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A “APOLOGIA DE SÓCRATES”, POR
PLATÃO, À LUZ DA RETÓRICA CONTEMPORÂNEA.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras - UFMG
2006
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: A “APOLOGIA DE SÓCRATES”, POR
PLATÃO, À LUZ DA RETÓRICA CONTEMPORÂNEA.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da
Faculdade de Letras da UFMG, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Lingüística.
Área de Concentração: Lingüística
Linha de Pesquisa: Análise do Discurso
Orientadora: Profa. Dra. Júnia Diniz Focas
Belo Horizonte
Faculdade de Letras - UFMG
2006
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Paixão, Rogério Mascarenhas.
P149m A magia das palavras e o encantamento das platéias [manuscrito] : a apologia de
crates, por Platão, à luz da retórica / Rogério Mascarenhas Paixão. 2006.
144 f., enc. : il.
Orientadora: Profa. Dra. Júnia Diniz Focas.
Área de concentração: Lingüística.
Linha de Pesquisa: Análise do discurso.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade
de Letras.
Bibliografia: f. 103-107.
Anexos: f. 108-144.
1. Sócrates Teses. 2. Platão. Apologia de Sócrates Teses. 3. Alise do
discurso Teses. 2. Retórica Teses. 3. Dialética Teses. I. Focas, Júnia Diniz.
II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título.
CDD : 418
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos
Dissertação intitulada “A magia das palavras e o encantamento das platéias:
a “Apologia de Sócrates”, por Platão, à luz da Retórica Contemporânea”, de autoria
do mestrando Rogério Mascarenhas Paixão. Dissertação aprovada pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
_________________________________________________
Prof.ª Drª Júnia Diniz Focas - UFMG
(Orientadora)
__________________________________________________
Prof. Dr Renato de Mello - UFMG
__________________________________________________
Prof. Dr William Augusto Menezes - UFOP
________________________________________________________________
Prof. Dr. Fábio Alves
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras
Belo Horizonte, setembro de 2006.
Av. Antônio Carlos, 6627 Belo Horizonte MG 31270-901 TEL.: (31) 3499.5492
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“A palavra é a única vantagem que a natureza
nos deu sobre os animais, tornando-nos assim
superiores em todo o resto. Tudo o que somos
devemos à linguagem”.
Isócrates (436 - 338) a.C.
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O enigmático Sócrates foi colocado à prova no século IV a.C. quando teve
que comparecer ao Tribunal ateniense para se defender. O filósofo, durante a sua defesa,
refutou as acusações que lhe foram impostas, tais como “não crer em Deuses e somente
em demônios, além de ensinar coisas demoníacas”, entre outras. Apesar de apresentar
uma argumentação lógica e racional, o filósofo foi condenado à morte. O que teria
acontecido? Teria ele preferido assim e não se empenhado o bastante em sua defesa?
Não queria se defender? Ao que parece, existia muito mais do que essas simples
indicações, tão superficiais; e a essa problemática é que se prestará a presente pesquisa.
Como embasamento teórico serão consideradas, de maneira especial, as obras sobre
Argumentação e Retórica de Chaïm Perelman, estudioso que dedicou toda uma vida
tentando resgatar a imagem da retórica, tal qual Aristóteles a concebeu.
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L’énigmatique Socrate a été mis sur la preuve au IV· e siècle avant JC quand
il devait se présenter au Tribunal athénien pour se déffendre. Le philosophe, durant sa
défense, a refusé les accusations qui lui ont été imposées, telles que “ne pas croire aux
Dieux et seulement aux monts, en dehors d’enseigner les choses démoniaque” entre
autres. Malgré d’avoir présenter une argumentation logique et rationnelle? Aurait-il
préféré ainsi et non se dédiqué assez à sa fense? Ne voudrait-il pas se défendre? Ce
qui parait, qu’il existait beaucoup de ces simples indications, autant superficielles; et
c’est sur ce problématique que se réalisera la présente recherche. Comme fondement
théorique seront considérées, de manière spéciale, les oeuvres sur l’argumentation et la
réthorique de Chaïm Perelman, studieux qui a dédiqué toute une vie en tentant
requipérer l’image de la rèthorique tel que Aristote l’a conçue.
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The enigmatic Socrates was hardly tested in the fourth century BC when he
had to attend the Athenian Court to defend himself. The philosopher, during his defense,
refuted the indictments that were imposed to him, such as "not having faith in God and
only in demons, besides teaching demoniac things", among others. In spite of presenting
a logical and rational argument, the philosopher was sentenced to death. What would
have happened? Would have he preferred this and made not effort enough on his
defense? Didn't he want to defend himself? Apparently, there were much more than
those simple and so superficial indications; and this problem is what this research is
about. Here the theoretical basis that will be considered, in a special way, are the works
on Argumentation and Rhetoric of Chaïm Perelman, studious that dedicated an entire
life trying to rescue the image of the rhetoric, just like Aristotle conceived it.
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INTRODUÇÃO ...............................................................................................................
14
CAPÍTULO I - AS ORIGENS DA RETÓRICA .........................................................
24
1.1 - O surgimento da Retórica na Grécia Antiga ............................................................ 25
1.2 - Os sofistas .................................................................................................................
29
1.2.1 - Origem do termo sofista ........................................................................................
29
1.2.2 - Alguns dos mais ilustres e renomados sofistas ..................................................... 31
1.3 - Sócrates e Platão .......................................................................................................
34
1.4 - Aristóteles .................................................................................................................
40
1.4.1 - O silogismo e os modos de argumentação ............................................................
44
1.4.2 - Apodíctica, Dialética, Retórica e Sofística ............................................................
46
1.5 - A Retórica contemporânea .......................................................................................
52
CAPÍTULO II - A ARGUMENTAÇÃO NA APOLOGIA DE SÓCRATES ............
56
2.1 - Platão e a Apologia ...................................................................................................
57
2.2 - O julgamento de Sócrates .........................................................................................
59
2.2.1 - A acusação e seus protagonistas ............................................................................
60
2.2.2 - A defesa de Sócrates ..............................................................................................
61
2.3 - Refutando as acusações ............................................................................................
64
2.4 - Argumentação: o convencimento e a persuasão .......................................................
74
2.4.1 - Os tipos de argumento ...........................................................................................
76
2.4.2 - Adequação do orador ao auditório ........................................................................
81
CAPÍTULO III - ASPECTOS IDEOLÓGICOS NA APOLOGIA DE SÓCRATES
84
3.1 - Combatendo com sombras .......................................................................................
85
3.2 - Formações ideológicas e formações discursivas ......................................................
89
CONCLUSÃO .................................................................................................................
94
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................
103
ANEXO:
Apologia de Sócrates
.......................................................................................
108
14
INTRODUÇÃO
15
Ao longo dos séculos, a problemática sobre a questão da linguagem humana
permeou o cenário científico. Lingüistas, antropólogos, arqueólogos, biólogos e
filósofos, entre outros, debruçaram-se sobre o tema e muito se discutiu sobre a
linguagem humana.
A faculdade humana da linguagem o se limita à nomeação de coisas e ao
simples enfileirar linear aleatório de palavras. Ela exige mecanismos bem mais
complexos do que a mera associação entre coisas e palavras, que teriam tido sua origem
na imitação dos sons da natureza, como foi proposto muitas vezes.
Várias teses foram colocadas, como a da teoria onomatopaica, que aponta
para um surgimento das palavras relacionado à tentativa do homem em imitar os sons
produzidos pelos animais e os sons da natureza circundante, como o barulho das folhas,
o correr das águas, o barulho do vento e da chuva. Outros vislumbraram a possibilidade
da origem da linguagem estar relacionada às interjeições, assim sendo, os primeiros
sons teriam sido produzidos por exclamações de dor, alegria, desespero, espanto,
surpresa, etc. Chegou-se ainda a acreditar que a alternância dos movimentos de segurar
e soltar a respiração, fazendo as cordas vocais vibrarem, produziu a voz, daí que os
primeiros sons teriam sido os que acompanham o acasalamento, o comer, as lutas, etc.
Uma outra teoria a respeito da origem da linguagem aponta para uma
evolução da linguagem humana a partir do momento em que o homem se torna um
bípede. As mãos, que somente eram usadas para ajudar na locomoção, ficaram livres e
passam a ser usadas no manuseio de utensílios e armas rústicas de caça, bem como na
gesticulação para auxiliar na comunicação.
16
Da primitiva linguagem de gestos e grunhidos, evoluiu-se para a complexa e
fantástica comunicação humana dos nossos dias, o que nos tornou a espécie mais
evoluída e dominante do reino animal.
Até mesmo na Bíblia tem-se uma passagem sobre a origem da grande
diversidade de línguas do mundo. Tamanha diversidade seria um castigo de Deus. Pelo
texto bíblico, no princípio dos tempos, se falava uma língua. Quando os homens
resolveram construir uma torre que pudesse alcançar o céu, para ficarem mais próximos
de Deus, foram castigados por seu criador e destinados a falar diferentes idiomas. Não
havendo mais entendimento entre eles, tiveram que parar a construção da Torre de
Babel. A diversidade lingüística humana nunca deixou de ser alvo de perguntas,
investigações, acrescida das explicações do mito da Torre de Babel à pesquisa
científica.
O quadro de possibilidades torna-se cada vez mais diversificado e a
curiosidade parecia não ter limites, ao ponto de, no ano de 1866, a Socié de
Linguistique de Paris aprovar uma moção proibindo toda e qualquer menção à origem
da linguagem nos estudos científicos. Após várias décadas de ostracismo, o controverso
tema ganha força e retorna ao debate acadêmico, reavivando, principalmente, o retorno
à Antiguidade Clássica.
Muitos são os temas e assuntos em que o retorno à Grécia antiga é
praticamente inevitável. Certa vez, Engels se manifestou:
Somos obrigados, em qualquer domínio, a regressar a cada passo às
produções deste pequeno povo, cuja capacidade e atividade
universais conquistaram, na história da evolução da humanidade, um
lugar de tal magnitude que nenhum outro povo lho poderá jamais
disputar.
1
1
Apud BERGUER (s/d.: 187).
17
Naquela época, os sábios e estudiosos demonstravam uma disposição para
reflexões a respeito da linguagem humana e de suas potencialidades. O filósofo
Sócrates
2
condenava uma forma de uso da linguagem, conhecida por retórica, dizendo
ser esta uma prática sofística, dando a entender que a retórica, àquela época, era usada
pelos sofistas com o intuito de enganar por meio de um discurso empolado, enfeitado e
sem nenhuma consistência, reservando à retórica um conceito quase que de
charlatanismo.
Veremos que é com Aristóteles
3
que a retórica ganha um status mais sério,
tendo este dedicado profundas reflexões e estudos a respeito do tema. No entanto, o
conceito da retórica aristotélica foi corrompido ao longo do tempo, tendo chegado aos
séculos XIX e XX como algo pejorativo. Até hoje, com certa freqüência, presenciamos
expressões como “isso é mera retórica” ou “sem retóricas”, com o intuito de se referir a
um discurso vazio, sem consistência.
Da retórica à nossa moderna concepção de discurso, os hiatos, no percurso
histórico dessa temática, são contemporaneamente recuperados e reanalisados à luz da
Análise do Discurso
.
Alguns consideram o marco inicial da Análise do Discurso, o ano de 1969,
quando Pêcheux publica a obra intitulada Análise Automática do Discurso (AAD), bem
como o lançamento da revista Langages, organizada por Jean Dubois. As questões
relacionadas ao ‘sujeito’ materialmente constituído pela linguagem e interpelado pela
ideologia vão permear as discussões na área.
Na época, o estruturalismo vivia seu apogeu, ainda que desse mostras de
certas fissuras internas; o movimento de maio de 68 e as novas interrogações que
2
Sócrates nasceu em Atenas, no final de 470 ou no início de 469 a.C. e morreu, condenado pelo Tribunal
Ateniense a tomar cicuta (veneno), em 399 a.C., com a idade de 70 anos. CHAUÍ (2002: 177).
3
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética.
18
surgiram no âmbito das ciências humanas foram decisivos para subverter o paradigma
então reinante.
A Análise do Discurso recorta, portanto, seu objeto teórico o discurso
distinguindo-se da Lingüística imanente, que se centra na língua. As condições de
produção do discurso e de apreensão de significados terão relevância nas análises e é
que se encontra esta dissertação. É precisamente para essas abordagens que lançaremos
um olhar atento e crítico, colocando-nos num lugar privilegiado de observação: o do
discurso.
