renovado,
marcado, de forma explícita, pelos espaços e pelo modo de viver dos personagens,
com valores e costumes incorporados numa perspectiva atualizada em relação à
história antiga, por intermédio da paródia. Essa perspectiva é percebida através de
elementos atuais no contexto narrativo como: o palacete da família rodeado por
edifícios e parabólicas, posteriormente restaurado e transformado em casa de
104
cultura; táxi; paparazzis; comerciais de lingeries; trânsito engarrafado; ilustrações de
Cinderela como princesa de mini saia; T’ai chi chuan; camisetas com a imagem do
príncipe no peito. Todas essas inovações procuram atender ao público infantil
contemporâneo. Esses índices de renovação promovem uma relação parodística
com os textos anteriores, modificando, inclusive a leitura dos textos clássicos.
As personagens do conto de Mastroberti possuem alguns traços
semelhantes às das versões da Cinderela, mas em nenhuma delas é possível
apontar uma correspondência plena com os papéis previstos.
“Não existe narrativa sem narrador, pois ele é o elemento estruturador da
história”. (GANCHO, 1998, p. 26). O narrador conduz a narrativa, encaminhando o
ouvinte a um universo encantado. Este é uma figura importante no processo da
história, pois exerce à atividade desencadeadora da narrativa.
A configuração dos personagens muitas vezes é determinada pelo tipo de
narrador, que é um agente. Nos contos tradicionais o narrador não é um
personagem integrante dos fatos, é um ser onipresente que aproxima o leitor ao
texto.
Para referendar o encantamento, cita-se John Berger (apud Warner 1999, p.
247):
Se você se lembra de ter ouvido histórias quando criança, vai se lembrar
do prazer de ouvir uma história repetida muitas vezes, e vai se lembrar de
que, enquanto ouvia, você se tornava três pessoas. Acontece uma fusão
incrível: você se torna o narrador da história, o protagonista, e você se
lembra de você mesmo ouvindo a história [...]
Já o narrador do conto renovado de Mastroberti é um narrador-testemunha.
Em certos momentos do conto, o narrador parece personificar a magia, colocando-
se como o anjo protetor de Cin. A narrativa não obedece à estrutura básica dos
tradicionais contos de fadas, e também, não inicia com “era uma vez”. O narrador
começa assim:
Conheci Cinderela menina ainda, quando morava na mesma rua em que
estabeleci meu negócio. Bons tempos aqueles, quando os ricos tinham não
só muito dinheiro, mas muita, muita classe. Ela pertencia a uma dessas
famílias aristocráticas, nas quais o bom-gosto, o savoir-vivre, a apreciação
das artes e a cultura em geral eram tão ou mais importantes do que comer,
dormir e respirar. Oh, vida romântica e sublime...! (MASTROBERTI, 1997, p.
5)
105
A protagonista deste conto, no início, é uma aristocrata rica, quieta,
elegante, solitária, filha única e mimada. Sua família era unida, até a morte de sua
mãe. Ao se tornar órfã, seu pai desestruturou-se por não suportar a morte de sua
esposa, jogando-se em uma vida desregrada e sem cuidados para com a filha.
Cinderela não se revolta, apenas cumpre o papel que fora de sua mãe, vendo sua
desestruturação social e financeira em decorrência da instabilidade do pai.
Cin vive quase isolada de tudo e de todos. Após a tragédia da morte da mãe,
devido a uma doença misteriosa e para qual ainda não havia remédio, perde sua
fortuna, além da dignidade do pai, deparando-se com as dificuldades de uma vida
sem dinheiro, sem amigos e sem ambições.
Passado algum tempo, cansou-se de fazer coisa alguma. Bastou cair em si
para deparar-se com a decrepitude e a sujeira que a envolvia. Largou,
então, dos livros e do seu imaginário refúgio, para pegar nos baldes e
vassouras guardadas no porão. Limpou todas as salas – e olha que eram
muitas e enormes! Remendou forrações, até marcenaria e consertos nos
encanamentos aprendeu a fazer. Graças àquelas revistas de utilidades
domésticas, que saem a toda hora nas bancas, mexeu sem receio nas
fiações elétricas, e para ela isso tudo era pura diversão – aliás ela contou-
me essas coisas entre muitas risadas – porque era novidade e ajudava a
passar o tempo. Os que a conheciam ficavam horrorizados ao verem a
senhorinha exercendo atividades tão pouco dignas de uma dama, e viviam
à espreita, aguardando o dia em que o viúvo aristocrata chegaria em casa e
a descobriria junto a uma tomada com um alicate na mão ou a passar
inseticida nos móveis para prevenir-se dos cupins. (MASTROBERTI, 1997,
p. 06).
Cinderela executa as tarefas domésticas como diversão e é obrigada a se
vestir sempre com suas roupas mais velhas, por não ter condições financeiras de
comprar roupas novas.
O trabalho pesado que Cinderela faz em sua casa é fruto da necessidade,
pois não tem condições de manter serviçais para as tarefas do lar, acostumando-se
com tudo que lhe acontecera. A partir dessas dificuldades Cin assume o papel que
contemporaneamente a mulher conquistou na sociedade, na família e no mercado
de trabalho. Busca soluções, luta por sua independência financeira, não afastando
seu sonho de ter uma empresa de comidas congeladas. No século atual, a altiva e
permanente atuação da mulher em seu lar, em seu trabalho e nas mais variadas
funções por ela desempenhadas, tem suscitado inúmeras discussões que buscam
questionar o papel que esta exerce na sociedade. Afinal, a mulher é responsável
pelo seu destino.
106
Cin, de Mastroberti, usa calça jeans, tênis, camiseta, cabelos escorridos, e,
em certo momento da história, cabelos curtos; descobre-se uma gourmet, não se
casa com o príncipe logo após sua revelação, como a dona do sapatinho de cristal;
ela namora por longo tempo, vivendo com brigas e recomeços como ocorre com
qualquer casal moderno. Cinderela, na versão atual da autora gaúcha, descreve
valores de comportamentos que a nova sociedade começa a exigir. Poderia ser
qualquer jovem, trazendo à realidade uma Cinderela possível.
No estudo das três versões, constata-se que, com a passagem do tempo, a
mãe de Cinderela foi ganhando mais espaço nas histórias. Na versão mais antiga
analisada, de Charles Perrault, a história já inicia no segundo casamento do pai de
Cinderela, sendo que a mãe da personagem é apenas brevemente citada.
