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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de Concentração: Fundamentos da Educação
JUAN LUIS VIVES (1492-1540) E OS IDEAIS HUMANISTAS DE
EDUCAÇÃO NA AURORA DA MODERNIDADE
Débora Giselli Bernardo
MARINGÁ
2005
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de Concentração: Fundamentos da Educação
JUAN LUIS VIVES (1492-1540) E OS IDEAIS HUMANISTAS DE EDUCAÇÃO NA
AURORA DA MODERNIDADE
Dissertação apresentada por Débora Giselli
Bernardo ao Programa de Pós-Graduação em
Educação, Área de Concentração:
Fundamentos da Educação, da Universidade
Estadual de Maringá, como um dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientador:
Prof. Dr. Cézar de A. A. de Toledo
MARINGÁ
2005
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DÉBORA GISELLI BERNARDO
JUAN LUIS VIVES (1492-1540) E OS IDEAIS HUMANISTAS DE EDUCAÇÃO NA
AURORA DA MODERNIDADE
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Cézar de Alencar Arnaut de Toledo – UEM
Prof. Dr. Lourenço Zancanaro – UEL - Londrina - PR
Prof. Dr. João Luiz Gasparin - UEM
Data de Aprovação
16 de dezembro de 2005
À minha família, com amor e gratidão.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo insondável mistério da misericórdia.
Ao meu marido, Cristiano, pelo amor e dedicação em todos os momentos.
À minha mãe, Anirte, e à minha irmã, Sílvia, pelo carinho e pelas orações.
Ao Prof. Dr. Cezar de A. A. de Toledo, pela orientação e pelo incentivo.
Ao Prof. Dr. Peter Johann Mainka, cujos ensinamentos permanecem em minha
memória.
Aos professores Ângela Mara Barros Lara, João Luiz Gasparin e Lourenço
Zancanaro, pela apreciação deste trabalho.
Ao Flávio, pelo companheirismo demonstrado em todos os momentos.
BERNARDO, Débora Giselli. Juan Luis Vives (1492-1540) e os ideais humanistas
de Educação na aurora da Modernidade. 121 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Orientador: Prof. Dr. Cézar de
Alencar Arnaut de Toledo. Maringá, 2005.
RESUMO
O presente trabalho aborda a temática da educação humanista no início dos
Tempos Modernos, especificamente no contexto do Humanismo Renascentista.
Entendemos que este foi um período de profundas transformações sociais, marcado
por férteis discussões acerca da implementação de um novo tipo de instrução.
Sendo assim, seu estudo contribui para o melhor entendimento da história da
educação e da pedagogia. O pensamento educacional de Juan Luis Vives (1492-
1540) se insere perfeitamente nesse contexto, visto que ele foi um importante
humanista, que expressou essa fase de construção de um novo ideal educativo e
traduziu os valores pedagógicos típicos desse momento histórico. O objetivo
proposto é analisar os ideais humanistas de educação, relacionando-os com a crítica
ao modelo educativo medieval, baseando-nos nas obras vivistas de caráter
pedagógico. Pretendemos não apenas caracterizar o ideal de formação preconizado
pelo Humanismo, mas também, apreender a dimensão transformadora desse
movimento no âmbito educacional. Desse modo, podemos obter um quadro da
educação no início da Modernidade, além de refletir sobre as suas contribuições às
épocas posteriores. Para alcançar esse objetivo, dedicamo-nos a uma discussão dos
textos pedagógicos e morais do autor, tais como "De las disciplinas" (1531) e
"Introducción a la sabiduría" (1524), contextualizados na história da educação e na
vida de Juan Luis Vives, visando fundamentar a posterior análise histórica das suas
idéias pedagógicas. Observamos que o Humanismo o representa a totalidade do
saber nos séculos XV e XVI, e que seus seguidores não eram os únicos a
apresentar um ideal de educação. Inclusive, a tradição escolástica medieval, apesar
das críticas, vigorou por todo o período renascentista, exercendo seu domínio em
muitas escolas e Universidades da Europa. Além disso, os humanistas elaboraram
seu modelo educativo para os meninos da aristocracia; ele é, então, um modelo
elitista e que exclui, em grande parte, a mulher. Todavia, apesar dessas
características, o Humanismo não deixa de ser representativo para o estudo do
desenvolvimento da educação no início dos Tempos Modernos, afinal, ele
representou a vanguarda intelectual do período, e significou o surgimento de novos
ideais, especialmente no tocante aos problemas do homem e de sua educação.
Palavras-chave: Educação; Humanismo; Juan Luis Vives; Renascimento; Tempos
Modernos.
BERNARDO, Débora Giselli. Juan Luis Vives (1492-1540) and the humanistic
ideals of education at the rise of modernity. 121 p. Dissertation (Master in
Education) State University of Maringá. Supervisor: Prof. Dr. Cézar de Alencar
Arnaut de Toledo. Maringá, 2005.
ABSTRACT
The present study discusses the humanistic education subject matters in the
beginning of the Modern Times, particularly within the Renaissance Humanism
context. During the period, marked by intense social changes, fruitful discussions
took place about the implementation of a new way of teaching. For this reason, a
study of these discussions is expected to pay a contribution to a better understanding
of the history of education and pedagogy. The educational thought of Juan Luis Vives
(1492-1540) fits this context adequately, considering that he is known as an
important humanist, who expressed this phase of construction of a new education
ideal and well translated the pedagogical values, typical of their historical moment.
Thus, the study basically aims at analyzing the humanists’ ideals of education,
relating them to the critics towards the medieval model of education, based on
Vives’s work, specially those pieces with a pedagogical nature. The intention here is
not just to characterize the education development ideal upholded by humanists, but
also to apprehend the transforming dimension of this movement within the
educational field. This analysis then allowed for a relevant picture of education in the
rise of Modernity, as well as for reflections on its contributions to later times. In order
to attain such an aim, extensive bibliography was raised and a series of readings
were carried out about the target context, about the history of education, and about
Juan Luis Vives’s life and work. These readings served mainly to fundament the
subsequent historical analysis of the pieces of Vives’s work chosen. One finding is
that Humanism does not represent the totality of knowledge during the 15
th
and the
16
th
centuries, and its followers were not the only ones with an ideal of education.
Moreover, the medieval scholastic tradition, despite the critics, sustained itself along
the entire Renaissance period, ruling many schools and universities throughout
Europe. Besides, humanists elaborated their education model aimed at the
aristocratic boys it is thus an elitist model which excludes the women greatly.
However, in spite of these restrictions, Humanism still remains representative for the
study of education development in the beginning of the Modern Times. After all, the
movement represented the intellectual vanguard of the time, when new ideals
arouse, especially regarding the men and their education.
Key words: Education, Humanism, Juan Luis Vives, Renaissance, Modern Times.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO........................................................................................................9
2. RENASCIMENTO, HUMANISMO E EDUCAÇÃO.................................................15
2.1. O Renascimento.................................................................................................15
2.2. Humanismo Renascentista ................................................................................19
2.3. Difusão da Erudição Humanista.........................................................................27
2.4. Educação na Europa Renascentista..................................................................31
3. JUAN LUIS VIVES ................................................................................................42
3.1. Vida....................................................................................................................42
3.2. Obras .................................................................................................................51
4. EDUCAÇÃO E HUMANISMO EM VIVES .............................................................67
4.1. Causas Da Corrupção Do Saber........................................................................67
4.2. Ideal Vivista de Educação..................................................................................74
4.3. Educação e Moral em Vives...............................................................................98
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................109
REFERÊNCIAS.......................................................................................................116
1. INTRODUÇÃO
O período de transição da Idade Média para a Modernidade
1
trouxe
mudanças em todas as esferas da atividade humana. As transformações políticas,
sociais, econômicas e culturais que caracterizaram o nascimento dos chamados
“tempos modernos”, geralmente situado entre os séculos XV e XVI, vinham se
desenvolvendo na Europa desde o século XI, aproximadamente, quando o fim das
invasões bárbaras e de um longo período de epidemias possibilitou uma explosão
demográfica e o conseqüente renascimento das atividades urbanas e comerciais. A
partir daí, a sociedade feudal, cuja estrutura repousava na economia de subsistência
e na vida campesina, começou a ruir lentamente. O resultado desse processo, no
entanto, somente se evidenciaria, de forma mais nítida e definitiva, cerca de quatro
séculos depois.
No âmbito da esfera política, podemos identificá-lo na formação dos Estados
Nacionais, ou Estados Modernos, caracterizados pela centralização do poder nas
mãos de reis e príncipes o que resultaria no Absolutismo Monárquico –, pela
administração burocrática e por uma crescente nacionalização da política. Segundo
Vivian H. H. Green (1984, p. 28), “se estava a desenvolver lentamente entre a
população uma certa consciência nacional, muito embora o patriotismo que elas
manifestavam, e que era cuidadosamente incentivado pelas classes dirigentes,
ainda fosse com mais freqüência de índole local do que nacional”.
No campo sócio-econômico, observamos os notáveis progressos das
atividades comerciais, que consolidaram a ascensão da burguesia como grupo
social e politicamente importante. Tais progressos foram impulsionados, de modo
especial, pelas descobertas de novas rotas marítimas para o comércio com o
Oriente, bem como pela conquista da América, cujo marco é a chegada da
expedição de Cristóvão Colombo, em 1492. As viagens de descobrimentos,
possibilitadas pelo progresso das invenções técnicas, além de propiciar os
tumultuados contatos entre culturas díspares, levaram ao desenvolvimento das
1
Os conceitos (ou noções) de Modernidade, Moderno e/ou Tempos Modernos são utilizados, neste
trabalho, como sinônimos, no sentido tradicional de periodização histórica (século XV ao século
XVIII). Outras definições podem ser encontradas em: RODRIGUES, Antônio Edmilson M.; FALCON,
Francisco Jo Calazans. Tempos Modernos: ensaios de história cultural, 2000. Ver, especialmente,
o capítulo intitulado “Moderno e modernidade”.
10
relações comerciais entre países e continentes. Apesar de a burguesia estar no
comando desse processo, inserido no contexto mais amplo de transformação do
modo de produção feudal
2
que abriu caminho às formas produtivas capitalistas –,
ela travou uma luta incansável por um status equivalente ao da nobreza. Isso porque
a sociedade permaneceu, por um longo tempo, aristocrática, hierárquica e tendente
ao imobilismo das condições sociais (RODRIGUES; FALCON, 2000).
No âmbito da religião, podemos dizer que a unidade do Cristianismo
ocidental, estabelecida ao longo da Idade Média, foi irreparavelmente quebrada pelo
movimento da Reforma Protestante, liderada por homens como Martinho Lutero
(1483-1556) e João Calvino (1509-1564). Os dogmas da Igreja Católica foram
duramente criticados pelos protestantes, que fundaram as Igrejas luterana, calvinista
e anglicana, para citar apenas as principais. Os católicos não aceitaram tais cticas;
pelo contrário, defenderam seu posicionamento de modo ainda mais rigoroso,
reafirmando os dogmas atacados. Tal postura se concretizou na Contra-Reforma
conjunto de medidas tomadas pela Igreja Católica com o objetivo de recuperar seu
prestígio e evitar que os fiéis debandassem. O período que se seguiu foi de guerras
religiosas entre católicos e protestantes. Sem menosprezar as motivações políticas
destes conflitos, podemos dizer que eles mostram que, apesar de o Cristianismo ter
sofrido um cisma, a fé continuou muito presente na vida das pessoas.
No entanto, um crescente secularismo também pode ser identificado como
uma das principais características dos tempos modernos. Esse aspecto pode ser
constatado, de modo particular, nas transformações culturais do período,
representadas pelo Renascimento das artes e da literatura do mundo clássico grego-
romano, nos séculos XV e XVI, bem como pelos humanistas, que foram os grandes
resgatadores de tal mundo. A cultura deixava, a partir da ação intelectual do
Humanismo, de se subordinar totalmente à Igreja, e passava a se voltar ao homem e
à sua natureza – o ser humano passou a ser valorizado também por sua capacidade
de transformar o mundo terrestre, e não apenas por sua possibilidade de salvação
eterna. Esse secularismo
2
O conceito de modo de produção, pertencente à terminologia marxista, designa a forma pela qual é
produzido o conjunto dos bens materiais de uma dada sociedade. Ver: MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. A ideologia alemã, 1989.
11
[...] em parte efeito do Renascimento, em parte efeito da mudança
das condições econômicas e em parte o resultado duma nova visão
do universo, tornou-se aparente num certo número de aspectos
menores. O declínio da consciência humana imediata do u e do
Inferno e a diminuição do sentimento da responsabilidade do homem
pelos pecados do mundo [...] tiveram o seu corolário no aumento do
conforto material, na sensualidade declarada, nas representações
seculares da arte, na escultura e na literatura e, talvez acima de tudo,
na convicção de que o homem poderia realizar aquilo que quisesse
neste mundo sem a assistência divina. (GREEN, 1984, p. 30).
No âmbito do movimento renascentista, os humanistas contribuíram para o
alargamento da mente humana porque foram os primeiros a elaborarem
sistematicamente uma nova visão do homem – exaltando sua capacidade de criação
e do conhecimento valorizando mais significativamente os estudos clássicos. Os
humanistas passaram a idealizar o surgimento de um “novo homem”, ao qual
haveria de corresponder uma pedagogia também inovadora. Por isso, muitos foram
os adeptos do Humanismo que escreveram sobre educação, geralmente criticando a
tradicional escola medieval, de influência escolástica, e propondo mudanças com
base em suas concepções de mundo, indubitavelmente mais laicas e marcadas pela
antropologização da cultura.
O presente trabalho aborda, justamente, a temática dos princípios humanistas
de educação, pois entende que ela está inserida em um efervescente contexto de
transformações, marcado por férteis discussões acerca da implementação de um
novo tipo de instrução, e que, portanto, seu estudo contribui para o melhor
entendimento desse período tão rico da história da educação e da pedagogia. Nosso
objetivo se consubstancia em analisar esses princípios, relacionando-os, na medida
do possível, com o modelo educativo escolástico, no qual os humanistas pretendiam
introduzir algumas mudanças. Com isso, pretendemos não apenas caracterizar o
ideal de formação preconizado pelo Humanismo, mas também apreender a
dimensão transformadora desse movimento no âmbito educacional. Assim,
poderemos obter um quadro relevante da educação na Modernidade, além de refletir
mais acertadamente sobre as suas contribuições para as épocas posteriores.
Faz-se necessário observar que o Humanismo não representa a totalidade do
saber nos séculos XV e XVI, e que seus seguidores não eram os únicos a
apresentar um ideal de educação. Inclusive, a tradição escostica, apesar das
críticas, vigorou por todo o período renascentista, exercendo seu domínio em muitas
escolas e universidades da Europa (KRISTELLER, 1993; MANACORDA, 2002).
12
Além disso, como veremos, os humanistas elaboraram seu modelo educativo em
torno da figura dos meninos da aristocracia; ele é, portanto, um modelo elitista e que
exclui, em grande parte, a mulher. Todavia, apesar disso tudo, o movimento
humanista o deixa de ser representativo para o estudo do desenvolvimento da
educação no início da Modernidade, afinal ele se consubstanciou na vanguarda
intelectual do período e significou o nascimento de novas idéias.
Como fonte para a análise dos ideais humanistas de educação, optamos
pelas obras do espanhol Juan Luis Vives (1492-1540). Isso se deu após algumas
leituras sobre a história da educação européia no Renascimento, que nos revelaram
mais detalhadamente essa figura tão pouco conhecida no Brasil,
3
mas que é
considerada tão emblemática para o Humanismo renascentista. Inclusive, Lorenzo
Luzuriaga (1984) chega a comentar que, no tocante às propostas para a educação,
Vives é tido como mais original que o próprio Erasmo que é, provavelmente, o
nome mais conhecido do Renascimento no campo literário. A posterior pesquisa
sobre a vida e a produção intelectual de Vives, especialmente na esfera da reforma
dos estudos, mostrou-nos quão significativa poderia ser a análise de seu
pensamento, tanto para o melhor entendimento do modelo educativo dos
humanistas – o que conforma nosso objetivo central – quanto para um conhecimento
mais profundo desse autor entre nós.
Visando alcançar os objetivos dessa pesquisa, estruturamos o presente texto
em três capítulos. No primeiro, intitulado “Renascimento, Humanismo e Educação”,
discutimos os conceitos indispensáveis para o pleno entendimento da temática
proposta, buscando definir o nosso posicionamento teórico sobre cada um deles,
além de situarmos historicamente o leitor no contexto intelectual referido. Desse
modo, primeiramente apresentamos as origens do termo “Renascimento”, bem como
uma sucinta discussão bibliográfica acerca de como compreender esse período tão
significativo da história européia, com vistas a delimitar a nossa própria linha de
interpretação. Segue-se uma análise mais detida sobre a faceta intelectual da
Renascença: o Humanismo. Iniciamos pela definição do movimento e de seus
representantes, e caracterizamos o seu campo de atuação. Depois, passamos a
uma discussão sobre os mais típicos valores humanistas reafirmados através da
3
A única tradução brasileira de obras vivistas (“Introducción a la sabiduría” e alguns diálogos dos
“Ejercícios de lengua latina”) foi encontrada em: PÉREZ, David J. (Comp.). Moralistas Espanhóis,
1956, p. 3-104.
13
ofensiva antiescolástica – com o objetivo não apenas de mostrar a importância deste
debate intelectual, mas tamm de possibilitar ao leitor uma visão mais clara sobre a
contribuição do Humanismo ao desenvolvimento cultural do período. Tratamos,
ainda, da difusão desse movimento, partindo da Itália ao resto da Europa,
destacando as semelhanças e diferenças entre o pensamento italiano e aquele que
se desenvolveu no norte europeu, e dando ênfase ao denominado Humanismo
Cristão – corrente da qual Vives fez parte. Ainda no primeiro capítulo, apresentamos
a nossa definição para o termo “Educação”, bem como alguns aspectos da sua
história, visando sublinhar contrastes e permanências na análise do ideal humanista
de formação.
O segundo capítulo, intitulado “Juan Luis Vives”, é totalmente dedicado à
figura deste grande humanista. Visa apresentá-lo ao leitor, justificando a escolha de
suas obras como fonte para esta pesquisa. Para a realização de tal intento,
procuramos demonstrar a significativa participação do autor nos debates intelectuais
do contexto renascentista, especialmente no que respeita à esfera educacional.
Apresentamos, primeiramente, uma biografia de Vives, buscando privilegiar os
momentos mais marcantes para a sua carreira como professor de Humanidades e
escritor. Em seguida, fazemos um apanhado de suas Obras Completas, discutindo-
as de acordo com a seguinte classificação: devotas, sociais, políticas, apologéticas,
filosóficas, filológicas, morais, e de educação e/ou reforma dos estudos. O conteúdo
das obras, especialmente as de caráter moralista e pedagógico, é analisado em sua
relação com os pontos centrais do pensamento humanista, discutidos no primeiro
capítulo, com o objetivo de demonstrar a incontestável representatividade de Vives
para o estudo do tema aqui proposto. Ainda no âmbito deste capítulo, delimitamos
as obras vivistas a serem analisadas, bem como as razões de tal escolha.
O terceiro e último capítulo, que se intitula “Educação e Humanismo em
Vives”, apresenta a análise dos ideais educativos do humanista espanhol, tanto no
que diz respeito às críticas à ação dos escolásticos, quanto no que se refere às suas
propostas para a formação do homem renascentista, que, salvo algumas
especificidades, são típicas do Humanismo em geral. Em relação a estas propostas,
analisamos a idade, o local, o mestre e os métodos de ensino e aprendizagem
ideais, de acordo com o que encontramos, especialmente, na obra “De las
disciplinas” (1531); em seguida, tamm baseados principalmente nesta obra e na
“Introducción a la sabiduría” (1524), apresentamos uma discussão sobre a educação
14
moral em Vives. Através desta análise, podemos verificar o tipo de educação que
estava se concretizando no início da Modernidade, e que viria, inclusive, a influenciar
muitos aspectos da escola contemporânea. Podemos, também, apontar o papel que
a educação humanista desempenhou naquele momento histórico questão
apresentada, de modo mais significativo, em nossas Considerações Finais.
2. RENASCIMENTO, HUMANISMO E EDUCAÇÃO
O contexto no qual situamos o nascimento da Modernidade, entre fins do século XV
e início do século XVI, foi bastante tumultuado, pois se caracterizou por
transformações em todos os âmbitos da vida humana. Na esfera cultural, o
Renascimento e o Humanismo possibilitaram a crítica a antigos valores e,
concomitantemente, o surgimento de novas idéias, que marcaram o campo
intelectual, refletindo-se de modo significativo nas discussões relativas à educação.
Os mais expressivos tratados pedagógicos da época foram elaborados pelos
humanistas. Dentre eles, podemos destacar o espanhol Juan Luis Vives. Para
analisar o ideal educativo do Humanismo, em geral, e de Vives, em particular, temos
de, primeiramente, conceituar o Renascimento e, a seguir, buscar apreender as
relações entre o movimento humanista e a história da educação.
2.1. O Renascimento
O movimento que, tradicionalmente, conhecemos pela designação de
Renascimento teve um significado muito importante para a história da Europa, que
foi seu palco, mas também da Humanidade, visto que simbolizou uma nova atitude
do homem para consigo e com o mundo à sua volta. Nosso modo de pensar esse
período da História está alicerçado nos fundamentos conceituais lançados pelo
historiador suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), que consagrou a idéia de uma
Renascença, através de sua obra A Cultura do Renascimento na Itália, publicada em
1860. Não podemos, de modo algum, negar-lhe o mérito de ter inaugurado uma
vertente interpretativa sobre o tema, mas, de para cá, inúmeros foram os estudos
sobre o Renascimento e, como acontece comumente no campo do saber, o
pensamento de Burckhardt tornou-se, em alguns aspectos, alvo de críticas por parte
daqueles que o seguiram. Vejamos, de modo sucinto, quais são as suas idéias
centrais, bem como algumas críticas que lhe foram apresentadas.
Para esse historiador, a Renascença foi o reflorescimento dos ideais da
civilização antiga, que ocorreu na Itália, a partir do século XIV, e desenvolveu-se nos
séculos XV e XVI. Não que essa civilização, e seus resquícios materiais e
16
espirituais, não exercessem influência em toda a Europa muito antes dessa época,
mas apenas a partir do Trezentos é que efetivamente um grande interesse pelo
passado clássico generalizou-se especificamente na Itália, devido ao
desenvolvimento de sua vida cívica. Tal circunstância levou ao despertar de um
entusiasmo patrtico e à conseqüente necessidade de construir uma memória
nacional (BURCKHARDT, 1991). Assim, passou-se a buscá-la nas ruínas de Roma,
e em suas antigas inscrições, de modo que “as ruínas dentro e fora de Roma
despertavam não apenas zelo arqueológico e entusiasmo patrtico, mas uma
melancolia [...] sentimental.” (BURCKHARDT, 1991, p. 114). Todavia, mais
importantes que os legados arquitetônicos, foram os literários, visto que os autores
clássicos, cujas obras se encontravam em grande parte nas bibliotecas monásticas,
passaram a ser considerados, de modo absoluto, as maiores autoridades
intelectuais.
Além do despertar cívico, no culo XIV, Burckhardt ainda apresenta outra
razão para o Renascimento ter se dado na Itália: foi ali que o homem medieval,
imerso na coletividade, passou ao individualismo moderno. Tal transformação
ocorreu devido a uma série de circunstâncias, tais como as condições em que se
encontravam as cidades-estado italianas política e economicamente estáveis e
desenvolvidas; o despertar de ideais como fama e glória, que, na realidade, como
bem apontou Burke (1999, p. 231),
4
já existiam no universo dos cavaleiros
medievais; a existência de uma tradição poética que, mesmo antes do século XIV,
possibilitou o caminho para a expressão da natureza humana e individual; e o
surgimento das coleções de biografias, o que retrata um interesse pelo indivíduo e
seus feitos (BURCKHARDT,1991). Assim, na análise de Burckhardt, ao lado da
proximidade com as ruínas da Roma Antiga, a singularidade da sociedade italiana
também contribuiu para que essa região fosse o berço do Renascimento.
Muitas dessas idéias de Burckhardt foram aceitas, servindo de base para os
estudos posteriores sobre o período, mas algumas foram questionadas, devido ao
próprio desenvolvimento das pesquisas. Dentre estas últimas, temos a idéia de que
tal momento histórico, que o autor chama de “movimento espiritual”, significou uma
ruptura, algo totalmente novo, inesperado, separado terminantemente do período
4
O autor, entretanto, concorda que, no período renascentista, palavras de auto-afirmação (glória,
fama, inveja, honra, virtude) ocorrem na literatura italiana com freqüência admirável.
17
anterior que os próprios sujeitos do Renascimento pejorativamente chamaram de
Idade Média (media tempestas, medium aevum),
5
com o objetivo de definir um longo
tempo de trevas intelectuais”, que se localizaria entre o fim da “esplêndida
civilização antiga” e a retomada gloriosa” de seus ideais, quase mil anos depois.
Vejamos como alguns autores interpretaram essa questão.
Vivian H. H. Green, ao discorrer sobre as origens e o significado do
Renascimento, caracteriza-o como um período de ressurgimento da sabedoria
clássica, cujas raízes “penetram fundo no solo da Idade Média” (1984, p. 33). Para a
autora, essa idéia ajuda a refutar, por exemplo, a teoria de que a fuga dos sábios
gregos para a Itália – após a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453 – seja
o pontapé inicial para o desenvolvimento renascentista. Isso porque, como foi
comprovado, o contato cultural entre Itália e Bizâncio foi importante sim, porém deu-
se anteriormente à invasão turca, mas principalmente porque
[...] em certos aspectos, o Renascimento brotou naturalmente de
idéias correntes em cidades italianas da Idade Média. Estas
abrigavam uma sociedade em que os estudos laicos, especialmente
em direito e medicina, estavam mais adiantados do que no resto da
Europa. Existiam ali grupos de homens doutos, mais juristas que
teólogos, os quais vinham a interessar-se desde há muito pela
literatura da Roma antiga e que até certo ponto se haviam libertado
das sanções teológicas que dominavam o saber medieval. (GREEN,
1984, p. 34).
Também o historiador Peter Burke (1999) parece não concordar com a
abordagem de Burckhardt, que apresenta o Renascimento em termos de avanço
e/ou progresso em relação à Idade Média, pois a considera desnecessária para
compreender o movimento e suas conquistas individuais ou coletivas. Além disso, de
acordo com esse autor, não podemos entender literalmente as fontes históricas em
que os contemporâneos afirmavam estar rompendo totalmente com o passado
recente e se voltando ao passado clássico, pois
[...] na prática emprestaram de ambas as tradições e não seguiram
nenhuma das duas inteiramente. Como acontece com freqüência, o
novo era acrescentado ao velho em vez de substituí-lo. Os deuses e
deusas clássicos não expulsaram os santos medievais da arte
5
Ver: MÜLLER-BOCHAT, Eberhard. Entre a Idade Média e a Renascença, 1970, p. 117-125. Este
autor faz uma breve, mas interessante, discussão sobre a prática de dividir a História em períodos.
18
italiana, mas coexistiram e interagiram com eles. (BURKE, 1999, p.
28).
Burke reforça, com sua interpretação, o fato de que a História não pode ser
entendida como um conjunto de blocos estanques, como se os sujeitos históricos
pudessem, a partir de uma determinada data, abandonar absolutamente tudo o que
conhecem para seguir outro caminho.
O historiador Francisco J. C. Falcon, ao abordar a temática da cultura
humanista renascentista nos tempos modernos, apresenta uma interpretação
próxima à de Burke, e tece o seguinte comentário a respeito da questão: “Nem
ruptura brusca e total, nem persistência pura e simples da Idade Média. Uma nova
época, moderna sim, mas em termos. Um novo começo, apesar de tudo, apesar das
hipotecas do passado. Eis o Renascimento!” (RODRIGUES; FALCON, 2000).
Esse posicionamento a respeito da importância de reconhecer as
contribuições da Idade Média à Renascença, aparece nas várias publicações do
importante historiador das idéias Paul Oskar Kristeller. A dedicação ao estudo da
época renascentista faz desse autor uma leitura essencial para quem se debruça
sobre esse tema ou situa seu objeto de pesquisa em tal período. A obra intitulada El
Pensamiento Renacentista y Sus Fuentes (Renaissance Thought and its Sources),
cuja primeira impressão, em inglês, data de 1979, é uma compilação de ensaios e
conferências, publicados ou o, elaborados pelo historiador entre 1944 e 1975.
Vejamos a interessante definição de Renascimento que ela apresenta.
Por Renascimento, Kristeller (1993) compreende o período da história da
Europa Ocidental que abarca os anos de 1300 ou 1350 a 1600. O desenvolvimento
dos estudos sobre a Idade Média desmitificou o rótulo de “idade das trevas”,
mostrando que a cultura dessa época foi bastante rica, e pôs em xeque o conceito
de Renascença. Essa defesa do Medievo é indiscutível, tanto quanto a idéia de que
houve um período de efervescência cultural entre os séculos XIV e XVI, mais
evidentemente. Assim sendo, Kristeller (1993) encontra uma forma de aceitar o
termo Renascimento sem menosprezar as conquistas e as contribuições medievais
ele o define, de modo geral, como um importante período de três séculos, e
propõe que seja estudado observando-se as permanências e transformações em
relação ao momento histórico antecedente. Essa simples definição, que será aqui
adotada, é satisfatória porque não fere a diversidade dessa realidade tão ampla que
19
é a renascentista, e porque evita idéias pré-concebidas em relação às características
dos períodos anterior e posterior. Definida a nossa posição sobre como lidar com o
conceito de Renascimento, passemos agora à análise de seu campo intelectual.
2.2. Humanismo Renascentista
Caracterizar o período renascentista sem tratar, concomitantemente, do
Humanismo é algo difícil de fazer e, tamm, sem sentido, pois um e outro estiveram
intimamente interligados. Explicitaremos, antes de qualquer coisa, o significado
original da expressão Humanismo, utilizada primeiramente por historiadores do
século XIX (DRESDEN, s/d). Ela provém do termo similar “humanista”, que foi
aplicado comumente no culo XV aos professores ou estudantes dos chamados
studia humanitatis denominação dada, a partir da primeira metade do
Quatrocentos, a um programa cultural e educativo que enfocava as disciplinas de
gramática, retórica, história, poesia e filosofia moral, estudadas com base na leitura
e interpretação de escritores da Antigüidade (KRISTELLER, 1993). Desse modo,
Humanismo é a palavra que expressa a tendência da época a valorizar as obras
clássicas e a ter seus autores como modelos para as atividades culturais. Embora
essa definição possa parecer um pouco restrita, afinal, existiram humanistas que não
eram necessariamente mestres nos studia, ela tem o mérito de nos prevenir de uma
análise anacrônica do tema.
Temos de fazer, também, uma breve consideração sobre quem foram os
primeiros humanistas. Para tratar desse assunto precisamos, primeiramente, nos
remeter à França do século XIII. Ali se desenvolveu, nas escolas das catedrais, um
novo método de se estudar a ars dictaminis disciplina que capacitava o aluno a
redigir cartas e documentos oficiais e a elaborar discursos solenes –, que consistia
não mais apenas no aprendizado de regras de composição, mas tamm no estudo
e imitação do estilo literário de poetas e oradores antigos. Na segunda metade do
século XIII, mestres italianos da ars dictaminis, os dictatores, que estudaram na
França, regressaram às Universidades italianas e divulgaram o estudo dos clássicos.
Embora no início tenha sofrido resistência, essa prática foi se difundindo atornar-
se ortodoxa, no início do século XIV. No entanto, ela logo se transformou pela
atitude intelectual de alguns juristas italianos que, ao estudar a ars dictaminis,
20
passaram a valorizar os autores antigos para além de suas contribuições estilísticas.
Desse modo, os “[...] esforços assim envidados por esses advogados do começo do
século XIV, estudando os clássicos por seu valor literário e não mais por sua mera
utilidade, fazem que seja correto considerá-los os primeiros verdadeiros
humanistas”. (SKINNER, 1996, p. 59).
Não pretendemos, nesse capítulo, estudar de modo particular o pensamento
de nenhum grande autor, seja italiano ou de qualquer outra região da Europa, mas,
apresentar uma visão geral dos ideais e atitudes que caracterizaram o Humanismo
renascentista, especialmente entre fins do século XV e meados do culo XVI,
prestando atenção apenas nas variações que ocorreram devido à época e ao local
em que o movimento se desenvolveu. Isso não quer dizer que o entendamos como
uma filosofia única e coerente, posto que sua complexidade transparece na
amplitude de interesses defendidos por seus representantes, mas, consideramos ser
possível elencar alguns valores humanistas típicos.
A animosidade contra os filósofos escolásticos, por exemplo, é um dos traços
marcantes do Humanismo. Na Itália de fins da Idade Média, concomitantemente ao
desenvolvimento dos estudos cssicos na ars dictaminis (retórica), surgiu uma outra
tradição intelectual, apoiada no currículo escolástico de estudos que ingressara nas
Universidades italianas no século XIII.
6
Essa novidade, vinda do Norte da Europa,
logo se expandiu e, assim como os estudos retóricos, no século XIV era uma
ortodoxia (SKINNER, 1996). Os humanistas atuavam nas cátedras de retórica,
gramática, poesia e, por vezes, filosofia moral; já os escolásticos, dominavam os
campos da lógica e da filosofia natural.
A questão do embate entre esses dois grupos é, assim como outros temas
ligados ao Renascimento, alvo de controvérsias. Kristeller (1993), por exemplo, foca
sua atenção na simultaneidade do desenvolvimento do Humanismo e do
escolasticismo, para rebater a idéia de que o primeiro fosse um novo movimento que
estivesse suplantando o segundo, tido como velho e obscuro. Acredita que os
humanistas, por sentirem-se ameaçados face ao avanço dos campos de estudo e
dos métodos escosticos, atacavam seus opositores por uma questão de rivalidade
entre departamentos, e que, na maior parte do tempo, eles conviviam pacificamente.
6
A filosofia escolástica encontrava-se presente nas escolas e universidades de França e Inglaterra
desde o século XII, e, a partir do século XIII, seu conteúdo foi estruturado, basicamente, sobre as
obras de Aristóteles. Ver: DÜRKHEIM, Emile. A evolução pedagógica, 1995.