Com o advento e o avanço das pesquisas em Análise do Discurso
4
, surgem
novas e interessantes considerações que esta pesquisa estará empenhada em discutir. É
justamente a capacidade de engendrar e produzir discursos, de afetar o outro pela
palavra, de fazer com que nosso interlocutor mude de atitude influenciado pelo nosso
“raciocinar com palavras” que constitui o discurso dialético, que, distinto do retórico,
produz uma discursividade que visa ao debate entre pensamentos contrários. Essa
questão sempre constituiu as investigações filosóficas, em alguns aspectos, também
centradas nas ideologias. Então, como a ideologia afeta e participa da elaboração da
nossa discursividade, e conseqüentemente, fornece-nos a possibilidade de afetar o nosso
interlocutor? Uma resposta a essa inquietante indagação encontra-se no eixo
Dialética/Retórica que, embora semelhantes, apresentam, quanto aos aspectos
discursivos, distintas formações estruturais quanto à argumentação. Na Arte Retórica,
Aristóteles (s/d.: 34) tem-se que: “A retórica é o rebento da dialética”.
Nas últimas décadas, mais precisamente nos anos 60, a retórica, e,
conseqüentemente, a argumentação torna a ter lugar de destaque, sobretudo pela
4
Segundo Ida Lucia Machado, a Análise do Discurso (AD) serviria, a grosso modo, para analisar os
diferentes discursos sociais e suas variantes, de uma cultura para outra. Seria uma AD da linguagem,
enquanto veículo social de comunicação. MACHADO (2001: 46).
19
divulgação dos trabalhos de Perelman
5
, a exemplo do Tratado sobre argumentação,
reconhecido como a nova retórica”, que é de 1958. Em tal obra a nova concepção de
retórica, mais valorizada e bem próxima do lugar de destaque em que Aristóteles a
colocou, faz com que os estudos da linguagem tenham um novo horizonte no que diz
respeito aos aspectos relacionados ao discurso.
O discurso agora terá o seu lugar de destaque e constituir-se-á como rico e
vasto objeto de pesquisa. É nesse contexto que se situa a Análise do Discurso (AD) e o
tema dessa dissertação, o discurso de defesa proferido por Sócrates e relatado por
Platão, após a condenação e morte de Sócrates.
A “Apologia de Sócrates”
6
remonta à autodefesa do filósofo Sócrates, feita
perante seus acusadores (Meleto, Ânito e Lícon) em um tribunal composto por 500
juízes, no século IV a.C., que, ao final do julgamento, acabaram por condenar Sócrates à
morte. A utilização da Apologia como corpus objetiva trazer à tona uma antiga e
saudável polêmica acerca do discurso de defesa de Sócrates, escrito por Platão
7
aproximadamente vinte e quatro séculos. No corpus a ser analisado, temos algumas
considerações a fazer a respeito dos principais personagens envolvidos na questão:
Sócrates é considerado um dos maiores oradores da história da humanidade,
tinha uma arma poderosíssima, que era a capacidade de vencer quaisquer debates,
contra quem fosse, usando para tanto uma argumentação que era incontestável. Esse
5
PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.
6
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2003.
7
Não apenas Platão fez uma Apologia a Sócrates, Xenofonte também escreveu uma“Apologia de
Sócrates“, inserida nos Memoráveis, escrita, segundo o autor, para provar que Sócrates foi um cidadão
altamente patriota, piedoso, justo, que fazia sacrifício aos Deuses e era leal aos amigos. CHAUÍ (2002:
183).
20
método socrático - maiêutica
8
- consistia em indagar e, ao mesmo tempo, sugerir os
caminhos ao interlocutor, até que este chegasse à definição procurada. Era o “parto de
idéias”; no caso, nascimento de um conhecimento verdadeiro.
Como poderia Sócrates sucumbir aos questionamentos dos acusadores,
embora possuísse argumentos fortes e eficazes para persuadir e convencer os juízes de
sua inocência?
Sócrates discursava em praça pública Ágora
9
encantando e maravilhando
a todos que o ouviam, e a respeito disso, o Prof. Zeferino Rocha (2001:113) nos diz que
“da mesma forma que Platão ensinou na Academia e Aristóteles no Liceu, Sócrates
ensinou na Ágora”, sem contar os embates que travava com os sábios espalhados por
toda a Grécia antiga, a respeito de assuntos controversos, tais como amor, sabedoria,
felicidade, entre outros.
Será que a platéia
10
de Sócrates, presente no julgamento, tinha alguma
receptividade para ouvir seus argumentos? Será que estavam propensos a ouvir os
argumentos daquele homem ou possuíam um pré-julgamento a respeito da questão?
Até que ponto a opinião estabelecida se torna uma “muralha” intransponível ao ato
de
persuadir
e
argumentar
?
8
Maieuti: arte de realizar um parto. A palavra maieuía significa parto; maieútria, parteira; o verbo
maieúo significa realizar o parto auxiliando a parturiente. O maieutikós ó o parteiro que conhece a arte
ou técnica do parto. Platão criou a palavra maieutiké para referir-se ao parto das idéias” ou “parto das
almas” realizado pelo método socrático. A mãe de Sócrates era parteira.
9
O direito de reunir-se era sempre indispensável. Para essa reunião, chamada agorá, impõem-se a
existência de uma praça pública, que tem o mesmo nome. Ela é, antes de tudo, o lugar do mercado. Mas
a praça não era apenas o lugar das transações comerciais; aos comerciantes e sua clientela misturam-se
curiosos e desocupados. Em qualquer hora do dia, é o lugar de encontro onde se passeia ao ar livre,
onde se fica sabendo das novidades, onde se discute política, onde se formam as opiniões. A ágora,
portanto, preenche todos os requisitos para servir às assembléias plenárias. GLOTZ (1980: 17).
10
A Justiça era administrada pelos tribunais populares. Anualmente, eram escolhidos cinco mil juízes
(quinhentos por tribo). Foi num desses tribunais populares, o de Atenas, que Sócrates foi condenado.
ROCHA (2001: 66).
21
Sócrates, segundo Platão
11
, ao fazer sua defesa, não obteve o sucesso
desejado (ser considerado inocente), tendo sido condenado à morte. Alguns estudiosos
chegaram a acreditar que a tarefa de provar a inocência perante o tribunal de Atenas,
constituir-se-ia em missão de facílima conclusão para Sócrates, tendo em vista sua
grande capacidade e sabedoria, chegando a aventar a hipótese de que só não o teria feito
por vontade própria, uma vez que estava muito velho e que, de uma forma ou de
outra, a morte já estando próxima, ele preferiu a morte por ingestão de veneno à fácil
empreitada de provar sua inocência. Mas será que podemos aceitar essa afirmação como
solução para a problemática?
A obra Apologia de Sócrates, escrita por Platão, coloca-se entre as mais
belas páginas de eloqüência que nos foram legadas pela Antiguidade. De grande valor
como documento histórico e humano, nela poderão ser encontradas pistas para a
tentativa de desvendar alguns ‘mistérios’ que giram em torno do episódio da morte de
Sócrates.
Norteando a pesquisa nas teorias da AD, os estudos poderão trazer alguma
contribuição para a comunidade acadêmica. O analista de discurso, enquanto
pesquisador, estaria em condições trazer à tona os engendramentos discursivos
imbricados nas realizações argumentativas presentes na linguagem humana.
Reporto-me às palavras da Professora Ida Lucia Machado (2001:44):
O sujeito que se presta a realizar uma pesquisa deve, por definição,
ter um espírito crítico, ou seja, manter um olhar não-conformista
sobre o mundo, não se deixando levar por idéias feitas; deve nele
reinar algo de subversão, de ironia, face aos fatos e ditos do mundo, e
é esse ‘algo’ que levará tal pesquisador a examinar diferentes grupos
de textos movido por um desejo de ‘desvendar’ o que até então não
havia sido desvendado, de confrontar diferentes opiniões oriundas de
11
Pertencente a uma das mais prestigiosas linhagens da Aristocracia ateniense, Platão nasceu em 427
a.C. e morreu em 347 a.C.. Por parte de mãe, descendia de Sólon; por parte de pai, do Rei Codro,
fundador de Atenas. CHAUÍ (2002: 212).
22
diferentes culturas. Logo, assim agindo, o sujeito-pesquisador estará
refletindo ou colocando em dúvida idéias por demais aceitas ou por
demais implantadas ao ponto de se transformarem em dogmas, no
nosso universo social. (grifos meus)
Devido ao fato de poder se atribuir à Análise do Discurso, as definições mais
variadas e amplas, parece-nos importante fornecer a concepção que achamos mais
condizente com o que pretendemos realizar em nossa pesquisa. Das inúmeras definições
encontradas no Dicionário de Análise do Discurso de Charaudeau e Maingueneau
(2004) e no Termos-chave da Análise do Discurso de Maingueneau (2000),
apreenderemos as seguintes: Análise do Discurso é “a análise do uso da língua”; “o
estudo do uso da língua, pelos locutores reais em situações reais e os autores seguem
dizendo que preferem associar a Análise do Discurso, sobretudo, à relação entre texto e
contexto
; e concluem que “não se fala, então, de análise do discurso em relação a
trabalhos como os de Ducrot, que incidem sobre enunciados descontextualizados”.
Faz-se necessário também uma breve menção a respeito da nossa visão sobre
o termo “discurso” e como estaremos adotando-o em nossa pesquisa. Por se tratar de um
termo o polissêmico e usado nas mais variadas linhas de estudo, indicamos algumas
concepções presentes no citado Dicionário. Este nos fornece mais de uma dúzia de
diferentes usos e modos de conceber o termo “discurso”, mas preferimos adotar, em
nossa pesquisa, a definição encontrada e citada no Dicionário como sendo: “o discurso
é a utilização, entre os homens, de signos sonoros articulados, para comunicar seus
desejos e opiniões sobre as coisas”. na obra intitulada: Termos-chave da Análise do
Discurso, também mencionada, encontramos outras tantas acepções, mas preferimos
aquela que diz ser o discurso relacionado com o contextual; “discurso é a atividade de
sujeitos inscritos em contextos determinados” e ainda uma citação de Foucault, presente
23
na mesma obra, que diz: “chamaremos discurso um conjunto de enunciados que
dependem da mesma formação discursiva”.
Com relação aos aspectos retóricos e possíveis interfaces entre Análise do
Discurso e Retórica, não entendemos aqui a Retórica como algo separado da Análise do
Discurso; entendemos que os tipos de argumentação objeto da retórica são uma
possibilidade dentro desse imenso campo, para onde convergem diversas correntes.
Logo, interpretamos a retórica como algo que hoje é englobado pela Análise do
Discurso e não ao contrário. A retórica, de acordo com nosso ponto de vista, constitui-se
como uma das muitas possibilidades de estudo que está inserida nessa grande ‘Escola’ a
que se convencionou chamar Análise do Discurso.
Se falamos de Retórica, devemos associá-la à ideologia, pois um mesmo
corpus pode ser descrito do ponto de vista de como foram socialmente engendrados no
que se refere às argumentações (aspectos retóricos), bem como no que tange aos
aspectos ideológicos imbricados no cenário argumentativo. É aí que se encontra a
Análise do Discurso, englobando essas várias formas de manifestação da linguagem
humana. Em Orlandi (2003:15) temos:
A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da
língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe
interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso,
etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr
por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento,
prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem
falando.
Essas indicações, por ora, nos parecem suficientes para apontar os rumos de
nossa dissertação e é esse “discurso filosófico”, proferido por personagens bem
definidos e em situações históricas também definidas, que consideraremos em nossa
pesquisa.