Século mais tarde, já na versão dos irmãos Grimm, mesmo que a mãe da
menina não ganhe certo destaque, os autores buscam oferecer a ela um pouco mais
de espaço; iniciam a história no momento de sua morte, relatando uma pequena
passagem de tempo, até o segundo casamento do pai de Cinderela. Percebemos
que a mãe é, para Cinderela, fonte de ensinamentos, de bondade, amor e
lembranças, o que garante à menina a força necessária para prosseguir.
O cenário do túmulo reitera, mais uma vez, a profunda e imutável ligação
que existe entre mãe e filha. Sentada sob a avelaneira, a jovem anseia pelo
amor que um dia conheceu, pela mãe que a nutriu e protegeu. A pomba,
encarnação simbólica da mãe, surge para garantir à jovem que ela não foi
esquecida, e que será protegida e guardada. (CASHDAN, 2000, p. 116-
117).
Em Cinderela: uma biografia autorizada, de Mastroberti, tratando-se de uma
história contemporânea, a mãe de Cinderela ganha mais importância na história,
mesmo que só se faça presente no relato da infância de sua filha. Verifica-se,
através de uma imagem, que a mãe esteve presente em sua vida até os doze anos.
Sua doçura e educação leva-nos a pensar que a convivência com sua mãe foi de
amor e afeição.
[...] e eles, o casal e a menina, ao passarem em frente ao meu
estabelecimento, sempre cumprimentavam-me polidamente. Que maravilha,
ver uma família tão nobre fazendo seu passeio, seu porte tão altivo, seu
andar tão elegante... Eles deslizavam pela calçada e ninguém diria que a
tragédia um dia se abateria sobre eles. (MASTROBERTI, 1997, p. 5).
107
O modo de agir do pai de Cinderela também sofreu mudanças significativas
ao longo dos séculos. Para Warner (1999, p. 384-385):
A própria história de Cinderela tem em seu cerne um mistério inexplicado
sobre o papel do pai nas provações da filha. Por que o pai de Cinderela
não faz nada para impedir seu sofrimento? Sua participação permanece
indefinida – nem cumplicidade nem protesto; uma peça perdida do quebra-
cabeça.
No clássico Sapatinho de Cristal, de Perrault, o pai é apenas um elo para a
entrada da madrasta e suas filhas na vida da menina, uma vez que ele se faz
completamente ausente ao longo da narrativa.
Exceto no conto de Mastroberti, em que o pai morre, os outros dois contos
analisados apresentam um pai não apenas ausente, mas também condescendente
com as maldades praticadas contra sua filha.
[...] as figuras masculinas nos contos de fada tendem a ser retratadas como
fracas ou indisponíveis. Isso não significa que os pais sejam insensíveis;
significa apenas que os contos de fada são documentos maternos, e
portanto dão grande ênfase à relação entre mãe e filho, em particular no
que se relaciona ao desenvolvimento do eu. Em decorrência, o papel dos
pais tende a ser desvalorizado, ou merecer pouca atenção. (CASHDAN,
2000, p. 117).
Nos três contos, o tempo entre a viuvez e o novo casamento é curto, sendo,
inclusive, desconsiderado no conto de Perrault, que já inicia no segundo casamento.
Em Cinderela, dos irmãos Grimm, esse período é descrito pela passagem das
estações: “A neve espalhou um lindo manto branco sobre o túmulo; mas quando o
sol a derreteu novamente, seu pai já se havia casado com outra mulher”. (GRIMM,
2001, p. 159). A figura do pai é vista em segundo plano, já que o cita alheio ao
sofrimento da filha.
No conto de Mastroberti, o pai, utilizando-se da dor como desculpa, deixa a
filha sozinha por longos períodos, enquanto gasta pouco a pouco a fortuna da
família. Nesse conto, ao contrário dos demais, o pai demonstra fraqueza ao não
reverter o seu novo casamento, embora estivesse consciente de se tratar de um
erro; mas não permaneceu vivo tempo suficiente para reverter a situação ou alterá-
la.
O narrador relata o acidente que vitimou o pai de Cinderela como uma
conseqüência de sua irresponsabilidade. Com sua morte em um acidente de
automóvel, Cinderela torna-se órfã de pai e mãe.
108
O decadente aristocrata foi visto pela última vez saindo do palacete. Não
parecia mais triste, nem mais deprimido do que o usual. Trajava-se com a
elegância de sempre, até onde as circunstâncias lhe permitiam. Tempos
depois, chegaria a notícia de sua morte em um acidente de automóvel, no
qual ele fora a única vítima.
Foi enterrado na cripta da família com todas as honras, ao lado da primeira
esposa, deixando uma viúva escandalosamente inconsolável, duas
enteadas apalermadas e a pobre Cin órfã de pai e mãe. (MASTROBERTI,
1997, p. 14).
Em muitas histórias de Cinderela, o mito do pai da menina é demonstrado
como: “[...] as histórias de Cinderela com as quais estamos acostumados
apresentam um pai virtuoso e morto, ou fraco e dominado, [...] e ela demonstra ter
por ele uma lealdade respeitosa e terna”. (WARNER, 1999, p. 383).
A madrasta é reconhecida como a grande antagonista das histórias de
Cinderela. Mesmo quando sua presença é menos constante, não há momento,
exceto o final, em que Cinderela não sofra as conseqüências de suas maldades.
Nos contos, madrasta é sinônimo de mãe má, a ela são reservados os
papéis de inveja, da colocação de entraves para que a menina se torne uma
mulher (Cinderela) ou ainda, em sua versão mais mortífera, do ódio
assassino (Branca de Neve). Em Cinderela, temos o contraponto da fada
madrinha ou das árvores mágicas (quer crescidas no túmulo da mãe, quer
enviadas pelas fadas, estas são erguidas sobre a memória da mãe perdida).
Essas fadas são personagens mais evanescentes, destinados a preservar o
lado bom da mãe, ou seja, a mãe da primeira infância. Porém, enquanto a
madrasta é uma personagem real, as fadas ou seus representantes são
figuras interiorizadas, aparecem apenas na intimidade da jovem e são
segredos seu. (CORSO; CORSO, 2006, p. 111-112).
No conto de Perrault, a madrasta se faz presente desde o princípio, já sendo
descrita como uma pessoa arrogante e orgulhosa.