21
Inclusive, afirma que a validade dos estudos escolásticos não era veementemente
negada pelos humanistas. Assim, conclui que o Humanismo e a Escolástica
coexistiram como duas tradições distintas por todo o Renascimento, e que suas
disputas eram “uma simples fase na batalha das artes e não uma luta pela
existência.” (KRISTELLER, 1993, p.147. Ver tamm p. 143).
Skinner (1996) sugere algumas correções a esse modo de interpretação.
Argumenta, por exemplo, que não se deve subestimar a importância da hostilidade
cultivada pelos humanistas contra os filósofos escolásticos, pois era, entre outros
meios, através dela que eles reafirmavam a relevância de sua tradição intelectual e
seu lugar central na cultura renascentista. Além disso, o autor o concorda com a
idéia de que os humanistas não chegavam a atacar, de fato, o campo intelectual de
seus oponentes, visto que ela
[...] subestima a crescente confiança dos humanistas quando se
lançavam à conquista dos domínios estudados pelos escolásticos,
denunciavam esses seus rivais por se aferrarem a métodos do tempo
das trevas, e assim insistiam praticando um imperialismo cultural
cada vez mais acentuado – na necessidade de que as técnicas
específicas do humanismo fossem adotadas por todo o vasto
espectro das disciplinas intelectuais. (SKINNER, 1996, p. 126).
Não pretendemos, aqui, julgar o mérito dessa ofensiva antiescolástica, mas,
comentaremos seus aspectos gerais com o objetivo de caracterizar, em parte, o
pensamento humanista e apresentar alguns de seus preceitos.
Um dos ataques humanistas mais correntes situava-se no plano
metodológico. A metodologia de ensino utilizada pelos escolásticos girava,
basicamente, em torno do exame de textos de autores antigos ou de seus
comentadores, cujos temas eram, geralmente, teológicos, jurídicos, médicos, entre
outros. Nesses textos, considerados autoridades em seus respectivos assuntos,
buscava-se, primeiramente, o significado gramatical e o estabelecimento de seu
sentido geral; depois, seguiam-se a explicação lógica de cada enunciado do texto e
uma interpretação completa ou parcial deste. Esse processo gerava uma discussão
que fazia surgir uma questão a ser debatida. A contenda entre os alunos – chamada
de disputa (disputatio) era “administrada” pelo mestre e a ele cabia a conclusão
(CAMBI, 1999; QUEIROZ, 1999).
22
De acordo com os humanistas, esse modo de interpretação dos autores
antigos era anacrônico, visto que os escolásticos, usualmente, não levavam em
consideração o contexto histórico em que os textos haviam sido produzidos,
buscando neles soluções para problemas contemporâneos. Esse seria o caso,
segundo a acusação do humanista Lorenzo Valla (1406/7-1457), da interpretação
dos textos jurídicos da Antigüidade (SKINNER, 1996). Ele mesmo descobriu, através
de crítica filológica,
7
a falsidade do documento chamado Constitutum Constantini
(Decreto de Constantino), que durante a Idade Média servira de base jurídica para o
poder civil do Papa (ARNAUT DE TOLEDO, 2004a).
Outra crítica sempre presente entre os humanistas é a de que o método
escolástico levava seus seguidores a preocupações filosóficas inúteis, a um monte
de discussões abstratas que não propiciavam nenhum benefício real à sociedade.
Mesmo quando se voltavam para problemas de ordem prática, demonstravam o
saber apresentá-los de maneira eloqüente e persuasiva, devido ao uso bárbaro da
língua latina (SKINNER, 1996). Tais argumentos denotam, pelo menos, dois ideais
humanistas essenciais: uma filosofia de aplicação prática na vida social que trate
de enriquecer as perspectivas humanas e a importância do uso elegante e correto
do latim em todas as atividades intelectuais. O primeiro está relacionado com as
transformações gerais do período renascentista, que levou o homem e suas
necessidades ao centro das discussões; o segundo, com a tradição retórica, da qual
os humanistas eram herdeiros, e, tamm, com o seu zelo excessivo em relação a
tudo que dizia respeito ao Mundo Antigo. Ambos mostram que, apesar da atuação
bastante significativa no campo literário, os humanistas também valorizaram o
conhecimento empírico.
Todavia, não devemos pensar que através dessas críticas o Humanismo
derrotou seu “inimigo”, pois a tradição do escolasticismo aristotélico vigorou por todo
o Renascimento. Até mesmo porque, embora criticassem a sabedoria medieval e
tentassem substituí-la pelos studia humanitatis, os humanistas não dominavam
todos os campos de estudo. Os studia excluíam, por exemplo, as matemáticas, a
astronomia, a teologia, a medicina, a lógica e a filosofia natural que, inclusive, foi
dominada pelo pensamento aristotélico até, pelo menos, o culo XVII –, entre
7
A crítica filológica é um estudo de textos, especialmente literários, que visa a estabelecer, entre
outras coisas, sua autenticidade, suas relações com a civilização e com o autor aos quais pertencem,
bem como a origem e o significado das palavras que os compõem.
23
outras disciplinas. apontamos o fato de que os humanistas estavam imbuídos de
uma nova idéia, classicista, de cultura, e desejavam afirmar seu campo de trabalho
através da crítica aos demais campos e, até mesmo, da imposição de suas normas,
mas devemos considerar que o Humanismo não representava todo o saber do
período (KRISTELLLER, 1993).
No entanto, de modo algum tal constatação tira o brilho que esse movimento
teve no Renascimento e a importância social e intelectual de seus representantes. A
quantidade e a qualidade das obras escritas pelos humanistas (cartas, poesias,
discursos, manuais de instrução aos governantes, tratados, etc.), bem como seus
ideais educativos e culturais renovados, trouxeram-lhes prestígio e elevaram o status
de seu campo de estudos, especialmente da retórica. Logo começaram a exercer
função essencial na educação secundária e, embora não predominantemente, nas
Universidades. Além disso, muitos desempenharam funções públicas de destaque,
seguindo carreiras na Igreja ou no Estado como secretários públicos ou particulares,
ministros, conselheiros, tutores, entre outras. Existiram, é claro, exceções; não
podemos dizer que todos os humanistas atingiram uma condição social elevada,
nem mesmo na Itália, onde gozaram de maior consideração (BURKE, 1999). Mas é
certo que do Trezentos, quando surgiram os primeiros humanistas, até o século XVI,
no ápice do Renascimento, eles foram adquirindo cada vez mais influência nas
camadas superiores da sociedade, especialmente por conta de suas muitas
contribuições ao desenvolvimento do saber.
Uma delas, talvez a mais reconhecida, é a ampliação do conhecimento das
obras cssicas. Como sabemos, a valorização do Mundo Antigo foi um dos traços
característicos e fundadores do Renascimento; os humanistas, como agentes desse
processo de renovação cultural, continuaram os estudos dos autores latinos
cultivados pelos seus antecessores, os dictatores medievais, porém intentaram
ultrapassá-los, voltando-se ao estudo do grego e de seus autores clássicos. Como o
conhecimento ocidental em relação à língua grega era insuficiente, e o latim
permaneceu sendo a língua culta oficial, o mérito dos humanistas consistiu em
traduzir a ela boa parte dos clássicos gregos. A atuação desses intelectuais
possibilitou, assim, o uso correto do latim, de acordo com as normas clássicas, bem
como a renovação de doutrinas filosóficas menos conhecidas no Ocidente. Segundo
Kristeller (1993, p. 336),
24
[...] graças aos humanistas temos no Renascimento uma
reverificação de sistemas antigos tais como o estoicismo, o
epicurismo e o ceticismo. Algumas das melhores contribuições dos
humanistas à filosofia consistiram na tradução ou retradução das
fontes da filosofia grega, assim como em reconhecer e popularizar as
idéias e as doutrinas filosóficas gregas que não estavam
relacionadas com o aristotelismo ou o neoplatonismo, únicas, estas
últimas, conhecidas dos filósofos medievais. Ao proporcionar
alternativas novas ao pensamento filosófico e científico, os
humanistas criaram uma espécie de fermentação intelectual.
Todavia, não podemos nos esquecer que a ampliação do contato com fontes
clássicas, tanto gregas, quanto latinas, não dependeu apenas da curiosidade e da
sede de conhecimento dos humanistas, mas tamm da possibilidade de se divulgar
esses novos saberes de modo mais rápido e eficiente. A invenção do sistema de
impressão com tipos móveis metálicos (imprensa), na primeira metade do século XV,
realizada por Johannes Gutenberg (1397-1468), revolucionou o processo de
produção de livros, que até então eram manuscritos, e possibilitou a difusão não
apenas dos clássicos, mas também das obras dos principais humanistas, que
chegavam a ter grandes tiragens.
Ainda da perspectiva das contribuições dos humanistas à cultura
renascentista, e totalmente interligada com a onda de renovação do conhecimento
da literatura antiga, temos de nos reportar à elevação da Bíblia e dos escritos dos
Padres da Igreja à categoria de “clássicos”. Segundo os humanistas, tais fontes da
cristã deveriam ter o mesmo status de que gozavam as obras de Cícero ou
Virgílio, ou seja, deveriam ser consideradas autoridades no assunto do qual se
ocupam, de modo que sofreriam, assim como as outras obras antigas, uma análise
filológica e histórica. Os humanistas não concordavam com a teologia escolástica
(aplicação do método da argumentação lógica a temas teológicos) e propunham
uma espécie de “filologia sagrada”. Os resultados desse novo enfoque à religião, ao
menos os mais significativos, foram o surgimento de novas versões das Escrituras,
8
a tradução ao latim de grande parte da patrística grega a qual o Ocidente tinha
escasso acesso antes do século XV – e um novo olhar sobre os escritos, conhecidos
desde a Idade Média, dos Padres da Igreja latina (KRISTELLER, 1993).
8
Um dos mais famosos exemplos de novas versões para as Escrituras é a Bíblia Poliglota, terminada
em 1522, na Universidade de Alca de Henares, na Espanha. Essa edição, encomendada pelo
poderoso Cardeal Francisco Jiménez de Cisneros (1436-1517), possuía três versões: latim, grego e
hebraico. Sobre o assunto ver: NIETO SANJUAN, José C. El Renacimento y la otra España, 1997,
p. 83-8.
25
Essa abordagem renascentista da teologia fez com que surgisse, entre os
historiadores, um debate acerca da irreligiosidade dos humanistas ou, melhor
dizendo, da ligação entre Humanismo e paganismo, especialmente entre os
italianos. Burckhardt (1991), em seu célebre estudo, afirma que o resultado imediato
da paixão dos humanistas pelos autores da Antigüidade Clássica foi a liberdade de
reflexão em oposição à subserviência medieval à Igreja. No culo XV, com a maior
difusão dos clássicos, os humanistas ainda teriam tentado reconciliar o cristianismo
com o espírito da Antigüidade, não alcançando muito sucesso. Todavia, embora
adeptos de um Humanismo pagão, eles raramente se mostravam indiferentes à
Igreja, fosse por prudência ou por resquícios da fé sob a qual foram educados.
Kristeller (1993) não concorda com a identificação entre Renascimento e/ou
Humanismo e paganismo, e apresenta uma interpretação mais plausível sobre as
relações desses intelectuais com algo ainda o presente em seu cotidiano: a
religião cristã. O Renascimento foi, sim, um período em que existiu certa indiferença
religiosa; em que algumas pessoas aderiram aos dogmas da Igreja apenas para
manter as aparências, por comodidade ou prudência, e em que muitos foram
acusados de desobediência à moral cristã. Todavia, esses comportamentos não são,
segundo o autor, distintivos do período renascentista, posto que também se
encontram em momentos anteriores e posteriores a tal época. Se podemos dizer
que o Renascimento foi um período pagão, pelo fato de os temas seculares terem se
tornado mais relevantes, por outro lado podemos dizer que foi cristão, pois, embora
reinterpretados, os dogmas do cristianismo não foram efetivamente atacados. Isso
sem falar que muitas das tradições religiosas medievais permaneceram até a
Reforma Protestante, no século XVI, e mais além.
Outro traço característico do Humanismo renascentista, além dessa
renovação do conhecimento a respeito da literatura antiga, pagã e cristã, é a crença
no valor do homem e das humanidades. Houve, nessa época, uma ênfase na
capacidade humana de criar, de transformar, de aprender; uma preocupação com o
lugar do homem no universo; uma tendência ao individualismo, consolidada na
expressão de medos, angústias, esperanças, paixões e outros sentimentos e
experiências. Totalmente mergulhado nesse contexto está o discurso da “dignidade
do homem, difundido nos séculos XV e XVI, especialmente na Itália (DRESDEN,
s/d.). A miséria humana”, temos de recordar, tamm foi tema corrente no
Renascimento, e autores como o alemão Martinho Lutero e o francês Michel de
26
Montaigne (1533-1592), entre outros, insistiram nele. Todavia, a iia de glorificação
do homem e de suas capacidades, principalmente cognitivas, foi tão veementemente
defendida que merece ser mencionada.
Como nos mostra Kristeller (1993), ela não era exatamente nova no período
renascentista. Na Antigüidade tardia estava difundida a noção de que o homem é
um microcosmos; Platão e Aristóteles deram um lugar central em sua filosofia à
alma humana; os primeiros filósofos estóicos “povoaram o universo com deuses e
homens. Na Bíblia, mais especificamente no Gênesis, é explícita a superioridade
humana sobre todas as coisas criadas – afinal o homem foi feito à imagem e
semelhança de Deus e o pensamento cristão primitivo reconheceu a dignidade do
homem, implicitamente, ao pregar a sua salvação e a preocupação divina com o
destino de sua alma. Entretanto, essa dignidade estava manchada pelo pecado
original e pela Queda de Adão e Eva, e assim permaneceu durante a Idade Média.
No Renascimento, contudo, e isso é emblemático, embora a maioria dos
humanistas não negasse os dogmas cristãos, o que ocorreu foi um louvor à Razão
humana e à sua capacidade de realização. A alma teria, sim, afinidade com Deus,
mas esta seria demonstrável especialmente através dos dons do homem para as
artes e para o governo; através, tamm, da possibilidade de escolher as formas
intelectual e moralmente mais elevadas de vida (KRISTELLER, 1993). Os próprios
studia humanitatis (o termo já sugere a valorização do homem) visavam, justamente,
a cultivar a dignidade humana através de um currículo que, conforme se acreditava,
era adequado para um pleno desenvolvimento intelectual.
Até aqui, buscamos caracterizar o Humanismo renascentista. Para fazê-lo
mais satisfatoriamente, torna-se importante ressaltar que todos os valores, atitudes e
ideais humanistas acima apresentados valorização e ampliação do conhecimento
clássico, renovação de algumas correntes filosóficas desconhecidas, restauração do
latim clássico, novo tratamento à literatura patrística latina e grega, defesa do valor
intrínseco do homem, exaltação da razão humana não fizeram parte da cultura
italiana, como tamm se desenvolveram pela Europa renascentista. Vejamos,
então, como isso se deu.
27
2.3. Difusão da Erudição Humanista
O Humanismo, como vimos, desenvolveu-se inicialmente na Itália, em
princípios do culo XIV. Todavia, não se limitou a seu local de origem; por volta da
segunda metade do século XV, podemos perceber uma difusão dos estudos e
interesses humanistas pela Europa transalpina, mais significativamente na França,
na Espanha, em Portugal, na Inglaterra, na Alemanha e nos Países Baixos. Não
trataremos, aqui, especificamente de cada país; vamos nos concentrar em suas
semelhanças e nos referir a esse movimento, de modo geral, como Renascença do
Norte e/ou Humanismo do Norte.
O primeiro fator explicativo dessa difusão é a invenção da imprensa pelo
alemão Gutenberg. Como vimos, a produção de livros em larga escala, mais rápida
e mais econômica, facilitou o acesso aos clássicos e ao pensamento humanista em
geral, não apenas entre os italianos, mas entre todos os interessados no novo saber.
Entre 1450 e 1500, aproximadamente, foram instaladas oficinas de impressão na
Alemanha, na Itália, na França, na Inglaterra, nos Países Baixos e em outras regiões
da Europa.
9
No século XVI, o número dessas oficinas havia dobrado ou triplicado e,
junto com ele, o amor pela nova cultura.
Além do papel crucial da imprensa na divulgação do ideário humanista,
devemos citar o importante intercâmbio cultural que ocorreu entre a Itália e o Norte
da Europa, especialmente nos séculos XV e XVI. Assim como muitos estrangeiros
visitavam a Itália e entravam em contato com a cultura clássica cultivada pelos
humanistas, e por ela se interessavam, muitos eruditos italianos iam para a França,
a Inglaterra, os Países Baixos ou outras prósperas regiões, em busca de empregos
como professores ou como secretários de Estado ou da Igreja, ou mesmo de
patrocínio particular, principalmente no caso dos artistas. As Universidades tiveram
um lugar central nesse contato. Os mestres humanistas que iam para o Norte,
tratavam logo de implantar um currículo voltado para os studia humanitatis,
substituindo a leitura dos escolásticos, no tocante ao conteúdo e ao método, pela
dos clássicos; os estudantes, assim que podiam, iam para a Itália para aprofundar
seus conhecimentos e, quando voltavam, estavam prontos para se juntar aos seus
antigos mestres na defesa da nova cultura. Desse modo, o gosto pelo saber antigo
9
Sobre a invenção e a difusão da imprensa, ver: JOHNSON, Paul. O Renascimento, 2001, p. 27-30.
28
foi se difundindo, embora seja necessário mencionar que na Europa setentrional a
filosofia escostica manteve seu predomínio durante o Renascimento (GREEN,
1984).
Falemos, agora, das características do Humanismo do Norte. Em primeiro
lugar, devemos ressaltar que a valorização dos clássicos desenvolveu-se mais
lentamente, devido à forte influência que os valores cristãos medievais ainda
exerciam. Assim, a imprensa, por exemplo, inicialmente divulgou mais textos
religiosos do que obras dos autores antigos e, mesmo no auge do período
renascentista, os clássicos cristãos atraíam os humanistas do Norte mais do que os
clássicos seculares, muito valorizados na Itália. Por tal particularidade, esses
intelectuais foram considerados adeptos de um tipo diferente de erudição: o
Humanismo Cristão. Na realidade, esse termo permite duas definições, uma geral e
outra específica. De acordo com a primeira, poderíamos dizer que todos os
intelectuais que aceitavam os dogmas cristãos ou eram membros de alguma Igreja
cristã, mesmo sem se debruçar sobre temas religiosos, eram humanistas cristãos.
Conforme a segunda, mais restrita, aplicaríamos o termo àqueles eruditos com
formação humanista que se dedicaram, parcial ou totalmente, a estudos teológicos
(KRISTELLER, 1993). Um bom exemplo, nesse último caso, seria o renomado
humanista holandês Erasmo de Roterdã (1466/69-1536).
Erasmo é freqüentemente citado como uma das figuras mais representativas
do Renascimento no Norte, especialmente nos Países Baixos, seu local de origem.
10
Tal reconhecimento se justifica por conta de seu vasto interesse pelos clássicos
gregos e latinos, dos quais editou vários; de sua preocupação com a elegância e o
estilo de seus escritos; mas, principalmente, por causa de sua dedicação ao estudo
dos antigos textos cristãos, que tinha por objetivo descobrir o sentido original das
Escrituras e voltar a uma mais pura e próxima do cristianismo primitivo. Aliás,
apesar da formação humanista, a tinha, no pensamento de Erasmo, precedência
sobre a razão. Lembremos que ele estabeleceu o texto canônico do Novo
Testamento e editou grande parte das obras dos Padres da Igreja, em grego e latim.
Além disso, “seus escritos contribuíram para disseminar as discussões a respeito da
10
Sobre a importante figura de Erasmo no Renascimento, ver: DRESDEN, Sem. Erasmo. In: O
Humanismo no Renascimento, s/d., p. 110-143.
29
e da religião” (ARNAUT DE TOLEDO, 2004b, p. 98), como no caso de Manual do
cristão militante” (Enchiridion militis christiani), publicado primeiramente em 1503, e
de “Uma Inquisição sobre a Fé” (Inquisito de fide), de 1524 – entre muitos outros.
Essa “tonalidade religiosa” característica do Humanismo do Norte não
desmerece, de modo algum, as contribuições intelectuais de seus representantes,
que inclusive seguiram seus predecessores italianos de perto em algumas questões.
Interessaram-se, particularmente, pela crítica filológica e histórica dos textos
clássicos, especialmente aqueles relacionados ao direito romano e às Escrituras. O
estudo sobre os primeiros, levou à curiosidade sobre os costumes e as tradições
legais dos países, e teve como conseqüência uma valorização da história de cada
um deles. a análise dos textos bíblicos, visava a reconstruir historicamente o
momento em que cada doutrina havia surgido. O inglês John Colet (1467-1519) foi
pioneiro desses estudos bíblicos no Norte, mas Erasmo foi, sem dúvida, o humanista
mais ilustre a se dedicar a eles (SKINNER, 1996).
Além do interesse pelas cnicas filológicas, originado pela influência do
Humanismo italiano, os eruditos do Norte dedicaram-se a alguns gêneros literários já
tradicionais na Itália, como os tratados educacionais e os “espelhos dos príncipes”
sobre os quais falaremos mais tarde e compartilharam alguns ideais, como, por
exemplo, o do aconselhamento dos governantes pelos homens sábios. Essa
importante questão foi muito discutida e gerava um debate entre os humanistas:
seria mais digno dedicar-se ao otium (vida de estudos e contemplação) ou ao
negotium (participação nos negócios públicos)? Idealmente, a resposta era a de que
um homem sábio jamais deveria deixar uma vida dedicada à cultura para se
envolver nas questões públicas, sempre permeadas de hipocrisia; mas, na prática, a
maioria acabava discursando a favor da participação ativa nos negócios de governo.
O principal argumento utilizado na justificativa era o de que o conhecimento deveria
sempre servir para a utilidade do maior número de pessoas, e o homem culto que
ajuda, com seus conselhos, a construir um governo ordenado e justo, es
contribuindo para o bem público. Desse modo, temos que não apenas entre os
italianos, mas também entre os humanistas do Norte, a carreira de secretário de
Estado era bastante procurada, pois esses homens consideravam-se capacitados,
pelo seu conhecimento das Humanidades, a servir de conselheiros políticos
(SKINNER, 1996).
30
Todavia, os humanistas da Europa setentrional não apenas deram
continuidade a determinadas discussões dos italianos, como também criticaram
algumas posições defendidas por eles. Uma das críticas diz respeito à questão da
guerra. Segundo os eruditos do Norte, ela possuía um papel de destaque na vida
italiana, aparecendo como meio legítimo de fazer política, como complemento do
ofício do estadista; este posicionamento era condenado, pois a guerra, até mesmo a
chamada “guerra justa”, era considerada fratricida, portanto má. Não nos
esqueçamos de que o Norte caracterizou-se por aquele tipo de Humanismo
denominado “cristão”, e pairava, entre grande parte de seus primeiros
representantes, essa preocupação com os valores teológicos de Bem e Mal.
Erasmo, por exemplo, considerava a guerra, especialmente entre os povos cristãos,
como um mal a ser combatido, e sobre isso ele vociferou: “Todas as desculpas à
parte, a ambição, a ira e o desejo de roubar são a base das guerras cristãs.”
(ERASMUS, 2004, p. 176).
Ainda no âmbito da política, e relacionada a essa particularidade do
Humanismo do Norte, detectamos a crítica quanto à aceitação, por parte dos
italianos do Quatrocentos, da possibilidade de que o governante pudesse abandonar
as ações virtuosas, fosse por interesses próprios ou da comunidade, e tomar
atitudes repreensíveis do ponto de vista moral. Isso porque tal atitude ia de encontro
aos conselhos que tempos os humanistas cristãos vinham dirigindo aos seus reis
e príncipes. Todavia, no século XVI, com a concretização do Absolutismo
monárquico na Europa, essa prática tornou-se cada vez mais aceita, e mesmo entre
os humanistas do Norte a defesa dos ideais de justiça e moralidade tornou-se
irrealista, dando lugar, pouco a pouco, à noção de que a virtude é o necessária
quanto a prudência (SKINNER, 1996). A conhecida obra O Príncipe, de Nicolau
Maquiavel (1469-1527) representou essa nova moralidade política, ao defender a
idéia de que os fins, quando dignos, justificam os meios utilizados para alcançá-los.
A preocupação com a moral e as virtudes não apenas voltada para os
governantes, mas para a sociedade em geral foi bastante típica do movimento
humanista, principalmente no Norte, mas não apenas lá. Ela estava intimamente
ligada à discussão sobre o ideal de formão do homem e, conseqüentemente, à
valorização da razão humana. Podemos, inclusive, dizer que tal discussão é um dos
traços característicos não apenas do Humanismo, mas do período renascentista
31
como um todo, pois levou a importantes apontamentos sobre educação, os quais
marcaram o início da Modernidade. Passemos agora a esse assunto.
2.4. Educação na Europa Renascentista
Antes de tratarmos da educação no Renascimento analisando alguns de
seus aspectos organizacionais e dos ideais que a permeavam vamos especificar
com que significado, exatamente, esse termo será aqui utilizado. Sabemos que o
conceito de educação pressupõe a prática educativa intencional, direta ou indireta,
sobre as pessoas, com o objetivo de formá-las; e que o conceito de pedagogia se
refere à reflexão científica acerca de tal prática (LUZURIAGA, 1984). Nesse trabalho,
estamos entendendo educação como o conjunto de saberes que se cultivava
naquele momento histórico e de que modo era transmitido (onde, quando, com
que métodos) bem como as reflexões teóricas em torno da formação humana e
cultural do indivíduo. Por isso, utilizaremos os termos “educação” e “pedagogia”
como sinônimos, ambos com o amplo significado explicitado acima. Iremos
considerar aqui, tamm, ainda que menos detidamente, algumas das instituições
sociais educativas. Assim, caberá falarmos tanto das disciplinas universitárias,
quanto das corporações de ofício ou da formação ideal para os príncipes; mas o que
nos interessa é, sobretudo, o ideal renascentista de formação do homem.
Como vimos, a civilização renascentista foi marcada por grandes
transformações políticas, sociais, econômicas e culturais, e foi, ela mesma, produto
dessas transformações. Em seu âmbito sócio-cultural, para o qual nos voltamos,
vimos que novas idéias sobre o homem, a sua razão e a sua natureza foram
surgindo e se ampliando cada vez mais intensamente. A partir dessa outra visão que
se desenvolveu a respeito do mundo e da Humanidade, alguns indivíduos
começaram a refletir sobre a formação ideal para esse homem novo, que deveria
estar consciente do seu valor, de seu potencial criativo, e da necessidade de se
livrar do “obscurantismo intelectual” que, segundo eles, reinara até então. Coube aos
eruditos do Renascimento – em sua maioria humanistas – a tarefa de elaborar esses
ideais educativos e apontar caminhos para sua realização. Para compreendermos
melhor as transformações ocorridas, e também as continuidades, voltemo-nos um
32
pouco para o período final da Idade Média, quando algumas mudanças que
marcaram a Modernidade já apontavam no horizonte.
O feixe de saberes que dominou a erudição de fins da Antigüidade até o
século XIV, aproximadamente, estava representado pelas chamadas “sete artes
liberais”, divididas em trivium gramática, lógica e retórica e quadrivium
aritmética, geometria, música e astronomia (MANACORDA, 2002).
11
Essas
disciplinas haviam constituído, entre os gregos antigos, um plano de estudos para a
educação primária e secundária, que era considerado como um curso introdutório
para o estudo da filosofia. No Ocidente latino, onde ainda não existia o ensino de
filosofia como matéria independente, elas consubstanciaram o plano de estudos
central, sendo as disciplinas de gramática e de retórica as que mais se destacaram.
Após a cristianização do Ocidente, e por toda a Idade Média, o ensino ficou
em grande parte nas mãos do clero, e as escolas mais importantes dependiam dos
monastérios; nelas, a instrução continuou a se estruturar sobre as sete artes, e os
estudos retóricos e, especialmente, os gramáticos permaneceram ocupando lugar de
destaque (DÜRKHEIM, 1995; BECHARA, 1999). Nesses estudos, estava incluída a
leitura e a interpretação de alguns clássicos latinos, geralmente poetas, mas
também, e principalmente, das Escrituras e da teologia cristã (KRISTELLER, 1993).
Os clássicos gregos passaram a ser traduzidos e utilizados mais efetivamente a
partir do século XIII e, dentre os autores traduzidos, Aristóteles foi a presença mais
marcante.
Também no século XIII, e não por mera coincidência, foi que se
desenvolveram as Universidades; na realidade, as primeiras surgiram no início do
século XII, a partir do desenvolvimento de escolas urbanas laicas e da evolução das
escolas das catedrais,
12
e foram crescendo constantemente nos séculos seguintes.
13
Ainda no Duzentos, a tradição das sete artes liberais foi deixando de ser o centro
dos planos de estudo, e as matérias que as compunham passaram a constituir uma
11
Para uma discussão acerca de cada uma das sete artes liberais, ver: FRIAÇA, Amâncio, et al.
Trivium e Quadrivium: as artes liberais na Idade Média, 1999.
12
As escolas das catedrais surgiram, aproximadamente, a partir do culo VI, com o objetivo de
formar o clero secular, mas foi a partir do século IX que elas se desenvolveram efetivamente. Eram
assim chamadas porque se instalavam próximas às Igrejas em que os bispos tinham suas cátedras.
Cf. CAMBI, Franco. História da Pedagogia, 1999, p. 159.
13
Sobre as origens das Universidades e sua organização na Idade Média, ver: DÜRKHEIM, E. A
evolução pedagógica, 1995, p. 67-155. O autor faz uma interessante análise acerca de como as
escolas das catedrais, através da associação de seus professores e estudantes, formaram
33
espécie de curso preparatório que, ao conferir ao estudante o título de mestre,
tornava-o apto para a carreira de professor ou para seguir os estudos universitários
avançados, formados pelas faculdades de Teologia, Direito e Medicina.
(KRISTELLER, 1993; QUEIROZ, 1999). Por essa época, a Escolástica estava em
franco desenvolvimento, e seus temas girando sempre em torno do embate entre
e razão – bem como seu método de ensino, centrado na dialética, estabeleceram-
se nas Universidades, e nelas se concretizaram de tal forma que, mesmo após duras
críticas, permaneceram em vigor por todo o Renascimento.
Todavia, a Universidade foi tamm, como vimos, o espaço em que os
primeiros humanistas surgiram e puderam levar adiante seus estudos, inclusive
contrários aos dos escolásticos em vários aspectos. A partir do desenvolvimento
dessa instituição, que se transformou no mais importante centro educativo do
Ocidente, os humanistas adquiriram reconhecimento e prestígio, nos âmbitos
intelectual e social, a ponto de ambicionar a transformação do sistema educacional,
especialmente ao longo dos séculos XV e XVI.
A primeira mudança que podemos notar, já desde o aparecimento dos
primeiros humanistas, é uma revalorização dos estudos clássicos literários
gramaticais e retóricos que se encontravam em declínio desde o desenvolvimento
das Universidades e do escolasticismo, quando a dialética ocupou posição de
destaque. Podemos perceber essa revalorização ao analisarmos o programa
humanista de educação e cultura, que se concretizou a partir do século XV e ficou
conhecido pelo nome de studia humanitatis. Como vimos, esse programa era
composto pelas disciplinas de gramática, retórica, poesia, história e filosofia moral;
quando o comparamos ao programa anterior das sete artes liberais, vemos que a
gramática e a retórica perderam seus laços de dependência com a lógica (dialética)
e com as disciplinas matemáticas do quadrivium, assumindo posição central; a
poesia e a história, antes subordinadas aos estudos retóricos e gramáticos, foram
reconhecidas e valorizadas como atividades independentes, e a filosofia moral
uma das três partes da filosofia antiga foi integrada ao campo de estudo dos
humanistas, que também se voltaram ao tema da formação moral do homem
(KRISTELLER, 1993). Além disso, uma das mudanças mais importantes foi que, em
corporações que, posteriormente, viriam a se organizar como Universidades (Studium generale).
Essa instituição, aliás, consubstancia-se na maior herança intelectual deixada pela Idade Média.
34
um nível muito mais elevado do que antes, o estudo de todas essas disciplinas teve
como base os autores cssicos.
Esse programa cultural deixa transparecer o ideal humanista de uma cultura
literária diferente daquela que vigorava entre os gramáticos medievais,
especialmente pela dimensão clássica. Os humanistas voltaram-se para os textos da
Antigüidade com afinco e, em seu esforço de recuperação dos ideais clássicos,
possibilitaram um conhecimento dos auctores latinos muito mais significativo que o
obtido pelos seus antecessores. Além disso, através de suas traduções ao latim,
contribuíram imensamente para o conhecimento dos textos gregos antigos. Esse
contato profundo com os clássicos, através de uma abordagem filológica, permitiu
que os humanistas superassem o uso medieval, puramente estilístico, dessas
fontes, pois tal abordagem
[...] significava restauração lingüística dos textos, sua interpretação
não alegórica (como tinha feito a Idade Média), mas histórica, capaz
de contextualizá-los e de colher seu significado mais genuíno, ligado
ao seu tempo histórico. [...] Certamente que não se trata apenas de
restaurar textos, mas também de fazê-los falar aos contemporâneos,
de dialogar diretamente com eles, para nutrir-se de seu espírito
cultural e para encontrar modelos (políticos, literários, filosóficos) a
serem revividos na contemporaneidade. (CAMBI, 1999, p. 239).
Assim, temos que a recuperação da literatura clássica, através dos studia, significou
concomitantemente uma recuperação do mundo clássico como modelo para a
formação intelectual e moral do homem renascentista.
Encontramos as principais reflexões acerca desse ideal de formação na
extensa literatura pedagógica produzida no Renascimento, tanto pelos pioneiros
italianos quanto pelos outros humanistas europeus, que desenvolveram
basicamente os mesmos temas de seus predecessores, especialmente a partir do
início do século XVI. Francesco Petrarca (1304-1374), chamado comumente de pai
do humanismo”, é um exemplo da busca renascentista por modelos formativos na
Antigüidade. Voltando-se para os tratados de Cícero, redescobriu o real objetivo da
educação segundo o orador romano: formar o vir virtutis, o homem pleno de virtudes,
que consegue, por meio dos estudos de filosofia e retórica, alcançar a sabedoria e a
eloqüência. Esse ideal ciceroniano de formão humana pairou, em maior ou menor
grau, por toda a Europa renascentista até, pelo menos, fins do século XVI, levando a
35
uma preocupação com o tipo de ensino a ser implementado para a sua realização
(SKINNER, 1996).