24
CAPÍTULO I AS ORIGENS DA RETÓRICA
25
1.1 O SURGIMENTO DA RETÓRICA NA GRÉCIA ANTIGA
Estudiosos apontam o século V a. C., por volta do ano de 480, como o marco
do nascimento da retórica. Naquele ano, os gregos sagraram-se vencedores contra os
persas em um embate que ficou conhecido como Batalha de Salamina. Esse
acontecimento histórico é considerado o fato que impulsionou e deu origem ao período
da Grécia Clássica, denominado como século de Péricles, em referência ao grande
governante que Atenas teve no século V a. C. Péricles foi um líder que, entre outras
realizações, instituiu a remuneração para os ocupantes de cargos públicos, foi o
responsável por muitas obras, estimulou o desenvolvimento intelectual e artístico, além
de escrever tragédias e comédias nas quais a preocupação era retratar a vida humana,
buscando compreender tudo o que cercava o homem em seu cotidiano. Ele achava que
toda a cidade deveria ter um local onde todos pudessem se reunir para tratar de assuntos
comuns, como construção de templos, declarações de guerra, etc. Entre os seus amigos,
havia bios, poetas como Sófocles, artistas, o filósofo Anaxágoras, Sócrates, Heródoto
o pai da história , o escultor Fídias e muitos outros personagens ilustres. Péricles
entendia que todos os assuntos deveriam ser debatidos e votados pelos cidadãos. A
palavra e a argumentação passam a ter papel importantíssimo para a Pólis. Em Glotz
tem-se que:
Na época de Péricles, a vida política de Atenas testemunhou um
equilíbrio perfeito entre os direitos do indivíduo e o poder público.
(...) A teoria constitucional da democracia ateniense é bem simples;
resume-se numa expressão: o povo é soberano. Quer funcione na
Assembléia ou nos Tribunais, tem a soberania absoluta de tudo o que
se refere à cidade.
12
Na Sicília, a tirania era derrotada com a queda do tirano de Siracusa, com a
democracia instalada, os exilados começaram a retornar às suas terras, e pessoas, que
12
GLOTZ (1980: 107 - 111).
26
tiveram bens confiscados pelo regime tirano, começaram a reclamar suas antigas posses
e quaisquer bens que julgavam ter algum direito.
Com todo esse cenário, surge um problema como aqueles que
reivindicavam o direito de propriedade poderiam reclamar suas posses se não havia um
sistema eficiente de controle e registro dos bens? Não existia a figura do cartório como
nos dias atuais. A solução foi resolver todas as contendas e disputas através de uma
espécie de debate jurídico. Os envolvidos teriam a oportunidade de expor seus reclames
e objetar da forma que melhor lhe conviesse, mas que pudesse, ao final de sua
exposição, persuadir aos juízes que aquilo que reclamavam era, de fato, algo de sua
propriedade e de seu direito.
Podemos facilmente perceber que aqueles que estivessem em melhores
condições de argumentar publicamente, persuadindo e defendendo aquilo que julgassem
como sendo seu de direito, sairiam à frente e poderiam ser beneficiados, ao contrário, os
que não possuíssem o dom da oratória, perderiam as disputas por não saberem expor e
argumentar a fim de defender sua causa.
Surgem, então, profissionais que se oferecem para falar em nome de outras
pessoas; para defender suas causas, preparar os discursos previamente (logógrafos e
retores). Os desprovidos do ‘dom da palavra’ agora poderiam recorrer aos préstimos
daqueles que dominavam as técnicas do bem dizer; obviamente mediante pagamento,
pois essa defesa não era realizada de forma gratuita.
A retórica nasce assim, com a derrubada da tirania e, conseqüentemente,
com as pessoas podendo tomar a palavra nos debates públicos, nas conversas da Àgora
e passando a ter o direito de expressar e defender suas opiniões. A retórica é própria da
democracia, pois podemos percebê-la como liberdade para se expressar, ela é por
27
excelência a arte da democracia. Na tirania, o discurso e a palavra são sufocados e a
retórica não se apresenta. Se a essência da retórica consiste na persuasão através da
argumentação, o como pensá-la sem democracia e liberdade, ideais que
começavam a fazer parte da Pólis na Grécia antiga. A retórica ensina, desde o início,
que o que importa é a verossimilhança, no sentido de que esse semelhante ao verdadeiro
seria, como diz Plebe & Emanuele (1992: 23), “segundo a razão”, “segundo a
racionalidade”. Ele ainda aponta a importância do verossímil dizendo que “o
verdadeiro sem o verossímil é, com freqüência, impotente”, e conclui que: “A realidade
fica obscura se não se torna aparência, mas a aparência é inconsistente se não for
pertinente à realidade”. Os homens serão persuadidos pelo discurso da aparência,
sustentado por uma oralidade lógica e racional.
Das disputas e debates jurídicos oriundos de um estado democrático a
retórica se desenvolve, fixando-se como doutrina de vida. As pessoas queriam aprender
essa técnica; os pais queriam ver seus filhos educados e receber uma educação
completa, e entre as várias disciplinas e conteúdos a que os jovens eram iniciados,
estava a arte oratória. Professores de retórica – conhecidos como retores começavam a
ganhar dinheiro e cobrava-se muito pelos ensinamentos, a retórica chegava ao seu
apogeu.
28
Retor e seus discípulos. Ilustração da Antiguidade.
29
1.2 OS SOFISTAS
1.2.1 ORIGEM DO TERMO SOFISTA
Na Grécia antiga, as palavras sophos e Sophia eram habitualmente
empregadas para designar sábio e sabedoria. A própria palavra filosofia tem na sua
constituição a presença desse radical sophos que, em conjunto com fhilo, originou: amor
ao saber, amante do saber ou amigo do saber.
Inicialmente, esse sophos era utilizado para indicar ou realçar uma
determinada capacidade, perícia e/ou ainda uma posse de intelectualidade. Por exemplo,
um construtor de navios teria o sophos da construção de navios; um cocheiro teria o
sophos do trato com cavalos; um escultor, o sophos em sua arte; uns teriam o sophos da
geometria; outros da medicina e assim cada um em sua área. A idéia de sophos, então, é
atribuída a alguém que desempenha uma determinada tarefa ou ocupação com um rigor
e perfeição em nível de excelência. Assim sendo, o termo ‘sofistatinha, no início, um
significado bom, nobre, e antes de ter adquirido o sentido pejorativo com o qual é
vinculado, sofista era sinônimo de bio. Em Guthrie, temos o lamento de Isócrates
13
, a
respeito da degradação que o termo sofre.
Ofende-me ver a cavilação mais altamente considerada que filosofia,
como o promotor que põe a filosofia no banco dos réus. Quem dos
velhos tempos teria esperado isso, entre vós e todos os povos que se
orgulham de sua sabedoria (sophia)? Não foi assim nos tempos de
nossos antepassados. Eles admiravam os que eram chamados sofistas
e invejavam seus amigos. A melhor prova é que escolheram Sólon, o
primeiro cidadão ateniense a portar tal título, para governar o
Estado.
14
13
Contemporâneo de Sócrates e Platão. Apesar de ensinar a arte da oratória, não era tão desprezado por
Sócrates e Platão como eram os sofistas. Em REBOUL (2004: 12) tem-se: Isócrates vai propor uma
retórica mais plausível e mais moral que a dos sofistas (...), devemos agradecer a Isócrates por ter
libertado a retórica do domínio sofístico.
14
GUTHRIE (1995: 32 - 33).
30
A maneira como estava organizada a Pólis grega, a assembléia, os tribunais
populares, os debates na Àgora, fazia com que se passasse a dominar um pouco de cada
assunto, uma espécie de cultura geral, de conhecimento lato. Daí que muitos não
possuíam todo o sophos (conhecimento) a respeito de um dado assunto, ou ciência, ou
arte, mas pequenos sophos a respeito das mais variadas temáticas. Assim sendo, surgem
os sophistes (sofistas), que não possuem – necessariamente conhecimento profundo de
quaisquer ciências ou técnicas, mas saberes superficiais de quase tudo.
A falta de um profundo e verdadeiro saber deveria ser preenchida de alguma
forma, senão como esses sophistes poderiam angariar credibilidade e receber aceitação
por parte de alguém? Tudo indica ser aí o ponto crucial para tudo que a palavra ‘sofista’
passa a significar. Sofista passa a relacionar-se com perícia em discurso e
argumentação. Guthrie (1995: 34) diz que “um sofhistes escreve e ensina porque tem
especial perícia ou conhecimento para comunicar”. A falta de um verdadeiro e notório
saber será amenizada, preenchida e/ou camuflada com as técnicas oratórias e discursivas
ou com a arte da persuasão.
Os sofistas passam a ser procurados por aqueles que se interessam pelo
aprendizado e aprimoramento da arte oratória; daí se tornam mestres para ensinar a
discursar e a persuadir. É que a história dos sofistas se mistura com a da retórica.
Sofística e Retórica passam a significar a mesma coisa ou ainda, a retórica será o objeto
de ensino, a ‘ciência’ dos sofistas. No diálogo Górgias, Platão dirá que:
Ao contrário do que imagina o sofista, a retórica não é uma arte (ou
técnica) e muito menos uma ciência, mas uma habilidade, uma
perícia ligada ao prazer, fazendo parte de um conjunto de habilidades
desse tipo que, no diálogo, são chamadas de perícias de adulação. (...)
A retórica é a arte do logro e do engano.
15
15
Apud CHAUÍ (2002: 233 - 234).
31
Desde então, torna-se praticamente impossível referir-se a um termo sem que
o outro seja, também, lembrado e mencionado. Os sofistas mostram-se dispostos a
discutir quaisquer assuntos. As palavras serão tomadas em sentidos diversos e serão
manipuladas como instrumento de persuasão para o alcance dos mais variados
objetivos.
1.2.2 ALGUNS DOS MAIS ILUSTRES E RENOMADOS SOFISTAS
A tirania havia sido deposta na Sicília e, coincidentemente, dois sicilianos,
Córax e Tísias, criavam um método com as regras do bom discurso. Córax era mestre de
Tísias e os dois elaboraram uma coletânea de preceitos e exemplos tekhné rhetoriké
com os quais as pessoas deveriam se apropriar quando procurassem os tribunais para
reclamarem quaisquer direitos. Em Reboul (2004:02) temos: Córax a primeira
definição de retórica ela é criadora de persuasão. Como Atenas mantinha estreitos
lações com a Sicília, e até processos, imediatamente adotou a retórica”
.
A democracia ateniense influenciou o desenvolvimento da educação, pois a
maneira como a cidade estava estruturada exigia uma preparação intelectual mais
completa. Os sofistas encontraram o seu filão e passaram a dar aulas em várias cidades
da Grécia.
Nesse contexto, tem-se Górgias, Protágoras, Hípias, Pródico, Antífon,
Crítias, Lícofon, Trasímaco, Isócrates e muitos outros contemporâneos destes, que da
mesma forma, estavam empenhados no ensino da arte retórica, como aprimoramento da
eloqüência pública, com o objetivo de iniciar e/ou habilitar os seus aprendizes na arte da
persuasão.
32
Górgias da cidade de Leontini, viveu aproximadamente 109 anos (485 – 376)
e era apontado por Platão como a própria personificação da retórica e a maior expressão
prática da sofística. Ele viajava de cidade em cidade, ensinando e cobrando pelos
ensinamentos retóricos, estando sempre acompanhado por muitos discípulos. Platão
chegou a escrever um diálogo, o Górgias, em referência a seu nome. Górgias foi um dos
mais renomados professores de retórica de sua época e defendia a inexistência de
qualquer critério absoluto para o conhecimento e a comunicação, com base em três
princípios fundamentais: 1) nada existe; 2) o que existe é inconcebível, pois se alguma
coisa existisse não a poderíamos conhecer; 3) o conhecimento é incomunicável, se
acaso o conhecêssemos não poderíamos manifestá-lo aos outros.
Platão dizia que a arte de Górgias produzia a persuasão. Ele tinha um estilo
tão peculiar de se dirigir ao público em seus discursos que os gregos criaram o termo
“gorgianizar”, para designar o falar à maneira de Górgias. Ele é freqüentemente
relacionado à poesia, uma vez que considerava ser a poética, a palavra ritmada, a
verdadeira e mais profunda natureza da persuasão. As concepções de Górgias e o seu
talento oratório exerceram uma grande influência em seus sucessores.
Outro grande nome no rol dos famosos sofistas, que consideramos
importante discorrer um pouco a seu respeito é Protágoras (486 410) da cidade de
Abdera. Protágoras levou a subjetividade e o relativismo ao extremo e é dele o célebre
pensamento “o homem é a medida de todas as coisas”. Esta máxima significava que
para uma determinada realidade, depende cada homem individualmente a tarefa de sua
interpretação e forma de conceber as coisas. Note-se a importância disso para a retórica
e a sofística, que precisavam, em cada caso, fornecer uma interpretação visando a
provocar a persuasão e o assentimento do interlocutor a respeito do tema em pauta.