Em todas elas, a madrasta parece não invejar diretamente a juventude, a
beleza e o bom caráter de Cinderela, mas deixa claro que não suporta a
falta desses dons em suas filhas legítimas. O castigo é simples, fazer a
menina trabalhar, com e expectativa de que o próprio trabalho haverá de
enfeiá-la. O nome da heroína em diversas línguas, que também dá nome ao
conto, é sempre o mesmo: uma alusão às cinzas do fogão e ao fato de estar
junto a ele, de forma que sempre fica marcado o lugar daquele que trabalha.
(CORSO; CORSO, 2006, p. 110).
Na história dos irmãos Grimm, Cinderela passa a ser humilhada pela
antagonista, como castigo pelo fato de sua bondade contrastar demasiadamente
com a arrogância de suas filhas; com maldade e ambição, a madrasta promove as
filhas às custas da heroína.
109
A natureza invejosa da madrasta explode nessa passagem. Temos uma
mulher tão determinada a se tornar rainha-mãe que nada a detém, quando
se trata de garantir que uma de suas filhas case com o príncipe. Sua
ambição é tão grande, sua inveja de Cinderela é tão irresistível que ela está
disposta a mutilar suas filhas para que uma delas ascenda ao trono. Sua
total falta de consideração por sua própria carne e sangue a marca como
uma das mais demoníacas mulheres de todos os contos de fada, a
quintessência da mãe má. (CASHDAN, 2000, p. 123).
Com o desejo de manter a imagem da mãe como símbolo do eterno
feminismo, a mãe má foi banida dos contos e substituída pela madrasta malvada. A
presença constante de madrastas e filhos postiços, nos contos, reflete uma situação
real que os povos viviam naquela época: a morte, que vinha implacável, mesmo em
famílias que permaneciam em suas aldeias e se mantinham acima da linha da
pobreza. (DARNTON, 1986). Poucos sobreviventes chegavam à idade adulta antes
da morte de, pelo menos, um de seus pais.
Para Tatar (2004, p. 38),
Se a mãe biológica de Cinderela está morta, seu espírito reaparece como o
doador mágico que dá à heroína os presentes de que ela precisa para
fazer uma aparição esplêndida no baile. Com a boa mãe morta, o controle
passa à mãe má – viva e ativa –, que boicota Cinderela de todas as
maneiras possíveis, embora não consiga impedir seu triunfo final. Nessa
cisão da mãe em dois opostos polares, psicólogos viram um mecanismo
para ajudar as crianças a elaborar os conflitos criados quando começam a
amadurecer e se desligar de seus primeiros guardiões. A imagem da mãe
boa é preservada em toda a sua glória, ainda que sentimentos de
desamparo e ressentimentos ganhem expressão através da figura da
madrasta exploradora e perversa.
O conto de Mastroberti apresenta-se com mais leveza nos atos da madrasta.
A nova pretendente ao cargo de dona do palacete e do amor do pai de Cinderela
entra em cena, na narrativa, após uma longa descrição das dificuldades enfrentadas
por ela. A madrasta está acompanhada por duas filhas, Ornela e Pamela, que, sem
se fazerem anunciar, chegam surpreendentemente ao novo lar e anunciam o
casamento do pai de Cinderela. Percebe-se que o interesse estava na posição
social do pai que, mesmo decadente, possibilitava sua ascensão social.
Mastroberti descreve a madrasta como uma reles cartomante, rude,
interesseira, de cabelo louro tingido e traje estampado de oncinha. Nessa obra,
Cinderela perde seu pai, vivendo totalmente à mercê de sua madrasta, que não
perde tempo, para deixar de lado a bondade que demonstrava com a enteada. Daí
em diante, as coisas começaram a mudar: a madrasta viúva mostrou suas garras
sempre bem afiadas, pintadas de esmalte vermelho, e, amparada em um advogado
110
que lhe estava à altura em estampa e caráter, nomeou-se tutora de Cinderela e de
seus bens.
Em qualquer um dos contos analisados, as irmãs corroboram com as
maldades da mãe, não sendo elas agentes de transformação. Conforme Corso;
Corso (2006, p. 111), “As irmãs de Cinderela são seu avesso, preguiçosas, mal-
humoradas e orgulhosas. Mesmo quando é dito que são belas (Grimm), são
aparentemente sem atrativos, não obstante detêm o amor da mãe”.
No caso do conto de Perrault, elas não chegam a fazer grandes maldades,
sendo que a mais nova é até descrita pelo autor como a menos cruel,
diferentemente do conto de Grimm:
A chegada de uma nova esposa na casa sinaliza o início de “tempos
terríveis para a pobre enteada”. Como na maioria das histórias de Cinderela,
a mulher não apenas favorece suas próprias filhas como força a enteada a
trabalhar incessantemente na cozinha. Para piorar a situação, as irmãs
adotivas escravizam Cinderela com tarefas sem qualquer sentido: jogam
ervilhas e lentilhas no chão e a obrigam a catar uma a uma, só para se
divertirem. Obrigam também a jovem a carregar pesados baldes de água da
fonte e a fazem trabalhar como uma escrava o dia inteiro, diante de um
fogão escaldante. Enquanto as irmãs da versão de Perrault são egoístas, as
da versão dos Grimm são sádicas. (CASHDAN, 2000, p. 115).
No conto Cinderela, dos irmãos Grimm, as irmãs aproveitam-se do belo
casamento feito por sua mãe para usufruírem de jóias e roupas finas. Ao final desse
conto, as irmãs, por sugestão da mãe, mesmo cientes de que o sapatinho não lhes
pertencia, tentam enganar o príncipe mutilando parte de seus pés para calçá-lo.
Já no conto de Mastroberti, a participação das irmãs, que são meras
coadjuvantes na vida de Cin, é realçada pelo estilo de vida e mau gosto nas
vestimentas, o que acabava por refletir nas vestes de Cinderela, uma vez que,
impedida de comprar novas roupas, a jovem protagonista era obrigada a usar roupas
velhas, doadas por suas irmãs.