De modo geral, os humanistas propuseram uma educação em que os
aspectos literário e moral fossem centrais e estivessem em equilíbrio. Quanto ao
primeiro, podemos dizer que se caracterizou pela leitura e interpretação dos autores
clássicos, principalmente dos oradores e dos poetas, com os objetivos de alcançar
um conhecimento satisfatório das línguas consideradas cultas o latim e o grego –,
dominar a arte de bem falar, assim como obter modelos louváveis de estilo literário,
pois não apenas o conhecimento das coisas era tido como necessário, mas tamm
a capacidade de expressá-lo através de uma escrita elegante e culta. Como
podemos perceber, a questão das línguas clássicas era de suma importância para
os humanistas; eles insistiam em seu aprendizado e em seu uso constante, o
apenas através da gramática, como tamm por meio da conversação. Devemos
recordar que essa insistência estava relacionada com a crítica que eles faziam às
Universidades e, especificamente, aos escolásticos pelo ensino exclusivamente
formal do latim, realizado sem o contato direto com os textos clássicos e sem uma
análise filológica destes (CAMBI, 1999).
Tal análise, cujas características comentamos acima, se fazia indispensável
não apenas para a utilização literária dos textos da Antigüidade, mas tamm para a
extração de exemplos morais, que constituíam a outra face da educação humanista.
Isso se dava, principalmente, através dos estudos históricos, visto que por meio
deles se poderia obter conhecimento dos grandes feitos da Humanidade. Os
humanistas estavam desenvolvendo uma nova visão da história, mais condizente
com o contexto renascentista de intensas transformações; por isso, abandonaram a
tese agostiniana que afirma que a história é formada pela sucessão dos propósitos
divinos para a humanidade, e se voltaram para a visão clássica aristotélica, segundo
a qual a história é formada por ciclos recorrentes (SKINNER, 1996). Nesse caso,
através do estudo do passado, os homens poderiam refletir sobre as causas dos
acontecimentos positivos e negativos, agindo para difundi-las ou evitá-las,
dependendo da situação. Além disso, poderiam retirar exemplos de virtudes e de
vícios, para imitarem os primeiros e fugirem dos segundos. Essa crença no valor
prático dos estudos históricos foi defendida pela maioria dos humanistas ao longo do
período renascentista, especialmente pelos conselheiros políticos do Quinhentos.
36
Embora fossem centrais, essas propostas para a utilização pedagógica dos
clássicos não eram as únicas; de acordo com vários humanistas, os autores antigos
deveriam ser relacionados, sempre que possível, não apenas com a gramática, com
a retórica e com a filosofia moral, mas com todas as demais disciplinas que
compunham o saber da época medicina, jurisprudência, filosofia natural, entre
outras – bem como com as questões da vida cotidiana. Todavia, para poder alcançar
esse vel de excelência intelectual, que caracterizava o ideal educativo dos
humanistas, faziam-se necessárias algumas condições. Primeiramente, era
indispensável, por parte do estudante, um profundo desejo de conhecimento, o que
possibilitaria o seu afinco e o seu empenho nos estudos. Tal desejo poderia,
segundo os humanistas, ser facilmente estimulado, pois eles acreditavam que o
homem possuía naturalmente a aptidão para o aprendizado, afinal era a Razão que
o distinguia dos demais seres vivos. Assim sendo, outra condição ideal era a de que
desde a mais tenra idade as crianças fossem iniciadas no processo educativo, para
que, aproveitando-se de sua ânsia natural pelo saber, os mestres pudessem
desenvolver nelas o amor pelas virtudes e pelo conhecimento sadio, evitando que
maus hábitos se instalassem definitivamente (CAMBI, 1999).
Aliás, desde fins da Idade Média, a criança vinha adquirindo um papel
central na família, e mesmo na sociedade, pois estava deixando de ser vista como
um pequeno adulto e começando a ser entendida em suas especificidades
biológicas e psicológicas. Tal mudança de perspectiva também se refletiu nas
discussões sobre o processo educativo e na organização escolar. Percebemos esse
fato quando nos voltamos para outras recomendações feitas pelos educadores
humanistas, como, por exemplo, aquelas que diziam respeito à atenção e ao
cuidado que pais e mestres deviam ter para com a formação das crianças e também
dos jovens. Caberia aos primeiros a preocupação com a educação dos filhos e o
empenho em oportunizá-la; aos segundos, pertenceria a tarefa importantíssima de
conduzir seus discípulos a uma boa formação. Para cumpri-la, esses mestres
deveriam possuir amor e respeito pela infância e pela juventude, sabendo perceber
suas características e necessidades específicas, am, é claro, de ter uma sólida
formação moral e um vasto conhecimento dos clássicos (CAMBI, 1999).
14
14
Sobre o papel da criança nas relações famíliares e sociais à época renascentista, ver: ARIÈS,
Philippe. História social da criança e da família, 1978; ELIAS, Norbert. O processo civilizador:
uma história dos costumes, 1994; BOTO, Carlota. O desencantamento da criança: entre a
37
De modo geral, essas e outras orientações estavam presentes não apenas
nos tratados pedagógicos, mas também na prática dos preceptores humanistas.
Alguns deles chegaram inclusive a abrir escolas foi o caso de dois dos mais
renomados mestres do Renascimento, os italianos Guarino Guarini (1374-1460) e
Vittorino de Feltre (1378-1446), cujas práticas, inspiradas pelos studia humanitatis,
serviram de ponto de partida para algumas posteriores discussões sobre educação.
Embora não tenham deixado documentos escritos específicos sobre suas
concepções de formação ideal do homem, elas foram estudadas através de cartas e
vários testemunhos da época.
No tocante à escola de Guarini, predominavam os estudos de gramática,
principalmente latina, de retórica e de história, com base na leitura de clássicos
como Virgílio, Cícero, Platão e Aristóteles, para citar os fundamentais. O método
mais apropriado para o estudo dos autores antigos, segundo esse mestre
humanista, seria a leitura cuidadosa e aprimorada de seus escritos, seguida por
exercícios constantes, que levariam a uma memorização do conteúdo e à
capacidade de expressá-lo de maneira culta e elegante. Além do cultivo da mente,
através do exercício intelectual, tamm aparece como essencial o cultivo do corpo,
ou seja, o cuidado com a sua saúde e o seu vigor; para essa educação corporal
recomendava-se a prática de atividades físicas em geral: ginástica, caça, natação,
jogos com bola, danças, passeios, etc. (CAMBI, 1999).
Essa preocupação com a formação de um homem desenvolvido tanto em
suas capacidades intelectuais quanto físicas, aparece igualmente no ideal
pedagógico de Vittorino de Feltre. Esse educador, cuja escola exerceu muita
influência na época, devido à fama e ao respeito por ele adquiridos, enfatizava uma
formação literária, com base nos estudos rericos e gramaticais ligados à leitura dos
clássicos, embora, ainda que de modo apenas complementar, ensinasse tamm as
disciplinas matemáticas do quadrivium. Além desse detalhe, o que caracterizava sua
pedagogia era uma preocupação com a formação moral que, todavia, seria realizada
através do ensinamento das virtudes cristãs e das práticas religiosas isso mostra
que muitos humanistas, embora idealizassem o Mundo Antigo, não renegaram o
cristianismo (CAMBI, 1999).
Renascença e o Século das Luzes. In: FREITAS, Marcos C. de; KULHMAN JR., Moysés. Os
intelectuais na história da infância, 2002. p. 11-60.
38
Exceto por algumas particularidades, pertencentes ao pensamento de um ou
outro humanista, podemos identificar um conjunto de idéias comuns sobre a
formação do homem nas teorias e nas práticas do Humanismo. Vimos, até agora, a
preocupação central com uma educação literária e moral, baseada no estudo
filológico dos clássicos gregos e latinos, inclusive dos clássicos cristãos, e cujo início
deve-se dar na mais tenra infância, incentivado pelos pais e por mestres virtuosos;
vimos também que o cultivo da mente deveria estar em harmonia com a manutenção
de um corpo saudável e vigoroso. Mas, para completar o ideário humanista relativo à
educação, temos de citar pelo menos mais três conselhos dirigidos aos
companheiros de profissão e aos discípulos. Aos primeiros, recomendava-se avaliar
os estudantes individualmente, em suas especificidades e em seus interesses, visto
que, em cada caso, o processo de aprendizagem seria diferente. Aconselhava-se,
também, a não utilização de castigos físicos, especialmente em relação às crianças,
pois tal método era considerado ineficiente mais eficaz seria repreendê-las
verbalmente e/ou privá-las de coisas por elas apreciadas. Aos discípulos, a
exortação dizia respeito à necessidade de uma vida ordenada, cujo tempo deveria
ser racionalmente distribuído, para que se realizassem satisfatoriamente todas as
tarefas (CAMBI, 1999). Esse modelo educativo foi aceito em muitas escolas e
colégios fundados em toda a Europa, principalmente a partir do século XVI.
Contudo, duas observações a respeito dos humanistas e de seu ideal de
formação precisam ser feitas. Em primeiro lugar, embora tenham elaborado uma
crítica contundente à filosofia escolástica em geral, bem como aos temas e aos
métodos de ensino propagados por seus seguidores, visando a impor as normas e
os modelos do Humanismo a todas as esferas do saber, a realidade é que não
conseguiram substituir efetivamente seus opositores, especialmente no âmbito das
Universidades, visto que os escolásticos continuaram a dominar por todo o
período renascentista, principalmente nos campos da lógica/dialética e da filosofia
natural (KRISTELLER, 1993). Porém, esse dado o desmerece a função de
vanguarda intelectual desempenhada pelos humanistas, nem os esforços envidados
por eles para transformar o sistema educativo da época, até porque, mesmo não
desbancando totalmente os escolásticos, eles conseguiram exercer influência, em
maior ou menor grau, sobre o campo de erudição a sua volta.
Em segundo lugar, temos de ressaltar que o programa cultural e educativo
elaborado pelos humanistas era limitado, no sentido de que não era dirigido para o
39
conjunto da sociedade, mas apenas para uma parte, constituída pela aristocracia e
pelas mais poderosas famílias burguesas. O povo, de modo geral, era analfabeto;
quando muito, possuía os rudimentos da leitura e da escrita. Sua educação se dava
de maneira informal, não letrada, e se concretizava no conjunto de experiências
adquiridas no cotidiano no contato familiar, nos ritos festivos, religiosos ou não,
nos ciclos pictóricos, mas, principalmente, no trabalho no campo ou nas cidades. As
corporações de ofício, por exemplo, desenvolvidas concomitantemente ao
renascimento comercial e urbano que ocorrera no século XI, foram fundamentais
para a educação das classes populares no Renascimento. Segundo Cambi (1999, p.
175), as corporações
[...] desempenham um papel fundamental na sociedade e nos
próprios processos educativos, tornando-se o lugar da formação
profissional. Esta se articula segundo princípios técnicos e ético-
sociais que são assimilados não pelo aprendizado, mas também
pela participação na vida da corporação, o estudo de seus estatutos,
o respeito às suas regras, que dizem respeito não apenas aos
‘segredos’ do ofício, como também aos comportamentos individuais e
sociais a assumir.
15
Assim, os artesãos que se uniam nessas associações garantiam sua sobrevivência
econômica ao mesmo tempo em que aprendiam códigos de conduta profissional e
social; estes, por serem distintos daqueles ensinados pela Igreja, tornavam-se
indispensáveis ao desenvolvimento de uma mentalidade laica e racionalista, embora
não, é claro, no sentido teórico-filosófico da cultura erudita.
16
No extremo oposto à educação informal, na qual o povo se instruía – baseada
no senso comum e, especialmente, nas relações cotidianas de trabalho
encontramos a educação dirigida àqueles que estavam no topo da pirâmide social:
os reis e príncipes. Os tratados pedagógicos elaborados especificamente para esses
governantes reavivaram um gênero que se difundiu significativamente entre os
humanistas, especialmente em fins do século XV e no século XVI os chamados
15
Sobre a formação de pintores e escultores no âmbito das corporações de ofício e sua oposição à
formação acadêmica dos humanistas, ver: BURKE, Peter. O Renascimento Italiano,1999, p. 65-87.
16
Para uma discussão interessante sobre a formação propiciada pelas corporações de ofício, ver:
MANACORDA, Mário. A aprendizagem nas corporações. In: História da Educação, 2002, p. 161-
167.
40
“espelhos dos príncipes”.
17
Tais obras, cuja tradição remonta ao culo IX (DIAS,
1965), eram assim designadas porque os conselhos políticos e morais,
apresentados de modo didático aos príncipes, serviriam como um espelho no qual
eles deveriam ver sua imagem refletida.
Os humanistas acreditavam na existência de uma ligação estreita entre o bom
governo e a educação do governante. Por sua formação nos studia humanitatis, e
especialmente pelo conhecimento da filosofia antiga e da história, que eles julgavam
ser a base da sabedoria prática, tais eruditos consideravam-se capacitados a
aconselhar seus dirigentes. Muitos se dedicaram a essa função alguns atuando
como secretários, embaixadores ou ministros de seus Estados, outros elaborando os
livros de aconselhamento político, moral e educacional endereçados aos reis e
príncipes (SKINNER, 1996).
18
De modo geral, podemos dizer que essas obras continham uma idéia central:
a de que um bom governo pode ser realizado quando seus chefes são estimulados a
adquirir e a praticar o maior número possível de virtudes. Dessa maneira, temos que
o ideal do vir virtutis ocupava posição central tamm no modelo de formação dos
príncipes. Basicamente, o governante deveria seguir as virtudes por dois motivos:
primeiramente, porque elas lhe auxiliariam a alcançar o objetivo maior de um
governo, que seria a conservação do bem público; em segundo lugar, porque ao
praticar as virtudes e ser um bom governante, o príncipe conseguiria atingir os ideais
clássicos de glória, honra e fama, exaltados pelos humanistas, além de servir de
exemplo moral a seus ditos. Entre as virtudes a serem cultivadas estavam desde
as cardeais”, definidas pelos moralistas da Antigüidade como sabedoria, justiça,
temperança e fortaleza, até as principescas”, consolidadas na liberalidade
(generosidade), na clemência e na fidelidade à palavra dada. Havia, ainda, a virtude
da devoção, mais particularmente realçada pelos “humanistas cristãos” do Norte do
que pelos italianos (SKINNER, 1996).
Todavia, se a virtude, que se caracterizava pela soma de todas as qualidades
supracitadas, era indispensável aos príncipes, fazia-se imprescindível o meio através
17
Algumas obras desse gênero (espelhos de príncipes) são comentadas em: BUESCU, Ana Isabel. A
educação de príncipes e niños generosos. In: Revista de História das Idéias, 1998, p. 339-346. A
autora enfatiza o tratado do espanhol Francisco de Monçon, dedicado ao príncipe português D. João.
18
Uma discussão interessante acerca do aconselhamento de reis e príncipes pelos sábios eruditos é
feita por: BLACK, Antony. El pensamiento político en Europa, 1250-1450, 1996, p. 242-251.
41
do qual eles iriam obtê-la a educação. Segundo os humanistas, especialmente os
do Norte, uma formação estruturada sobre os studia humanitatis, principalmente
sobre a retórica e a filosofia moral, seria o caminho mais eficaz para desenvolver nos
governantes o gosto pelos sentimentos e atos virtuosos. Assim, não mais deveria
haver aquela separação, existente na Idade Média, entre a formação dos fidalgos,
voltada para o ofício das armas, e a formação dos membros do clero, direcionada
para a cultura letrada. O governante deveria, como representante máximo do vir
virtutis perante seus pares e seus súditos, unir em si os conhecimentos de um bom
cavaleiro, mas também, e principalmente, hábitos virtuosos, adquiridos através dos
estudos humanísticos.
A defesa da utilização de um currículo baseado nas disciplinas literárias e na
filosofia moral como meio mais adequado à formação do homem renascentista,
entretanto, não estava restrita aos “espelhos de príncipes”, mas tamm apareceu
nos tratados educacionais dirigidos, de forma mais ampla, àqueles que poderiam vir
a ocupar cargos relevantes nos assuntos de governo e da Igreja: a nobreza e a alta
burguesia. O humanista espanhol Juan Luis Vives (1492-1540) é considerado um
dos maiores representantes desse gênero literário, o qual, segundo Skinner,
estabeleceu “um padrão de instrução e um ideal de conduta que continuou
amplamente admirado por três séculos, pelo menos” (1996, p. 232). Podemos dizer,
então, que o estudo do pensamento pedagógico de Vives nos possibilitará
compreender mais concretamente os ideais educativos humanistas de inícios da
Modernidade, o que se consubstancia em nosso objetivo central.
3. JUAN LUIS VIVES
Antes de tratarmos especificamente do pensamento vivista acerca da educação, e
de suas relações com o Humanismo e com o contexto renascentista, faz-se
necessário apresentar a vida, bem como a imensa e variada obra, desse erudito o
importante e, ao mesmo tempo, pouco conhecido entre nós. Realizaremos, aqui, não
uma extensa descrição de todos os fatos que preencheram sua existência, mas, sim,
uma biografia intelectual”, ou seja, privilegiaremos o enfoque às relações de Vives
com as instituições e o círculo de erudição da época. Buscaremos, também, fazer
um apanhado geral de todas as suas obras, enfatizando as mais importantes. O
objetivo é demonstrar a significativa participação desse humanista no contexto
cultural da Europa renascentista, o que justifica a sua escolha como fonte de
pesquisa para esse trabalho.
3.1. Vida
1492. Esse foi o ano do nascimento de Juan Luis Vives, aos seis dias do mês
de março, no reino de Vancia, sob a Coroa de Aragão. Esse foi, também, o ano
emblemático da formação do Estado Nacional espanhol,
19
através da unificação
política, territorial e religiosa que vinha se desenvolvendo na península ibérica sob o
ferrenho comando dos Reis Católicos, Fernando de Aragão (1452-1516) e Isabel de
Castela (1451-1504), desde seu casamento em 1469. Os monarcas venceram ora
com autoritarismo, ora com diplomacia a resistência dos senhores feudais,
acostumados com certos poderes e liberdades, bem como a autonomia das cidades,
impondo a todos a autoridade suprema da uno das duas Coroas (ALVÁREZ;
PECHARROMÁN, 2000). Todavia, o ano de 1492 foi especialmente significativo no
processo de unificação religiosa, pois presenciou a Reconquista cristã de Granada,
ao sul da península, onde desde o século XIII encontrava-se o último reduto
muçulmano do território ibérico. Os mouros, como eram chamados pelos espanhóis,
19
Para uma análise política, econômica e sócio-cultural da Espanha quinhentista, ver: PÉREZ,
Joseph. La España del siglo XVI, 2002. O autor apresenta uma rica seleção de textos da época.
43
se viram entre dois caminhos: aceitar o batismo na cristã ou partir o mais
rapidamente possível de Castela. Ainda no ano da descoberta do Novo Mundo por
Cristóvão Colombo o que veio a fortalecer ainda mais os monarcas espanhóis
que o patrocinaram um outro fato relevante para a desejada unidade religiosa
ocorreu: a mesma opção dada aos mouros foi apresentada aos judeus, e aqueles
que não aceitaram o batismo, convertendo-se em cristãos-novos, foram expulsos.
Aqueles que ficaram, mouros ou judeus, passaram a ser vigiados constantemente
por uma instituição que havia sido estabelecida em Castela no ano de 1478, pelo
Papa Sixto IV, e que estava sob domínio quase total dos Reis Católicos: a temível
Inquisição (GREEN, 1984).
Ter em mente esse contexto espanhol de fins do século XV e, mais
especificamente, os marcantes fatos ocorridos no ano de 1492, faz-se necessário
para compreendermos alguns rumos tomados pelo ilustre humanista, bem como
alguns de seus pensamentos. Utilizaremos aqui, como base para as afirmações
sobre os principais momentos de sua vida e sobre suas obras e concepções, o
ensaio biobibliográfico de Lorenzo Riber, intitulado Juan Luis Vives, valenciano, que
se encontra no início de uma das edições mais conhecidas das Obras Completas do
autor.
20
Juan Luis Vives nasceu em uma família de linhagem nobre, mas de poucos
recursos. Descendente de judeus conversos, veio ao mundo justamente naquele
ano fatídico para todos os não-cristãos da Espanha. Contudo, seus familiares não
sentiram de imediato as tribulações pelas quais os judeus passavam naquela época,
pois a conversão dos Vives datava de fins do século XIV, tendo iniciado com seu
avô paterno. Sentindo-se talvez mais seguros por conta disso, seus pais, Luis Vives
e Blanca March, permaneceram na Espanha, e foi em Valência que o pequeno Juan
Luis recebeu sua primeira formação. Após a aprendizagem das primeiras letras, em
uma escola que não se sabe ao certo qual foi, mas a cujo mestre o autor nomeia
simbolicamente de Filopono (amigo do trabalho, em grego),
21
Vives ingressou na
Universidade de Valência (Estudio General, como se falava em língua catalã), aos
quinze anos. Ali recebeu instrução na gramática latina, através dos mestres
20
RIBER, Lorenzo. Juan Luis Vives, valenciano. In: VIVES, Juan Luis. Obras Completas. Tomo I.
Madrid: M. Aguilar, 1947, p. 13-255.
21
A referência a Filopono aparece no diálogo “Presentación del niño a la escuela”, que compõe a
obra pedagógica “Ejercicios de lengua latina”. In: VIVES, Obras Completas, tomo II, 1948, p. 885.
44
Jerônimo de Amiguet e Daniel Siró, e na grega, ensinada por Bernardo Navarro. Em
1507, a obra Arte de la gramática latina, do renomado humanista espanhol Élio
Antônio de Nebrija, foi introduzida na Universidade valenciana, causando
insatisfação nos mestres mais tradicionais devido às críticas feitas ao latim
barbarizado dos escolásticos. Amiguet foi um dos que receberam a obra nebrijense
com aversão, instigando seu discípulo a escrever contra ela. Todavia, esse primeiro
escrito de Vives não é conhecido, e sabe-se que, mais tarde, ele se retratou ao
elogiar Nebrija em algumas de suas obras.
Apesar de Valência consistir, àquela época, em um bastião do escolasticismo,
aparentemente Vives não se deixou influenciar e seguiu o caminho dos métodos
humanistas. Segundo Riber (1947, p. 25),
É admirável que metido como estava no atoleiro escolástico, e na flor
de sua primeira obra, escrevera em puríssimo latim seus opúsculos
precoces, isentos de solecismos e de barbaridades, demasiado
freqüentes naquela época em toda Europa por culpa dos professores
vândalos.
Esses opúsculos precoces aos quais se refere Riber, são as primeiras obras do
autor: “Triunfo de Cristo” (Christi Iesu triumphus) e “Ovación de la Virgen Madre de
Dios” (Virginis Dei parentis ovatio), ambas escritas em 1514, em Paris, e ali
publicadas provavelmente no mesmo ano.
Vives havia saído da Espanha e rumado para Paris em 1509, aos dezessete
anos. Para essa partida surgem, basicamente, duas justificativas às quais recorrem
aqueles que sobre ele escrevem. A primeira diz respeito a uma peste que se
espalhou por Vancia em 1508, trazendo perigo à saúde e transtornos à vida
escolar. Essa epidemia, inclusive, levara sua mãe à morte. Receando ter seus
estudos prejudicados, o jovem teria viajado à França para concluir sua formação. A
segunda explicação encontrada seria aquela que se refere à situação inóspita dos
judeus conversos na Espanha. A viagem de Vives seria, nesse caso, uma fuga.
Como vimos, a perseguição aos judeus e o controle dos cristãos-novos por parte da
Inquisição se enrijeceram a partir da unificação espanhola sob os Reis Católicos.
Para termos uma idéia das condições em que viviam, basta dizer que nessa época
proliferaram certos “estatutos de pureza de sangue”, que proibiam a admissão, em
corporações laicas ou religiosas, de todos aqueles que tivessem origem judaica.
Além dessas interdições, justificadas moralmente pelos inquisidores, os conversos
45
eram vítimas de difamações e descrédito, ainda que sua nova fé tivesse sido
abraçada com sinceridade (DEFOURNEAUX, s/d). Todavia, a realidade é que não
podemos dizer com certeza qual foi o motivo da partida de Vives, pois não existem
dados suficientes para que se faça uma afirmação; o que existem são hipóteses e
probabilidades.
A estada de Juan Luis Vives em Paris foi de três anos. Nesse período,
ingressou na Universidade de Sorbonne, dedicando-se a estudos teológicos e
filosóficos e seguindo os cursos dos Colégios de Beauvais e Montaigu. Ao que
parece, o humanista não se entusiasmou muito com o círculo intelectual de Paris,
dominado pelos dialéticos escolásticos. Além disso, por volta de fins de 1511, as
relações entre o rei da França, Luis XII, e o rei da Espanha, Fernando I de Aragão,
se deterioraram e a situação dos espanhóis que viviam em Paris tornou-se
incômoda. Provavelmente por esses dois motivos é que, em 1512, partiu para os
Países Baixos, mais especificamente para a cidade de Bruges, na região de
Flandres. Essa cidade seria, a partir de então, seu segundo lar, visto que nunca
retornou à Espanha.
Em Bruges, cidade comercial e de intensa circulação de pessoas, Vives
encontrou muitas famílias de origem ibérica. Essa situação se tornou ainda mais
comum alguns anos depois, quando Carlos V
22
cujos avós maternos eram os Reis
Católicos herdou os Países Baixos de sua avó paterna, Maria de Borgonha. Essa
região passou, então, a ser dominada pelo imperador espanhol, o que talvez tenha
feito Vives se sentir mais perto de sua pátria. Quanto à sua origem judaica, não teve
ali problemas mais sérios, pois, embora vivendo sob domínio espanhol, a
perseguição inquisitorial aparentemente se fez sentir naquela região muito após a
data da sua morte (NIETO SANJUAN,1997).
Instalou-se Vives em casa de uma família valenciana, cujos chefes eram
Bernardo Valldaura e sua esposa Clara de Servent. Os Valldaura possuíam três
filhos, e foram esses os primeiros discípulos de nosso professor de Humanidades.
Margarida, uma das filhas, viria a ser, mais tarde, sua esposa. Nessa época,
conquistou importantes amizades, como a do jurisconsulto Francisco Cranevelt e a
do famoso médico Juan Martínez Población. Embora bem instalado e perfeitamente
22
Para uma biografia dessa importante figura política do século XVI, tanto para a Espanha quanto
para a Europa, ver: BRAUDEL, Fernand. Carlos V y Felipe II, 2000, p. 33-94.
46
adaptado em Bruges, Vives fez, ao longo de toda a vida, inúmeras e longas viagens,
das quais sempre retornava à cidade querida que o acolhera. Uma dessas viagens
deu-se em 1514, quando passou a Páscoa em Paris e elaborou seus primeiros
opúsculos, os quais já citamos.
Não se conhece os caminhos que Juan Luis Vives trilhou nos três anos que
se seguiram. Em 1517, devido à fama de sua erudição, foi escolhido como preceptor
(educador) de Guilherme de Croy bispo de Cambray aos dezoito anos e arcebispo
de Toledo aos dezenove. Esse jovem precoce era sobrinho do Senhor de Chièvres,
futuro ministro de Carlos V. Com seu discípulo, Vives fez algumas viagens por
províncias da atual Bélgica. Por essa época, quando de folga de seus deveres como
preceptor, escreveu algumas outras obras, tais como as “Meditaciones sobre los
siete salmos penitenciales” (Meditationes in septem psalmos paenitentiales), a
“Fábula del hombre” (Fabula de homine), a “Alma del anciano” (Anima senis), a
“Introducción a las ‘geórgicas’ de Publio Virgilio” (In Georgica Vergilii), o “Horóscopo
de Jesucristo” (Genethliacon Iesu-Christi), entre outras.
Em 1519, Vives ainda se encontrava em Flandres, na cidade de Louvain,
que àquela época era habitada por vasta população estudantil vinda de todas as
partes da Europa. Com a eleição de Guilherme de Croy para arcebispo de Toledo, o
humanista começou a lecionar na Universidade de Louvain, graças a seu talento e
suas relações pessoais. Seu curso consistia na explicação da História Natural, de
Plínio, e das Geórgicas, de Virgílio. Esse foi um período especialmente marcante na
vida de Juan Luis Vives, pois foi quando conquistou a admiração e a amizade de
importantes eruditos, como Erasmo de Roterdã, com o qual travou imeros
diálogos por meio de epístolas, e Adriano de Utrecht, que mais tarde viria a ser Papa
sob o nome de Adriano VI. Após a publicação da obra “Contra los seudodialécticos”
(Adversus pseudodialécticos), de 1520, Vives conquistou o apreço do mais
importante humanista inglês, sir Thomas More (1478-1535), que o conhecera por
intermédio de Erasmo, amigo de ambos. Como veremos, More ajudaria o humanista,
algum tempo depois, a adentrar no âmbito intelectual da corte inglesa. Foi nessa
época tamm que conheceu a Guilherme Budé (1468-1540), um dos mais
renomados humanistas franceses, e passou a manter com ele correspondência.
Segundo Riber (1947, p. 46),
47
Erasmo, Budé, Luis Vives na Europa de seu tempo, encarnavam o
triunvirato do saber; pontífices os três, sem inveja nem discórdia,
daqueles serenos templos da doutrina antiga que Lucrecio celebrou.
A Budé atribuía-se o engenho; a cópia fluente do dizer atribuía-se a
Erasmo; a Vives atribuía-se o são e robusto juízo.
O círculo de amizades entre os humanistas era de grande utilidade, coletiva e
individual, pois auxiliava tanto no tfego das idéias gerais, quanto na difusão da
fama deste ou daquele intelectual. Para Vives, especificamente, as relações
travadas em Louvain tiveram papel essencial: colocaram-no em maior contato com
as iias inovadoras do Humanismo, fazendo-o livrar-se de vez da formação
escolástica inicial.
Foi Erasmo quem, com o objetivo de agilizar a produção de edições críticas
das obras dos Santos Padres, convidou Vives a entrar em uma de suas mais difíceis
empreitadas: elaborar um comentário acerca da obra De Civitate Dei (Cidade de
Deus), de Santo Agostinho. Tão logo o trabalho começou, no início de 1521, o
humanista perdeu seu mecenas e protetor, Guilherme de Croy, morto em um
acidente eqüestre. Tal fato, aliado a uma súbita enfermidade, desestruturou a
estabilidade na qual se encontrava Vives, que teve o seu já espinhoso trabalho
retardado. Por essa época, se viu obrigado a retornar a Bruges, para se recuperar, e
ali foi acolhido em casa do espanhol Pedro de Aguirre. Retornou alguns meses
depois a Louvain, onde terminou quebrantado os seus Comentários” (1522), os
quais dedicou ao rei Henrique VIII, da Inglaterra.
O período que se seguiu foi, para Juan Luis Vives, marcado por dificuldades
financeiras devido a alguns contratempos na publicação da obra que acabara de
terminar. Viajou a Bruges novamente, pois na ocasião Carlos V passaria por lá, e era
sua intenção conseguir alguma pensão por parte do Imperador, o que não
aconteceu. Para piorar sua condição, por conta de um mensageiro mal intencionado,
o humanista deixou de receber uma oferta, feita pelo Duque de Alba, que lhe
propunha ser preceptor de seus netos residentes na Espanha. Vives ficou muito
abalado com a perda da oportunidade, que sua situação financeira não era das
melhores. Por isso mesmo é que nos parece estranha a sua recusa, ainda em 1522,
em ocupar a cátedra que pertencia a Élio Antônio de Nebrija na Universidade de
Alcalá de Henares, cátedra esta que vagara por ocasião da morte desse precursor
do Humanismo espanhol. O motivo mais provável seria o medo da perseguição aos
48
descendentes de judeus, que parecia ainda mais acirrada. Todavia, mais uma vez,
nenhuma afirmação concreta pode ser feita.
Em 1523, Vives escreveu uma de suas mais importantes obras, de conteúdo
moral e pedagógico, intitulada “Formación de la mujer cristiana” (De institutione
feminae christianae), a qual dedicou à rainha da Inglaterra, Catarina de Aragão, e
que seria publicada somente em 1524, em Louvain. Essa dedicatória, somada
àquela que fizera ao rei inglês quando da publicação de seus Comentários à obra de
Santo Agostinho, bem como a amizade com o ilustre humanista e político Thomas
More, influenciaram no êxito profissional alcançado por Vives na Corte inglesa.
chegando, foi muito bem recebido por indivíduos intelectual e politicamente
destacados, tais como o cardeal e chanceler Wolsey, ex-aluno de Erasmo, e John
Colet, renomado representante do “Humanismo Cristão”.
Foi professor do curso de Literatura Latina no Colégio de Corpus Christi, na
Universidade de Oxford, onde explicava as obras de clássicos como Cícero,
Quintiliano, Virgílio, Horácio, entre outros. Além disso, foi nomeado leitor da rainha
Catarina e auxiliar na educação de sua filha, a princesa Maria, cujos preceptores
foram Thomas Linacre e John Fetherstone. Para a princesa, então com sete anos,
escreveu em 1523 um plano de estudos, em forma de epístola, intitulado “Pedagogia
pueril” (De ratione studii puerilis), e dedicou-lhe, em 1524, uma obra de instrução
moral chamada “Escolta del alma(Satellitium animi). A partir da circulação dessas
obras de caráter moral e pedagógico, dedicadas à rainha e à princesa da Inglaterra,
foi que Vives conquistou a fama de educador, consolidada alguns anos mais tarde
com a monumental obra “De las disciplinas” (De disciplinis), de 1531.
De 1523 a 1528, o humanista viveu na Inglaterra, ausentando-se às vezes
para se dirigir a Bruges. Em uma dessas viagens, em maio de 1524, casou-se com a
ex-aluna Margarida Valldaura (1504-1552). Tal casamento, que não lhe rendeu
filhos, caracterizou-se por uma profunda amizade entre os cônjuges, e, em momento
algum interferiu em seu exercício literário. Prova disso é que, em setembro de 1524,
apenas quatro meses após o matrimônio, Vives terminou uma de suas mais famosas
obras de caráter moral “Introducción a la sabiduría” (Introductio ad sapientiam) e
pouco depois regressou à Inglaterra.