33
Conhecimentos pré-elaborados e já consolidados, dependendo do objetivo, deveriam ser
desmontados, pois em matéria de retórica tudo tem que ser possível. O pensamento de
Protágoras identifica o real como algo de contraditório (antilogia) e afirma a imanência
recíproca dos contrários.
Protágoras nega qualquer verdade absoluta, o universal não é dado, que
ser buscado pelo homem. A exemplo do que aconteceu com Górgias, Platão também lhe
dedicou um de seus diálogos que traz o seu nome, o Protágoras. Protágoras também
alcançou a prosperidade, cobrando por seus ensinamentos sobre retórica. Platão
enfatizou a riqueza dos sofistas dizendo que “Protágoras ganhou mais de sua sophia do
que Fídias e outros dez escultores ajuntaram; e Górgias e Pródico mais do que
praticantes de qualquer outra arte”
16
.
O homem como medida de tudo acaba por justificar toda a retórica sofística,
pois a verdade das coisas estariam mais no próprio homem do que nas coisas, como o
homem é múltiplo, diverso e cheio de facetas, as verdades também o serão e é dessa
justificativa que as proposições e os argumentos poderão tomar os mais variados
sentidos de acordo com a necessidade do momento.
16
GUTHRIE (1995: 39).
34
1.3 SÓCRATES E PLATÃO
Sócrates (469 399 a.C.) nasceu num vilarejo próximo de Atenas. Seu pai
era escultor e a mãe parteira. Morreu em 399 a.C., condenado pelo tribunal ateniense a
tomar cicuta, quando estava com 70 anos de idade. Ainda jovem, começou a apreender
a arte da escultura com o pai, mas logo foi enviado para estudar com o filósofo
Anaxágoras
17
. Já com a idade adulta, Sócrates se tornou um amante do saber, um
filósofo, e tornou-se uma das figuras mais expoentes de nossa história. Sócrates dizia
que seu método a maiêutica era uma mistura da arte do pai e da e, seu pai
escultor transformava a matéria bruta, dando-lhe forma e nobreza e sua mãe parteira
participava do processo de dar à luz. Então, ele poderia ser um escultor de pessoas
fazendo-as melhores e levando-as a dar à luz a um novo saber, o “parto de idéias”.
Sócrates não nos deixou nada escrito e tudo o que temos dele são de fontes
indiretas. Certa vez, ele justificou o porquê de sua recusa à escrita:
Antigamente, havia um deus egípcio chamado Theuth. Certo dia,
Theuth foi se encontrar com o rei do Alto Egito e começou a mostrar-
lhe tudo o que tinha inventado. Quando Theuth chegou ao alfabeto,
explicou: ‘esta é uma invenção que i ampliar imensamente a
sabedoria e a memória de seu povo’. O rei, no entanto, replicou: ‘Ó,
inventivo Theuth, seu alfabeto produzirá o efeito exatamente oposto
ao que se espera. Assim que os egípcios passarem a confiar na
sabedoria escrita deixarão de usar a memória, abandonando seus
recursos interiores para adotar esses sinais externos.
18
Ele ainda dizia que o uso da escrita teria um inconveniente que se assemelha
à pintura, pois as figuras pintadas também têm atitude de pessoas vivas, mas se alguém
as interrogar, elas permaneceriam caladas e com os livros e discursos escritos acontece
da mesma forma. Se interrogarmos um livro, ele permanecerá mudo e não nos trará as
respostas exatamente como buscamos, e ele seguia justificando a sua recusa pela
17
Anaxágoras (500 - 428 a.C.), além do mestre de Sócrates, foi também mestre e amigo de Péricles.
18
PLATÃO. Fedro (2003: 118 - 119).
35
escrita. Sócrates acreditava que os indivíduos deviam buscar o aprimoramento
intelectual, atingir o puro e verdadeiro entendimento sobre as coisas; não aceitava que
uma pessoa pudesse viver no plano da superficialidade a respeito do mundo.
Aprofundar-se o máximo possível em tudo era a sua doutrina de vida e essa busca
incessante pelo saber é que tornaria o homem melhor e mais justo, daí a sua célebre
frase: “conhece-te a ti mesmo”. Essa constante busca pela sabedoria fazia com que os
filósofos ficassem a debater por horas, dias, a respeito de um determinado tema, com o
objetivo de estabelecer um saber universal.
A análise rigorosa dos mais variados assuntos mostra a importância do uso
da razão. Essa racionalidade discursiva e esse método de argumentação foi chamado
dialética
, que pode, perfeitamente, ser considerada a precursora da lógica. Em Strathern
(1998: 54) tem-se que:
Esta era a grande inovação da dialética
: uma ferramenta que podia ser
aplicada a tudo. Depois de consolidada a definição do assunto,
Sócrates passava então a descobrir falhas nele e no decorrer do
processo chegava a uma melhor definição. (grifo nosso)
A filosofia socrática influenciou vários discípulos que passaram a ser
destinatários de seus ensinamentos, dentre os quais destacamos Platão. O surgimento da
dialética e da racionalidade discursiva, como meio de se alcançar o saber e o verdadeiro
entendimento das coisas, coincide com o período em que a retórica florescia e era
amplamente difundida em Atenas pelos sofistas.
Sócrates e Platão tornar-se-ão os grandes desafetos dos sofistas e os acusarão
de espalhar essa falsa ‘ciência’ a arte retórica que degrada o ser humano, uma vez
que não visa o verdadeiro, o saber elaborado, a racionalidade das coisas, e tão somente
um pífio saber superficial, um falso saber, que visa tão somente o engodo e o logro no
momento da persuasão.
36
Em quase todas as obras de Platão, encontramos, ainda que subliminarmente,
referências à retórica e aos sofistas, mas a concepção negativa que ele e seu mestre
Sócrates tinham a respeito dela fica mais evidente em três obras: no Sofista, onde
condena-se a retórica sofística, dando-nos mostras que poder-se-ia falar de uma possível
retórica boa; e as obras Fedro e Górgias, onde o tema é novamente o sofista e sua arte
retórica, vista como mentira, adulação e veneno. No Fedro, Sócrates chega a dizer que
“a retórica é a arte de dirigir as almas por meio de palavras” e no Górgias ele chega a
se interrogar: “me pergunto muito que poder é esse da retórica, ela parece algo de
grandeza quase divina”.
Podemos perceber claramente que a visão negativa da retórica, que
atravessou os séculos e chegou até nós, é um legado socrático-platônico. O sofista era
um professor de técnicas, de como os políticos deveriam dominar a eloqüência para
alcançar seus objetivos. O sofista era um cético que ensinava que o sim e o não
dependeriam apenas dos argumentos para persuadir alguém a manter ou a mudar de
opinião. A verdade das coisas não era sua preocupação. A filosofia socrática, ao
contrário, buscava um discernimento a respeito do mundo das opiniões (contingente,
acidental) e o da verdade (necessário); o profundo e o superficial; as aparências e a
realidade. O mundo de opiniões que os sofistas tentaram estabelecer na Grécia antiga
faz levantar a voz de Sócrates de tal forma que ainda hoje somos capazes de ouvir seus
ecos.
37
Busto de Sócrates. Museu de Roma.
Platão, detalhe da ‘Escola de Atenas’ de Rafael (1510), Museu do Vaticano.
38
No livro VII da República, Platão narra o Mito da Caverna onde homens
vivem acorrentados dentro de uma caverna de costas para uma pequena fenda, que fica
no alto da caverna e por onde passa alguma luminosidade. Os homens passam toda a
vida observando apenas as sombras que são projetadas no fundo da caverna, oriundas da
luminosidade que passa pela fenda quando seres passam do lado de fora próximo da
caverna, tais como homens, mulheres, crianças, animais etc. Um dia, um deles resolve
se libertar das correntes e escalar a parede da caverna, em uma árdua e difícil jornada
ele chega à fenda que conduz à saída, quando consegue chegar do lado de fora fica cego
de tanta luz, mas aos poucos vai se acostumando e percebendo as maravilhas que existe
do lado de fora, fica perplexo ao ver toda a beleza do mundo que o cerca e que na
verdade aquelas sombras, tidas como toda a realidade existente não eram nada, além de
meras sombras. Ele faz a viagem de volta à caverna e procura libertar os demais para a
luz, mostrando-lhes a beleza e o conhecimento.
Essa alegoria da caverna permite várias interpretações, mas de acordo com
as concepções de Sócrates e Platão, adotaremos o que diz Chauí (2002: 261):
As sombras são as coisas sensíveis, que tomamos pelas verdadeiras.
Os grilhões (correntes) são nossos preconceitos, nossa confiança em
nossos sentidos, nossas paixões e opiniões. O instrumento que quebra
os grilhões e permite a escalada do muro é a dialética. O prisioneiro
curioso que escapa é o filósofo. O retorno à caverna para convidar os
outros a sair dela é o diálogo filosófico.
O Mito da Caverna nos ajuda a perceber a essência da filosofia socrático-
platônica, mostrando que na ignorância não verdade. Com isso, Platão discorre sobre
a importância da educação e, óbvio, da filosofia. Só através dela o homem pode
enxergar a luz, metáfora que associa o conhecimento à liberdade e à verdade; e a
ignorância (trevas) ao aprisionamento e alienação.
39
Em Rocha (2001:126) tem-se que:
A paixão de Sócrates era a missão do educador. Jamais foi seu desejo
apoderar-se do poder político. Seu objetivo era o bem da cidade. Mas
isso lhe parecia possível se a cidade fosse estruturada numa ordem
ética.
A filosofia e a educação seriam a dura jornada que o homem fez ao escalar
as paredes da caverna, conduzindo-o à luz e ao verdadeiro conhecimento, em si
dialético. O conhecimento através da filosofia descortina a luz que nos cega
momentaneamente, mas nos ilumina perenemente. Quem não conhece o mundo pelo
conhecimento, pela educação, está condenado às trevas, à caverna de onde se vislumbra
a realidade por uma fenda.
40
1.4 ARISTÓTELES
Aristóteles (384 322) nasceu na cidade grega de Estagira, daí o porquê de
ser freqüentemente referenciado como o “estagirita”. Seu pai Nicômaco era médico
e Aristóteles chegou a receber certa educação em Medicina. Aos dezoito anos, transfere-
se para Atenas, onde passará a freqüentar a Academia de Platão. Aristóteles ouviu, por
aproximadamente 20 anos, as lições de Platão na Academia.
Certo dia, quando Platão verificou que Aristóteles não se encontrava na
Academia, proferiu as seguintes palavras: “a inteligência es ausente”.
Contemporâneos dos dois filósofos declararam que Platão costumava chamar seu maior
discípulo de “o Espírito”, “o Ledor”, “o Entendimento”, dando-nos mostras de sua
capacidade e genialidade pelo fato de ser tão admirado pelo próprio mestre.
Com a morte de Platão (em 347 a.C.), Aristóteles deixa a Academia. Mais
tarde, quando estava com aproximadamente 50 anos, funda sua própria escola, o Liceu,
que chegou a ser uma verdadeira universidade e há quem afirme que era tão bem
organizada e laboriosa quanto as universidades de nossos dias. Aristóteles tinha um
espírito enciclopédico e versou praticamente sobre todas as matérias que eram objeto de
estudo dos pensadores de seu tempo.
Uma das obras de Aristóteles, o Órganon, possui um tratado intitulado
Tópicos. Nos Tópicos estão presentes os preceitos a respeito da teoria da argumentação
de Aristóteles e foi apoiado neste tratado, onde ainda discorre sobre a dialética, que
Aristóteles escreveu sua Arte Retórica.
41
O Professor Goffredo Telles Júnior, autor do estudo introdutório sobre
Aristóteles, presente na Arte Retórica
19
, disse a seu respeito:
Sua maior glória foi, segundo nos parece, a de haver descoberto todas
as leis ideais da argumentação
. Com isto, criou uma nova ciência a
ciência diretiva da operação de raciocinar que, posteriormente
passou a se chamar gica. Este é o caso único de uma ciência criada
integralmente, de sua primeira à última proposição, por uma
pessoa. Vinte séculos mais tarde, Kant haveria de escrever que desde
Aristóteles, a lógica não teria ganhado muito quanto ao fundo, e,
mesmo, não poderia ganhar muito a esse respeito. (grifo nosso)
Com os estudos acerca da argumentação dialética e de sua Arte Retórica,
Aristóteles recupera a imagem da retórica, tão desprezada e maculada por Sócrates e
Platão.