A figura da fada, apesar de ser universal em suas características de
bondade e magia, não está presente em todos os contos de Cinderela. Porém, a
ausência dessa figura, em alguns contos, não representa a redução ou extinção do
elemento maravilhoso. Postula-se que as ações maravilhosas, características
consideradas delimitadoras do gênero, tenham como base processos figurativos que
subjazem ao mistério do encantamento provocado pelos passes de mágica. Para
Zilberman (1982, p. 15), o elemento mágico consiste em:
111
[...] uma fada, um duende, um animal encantado. É esta colaboração
voluntária que possibilita a superação, por parte da personagem central, do
conflito que deflagrara o evento ficcional; e sua ajuda é imprescindível
devido à condição sempre precária ou carente da figura principal.
Segundo Todorov (2004) o que distingue o conto de fadas é uma certa
escritura, não o estatuto do sobrenatural. O surgimento de uma dificuldade inicial e
sua posterior resolução são requisitos indispensáveis a essas narrativas. Assim, o
herói e sua tarefa são elementos centrais e constituem os alicerces desses atos. O
herói ou a heroína passa por provas, espécie de ritual iniciático, a fim de alcançar
sua auto-realização existencial. Essa conquista final, algumas vezes, é ampliada
pela busca do outro, o par perfeito (príncipe ou princesa) também como forma de
projeção social. Não é por acaso que nos contos de fadas há obstáculos e finais
felizes: essa era a forma de o povo se conformar com a vida cruel na Idade Média.
Para Coelho (1987), o conto de fadas é uma pequena história que narra um
episódio vivido por um personagem central durante a busca de sua realização.
Nesse gênero, o protagonista passa por provas, como num ritual de iniciação,
quando o herói ou heroína procura atingir uma meta ligada quase sempre a valores
essenciais do ser humano. Para a autora, a realização do protagonista está sempre
ligada ao casamento. O final será sempre a expectativa do ouvinte.
As fadas refletem o padrão consagrado pelo uso nas narrativas
maravilhosas, surgindo como veículos do bem, portadoras da felicidade suprema,
em contraposição aos valores ideológicos da figura do misterioso, do desconhecido,
dos ogros e bruxas. Como estas últimas, as fadas simbolizam as forças ocultas
capazes de modificar a natureza e o destino do homem.
Nas versões de Cinderela de Perrault e dos Grimm, a fada madrinha, ou sua
representação por elementos da natureza como árvore e pássaros, é responsável
por promover o afastamento das cinzas e criar uma esperança luminosa, ao
favorecer a ida ao baile. Além disso, ela é indiretamente responsável pelo
casamento (equilíbrio e felicidade) e à formação de um lar.
O conto de Mastroberti, através da renovação, e, ao contrário da
padronização dos contos de fadas tradicionais, mostra Cinderela vencedora de
todos os obstáculos enfrentados. Numa forma diferenciada, Cinderela recebe auxílio
de um estilista, que, inicialmente, é o narrador-testemunha presente neste conto e
que, no decorrer da narrativa, assume a função da árvore, dos pássaros e da fada
112
madrinha dos contos tradicionais. Depois, no percurso da narrativa, torna-se um
amigo íntimo e confidente de Cinderela, que irá interferir de modo positivo na vida da
jovem, até a concretização da felicidade. Ao contrário das histórias tradicionais, em
que as fadas com seus poderes mágicos auxiliam a protagonista a vencer os
obstáculos, já nos contos renovados, os obstáculos vencidos por Cinderela serão
enfrentados com recursos humanos, e não com o auxílio da magia.
A partir do conhecimento dos contos anteriores, especialmente o de Grimm,
constata-se que Mastroberti parodiou-os, atualizando, como conseqüência, temos
uma biografia que apresenta uma linguagem verbal e visual contemporânea, que
contempla uma faixa etária superior em sua recepção.
Coelho (2000, p. 159) salienta que esse conto renovado apresenta-se como
maravilhosamente satírico, na medida em que faz parte de um grupo de,
Narrativas que utilizam elementos literários do passado ou situações
familiares, facilmente reconhecíveis, para denunciá-las como erradas,
superadas [...] e transformá-las em algo ridículo. O humor é o fator básico
dessa diretriz.
O uso dos diminutivos são um exemplo de humor, especialmente quando
diz: “Hein, Cindinha, querida? Até duas graciosas irmãzinhas arranjei-lhe! Sim –
ela levantou-se, rebolando em sua “oncinha” [...] (MASTROBERTI, 1997, p. 10)
O conto Sapatinho de Cristal, de Perrault, o mais antigo aqui analisado, é o
único que descreve o agente da mudança na vida de Cinderela como a fada
madrinha, detentora de grande bondade e poderes mágicos. Nesse caso, antes de
ser descrita como uma criatura fantástica, a fada madrinha era tão somente
madrinha de Cinderela, estando ausente de sua vida até o momento em que ela
necessitou de uma solução que não podia encontrar sozinha.
Na versão de Perrault, a fada madrinha viria em seu auxílio sempre que,
desesperada, a jovem deixasse cair lágrimas denunciadoras da força de
seu desejo. A fada interroga o motivo de sua tristeza e providencia uma
ajuda: fazer dela uma princesa, mas por algumas horas apenas. (CORSO;
CORSO, 2006, p. 112).
A presença da madrinha, em certo momento da história, não serve como
forma de reduzir o abandono sofrido por Cinderela, uma vez que esta não contou
com o apoio de ninguém durante todo o período em que foi humilhada pela
madrasta e suas filhas.
113
Em Perrault, a transformação de Gata Borralheira cabe à iniciativa da fada
madrinha, que surge no momento do choro da menina. A ação centra-se na figura
mediadora da fada: é ela quem orienta Cinderela a buscar a abóbora para a
carruagem, os ratos como cavalos e cocheiros e os lagartos como pajens.
Assim, Perrault foi denominado “Homero Burguês” pela propriedade com
que retratou a sociedade de sua época a partir da metamorfose de certos
símbolos dos contos populares. Seu trabalho consistiu em transformar os
monstros e animais – aos quais os camponeses atribuíam poderes
mágicos – em fadas. Estas eram o retrato das grandes damas que usavam
roupa de boa qualidade e faziam reverências como as preciosas da corte
de Luís XIV. No entanto suas histórias são diretas e realistas e, nelas, o
maravilhoso ocupa lugar modesto. (KHÉDE, 1986, p. 17).