Foi nesse mesmo ano que se desenrolou um dos episódios mais obscuros da
vida de Juan Luis Vives: a condenação à fogueira, pela Inquisição valenciana, de
seu pai e de outros membros de sua família, sob a acusação de reincidir no
49
judaísmo. Tal acontecimento bem como a queima dos ossos de sua falecida mãe,
sob a mesma acusação, em 1528 – não foi mencionado em nenhum de seus
escritos. O motivo desse silêncio não é conhecido com certeza, mas a interpretação
histórica mais aceita é a de que esse foi o caminho encontrado por Vives para
resolver a contradição de professar a religião que condenara sua família, e para
viver em paz consigo e com a Inquisição (NIETO SANJUAN, 1997). Até porque, a
partir de 1530, por ordem do Conselho Supremo do Santo Ofício, foram arquivados
os nomes de todos aqueles que compareceram frente a seus tribunais, para que
ficassem marcados ao longo das gerações (DEFOURNEAUX, s/d). Tal medida,
provavelmente contribuiu para o silêncio de Vives e fez de seu exílio definitivo, mais
que uma opção, uma medida cautelosa.
Todavia, esse não foi o único infortúnio da vida do renomado humanista. Sua
próspera e produtiva estadia na Inglaterra foi perturbada a partir do momento em
que veio à tona a questão do divórcio de Henrique VIII e Catarina de Aragão, em
1527. Com base em uma passagem bíblica que afirma ser pecado tomar por esposa
a mulher do próprio irmão
23
, o rei inglês apresentou à Igreja de Roma o pedido de
anulação de seu casamento. Isso porque Catarina havia se casado, em 1501, com o
irmão de Henrique, o príncipe Arthur, que falecera cinco meses depois, deixando-a
viúva. A interpretação que o rei inglês fez para essa passagem foi contraditória, e
tinha segundas intenções. Era de seu interesse separar-se de Catarina para casar-
se com sua amante Ana Bolena, a qual, diferentemente de sua esposa, poderia vir a
lhe dar filhos homens para herdar a coroa. Além disso, caso Roma não aceitasse o
seu pedido, não seria nada desvantajoso para Henrique VIII romper com a Igreja,
afinal isso lhe possibilitaria construir um Estado absolutista, sem interferência papal,
e ainda livrar-se dos impostos cobrados pela Igreja e apropriar-se de bens
eclesiásticos. Roma negou o pedido de anulação e o rei inglês declarou sua
insubordinação ao dar continuidade ao processo do divórcio. Não nos esqueçamos
que a Reforma Protestante, nesse momento, estava bem adiantada na Europa, o
que encorajou Henrique VIII a criar uma nova Igreja, a Anglicana, da qual se
nomeou chefe supremo, em 1534.
Nesse turbulento contexto, Juan Luis Vives, que até o fim da vida declarou-se
fiel à religião católica, ficou ao lado de sua compatriota, a rainha Catarina, que
23
“Não descobrirás a nudez da mulher de teu irmão; é a própria nudez de teu irmão.” (Lv 18, 16).
50
professava veementemente a mesma fé. Tal atitude, e o fato de ser o conselheiro da
rainha na questão do divórcio, lhe custaram sua cátedra em Oxford, da qual o
cardeal Wolsey lhe despediu, e amesmo sua liberdade por seis semanas, tempo
no qual permaneceu em prisão domiciliar. Aconselhado por Catarina e ameaçado
por Henrique VIII, Vives achou melhor voltar a Bruges, o que fez em 1528. Ao ser
chamado pela rainha, em 1529, para elaborar a defesa a ser apresentada perante o
tribunal que julgaria o caso, Vives se negou, alegando que o julgamento seria uma
armadilha, e que o rei alcançaria seus objetivos, independentemente de qualquer
defesa. Com essa postura, o humanista, que já havia perdido a pensão que o rei lhe
dispensava anualmente, perdeu tamm o pagamento que provinha de Catarina.
Foi de Bruges que Vives acompanhou a oficialização do divórcio, em 1533,
bem como a condenação à morte, em 1535, do ex-ministro e humanista cristão
Thomas More, seu grande amigo, que ousou se opor ao rei inglês. Esse último fato,
com certeza, foi bastante sentido. No entanto, todas essas desventuras não
interromperam a produção literária de nosso resoluto humanista. De 1526, por
exemplo, datam importantes obras de caráter político e social, tais como De la
insolidaridad de Europa y de la guerra contra el turco” (De europae dissidis et bello
turcico), “Concordia y discordia en el linaje humano” (De concordia et discordia in
humano genere), publicado em 1529, e o “Del socorro de los pobres” (De
subventione pauperum). Temos ainda, em 1528, a publicação de “Deberes del
marido” (De officio mariti), uma espécie de complemento a já citada “Formación de la
mujer cristiana”, obra que teve muita repercussão.
Nos anos que se seguiram à sua saída da Inglaterra, em 1528, Juan Luis
Vives estabeleceu-se definitivamente em Bruges, mas fez algumas viagens, como as
de 1529, a Lille e a Paris, ocasionadas por uma peste que se espalhara por sua
cidade querida. Ao retornar, continuou escrevendo e retomou a atividade de
educador na Universidade de Louvain. As obras vivistas mais importantes desse
período são aquelas relacionadas à educação e à reforma do ensino, como, por
exemplo, a já citada “De las disciplinas”, a “De la disputación” (De disputatione),
ambas de 1531, a “Arte de hablar(De ratione dicendi), de 1532, e a “Redacción
epistolar” (De conscribendis epistolis), de 1536.
O ano de 1538 foi bastante produtivo para o ilustre humanista, mas muito
sofrido tamm. Passou-o todo em Breda, cidade holandesa, ao lado da valenciana
D. Mencía de Mendoza, marquesa de Cañete e, mais tarde, duquesa da Calábria,
51
que ficara viúva por aqueles dias. A duquesa era muito erudita e praticava
assiduamente o mecenato, o que conquistou a admiração de Vives, que foi por ela
beneficiado. Datam desse ano as importantíssimas obras “Ejercícios de lengua
latina” (Exercitatio linguae latinae), outro apanhado vital de sua pedagogia, e “Del
alma y de la vida” ou “Tratado del alma” (De anima et vita), sua mais conhecida obra
de caráter filosófico.
É admirável que, mesmo atacado pela gota (artrite) e por dores de cabeça
fortíssimas, que desde a sua mocidade o incomodavam, Vives tenha deixado tantos
escritos, e tenha se dedicado à atividade literária até o último momento da vida. Não
se sabe muito sobre seus derradeiros dias. Apenas que, nos anos de 1538 e,
principalmente, de 1539, suas doenças se agravaram e que faleceu em seis de maio
de 1540, em Bruges, a cidade que foi seu segundo lar, deixando para a posteridade
uma última obra a apologética “De la verdad de la fe cristiana” (De veritate fidei
christianae), publicada em 1543.
3.2. Obras
Juan Luis Vives é autor de cerca de sessenta obras, todas escritas em latim,
que tratam dos mais variados temas, como filologia, política, moral e educação,
entre outros. Existem duas edições em latim de suas obras reunidas: a primeira,
intitulada Opera, data de 1555 e foi editada na Basiléia (dois tomos em fólio), e a
segunda, bastante conhecida, é a Opera omnia, publicada em oito tomos por
Gregório Mayans, entre os anos de 1782-1790, em Valência.
24
Estamos utilizando
nesse trabalho, a citada tradução castelhana das Obras Completas, realizada por
Lorenzo Riber e editada por M. Aguilar (1947-1948). Essa edição, dividida em dois
tomos, apresenta a seguinte classificação das obras do humanista: devotas, de
caráter social, políticas, apologéticas, filosóficas, filológicas, morais, de educação
e/ou reforma educacional.
Sob a categoria de “devotas” encontram-se as obras “Triunfo de Cristo”,
“Ovación de la Virgem, Madre de Dios”, ambas de 1514, “La verdad embadurnada”
24
Para dados mais detalhados sobre as várias edições das obras de Juan Luis Vives, ver:
Enciclopédia Universal Europeu-americana, 1958, tomo LXIX, p. 713-720.
52
(Veritas fucata), “Descripción de lo escudo de Cristo (Clypei Christi descriptio), cujas
datas o incertas, “Meditaciones sobre los siete salmos penitenciales”, “Horóscopo
de Jesucristo”, “Del tiempo en que nació Cristo” (De tempore quo... natus est
Christus), escritas as três em 1518, “Sacro diurno del sudor de Nuestro Señor
Jesucristo” (Sacrum diurnum de sudore Domini Nostri Iesuchristi), de 1529,
“Excitaciones del alma hacia Dios” (Excitationes animi in Deum), “Comentario a la
oración dominical” (Commentarius in orationem dominicam), e “Preces y oraciones
generales” (Preces et meditationes generales), todas as três de 1535.
Dessas obras, nenhuma figura entre as mais conhecidas do autor, entretanto
elas nos remetem a um dado importante sobre ele. Dedicadas ora a ilustres figuras
da aristocracia, ora a destacados membros da Igreja, e engrandecendo sempre o
poder de Cristo, elas nos revelam Vives como um humanista cristão” conforme a
definição dada acima, ou seja, um homem de formação humanística, mas que
valorizava os clássicos cristãos tanto ou mais que os clássicos pagãos, que aceitava
os dogmas do Cristianismo, e que, ainda que não exclusivamente, dedicou-se a
escritos de caráter teológico. Dizia, em seu “Triunfo de Cristo”: “Se se julgam dignos
de ser lido e relido os livros de Tito Lívio, de Lucano, de Suetônio [...], porque
contam as guerras, os triunfos [...] dos heróis de Roma, o que não pensaremos dos
[...] triunfos de nosso Cristo, de nosso Deus [...]?”.
25
(Triunfo de Cristo, 1947, p.
260).
26
De acordo com Bernardo Monsegú (1961, p. 16-17),
[...] Vives imprime a todo seu humanismo um sentido profundamente
cristão, que não quer ver descuidado em maneira alguma pela
filosofia. A Vives lhe dava em rosto a tendência paganizante, por
excessivamente antropocêntrica, do humanismo renascentista
[italiano]. Contra ela lutou com a caneta e a ela se opôs com uma
vida profundamente cristã.
Nesse sentido, o autor estava totalmente de acordo com as comentadas
características gerais dos humanistas do Norte, mostrando-se bastante adaptado ao
ambiente em que vivia.
25
“Si se juzgan dignos de ser leídos y releídos los libros de Tito Lívio, de Lucano, de Suetônio [...],
porque cuentan las guerras, los triunfos [...] de los héroes de Roma, ¿qué no pensaremos de los [...]
triunfos de nuestro Cristo, de nuestro Dios [...]?”.
26
As obras de Juan Luis Vives serão citadas pelo título, em negrito, e não pelo sobrenome do autor,
devido ao fato de todas pertencerem a uma mesma edição: as Obras Completas, editadas pela M.
Aguilar. O título poderá ser abreviado, caso seja extenso.
53
O Humanismo cristão de Vives manifestou-se tamm em sua preocupação
com as questões sociais e políticas que afligiam a Europa naquele tempo. Isso
porque acreditava que o homem nasceu para viver em sociedade, e que seria dever
de todo cristão, especialmente os instruídos, buscar a concórdia entre os seus
semelhantes e a conseqüente paz social (Concórdia y discórdia em el linaje
humano, 1948). Sua inquietação se fez presente nos escritos que dedicou a esses
temas. Classificadas como obras de caráter social estão a Del socorro de los
pobres”, de 1526, e a “De la comunidad de los bienes” (De communione rerum), de
1535. sob o rótulo de obras políticas encontram-se, além de algumas cartas que
escreveu a importantes homens da época como o rei Henrique VIII e o Papa
Adriano VI os escritos “De la insolidaridad de Europa y de la guerra contra el
Turco”, “De la condición de los cristianos bajo el Turco” (De conditione vitae
christianorum sub Turca), ambas de 1526, e “Concordia y discordia en el linaje
humano”, de 1529.
Em geral, duas preocupações centrais caracterizam essas obras: o bem-estar
social e, principalmente, a paz entre as grandes potências cristãs da Europa. A
primeira aparece exposta de modo mais enfático em “Del socorro de los pobres”,
que se consubstanciou em um plano de organização da beneficência pública,
justamente em um contexto em que a mendicidade convertera-se em profissão. Tal
obra aparece dividida em dois livros: o primeiro justifica a necessidade da caridade,
apresentando-a como um ato humano e cristão, individual e coletivamente falando; o
segundo, mais inovador, aponta o poder público como maior responsável em
combater o pauperismo e zelar pelo bem-estar social. Além disso, o segundo livro
apresenta sugestões para a organização da beneficência, como, por exemplo, a
criação, pelos governantes, de instituições destinadas a recolher os pobres e os
enfermos, e a fazer trabalhar, segundo a sua aptidão, todo aquele que se
apresentasse física e intelectualmente capaz. Tamm sugere, como educador que
é, acolher as crianças pobres em locais em que pudessem ser alimentadas e
abrigadas e, a partir dos seis anos, enviadas a escolas públicas para aprenderem as
boas letras e os princípios cristãos. Com “Del socorro de los pobres”, Vives “pôs em
um novo plano as relações dos poderes públicos com a pública miséria, e da
caridade, virtude individual, quis fazer una virtude social e política” (RIBER, 1947, p.
222), e é especialmente por esse aspecto inovador que tal obra tornou-se uma das
mais citadas do humanista.
54
Todavia, como dissemos, foi a paz o tema de maior destaque nos escritos
políticos e sociais de Vives. Isso, talvez, porque as guerras, motivadas por
rivalidades políticas, econômicas e religiosas, fizeram incessantemente parte do
contexto em que viveu. Nesse sentido, as obras mais significativas são “De la
insolidaridad de Europa...” e Concordia y discordia...”, esta dedicada a Carlos V,
que tratam da interminável disputa entre a Espanha e a França pelo domínio de
certas regiões da Itália, bem como da necessidade de união dos cristãos contra a
ameaça turca. Na época em que Vives escrevia, os destinos do Ocidente estavam
nas mãos de três príncipes: Carlos V, Imperador espanhol, Francisco I, rei da
França, e Henrique VIII, rei da Inglaterra; foi a eles que o humanista clamou por paz
e união. Em uma situação de destruição e miséria, causada pelas guerras
endêmicas, Vives afirmou que
[...] assim como a paz, o amor, a concórdia nos mantêm em nossa
natureza e dignidade humana, assim a discórdia e a dissensão não
nos deixam ser homens, nos obrigam a degenerar da prestancia de
nossa origem e de nossa estirpe, e não tanto nos convertem em
feras como naqueles espíritos que pelo exercício que praticam
chamamos diabos. (Concordia y discordia..., 1948, p. 81).
27
Esse é o seu principal argumento em prol da paz e contra a guerra: o homem foi
feito para a concórdia, e tudo o que é digno precisa de paz para proliferar, a
guerra é coisa de animais, portanto desumana.
O que tornava os sangrentos conflitos da Europa mais inaceitáveis aos olhos
de Vives, além dessa bestialização dos homens, é que eles estavam acontecendo
sob o comando de príncipes cristãos, ou seja, entre irmãos de fé. A irmandade em
Cristo deveria ser motivo de concórdia e união entre esses governantes,
especialmente porque, naquele momento, o avanço turco sobre a Europa se tornava
realidade.
28
A unidade dos reinos cristãos pela defesa e propagação da “verdadeira
fé” e pela luta contra o infiel parecia a Vives a única forma de guerra justificável,
27
“[...] así como la paz, el amor, la concordia nos mantienen en nuestra naturaleza y
dignidad humana, así la discordia y la disensión no nos dejan ser hombres, nos obligan a
degenerar de la prestancia de nuestro origen y de nuestra estirpe, y no tanto nos convierten
en fieras como en aquellos espíritus que por el ejercicio que practican llamamos diablos.”
28
Os turcos otomanos conquistaram Constantinopla em 1453, o Egito, em 1517, e, em 1526,
invadiram a Hungria e incendiaram sua capital. No período em que Vives escreveu, então, o avanço
turco rumo à Europa Ocidental era uma possibilidade real.
55
embora ele pondere: “Não sei se isto [...] merece a bênção de Cristo; mas, de todo
modo, é um mal mais tolerável que a furiosa loucura da discórdia civil”. (De la
insolidaridad de Europa..., 1948, p. 60).
29
Mais uma vez podemos dizer, inclusive
por essa hesitante aceitação da validade da guerra justa”, que a postura de Vives
perante o tema da guerra faz dele um típico representante do chamado Humanismo
do Norte, que condenava o uso da luta armada entre nações como meio de se fazer
política. Erasmo, por exemplo, tamm reprovava a guerra entre cristãos, e, no
tocante à guerra contra os turcos, mostrava uma opinião próxima a de Vives.
Segundo Roberto Romano (2004, p. 38), “[...] no caso das campanhas contra os
turcos, Erasmo estava convencido de que os motivos alegados não eram bem
presos ao Evangelho”, pois Cristo jamais havia pregado a guerra, mas sim a paz
entre os homens. Segundo o pensamento do humanista roterdamês, o bom exemplo
e a doutrina sã seriam os meios mais cristãos de se converter os infiéis (ERASMUS,
2004),
30
e o embate físico somente seria aceito como último recurso, no caso de
invasões ou de defesa do bem comum.
Vives defendia insistentemente a paz ao mesmo tempo em que discursava a
favor da cristã ambas significavam, em seu pensamento, duas faces de uma
mesma moeda. De acordo com Bernardo Monsegú (1961, p. 272), a concórdia entre
os homens aparece no pensamento do humanista como o objetivo máximo dos
povos e, para ele,
[...] a religião cristã promove suficientemente essa paz,
combatendo os obstáculos que se opõem: egoísmos e
concupiscências, e favorecendo o que a promove: o sentimento de
nossa fraternidade cristã, a consciência do dever, a lei da caridade e
o auxílio da graça que ajuda a superar nossa natural fraqueza.
Foi na obra stuma “De la verdad de la fe cristiana”, a única classificada como
apologética, que Vives fez a mais entusiasmada defesa dessa religião,
apresentando-a não apenas como sustentáculo da convivência pacífica entre os
29
“No si esto [...] merece la bendición de Cristo; pero, de todos modos, es un mal más tolerable
que la furiosa locura de la discordia civil”.
30
A visão pacifista de Erasmo e de Vives não era predominante naquele contexto. Contemporâneo a
ambos, Lutero, por exemplo, apresentou uma visão mais belicista em relação ao conflito entre
cristãos e turcos. Segundo o reformador germânico, [...] o exército do turco é, de fato, o exército do
diabo”, e lutar para que a fé cristã não caia sob o jugo de Maomé é a razão fundamental dessa
“guerra bendita” contra os turcos. Ver: LUTERO, Martinho. Exortação à oração contra os turcos. In:
Obras Selecionadas, vol. 6, 1996, p. 461-463. Ver também, no mesmo volume, o tratado “Da guerra
contra os turcos”, p. 410-445.
56
homens, mas tamm como o fim último de toda sabedoria. Todo conhecimento
deveria servir às necessidades da vida e ter uma finalidade moral, diretamente
relacionada aos ensinamentos de Cristo; sem isso, seria imperfeito. Podemos dizer,
assim, que desde os seus primeiros escritos devotos, inclusive a sua
derradeira obra, Vives esteve sob a bandeira do Humanismo cristão.
A idéia de que o conhecimento deveria ter uma função prática e um fim moral,
que se consubstanciaria no conhecimento de Deus, pode ser encontrada tamm
nas obras filosóficas de Juan Luis Vives: “Del instrumento de la probabilidad” (De
instrumento probabilitatis), cujas datas em que foi escrito e publicado são incertas,
“Filosofía primera (metafísica), o sea, de la obra íntima de la natureza” (De prima
philosophia seu de intimo opificio naturae), de 1531, e o citado “Tratado del alma”,
de 1538.
31
A filosofia de Vives apresenta uma concepção utilitarista do saber, a qual
caracterizava os humanistas em geral. Segundo tal concepção, o conhecimento
deveria ser sempre útil ao norteamento da vida cotidiana, individual e coletiva. De
acordo com Monsegú (1961, p.57), “[...] Vives não concebe a filosofia como trabalho
de pura especulação. Toda ela deve pôr-se ao serviço da vida e da virtude. Não
importa tanto saber quanto saber para que se sabe”. No caso do humanista, a
preocupação se dava não apenas com a vida terrena, que deveria ser guiada pelas
virtudes advindas da sabedoria, mas também com a vida eterna. Ele diz, em sua
obra de temática metafísica: “Breve é esse prazo de vida concedido ao homem para
que, durante ele, com a prática da virtude, se exercite e prepare para a felicidade da
outra, atento a ele exclusivamente, sem que outros cuidados lhe estorvem.
(Filosofia primera..., 1948, p. 1063).
32
Para que a graça da “outra vida” fosse
conquistada, fazia-se necessário que todo saber, bem como a própria existência
humana, se destinasse a seu fim último: conhecer a Deus. Assim, podemos dizer
que o pensamento filosófico de Vives, que inclusive sustenta os seus ideais de
educação, tem por base a concepção de que o conhecimento deve servir ao
homem, ajudando-o a compreender e a praticar a virtude, e a virtude deve levar à
finalidade maior do homem, que é o conhecimento de Deus e, conseqüentemente, a
participação na Eternidade.
31
Para uma análise da filosofia de Vives ver: ABELLÁN, J. L. El erasmismo español, 2005, p.141-
158.
32
“Breve es ese plazo de vida concedido al hombre para que, durante él, con la práctica de la virtud,
se ejercite y prepare para la felicidad de la otra, atento a ello exclusivamente, sin que otros cuidados
le estorben”.
57
Ao tratarmos do pensamento filosófico de Vives, um apontamento se faz
necessário antes de continuarmos a tratar do conjunto de suas obras. dissemos
aqui, ao comentarmos as concepções de Paul Kristeller (1993) acerca do
Renascimento, que o Humanismo o foi exatamente um movimento atuante no
campo da filosofia, mas, sim, voltado para o âmbito literário. O próprio período
renascentista caracterizou-se por uma ausência de doutrina filosófica geral,
metódica e genuína. Segundo Monsegú (1961, p. 24), “[...] filosofia propriamente
dita, elaboração ideológica e sistemática, não existe no Renascimento, como algo
que se opõe ou distingue de sistemas ou teorias precedentes”. Não menosprezando
as essenciais contribuições humanistas para o campo do conhecimento
valorização da empiria e da razão, aperfeiçoamento dos métodos de ensino e do
manejo das fontes –, podemos dizer que, na realidade, um sistema filosófico original
não foi criado pelos humanistas renascentistas; como vimos, suas atenções
estiveram mais voltadas à tentativa de imitação de sistemas da Antigüidade Clássica
e às críticas à Escolástica medieval, consolidadas, por exemplo, na reprovação a
uma exagerada conceitualização da realidade – caracterizada pela ausência de
preocupação com as origens concretas desses conceitos e às infindáveis
deduções lógicas, com as quais os escolásticos objetivavam chegar ao
conhecimento (MONSEGÚ, 1961).
Assim, dado que o Humanismo não elaborou um sistema filosófico próprio, e
que Vives foi um típico representante desse movimento, podemos concluir que ele
não deve ser chamado de filósofo? Monsegú (1961, p. 355) afirma que “[...] filósofo
é, em última instância, o que busca a exata compreensão das coisas, levando a tudo
a reflexão e o exame, até dar com as razões últimas, que é também a razão primeira
de tudo, conseguindo do mundo una visão adequada [...]”. Podemos dizer que foi
justamente buscando a compreensão mais correta das coisas que Vives criticou,
assim como seus pares, o mundo abstrato sobre o qual a filosofia escolástica
medieval se baseava. Ele condenou o uso exagerado de especulações e silogismos,
métodos através dos quais o se poderia chegar a um saber efetivo, visto que o
consideravam a realidade concreta e a natureza. Para Vives, a observação atenta
da realidade através dos sentidos é que conformava o principal meio de
58
conhecimento filosófico.
33
Desse modo, se sua originalidade não se encontra
exatamente na doutrina, ela se faz presente no método que propõe. Assim, se
considerarmos a definição de Monsegú para o termo “fisofo”, podemos dizer que
Vives merece ser nomeado tamm desse modo, visto que, embora não tenha
criado uma filosofia original, o humanista propôs novos métodos para alcançar uma
visão mais precisa do mundo, buscando relacionar os conceitos filosóficos com a
realidade que os encerra.
Voltemos, agora, aos comentários acerca das demais obras vivistas. Como
típico representante do Humanismo, Vives escreveu muitas cartas, através das quais
se correspondia com figuras importantes de sua época, tais como Erasmo de
Roterdã e o helenista e jurisconsulto Francisco Cranevelt (1485-1564). Tais
correspondências encontram-se organizadas, nas Obras Completas que aqui
utilizamos, sob o título de “Epistolário”. Além disso, o autor produziu, ao longo de sua
vida, um mero significativo de obras filológicas. São elas: “Fábula del hombre”,
“Introducción a las ‘geórgicas’ de Publio Virgilio”, Alma del anciano”, Origenes,
escuelas y loores de la filosofia” (De initiis, sectis et laudibus philosophiae), todas
elas de 1518; “La fuga de Pompeyo” (Pompeius fugiens), Sueño al margen del
‘Sueño de Escipión’” (In somnium Scipionis), Templo de las leyes” (Aedes legum),
“Prelección al ‘Livro de las Leyes’, de Cicerón” (Praelectio in leges Ciceronis),
datando as quatro de 1519; “Declamaciones silanas” (Declamationes syllanae), de
1520, “La pared y la mano ensangrentada” (Paries palmatus) e “Prelección a los
‘Convites’ de Francisco Filelfo” (Praelectio in convivio Francisci Philelphi), ambas de
1521; “Prelección al cuarto libro de la ‘Retórica a Herenio’ (In quatuor Rhetoricorum
ad Herennium), “Prelección al opúsculo ‘A la rebusca del sabio’” (Praelectio in
sapientem), “Añadiduras a Suetonio” (In Seutonium quaedam), “Quiénes fueron los
Godos y mo ganaron a Roma e “La verdad embadurnada” (Veritas fucata),
34
todas de 1522. Vives tamm interpretou, em 1523, dois discursos de Isócrates, a
saber: Oración areopagítica” e “Nicocles”. Escreveu, ainda, a “Interpretación
alegórica de las ‘Bucólicas’ de Virgilio” (Interpretatio allegorica in Bucolica Virgilii), de
33
Essa concepção de Vives aparece, de modo não sistemático, em várias de suas obras como, por
exemplo, no capítulo VIII do segundo livro do “Tratado del alma”, intitulado “De la manera de
aprender”, In: Obras Completas, tomo II, p. 1206-1210.
34
Esse mesmo título foi dado por Vives a uma obra devota, publicada provavelmente em 1519.
59
1537, e aCensura de las obras de Aristóteles” (Censura de Aristotelis operibus), de
1538.
Todavia, sem desmerecer a importância do conjunto da obra de Juan Luis
Vives que demonstra a sua imensa erudição podemos dizer que foram os seus
escritos de caráter moral e pedagógico que, em grande medida, lhe renderam a
fama de elevado humanista, ou, ao menos, que através deles é que o autor se fez
mais reconhecido pelos estudiosos da cultura renascentista. Seu papel de educador
é quase sempre ressaltado, seja nas obras dedicadas especificamente ao seu
pensamento, ou naquelas que tratam do Humanismo como um todo. Vejamos, a
título de ilustração, algumas breves referências. No ensaio biobliográfico de Lorenzo
Riber (1947, p.191-192) Vives foi intitulado “pedagogo da Europa” e “pai e fundador
da moderna Pedagogia”, especialmente por conta da publicação da obra De las
disciplinas”; tendo em vista a mesma obra, Kristeller (1993, p. 163) se refere ao autor
como um dos “últimos e mais brilhantes representantes [do Humanismo]”,
justamente por ter intentado reformar as tradicionais disciplinas acadêmicas, com
base nos ideais humanistas do saber. Elizabeth T. Howe (1995, p. 21) parece
concordar com esta opinião, pois, ao comentar a obra “Instrucción de la mujer
cristiana”,
35
afirma que “a contribução vivista à história da educação é
imprescindível”. Ana Isabel Buescu (1998), ao tratar da importância do crescimento
da literatura pedagógica no século XVI, cita o nome de Vives ao lado do de Erasmo
e de Rabelais, e Lorenzo Luzuriaga (1984, p. 101), em sua História da Educação e
da Pedagogia, faz o mesmo comentário e, ainda, refere-se a Vives como o “maior
dos humanistas espanhóis e um dos maiores humanistas europeus”. Skinner
(1996), como vimos, considera o valenciano um dos principais autores
renascentistas a defenderem a educação como meio mais eficaz para se alcançar a
virtude necessária aos governantes. As referências são, certamente, mais
numerosas, mas seguem, de modo geral, essa mesma linha de interpretação.
Falemos, então, dessas importantes obras vivistas. Sob a denominação de
escritos de caráter moral, encontramos os seguintes títulos: Formación de la mujer
cristiana”, “Escolta del alma”, “Introducción a la sabiduría” datando os três de 1524
e “Deberes del marido”, de 1528. Todos esses textos têm uma característica em
comum: denotam a austeridade moral de Juan Luis Vives, traço que contrastava,
35
Note-se que Howe usa o termo “instrucción”, enquanto Riber prefere o termo “formación”.
60
segundo Monse(1961, p. 44), “[...] com o sentir da época em que viveu, a vida
mole de muitos humanistas”, especialmente aqueles que não integravam a corrente
do Humanismo cristão.
Encontramos esse rigor de princípios, de forma particularmente marcante, na
obra Formación de la mujer...”, dedicada à rainha Catarina, em cujas numerosas
páginas o autor tratou da formação moral e da instrução literária das mulheres,
desde a infância até a possível viuvez. Sobre a obra, disse o próprio Vives em seu
prólogo:
Tertuliano, São Cipriano, São Jerônimo, Santo Ambrósio, Santo
Agostinho, São Fulgêncio discorreram acerca das virgens e das
viúvas, mais atentos a persuadir um determinado gênero de vida do
que a formá-lo; [...] Porém nós, deixando de lado a essas exortações,
afim de que cada qual faça a conveniente eleição de estado, [...] nos
propusemos formá-las praticamente para a vida. (Formación de la
mujer..., 1947, p. 985-986).
36
O que o humanista pretendia, então, era apresentar um comportamento moral ideal
a ser seguido pelas mulheres, tanto as solteiras, quanto as casadas e as viúvas.
Após a explicitação de tal objetivo, iniciou os seus conselhos pelas donzelas. Às
meninas recém-nascidas, recomendou o aleitamento materno, para que desde a
mais tenra infância as mães pudessem “transmitir”, junto com o leite, seu afeto e
seus bons costumes, o que nem sempre ocorreria caso essa tarefa fosse deixada
aos cuidados de uma ama-de-leite. Quanto ao início da instrução literária, Vives o
impôs idade nem local determinados para tal, deixando a escolha a cargo dos pais;
sugeria, entretanto, que as aulas ocorressem em casa. Recomendou a leitura das
Escrituras, de obras de teologia, como as de São Jerônimo e de Santo Ambrósio, e
de clássicos, como Cícero ou Sêneca, e proibiu o contato com os romances de
cavalaria. Am das letras, defendeu a extrema utilidade do aprendizado, desde
muito cedo, das tarefas domésticas, tais como costurar, fiar, cozinhar, etc. Pinturas,
enfeites e trajes extravagantes, assim como bebida e comida em excesso, deveriam
ser evitados terminantemente (Formación de la mujer..., 1947). À mulher casada,
Vives recomendou, para a manutenção do lar e para a criação dos filhos, a utilização
36
“Tertuliano, San Cipriano, San Jerônimo, San Ambrósio, San Agusn, San Fulgencio discurrieron
acerca de las vírgenes y de las viudas, más atentos a persuadir un determinado género de vida que a
formarlo; [...] Empero nosotros, dando de lado a esas exhortaciones, a fin de que cada cual haga la
conveniente elección de estado, [...] nos proponemos formarlas prácticamente para la vida.”
61
de tudo o que fora aprendido desde a meninice; em relação ao marido, a esposa
deveria ser sempre amável, fiel e casta. E, por fim, se o infortúnio da viuvez se
abatesse sobre ela, seria ideal que mantivesse um estado de reclusão social, vindo
a casar-se novamente apenas em caso de necessidade (Formación de la mujer...,
1947). Desse modo, observamos que o que Vives [...] exige da mulher cristã em
ponto a recato e discrição supera o quanto de mais austero pode encontrar-se nos
escritos dos Santos Padres”. (MONSEGÚ, 1961, p. 44).
A obra “Deberes del marido”, escrita alguns anos depois de “Formación de la
mujer...”, consubstanciou-se em um complemento desta, escrito, como o próprio
Vives contou, a pedidos de alguns leitores. Disse ele ao Duque de Gandía, Dom
Juan de Borja, a quem dedicou a obra: “Quando, anos atrás, ia escrevendo o tratado
acerca da formação da mulher cristã, pouco podia eu pensar que no sucessivo não
haviam de faltar quem me exortassem a escrever um tratado análogo acerca dos
deveres do marido." (Deberes del marido, 1947, p. 1259).
37
Atendendo a tais
exortações, elaborou um texto bastante rigoroso no tocante aos princípios morais,
ainda que não tão severo quanto aquele dirigido às esposas, visto que a vida
conjugal, assim como toda a sociedade quinhentista, baseava-se numa rígida
relação de subordinação da mulher ao homem.
De modo geral, Vives recomendava prudência na escolha da esposa, que
deveria ser feita, preferencialmente, pelos pais do noivo, haja vista a inexperiência
da juventude. Além disso, tal eleição deveria ser realizada com base nas qualidades
morais, e não físicas, da mulher. Disse Vives a respeito desse tema: “Se te casas
com uma mulher estúpida por sua beleza, coisa que fazem alguns, que diferença
entre possuir uma linda estátua de Fidias ou uma tal mulher? Infeliz! De que
utilidade te será para a vida?” (Deberes del marido, 1947, p. 1284).