Aristóteles parece ter se orientado pelas indicações que seus antecessores,
nas poucas vezes em que se referiram à retórica sem uma carga pejorativa, apontando
para a existência de uma possível retórica boa”. No conjunto da obra platônica, são
raras as passagens em que pode ser encontrada alguma referência à retórica que não
contenha uma visão negativa. Observemos uma dessas passagens do diálogo Fedro,
onde Sócrates refere-se ao tema.
Não se deve blasfemar, mas perdoar, se alguns que não sabem pensar
não souberem definir o que é retórica; esses homens, pela sua falta de
discernimento, só adquiriram o saber introdutório indispensável a
essa arte, e acreditam ter aprendido a própria retórica
; ensinam esse
saber a outros e julgam poder formar oradores perfeitos, achando que
os seus pupilos devem tentar falar sobre qualquer coisa.
20
(grifo
nosso)
Aristóteles prefere basear-se nessa possibilidade, raramente sugerida por seu
mestre Platão, da possibilidade da nobreza e da importância da retórica e desenvolve
suas obras a respeito do assunto e da argumentação de modo geral.
19
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, (s.d).
20
PLATÃO. Fedro (2003: 111).
42
É essa a tônica do trabalho de Aristóteles, uma visão não depreciativa da
retórica, uma retórica mais próxima da dialética, e a prova disso é que baseou a sua
retórica em uma obra anterior, também de sua autoria, conhecida por Tópicos, que é um
tratado sobre a dialética.
Aristóteles desmorona a ambiciosa pretensão dos sofistas que desejavam
elevar a retórica ao nível de uma arte que tudo pode, e refuta, de certa forma, o seu
mestre Platão, que juntamente com Sócrates, a colocou no plano do desprezível,
afirmando que dela não deveriam se ocupar os homens sérios. Aristóteles dirá,
simplesmente, que ela é arte, tal como a poética, visto que formula as regras da criação.
A esse ponto, necessário se faz fornecer o significado de dois conceitos para
entendermos melhor a concepção de arte e como Aristóteles teria concebido sua Arte
Retórica. Existem dois tipos de conhecimentos, dois modos de apreensão do mundo em
que vivemos, seria o campo do Contingente
e do Necessário. O
contingente
é
entendido como o verossímil, aquilo que não pode ser visto como a verdade última e
segura a respeito das coisas, é o campo da opinião (doxa) e do acidente. Já o
necessário
é relacionado ao conhecimento seguro, ao saber nobre e universal (episteme), uma
verdade segura a respeito de todo o estado de coisas (verdade necessária); é o campo da
essência e da segurança.
Podemos afirmar que a retórica aristotélica não seria tão
contingente
como
queriam Sócrates e Platão e nem suprema e toda poderosa como desejavam os sofistas.
A arte é algo que fica entre esses dois pólos, transita entre o
contigente
e o
necessário
;
a retórica como arte, estaria exatamente aí, entre esses dois extremos. Uma teoria bem
ao modo de Aristóteles, sempre buscando o “justo meio” e tentando fugir dos extremos.
43
Aristóteles
, por Rembrandt.
44
O esquema abaixo nos fornece uma idéia de como isso ocorre:
CONTINGENTE
Doxa
NECESSÁRIO
episteme
acidental, verdades momentâneas
universal, conhecimento seguro, ciência
imaginação, fantasia
A R T E
Em meio à verdade contingente e à verdade necessária é que se situa o
mundo da imaginação, o terreno da
arte
.
A retórica é a arte de persuadir através de
discursos, guiando a alma com magia e encantamento por meio das palavras. Ao
concebê-la como arte, Aristóteles constrói e fornece uma imagem boa para a retórica.
1.4.1 O SILOGISMO E OS MODOS DE ARGUMENTAÇÃO
A teoria do silogismo
21
está explicitada nos Analíticos
22
, duas obras que
também fazem parte do compêndio Órganon. Nos Analíticos Anteriores, é exposta uma
teoria geral de todos os silogismos, tanto os científicos quantos os não científicos.
nos Analíticos Posteriores, a preocupação será exclusivamente em relação aos
silogismos científicos. Com o estabelecimento da teoria do silogismo, Aristóteles
fundou a lógica. A lógica considera a forma que deve ter qualquer tipo de discurso que
pretenda demonstrar algo, e, em geral, queira ser probatório.
21
O silogismo é um discurso no qual, estando postas algumas coisas, resulta necessariamente numa outra
coisa diferente. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU (2004: 448).
22
ARISTÓTELES. Analíticos anteriores e Analíticos posteriores (2005: 111 - 345).
45
O silogismo é o raciocínio dedutivo que nos mostra o movimento que o
pensamento realiza para alcançar uma verdade necessária, ou ao menos que se aproxime
dela, sendo assim um percurso mental e verbal para que se chegue a uma conclusão
lógica e racional, composta por uma seqüência de três proposições, onde das duas
primeiras premissas decorre necessariamente uma terceira (a conclusão). As premissas
se dividem em dois tipos: universais e particulares. Universais são as que se referem a
toda uma espécie de seres; particulares são as que se referem a um ser em particular. No
famoso problema a respeito da imortalidade socrática, tem-se que Todo homem é
mortal, Sócrates é homem, logo (conclusão), Sócrates é mortal a primeira premissa é
universal (todo homem) e a segunda particular. Nos Analíticos Anteriores, Aristóteles
dá a seguinte definição:
O silogismo é uma locução em que, uma vez certas suposições sejam
feitas, alguma coisa distinta delas se segue necessariamente devido à
mera presença das suposições como tais. Chamo de silogismo
perfeito o que nada requer além do que nele está compreendido para
evidenciar a necessária conclusão; de imperfeito aquele que requer
uma ou mais proposições as quais, ainda que resultem
necessariamente dos termos formulados, não estão compreendidas
nas premissas.
23
A lógica pretende mostrar como o pensamento procede quando trabalha,
qual é a estrutura do raciocínio e como são feitas as demonstrações. Nos Analíticos
posteriores, Aristóteles diz que: a verdadeira demonstração é feita pelo silogismo”,
portanto, no silogismo, o entendimento do que está sendo colocado necessita de todo
esse curso demonstrativo, premissas e conclusão, para que a dedução ocorra.
23
ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores (2005: 112 - 113).
46
1.4.2 APODÍCTICA, DIALÉTICA, RETÓRICA E SOFÍSTICA
No conjunto das obras de Aristóteles, depreendemos os quatro modos de
raciocinar, pensar e de engendrar discursos, dentre os quais podemos citar:
apodíctico
,
dialético
,
retórico
e
sofístico
. Sendo o silogismo a maneira como o pensamento se
estrutura para raciocinar e produzir as verdades em relação a todo o estado de coisas,
podemos ainda apontar esses quatro modos discursivos como tipos diferentes de
silogismo.
Uma verdade apodíctica é uma proposição irrefutável, um conhecimento
admitido como certo, universal e duradouro. Com a apodíctica, temos o necessário, ao
invés do contingente, e chegamos a uma verdade apodíctica pela demonstração, por isso
ela é dedutiva e não indutiva. Aqui o silogismo é perfeito e devido a sua lógica e
racionalidade absoluta, o cabem questionamentos e o debate não se materializa. O
exemplo clássico de uma verdade apodíctica é o que se refere sobre o problema da
imortalidade socrática: Todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo, Sócrates é
mortal. Essa demonstração necessária parte de premissas admitidas como absolutamente
verídicas e a dedução é lógica e certa. Em Berti (2002: 03) tem-se que:
A forma de racionalidade da qual Aristóteles é tradicionalmente
considerado o primeiro teórico, aliás aquela que muitos consideram a
única, ou a única verdadeira, forma de racionalidade por ele
teorizada, é indubitavelmente a ciência apodíctica.
A ciência apodíctica é o conhecimento pronto e acabado que será exposto a
outros que o ignoram. Nesse sentido, demonstrar é um discurso, um monólogo
científico no qual o cientista mostrará a verdade irrefutável aos que não a possuem. As
conclusões serão admitidas como indiscutivelmente certas, devido à veracidade das
premissas colocadas.
47
No discurso dialético, não temos uma verdade última e irrefutável. O
silogismo dialético permite o debate e a discussão acerca do que está estabelecido. Ele
toma por base as premissas ou proposições nas quais a credibilidade baseia-se no campo
da probabilidade, mas ainda assim, calcada nas exigências da racionalidade e da lógica;
é o campo do coerente e não do irrefutável.
A dialética verifica a razoabilidade das proposições por meio de um debate
sério, no qual o interesse não é a disputa em si, a vitória pela vitória, como faz a
erística
24
, mas a construção de um conhecimento seguro assentado no raciocínio
provável, coerente e lógico, e que permita, a qualquer momento, o retorno ao debate.
Para Sócrates e Platão, a dialética era a forma de raciocínio que as pessoas deveriam
fazer uso para alcançar a verdade a respeito das coisas, ela era a ferramenta primordial
da filosofia. Em Aristóteles, a dialética passa a fazer parte da lógica o silogismo
dialético diferenciando-a da certeza científica, como é a apodíctica.
As premissas dialéticas o o tão primeiras e verdadeiras como as da
apodíctica e sim premissas “geralmente aceitas por todos, ou pela maioria, ou pelos
mais sábios”. É uma outra forma de racionalidade, diferente da apodícitica e que está
assentada na argumentação, refere-se à razoabilidade e à lógica no discurso (debate,
argumentação) com a finalidade de se chegar bem próximo de uma verdade
inquestionável. O mais importante aqui não é que as premissas sejam verdadeiras, mas
que sejam partilhadas, reconhecidas e aceitas pela audiência e pelos interlocutores.
24
Erística: significa em grego - o que ama a disputa, a discussão, a controvérsia. CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU (2004: 201).
48
Nos Tópicos, obra dedicada à dialética, Aristóteles esclarece:
O propósito deste tratado é descobrir um método que nos capacite
raciocinar, a partir de opiniões de aceitação geral, acerca de qualquer
problema que se apresente diante de nós e nos habilite, na sustentação
de um argumento, a nos esquivar da enunciação de qualquer coisa
que o contrarie.
25
A dialética voltará suas atenções para as questões em que não existam ainda
bases tão sólidas para que um certo assunto seja dado por encerrado e acabado, no que
tange à certeza científica. A arte da dialética serve para investigações nas quais não
existam ainda princípios científicos assentados. Pela dialética, aprendemos a confrontar
as diversas possibilidades e deixar que elas se desenvolvam até que uma delas saia
vencendo por se mostrar mais coerente e racional. Confrontamos os vários prós e
contras e desenvolvemos cada um de acordo com a melhor argumentação lógica
possível, dando igual chance a todos os argumentos, para ver qual deles fica de no
final. Ou seja, na dialética fazemos uma arbitragem, não tomamos partido.
Quando discutimos um assunto cujos princípios desconhecemos, temos de
remontar das questões até os princípios. Como se faz isto? Pela discussão dialética. O
confronto crítico das várias possibilidades acaba fechando as alternativas até que, num
certo momento, temos uma espécie de intelecção ou intuição dos princípios que
governam aquele assunto.
Nem sempre é possível estabelecer a certeza absoluta das premissas, como
no silogismo apodíctico. Na maioria dos casos, as premissas serão tomadas por
prováveis, coerentes e razoáveis e é através da investigação dialética que as premissas
poderão alcançar o status de premissas verdadeiras, então, podemos indicar que o que
passa a ter relevância é a dialética. O discurso dialético mede, por ensaios e erros, a
probabilidade maior ou menor de certa tese ou proposição, de acordo com as opiniões
25
ARISTÓTELES. Tópicos (2005: 347).
49
comumente aceitas e válidas, e ainda ancorada nas exigências superiores da
racionalidade e da lógica.
O discurso retórico, ao contrário da dialética que se apóia em uma
probabilidade racional, não visa estabelecer verdades e muito menos ser lógico e
racional. Diz-se do discurso retórico que ele se ocupa do verossímil, da aparência de
verdade e não de verdades. Em retórica, tem-se o orador produzindo um discurso
verossímil que, aliado a uma forte carga emotiva, influenciará a vontade do outro
(platéia) pela persuasão.
Enquanto a dialética está mais para o diálogo, onde a coletividade pode
tomar partido e o debate se apresenta, a retórica aproxima-se mais do monólogo, em que
um orador fala e a audiência escuta. Na dialética, podemos vislumbrar um debate entre
dois, ou mais, interlocutores, acerca de dada questão; na retórica temos a figura do
orador e sua platéia (audiência), como ocorre no discurso de palanque.