Nesta cena, porém, observa-se que há um momento em que, frente à
hesitação da fada em arranjar um cocheiro, Cinderela sai de sua atitude submissa,
apenas cumprindo o que lhe era pedido, e mostra iniciativa ao resolver um impasse:
“Vou ver se ainda há algum rato na ratoeira, aí poderemos fazer dele o cocheiro”. –
“Você tem razão, vá ver”, falou a madrinha. (PERRAULT, 1994, p. 118).
No conto de Perrault, existe a limitação do horário imposto pela fada
madrinha a Cinderela: meia-noite. Ela determina que Cinderela não poderá ficar até
o final do baile, sob pena de perder o encantamento antes da hora.
Cinderela, mesmo vestida de andrajos e suja de cinzas do borralho, tem
beleza. O que fez a fada madrinha no conto de Perrault, ou a árvore e os pombos no
conto de Grimm, foi destacar essa beleza com elementos concretos, tais como:
sapatos de seda bordados com prata e vestido de ouro e prata com pedrarias, no
conto de Perrault; é transcrito como um vestido de ouro e prata no conto de Grimm,
sendo um passaporte para um mundo mágico. Os trajes bordados com ouro e prata
fazem com que o vestido contribua poderosamente para a aparição radiante que
Cinderela faz no baile. Na versão de Perrault, Cinderela calça o sapatinho trazido
pela fada madrinha, os sapatos mais lindos do mundo, transformando-se em uma
verdadeira princesa. Segundo Tatar (2004, p. 37), “O sapatinho de vidro. Por muitos
anos, estudiosos debateram se o sapato era feito de vair (uma palavra obsoleta para
“pele”) ou verre (vidro). Hoje, os folcloristas rejeitam a idéia de que o chinelo era feito
de pele e endossam a noção de que ele encerra um poder mágico e é feito de vidro”.
No conto dos irmãos Grimm não há a figura da fada, sendo que o agente
transformador são os pássaros brancos que vivem na árvore plantada junto do
114
túmulo da mãe de Cinderela, que atendem seus pedidos, dão-lhe a roupa, os
sapatos, e avisam o príncipe sobre os seus equívocos.
Os autores apresentam a moça, pedindo à madrasta para ir ao baile; o
elemento mágico facilita esse desejo claramente anunciado, mas quem favorece sua
realização são os pombos, que a ajudam na coleta das ervilhas. Nesse caso,
Cinderela sabe as palavras mágicas, usadas no imperativo, que auxiliam na
transformação de seus pedidos em realidade.
A representação do mágico por uma árvore e pássaros, na versão alemã
desse conto, revela essa dimensão mais próxima da natureza que estabelece a
relação entre o céu e a terra. A fada acaba sendo a própria mãe que pode ser
entendida como representada por esses elementos. A escolha da aveleira como
árvore mágica se dá por ser um galho seu o escolhido para varinha pelos feiticeiros.
Ao longo da história Cinderela: uma biografia autorizada, ao invés de
encontrarmos uma donzela indefesa à espera da chegada de seu cavalheiro, nos
deparamos com a imagem da desconstrução: uma princesa autosuficiente. A
imagem desta Cinderela é moldada aos olhos do leitor por meio de certas
informações transmitidas pelo narrador.
Na narrativa renovada, acontecerá um grandioso evento social que marcará
a época: “[...] o Príncipe escolheria, durante a festa, uma jovem afortunada a quem
todos, dali por diante, passariam a tratar pelo título de Princesa”. (MASTROBERTI,
1997, p. 24).
A preparação para o baile animou a todos, não podendo ser diferente na
casa de Cin.
Cin é que teve que haver-se com elas. Estavam infernais: Ornela não havia
conseguido emagrecer e seu vestido estava-lhe muito justo, a ponto de ela
mal conseguir respirar. Pamela tentara uma permanente, e, .... sabe
aquelas permanentes que-não-dão-certo? O mau-humor de ambas acabou
por ser descontado na irmã postiça, que enfrentava tudo impassível, o
tempo todo pensando: “Amanhã estarei livre”. (MASTROBERTI, 1997, p.
28).
No dia em que acontecerá a festa do príncipe, Cinderela recebe uma
notificação dizendo ser a madrasta a dona de todos os seus bens. A partir desse
momento, seus planos de liberdade acabam, e, através de seu sobrenome
importante, tenta buscar auxílio na família real.
115
Saindo em busca de ajuda do rei, encontra o seu amigo estilista e
cabeleireiro da corte, que prontamente lhe oferece ajuda; ela está infeliz e muito mal
vestida. Quando Cinderela entra em sua casa, constata que o espaço de seu
protetor é mágico:
– Sabe – começou ela -, desde que eu era pequena imaginava como
deveria ser aqui dentro. – Ela voltou-se para mim sorrindo. – Acreditava
que esta casa fosse encantada, e você uma espécie de feiticeiro. Que
modificasse as pessoas que aqui entravam com sua mágica...
– Talvez eu seja mesmo... – respondi, com simpatia. (MASTROBERTI,
1997, p. 33).
Neste encontro ele a transforma numa exuberante moça, através de um
lindo traje, de uma maquilagem maravilhosa e de um par de sapatos de material
cristalino e transparente que o estilista usava como objeto de decoração.
Entre as muitas rupturas percebidas em relação aos contos clássicos,
Cinderela vai ao baile com o auxílio de um táxi, que estipula o horário de retorno a
casa.
- Moça, como sou o único motorista que está disponível, acho que eu
mesmo terei de vir buscá-la, quando acabar a Festa.
- Se é assim... – Cinderela respondeu – certo: a que horas combinamos?
- Tem de ser à meia-noite, dona-moça, porque eu não trabalho de
madrugada. (MASTROBERTI, 1997, p. 38)
O horário nos três contos é o mesmo: meia-noite, mas no conto de
Mastroberti a conseqüência seria diferente, de ficar sem condução. O tempo é
cronológico e demarcado.
Na verdade, Cinderela não estava interessada no convite que o rei fizera às
moças do reino; o que a levou ao príncipe não foi a vontade de participar do baile e
sim a necessidade de ajuda para livrar-se da madrasta.
Para Khéde (1986, p. 22):
O poder dos reis e das rainhas poderá ter conotações positivas ou
negativas, mas sempre reproduzirá os valores clássicos e estratificados.