38
E, mais
adiante, continuou: Os maridos que de sua esposa amam a beleza ou o dinheiro,
são escravos do amor terreno, e, como ele, obcecados, e no amor o conhecem
razão nem taxa. Os que são maridos de verdade amam as almas e as virtudes”
37
“Cuando, años atrás, iba escribiendo el tratado acerca de la formación de la mujer cristiana, poco
podia yo pensar que en lo sucesivo no habían de faltar quienes me exhortasen a escribir um tratadillo
análogo acerca de los deberes del marido”.
38
“Si te casas con una mujer estúpida lo por su belleza, cosa que hacen algunos, ¿qué diferencia
va entre poseer una linda estatua de Fidias o una tal mujer? ¡Infeliz! ¿De qué utilidad te será para la
vida?”.
62
(Deberes del marido, 1947, p. 1301).
39
Mais do que bela, portanto, a mulher deveria
ser virtuosa. Feita a escolha, Vives recomendava aos maridos um afeto comedido
em relação às esposas para que o amor não enfraquecesse a autoridade e uma
diligente vigilância sobre elas (Deberes del marido, 1947).
Quanto ao opúsculo “Escolta del alma”, podemos dizer que possui, pelo
menos, duas semelhanças com as obras que acabamos de comentar: primeiro, a
rígida exortação às práticas virtuosas; segundo, a dedicatória a uma importante
figura das cortes européias. Nesse caso, o escrito é dedicado a uma criança a
princesa Maria Tudor, de oito anos , o que lhe confere maiores características
pedagógicas. Talvez por conta de seu destinatário o texto seja curto, formado por
máximas ricas em conselhos morais práticos, muitas delas retiradas de obras
clássicas, tais como a de número 25, inspirada em Cícero, que diz: “Só o sábio vive
muito: A vida dos néscios não é vida; vida é a que se vive por meio da sabedoria.
Assim que de preferir-se um dia do sábio à eternidade dos néscios” (Escolta del
alma, 1947, 1181).
40
Por essa máxima, percebemos a importância que Vives, como típico
humanista, atribuía ao conhecimento e, especialmente, à sólida educação dos
governantes. Essa aproximação entre conhecer e governar tamm aparece no
aforismo número 120, onde o autor afirma:
O príncipe está por cima dos particulares, por seu elevado critério.
Não parece bem que o príncipe desconte sobre as pessoas privadas
somente por suas riquezas ou poder, se não por seu critério e por
seus sábios conceitos, muito elevados sobre o pensar do vulgo; [...]
Assim como nele reside a dignidade, brilha também nele uma
singular sabedoria. É indigno que aquele a quem os outros
obedecem, não julgue melhor das coisas que o vulgo ignorante.
(Escolta del alma, 1947, p. 1192).
41
39
“Los maridos que de su esposa aman la belleza o el dinero, son esclavos del amor terreno, y, como
él, obcecados, y en el amor no conocen razón ni tasa. Los que son maridos de veras aman las almas
y las virtudes”.
40
“Sólo el sabio vive mucho: La vida de los necios no es vida; vida es la que se vive por medio de la
sabiduría. Así que ha de preferirse un día del sabio a la eternidad de los necios”.
41
“El príncipe espor encima de los particulares, por su elevado criterio. No parece bien que el
príncipe descuelle sobre las personas privadas por sus solas riquezas o poder, sino por su criterio y
por sus sabios conceptos, muy levantados sobre el pensar del vulgo; [...] Así como en él reside la
dignidad, relumbre tambiém en él una singular sabiduría. Es indigno que aquel a quien los otros
obedecen, no juzgue mejor de las cosas que el vulgo ignorante.”
63
Através de axiomas como esses, Vives pretendia oferecer à princesa, para a qual
fizera um plano de estudos um ano antes, uma escolta que ele considerava mais
essencial do que aquela formada por homens e armas: uma escolta para a alma,
constituída de sabedoria e virtude.
Tão logo finalizou este opúsculo, apenas dois meses depois, Vives trouxe à
tona o tratado intitulado Introducción a la sabiduría”, que discorre acerca das bases
e dos objetivos do verdadeiro conhecimento, e que, ao que parece, foi concebido
para instruir aqueles que se iniciavam no mundo letrado, geralmente ainda na
infância (RIBER, 1947). Em tal obra na qual transparece, assim como nos outros
escritos morais, um forte caráter pedagógico –, o humanista apresenta a sua
concepção de sabedoria: um caminho a ser percorrido pelo homem, que se inicia no
conhecimento de si mesmo, assim como propunha Sócrates, e termina no
conhecimento, e conseqüente admiração, de Deus. Diz Vives, logo no início de seu
tratado: “Nesta carreira da sabedoria o primeiro passo é aquele dito tão trilhado e tão
celebrado dos antigos: ‘Conhecer-se cada um a si mesmo’.” (Introducción a la
sabiduría, 1947, p. 1206).
42
E continua, mais adiante: “O bem mais alto e melhor
que se pode dar à linhagem humana é o caminho da religião, que é conhecimento,
amor e reverência a Deus, Senhor e Pai do universo mundo. [...]. Pela religião se
conhece a Deus; conhecido, não pode ser que o lhe ame e lhe adore.”
(Introducción a la sabiduría, p. 1227).
43
Para o cumprimento do trajeto entre esses
dois pólos do verdadeiro saber, seria necessário um comportamento moral
adequado, o qual Vives explicita ao longo do texto e que abarca uma variedade de
situações: cuidados com o corpo e, especialmente, com a alma; prática de virtudes;
amor a Deus e conhecimento de princípios cristãos; regras de convivência social e
de condutas pessoais, inclusive em relação ao comer, beber, dormir, etc. Tal
diversidade de normas apresentadas tanto para o pensar, como para o agir faz
com que essa obra represente não apenas um tratado moral, mas também um
modelo do ideal humanista de formação do homem.
Na realidade, se observarmos o conteúdo dos tratados morais de Juan Luis
Vives bem como de outros humanistas renascentistas, especialmente os
42
“En esta carrera de la sabiduría el primer paso es aquel dicho tan trillado y tan celebrado de los
antiguos: ‘Conocerse cada uno a sí mismo’.”
43
“El bien más alto y mejor que pudo darse al humano linaje es la religión, que es conocimiento, amor
y reverencia a Dios, Señor y Padre del universo mundo. [...]. Por la religión se conoce a Dios;
conocido, no puede ser que no se le ame y se le adore.”
64
denominados cristãos”, como Erasmo, por exemplo e levarmos em conta o ideal
educativo que despontava no Renascimento, voltado, como vimos, a uma formação
marcadamente literária e moral, veremos que os escritos de cunho moralista, que
acabamos de comentar, não apenas podem, mas devem ser considerados, nesse
contexto, tamm como obras de educação.
Vejamos, então, os escritos vivistas agrupados propriamente sob a
denominação de “obras de educação e de reforma dos estudos”. São eles: “Contra
los seudodialécticos”, de 1520, no qual o humanista retrata sua passagem pela
Universidade de Paris e critica os “falsos dialéticos” pelo uso de um latim bárbaro e
pela falta de real conhecimento sobre os clássicos, inclusive sobre Aristóteles;
“Pedagogía pueril”, de 1523, que, como vimos, se constitui em um breve plano de
estudos escrito para a princesa Maria Tudor, no qual Vives apresenta instruções
básicas de leitura e escrita latinas, e que foi publicado junto com o plano de estudos
que o humanista fez para o filho do nobre inglês Guilherme de Mountjoy; “De la
deliberación” (De consultatione), de 1523, que apresenta instruções àqueles que
freqüentemente são consultados sobre assuntos de suma importância, sobre os
quais devem deliberar; “De las disciplinas”, de 1531, em que o humanista detecta a
corrupção no estudo e no ensino das artes, e propõe novos métodos para ambos;
“De la disputación”, também de 1531, no qual apresenta fórmulas para um debate
intelectual honesto e critica as disputas estéreis dos escolásticos, que não buscam a
verdade, mas a derrota do oponente; Arte de hablar”, de 1532, em que Vives trata
da importância da linguagem e da boa expressão, valorizando a arte da retórica;
“Redacción epistolar”, de 1536, que versa sobre as partes de uma carta e instrui
quanto à elegância e clareza em sua escrita; e, por fim, “Ejercícios de lengua latina”,
de 1538, que foi concebido com a intenção de auxiliar os iniciantes, geralmente
crianças, no aprendizado do latim.
De todas essas obras, podemos dizer que “Ejercícios...” alcançou a maior
popularidade, tanto no Quinhentos quanto posteriormente, visto que foi utilizada, na
época, como livro de texto gramatical, sendo editada cerca de cinqüenta vezes
apenas no século XVI, e traduzida para o castelhano, o francês, o italiano, o alemão
e o inglês, entre outros idiomas.
44
Tal obra – dedicada ao príncipe Felipe, então com
44
Sobre as traduções das obras de Vives, ver: Enciclopédia Universal Europeu-americana, tomo
LXIX, 1958, p. 714 -716.
65
onze anos, que viria a ser rei de Espanha sob o título de Felipe II – se concretiza em
um livro de colóquios, que abarcam as mais variadas situações cotidianas,
pertencentes ao âmbito escolar ou doméstico, com as quais os discípulos tinham, ou
poderiam vir a ter, familiaridade. Segundo Foster Watson, estudioso do pensamento
vivista, os diálogos servem para “[...] capacitar as crianças a adquirir o vocabulário,
as frases correntes da língua latina, como para que possam conversar corretamente
sobre todas as incidências da escola e da vida do lar.” (apud RIBER, 1947, p. 211).
Nesse sentido, a obra seria duplamente didática, pela forma (vocabulário latino) e
pelo conteúdo (orientação quanto à vivência cotidiana dos estudantes).
Todavia, embora tenha gozado de maior popularidade, podemos dizer que
mais importante que a obra “Ejercícios de la lengua latina”, para a nossa análise dos
ideais educativos de Juan Luis Vives, é o tratado “De las disciplinas”. Tal obra, como
vimos, consolidou a fama de educador do humanista valenciano, iniciada com a
publicação de escritos de caráter pedagógico, dedicados a crianças, tais como
“Pedagogía puerile “Escolta del alma”. O tratado vivista acerca das disciplinas que
formavam o conjunto do saber no Renascimento foi dedicado a João III, rei de
Portugal, e apresenta-se dividido em duas partes. A primeira se intitula “Causas de
la corrupción de las artes en general” (De corruptis artibus in universum) e, por sua
vez, está dividida em sete livros, dos quais o primeiro trata da corrupção que atinge
as artes em geral, e os restantes se referem aos problemas específicos de cada
disciplina (gramática, dialética, retórica, filosofia natural, medicina, matemática,
filosofia moral e direito). a segunda parte, “En que se trata del arte de enseñar”
(De tradendis disciplinis), contém, em seus cinco livros, os ideais vivistas de reforma
dos estudos, e apresenta, ao final, três capítulos que versam sobre o
comportamento ideal do humanista.
A importância de “De las disciplinas” se encontra no fato de que nessa
extensa obra, Vives busca expor as causas da corrupção do saber, que ele, como
representante da vanguarda intelectual renascentista, percebe em seu período. E
não apenas as revela, como também propõe outros métodos de estudo e de ensino,
baseados nos ideais educativos do Humanismo. Esses dois momentos aparecem,
respectivamente, na primeira e na segunda parte da obra. Assim, podemos dizer que
esse tratado reúne, de modo amplo, as características do ideal de formação de Juan
Luis Vives, e serve como modelo representativo do pensamento humanista relativo à
educação. Desse modo, tendo em vista nosso objetivo analisar as obras
66
pedagógicas de Vives, relacionando-as ao ideal humanista de formação do homem
que apontava na aurora da Modernidade podemos dizer que o tratado “De las
disciplinas” se consubstancia em rica fonte de pesquisa, pois nos revela informações
detalhadas sobre o tema ao qual nos dedicamos.
No próximo capítulo, apresentaremos os ideais vivistas de educação, tanto
na esfera literária, quanto no âmbito do comportamento moral. Para isso,
selecionamos os escritos mais significativos, tais como o Livro I da Primeira Parte de
“De las disciplinas”, por seu caráter de generalidade pois não pretendemos tratar
de nenhuma disciplina especificamente –, e todos os livros da Segunda Parte, que
são indispensáveis, visto que trazem os ideais de Vives para o ensino. Todavia,
outras obras tamm se fazem representativas, e serão utilizadas de acordo com a
necessidade. Dentre elas, destacamos: “Contra los seudodialécticos”, por apresentar
a crítica vivista mais direta aos escolásticos, que representavam o modelo de
erudição ao qual os humanistas se opunham; Pedagogía pueril”, especialmente a
parte dedicada ao filho do Lorde Mountjoy, por expor, através de conselhos sobre
questões práticas e teóricas, o seu ideal para a educação infantil; “Ejercícios de la
lengua latina”, por sua imensa repercussão à época e por seu caráter didático; e
“Introducción a la sabiduría”, não apenas por ter sido editada cerca de trinta vezes
somente no culo XVI, o que revela seu alcance, mas principalmente por
apresentar o ideal vivista de conhecimento. Essa última, como vimos, é classificada
como obra de cunho moralista, e não de educação ou reforma dos estudos. Mas, se
levarmos em conta o tom pedagógico das obras morais de Vives, bem como o fato
de que o fim da educação, para o Humanismo, especialmente o “cristão”, era a
formação do homem virtuoso,
45
veremos que tanto as obras moralistas, quanto as
obras de educação propriamente ditas, servem para analisarmos o ideal humanista
de formação. Aliás, elas se complementam e nos possibilitam uma visão mais ampla
desse ideal.
45
Howe afirma, a respeito de Vives, que “[...] el tono moral que predomina en todas sus obras
pedagógicas indica una actitud presente en el pensamiento de los humanistas en general. Es decir
que el fin de la educación es la vida moral y cristiana” (1995, p. 10).
4. EDUCAÇÃO E HUMANISMO EM VIVES
Após a discussão das principais concepções do Humanismo acerca da
formação ideal do homem, e após a inserção de Vives no contexto renascentista
com a qual demonstramos os aspectos de sua vida e de sua obra que o tornam um
modelo de humanista e pedagogo –, passemos à análise de seus escritos sobre
educação e/ou reformas dos estudos. Estes textos foram assim classificados pois,
como veremos a seguir, Vives não apenas expôs o seu ideal educativo, mas
também apontou as origens da crise pela qual, segundo ele, o saber passava em
sua época. A obra mais significativa, nesse aspecto, foi o tratado "De las disciplinas",
de 1531. Através da análise do representativo pensamento vivista, poderemos
apreender o papel da educação humanista no contexto de transformações que
marca o nascimento da Modernidade.
4.1. Causas Da Corrupção Do Saber
Ao tratarmos do ideal educativo dos humanistas no Renascimento,
especificamente o de Juan Luis Vives, faz-se necessária uma primeira observação,
de suma importância, sobre o caráter desse ideal: além de se voltar, como vimos, ao
âmbito aristocrático, ele foi construído, quase que exclusivamente, em torno da
educação masculina. Isso não significa a inexistência de um modelo educativo para
as mulheres, todavia, devido à própria estrutura hierárquica da sociedade
renascentista, ainda caracterizada pela submissão feminina, ele se concretizava em
uma instrução mais prática, relacionada aos afazeres domésticos e a princípios
rígidos de moralidade. Segundo o próprio Vives:
Estas são, pouco mais ou menos, as coisas cujo conhecimento
importa à mulher: em primeiro lugar, o conhecimento de si mesma;
[...] e logo conhecer, em compêndio, a suma da religião cristã [...].
Depois aprenderá o amor e o respeito que deve ao marido [...].
Devem colocar-se às mãos livros piedosos, que ensinem prudência e
promovam desejos elevados de levar uma vida santa.[...] Mas se de
todo modo lhe contentam os versos, maneje as obras dos poetas
cristãos [...]. Deixe para os homens o estudo da Natureza, da
gramática, da dialética, da história e suas façanhas, da ciência
68
política, das matemáticas. (Deberes del marido, 1947, p. 1311-
1313).
46
Desse modo, o que podemos perceber é que a educação feminina, permeada por
alguns ensinamentos literários básicos, era geralmente mais simples, limitada,
menos, digamos assim, intelectualizada; além disso, era dirigida às mulheres quase
sempre de maneira específica, como, por exemplo, na obra Formación de la mujer
cristiana”. Por outro lado, a maioria das obras gerais relativas à educação,
especialmente as de maior erudição, pressupunha um público masculino, como no
caso de “De las disciplinas” (HOWE, 1995). Isso significa que estamos tratando,
nesse trabalho, de um ideal voltado predominantemente aos varões da aristocracia.
Feita essa observação, passemos à análise das idéias vivistas sobre
educação, lembrando que utilizamos esse termo como sinônimo de formação
intelectual e moral do homem. Antes de falarmos exatamente das concepções
defendidas pelo humanista valenciano, tratemos das críticas por ele elaboradas no
que diz respeito ao estudo e ensino das disciplinas que formavam o saber de sua
época, as quais estariam corrompidas. Vives identifica tal corrupção desde a origem
dessas disciplinas, ou artes, como ele mesmo denomina. Assim, desde que, por
necessidade, as sociedades criaram os diversos ramos do saber, estes
apresentaram depravações, devido às imperfeições do engenho humano. No
entanto, o autor não retira desses primeiros homens industriosos o mérito da
descoberta de tantos conhecimentos. Sobre isso, ele afirma:
Jamais em conseqüência foram as artes nem perfeitas, nem puras,
nem ainda em sua própria origem. [...] Mas, contudo, não deixa de
ser certo que, graças a esses soberanos engenhos, ajudados da
experiência e do estudo, as artes se levantaram e se levaram de
princípios fartos modestos a uma determinada grandeza, por maneira
que não foi de todo ponto difícil acrescentar o encontrado e fazer
ulteriores descobrimentos. (De las disciplinas, 1948, p. 350).
47
46
“Estas son, poco más o menos, las cosas cuyo conocimiento importa a la mujer: en primer lugar, el
conocimiento de misma; [...] y luego conocer, en compendio, la suma de la religión cristiana [...].
Después aprenderá el amor y el respeto que debe al marido [...]. Deben ponérsela en las manos
libros piadosos, que enseñen cordura y promuevan deseos encendidos de llevar una vida santa. [...]
Mas si de todos modos le contentan los versos, maneje las obras de los poetas cristianos [...]. D eje
para los hombres el estudio de la Natureza, de la gramática, de la dialéctica, de la história y sus
hazañas, de la ciencia política, de las matemáticas.”
47
“Jamás en consecuencia fueron las artes ni perfectas, ni puras, ni aun en su proprio origen. [...]
Pero, con todo, no deja de ser cierto que, gracias a esos soberanos ingenios, ayudados de la
experiencia y el estudio, las artes se levantaron y se llevaron de principios harto modestos a una
69
Como típico humanista, Vives se preocupa em não atacar a Antigüidade. Embora
admita que muitas causas da corrupção das artes se originaram naquele período,
ele louva a iniciativa daqueles homens e tem o cuidado de justificar seus erros: [...]
seus equívocos, seus tropeços os atribuiremos a comum condição e fraca natureza”
(De las disciplinas, 1948, p. 350).
48
Mais adiante, veremos que o humanista não
teve tanta condescendência com os corruptores que ele detecta em sua época.
Aliás, embora Vives se refira aos antigos ao tratar do declínio original das artes
uma Antigüidade que ele, inclusive, não data exatamente –, o que percebemos é
que suas críticas estão quase sempre relacionadas aos modernos, ou seja, aos
escolásticos. Vejamos como isso se concretiza em seus escritos.
A primeira causa de corrupção do saber, revelada por Vives, é a inaptidão de
muitos daqueles que se propõem a estudar ou a ensinar determinada arte. Isso
ocorre por dois motivos básicos: o amor cego de certos pais, que faz com que eles
não percebam a inabilidade de seus filhos para os estudos e insistam em sua
formação, e a cobiça dos mestres que ensinam por dinheiro. Estes, por gananciosa
ambição, admitem em suas escolas, sem nenhum rigor seletivo, a alunos que não
têm o menor talento para o estudo desta ou daquela disciplina. Assim, “a erudição e
as artes, que estão como violentadas e deformadas por tais engenhos, é força que
se exteriorizem com o mesmo aspecto e natureza que os engenhos de onde saem, a
saber: desviadas, torcidas, viciosas”. (De las disciplinas, 1948, p. 351).
49
Sabemos
que essa crítica de Vives aos mestres que visavam, em primeiro lugar, ao
pagamento, e não ao sadio desenvolvimento da erudição, estava direcionada
também a alguns de seus contemporâneos, pois esse é um dado que aparece mais
adiante, quando ele constata que: essas queixas o acabaram com os primeiros
séculos, mas sim que chegaram até nós [...]. Idêntica é a causa desse mal [...], a
saber: o mercantilismo, a cobiça de dinheiro”. (De las disciplinas, 1948, p. 395).
50
Percebemos, aqui, uma referência à valorização crescente do dinheiro, que reflete a
determinada grandeza, por manera que ya no fde todo punto difícil acrecentar lo hallado y hacer
ulteriores descubrimientos.”
48
“[...] sus equivocaciones, sus tropezos los achacaremos a la común condición y flaca naturaleza”.
49
“la erudición y las artes, que están como violentadas y deformadas por tales ingenios, es fuerza que
se exterioricen con el mismo aspecto y naturaleza que los ingenios de donde salen, a saber:
desviadas, torcidas, viciosas”.
50
“[...] esas quejas no acabaron con los primeros siglos, sino que han llegado hasta nosotros [...].
Idéntica es la causa de ese mal [...], a saber: el mercantilismo, la codicia de dinero”.
70
transformação pela qual a sociedade passava naquele momento período de
transição para o capitalismo.
Uma outra causa de perversão das disciplinas do saber é a invenção de
falsos dogmas. Segundo Vives, devido à soberba que toma conta de inúmeros
homens, muitas mentiras foram contadas com o objetivo de se alcançar fama e
renome, e assim muitas artes foram “enlameadas”. Sobre isso, exclama o
humanista:
Pela razão de que em todas as artes e disciplinas a glória principal
recai nos inventores, foram muitos os que quiseram ser de opiniões
novas, considerando que era ngua pura seguir as pisadas alheias.
[...] Nessa situação, os filósofos, por desejo de ganhar nome, não
tiveram reparo em inventar os maiores absurdos e apartar-se o mais
longe possível das opiniões recebidas. (De las disciplinas, 1948, p.
352).
51
Desse modo, muito do que havia sido descoberto verdadeiramente foi deixado para
trás, e surgiram idéias falsas, superficiais, cujos inventores visavam apenas ao
reconhecimento dos demais. Embora, ao explicitar esse fenômeno, Vives o
exemplo dos gregos, ele tamm aproveita para atacar aos escolásticos,
especialmente os de Paris, com os quais conviveu durante alguns anos da sua
juventude. Ele, inclusive, exemplifica seu discurso sobre a corrupção das artes com
a sua própria experiência: “Eu, em meus dias de Paris, tive um camarada que dizia
com toda formalidade que ele, antes que deixar de introduzir um novo dogma, daria
por verdadeiras afirmações que lhe constassem ser as mais falsas” (De las
disciplinas, 1948, p. 352).
52
Essa crítica se relaciona, sobretudo, com o citado
método escolástico das disputas, que, segundo os humanistas, instigavam o desejo
da vitória, deixando a busca pela verdade em segundo plano. Dürkheim (1995, p.
138), ao comentar as críticas renascentistas à disputatio, afirma: “Vives e os
51
“Por la razón de que en todas las artes y disciplinas la gloria principal recae en los inventores,
fueron muchos los que quisieron serlo de opiniones nuevas, considerando que era mengua pura
seguir las pisadas ajenas. [...] En esa situación, los filósofos, por deseo de ganar nombre, no tuvieron
reparo en inventar los mayores absurdos y apartarse lo más lejos posible de las opiniones recibidas.”
52
“Yo, en mis dias de París, tuve un camarada que decía con toda formalidad que él, antes que dejar
de introducir un nuevo dogma, daria por verdaderas afirmaciones que le constasen ser las más
falsas”.
71
humanistas legaram-nos a lembrança de certas discussões onde a dialética vira jogo
espirituoso, jogos de palavras, jogos esses de valor medíocre.”
Segundo Vives, as disputas eram indispensáveis para o desenvolvimento do
saber desde que realizadas com a finalidade correta, ou seja, a humilde busca da
verdade. Portanto, a corrupção dessa prática foi apontada pelo humanista como
mais uma causa da crise em que se encontravam as artes em sua época. Nesse
caso, Vives elogia o método e o objetivo das disputas entre os eruditos na
Antigüidade, e critica diretamente as disputas escolásticas, cuja organização
explicitamos mais acima. Sobre isso, o autor revela que:
A Antigüidade instituiu as disputas entre os jovens por avivar-lhes o
cérebro e açoitar sua diligência para o estudo. [...] mais que disputas
eram um contraste de opiniões e razões, não em vistas de uma
vitória acadêmica, mas sim com o sincero desejo de conhecer a
verdade. [...] Mas logo, com o andar do tempo, [...] a cobiça da honra
e do prêmio invadiu o ânimo dos disputadores, de forma que, [...] aos
engenhos vis e materializados que com a cabeça iludida somente
tinham olhares para essas coisas levianas e momentâneas,
parecendo-lhes ser muito escassa remuneração a honradez docente
ou o conhecimento da verdade, [...] buscaram paga imediata em
dinheiro ou em coisa menos efetiva ainda que o dinheiro, que era a
aura popular. [...] E não somente o povo incidiu na crença de que o
fim do ensino era o disputar, [...] mas sim que também a afeição
pública se levou consigo aos veteranos e, por dizer-lhe assim, aos
triários da milícia escolástica [...], de maneira que estão persuadidos
que é perfeitamente supérfluo e scio que haja quem restitua a
filosofia à formação intelectual e moral e à investigação tranqüila e
serena. (De las disciplinas, 1948, p. 376-377).
53
É exatamente essa ausência de preocupação com a busca do verdadeiro
conhecimento, e a transformação das disputas em um espetáculo supérfluo, que
Vives considera um dos fatores de rebaixamento de muitas artes. E o grau dessa
53
“La antigüedad instituyó las disputaciones entre los jóvenes por avivarles el seso y fustigar su
diligencia para el estudio. [...] más que disputas eran un contraste de opiniones y razones, no en
vistas de una victoria académica, sino con el sincero deseo de conocer la verdad. [...] Mas luego, con
el andar del tiempo, [...] la codicia del honor y del premio invadió el ánimo de los disputadores, de
forma que, [...] a los ingenios viles y materializados que con la cabeza gacha solamente tenían
miradas para esas cosas livianas y momentáneas, parecióles ser muy escasa remuneración la
honradez docente o el conocimiento de la verdad, [...] buscaron paga inmediata en dinero o en cosa
menos efectiva aún que el dinero, que era el aura popular. [...] Y no solamente el pueblo incurrió en la
creencia de que el fin de la enseñanza era el disputar, [...] sino que también la afición pública se llevó
consigo a los veteranos y, por decirlo así, a los triarios de la milicia escolástica [...], de manera que
están persuadidos que es perfectamente superfluo y necio el que haya quien restituya la filosofía a la
formación intelectual y moral y a la investigación tranquila y serena.”
72
crise, segundo ele, estaria tão elevado, que muitos não estariam compreendendo a
importância do trabalho de restituição dessas artes através de outros métodos. Estes
seriam, é claro, os métodos humanistas.
A ignorância dos homens no que diz respeito às línguas clássicas é outro
motivo, apontado por Vives, para o declínio de muitos conhecimentos. Ele identifica
as origens desse problema nas rias ondas de invasões bárbaras que assolaram a
Europa, causando a destruição de cidades inteiras, inclusive de importantes
bibliotecas, e a mistura das línguas cultas com as línguas faladas pelos povos
bárbaros. Esse último aspecto, em especial, teria auxiliado na corrupção das
disciplinas mais elevadas, pois as obras dos grandes autores, que embasavam tais
disciplinas, deixaram de ser corretamente lidas e explicadas. Também nesse ponto
as observações do autor têm relação com a crítica humanista aos escolásticos. O
debate sobre o uso correto das línguas clássicas o latim e o grego é um dos
grandes pilares da animosidade dos humanistas em relação a seus “adversários”, e
Vives parece sugerir que aqueles barbarismos na forma de expressão,
anteriormente adquiridos, perduraram nas práticas escolásticas. Als, desde a
publicação de “Contra los seudodialécticos”, em 1520, tornou-se explícita a sua
posição a respeito da importância da linguagem e do uso de um latim puro e
elegante, o qual, segundo ele, os escolásticos não praticavam. Nessa obra, em que
se refere especialmente aos dialéticos de Paris, o humanista comenta com ironia:
O dialético deve usar daquelas palavras e daqueles enunciados que
sejam entendidos por todo o que conheça a ngua que fala [...]. E,
contudo, esses que a seu dizer falam latim, não são entendidos nem
pelos mais doutos nessa língua, nem ainda às vezes por aqueles que
são da mesma farinha [...]. Admirável dialética a destes cuja língua,
que eles se empenham em dizer que é latim, Cícero, se
ressuscitasse, não entenderia. (Contra los seudodialécticos, 1948,
p. 295-296).
54
A preocupação vivista com o uso adequado das nguas clássicas especialmente o
latim, considerado em sua época como meio de expressão oficial dos eruditos –,
54
“El dialéctico debe usar de aquellas palabras y de aquellos enunciados que sean entendidos por
todo el que conozca la lengua que habla [...]. Y con todo, esos que a su decir hablan latín, no son
entendidos ni por los más duchos en esa lengua, ni aun a veces por quienes son de la misma harina
[...]. Admirable dialéctica la de estos cuyo lenguaje, que ellos se empeñan en que es latín, Cicerón, si
resucitara, no entenderia.
73
denota uma postura humanista de valorização do Mundo Antigo e das disciplinas
literárias, que, como vimos, desempenhavam papel central nos studia humanitatis.
Essa admiração pelos valores da Antigüidade, encontrados nas obras dos
grandes autores, relaciona-se, em Vives, à defesa da filologia. Como vimos, um
estudo filológico pressupõe a análise interna e externa de textos, o que significa
estudar, entre outros aspectos, tanto a origem e significado dos termos utilizados,
quanto a relação do conteúdo com o contexto histórico em que foi produzido. Esse é
o tipo de estudo que Vives propõe para recuperar o real sentido dos textos clássicos
que, segundo ele, haviam se desgastado pela ação das traças, da poeira e da
umidade, além de terem sofrido alterações nas mãos dos copistas. Sobre estes
últimos, diz o humanista:
Em todos os tempos, quase sem exceção, foram os copistas homens
geralmente iletrados, que a duras penas mantinham sua indigência
transcrevendo livros; [...] Ocorria assim mesmo que os que
transcreviam aqueles livros não sabiam escrever e embaralhavam e
confundiam tudo, [...] assim que depravaram o sentido reto e por um
erro que se empenhavam em expurgar, introduziam quatro. (De las
disciplinas, 1948, p. 373-37).
55
Assim, caso se quisesse conhecer realmente o Mundo Antigo e seus modelos de
erudição, a maioria dos textos clássicos que estavam à disposição dos estudiosos
renascentistas deveria, segundo Vives, passar por uma cuidadosa análise filológica:
contexto histórico, estilo, linguagem do autor, etc. Era justamente pela ausência de
uma análise como essa que os erros dos copistas haviam se transformado em
verdades ao longo do tempo, corrompendo, assim, muitas artes.
De modo geral, esse é o quadro apresentado por Vives acerca das causas de
corrupção do saber: a inaptidão de muitos daqueles que se dedicam ao estudo e
ensino das disciplinas, o que muitas vezes se origina da ganância dos que ensinam
pela paga e aceitam alunos sem critério; a invenção de falsos dogmas, devido à
soberba e ao objetivo único de alcançar renome; as disputas estéreis, que visam à
derrota do oponente, e não ao crescimento intelectual através da verdadeira
doutrina; a ignorância do uso correto das línguas clássicas; a ação de copistas
55
“En todos tiempos, casi sin excepción, fueron los copistas hombres por lo general iletrados, que a
duras penas mantenían su indigencia transcribiendo libros; [...] Ocurría asimismo que los que
transcribían aquellos libros no sabían escribir y todo lo barajaban y confundían, [...] así que
depravaron el sentido recto y por un yerro que se empeñaban en expurgar, introduan cuatro.”
74
iletrados, que corromperam os textos antigos; e a ausência de uma análise filológica,
indispensável para a compreensão dos saberes oriundos da Antigüidade. Vimos
que, na maioria das vezes, as críticas elaboradas por Vives alfinetam os
escolásticos, e, na realidade, esse parece ser o objetivo central do primeiro livro de
“De las disciplinas”: apontar as falhas dos “adversários” e, concomitantemente,
reafirmar o ideal humanista para o estudo e o ensino das disciplinas. Vejamos,
agora, como esse ideal se concretiza no pensamento de Juan Luis Vives.
4.2. Ideal Vivista de Educação
Devemos destacar, primeiramente, o otimismo de Vives perante a situação
intelectual de sua época. Apesar de ter constatado e denunciado veementemente os
problemas pelos quais as diversas artes estavam passando, ele também se
debruçou sobre as soluções possíveis, apresentando, tanto no segundo livro de “De
las disciplinas”, quanto em outras obras de caráter pedagógico, suas concepções de
educação, baseadas em métodos e princípios humanistas. Aliás, Vives parecia
acreditar que, em breve, esses princípios iriam superar os dogmas escolásticos. Tal
esperança transparece no seguinte excerto:
Eu não posso chegar a convencer-me que esses portentos
extemporâneos, essa gangrena e essa peste vão durar muito. Assaz
e demasiado, por espaço de quinhentos anos e mais, infeccionaram
as mentes dos homens. [...] Nem sempre os homens estarão sujeitos
a esses vexames. O tempo mesmo arrancará o vicioso e trará
consigo o reto e o verdadeiro. (Contra los seudodialécticos, 1948,
p. 310).
56
Desse modo, percebemos que a idéia de um renascimento das disciplinas do saber,
e do próprio homem como agente do conhecimento, se faz presente na pedagogia
de Vives, assim como está na base do pensamento humanista em geral.
56
“Yo no puedo llegar a convencerme que esos portentos extemporáneos, esa gangrena y esa peste
vayan a durar mucho. Asaz y demasiado, por espacio de quinientos años y más, inficionaran las
mentes de los hombres. [...] No siempre los hombres estarán sujetos a esos vejámenes. El tiempo
mismo arrancará lo vicioso y traerá consigo o recto y lo verdadero.”