O esquema abaixo ilustra tal diferenciação:
Dialética
Retórica
Com a retórica, temos a indução, uma vez que o discurso retórico induz a
vontade do ouvinte fazendo-o tomar uma decisão que se enquadre nos objetivos do
orador.
50
Na obra Arte Retórica, Aristóteles chegou a definir a retórica como sendo:
Faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz
de gerar a persuasão. (...) A Retórica parece ser capaz de, por assim
dizer, no concernente a uma dada questão, descobrir o que é próprio
para persuadir. Por isso dizemos que ela não aplica suas regras a um
gênero próprio e determinado.
26
Na retórica, a persuasão o ocorrerá tomando por base proposições
irrefutáveis, mas por meio de silogismos retóricos que Aristóteles chamou de
entimemas
27
. O leve defeito ou a incompletude do silogismo retórico será suprido de
alguma forma para que a persuasão seja alcançada. É que se introduz o estudo das
paixões (pathos) como argumento determinante da técnica retórica. Aristóteles chegou a
dizer que obtém-se a persuasão nos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma
paixãoe em Plebe (1978: 77) temos que a essência e a força da retórica não é a
persuasão reacional, mas o ímpeto da paixão, o pathos”.
É pela beleza da composição e a harmonização do conjunto que mais
facilmente verificar-se-á a persuasão dos ouvintes. É desta forma que a retórica guia as
almas por meio das palavras, manifestando, assim, a magia das palavras e o
encantamento das platéias.
O discurso sofístico seria aquele em que o entimema é organizado de modo
que pareça ser verdadeiro o que está sendo proposto. O sofisma tem um formato lógico,
e mesmo constituindo-se em um defeito de raciocínio, pois as premissas, bem como a
conclusão, o resistem a uma análise mais atenciosa, mantém a aparência de verdade,
uma vez que o falso está camuflado pelo arranjamento do tipo lógico que ele apresenta.
Na obra Refutações Sofísticas
28
, Aristóteles chega a se referir à sofística como
26
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética (s.d.: 33).
27
Entimema: silogismo fundado sobre premissas não seguras. Silogismo truncado. CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU (2004: 192 - 193).
28
ARISTÓTELES. Refutações Sofísticas (2005: 560).
51
silogismo sofístico”. A premissa que possui a contradição ou o defeito é desconhecida
ou desconsiderada pelo interlocutor, a contrariedade é sutil. Vale ressaltar que o
discurso sofístico serve para platéias desatentas e mais frágeis, pois com uma audiência
mais seleta, seria praticamente impossível argumentar com falhas no raciocínio; o
disfarce e a camuflagem sofística seriam revelados. A sofística seria a má retórica
enunciada por Sócrates e Platão.
Objetivando ilustrar de modo a resumir tudo o que foi desenvolvido acerca
dos quatro formatos silogísticos ou modos de engendramento discursivos, apresentamos
o quadro abaixo:
Apodíctico
Seria o necessário; as
verdades demonstrativas
Dialético Retórico Sofístico
Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
Sócrates é mortal.
Ele governou bem
Minas.
Minas é um Estado
complexo.
Ele está habilitado a
governar o Brasil.
Ele governou bem
Minas.
Minas é um Estado
complexo.
Ele governará o Brasil
de forma brilhante.
Todo homem é mortal.
O gato é mortal.
O gato é homem.
Note-se que a apodíctica e a dialética são mais lógicas e racionais, enquanto
que a retórica e a sofística apresentam-se menos lógicas. A retórica possui uma leve
distorção, mas que não chega a comprometer toda a estrutura; serão mobilizadas as
paixões da platéia visando a suprir leves falhas. A argumentação sofística, ao contrário,
possui um defeito mais grave, não resistindo ao mínimo crivo. Como pode ser
observado no esquema, na direção da seta a confiança e a certeza diminuem. As obras
relacionadas a cada modo são: para a Apodíctica, os Analíticos Posteriores; com a
Dialética, os Tópicos; a Retórica, a Arte Retórica; e a Sofística, as Refutações Sofísticas,
todas da autoria de Aristóteles.
52
1.5 A RETÓRICA CONTEMPORÂNEA
O empenho e esforço de Aristóteles para retirar a retórica das sombras em
que Sócrates e Platão a colocaram, trouxe uma certa valorização, ainda na Antiguidade,
aos estudos relacionados ao tema da argumentação. Apesar disso, nota-se que o
empreendimento aristotélico parece não ter sido suficiente o bastante para recuperar a
retórica do lugar pequeno e desprezível a ela delegada pela concepção socrático-
platônica.
A retórica teve certo fôlego até o fim da Antiguidade, mas com o início da
Idade Média (476 d.C. até 1.453), denominada de “Idade das trevas” ou ainda “mil anos
de trevas e escuridão”, a retórica sucumbe. Como já apontamos anteriormente, a retórica
não sobrevive à tirania
29
; a influência que a Igreja possuía nas decisões, hábitos e
costumes de toda a sociedade, na era medieval, assemelha-se ao regime do tirano. Em
Plebe (1978: 71) temos:
A queda da república sufocou aquela liberdade indispensável ao
florescer de uma legítima oratória e, assim como a queda das tiranias
sicilianas assinalou o primeiro despontar da retórica grega, assim
também a queda da república romana assinalou o primeiro ocaso da
retórica latina.
A retórica é relegada ao plano de uma prática mundana composta de
artifícios ilusórios e enganadores. Desta feita, ela só experimentará um esboço de
ressurgimento somente com o fim da Idade Média, durante o Renascimento
30
, nos
séculos XV e XVI, mas nada comparado ao apogeu que conquistara na Antiguidade. Já
29
Para examinar o crescente descrédito da retórica, evocou-se a mudança de regime no final da
Antiguidade, quando as assembléias deliberantes perderam todo poder político e até judiciário, em
proveito do Imperador. A cristianização subsequente do mundo ocidental deu origem à idéia de que,
sendo Deus a fonte do verdadeiro e a norma de todos os valores, basta confiar no magistério da Igreja
para conhecer, em todas as matérias salutares, o sentido e o alcance de sua reveleção. PERELMAN
(1997: 179).
30
Renascimento é o nome que se a um grande movimento de mudanças culturais, onde ocorreram
muitos progressos e incontáveis realizações no campo das artes, da literatura e das ciências, após o fim
da Idade Média.
53
no século XIX e início do século XX, a retórica se apresenta novamente presa à
concepção de prática menor. Poderíamos aqui aventar a possibilidade de uma “retórica
menor”, vinculada às gramáticas vernaculares romanas.
Soerguendo a retórica de seus escombros históricos, Perelman, na atualidade,
procede a um estudo profundo e rigoroso que a reabilita como poderosa estratégia
argumentativa, tal como Aristóteles a concebeu. Essa abordagem mais científica e séria
a respeito da retórica é denominada Retórica Contemporânea, ou nova retórica”,
conforme a terminologia perelmaniana. Esse autor expressa claramente o seu interesse e
admiração pelo tema, quando no Tratado da Argumentação diz que “o estudo da
argumentação apresenta-se como terreno de pesquisas de incomparável riqueza”.
Nos Analíticos, como já foi anteriormente assinalado, a lógica é abordada
como ciência apodíctica, pois parte de uma premissa admitida como certa, que
acarretará conclusões irrefutáveis. Com a certeza das premissas, o desfecho conclusivo
é formalmente um raciocínio correto, seguro e absoluto. Perelman critica o
expansionismo indevido de um tipo de razão dedutiva e demonstrativa, que se impôs
como modelo de verdade para todos os campos do conhecimento. O fato é que, para ele,
nem sempre estamos em condições de encontrar as premissas certas e sem elas não se
pode proceder estritamente pela via lógica. Se existe uma quantidade muito grande de
premissas, poderíamos então dizer que são infinitas as possibilidades, todas, em
princípio, prováveis e hipotéticas, privilegiando portanto a dialética, a argumentação,
pois é por intermédio do debate dialético que as premissas prováveis serão testadas e
colocadas à prova. É justamente aí que se encontra a grande contribuição de Perelman,
54
Chaïm Perelman (1912-1984)
55
pois a negação do formalismo lógico, obrigou-o a buscar nos Tópicos e na Retórica de
Aristóteles a lógica discursiva, que é diferente da lógica formal, gida e por demais
rigorosa, contida nos Analíticos.
Ele busca uma alternativa racional que não fosse aprisionável pela
formalização pura. Assim Perelman formula a sua teoria da argumentação quebrando o
paradigma do rigor do método e de uma lógica extremada e absoluta. Ele retoma a
retórica e a dialética aristotélica e as valoriza e não as considerará como uma forma
antiga e ultrapassada de pensar, e sim como um modo de pensar diferente do contido
nos Analíticos. Nesse sentido, parece que Perelman, mesmo separado por mais de vinte
séculos de Aristóteles, constitui-se em um de seus maiores discípulos, pela grandeza e
valor de suas obras acerca dos estudos relacionados à argumentação e à discursividade.
A retrospectiva histórica, por nós empreendida aqui, faz-se necessária, pois
analisaremos manifestações retóricas e dialéticas proferidas em discursos da Grécia
Antiga, articulando-as com a Moderna interpretação dos mesmos procedimentos
argumentativos que veremos a seguir no histórico discurso de defesa de Sócrates.
56
CAPÍTULO II A ARGUMENTAÇÃO NA
APOLOGIA DE SÓCRATES
57
2.1 PLATÃO E A APOLOGIA
A Apologia de Sócrates, de autoria de Platão, remonta à autodefesa de
Sócrates, pronunciada perante seus acusadores em um tribunal composto por 500 juízes,
no século IV a.C., cujo desfecho foi a sua condenação à morte.
No que se refere a obra platônica, uma tripartição do conjunto das suas
publicações que nos auxiliana pesquisa sobre os depoimentos dos acontecimentos
relativos ao julgamento de Sócrates, contidos na Apologia de Sócrates. Da herança
platônica, temos os diálogos da primeira fase, quando Platão era mais moço e
praticamente transcrevia os discursos de Sócrates; as obras de transição, nas quais a voz
de Sócrates começa a desaparecer para dar lugar às descobertas do próprio Platão; e os
trabalhos da plena maturidade, cujas teorias desenvolvidas são de sua inteira autoria,
pois o distanciamento de seu mestre Sócrates é ainda maior.
Pois bem, a Apologia de Sócrates pertence às obras da primeira fase. Assim,
em nossa pesquisa, preliminarmente, diremos que a voz de Platão repetirá o discurso de
Sócrates. Embasaremos nossa afirmação nas palavras do Professor Manuel de Oliveira
Pulquério, do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos - Faculdade de Letras de
Coimbra, que disse:
Um grande consenso se estabeleceu em torno da valorização da
Apologia de Sócrates, escrita por Platão, como aquela que mais
fielmente retrata, não tanto os aspectos materiais como o sentido
profundo dos acontecimentos.
31
A Apologia possui três partes que totalizam aproximadamente 33 páginas em
média, nas suas várias traduções, tendo somente a parte em torno de 25 páginas,
31
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Trad. Manuel de Oliveira Pulquério. Coimbra: Centro de Estudos
Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra – Faculdade de Letras de Coimbra, 1984.
58
sendo 5 páginas para a 2ª parte e 3 para a parte. Durante aparte que é quase toda
a Apologia – temos um Sócrates empenhado em sua defesa, articulando bem suas idéias
e refutando com muita competência seus acusadores, e ainda assim, ao final dessa
parte, ele é condenado. Nas duas partes seguintes, nós percebemos um Sócrates nervoso,
extremamente irônico e agressivo para com os juízes, sendo tal atitude compreensível
pelo fato de, após ter refutado todas as acusações, ainda ter sido condenado; daí em
diante o podemos mais falar em discurso de defesa por parte de Sócrates e sim num
discurso inflamado e agressivo de um homem que viu todo o seu esforço e empenho de
defesa ser em vão, portanto, na Apologia, apreciaremos de maneira especial a parte,
que, por sinal, compreende quase toda a obra, e cujo desfecho é a condenação de
Sócrates. Como pôde Sócrates perder o derradeiro debate? Essa é uma pergunta que
parece não ter respostas e os indícios de uma “suposta resposta” está na peça oratória de
Platão, na Apologia de Sócrates.