Príncipes e princesas são personagens mais predispostos às aventuras. Os
primeiros desempenham papéis ativos, heróicos e transgressores, servindo,
muitas vezes, como intermediários, num resgate. As princesas são
caracterizadas pelos atributos femininos que marcam a passividade e a sua
função social como objeto do prazer e da organização familiar. Belas,
virtuosas, honestas e piedosas, elas merecerão como prêmio o seu príncipe
encantado.
116
Nos contos, a figura do príncipe sofre variação. No de Perrault, da mesma
forma como no conto dos irmãos Grimm e de Mastroberti, o príncipe é o herdeiro do
trono que busca, em um baile, com duração de um a três dias respectivamente,
encontrar sua futura esposa. Nesses contos, o príncipe possui as mesmas
características, significando a única chance de ascensão social para as moças da
sociedade.
Embora a conclusão da história não apresente o status revogado, apenas
adaptado às exigências de modificação, o livro enfatiza a importância da
inquietação e da independência de idéias como fator de modificação da
sociedade. (MAGALHAES, 1982, p. 141).
Na quebra de paradigmas, tem-se, no conto de Mastroberti, um perfil
inovador. A figura do príncipe retorna, porém, de forma inusitada. Dessa vez, ele tem
um nome e, como eram os monarcas na Antigüidade, um apelido, sendo ele Tiago, o
Anarquista, que considerava seu pai um conservador, mostrando que havia
confronto e choque de gerações. Tiago era um jovem intelectual e romântico; vivia
com seus livros de filosofia oriental, adorava poesias, gostava de rock’roll, jazz,
samba e praticava T’ai Chi Chuan. Seu encontro com Cinderela acontece através da
poesia de Baudelaire.
Nessa história, Tiago escapa a todos os padrões, colocando seu pai em
pânico, ao declarar seu desejo de ir ao Tibet para tornar-se monge. A realização do
clássico baile é fruto de muita conversa para convencer o príncipe completamente
avesso às obrigações da coroa. O baile, além de comemorar seu aniversário, será o
momento decisivo para a escolha de sua noiva, ao contrário do que acontece nos
bailes tradicionais, em vez de dançar com uma dama, como nos contos clássicos, o
príncipe Tiago declama poesias de Baudelaire.
Como pode ser observado, mesmo que a história seja praticamente a
mesma, o príncipe, uma das peças chaves de Cinderela, sofre grandes alterações
em suas características, conforme a época e o local de cada conto. Assim “A
paródia, como se sabe, serve à crítica que resulta na inversão de pontos de vista e
no questionamento dos modelos parodiados”. (KHÉDE, 1986, p. 30).
Em Mastroberti o paradigma de que homem não chora rompe-se. Após o
assédio agressivo da imprensa e o stress causado pela procura por Cinderela, o
príncipe chora compulsivamente.
117
Nesse aspecto, todas as histórias possuem características peculiares e
únicas. O conto de Perrault é o que conta a história mais tradicional entre as
Cinderelas, tendo uma fada madrinha que transforma uma abóbora em carruagem,
seis ratos em cavalos, o sétimo rato em cocheiro, lagartos em pajens e a
protagonista em princesa. Nessa história e na mais moderna, Cinderela possui um
horário para voltar.
O baile de Perrault ocorre em duas noites, fato diferente do baile dos Irmãos
Grimm, que acontece em uma noite a mais. Neste, Cinderela não possui carruagem
nem horário para voltar, retornando a casa sempre antes da volta da madrasta e
irmãs. A grande diferença entre os dois contos clássicos é que Cinderela dos irmãos
Grimm, no último baile, fugindo do príncipe, perde o sapato dourado do pé esquerdo.
Quando a meia-noite chegou, ela desejou voltar para casa e o filho do rei
quis acompanhá-la pensando, “Não a perderei essa vez”. Ela, porém, deu
um jeito de escapar, mas fugiu com tanta pressa que deixou cair o
sapatinho dourado esquerdo na escadaria. O príncipe apanhou o sapato e
no dia seguinte foi até o rei, seu pai, dizendo, “Tomarei por esposa a dama
em que este sapatinho dourado servir”. (GRIMM, 2001, p. 163).
Em Perrault a grande mudança da vida de Cinderela inicia com sua
distração. Ao ver-se obrigada a fugir do baile para estar longe do castelo quando o
encanto acabasse, com a pressa, deixa cair um de seus sapatos.
Disseram ainda que o filho do rei apanhara o sapatinho e passara o resto da
noite a contemplá-lo, sendo mais do que evidente que ele estava
apaixonado pela linda dona do sapato.
Elas tinham dito a verdade, pois, passados alguns dias, o filho do rei
mandou anunciar, ao som de trombetas, que ele se casaria com a moça
cujo pé coubesse naquele sapatinho. (PERRAULT, 1994, p. 125).
A procura pela dona do sapatinho, em Perrault, inicia-se através de um
mensageiro que executa a tarefa de procurar aquela cujo pé caberá naquele
sapatinho, começando pelas princesas, duquesas e mulheres da corte, mas com a
ordem de calçá-lo em todas as moças do reino. O emissário chega à casa de
Cinderela e experimenta, em vão, o pequeno sapato nas duas irmãs. Cinderela
reconhece o sapatinho e, “em tom de brincadeira”, pede para experimentá-lo,
despertando a zombaria das irmãs. O cavalheiro, porém, achando-a muito bonita,
considera justo seu pedido. O sapatinho cabe-lhe à perfeição e Cinderela retira do
bolso o outro pé, que confirma sua identidade, para espanto das irmãs.
118
A fada madrinha reaparece, transformando as roupas da menina em trajes
mais esplendorosos que antes. Somente neste momento as irmãs reconhecem
Cinderela como a bela desconhecida, pedindo perdão pelos maus tratos que lhe
tinham feito. Cinderela beija-as e pede-lhes que não a deixem de amar. Quando se
casa com o príncipe, leva as irmãs para o palácio, casando-as com dois grandes
fidalgos da corte.
Em Grimm, é o príncipe que pessoalmente vai à casa do pai de Cinderela
em busca da moça em quem pode servir o sapatinho. Esse continua sendo o
elemento distintivo para eleição da futura esposa do filho do rei, e as irmãs se
alegram com a possibilidade de serem escolhidas.
Como possuem pés maiores que aquele pequeno sapato, experimentado
longe dos olhos do príncipe, os mutilam, por sugestão da mãe. Quando o filho do rei
conduz a primeira irmã, dois pombos denunciam o sapato molhado de sangue,
assegurando-lhe que a moça não é a dona do sapatinho, cena que se repete com a
segunda irmã.