75
Como vimos, as disciplinas que fundamentavam a educação defendida pelo
Humanismo eram as de cunho literário e moralista, tais como a gramática, a retórica
e a filosofia moral. Vives não foge à regra. Seu ideal educativo valoriza os mesmos
saberes. A leitura, a escrita e a arte do bem falar, por exemplo, ocupam grande
espaço em suas obras. A linguagem, segundo o humanista, é um dom divino, que
separa hierarquicamente os homens dos animais; além disso, é um fator
indispensável na convivência humana. Sobre isso, ele comenta: “Deus deu a língua
aos homens para que fosse instrumento de comunicação e convivência a qual a
Natureza atrai ao homem e lhe mantêm em sociedade.” (Introducción a la
sabiduría, 1947, p. 1244).
57
Tendo em vista esses objetivos comunicação e boa convivência o ideal
vivista seria que toda a Humanidade falasse a mesma língua, ou ao menos que
existisse uma “língua ecumênica”, a qual todos os povos utilizariam. O latim, nesse
caso, é o idioma apontado pelo autor como o mais perfeito e mais douto. Ele diz:
Essa língua ideal parece-me ser a latina [...]. Esta língua tem a
vantagem de estar difundida por muitas gentes e nações, e de que
apenas arte ou ciência que não tenha nela seus monumentos
literários. Alem disto, é rica porque está muito cultivada, polida y
aperfeiçoada pelo engenho de toda uma plêiade de escritores [...].
Por todas estas causas e razões, deve aprender-se a língua latina
com o possível casticismo para que não se corrompa. (De las
disciplinas, 1948, p. 574-575).
58
Essa defesa do idioma do Lácio é, sem dúvida, um dos aspectos do pensamento
vivista que mais demonstram a sua inserção no movimento humanista. Devemos
destacar que Vives, devido à defesa de um estudo filológico das Escrituras, também
pregou a importância do grego e do hebraico, que, junto com o latim, formavam a
tríade das línguas clássicas. Além disso, ressaltou a necessidade, especialmente no
caso dos homens da Igreja, de se aprender o árabe e outros dialetos do mundo
muçulmano, com o objetivo de se propagar o Cristianismo entre os infiéis. Essa era,
57
“Dios dió la lengua a los hombres para que fuese instrumento de comunicación y convivencia a la
cual la Naturaleza atrae al hombre y le mantiene en sociedad.”
58
“Esa lengua ideal paréceme a mi ser la latina [...]. Esta lengua tiene la ventaja de estar difundida
por muchas gentes y naciones, y de que apenas hay arte o ciencia que no tenga en ella sus
monumentos literários. Allende de esto, es rica porque está muy cultivada, pulida y bruñida por el
ingenio de toda una pléyade de escritores [...]. Por todas estas causas y razones, debe aprenderse la
lengua latina con el posible casticismo porque no se corrompa.
76
afinal, uma necessidade cada vez mais presente no contexto de crise religiosa em
que Vives se encontrava.
Apesar da exaltação do latim como língua universal dos doutos, ao vernáculo
também é dada uma função importante na obra de Vives. Para o humanista, já que
primeiramente as crianças assimilam suangua materna, e mais tarde têm
contato com outros idiomas, elas devem aprender corretamente a sua própria língua,
para depois terem mais facilidade em aprender as outras. Os “Ejercícios de lengua
latina”, que, como vimos, tinham justamente o objetivo de ensinar os discípulos
iniciantes a falarem o latim, foram, por exemplo, escritos como lições de tradução
dupla. Segundo Riber (1947, p. 83), “[...] é provável que tenha sido Vives o primeiro
professor do Renascimento que preconizou o uso da língua materna no ensino
escolar; [...] porque era o mais breve e praticável atalho para aprender o latim”. Este
é, sem dúvida, um dos pontos de destaque da pedagogia vivista, por seu caráter
inovador.
A defesa da utilização do idioma vernáculo como meio mais apropriado para
se aprender e ensinar o latim apareceria, um século depois, de modo significativo
nas obras pedagógicas do pensador tcheco João Amós Comênio (1592-1670)
figura importante da história da educação no Seiscentos.
59
Segundo o que esse
autor diz na sua Didáctica Magna, editada em 1657, os discípulos “[...] não devem
aprender a língua vernácula através do latim, mas devem aprender o latim mediante
a língua vernácula, que conhecem já” (COMÊNIO, 1996, p. 238). Desse modo, aos
principiantes devia ser fornecido um dicionário vernáculo-latino, e não o contrário;
além disso, os mestres tinham de ser, preferencialmente, da mesma nacionalidade
de seus alunos, ou, no caso de ser estrangeiro, deviam conhecer bem a língua a ser
ensinada. É claro que a sociedade do século XVII, devido ao próprio movimento da
História, apresentava algumas necessidades diferentes daquelas que Vives
enfrentava no Quinhentos. Assim sendo, várias são as diferenças entre o
pensamento pedagógico desses dois eruditos. No entanto, muitas das idéias
defendidas por Comênio, ou outros pensadores de sua época, já aparecem mais ou
menos desenvolvidas nas obras de humanistas como Vives, o que evidencia certa
continuidade entre o Renascimento e o Século da Razão, e destaca a amplitude das
59
Para uma análise da pedagogia de Comênio, ver: GASPARIN, João Luiz. Comênio ou da arte de
ensinar tudo a todos, 1994.
77
reflexões feitas por o autor. Deve-se ressaltar que as obras vivistas foram lidas com
especial atenção por Comênio, pois estavam entre as suas preferidas (GOMES,
1996).
Além de salientar a importante função da linguagem, vernácula e latina, Vives
apresenta recomendações essenciais para a garantia de boas condições de ensino
e de aprendizagem dos fundamentos da leitura, da escrita e, conseqüentemente, da
boa expressão. Inicialmente, constata que a primeira coisa aprendida pelo homem é
a fala, portanto os pais devem desde cedo se preocupar em falar corretamente perto
de seus filhos, além de cuidar para que amas-de-leite, aios, outros empregados e
parentes, que convivam com as crianças, tamm se expressem de modo coerente.
Essa preocupação do humanista pressupõe, como percebemos, a idéia de que as
crianças aprendem, em parte, por imitação, o que gera a necessidade do cuidado
com os comportamentos das pessoas mais próximas. Esse conselho pedagógico
caracterizou não apenas o pensamento humanista renascentista, mas tamm as
posteriores discussões acerca de educação. Novamente podemos citar Comênio,
para quem o cuidado e o ensino dos filhos cabiam aos pais, em primeiro lugar, e aos
mestres. Sobre o assunto, ele afirma:
Os pais, as amas, os professores e os condiscípulos dêem exemplos
de vida disciplinada, que, como faróis, brilhem sempre diante das
crianças. Com efeito, as crianças são macaquinhos impacientes por
imitar tudo o que vêem, o bem como o mal, sem que seja preciso
mandar-lho; [...] Se, portanto, os pais forem probos e fiéis guardiões
da disciplina doméstica, e os professores forem realmente homens
de eleição, admiráveis pelos seus costumes, teremos o meio
maravilhoso de impelir fortemente os alunos para uma vida honesta.
(COMÊNIO, 1996, p. 349).
Podemos encontrar essa mesma idéia nas reflexões pedagógicas de três
importantes autores que viveram entre os culos XVII e XVIII, a saber: o português
Alexandre de Gusmão (1695-1753), o francês François Fénelon (1651-1715) e o
inglês John Locke (1632-1704). Antônio Gomes Ferreira (1988), ao comparar as
propostas educacionais destes três pensadores, destaca, como um dos pontos
comuns entre eles, a atribuição aos pais e aos professores da responsabilidade pela
educação das crianças, além da mesma preocupação de Vives quanto ao
comportamento daqueles que servem de modelo para a infância, seja em seu
aspecto intelectual ou moral.
78
No que diz respeito especificamente ao aprendizado no campo literário, os
mestres devem, segundo o humanista, observar diligentemente a forma de
expressão de seus discípulos e corrigi-la quando necessário. Para que realizem
essa tarefa com maior competência, devem dominar exemplarmente a língua
vernácula dos pupilos, pois, como vimos, através dela podem ensinar melhor as
línguas cultas, especialmente o latim e o grego. Os meninos devem se dedicar ao
estudo das línguas, preferencialmente, entre os sete e os quinze anos, enquanto
não apresentam o intelecto suficientemente formado para o aprendizado das outras
disciplinas. Aliás, Vives, assim como seu amigo Erasmo, considera as línguas
clássicas como portas de entrada para as demais artes, especialmente aquelas que
se manifestam nas obras dos grandes autores da Antigüidade (De las disciplinas,
1948).
São as obras clássicas, inclusive, que fundamentam o modelo de formação
preconizado pelo humanista valenciano. No plano de estudos que elaborou para a
princesa Maria Tudor, por exemplo, em dois momentos Vives se põe a recomendar
as leituras ideais a serem realizadas para um bom aprendizado da gramática, bem
como para uma formação moral adequada. Dirige-se à princesa da seguinte forma:
“Os autores em que se exercitará deverão ser aqueles que à ocasião alinhem a
língua e os costumes, e que ensinem não somente o bem saber, mas sim o bem
viver”. (Pedagogía pueril, 1948, p. 326).
60
Dentre esses autores se encontram:
Catão, Tito Lívio, Cícero, Sêneca, Platão, Plutarco, e também autores cristãos, tais
como São Jerônimo e Santo Agostinho, entre outros. Vives ainda recomenda alguns
autores contemporâneos a ele, como, por exemplo, os seus colegas Erasmo de
Roterdã e Thomas More, e não deixa de se referir às Sagradas Escrituras,
aconselhando a sua leitura em dois momentos do dia, pelo menos: antes de dormir e
logo após se levantar (Pedagogía pueril, 1948).
Aconselhamentos parecidos faz Vives no plano de estudos que elaborou ao
menino Carlos Mountjoy, filho do Lorde inglês que conhecera em sua estada na
Inglaterra. Diz o humanista na dedicatória ao menino: “Em meus desejos de
demonstrar a teu pai [...] minha estimação pela singular benevolência que usou
sempre comigo, me formei o propósito de escrever-te algumas coisinhas acerca da
60
“Los autores en que se ejercitará deberán ser aquellos que a la vez aliñen la lengua y las
costumbres, y que enseñen no solamente a bien saber, sino a bien vivir”.
79
iniciação dos estudos, nos quais radica [...] a razão toda da erudição”. (Pedagogía
pueril, 1948, p. 327).
61
E com esse objetivo, Vives indica todos os grandes autores a
serem estudados pelo jovem nobre, tais como os latinos: Cícero, Plínio o Jovem, Tito
Lívio, Virgílio, Horácio, Sêneca, e os gregos: Isócrates, Demóstenes, Platão,
Aristóteles, Xenofonte, Teofrasto, Homero, Aristófanes, Sófocles, dentre outros.
Além dessas leituras, recomenda, para o estudo do grego, traduções ao latim
realizadas por autores contemporâneos, a saber: Tucídides, latinizado por Lorenzo
Valla, e Plutarco, interpretado por Guilherme Budé. (Pedagogia pueril, 1948).
Avaliando os dois planos de estudo, podemos comprovar dois aspectos da
pedagogia vivista: primeiro, a evidente admiração humanista à Antigüidade e aos
autores clássicos, e segundo, o maior volume e complexidade de leituras indicadas a
Carlos Mountjoy se comparado ao que foi recomendado à princesa Maria, além de
as referências a obras cristãs serem bem mais significativas no plano elaborado para
ela. Esse último aspecto apenas vem demonstrar o que já foi observado aqui: o ideal
renascentista de educação se voltava especialmente ao universo masculino,
enquanto às mulheres se dirigia uma instrução de cunho mais moralizante.
Voltemos às leituras que Vives considera indispensáveis para uma formação
ideal. Em “De las disciplinas”, ele aponta alguns autores, bem como a sua utilização
específica: Cícero, para o aperfeiçoamento da linguagem cotidiana, assim como
para a exortação aos bons costumes; Platão, para a elegância nos diálogos; Tito
Lívio, para o conhecimento da História; Cornélio cito, para um melhor
entendimento da política; Quintiliano, para o vocabulário e o aperfeiçoamento do
estilo; Homero, Virgílio, Horácio, Eurípides, Aristófanes e Terêncio, para a boa
literatura; Sêneca, para a dissolução de maus costumes; Plutarco, para
ensinamentos morais; Aristóteles, para o aprendizado do método e para uma
argumentação eficaz; e a lista continua, inclusive, com a recomendação das
traduções de textos clássicos feitas por Erasmo (De las disciplinas, 1948). Aliás,
esse é um aspecto a ser ressaltado na pedagogia vivista. Embora, como bom
humanista, Vives construa seu modelo de formação com base nos grandes autores
da Antigüidade, ele também propõe a leitura de autores modernos, quase todos
contemporâneos a ele, todos de características humanistas. Os mais
61
“En mis deseos de demonstrar a tu padre [...] mi estimación por la singular benevolencia que usó
siempre conmigo, me formé el propósito de escribirte algumas cosillas acerca de la iniciación de los
estudios, en los cuais radica [...] la razón toda de la erudición”.
80
insistentemente citados são: Francesco Petrarca, Lorenzo Valla, Angelo Poliziano
(1454-1494), Giovanni Pico della Mirandola (1463-1497), Guilherme Budé, Thomas
More e Erasmo de Roter(De las disciplinas, 1948). Estes três últimos, como
sabemos, foram grandes humanistas, além de importantes interlocutores de Vives.
Assim, podemos entender essa proposta do autor também como uma tentativa de
garantir que os ideais do Humanismo fossem veiculados.
Ainda no que diz respeito ao estudo dos clássicos apregoado por Vives, faz-
se necessário observar que o valenciano, como humanista cristão que era, via-se na
obrigação de justificar a utilização de autores pagãos, especialmente perante as
possíveis acusações de heresia. Ele admite que os livros pagãos possam ser
perigosos e os compara com um grande prado, onde existem ervas medicinais e
ervas tóxicas. Com isso, quer dizer que o resultado do estudo de tais obras depende
daqueles que com elas mantiverem contato. Desse modo, devem estudá-las apenas
os de juízo o, afastando-se os de espírito curioso em demasia, os ignorantes e os
desavisados. Estes devem ter sempre por perto um mestre dotado de erudição,
integridade e prudência para guiá-los (De las disciplinas, 1948). Para todos os que
se propõem a ler e a estudar os clássicos da Antigüidade, sem exceções, Vives
aconselha:
Aproxime-se à leitura dos escritores pagãos, como a uns prados
amenos de ver, mas de plantas venenosas, com uma prévia provisão
de contra-erva. Vás a estas leituras bem apercebido com o antídoto
destas e outras análogas reflexões: Que a religião junta ao homem
com Deus, que foi quem a inspirou e a ensinou; que tudo quanto o
homem excogitar está castigado de erros; que tudo o que vai contra
nossa santa crença tem sua origem e raiz na vaidade humana e nas
imposturas e fraudes do demônio, astuto e nosso inimigo mortal. [...]
Feito estas observações, aproximemo-nos aos autores de uma e
outra língua. (De las disciplinas, 1948, p. 592).
62
Assim, o que o humanista propõe é que o erudito, seja mestre ou discípulo, retire
dos autores pagãos todos os bons conhecimentos (estilo, elegância, vocabulário,
62
“Acérquese ya a la lectura de los escritores paganos, como a unos prados amenos de ver, pero de
plantas ponzoñosas, con una recia provisión de contrahierba. Vaya a estas lecturas bien apercibido
con el antídoto de estas y otras análogas reflexiones: Que la religión junta al hombre con Dios, que
fquien la inspiró y la enseñó; que todo cuanto el hombre excogitare está plagado de errores; que
todo lo que va contra nuestra santa creencia tiene su origen y raíz en la vanidad humana y en las
imposturas y fraudes del demonio, astuto y mortal enemigo nuestro. [...] Hecho estos apercibimientos,
acerquémonos a los autores de una y otra lengua.”
81
exemplos de eloqüência, modelos de virtudes, etc.) e feche os olhos” para todas as
referências contrárias à religião cristã. Até porque, segundo Vives, muitos foram os
gentis virtuosos, aos quais os cristãos deveriam imitar, independentemente de
orientação religiosa. (Introducción a la sabiduría, 1947). Um posicionamento
parecido, mas muito mais rigoroso quanto ao paganismo das obras antigas,
caracterizou a ideologia da Contra-Reforma. Os jesuítas, por exemplo, apesar da
influência humanista, fizeram uso mais formal dos clássicos da Antigüidade,
tentando esvaziá-los de qualquer conteúdo pagão. (DÜRKHEIM, 1995; BOTO,
2002).
Apresentadas as concepções vivistas acerca da educação de caráter literário,
com fortes traços moralizantes, vejamos agora como deveria se concretizar essa
educação, ou seja, como ela se organizaria em termos mais práticos. Primeiramente,
falemos da idade ideal para o início dos estudos. Para o estudo das línguas
clássicas, como vimos, a recomendação é a de que o discípulo inicie o curso aos
sete anos e termine, aproximadamente, aos quinze, pois essa é a idade em que o
jovem deve ingressar em uma Academia ou Universidade e se dedicar ao
aprendizado das disciplinas mais avançadas, de acordo com os seus interesses e
aptidões. Isso se aplica à educação formal. Todavia, para boa parte dos humanistas,
a instrução nos bons costumes e na língua materna deveria se iniciar desde a mais
tenra idade, ou, melhor dizendo, na amamentação. Segundo Buescu (1998), a
exortação ao aleitamento materno e, em conseqüência, a condenação do papel das
amas-de-leite, se fortaleceu no século XVI devido ao discurso moralista do ideal de
feminilidade, do qual a comentada “Formación de la mujer...” é um bom exemplo.
Nesse discurso, como sabemos, os deveres da mulher se concretizam em ser
esposa obediente e mãe perfeita, o que inclui não apenas amamentar os filhos,
transmitindo-lhes, através desse íntimo contato cotidiano, os bons costumes
aristocráticos (BUESCU, 1998), como também introduzir as crianças nos primeiros
rudimentos da linguagem. Sobre essas questões, Vives faz as seguintes
recomendações às mulheres:
Amamentará a seus filhos, se puder, com o suco de seu próprio
peito, e obedecerá a voz imperativa da Natureza. [...] aproveita mais
a criança o leite materno que o leite da ama-de-leite. [...] porque a
ama não poucas vezes o peito à criatura de vontade ou com
nojo, e, ao contrário, a mãe sempre o faz disposta e alegre [...]. Se a
mãe sabe letras, ensinará ela mesma a seus filhos pequeninos [...] A
82
criança, primeiro que a ninguém, ouve a sua mãe [...]. Como a idade
infantil não faz outra coisa senão imitar, e neste ponto é
incrivelmente hábil, seu primeiro exercício e a primeira formação de
seu pensamento toma-os do que de sua e ouve ou vê. Por esta
maneira que as mães têm muito mais influência do que se pode
pensar na formação inicial dos costumes das crianças. (Formación
de la mujer..., 1947, p. 1139-1140).
63
Essa função essencial reservada às mães não aparece exclusivamente no
pensamento de Vives, pois se insere no contexto mais amplo de valorização da
infância e do sentimento familiar, pelo qual a sociedade estava passando. O tema,
portanto, faz parte da pedagogia humanista em geral, permanecendo, inclusive, nas
posteriores discussões sobre educação. Erasmo, por exemplo, atribuía às mães o
papel de iniciar as crianças no mundo da linguagem, pois “[...] assim poderiam
exercer com plenitude a maternidade, que, para ele, inclui tamm a
responsabilidade pela introdução ao mundo da cultura”. (ARNAUT DE TOLEDO,
2004a, p. 92-93). O jesuíta Alexandre de Gusmão, em sua obra Arte de criar bem os
filhos na idade da puerícia (1685), tamm valorizava esse contato entre a mãe e os
filhos, condenando a crueldade daquelas que se recusavam a amamentar.
(FERREIRA, 1988). Desse modo, a tarefa da primeira formação, a começar já no ato
da amamentação, é imputada às mães, pelo menos até a criança atingir os três
anos, pois nessa idade alguns pais já providenciavam a companhia de aios ou até
mesmo de mestres.
No entanto, é preciso fazer uma importante observação: a veemente
insistência no tema do aleitamento materno denota a pouca aceitação que essa
prática tinha entre as mulheres da aristocracia. Isso se dava, entre outros motivos,
porque amamentar o próprio filho era um costume visto como típico das classes
inferiores. Inclusive, de acordo com Buescu (1998, p. 351), “[...] apesar do caráter
sistemático deste discurso de advertência, o aleitamento materno em substituição do
63
“Amamantará a sus hijos, si pudiera, con el jugo de su proprio pecho, y obedece a la voz
imperativa de la Naturaleza. [...] aprovecha más al niño la leche materna que la leche de la nodriza.
[...] porque el ama no pocas veces da el pecho a la criatura de mala gana o con enojo, y, al contrario,
la madre siempre lo hace dispuesta y alegre [...]. Si la madre sabe letras, enséñelas ella misma a sus
hijos pequeñuelos [...] El niño, primero que a nadie, oye a su madre [...]. Como a edad infantil no hace
outra cosa sino remedar, y en este punto es increíblemente hábil, su primer ejercicio y la primera
formación de su pensamiento malos de lo que en su madre oye o ve. Por manera que las madres
tienen mucha más influencia de lo que se puede pensar en la formación inicial de las costumbres de
los niños.”
83
recurso às amas de leite [...] não penetrou de forma significativa nas elites sociais no
século XVI e mesmo no século XVII”.
Determinadas as idades propícias a cada fase do processo de formação
idealizado por Vives, passemos ao local adequado aos estudos. No que diz respeito
a esse aspecto, o humanista se revela favorável a uma educação realizada em casa,
sob os cuidados e a vigilância da família. Tal opção, tipicamente aristocrática,
possibilitaria maiores benefícios aos estudantes, e também aos pais, devido a uma
série de fatores, a saber: a convivência do discípulo com pessoas mais velhas,
portanto mais sábias e experientes; o estreitamento do amor mútuo entre pai e filho,
por conta da proximidade; a conservação, por parte do pai, da obediência que lhe
deve o filho; a imposição do respeito e, por vezes, do medo, quando necessário for
para repelir os vícios e garantir a boa conduta da criança; a proximidade com amigos
e parentes que possam auxiliar no processo educativo; a inibição, pela autoridade
do pai, da influência de más companhias; e, até mesmo, o fato de ser uma opção
mais econômica. No entanto, para que a educação pudesse ocorrer em casa, duas
condições se faziam necessárias: a contratação de um preceptor sábio e virtuoso, e
a garantia da convivência somente com pessoas dignas de serem imitadas. Caso a
família não pudesse pagar tais aulas particulares, ou percebesse algum mau
exemplo dentre os familiares mais próximos, melhor seria enviar os filhos a uma
escola pública (De las disciplinas, 1948).
Nesse caso, Vives faz algumas ressalvas. Muitas são as escolas em que ele
detecta problemas, tais como a insalubridade do local, a oferta de má alimentação, a
indisciplina resultante da frouxidão de alguns preceptores, os ambientes corrompidos
pela avareza de certos mestres que, interessados na paga, não se utilizam da
devida firmeza na instrução dos jovens, entre outros. Por isso, antes de mandar os
filhos para a escola pública de sua cidade ou região, os pais deveriam,
primeiramente, prestar atenção nos costumes por eles apresentados, para verificar
se a formação inicial foi sólida o bastante para mantê-los afastados dos vícios, e
também observar a situação da escola, bem como a fama de seus preceptores.
Caso o resultado dessas investigações fosse negativo, o melhor a fazer seria
procurar uma outra escola para o jovem pupilo, ainda que distante de sua casa
muitas vezes, em outro país (De las disciplinas, 1948). Essa não era, inclusive,
uma prática incomum. Como vimos, o próprio Vives terminou seus estudos em Paris,
longe de sua querida Valência.
84
Todavia, o humanista não se contentou apenas em fazer críticas ao sistema
escolar de sua época ou em aconselhar os pais, ele tamm apresentou as suas
próprias concepções acerca das características de uma escola ideal, no que se
refere aos aspectos sicos e aos recursos humanos. A começar pelo local
apropriado para a instalação desse centro educativo, Vives faz algumas exigências.
Primeiramente, é preciso observar se o lugar escolhido apresenta alguma
insalubridade, que venha a colocar em risco a saúde dos estudantes através de
epidemias e pestes, pois “[...] é mister que gozem de boa saúde quem de pôr
honradez e diligência no estudo das diferentes disciplinas” (De las disciplinas,
1948, p. 551);
64
pelo mesmo motivo, é necessário que tal paragem ofereça
abundância de bons alimentos, que sirvam para as refeições cotidianas. Outra
observação a se fazer diz respeito à circulação de pessoas nas proximidades da
escola. Quanto a esse aspecto, o ideal seria um local distante do barulho dos
centros urbanos, mas não totalmente despovoado a ponto de se tornar perigoso.
Especificamente sobre a vizinhança, o humanista diz: “Eu queria que os moradores
dessa população escolar fossem rios, honrados, merecedores do respeito da grei
estudantil” (De las disciplinas, 1948, p. 551).
65
Por fim, a escola deveria ser,
preferencialmente, afastada das Cortes, por conta da ociosidade reinante entre os
cortesãos e, principalmente, das mulheres jovens e bonitas, que poderiam vir a
distrair os estudantes. Sobre o cuidado na escolha do local adequado aos estudos,
conclui Vives:
Que ninguém se entranhe de que com tanta minuciosidade se
busque o lugar onde nasça e cresça a sabedoria, quando com
cuidado tal buscamos o lugar onde colocar a colméia às abelhas que
nos vão dar seu mel, preço farto menor que o da sabedoria. (De las
disciplinas, 1948, p. 552).
66
64
“[...] es menester que gocen de buena salud quines han de poner honradez, diligencia y afán en el
estudio de las diferentes disciplinas”.
65
“Yo querría que los moradores de esa población escolar fuesen serios, honrados, merecedores del
respeto de la grey estudantil”.
66
“Que nadie se extrañe de que con tanta minuciosidad se busque el lugar donde nazca y crezca la
sabiduría, cuando con cuidado tal buscamos el sítio donde poner la colmena a las abejas que nos
han de dar su miel, precio harto menor que el de la sabiduría.”
85
O tema do lugar ideal para a instalação de escolas tamm aparece nas reflexões
de Fénelon, que propunha um “[...] ambiente aprazível e agradável, onde as crianças
pudessem gozar uma aparente liberdade e ter, por vezes, as suas naturais
distrações e os seus pequenos divertimentos” (FERREIRA, 1988, p. 273), e nas de
Comênio (1996, p. 225), que, em maior concordância com Vives, pretendia um “[...]
local tranqüilo, afastado dos ruídos e das distrações”.
Tão importante quanto a localização da escola, ou até mais, é a escolha dos
mestres que nela devem atuar. Vives dedica, em seus escritos pedagógicos,
bastante espaço para todos os aspectos relacionados àqueles que são os
responsáveis pela formação das crianças e dos jovens. Falemos, primeiramente, do
processo de seleção dos mestres. Segundo o humanista, poderiam ser
designados a ensinar aqueles homens sábios e prudentes, cujos conhecimentos e
moralidade fossem aprovados por todos. Os graus honoríficos de mestre ou doutor
só poderiam ser ofertados àqueles que comprovassem, mediante aulas destinadas a
um público culto, a sua capacidade de ensinar esta ou aquela disciplina. O
julgamento e a escolha dos mestres não deveriam ficar, de modo algum, a cargo dos
estudantes, para que não houvesse o risco de compra de votos; além disso, a
escolha dos jovens levaria em consideração, muito provavelmente, a simpatia e a
indulgência, e não o caráter e a erudição. Assim, Vives propõe que os professores
sejam “[...] escolhidos e aprovados, não pelos sufrágios da garotada estudantil,
imperita e sem desbastar, mas sim por raros e prudentes varões profissionais do
ensino, conspícuos por sua erudição e a limpeza de sua vida.” (De las disciplinas,
1948, p. 555).
67
É justamente por essa preocupação com a corrupção dos mestres, muitas
vezes seduzidos pelo dinheiro de seus discípulos, que Vives pede fervorosamente
que se retire das escolas toda e qualquer ocasião de lucro, deixando, inclusive, o
salário dos professores a cargo do dinheiro público. Nesse ponto, o humanista
novamente se alinha às concepções erasmianas, dentre as quais podemos destacar
a defesa do caráter público da educação defesa esta que antecipa a posterior
organização das escolas modernas (ARNAUT DE TOLEDO, 2004a, p. 93).
67
“[...] elegidos y aprobados, no por los sufragios de la muchachada estudantil, imperita y sin
desbastar, sino por contados y sesudos varones profesionales de la enseñanza, conspicuos por su
erudición y la limpieza de su vida.”
86
Ainda sobre o caráter e o comportamento ideal dos mestres, ponto tratado
insistentemente por Vives, podemos dizer que deles era exigido um conjunto de
predicados e virtudes, a saber: competência para ensinar, destreza, pureza de
costumes, prudência, amor às boas letras, além da ausência de dois gravíssimos
vícios: a avareza e a ambição. Podemos destacar, ainda, a necessidade de que os
responsáveis pelo ensino não dissessem, e nem fizessem, nada que viesse a
escandalizar aos seus discípulos, pois, como guias da juventude, suas ações
deveriam servir de exemplo e modelo. Aliás, os mestres somente alcançariam o
respeito e a obediência desejados, se conseguissem conquistar a admiração de
seus alunos (De las disciplinas, 1948).
Essa preocupação vivista com o mestre ideal aparece constantemente em
várias obras humanistas de caráter pedagógico. Ana Isabel Buescu (1998), ao
analisar o Libro primero del espejo dl principe christiano (1544), obra do espanhol
Francisco de Monçon, comenta o já citado gênero de “espelhos de príncipes”, bem
como os ideais de educação que eram apregoados aos jovens da nobreza. Entre os
aspectos destacados pela autora, encontra-se a questão do perfil ideal dos mestres.
Sobre esse tema, ela nos revela:
[...] o mestre deve ter boa presença física e ser possuidor de graças
naturais e sem defeitos físicos demasiado evidentes, nomeadamente
no andar e no falar, uma vez que constituirá, de certa maneira, um
modelo [...]; deve também ser virtuoso, de costumes honestos,
piedoso, devoto e cumpridor dos seus deveres de ofício; convém que
seja sábio e dotado de sólida erudição [...]; deve ser experiente e
vigilante em tudo o que diz respeito à formação de seu discípulo.
(BUESCU, 1998, p. 353).
Essa fórmula caracteriza não apenas a obra de Monçon, mas os tratados sobre a
educação de príncipes em geral. João Adolfo Hansen (2002), por exemplo, em um
estudo sobre “espelhos” produzidos nos culos XVI e XVII, apresenta uma
descrição dos mestres muito próxima à que Buescu revela em sua análise.
Aliás, nas obras pedagógicas situadas entre o Renascimento e o século XVII,
a temática do mestre ideal é uma constante, independentemente de o discípulo
pertencer à Casa Real, e ocupa algumas páginas dos tratados educacionais.
Contemporâneo a Vives, Erasmo demonstra grande preocupação com a figura do
preceptor. Além de todas as características comentadas acima, ele acrescenta
outras, que vão desde a discrição das roupas a o afeto devido aos discípulos
87
(ARNAUT DE TOLEDO, 2004a, p. 93). Inclusive, este último requisito, como
veremos mais adiante, ocupa um lugar especial na pedagogia vivista. Nos escritos
de autores do Seiscentos e de início do Setecentos, como os já citados Comênio,
Gusmão, Fénelon e Locke, as menções ao cuidado na escolha de professores,
especialmente quanto à sua conduta moral e à sua excelente erudição, também
aparecem com freqüência (FERREIRA, 1988).
Passemos agora à observação de um derradeiro aspecto da preocupação de
Vives com os mestres, que é o fato de ele exigir qualidades específicas dos
responsáveis pelo ensino de algumas disciplinas. No caso do professor de
gramática, por exemplo, o humanista requer um comportamento afável para com os
alunos, pois detecta nos preceptores dessa arte uma atitude geral de arrogância,
que viria a causar o ódio dos jovens pupilos; am da afabilidade, que não significa a
perda de autoridade, exige hábitos honestos e intenso conhecimento literário. Já aos
mestres de retórica e dialética, Vives afirma ser necessário o vasto domínio dos
recursos da palavra, e tamm um engenho agudo e são, entendido em todo gênero
de disciplinas. No caso das investigações metafísicas, o humanista prescreve um
professor diligente, comedido, humilde e amante da verdade; alerta, ainda, que tal
investigação tão ambiciosa não serve aos ânimos frívolos, devido à sua importância.
Recomenda, também, prudência, moderação e probidade de costumes para aqueles
que se dedicam à medicina, e conhecimento das filosofias natural e moral, além de
bondade e eqüidade, àqueles que se dedicam à elaboração das leis (De las
disciplinas, 1948). Por fim, uma das descrições mais minuciosas é a do mestre de
filosofia moral. Sobre ele, Vives nos diz:
O preceptor, na profissão desta disciplina, se mostrará íntegro,
incorrupto, sem concessão nenhuma à vaidosa ostentação;
devidamente informado, não em muitas disciplinas, mas sim
exemplar na vida prática. De tal maneira ensinará os preceitos do
bom viver, que seus discípulos não somente os aprendam, mas sim
que estimulados por seu exemplo se animem ao bem obrar. Se
cheia de doutrina sua palavra, será eficaz, afiançada e autorizada
com gravidade de sentenças e exemplaridade de atos. (De las
disciplinas, 1948, p. 660).
68
68
“El preceptor, en la profesión de esta disciplina, se mostrará íntegro, incorrupto, sin concesión
ninguna al vanidoso alarde; debidamente informado, no lo en muchas disciplinas, sino ejemplar en
la vida práctica. De tal manera enseñará los preceptos del bien vivir, que sus discípulos no solamente
88
Assim, o que podemos perceber é que as exigências de Vives, bem como as dos
humanistas e seus herdeiros do Seiscentos, seguem geralmente um mesmo padrão
e giram em torno de dois pontos centrais: erudição e moralidade.