59
2.2 O JULGAMENTO DE SÓCRATES
No ano de 399 a. C., Sócrates compareceu ao Tribunal ateniense para
responder acusações que lhe foram imputadas. Ele enfrentou um julgamento diante de
quinhentos membros do Conselho de jurados, escolhidos por sorteio entre os cidadãos
atenienses. Ao final, o resultado foi contrário a Sócrates, 280 votos a favor da
condenação e 220 contra, portanto se ele tivesse mais trinta votos a seu favor, ocorreria
um empate e ele teria sido absolvido, uma vez que o empate era favorável a quem
estava sendo julgado.
No tempo de Sócrates, aqueles que compareciam diante dos tribunais
não contavam com o auxílio de advogados. Eles próprios tinham que
fazer suas defesas. Para tanto, valiam-se dos serviços de redatores
profissionais de discursos. Sócrates recebeu a oferta de um dos mais
célebres desses profissionais, Lísis, mas recusou-a. Ele próprio quis
preparar e fazer sua defesa.
32
Sócrates foi condenado à morte por ingestão de cicuta e deveria ser levado
para que a sentença fosse executada, imediatamente, após o julgamento, contudo, no dia
anterior, um barco sagrado tinha partido para sua viagem anual à ilha de Delos, próxima
de Atenas. Enquanto durassem as comemorações da festa de Apolo em Delos e a
embarcação não retornasse para Atenas, nenhuma condenação poderia ser executada.
Sócrates teve que esperar na prisão por aproximadamente um mês, antes da execução.
32
ROCHA (2001: 66).
60
2.2.1 A ACUSAÇÃO E SEUS PROTAGONISTAS
A acusação foi elaborada por três pessoas: Meleto, Ânito e Lícon. Eles
acusavam Sócrates de não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades
(crer em demônios) e de corromper a juventude, pena pedida: a morte.
Na acusação, podemos perceber uma questão religiosa, qual seja: Sócrates
não considera os deuses da cidade e além disso introduz outros no Panteão dos Deuses.
Além do enfoque religioso, tem-se uma questão política, pois Sócrates, com seu
pensamento, estaria corrompendo a juventude. E ainda tinha a questão dos retores
(sofistas) que eram ironizados e diminuídos por Sócrates em seus discursos e,
certamente, gostariam de livrarem-se do opositor. Aristóteles (2006: 80) chegou a
comentar que “as falas de Sócrates jamais são triviais. Elas sempre exibem graça,
originalidade, exame penetrante, mas dificilmente se pode esperar perfeição em tudo”.
Dos três responsáveis pela acusação, consta Meleto, um poeta, que aceitou a
empreitada a pedido de Ânito, que não estava disposto a expor-se e, conseqüentemente,
desgastar-se; Lícon, que era um orador de certo renome em Atenas; mas o verdadeiro
instigador do processo e das acusações era Ânito, um dos chefes do partido democrático
e filho de um grande comerciante. Em Aristóteles (2006: 69) tem-se que “o comércio
faz do dinheiro o seu principal objetivo, pois a moeda é o elemento e o fim do
comércio; e assim a riqueza que daí resulta não conhece limite nem medida”.
Ânito havia exercido importantes cargos e magistraturas em Atenas e
gozava de certo prestígio e influência. No diálogo Mênon de Platão, ele aparece fazendo
uma ameaça a Sócrates:
61
Sócrates, parece-me que levianamente falas mal das pessoas. Em
realidade, eu te aconselharia, se te dispões a dar-me ouvidos, que
tenhas cuidado. Pois talvez em qualquer outra cidade também é mais
fácil fazer mal aos homens do que bem.
33
Apesar de toda influência de Ânito e de Lícon ser um orador, percebe-se que
aquele que mais se pronuncia e dialoga com Sócrates durante a Apologia é o poeta
Meleto, que se mostra um tanto confuso e perturbado pelo fato de Sócrates ir
derrubando uma a uma as acusações.
2.2.2 A DEFESA DE SÓCRATES
Em sua defesa, Sócrates desenvolveu uma argumentação lógica e racional, e
não poderia ser diferente, pois se usasse de outros expedientes seria incoerente com a
sua filosofia, com tudo aquilo que pregou e acreditou em sua vida. Observemos um
trecho da Apologia. “Contudo, cidadãos atenienses, por Zeus, não ouvireis discursos
repletos de expressões ou palavras vazias, ou adornados como os deles, mas coisas
ditas simplesmente de maneira espontânea”
34
.
É interessante observar, na passagem acima transcrita, o tom de condenação
velada, tanto ao discurso provavelmente sofístico de seus acusadores, como também da
suposta falsidade das próprias acusações. Com isso, o filósofo, certamente, distancia-se
moralmente da acusação traidora e da suposta insignificância do conteúdo da acusação.
Vemos nesse trecho uma construção dialética na qual a contraposição do
argumento pressuposto em
respeitoso
(Sócrates) contrasta com
desrespeitoso, vazio
33
PLATÃO. non (2001: 91).
34
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 57).
62
(acusadores), fundamentado exatamente no vocativo “cidadãos atenienses”, auditório
ao qual pretende aparentemente convencer.
É nesse ponto que toda essa pesquisa se desenvolve, por que um discurso
lógico e racional, que refutou as acusações que lhe foram impostas, não foi capaz de
conceder a Sócrates a absolvição? O que teria faltado na defesa de Sócrates?
Sócrates inicia sua defesa dizendo que o discurso de seus acusadores nada
tem de verdadeiro, e que o mais espantoso era o fato de eles não terem tido a
preocupação de que logo em seguida seriam desmentidos. Ele seguiu dizendo para os
que se faziam presentes que: “agora é preciso obedecer à lei e me defender.
63
A morte de Sócrates (1787) de Jacques-Louis David. Museu Metropolitan de Nova York.
64
2.3 REFUTANDO AS ACUSAÇÕES
Sócrates era acusado de não reconhecer os deuses do Estado, introduzindo
novas divindades (crer em demônios) e de corromper a juventude. Podemos perceber no
fragmento retirado da Apologia ver anexo que Sócrates procurou se defender de
alguma forma, argumentando com Meleto de forma bem lógica, racional e convincente
a respeito das acusações que lhe foram imputadas. O fragmento nos mostrará um dos
momentos em que Sócrates argumentava, rebatendo a acusação de corromper a
juventude.
SÓCRATES
: Agora dize-me Meleto, não é verdade que te
preocupas muito que os jovens se tornem melhores, tanto quanto
possível?
MELETO
: – Sim, é certo.
SÓCRATES: Vamos, pois, dizer a estes senhores quem os torna
melhores: é evidente que tu o deves saber, coisa que te preocupas,
tendo de fato encontrado quem os corrompe, como afirmas, que
me trouxeste aqui e me acusas. Continua, fala e indica-lhes quem os
torna melhores. Vê, Meleto, calas e não sabes o que dizer. Portanto,
não te parece vergonhoso e suficiente prova do que justamente eu
digo, que nunca pensaste em nada disso? Mas, dize, homem de bem,
quem os torna melhores?
MELETO: – As leis.
SÓCRATES: A pergunta que faço não é essa, ótimo homem, mas
qual o homem que sabe, em primeiro lugar, isso exatamente, as leis.
MELETO: – Aquelas pessoas, Sócrates, os juízes.
SÓCRATES: – Como, Meleto? Essas pessoas são capazes de educar
os jovens e os tornar melhores?
MELETO: – Certamente.
SÓCRATES: Todos, ou alguns sim, outros não?
MELETO: – Todos.
SÓCRATES: Muito bem respondido, por Juno: quanta
abundância de pessoas úteis! Como? Também estes, que nos
escutam, tornam melhores os jovens ou não?
MELETO: – Também estes.
SÓCRATES: E os senadores?
MELETO: – Também os senadores.
SÓCRATES: É assim, Meleto. Não corrompem os jovens os
cidadãos da assembléia, ou também todos esses os tornam melhores?
MELETO: – Também esses.
SÓCRATES: Assim, pois; todos os homens, como parece, tornam
melhores os jovens, exceto eu, só eu corrompo os jovens. Não é isso?
MELETO: – É exatamente isso que afirmo.
65
SÓCRATES
: Oh! Que grande desgraça descobriste em mim! E
responde-me: será assim também para os cavalos? Todos os homens
os tornam melhores e um os corrompe? Ou será o contrário, que
um é capaz de os tornar melhores, e bem poucos aqueles que
entendem de cavalos; e os mais, quando querem manejá-los e usá-
los, os estragam? Não é assim, Meleto, para os cavalos como para
todos os animais? Sim, certamente, ainda que tu e Ânito o neguem
ou afirmem. Pois seria ótimo para os jovens que um os
corrompesse e os outros lhes fossem todos úteis. Na realidade,
porém, Meleto, mostraste o suficiente que jamais te preocupaste com
os jovens, e claramente revelaste o teu desprezo, que nenhum
pensamento te passou pela mente, disso de que me está acusando.
35
A construção do raciocínio dialético nessa passagem fica evidente. Sócrates
refuta a acusação a ele dirigida usando como argumento a própria acusação. Podemos
perceber a inversão reproduzida no raciocínio, todo ele calcado na futura dialética
fundamentada na contraposição
Universal
x
Particular, tão presente em Aristóteles.
Alguns problemas são universais, outros particulares. Exemplos de
problemas universais são: ‘Todo prazer é bom’ e ‘Nenhum prazer é
bom’; exemplos de problemas particulares são: ‘Algum prazer é
bom’ e ‘Algum prazer não é bom’. Métodos universalmente
construtivos e destrutivos (métodos destrutivos são métodos de
refutação) são comuns a ambos os tipos de problemas, pois quando
demonstramos que algum predicado se aplica em todos os casos,
também demonstramos que se aplica em algum caso particular e,
analogamente, se demonstramos que não se aplica em qualquer caso,
também demonstramos que não se aplica em todos os casos.
36
Todos
x Alguns
articulam o raciocínio que relativiza a força da acusação, ao
mesmo tempo em que enfraquece a argumentação de Meleto, caída por terra exatamente
com essa requintada argumentação dialética.
Ao se utilizar da imagem dos “cavalos”, Sócrates demonstra cabalmente o
absurdo da acusação contra ele, ressaltando ainda mais a contraposição
Universal
x
Particular
, particularizando assim a injustiça de sua posição no lugar do réu.
35
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 66 - 67).
36
ARISTÓTELES. Tópicos (2005: 373).
66
Além disso, a estratégia argumentativa, que se constrói na constante
oscilação
Universal
x Particular
, dificilmente é refutada, prova disso é a metáfora dos
“cavalos” na passagem citada, onde Sócrates esclarece que uns poucos possuem a
técnica de lidar com animais, e a grande maioria, na verdade, se tentassem manuseá-los,
poderia causar-lhes algum mal.
Sócrates a entender que Meleto não sabia o que estava falando e que de
fato nunca pensara em tais coisas. Como observou o filósofo Paul Strathern (1998: 43):
“Meleto, nada mais era que um dos testas-de-ferro de Anito”. E este sim, era o
verdadeiro articulador e estava por traz das acusações.
Ele deixa claro que não precisam preocupar-se com ele, pois se todas as
pessoas fazem bem aos jovens e apenas um os corrompe, a cidade não teria problema,
uma vez que um homem não poderia fazer grande diferença contra todos.
Muitas gerações de dialéticos elaboraram na Grécia um sistema da
razão, do ‘logos’, como fenômeno vivo, concreto, puramente oral.
(...) No próprio fundamento da discussão grega há uma intenção
destrutiva, e o exame dos testemunhos sobre o fenômeno convence-
nos de que tal intenção foi realizada pela dialética.
37
O que fica implícito é o fato de que se deve escolher uma coisa ou outra:
corromper os jovens ou tor-los melhor? Dentre as duas asserções, a que se torna mais
razoável é a de Sócrates. A série de indagações a respeito de quem tornaria os jovens
melhores foi determinante. Meleto se constrangido (forçado) a responder aos
questionamentos de Sócrates, pois se Meleto sabe apontar quem faz mal aos jovens,
imputando essa característica negativa a Sócrates, certamente ele saberia dizer quem os
faria bem, portanto, o seu contrário, uma característica positiva. Sócrates indaga Meleto
37
COLLI (1996: 71 - 72).