A automutilação assinala o suplício por que passam os seres humanos para
a realização de seus desejos e ambições desmedidas, construindo um perfil de
felicidade com base em valores falsos e materiais. Agrava-se a crueldade, quando a
sugestão parte da própria mãe. O postulado de Ariès comprova o quanto a infância
sofreu no passado. Seu conceito evoluiu e contemporaneamente as mães, a família
e a lei reconhecem e defendem as crianças com dispositivos que garantem sua
integridade.
As irmãs suportam a dor em prol do casamento com o príncipe, mas a vida
cobra o seu tributo pela violência cometida: o sangue escorrendo pelos pés. Ao final,
são punidas: além da mutilação perpetrada contra si mesmas, são atingidas nos
olhos pelos pombos ao se colocarem ao lado de Cinderela durante a cerimônia
nupcial. Tatar (2004, p. 38) confirma: “A versão alemã também nos dá uma
Cinderela menos compassiva, que não perdoa as filhas da madrasta, mas as
convida para seu casamento, quando pombos lhes bicam os olhos”.
Em Grimm, o mal é punido. Em Perrault o bem transpõe o mal, e Cinderela
casa-se no mesmo dia que as irmãs.
O conto de Mastroberti possui diferenças significativas em comparação com
os demais, no que se refere ao baile e ao desfecho da história. Nesse conto,
Cinderela não tinha interesse no baile, decidindo ir somente para encontrar-se com o
119
Rei e pedir-lhe uma solução sobre o confisco de sua herança pela madrasta. Ao
dirigir-se para o castelo, Cin é chamada pelo estilista, que se considera seu protetor,
e lhe fornece a roupa de seus sonhos e os sapatos de cristal.
Durante o baile, Cinderela não consegue falar com o Rei, mas conhece o
príncipe quando o corrige no momento em que este declama uma poesia de
Baudelaire. Não dançam e o rapaz leva a moça para a biblioteca do castelo para
comprovar a correção feita. A fuga de Cinderela é provocada pela pressa, pois o
único transporte de que dispõe é um táxi, que prometeu partir à meia-noite.
Perde um pé do sapato, mas, ao contrário dos demais contos, a moça não
precisa experimentá-lo para comprovar sua identidade; o reencontro entre os dois
personagens acontece por intermédio do estilista, que conhece os dois, e Cinderela,
independente de seus trajes, é prontamente reconhecida pelo rapaz.
Um bom momento para terminar esta biografia, não é? Bastaria, para tal,
acrescentar que o Príncipe e Cindrela casaram-se, tiveram muitos filhos e,
o que mais, mesmo? Ah, sim, que foram felizes para sempre.
Acontece que prometi ser fiel à verdade dos fatos. E a verdade é que Tiago
e Cin com efeito acabaram casando-se, sim, mas depois de muito
namorarem, brigarem, discutirem e reatarem novamente. Fui testemunha
de que o Rei quase enlouquecia com aqueles dois. Houve uma época em
que Cinderela pensou com efeito em largar o Príncipe e montar sua firma
de comida congelada. O cargo de Princesa lhe prometia ser muito pesado.
Mesmo Sua Alteza tinha suas recaídas e de vez em quando voltava a falar
do Tibete. (MASTROBERTI, 1997, p. 58-59).
O final feliz desse casal é menos imediato do que os dos demais, sendo que
eles namoram muito antes de pensar em casamento, e este namoro, como qualquer
outro da vida real, passa por inúmeros momentos bons e ruins. Mesmo assim, como
em qualquer conto de fadas, neste, os personagens também são felizes: “Felizes
para sempre”. Nesta narrativa, a autora questiona a alternativa imperativa do
casamento e da família, fornecendo a opção da personagem adentrar no processo
de individualização por outras vias, permanecendo sozinha ou, quem sabe, numa
possível separação. É a manifestação do discurso do desejo – de liberdade, de
independência. Ressalta, dessa forma, uma personagem que, embora
conscientemente incompleta e descontínua, possui a escolha de um “estar feliz”,
diferente da tradição.
120
CONCLUSÃO
A análise dos contos de fadas Cinderela ou Sapatinho de Crista,l de Charles
Perrault, Cinderela, dos irmãos Grimm e Cinderela: uma biografia autorizada, de
Paula Mastroberti, baseada na intertextualidade e nos preceitos teóricos da teoria
sobre contos de fadas, literatura infantil e contos renovados, leva-nos à conclusão
de que Mastroberti criou uma nova versão dos contos de fadas ao parodiar a história
clássica, utilizando novas linguagens e ilustrações que foram incorporadas à
Cinderela: uma biografia autorizada.
Historicamente, constata-se que, ao longo dos séculos, houve grandes
alterações semânticas nos contos de fadas, devido à sua origem popular e
propagação oral. A adaptação literária suprimiu essas alterações, sobretudo a partir
do advento da indústria editorial no século XVII. Desde então, os contos de fadas,
em suas versões literárias, foram amplamente divulgados. A partir da disseminação
da indústria tipográfica, eles têm sido apresentados aos leitores como universais e
imutáveis. Não o são, porém, e cada readaptação emanada das origens está
comprometida com o contexto de seus novos autores.
Assim, com o decorrer do tempo, os contos de fadas sofreram
transformações, acompanhando a evolução social e a tradição da narrativa. Falar
sobre contos de fadas é, também, falar sobre a história do homem, seus mitos e
suas lendas. Contar histórias é uma arte que atravessa os séculos sem data para
terminar, uma vez que envolve gerações, estabelecendo laços entre povos.
A literatura, como toda linguagem, expressa a experiência humana. Por
isso, cada época tem compreendido e produzido literatura com um estilo próprio,
conseqüência das singularidades dos diferentes períodos em que a humanidade tem
construído sua constante evolução.
Na obra de arte e na literatura, estão impressos o contexto histórico a que
pertencem, assim como a visão de mundo do artista e do escritor. O conto de fadas,
original da cultura folclórica e eternizado pela literatura, obedece a esse padrão e
sobrevive, passando a fazer parte da literatura para crianças. O seu conteúdo
mágico e a veiculação de modelos de comportamentos são traços determinantes
121
que divulgam as normas sociais e padrões culturais vigentes em cada sociedade,
daí sua relação com a regionalidade.