Tratamos, acima, da idade propícia a cada fase dos estudos, bem como do
local adequado às instalações escolares e do mestre ideal. Seguindo o modelo
pedagógico de Juan Luis Vives, falemos agora dos métodos de ensino a serem
desenvolvidos. Primeiramente, devemos atentar para uma condição que, segundo o
humanista, seria indispensável ao processo de ensino-aprendizagem: o amor dos
mestres por seus discípulos. Tal sentimento deveria se caracterizar por um afeto de
pai, porém, sem a cegueira originada dos laços sangüíneos. Os pais, alerta Vives,
muitas vezes são cegos para os vícios dos filhos, mas os mestres, apesar de
amorosos, devem estar atentos à correção de seus alunos. O afeto facilitaria, de
acordo com o humanista, o intenso, e às vezes difícil, ato de ensinar (De las
disciplinas, 1948). Todavia, para uma maior eficácia no aprendizado, o sentimento
deveria ser recíproco, ou seja, os discípulos tamm teriam de devotar amor aos
seus mestres, demonstrando-o, especialmente, através do respeito. Sobre esse
tema, Vives foi categórico ao alertar o jovem Carlos Mountjoy:
O professor há de ser amado, venerado e respeitado como se fosse
o pai, pois, em feito de verdade, os professores nos oferecem uma
certa semelhança dos pais; e de ninguém podes receber benefício
maior como daquele que te faz melhor e mais instruído. [...].
Acrescenta-se a isto que aprenderás com maior facilidade se
professares amor ao que te ensina, posto que nunca desprezarás
nem descuidarás suas doutrinas; [...]. E não somente lhe há de amar,
mas também esforçar para que ele te ame, e assim colocará em
ensinar-te um interesse mais carinhoso. (Pedagogia pueril, 1948, p.
328).
69
A valorização do mestre aparece, ainda, no diálogo XII dos “Ejercícios de la lengua
latina”, no qual o personagem Espudeo, ao apresentar uma escola a Tiro, seu
los aprendan, sino que estimulados por su ejemplo se animen al bien obrar. Será llena de doctrina su
palabra, será eficaz, afianzada y autorizada com gravedad de sentencias y ejemplaridad de actos.
69
“El maestro ha de ser amado, venerado, respetado como si fuera el padre, pues, en hecho de
verdad, los maestros nos ofrecen como una cierta semblanza de los padres; y de nadie puedes recibir
beneficio mayor como de aquel que te hace mejor y más instruído. [...]. Añadase a esto que
aprenderás con mayor facilidad si profesares amor al que te enseña, puesto que nunca despreciarás
ni descuidarás sus doctrinas; [...]. Y no solamente le has de amar, sino también esforzarte porque él
te ame, y así pondrá en enseñarte un interés más cariñoso.”
89
interlocutor, diz: [...] Deus criou a todo o homem; o pai gerou o corpo; o professor
forma a alma” (1948, p. 920).
70
Por essa função tão nobre, bem como pela
contribuição ao processo educativo, o amor mútuo entre professor e aluno foi
preconizado por Vives.
Ainda no âmbito desta relação afetuosa, mas firme, do mestre para com o
discípulo, encontramos outro aspecto metodológico da pedagogia vivista: o
abrandamento dos castigos físicos. A prática de castigar fisicamente os estudantes,
por conta de seus erros e indisciplinas, era comum no sistema educativo da
Antigüidade, e permaneceu por toda a Idade Média como parte das atividades
pedagógicas, embora algumas vozes dissonantes se levantassem contra essa
realidade (BUESCU, 1998). Ainda que tal prática tenha perdurado na Modernidade,
devemos destacar o fato de que os humanistas falaram contra ela. No caso de
Vives, não podemos dizer que ele tenha condenado veementemente os castigos
físicos em toda e qualquer situação, pelo contrário, ele até previa ocasiões,
consideradas extremas, em que tal método deveria ser utilizado, porém, sempre com
brandura (RIBER, 1947). Sua posição sobre esse “recurso metodológicofica clara
no seguinte trecho:
[...] dado caso que ao engenho do homem lhe deprimem e pioram as
paixões excitadas, há que reprimir e deter aquele movimento
inconsiderado com repreensões, com castigos verbais e, se
necessário for, com alguma sansão aflitiva para que, como acontece
com as bestas indomadas, lhe traga ao bom caminho a dor física,
posto que a razão não lhe bastou. Apesar do que digo, eu queria que
esse castigo fosse o mais brando possível, não duro, não próprio do
escravo [...]. Depois das ameaças, se a criança não for dócil, venham
às varas, mas com tal comedimento, que seu corpo terno sinta a
presente ardência, mas que não lhe deixe ulterior machucado. (De
las disciplinas, 1948, p. 589).
71
70
“[...] Dios creó a todo el hombre; el padre engendró el cuerpo; el maestro forma el alma”.
71
“[...] dado caso que al ingenio del hombre le deprimen y empeoran las pasiones excitadas, hay que
reprimir y atajar aquel movimiento inconsiderado con reprensiones, con castigos verbales y, si
menester fuere, con alguna sanción aflictiva para que, como acontece con las bestias cerriles, le
traiga al buen camino el dolor físico, puesto que la razón no le bastó. A pesar de lo que digo, yo
querría que esse castigo fuera todo lo blando posible, no duro, no próprio del esclavo [...]. Después
de las amenazas, si el niño no fuera dócil, vengan los palos, pero con tal comedimiento, que su
cuerpo tiernecito sienta el presente escozor, pero que no le deje ulterior escocedura.”
90
Desse modo, o que temos é que os castigos físicos, como parte do processo de
ensino e aprendizagem, o constituíam para Vives uma regra, mas um recurso a
ser utilizado, com moderação, em último caso.
Segundo Dürkheim (1995), esses castigos encrudeceram a partir do culo
XIV, caracterizando a disciplina dos Colégios
72
que começavam a se propagar pela
Europa, e permaneceram por todo o Antigo Regime. Isso explicaria a insistência dos
humanistas, bem como de pedagogos dos séculos seguintes, em discutir o tema nos
seus escritos sobre educação. Vejamos alguns exemplos. Em seu já citado “espelho
de príncipe”, o espanhol Francisco de Monçon propunha que o ensino ocorresse
sem medo e livre dos castigos, que só seriam aceitos em casos extremos de
inclinação para os vícios. A atitude mais correta, segundo ele, seria estimular a
aprendizagem com a atribuição de prêmios (BUESCU, 1998). Tal metodologia,
inclusive, fez parte da pedagogia moderna e se encontra presente nas escolas
contemporâneas. Também Comênio se debruçou sobre o tema aqui tratado. Em sua
Didáctica Magna (1996, p. 164) ele aconselha que a educação “[...] se faça sem
pancadas, sem violências e sem qualquer constrangimento, com a máxima
delicadeza, com a máxima doçura e como que espontâneamente”. Todavia, pre
(p. 405): “[...] se houver algum aluno com um espírito tão infeliz para quem estes
remédios suaves não sejam suficientes, importa recorrer a remédios mais violentos”.
É praticamente o mesmo posicionamento que encontramos em Gusmão e Fénelon,
sendo o primeiro um pouco mais suscetível à aceitação dos castigos moderados, e o
segundo mais apreensivo quanto à questão, pois visava a um ensino atraente e
agradável, em que o recurso aos corretivos mais austeros “[...] só deveria ser
empregue depois de se terem pacientemente esgotado os outros remédios”
(FERREIRA, 1988, p. 273). Temos, ainda, em uma linha de pensamento próxima à
Fénelon, o inglês John Locke, que defendia a idéia de que a severidade nos castigos
poderia abater a vitalidade mental dos discípulos (LAGO, 2002, p. 97).
Além do abrandamento dos castigos, outro ponto fundamental do ideal
educativo de Vives, no que se refere à metodologia de ensino, é a necessidade de
que o mestre identifique as particularidades intelectuais de cada aluno, bem como
72
Os primeiros Colégios surgiram no século XIII, como estalagens para estudantes pobres. No início,
ocupavam os anexos de um hospital ou casa religiosa. Depois, com o ingresso de estudantes
abastados, que pagavam pela estadia, esses locais foram se transformando em grandes fundações.
Ver: DÜRKHEIM, op. cit., p. 100-121.
91
suas capacidades gerais. Esta avaliação deveria ser feita, inclusive, no início da vida
escolar das crianças, para que, com base em seus resultados, os preceptores
pudessem orientar a cada uma delas mais acertadamente, de acordo com as suas
aptidões. Segundo o humanista, existem discípulos mais diligentes, outros mais
desatentos; uns mais perspicazes, outros de entendimento mais vagaroso; e assim
por diante. A cada um se faz necessário um tipo de instrução, de acordo com as
exigências de cada disciplina (De las disciplinas, 1948). Alguns alunos se mostram
aptos a atividades manuais, outros preferem as matérias de especulação, e cabe ao
mestre lhes ensinar em conformidade com o melhor aproveitamento do engenho.
Sobre o tema, Vives é taxativo:
Importa muito averiguar, com a mais aguda perspicácia, qual seja o
impulso vocacional do engenho do menino. Os sábios aconselham
que este exame prévio se faça na eleição de qualquer profissão e
estado para que cada qual se aplique àquela ocupação a que lhe
leva a própria inclinação de sua natureza [...]”. (De las disciplinas,
1948, p. 626-627).
73
Para o conhecimento da vocação de seu discípulo, o mestre deveria, segundo
Vives, exercitá-lo em todos os tipos de atividades que pudessem demonstrar a
capacidade de seu engenho. Poderia utilizar, por exemplo, a aritmética para testar a
agudeza de raciocínio do aluno, ou os jogos para avaliar seu espírito de liderança.
As causas da existência de tão variados engenhos são, conforme o humanista,
basicamente três: a constituição física do indivíduo, os costumes e bitos de cada
região, e os mistérios do Criador, que imprimiu tanta diversidade ao ser humano.
Todavia, independentemente das diferenças, os mestres deveriam atentar para o
fato de que um engenho pode vir a mudar. Por isso, Vives recomenda que eles se
reúnam secretamente, ao menos quatro vezes ao ano, para discutir sobre as
possibilidades vocacionais de seus discípulos, bem como para “[...] tratar da arte a
que devem aplicar a cada um segundo a idoneidade que demonstrarem”. (De las
73
“Importa muy mucho averiguar, con la más aguda perspicacia, cuál sea el impulso vocacional del
ingenio del muchacho. Los sabios aconsejan que este examen previo se haga en la elección de
cualquiera profesión y estado para que cada cual se aplique a aquella ocupación a que le lleva la
propia inclinación de su naturaleza [...].”
92
disciplinas, 1948, p. 556).
74
Tal recomendação nos faz lembrar, certamente, do
“conselho de classe” – recurso pedagógico recorrente nas escolas contemporâneas.
Este aspecto metodológico da pedagogia vivista se encontra, mais uma vez,
intimamente relacionado com o modelo geral de educação humanista, mostrando-
nos a profunda inserção de Vives nesse movimento intelectual. Segundo Buescu
(1998), conhecer plenamente as inclinações de seu discípulo era um dever dos
mestres, que se achava presente na obra de Monçon, bem como em qualquer
roteiro pedagógico humanista. A preocupação central deveria girar em torno da
conciliação das disposições naturais dos pupilos com a instrução a ser ministrada.
De acordo com a autora, o objetivo máximo do conhecimento da natureza dos
alunos era “[...] nela poderem ser inculcadas, através do ensino e da doutrina
aperfeiçoando-a ou modificando-a as virtudes e os bons costumes”. (BUESCU,
1998, p. 348). No século XVII, Gusmão, Locke e Fénelon trataram do assunto,
expressando essas opiniões. Segundo este último, por exemplo, “[...] era muito
importante que se visse se os temperamentos das crianças eram vivos, indolentes
ou dissimulados, para depois se adequar a educação à índole de cada um
(FERREIRA, 1988, p. 274).
A afetividade, o abrandamento dos castigos físicos e o conhecimento das
aptidões de cada aluno são aspectos importantes da pedagogia vivista, que, como
vimos, encontram-se presentes em outros humanistas e em pedagogos de épocas
posteriores. Tais aspectos revelam-nos uma tendência, característica da
Modernidade, à valorização dos sentimentos, do indivíduo, das particularidades
humanas, enfim, de uma maior subjetividade. Dentro dessa tendência, e a partir da
nova sensibilidade em relação à infância, temos o surgimento da necessidade de
reconhecer a natureza própria da criança, e, depois, estudar os meios mais
eficientes para a sua formação. Desse modo é que podemos entender a afirmação
de que, no Humanismo, a "[...] procura por uma pedagogia mais humana
correspondia tamm à busca de um modelo de ensino mais eficaz." (BOTO, 2002,
p. 16).
Além das propostas metodológicas que acabamos de discutir, outro ponto
importante da pedagogia vivista, no tocante ao modo ideal de se alcançar o
conhecimento e de transmiti-lo, é a defesa do método indutivo. Como sabemos, ao
74
“[...] tratar del arte a que deben aplicar a cada uno según la idoneidad que demostraren”.
93
contrário da dedução método em que se parte de leis gerais para, através do
raciocínio, chegar a uma conclusão a indução consiste em auferir leis gerais a
partir da análise de fatos particulares. E Vives preconiza justamente este meio de se
obter o conhecimento, sugerindo que, em qualquer campo do saber, sempre se
inicie os estudos pelos aspectos mais simples e elementares, que possam ser
comprovados pelos sentidos, até chegar aos mais complexos e gerais. Vemos essa
orientação metodológica se concretizar em várias partes de suas obras,
especialmente em “De las disciplinas”; nela, o humanista explicita as mudanças que
requer no sistema educativo de sua época. Ao tratar do ensino da gramática, por
exemplo, Vives propõe: “A arte gramatical, como todas as outras artes, deve
ensinar-se partindo do mais conhecido”.
75
(De las disciplinas, 1948, p. 577). E mais
adiante retoma essa proposição, ao falar dos estudos metafísicos: “[...] há que se
esforçar sempre em que o primeiro seja o mais simples e o mais elementar, isto é, o
mais conhecido, o que o sentido possa comprovar melhor”. (De las disciplinas,
1948, p. 618).
76
Podemos inserir este posicionamento teórico-metodológico de Vives no
âmbito da disputa intelectual entre humanistas e escolásticos. Isso porque o método
indutivo, preconizado pelos primeiros, apresenta-se como alternativa ao método
dedutivo praticado pelos últimos, especialmente através de silogismos. O silogismo –
forma de raciocínio em que se chega a uma conclusão a partir de duas proposições
iniciais – é explicitamente criticado por Vives emContra los seudodialécticos”.
Segundo o autor, esse método de conhecimento é infecundo, visto que se utiliza de
discussões intermiveis, mas pouco ligadas a questões realmente relevantes para
o avanço do saber; além disso, o conteúdo superficial é, na maioria das vezes,
dificultado pela linguagem prolixa. De acordo com Vives, quase [...] tudo o que se
trata nos silogismos, [...] são puros quebra-cabeças daqueles que por passatempo
se propõe as mulheres e os moços ociosos [...].(Contra los seudodialécticos,
1948, p. 295).
77
Assim, podemos dizer que a defesa do método indutivo está
relacionada, no pensamento vivista, a uma busca pelo verdadeiro saber, de modo
simples, porém concreto, efetivo e ligado à realidade. Esse aspecto, além da crítica
75
“El arte gramatical, como todas las otras artes, debe enseñarse partiendo de lo más conocido”.
76
“[...] hay que esforzarse siempre en que lo primero sea lo más simple y lo más elemental, esto es,
lo más conocido, lo que el sentido pueda comprobar mejor”.
77
“[...] todo lo que se trata en los silogismos, [...] son puros rompecabezas de aquellos que por
pasatiempo se proponen las mujerzuelas y los mozuelos ociosos [...].”
94
aos debates abstratos dos escolásticos, fica claro na seguinte passagem: [...] as
disciplinas breves e simplesmente explicadas ajudam muito a agudeza, ao juízo, a
prudência, ao uso dos bens comuns. Tratá-las com prolixidade destrói a força e a
penetração da mente, por ser procedimento irritadíssimo” (De las disciplinas, 1948,
p. 547).
78
Devemos salientar que essa defesa do conhecimento indutivo pode ser
encontrada em outros pensadores, contemporâneos a Vives ou posteriores a ele,
visto que se consubstanciava em uma tendência da Modernidade, relacionada a um
contato maior com a natureza e à valorização da experiência. Erasmo, por exemplo,
“[...] apresentou um programa de ensino fundado na natureza, no método e no
exercício, cuja estratégia era baseada no ensino gradual e progressivo, das noções
simples às mais elevadas [...]." (ARNAUT DE TOLEDO, 2004a, p. 90).
Aproximadamente um século depois, Comênio observou que a natureza sempre
caminha das coisas mais fáceis para as mais difíceis, e aconselhou:
Exercitem-se primeiro os sentidos das crianças (o que é muito fácil),
depois a memória, a seguir a inteligência, e por fim o juízo. Todos
esses exercícios devem ser feitos [...] gradualmente, pois o saber
começa a partir dos sentidos, e, através da imaginação, passa para a
memória, e depois, pela indução a partir das coisas singulares,
chega à inteligência das coisas universais, e finalmente, acerca das
coisas bem entendidas, emite o juízo, o que permite chegar à certeza
da ciência. (COMÊNIO, 1996, p. 240).
Intimamente ligada à defesa do pensamento indutivo que, para Vives, apresenta
uma dimensão de concretude em relação à verbosidade escolástica encontra-se a
contemplação da natureza através dos sentidos. Este outro método de
conhecimento é preconizado pelo humanista valenciano porque, segundo ele,
permite a obtenção, especialmente no campo filosófico, de proposições muito mais
verossímeis do que aquelas alcançadas com as disputas dos “falsos dialéticos”, que
não apresentam embasamento na realidade. A respeito do “livro da natureza” e de
seu estudo, diz Vives: "A quem se afeiçoar a esta contemplação, lhe queremos
diligente e sagaz, mas não teimoso, arrogante, encrenqueiro. Nenhuma necessidade
78
“[...] las disciplinas breves y sencillamente explicadas ayudan mucho a la agudeza, al juicio, a la
prudencia, al uso de los bienes comunes. Tratarlas con prolijidad abolla la fuerza y la penetración de
la mente, sobre ser procedimiento enojosísimo”.
95
há de discussões e rinhas, mas sim de contemplação tranqüila." (De las disciplinas,
1948, p. 616).
79
Esse posicionamento metodológico de Vives é bastante avançado para a sua
época, ainda dominada pelo pensamento escolástico, o que faz com que o
humanista seja considerado, por alguns estudiosos, como precursor de importantes
autores dos séculos XVII e XVIII, como Francis Bacon (1521-1626) e Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778). Foster Watson, por exemplo, expressa essa idéia da
seguinte forma:
Na discussão dos métodos para obter o conhecimento, Vives é um
precursor de Bacon em sua exposição e defesa do método indutivo.
E é o antecessor de Rousseau em sua demanda do estudo da
natureza como o melhor livro didático, e recomenda a silenciosa
contemplação da Natureza como o corretivo para os combates
metafísicos e dialéticos. (apud RIBER, 1947, p. 199).
Tal proposição nos parece pertinente e vem corroborar o que foi dito sobre a
importância de Juan Luis Vives para a história da educação no Renascimento.
Tratando, ainda, dos métodos de ensino-aprendizagem, encontramos nas
obras do humanista espanhol algumas propostas, dirigidas aos discípulos, para a
organização dos estudos. Observamos, primeiramente, a necessidade da atenção e
da concentração em todas as atividades a serem realizadas, especialmente as de
cunho intelectual. Os ensinamentos dos mestres, bem como as leituras individuais,
são de pouco ou nenhum aproveitamento para aqueles que não estão atentos, diz
Vives. Sobre o assunto, ele aconselha ao menino Carlos Mountjoy: "Nunca leias
nada com a alma fora de ti ou engolfada em outras preocupações [...]." (Pedagogía
pueril, 1948, p. 329).
80
E, em uma das obras dedicadas à princesa Maria Tudor,
retorna à questão: "Se lês ou ouves, faça-o com a maior atenção; não permitas que
ela se derrame; obriga-a a estar no que fazes e não em outra coisa. [...] Saibas que
perdes teu tempo e teu trabalho se não põe atenção ao que lês ou ouves."
(Introducción a la sabiduría, 1947, p. 1218).
81
79
“A quien se aficionare a esta contemplación, le queremos diligente y sagaz, pero no terco,
arrogante, pendenciero. Ninguna necesidad hay de altercados y riñas, sino de contemplación
tranqüila.”
80
“Nunca leas nada con el alma fuera de ti o engolfada en otras preocupaciones [...]."
81
“Si lees u oyes, hazlo con la mayor atención; no permitas que ella se derrame; oblígala a estar en lo
que hace y no en otra cosa. [...] Sábete que pierdes tu tiempo y tu trabajo si no pones atención en lo
que lees u oyes”.
96
Outra forma de se garantir sucesso na aprendizagem seria tomar notas das
aulas assistidas, das leituras feitas por conta própria e, até mesmo, das
interessantes conversas presenciadas. As anotações serviam, segundo o autor, para
que os alunos pudessem ordenar os seus conhecimentos e, quando necessário,
acessá-los mais facilmente. Além disso, possuíam a função de auxiliar no exercício
literário, pois nesses cadernos deviam ser copiadas, dentre outras coisas, as frases
raras, os modismos, as fábulas, os provérbios, os feitos dos heróis, etc. A prática
dos apontamentos como método efetivo de estudo, encontra-se comentada em, pelo
menos, três importantes obras vivistas de educação e moral, a saber: "Pedagogía
pueril" (1523), "Introducción a la sabiduría" (1524) e "De las disciplinas" (1531).
Nelas, a orientação é praticamente a mesma: "Terás um caderno em branco no qual
anotarás o que leres ou ouvires, que seja agudo ou sábio, [...] ou algum vocábulo
raro ou esquisito, bom para a conversação corrente, para que quando a ocasião o
requerer, esteja ao alcance de tua mão." (Introducción a la sabiduría, 1947, p.
1220).
82
A necessidade de anotar os pontos mais importantes de tudo o que se lia ou
ouvia, relaciona-se ao fato de que os humanistas retomaram, especialmente a partir
do Quinhentos, a prática da composição escrita, comum na Antigüidade e que, na
Idade Média, havia sido substituída pelos exercícios orais (DÜRKHEIM, 1995, p.
188). Nessas composições (cartas, traduções, discursos, etc.), a imitação do estilo,
da elegância e dos vocábulos dos textos clássicos, seria facilitada por um caderno
organizado com os apontamentos sobre as obras estudadas, até mesmo porque
nem sempre se poderia tê-las em mãos. Além disso, fazer tais anotações serviria
também para treinar a escrita. Acerca dos exercícios destinados a este fim, Vives
aconselha: "Escreve, traduz, contesta por escrito muito a miúdo e não te canses de
tomar notas; envia em dias alternados ou, ao menos, a cada três dias uma carta a
alguém que responda e mostra a que tu escreveras a teu professor, que te a
82
“Tendrás un cuaderno en blanco en el cual notarás lo que leyeres u oyeres que sea agudo, o sabio,
[...] o algún vocablo raro o exquisito, bueno para la conversación corriente, porque cuando la ocasión
lo requiriere, esté al alcance de tu mano.”
97
emende [...]." (Introducción a la sabiduría, 1947, p. 1220).
83
Sabemos, pelo rico
epistolário vivista, que o autor seguiu diligentemente o seu próprio conselho.
84
A importância dos exercícios escritos residia, ainda, no fato de eles
auxiliarem no desenvolvimento de uma boa memória. Cultivá-la seria um meio de se
tornar mais sábio e, tamm, de ficar mais próximo de Deus. Isso porque, segundo
Vives, recordar, assim como entender ou raciocinar, é uma faculdade da alma, pela
qual somos semelhantes ao Criador e superiores aos animais. Sendo assim, os
discípulos deveriam evitar, de todas as maneiras, o entorpecimento da memória,
confiando-lhe sempre alguma coisa (Introducción a la sabiduría, 1947). Tal
proposição, inclusive, aparece na Dictica Magna de Comênio, que cita passagens
das obras vivistas "De las disciplinas" e "Introducción a la sabiduría",
85
com a
finalidade de exemplificar o seu pensamento. De acordo com o pedagogo tcheco,
nada se introduz solidamente no espírito "[...] senão as coisas que forem bem
entendidas e cuidadosamente confiadas à memória." (COMÊNIO, 1996, p. 261).
Exercitar a memória é algo que se poderia fazer, segundo Vives, através da
audição, da escrita e da repetição (fala). Essa idéia aparece, mais claramente, no
seguinte trecho:
As encomendas ou recados que devêramos fazer à memória, façam-
se com o silêncio alheio, pois não necessidade que o façamos
com o nosso, pois não raras vezes se imprime mais profunda e
tenazmente aquilo que decoramos em voz alta, como também
retemos melhor o que ouvimos de outros que o que pessoalmente
temos lido. [...]. Também é muito conveniente pôr por escrito o que
desejamos que a memória retenha [...]. Isso se explica porque a
atenção se detém maior momento no que escrevemos [...]. O que as
crianças tiverem ouvido do preceptor, o repetirão logo a algum dos
condiscípulos [...], e, por fim, ao próprio professor [...]. (De las
disciplinas, 1948, p. 584).
86
83
"Escribe, traduce, contesta por escrito muy a menudo y no te canses de tomar notas; envía en días
alternos o, al menos, cada tres días una carta a alguno que responda y muestra la que tú escribieres
a tu maestro, que te la enmiende [...]."
84
As correspondências de Vives com grandes figuras do Renascimento, tais como Erasmo, Henrique
VIII e Guilherme Budé, entre outros, encontram-se compiladas em: VIVES, J. L. Epistolario. In: Obras
Completas, tomo II, 1948, p. 1670-1786.
85
Para conferir as passagens das obras vivistas citadas por Comênio, ver: VIVES, J. L. De las
disciplinas (parte II, livro III). In: Obras Completas, tomo II, 1948, p. 583; e VIVES, J. L. Introducción
a la sabiduría (aforismos CLXXXIV a CLXXXVIII). In: Obras Completas, tomo I, 1947, p. 1221.
86
“Las encomiendas o recados que debiéramos hacer a la memoria, háganse con el silencio ajeno,
pues no hay necesidad que lo hagamos con el nuestro, pues no raras veces se imprime más profunda
y tenazmente aquello que decoramos en voz alta, como también retenemos mejor lo que mos de
otros que lo que personalmente hemos leído. [...]. También es muy conveniente poner por escrito lo
que deseamos retenga la memoria [...]. Ello, se explica, porque la atención se detiene mayor rato en
98
O que podemos perceber, através das instruções acerca de como aproveitar melhor
os estudos e exercitar a memória, é que o pensamento vivista representa
perfeitamente, no campo intelectual, o período de transição pelo qual a Europa
estava passando. Ao propor atividades baseadas na fala e na audição, Vives
demonstra a influência da cultura oral da Idade Média, mas, ao exaltar também a
importância das anotações, ele assinala a ascensão da cultura escrita, que se inicia
na Modernidade.
Ressaltamos, ao longo do texto, que a educação humanista se caracteriza por
esse aspecto literário, mas, tamm, pelo caráter moral. Neste capítulo, através da
análise das proposições práticas e teóricas mais significativas do ideal educativo de
Vives (idade propícia, responsabilidade dos pais, local adequado, predicados dos
mestres, métodos eficazes de ensino-aprendizagem e de organização dos estudos),
percebemos a influência de ambos, o que demonstra a representatividade do autor
no contexto intelectual do Renascimento. No entanto, faz-se necessária, ainda, uma
análise acerca de alguns tópicos de cunho especificamente moral. Passemos, então,
a ela.
4.3. Educação e Moral em Vives
Salientamos, no capítulo anterior, o pertencimento de Vives à corrente do
Humanismo cristão, da qual Erasmo de Roterdã, Guilherme Budé, Thomas More, e
outros grandes nomes do Renascimento, fizeram parte. Tal corrente, como vimos, se
caracterizava pela combinação entre a exaltação dos ideais clássicos e a aceitação
dos dogmas do Cristianismo. Daí resultou um pensamento que, na esfera
pedagógica, tentava unir à formação intelectual, baseada na literatura clássica, uma
ética essencialmente cristã, que se consubstanciava em condutas e virtudes a serem
desenvolvidas. Esse ideal educativo marcou profundamente o período moderno. Por
isso, embora o caráter moralizante da pedagogia de Vives esteja presente em todos
os pontos acima tratados, torna-se essencial, para a melhor compreensão de seu
lo que escribimos [...]. Lo que os niños hubieren oído del preceptor, lo repetirán luego a alguno de los
condiscípulos [...], y, por fin, al propio maestro [...].”
99
pensamento e da história da educação moderna, discutirmos os seus aspectos
especificamente morais.
Falemos, primeiramente, do conjunto de comportamentos cotidianos que
caracterizava o ideal de homem renascentista. Vives faz uma divisão do ser humano
em corpo e alma, atribuindo ao primeiro a condição de subordinação em relação à
segunda. O corpo, escravo da alma, tem de refletir as qualidades de sua senhora
(Introducción a la sabiduría, 1947). Nesse sentido, o humanista valenciano propõe
uma série de cuidados corporais, que visam não ao prazer físico, mas ao
fortalecimento do invólucro da alma, pois "[...] todas as forças, assim da alma como
do corpo, com o exercício e trabalho se sustentam e enfraquecem com o ócio e a
moleza do prazer." (Introducción a la sabiduría, 1947, p. 1213).
87
Dentre esses cuidados, encontra-se a prática moderada de exercícios físicos,
tais como jogos com bola e corridas, que objetivam a robustez do corpo e o
fortalecimento do ânimo. Essa proposição, que retoma o ideal cssico de equilíbrio
entre corpo são e mente , é característica da pedagogia humanista, pois, como
sabemos, a Idade Média não privilegiou a educação física (LAGO, 2002). Os
benefícios do cuidado com o corpo fizeram parte, também, dos conselhos
pedagógicos de autores posteriores ao Renascimento, como, por exemplo, John
Locke, que propunha uma formação baseada em três aspectos: físico, moral e
intelectual (FERREIRA, 1988). Inclusive, devemos destacar que na
contemporaneidade essa noção se faz cada vez mais presente.
Ainda no rol de cuidados elencados por Vives, que dizem respeito ao bem-
estar e à saúde corporal, mas também à aparência perante os demais, encontramos
uma minuciosa descrição sobre a higiene a ser mantida:
[...] lavarás mãos e rosto com água fresca e as secará com um pano
limpo. [...] Limparás com freqüência àquelas partes pelas quais as
superfluidades do corpo encontram caminho e desaguamento. [...]
Estas são a cabeça, as orelhas, os olhos, o nariz, as mãos, os
sovacos e as partes vergonhosas. [...] Os pés estejam limpos e
quentes. (Introducción a la sabiduría, 1947, p. 1213).
88
87
“[...] todas las fuerzas adel alma como del cuerpo, con el ejercício y trabajo se sustentan y
languidecen con el ocio y la molicie del placer.”
88
“[...] lavarás manos y cara con agua fresca y las secarás con un paño limpio. [...] Limparás con
frecuencia aquellas partes por las cuales las superfluidades del cuerpo hallan camiño y desagüe. [...]
Estas son la cabeza, las orejas, los ojos, la nariz, las manos, los sobacos y las partes vergonzosas.
[...] Los pies estén limpios y calientes.”
100
Catorze anos depois, em seus "Ejercícios de lengua latina", especificamente no
Diálogo VII, o humanista retornaria ao tema do asseio, destacando sua importância
e, também, avisando sobre os perigos da vaidade, pois, como dissemos, essa obra
tinha, entre outros, o objetivo de orientar moralmente os discípulos em suas
atividades cotidianas. Todavia, a própria necessidade de se escrever exortações à
higiene, faz-nos pensar que sua prática ainda não era unânime na sociedade
renascentista.
O autor propõe, também, algumas normas para o comer, o beber e o dormir.
No que diz respeito à alimentação, ele aconselha a moderação, ou seja, comer
apenas o suficiente para acalmar o estômago, e a simplicidade da comida, visto que
a "[...] variedade dos manjares é pestilencial ao homem [...]." (Introducción a la
sabiduría, 1947, p. 1214).
89
No Diálogo VI, acerca da refeição escolar, Vives se
manifesta através do personagem Pisón, dizendo a Nepótulo, seu interlocutor, que
na escola, local onde se formam os espíritos na virtude, não necessidade de
banquetes (Ejercícios de lengua latina, 1948). Além de moderadas e simples, as
refeições devem ser marcadas por conversas agradáveis e castas, sendo impróprio
o ato de falar ou fazer algo desrespeitoso à mesa. Quanto à bebida, também não
deve ser farta, especialmente durante as refeições, pois, segundo o humanista, esse
hábito é nocivo à saúde. Deve-se beber, preferencialmente, água; caso contrário,
uma cerveja fraca ou um vinho aguado. Isso porque "[...] embriagar-se é perder o
uso dos sentidos; sair-se do domínio da razão, do juízo, da consciência; em uma
palavra: de homem converter-se em besta ou em pedra." (Ejercícios de lengua
latina, 1948, p. 941).
90
Essa passagem retoma a idéia de que é a Razão que
dignifica o homem, e que, portanto, deve-se fugir de tudo que a embota. Aliás, de
acordo com o humanista, não apenas comer e beber sem comedimento, mas
também dormir em demasia, prejudica as faculdades da alma. O sono pode ser
comparado a um remédio, cuja dose deve ser suficiente para aliviar o corpo, e não
excessiva a ponto de lhe causar dano. Dormir mais do que o necessário torna os
corpos "[...] frouxos, preguiçosos, lentos e tira a rapidez do engenho." (Introducción
a la sabiduría, 1947, p. 1215).
91
Em todos esses cuidados, percebemos dois
89
“[...] variedad de los manjares es pestilencial al hombre [...].”
90
“[...] embriagarse es perder el uso de los sentidos; salirse del dominio de la razón, del juicio, de la
conciencia; en una palabra: de hombre convertirse en bestia o en piedra.”
91
“[...] flojos, perezosos, lentos y quita la rapidez del ingenio.”
101
objetivos principais: o desenvolvimento de um corpo sadio e o cultivo das faculdades
da alma, ambos podendo ser alcançados através do comedimento e da sobriedade
dos costumes, que constituem virtudes essenciais.
No ideal vivista de educação, cada atitude tomada, por mais simples que seja,
deve ser espelho de um espírito são e virtuoso. Por isso, que se cuidar de cada
passo dado, tanto no que respeita a si mesmo, como é o caso dos cuidados com o
corpo, quanto no que se refere ao próximo. Na obra "Introducción a la sabiduría",
mais especificamente no capítulo "Como se ha de vivir con los hombres", o
humanista trata exatamente dessa última questão, elencando um conjunto de
atitudes que garantem a boa convivência social, a começar pelo que julga ser a
regra máxima entre os seres humanos: amar ao próximo. Sobre ela, diz: "Não
somente hás de amar aos homens, mas sim, como é razão, deves reverenciá-los e
viver com eles com toda honestidade e observação, pois nisto consiste o dever da
convivência."
92
(Introducción a la sabiduría, 1947, p. 1241). Isso nos mostra que a
justificativa para tudo o que Vives exige em matéria de comportamento ideal está,
em última instância, relacionada à moral cristã.
Dentre esses comportamentos, o humanista pede que, estando em público, o
indivíduo cuide sempre para que seu corpo e seu rosto, especialmente os olhos,
demonstrem temperança, moderação e compostura, que são sinais de uma alma
serena, e que jamais deixem transparecer qualquer traço de arrogância. Uma
expressão muito severa demonstra um ânimo cruel, enquanto a modéstia embeleza
a face e atrai a amizade alheia. Como sinal desse comedimento dos costumes, o
riso não deve ser barulhento a ponto de sacudir todo o corpo, mas contido e
infreqüente. Também as mãos devem ser controladas, evitando-se o excesso de
gesticulações. Além disso, é indispensável ao homem de boa educação
corresponder às honras que recebe, cumprimentando àqueles que o saúdam
(Introducción a la sabiduría, 1947).
A finalidade do cuidado com todos esses pequenos detalhes do convívio
social, parece ser, principalmente, conquistar para si a admiração e o bem-querer
dos outros. Sobre o assunto, Vives exclama:
92
“No solamente has de amar a los hombres, sino, como es razón, debes reverenciarlos y vivir com
ellos com toda honestidad y miramiento, pues em ello consiste el deber de la convivência.”
102
Que fáceis são e de quão pouco estorvo o cumprimento, a
afabilidade, a cortesia, a atenção! E quão grandes amizades
conquistam com mostrar-se, e quantas arruinam, se as omite. Quão
grande é a ignorância do que nos convém: não querer ganhar a boa
vontade de muitos com uma coisinha que tão pouco custa.
(Introducción a la sabiduría, 1947, p. 1243).
93
Percebemos, aqui, uma aproximação com os ideais renascentistas de glória, honra e
fama. Entretanto, notamos que em Vives, um humanista cristão, esses ideais estão
muito mais ligados ao aspecto moral da virtude do que a qualquer outro objetivo
mundano. De acordo com o autor, a glória "[...] o é outra coisa, senão o renome
de muita virtude" e a honra "[...] é o acatamento prestado à virtude excepcional."
(Introducción a la sabiduría, 1947, p. 1207).
94
Vives procura, ainda, ditar algumas normas para o uso da linguagem,
misturando, no capítulo "Del lenguaje y de la conversación", os aspectos literário e
moral característicos das preocupações humanistas. Como vimos, o autor atribui um
importante papel social à capacidade humana de conversação: o auxílio da
convivência. Todavia, alerta, a língua pode ser utilizada tanto para o bem, quanto
para o mal, de modo que é preciso estar atento às próprias palavras. A necessidade
de falar bem adquire, então, uma importância social e moral, que vai além do ideal
de retomada da cultura clássica. Vejamos o que propõe o humanista:
A ninguém faças afronta, de ninguém fales mal. [...] se tiveres que
repreender a alguém, não uses de palavras rudes nem ásperas; [...]
Teu falar seja modesto, cortês e bem criado; não áspero, nem
rústico, nem de homem vilão; [...] Não tomes um tom de zombaria ou
de repreensão ou de ameaça; mas tampouco tua fala seja mole ou
melindrosa ou adulatória. Para que fôssemos em nosso falar muito
comedidos, [Cristo] nos advertiu com que de toda palavra ociosa que
os homens falarem entre si teríamos que dar estreita conta no dia do
final exame do mundo. (Introducción a la sabiduría, 1947, p. 1244-
1245).
95
93
Qué fáciles son y de cuan poco estorbo el saludo, la afabilidad, la cortesía, la deferencia! Y cuán
grandes amistades granjean con mostrarse, y cuántas desbaratan, si se las omite. Cuán grande es la
ignorancia de lo que nos conviene: no querer ganar la buena voluntad de muchos con una cosilla que
tan poco cuesta.”
94
A glória “[...] no es otra cosa sino el renombre de mucha virtude a honra “[...] es el acatamiento
prestado a la virtud excepcional.
95
A ninguno hagas afrenta, de ninguno digas mal. [...] si tuvieres que reprender a alguno, no uses de
palabras recias ni ásperas; [...] hablar sea modesto, cortés y bien criado; no áspero, ni rústico, ni
de hombre villano; [...] No tomes un tono de mofa o de reprensión o de amenaza; pero tampoco tu
habla sea muelle o melicosa o adulatoria. Porque fuésemos en nuestro hablar muy comedidos,
103
Temos, nesse trecho, pelo menos dois predicados indispensáveis ao homem
educado segundo os preceitos do Humanismo, a saber: polidez e cortesia no falar e
comedimento no trato com as pessoas.
Quanto a esta última exigência, Vives faz alguns comentários, sempre
levando em consideração a hierarquização da sociedade quinhentista. Os grupos
sociais se caracterizavam por códigos particulares de conduta, que deviam ser
respeitados nas relações pessoais. Um homem bem instruído tinha de levar em
conta esses digos, e saber como tratar cada tipo de pessoa. Desse modo, honra,
acatamento e veneração seriam os tratamentos dispensados aos homens bons;
àqueles que possuem autoridade, dever-se-ia honrar e respeitar as ordens, ainda
que o fossem pessoas de comportamento admirável, com o objetivo de manter o
sossego público (Introducción a la sabiduría, 1947). O autor demonstra bastante
consciência da necessidade de se respeitar à hierarquia, e isso não poderia ser
diferente, pois ele circulava nos meios aristocráticos e escrevia sobre a educação da
nobreza. Sua visão sobre o assunto está bem representada no seguinte
aconselhamento: "Com os inferiores mostra-te comedido; com os superiores,
reverente; com os iguais, acessível e cil [...]." (Introducción a la sabiduría, 1947,
p. 1251).
96
Embora o fundamento do ideal educativo de Vives, no que se refere ao
comportamento consigo mesmo e com o próximo, seja essencialmente a moral
cristã, podemos inserir as suas discussões sobre o tema no contexto mais amplo de
surgimento dos manuais de boas maneiras, tais como O cortesão (1528), de
Baldassare Castiglione, A civilidade pueril (1530), de Erasmo de Roterdã, e Galateo
(1558), de Giovanni della Casa, entre outros. Ainda que obras como "Introducción a
la sabiduría" (1524) e "Ejercícios de lengua latina" (1538) não tenham como tema
central a questão da civilidade, elas preconizam, como pudemos perceber, algumas
condutas e hábitos bastante relacionados aos ideais da Corte. Segundo Norbert
Elias, no seu clássico estudo intitulado O processo civilizador, o período de transição
da sociedade medieval para a moderna é caracterizado pelo aumento do controle
social, o que faz com que as pessoas observem a si próprias e aos outros, pois "[...]
[Cristo] nos amenacon que de toda palabra ociosa que los hombres hablaren entre tendríamos
que dar estrecha cuenta en el día del final examen del mundo.
96
“Con los inferiores muéstrate comedido; con los superiores, reverente; con los iguales, asequible y
fácil [...].”
104
o código de comportamento torna-se mais rigoroso e aumenta o grau de
consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e o fazer para o
ofender ou chocar os outros se torna mais sutil [...]." (ELIAS, 1994, p. 91). Desse
modo, é compreensível que o tema das boas maneiras tamm fizesse parte do
ideal educativo vivista, pois as propostas pedagógicas, assim como as idéias em
geral, comumente estão interligadas aos anseios e necessidades do contexto em
que se encontram.
De acordo com Dürkheim, a necessidade de se escrever tratados de
civilidade naquele período está relacionada à ascensão da burguesia na sociedade
renascentista, especialmente no Quinhentos. O crescimento do poder aquisitivo da
classe burguesa elevou o seu status social, diminuindo a distância em relação à
nobreza e fazendo com que surgisse a necessidade e o desejo de reprodução dos
refinados costumes da Corte. Segundo o sociólogo francês, isso ocorre porque
[...] o povo que enriquece desperta para novas necessidades. O luxo
que se desenvolve afina os caracteres [...]. Os homens se desfazem
de sua rudeza e, conseqüentemente, dos costumes, das maneiras
cuja grosseria eles não sentiam até então. Pouco a pouco, pois,
cresce neles o gosto pela sociedade polida com sua elegância, seus
prazeres mais delicados, suas alegrias mais comedidas.
(DÜRKHEIM, 1995, p. 189).
Sendo assim, tornou-se indispensável, naquele momento histórico, a produção de
obras pedagógicas que ensinassem essa nova aristocracia a se comportar segundo
os códigos de conduta socialmente aceitos. A nobreza não era mais apenas de
sangue, mas também de mérito e de caráter, e foi tamm para esses "nobres" que
muitos humanistas dedicaram seus escritos (BOTO, 2002).
Vale ressaltar que, dentre os manuais de bons costumes produzidos no
Renascimento, A civilidade pueril, publicada seis anos depois de "Introducción a la
sabiduría", foi a obra que obteve maior reconhecimento em sua época e
posteriormente. Esse pequeno tratado de civilidade, elaborado por Erasmo, tornou-
se rapidamente um manual de uso escolar, tendo sido publicado cerca de 130 vezes
até o século XVIII, o que demonstra que o gosto pela polidez das maneiras era uma
tendência da Modernidade. O tratado destacou-se, ainda, por ser dirigido às
crianças, o que lhe conferiu maior caráter pedagógico e colaborou para sua difusão
nas escolas (BOTO, 2002; DÜRKHEIM, 1995). Segundo Elias, a importância
105
histórica dessa obra se encontra, principalmente, no fato de que seu autor "[...] deu
nova nitidez e força a uma palavra muito antiga e comum, civilitas. [...] O conceito
civilitas, daí em diante, ficou gravado na consciência do povo com o sentido especial
que recebeu no tratado de Erasmo." (ELIAS, 1994, p. 68). Civilidade, a partir de
então, passou a significar o comportamento ideal das pessoas em sociedade, e esse
comportamento deveria ser, segundo o humanista roterdamês, universal, e não
restrito à nobreza de sangue. Embora Erasmo admita que nas cortes principescas é
que se encontra o mais alto grau de civilidade, ele demonstra sua concepção
"universalizante" no seguinte trecho de seu tratado: "Aqueles que a sorte fez
plebeus, [...] devem esforçar-se tanto mais por compensar com as boas maneiras as
vantagens que o destino lhes recusou. Ninguém escolhe o seu país ou o pai, mas
todos podem conquistar qualidades e boas maneiras." (ERASMO, 1978, p. 108).
Vives apresenta um pensamento semelhante a este, embora em termos bem
menos radicais. Em um dos primeiros aforismos de sua obra acerca da sabedoria, o
humanista assevera: "A firme e autêntica nobreza nasce da virtude." (Introducción
a la sabiduría, 1947, p. 1209).
97
Mais tarde, no Diálogo IX de seus exercícios
latinos, ele retoma o assunto, fazendo, através do personagem Maestro, o seguinte
comentário: "[...] sereis finalmente nobres se cultivais o espírito com aquelas artes
que são as mais dignas dos bem nascidos." (Ejercícios de lengua latina, 1948, p.
908).
98
Embora não faça, nesses excertos, referência explicíta à civilidade, Vives
adota, assim como Erasmo, o discurso de que não somente a linhagem proporciona
o status de nobreza, pois este tamm pode ser alcançado através da virtude e da
erudição. Esse discurso, presente em Vives, em Erasmo, e em outros humanistas,
fazia-se necessário naquele contexto, pois, como dissemos acima, uma nova
aristocracia estava se formando nas Cortes absolutistas e era preciso legitimá-la e
moldá-la segundo os novos padrões de instrução. Esse aspecto, no entanto, não
retira da educação humanista renascentista o seu caráter aristocrático, pois ela
representou, como destaca Boto (2002, p. 21), "[...] um exemplo de formação da
nobreza de mérito, da nobreza de caráter, da nobreza intelectual...mas ainda 'da
nobreza'."
97
“La firme y auténtica nobleza nace de la virtud.”
98
“[...] seréis finalmente nobles si cultiváis el espíritu con aquellas artes que son las más dignas de los
bien nacidos.”
106
Uma das grandes críticas à educação humanista, inclusive, é a que se refere
à sua falta de utilidade prática, justamente por ser dirigida à aristocracia, uma classe
sem função produtiva na sociedade. Dürkheim (1995, p. 215), por exemplo,
apresenta essa idéia, afirmando que, na pedagogia do Humanismo, de espírito
aristocrático, "[...] as qualidades que se trata de inculcar no aluno são qualidades de
luxo que não respondem a nenhum fim útil." No que diz respeito a Vives, o que
podemos dizer é que a questão da utilidade do saber se faz presente em suas
obras. Segundo o valenciano, "[...] toda disciplina e toda arte foi inventada e
introduzida para alguma finalidade prática [...]." (Contra los seudodialécticos,
1948, p. 308).
99
Ele chega a criticar o saber decorativo e itil, que provavelmente
podia ser observado em sua época, dizendo que a "[...] turba dos estudiosos chama
feliz e dourado ao século em que muita erudição. Não é isto precisamente o que
faz feliz e dourado o século, mas sim [...] quando os homens doutos traduzem à
realidade da vida a doutrina que leram [...]."(De las disciplinas, 1948, p. 678).
100
Vives não explicita, no entanto, quais devem ser as aplicações práticas do
conhecimento no cotidiano. Destaca, apenas, que a finalidade de todo e qualquer
estudo está em que "[...] uma vez buscadas e encontradas as artes proveitosas à
vida, as exercitemos para o bem blico, do qual se segue um perdurável galardão
[...]." (De las disciplinas, 1948, p. 676).
101
O humanista parece ter seguido o seu próprio conselho. Um exemplo de
utilidade do saber foi dado por ele ao escrever a obra "Del socorro de los pobres",
que, como vimos no capítulo anterior, apresentava uma rie de proposições acerca
de como resolver o problema da miséria na cidade de Bruges. Além disso, ele
escreveu sobre outros temas de interesse público, tais como a guerra e a paz,
buscando intervir de maneira útil ao dirigir cartas ou textos completos às maiores
autoridades da época, como no caso do papa Adriano VI ou do rei inglês Henrique
VIII. Desse modo, podemos dizer que Vives, apesar da visão aristocrática de
educação, não foi um humanista que se restringiu a preconizar a elegância da
expressão oral e escrita ou a polidez dos costumes, mas tamm soube
99
“[...] toda disciplina y toda arte fué inventada e introducida para alguna finalidad práctica [...].
100
A “[...] turba de los estudiosos llama feliz y dorado al siglo en que hay mucha erudición. No es esto
precisamente lo que hace feliz y dorado el siglo, sino [...] cuando los hombres doctos traducen a la
realidad de la vida la doctrina que leyeron [...].”
101
“[...] una vez buscadas y halladas las artes provechosas a la vida, las ejercitemos para el bien
público, de lo cual se sigue un perdurable galardón [...].”
107
compreender e proclamar a utilidade que o conhecimento deveria oferecer. É preciso
ressaltar, ainda, que mesmo a elegância e a polidez preconizadas continham, de
certo modo, um objetivo prático, que era preparar o indivíduo para representar a si
mesmo no convívio social. Desse ponto de vista, a idéia de educar-se pressupõe a
noção de sujeito, o que constitui uma das principais mudanças do período analisado.
Entretanto, não podemos negar que, como humanista cristão, Vives atribuía,
acima de tudo, uma finalidade moral e religiosa ao conhecimento. A necessidade de
utilizar o saber para o bem público não se dava apenas pelo aspecto social, mas
também pelo objetivo cristão de desenvolver a virtude e conquistar a graça divina. O
conhecimento do mundo clássico, por exemplo, proporcionava o aprendizado do
latim e de formas cultas e elegantes de expressão, mas tamm apresentava,
através da disciplina da História, exemplos de conduta moral. Aliás, não somente a
História, mas todas as disciplinas, segundo o humanista, deveriam fazer brotar a
virtude em seus estudiosos (De las disciplinas, 1948). Todavia, se a finalidade da
sabedoria, em todos os seus aspectos, é proporcionar o desenvolvimento das
virtudes, a finalidade última de uma vida sábia e virtuosa é a proximidade com Deus.
Todo o saber, diz Vives, deve ter como fim a admiração e o amor ao Criador, pois
somente assim o homem pode participar da Eternidade com Ele (Introducción a la
sabiduría, 1947; De las disciplinas, 1948).
Assim, temos que, de modo geral, para Juan Luis Vives a educação constitui
um conjunto de conhecimentos literários, aliado às boas maneiras e à prática de
virtudes. O homem verdadeiramente nobre é aquele que, com base no estudo dos
grandes autores clássicos, desenvolve uma excelente erudição, especialmente no
que respeita à expressão oral e escrita. É, tamm, aquele que sabe ser comedido e
agradável na convivência com os demais. E, acima de tudo, é aquele que busca
vivenciar as virtudes, objetivando a proximidade com Deus e a participação na vida
eterna. Possuir esses saberes e digos de conduta, inclusive, é o que diferencia os
homens dos animais e potencializa as capacidades humanas.
O papel que Vives atribui à educação transparece no ideal que acabamos de
analisar, e pode ser observado no primeiro diálogo de seus exercícios latinos. Nele,
o pai chama o filho, que brincava com seu cão, e lhe explica a diferença entre o
menino e o animal: "[...] está a diferença, que ele não pode tornar-se homem;
108
você, sim; se quiser." (Ejercícios de lengua latina, 1948, p. 884).
102
E como tornar-
se Homem? Somente através da educação, responde o humanista. Essa concepção
de educação à serviço da formação do indivíduo encontrava-se em seu estágio
inicial nos séculos XV e XVI; foi a partir das reflexões de humanistas como Vives
que ela se desenvolveu, constituindo-se, posteriormente, numa das bases da
construção do mundo moderno burguês.
102
“[...] ahí está la diferencia, que él no puede hacerce hombre; tú, si; si quieres.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo dessa pesquisa consistiu em analisar, através das obras
pedagógicas de Juan Luis Vives, os ideais humanistas de educação, buscando
compreender a sua importância e o seu significado para o início dos Tempos
Modernos. Este foi um período de transformações marcantes em todas as esferas
da sociedade: formação dos Estados Nacionais, descoberta do Novo Mundo,
fortalecimento das atividades urbanas e comerciais, enriquecimento e ascensão
social da burguesia, Reforma Protestante e Contra-Reforma, Renascimento da
cultura clássica greco-romana, invenção da imprensa, entre outras. Uma nova
sociedade estava surgindo e, concomitantemente, novos homens tinham de ser
forjados. A educação assume, então, um papel crucial nesse processo. Segundo
Dürkheim (1995, p. 160):
[...] uma transformação pedagógica sempre é a resultante e o sinal
de uma tranformação social que a explica. Para que um povo sinta,
num determinado momento, a necessidade de mudar seu sistema de
ensino, é preciso que venham à tona idéias e necessidades que o
antigo sistema não satisfazia mais. Mas [...] para que, após terem
sido ignoradas durante séculos, elas surjam repentinamente na
mente, é preciso, entretanto, haver algo que tenha mudado, e essa
mudança é que elas expressam.
Sendo assim, o surpreendente número de obras pedagógicas surgidas no
Renascimento, especialmente entre os séculos XV e XVI, pode ser explicado pela
efervescência das mudanças estruturais pelas quais a sociedade estava passando.
O Renascimento, como vimos, foi um período de intensa agitação cultural.
Em seu âmbito, surgiu o Humanismo, que foi um movimento de revalorização e
utilização da cultura clássica como modelo para todas as atividades intelectuais,
dentre elas a reflexão pedagógica. Os humanistas foram os principais responsáveis
pela elaboração de tratados sobre educação, especialmente no Quinhentos, o que
torna os seus escritos fontes perfeitas para o estudo das questões pedagógicas no
início da Modernidade. O objetivo desses mestres nos studia humanitatis era
reformar os saberes de sua época, utilizando-se de novos métodos e concepções.
Nesse sentido, esses homens representavam a necessidade de renovação que
marcou o período. Ao defenderem seus ideais, eles entravam em conflito direto com
110
os escolásticos, representantes, segundo os humanistas, da obscuridade medieval.
Eles criticavam o fato dos escolásticos utilizarem os textos clássicos de um modo
puramente formal e, muitas vezes, anacrônico, sem fazer uma análise filológica
adequada; atacavam tamm o método da disputatio, afirmando que por ele não se
buscava a verdade, mas apenas a fama gerada pela vitória. Além disso, uma das
mais duras críticas diz respeito ao latim usado pelos escolásticos, totalmente
bárbaro para o gosto e o estilo apurado dos humanistas, que faziam questão de
manter a língua tal como ela era usada na Antigüidade. Não estamos, aqui, julgando
o mérito das críticas humanistas aos escolásticos, mas devemos salientar que a
disputa entre ambos teve seu papel na proliferação de obras pedagógicas. Nesse
contexto de rivalidade, escrever sobre educação significava, para os humanistas, a
luta pela implementação de seus ideais, visto que, até naquele momento, a
Escolástica ainda dominava boa parte da esfera educacional.
Dentre os muitos humanistas que se dedicaram a trabalhos de cunho
pedagógico, destacamos o espanhol Juan Luis Vives. Embora pouco conhecido
entre s, ele é considerado, como pudemos observar, um dos mais importantes
membros do chamado Humanismo cristão, que se caracterizou pela junção de ideais
clássicos com dogmas do Cristianismo. Vives escreveu cerca de sessenta obras em
latim; destas, doze versam sobre o tema da educação, considerando as obras de
caráter moralizante, que também possuem função pedagógica. Além disso, o
humanista foi uma figura importante do Renascimento, pois esteve em contato com
homens ilustres, do ponto de vista intelectual e político, tais como Erasmo,
Guilherme Budé, Thomas More, papa Adriano VI, Henrique VIII, Catarina de Aragão,
e outros.
A análise dos escritos pedagógicos de Vives, possibilitou-nos apreender o
seu ideal educativo, que representa significativamente o ideal humanista mais
amplo. Inclusive, apresentamos brevemente o pensamento de outros autores,
contemporâneos a Vives como Erasmo e o espanhol Francisco de Monçon ou
posteriores a ele, como Comênio, Alexandre de Gusmão, John Locke e François
Fénelon. O objetivo foi demonstrar que as iias vivistas sobre educação podem ser
inseridas em uma tendência geral da época, que, aliás, teve certa continuidade nos
séculos seguintes. Guardadas as especificidades de cada autor, bem como de cada
região e período, podemos dizer que, em conjunto, eles representam o surgimento e
a concretização de novas concepções pedagógicas como, por exemplo, a
111
preocupação com a infância e a valorização das capacidades de cada indivíduo
que acabaram por conformar a educação burguesa do século XVI ao XVIII, pelo
menos. Todavia, percebemos, pela própria observação, que a influência desse
modelo educativo foi muito mais longe, chegando até os nossos dias.
De modo geral, podemos dizer que para Vives a educação ideal é aquela que
privilegia o estudo das línguas clássicas, com base nos autores da Antigüidade,
visando ao desenvolvimento da capacidade de se expressar corretamente e com
elegância, bem como ao preparo para estudos avançados; é também aquela que
ensina o comedimento no trato com os outros, visando conquistar-lhes a amizade e
a admiração, e que desenvolve no discípulo a prática de um rol de virtudes, tais
como moderação, temperança, modéstia, sobriedade, e outras. Esse último aspecto
do ideal vivista é essencial, pois, como humanista cristão, o autor considerava o
conhecimento de Deus como o fim último do saber, que pode ser alcançado
através de uma vida virtuosa. Apenas quando o homem se aproxima ao máximo de
seu Criador é que se torna efetivamente um Homem, e isso ocorre por meio da
erudição e da virtude obtidas através da educação. Nesse sentido, tamm os
exercícios físicos fazem parte desse ideal, pois uma mente necessita de um
corpo o. Somente uma educação nesses moldes poderia desenvolver plenamente
as potencialidades de cada indivíduo.
Quanto aos meios concretos de realização desse ideal, Vives propõe que a
educação comece desde a mais tenra idade, preferencialmente na amamentação,
que não deveria ser feita por amas-de-leite, mas pelas próprias mães, pois através
desse contato íntimo as mulheres transmitiriam às crianças os bons costumes e os
primeiros rudimentos da língua vernácula. A partir dos sete anos, aproximadamente,
a criança deveria iniciar o aprendizado de latim e grego. Vives alertava que essa
instrução poderia se dar em casa, desde que seja garantida a convivência apenas
com pessoas de vida exemplar. Caso contrário, a criança deveria ser mandada para
uma escola pública, idealmente situada em local salubre, com abundância de
alimentos e com pouco barulho. Os mestres, fossem particulares ou ligados às
escolas, deveriam possuir vasta erudição e pureza de costumes, visto que serviriam
de modelo aos jovens discípulos. O método ideal a ser utilizado pelo preceptor no
processo de ensino-aprendizagem seria o indutivo, ou seja, dever-se-ia partir
sempre dos aspectos mais simples, constatados pelos sentidos, para se chegar aos
mais complexos. Nesse sentido, inclusive, a observação da natureza se constituiria
112
em rica fonte de conhecimentos. Além da indução, o humanista apresenta mais três
conselhos metodológicos, a saber: identificar as particularidades de cada criança e
discuti-las ao menos quatro vezes ao ano, com o objetivo de adequar a educação a
ser ministrada; cultivar o afeto na relação professor/aluno, para facilitar o processo
de aprendizagem; e abrandar ao máximo os castigos físicos, buscando a correção
dos vícios através da repreensão verbal.
Através da análise dos ideais educativos humanistas, especialmente os de
Vives, pudemos observar importantes aspectos relativos à educação no início da
Modernidade. Constatamos, por exemplo, que a valorização e a proteção da criança
estavam se concretizando como atitudes obrigatórias no âmbito da família, da escola
e da sociedade em geral. A criança devia ser cuidada pela própria mãe, garantindo
assim uma boa formação moral; além disso, fazia-se necessário protegê-la de todo
mau exemplo, que pudesse vir a escandalizar seu delicado espírito. Nesse
momento, a família assume um papel educativo muito importante, sendo
responsabilizada por propiciar a melhor formação possível para os pequeninos, em
casa ou em uma escola. A própria noção de se observar as particularidades infantis
antes de seguir este ou aquele conteúdo ou método de ensino, e a defesa do
abrandamento das punições corporais, demonstram a adoção da infância como
objeto central das reflexões pedagógicas na aurora dos Tempos Modernos. A partir
desse contexto, segundo Cambi (1999, p. 227), "[...] preparam-se aquele interesse
'psicológico' e aquela 'preocupação de ordem moral' [com a criança] que estarão nos
fundamentos da pedagogia moderna e contemporânea".
Pudemos, também, verificar a apresentação de um ideal de escola pública,
que inclui a preocupação com o local a ser escolhido para a sua instalação, bem
como com a contratação dos professores. Sobre este último tema, Vives, temeroso
da corrupção a que estavam sujeitos os mestres pagos diretamente por seus
discípulos, afirma ser preferencial que o poder público se encarregue da
remuneração desses profissionais, responsabilizando-o por parte dos cuidados com
a educação. Vale destacar que, no desenrolar da época moderna e, especialmente,
na contemporaneidade, a educação viria a assumir cada vez mais esse caráter
público, o que nos faz refletir sobre a relevância das concepções humanistas para a
história da nossa própria organização escolar. Aliás, outros aspectos que
caracterizam a escola hoje o planejamento das atividades pedagógicas e o
conselho de classe fazem parte do ideal de educação do humanista. Como vimos,
113
um dos objetivos, talvez o mais importante, de se investigar e debater coletivamente
as inclinações de cada aluno, era obter dados que pudessem guiar as ações
pedagógicas dos mestres, tornando-as mais efetivas.
É possível relacionar esse aspecto "psicológico" das concepções vivistas à
crescente exaltação do indivíduo, que surge com força no contexto renascentista e
caracteriza as épocas seguintes. Ora, buscar entender os variados tipos de
personalidade para elaborar, com base nessa observação, um programa educativo,
significa reconhecer as especificidades individuais. Diferentemente da Idade Média,
onde as pessoas estavam sempre imersas no coletivo, e por ele eram identificadas,
no início do período moderno conseguimos visualizar uma constante valorização do
indivíduo, cuja subjetividade deveria ser resguardada. Assim, de acordo com
Dürkheim (1995, p. 246),
Se o ensino, na Idade Média, era impessoal, se, sem nenhum
inconveniente declarado, podia dirigir-se de maneira difusa à
multidão indistinta de alunos, é que nessa época a personalidade
individual estava ainda pouco desenvolvida. [...] Na Renascença, ao
contrário, o indivíduo começa a tomar consciência de si; não é mais
[...] uma simples fração do todo, é um todo num sentido, é uma
pessoa que tem sua fisionomia, que tem e sente pelo menos a
necessidade de ter sua própria maneira de pensar e sentir. [...] Ora,
é muito evidente que, à medida da individualização das consciências,
a própria educação há de individualizar-se.
A construção da noção de subjetividade no período renascentista pode ser
observada, ainda, no ideal de civilidade que se propagou à época. Como foi dito
acima, o cuidado consigo mesmo e com os demais passou a ser importante na vida
cotidiana, pois o valor da opinião dos outros aumentou consideravelmente. Desse
modo, a educação assumiu a função moral de "civilizar" os indivíduos de acordo com
as normas de conduta socialmente aceitas. Embora Vives não utilize o conceito de
civilidade, tal como Erasmo, ele aborda os seus príncipios, especialmente na obra
"Introducción a la sabiduría", em que busca estabelecer algumas regras para o
comer, o beber, o dormir, o falar, etc. Vimos que, assim como os manuais de boas
maneiras da época, essa obra salienta a importância do cuidado-de-si quando
trata da higiene pessoal, por exemplo e da conservação da estima alheia,
conquistada através de um comportamento cortês, baseado no maior mero
possível de virtudes. Esses aspectos, defendidos pelos humanistas de modo geral,
114
são característicos de uma sociedade que passava a valorizar cada vez mais o
comportamento individual em detrimento do coletivo.
Nesse sentido, o ideal de civilidade desempenhou papel significativo na
ascensão social e política da burguesia no início dos Tempos Modernos. Como
vimos, o enriquecimento dessa classe, especialmente nos séculos XV e XVI, estava
ligado às transformações do período. O aumento do poder material gerou a
necessidade de adquirir os saberes, a fineza de gostos e a delicadeza de costumes
característicos, até aquele momento, apenas da nobreza de sangue. Segundo
Dürkheim, antes dessas mudanças na fortuna pública, "[...] a burguesia nem ousava
erguer a vista até a nobreza da qual se sentia separada por um abismo [...]. Mas,
agora que se tornara mais rica, portanto, mais poderosa, tornou-se tamm mais
ambiciosa e pretendeu encurtar as distâncias." (DÜRKHEIM, 1995, p. 163). Ora,
dinheiro para comprar títulos nobiliárquicos não era um problema, mas alcançar os
padrões de refinamento das cortes, sim. Nesse contexto, a educação, especialmente
em seu aspecto moral, assumiu papel de destaque na adaptação da burguesia aos
padrões aristocráticos de vida. O nascimento deixou de ser a única forma de se
adquirir o status de nobre, pois o discurso humanista, que dizia que a prática das
virtudes era o verdadeiro caminho para se alcançar a nobreza, valorizou os esforços
pessoais, possibilitando o surgimento da chamada "nobreza de mérito" ou "nobreza
intelectual". A partir de então, estabeleceu-se o ideal de que cada indivíduo pode
vencer os obstáculos e progredir socialmente através de seu empenho. Assim,
podemos dizer que a educação humanista foi um componente revolucionário nesse
período de mudanças, visto que auxiliou na concretização do projeto burguês de
sociedade.
O ideal educativo humanista, indissociavelmente ligado ao aspecto moral,
assumia, no contexto histórico referido, a função de formar e de promover o
indivíduo. O homem, como vimos, somente adquiriria sua verdadeira humanidade
através da educação. Do ponto de vista histórico, político e social, essa função foi
cumprida, pois constatamos que o poder e o reconhecimento deixam de ser
exclusivos da nobreza tradicional e passam a ser possíveis também para aqueles
que possuem a erudição, a cortesania e as virtudes e, é claro, o dinheiro para
comprar tudo isso. Com o passar do tempo, os ideais educativos vão abrindo cada
vez mais possibilidades, ao menos no discurso, para que qualquer pessoa possa
progredir na escala social. Esse caráter mais "democrático" da educação, bem como
115
o discurso moral da promoção do indivíduo, caracterizou os Tempos Modernos e
chegou até nós, não sem algumas modificações que acompanharam a evolução
histórica. Hoje, as tendências educativas continuam eivadas pelo aspecto moral, e a
defesa do progresso material através da educação permanece sendo feita,
responsabilizando a escola pela solução dos problemas sociais, embora fique cada
vez mais claro que ela não tem como cumprir esse papel (ARNAUT DE TOLEDO,
2004a).
De modo geral, podemos afirmar que os ideais humanistas de educação,
apesar das limitações impostas por seu caráter aristocrático, abriram caminho para o
desenvolvimento de alguns aspectos tipicamente modernos da educação, dentre os
quais muitos permanecem a hoje, a saber: reflexão pedagógica centrada na
infância; exaltação do papel da família na educação, mas, ao mesmo tempo,
atribuição de parte das responsabilidades ao poder público; planejamento das
atividades pedagógicas; valorização do indivíduo e conseqüente construção da
noção de subjetividade; idealização da educação como meio de promoção social; e
outros. Por isso, entender o ideal educativo do Humanismo, do qual Vives é um
perfeito representante, faz-se indispensável para a compreensão da história da
educação moderna e contemporânea.
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