Atualmente, têm ocorrido mudanças significativas nas formas culturais e
vivências sociais, responsáveis pelas subseqüentes transformações da infância
moderna e da literatura a ela dirigida, que se modifica de acordo com suas
exigências. Os recursos tecnológicos da indústria do entretenimento transportam o
conto de fadas para o cinema, a televisão e a computação, engajando-os nos
costumes do mundo atual.
Os contos de fadas passaram por diferentes etapas em todas as partes do
mundo, transformando-se, aos poucos, em leitura imprescindível às crianças e
agradável aos adultos, seguindo uma trilha de evolução ainda mais ampla que a
própria história da infância, uma vez que essas histórias existiam muito antes de se
imaginar que um dia esta literatura seria destinada aos infantes.
Pela importância dessa literatura na vida das crianças e de adultos, justifica-
se buscar compreender as influências e transformações dos contos de fadas entre
os povos. É justamente por entender sua versatilidade e capacidade de se
adequarem ao seu público que buscamos, no percurso que aqui se encerra,
compreender a evolução do conto Cinderela e as mudanças que ele sofreu através
dos tempos. Hoje, os contos passam por mudanças próprias da modernidade,
indicando eliminação de fronteiras, sendo esta uma das características marcantes de
sua produção atual. Parodiando antigas histórias de fadas, artistas contemporâneos
passam a utilizar elementos mágicos inerentes a essas narrativas para difundir
novas idéias.
A alegoria e a linguagem simbólica dos contos de fadas acenam com a
possibilidade de recriação da realidade, já que, nesse universo, tudo é passível de
transformação. Os tempos modernos não eliminam a necessidade da fantasia; ao
contrário, o encantamento repetido nas novas histórias revela-a como parte da
modernidade e como uma possibilidade de reinvenção, com novas linguagens e
novos comportamentos.
Obras inovadoras, como Cinderela: uma biografia autorizada, passam a
veicular uma postura questionadora, procurando enfocar problemas de ordem
coletiva e encontrando novos desfechos para esses problemas, dissociados do final
feliz. O livro infantil é, agora, agente formador de uma nova mentalidade. Novos
autores lançam olhares indagadores ao mundo atual. Nelly Novaes Coelho (2001)
122
observa que o artista contemporâneo está atento às transformações do mundo e
realiza o que ela chama de coerência orgânica entre seu modo de pensar e a
estética que emprega. Para a autora, estes são fatores que atestam a
contemporaneidade de uma obra.
Coelho (2000) assegura que, nas narrativas mais recentes, encontra-se uma
forte tendência para utilizar temas e estratégias antigas amalgamando-as a novos
processos. A história analisada segue essa premissa e revisita os contos de fadas
clássicos para tratar de assuntos atuais. A exemplo das contadoras de histórias de
outros tempos, a autora realiza o rito de permanência de tradições, trazendo para
seus receptores atuais novos recursos narrativos. Nos contos renovados, algumas
características se devem a esses recursos e são incorporadas à historia: a
efabulação, os personagens-tipo, a voz do narrador consciente da presença do
leitor, a utilização de novas linguagens, a determinação do tempo, a noção de
exemplaridade revisitada, a utilização de humor e a atração pela fantasia.
A estratégia da inversão acena para o aspecto da interatividade. Dialogando
com o leitor, Mastroberti demonstra estar consciente de que a matriz dos contos de
fadas já faz parte do acervo literário do receptor. Reconhecendo a fórmula do conto
clássico e detectando a inversão, o leitor percebe que, por trás do conto Cinderela:
uma biografia autorizada, existe um questionamento da ordem vigente. Essa
consciência já foi apontada por Coelho (2000) como recurso caracterísitico do
momento do boom da literatura infantil. Revisitando temas e formas antigas, a autora
critica e apresenta alternativas para a transformação.
Tradição e inovação interagem. Essa fusão do antigo com o novo permite o
abandono do tom moralizante empregado em produções mais antigas. O que se
pretende, agora, é proporcionar o prazer da leitura, envolvendo o leitor num universo
de reflexões, desafios e novas experiências.
A intertextualidade e a mistura de estilos conseguem, em algumas obras,
como na de Mastroberti, o aproveitamento de temas e imagens, bem como o
alargamento dos limites entre os gêneros e estilos, para realizar a ruptura própria da
atualidade, provocando no leitor um posicionamento crítico e criativo frente ao novo
texto.
A postura de Mastroberti desafia o leitor a questionar o mundo de
desigualdades em que vivemos; anuncia o novo, que desafia a imaginação e
envolve, conduzindo à reflexão. No conto Cinderela: uma biografia autorizada, a
123
personagem apresenta um perfil de heroína dinâmica e independente. Sua rebeldia
serve como exemplo de subversão a um código social tradicional: é o desafio da
nova era que procura redefinir regras e papéis sociais.
Assim, constata-se que o poder de renovação desses contos não diminui
absolutamente nada do valor dos contos antigos que, permanecendo documentos
vivos da história passada, levam o leitor a conhecer uma realidade que não existe
mais. É inegável a curiosidade do ser humano em conhecer como viviam os povos
antigos, e os contos de fadas possuem em seu conteúdo um registro vivo dos
hábitos de épocas passadas.
Outro aspecto que cabe destacar é que, embora tratem do mesmo tema, os
contos são muito diferentes. O conto de Perrault, produzido na França de Luís XIV,
apresenta aspectos mais refinados, ao gosto da corte, enquanto o conto de Grimm
revela o espírito germânico, mais belicoso e cruel. Esse aspecto evidencia a questão
da regionalidade e da recepção. O mesmo ocorre no conto de Mastroberti, em que o
ambiente rural dos textos tradicionais é substituído pelo ambiente urbano; próprio da
contemporaneidade.
Sabe-se que em um futuro não muito distante surgirão outras Cinderelas,
assim como se sabe que já existem milhares delas espalhadas pelo mundo, como
um documento de sua cultura e da sua época, e essas novas Cinderelas refletirão
uma nova realidade, para nós ainda desconhecida.
Talvez o mais interessante em realizar esse trabalho é ter a consciência de
que o tema jamais se esgotará. Como Cinderela, tantos outros personagens que
perduram desde os tempos mais remotos, ou tantos outros que, para nós, hoje, são
novos, dentro de algumas décadas, já serão objetos de renovação.
124
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