67
se os juízes, os senadores, entre outros, fariam bem aos jovens, tendo Meleto sido
praticamente obrigado a dizer que sim, que eles fazem bem aos jovens, pois caso
contrário poderia incorrer em ofensa a certas autoridades e/ou angariar a repulsa por
parte dos demais atenienses presentes. Da contradição sobre “torná-los melhores ou
piores”, é que se apresenta o embate dialético.
É nesse terreno incerto, onde o debate é possível, que se encontra a dialética,
pois quando existe um cálculo, algo que seja mensurável, para dirimir as divergências,
as discussões são desnecessárias e não se fala em dialética.
O desfecho é que a acusação sustentada por Meleto soa como ridícula e
absurda, pois indica que todo o conjunto de atenienses faz bem aos jovens e somente
uma pessoa, Sócrates, os torna piores, tese fundamentada exatamente na
particularização do réu, em detrimento do
Universal
(geral).
A acusação acaba incorrendo numa impossibilidade, algo improvável, sendo
que o fato de um argumento ter sido demonstrado como ilógico e sem certa
razoabilidade, constitui-se como um forte motivo para desconsiderá-lo, derrubando a
tese adversária.
É o diálogo crítico que põe à prova uma tese defendida pelo interlocutor e é
por essa razão que o dialético deve recorrer constantemente ao método de perguntas e
respostas, como fazia Sócrates diante de Meleto. Uma dialética resultante de um diálogo
que confronta perspectivas diferentes.
68
Quando Perelman (1997: 06) discorre a respeito da dialética diz que
“dialético é um adjetivo aplicável aos raciocínios. O raciocínio dialético não é, como o
raciocínio analítico, um raciocínio necessário que tira sua validade de sua
conformidade às leis da lógica formal”.
No prosseguimento do seu embate com Meleto, Sócrates vai tratar da
acusação a respeito de não acreditar nos Deuses e sim em crer e ensinar coisas
demoníacas. Segue abaixo o diálogo no qual Sócrates destrói a acusação de Meleto, que
atuava como uma espécie de Promotor de Justiça dos dias atuais.
SÓCRATES: Existem entre homens, Meleto, os que acreditam
que coisas humanas, mas que não homens?os que afirmam
que não cavalos, ao mesmo tempo acreditam que existem coisas
relacionadas a cavalos? Ou acreditam que não flautista, mas
apenas coisas relativas às flautas? Se não queres responder, ao menos
responde a isto: Há quem acredite que coisas demoníacas, e
demônios não?
MELETO: – Não há.
SÓCRATES
: Muito obrigado por me ter respondido a tanto custo,
forçado pelos juízes. Tu afirmas, pois, que eu creio e ensino coisas
demoníacas e juraste isto na tua acusação. Ora, se creio que há coisas
demoníacas, é absolutamente necessário que eu creia também na
existência dos demônios. Não é assim? Assim é: estou certo de que o
admites, porque não respondes. E não consideramos os demônios
filhos dos Deuses? Sim ou não?
MELETO: – É evidente que são.
SÓCRATES: Se, então, creio na existência dos demônios, como
dizes e se ainda os demônios são filhos bastardos dos Deuses com as
ninfas, ou outras mulheres, das quais somente se dizem nascidos,
quem jamais poderia ter a certeza de que são filhos dos Deuses se
não existem os Deuses? Seria do mesmo modo absurdo que alguém
acreditasse nas mulas, filhas dos cavalos e das jumentas, e
acreditassem não existirem cavalos.
38
Diante das argumentações de Sócrates, Meleto emudeceu-se. Nesse trecho,
detectamos os fundamentos do raciocínio dialético, basicamente realizado na
contraposição de argumentos contraditórios: (...) Não cavalos (...) Existem coisas
38
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 69 - 70).
69
relacionadas a cavalos?Um desencadeamento discursivo bem lógico e racional que
refuta a tese sustentada por Meleto de que Sócrates não acreditava nos Deuses e tão
somente em demônios e que evidencia muito bem o sucesso de sua defesa pelo
silenciamento de Meleto diante de uma coerência argumentativa praticamente
irrefutável. Nesse ponto, torna-se interessante discorrer a respeito do argumento
pragmático que Perelman (1997: 11) definiu:
Chamo de argumento pragmático um argumento das conseqüências
que avalia um ato, um acontecimento, uma regra a qualquer outra
coisa, consoante suas conseqüências favoráveis
ou desfavoráveis.
(grifos nossos)
Pois bem, Sócrates está sendo julgado pelas conseqüências que sua atitude
pode provocar, tanto a de acreditar em demônios, como a de corromper a juventude.
Sócrates se defende apontando que essas atitudes, consideradas como de conseqüências
desfavoráveis, na verdade não são, pois ele não corrompe a juventude e sim os instrui e
isso é favorável; e acreditando em demônios ele consegue mostrar e provar que, na
verdade, está confirmando ainda mais a existência dos Deuses, uma vez que aqueles são
filhos bastardos destes, demonstrando ser essa uma atitude também favorável. Quanto a
isso, é notável como Sócrates estrutura sua argumentação na categorização de
substância
e essência
. Por um raciocínio lógico, não se pode prever a
essência
de algo
sem que, obviamente, nela esteja implícita a
substância
.
É evidente que aquele que indica a essência
de alguma coisa indica
às vezes uma substância, às vezes uma qualidade e às vezes uma das
outras categorias, pois quando um homem é posto diante de nós e
dizemos que o que temos diante de nós é um homem ou um animal,
enunciamos uma
essência
e indicamos uma
substância
.
39
(grifos
nossos)
39
ARISTÓTELES. Tópicos (2005: 357).
70
Logo, não pode haver algo relativo a alguma coisa (essência) sem que a ela
anteceda sua substância.
É exatamente pelo paralelismo
essência x substância
que o raciocínio
dialético se articula, pois “acreditar em demônios, ou em coisas demoníacas” resulta
necessariamente acreditar nos Deuses, que demônio (essência) é parte intrínseca da
substância Deus. Novamente, a acusação adversária se desmorona, pois acreditar em
demônios implica automaticamente acreditar nos Deuses.
Podemos identificar uma dialética, essencialmente platônica, bem
estruturada com a organização das seguintes idéias: crer que coisas demoníacas;
logo, crer na existência de demônios, e se é reconhecido por todos que os demônios são
filhos bastardos dos Deuses, então, torna-se impossível, ilógico, dizer que alguém possa
crer na existência de demônios e não na dos Deuses.
Após debater de forma coerente as acusações, Sócrates explica o motivo pelo
qual não isuplicar aos juízes, com muitas lágrimas, invocando os filhos no intuito de
mover a piedade a seu favor, bajulando ou tentando captar a misericórdia dos que o
julgavam. Sócrates possui uma linguagem serena, própria de quem não reconhece em si
mesmo nenhuma culpa, ele disse: parece-me não ser justo rogar ao juiz e fazer-se
absolver por meio de súplicas; é preciso esclarecê-lo e convencê-lo”. Ao dizer isso,
Sócrates nos mostra que o vai ser persuasivo (retórico) e sim convincente (dialético),
pois buscará o melhor esclarecimento possível acerca das acusações, é nesse tipo de
discurso que Sócrates acredita e é dessa forma que procede em sua defesa.
71
Os fragmentos apresentados nos remetem à questão crucial, ou seja, o
porquê da condenação, mesmo diante de uma argumentação racional e lógica. A
consideração dessa realidade conduziu-nos a uma instigante busca, no sentido de
procurar “pistas” embasadas na teoria perelmaniana a respeito do convencimento e da
persuasão, a fim de tentar explicar tal contradição.
O que temos é que Sócrates sucumbiu aos questionamentos dos seus
acusadores, e como isso aconteceu? Com tanta capacidade e sabedoria, como não
conseguiu sua absolvição? A missão de provar inocência seria tarefa fácil e ele teria
preferido morrer?
Muita polêmica em torno do episódio da condenação de Sócrates, sendo
que uns acreditam que ele não se empenhou o bastante em sua defesa ou que não queria
mesmo se defender, pois estando com 70 anos aceitava bem a idéia da morte, como
nos diz o filósofo Paul Strathern (1998: 44 - 45):
Sócrates parece não ter percebido a gravidade da situação (...). Teria
ele acreditado que o tribunal reconheceria o seu valor e o absolveria?
Ou estaria ele determinado a morrer? (...) Talvez até abrigasse um
desejo inconsciente de martírio.
Outros acham que ele usou de ironia para com os juízes, então, o que
realmente teria ocorrido? Como poderia Sócrates, dono de uma argumentação infalível,
perder o derradeiro debate? Aquele que decidiria sua própria vida.
Checando os fragmentos da Apologia, pudemos verificar que Sócrates quis, e
muito, defender-se, demonstrando empenho em sua empreitada, pois a argumentação
que ele elaborou para refutar as acusações de Meleto foi lógica e racional (dialética).
72
Assim sendo, não nos parecem pertinentes as teses que afirmam que Sócrates
não quis se defender, que não foi competente, ou ainda, que não se empenhou para
tanto. Essas afirmações parecem vagas e tudo indica ter havido bem mais do que isso.
Prefiro adotar a tese de que Sócrates demonstrou empenho em sua missão,
considerada por muitos historiadores e filósofos de facílima execução para ele, devido a
sua capacidade. Mas existem diferenças entre convencer
40
e persuadir, sendo que
Sócrates, certamente, convenceu a todos que se faziam presentes naquele tribunal de sua
inocência, até mesmo os acusadores, e demonstrou empenho e vontade, contudo ele
pode não ter feito o principal, ou seja, persuadir os juízes a votar em sua absolvição.
Uma possível defesa “não-persuasiva”, mas convincente é o que pode ter
causado a condenação de Sócrates, uma vez que a maioria dos juízes ficou no plano do
convencimento (na inércia), não sendo, portanto, levados ao plano da ação (tomada de
atitude), ou seja, serem persuadidos quanto ao voto que o absolveria.
Parece-nos bem razoável afirmar que se Sócrates quisesse persuadir os
juízes, muito provavelmente teria conseguido, mas um possível discurso retórico
(persuasivo) e mais próximo do verossímil era exatamente o que ele mais repudiava,
tendo seguido os seus princípios e produzido um discurso mais racional e lógico, como
já o demonstramos nos trechos analisados.
Sócrates agiu dessa forma por acreditar ser essa a melhor maneira de fazer
uma defesa. Isso fica claro na Apologia quando ele diz que não ouvireis discursos
repletos de expressões ou palavras vazias, ou adornadose ainda seguia dizendo que
40
Como afirmamos anteriormente, o convencer de Sócrates reveste-se de um raciocínio lógico
irrefutável, fundamentado em uma razão filosófica.
73
não queria dizer coisas que seriam gratíssimas de ouvir, choramingando, lamentando,
como estais habituados a ouvir de outros”. Ele acreditava que se assim procedesse
estaria agindo como os retóricos, os preparadores de discursos e isso era o que mais
repudiava. Sócrates afirma: não é justo suplicar aos juízes, trazendo aqui os filhos a
fim de mover a piedade a meu favor (...) e sim esclarecê-los e convencê-los.
Não se pode imputar a Sócrates uma atitude suicida por não ter
desempenhado uma defesa persuasiva. O que se pode ver, portanto, seria um embate
entre os sofistas (retores) e os filósofos (dialéticos). Sócrates não distanciou dos seus
valores e daquilo que achava mais importante, a verdade adotando um discurso
lógico e racional em sua defesa, e foi muito convincente na sua exposição dos fatos
como pode ser observado nos fragmentos da Apologia onde Sócrates rebate as
acusações. Contudo, Sócrates parece não ter atingido as paixões de seu auditório, o
provocando a magia – discurso retórico – e o encantamento de sua platéia no sentido de
que fosse persuadida a votar a seu favor. Sócrates se arriscou com um discurso racional
perante os juízes e pagou o preço por isso, mas dizer que ele não se empenhou ou
mesmo não quis se defender não nos parece pertinente.
74
2.4
ARGUMENTAÇÃO
: O
CONVENCIMENTO
E A
PERSUASÃO
Segundo Perelman, existe uma diferença entre convencer e persuadir, ou
seja, o convencimento relaciona-se ao que é racional, lógico e faz com que o
interlocutor (auditório)
41
sinta-se convencido de que é verdadeiro aquilo que lhe é
proposto e apresentado, pois a tese exposta estará ligada à razão, ao racional. Ressalte-
se que é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve. Esse
convencimento consegue despertar no auditório uma “pré-disposição” à tomada de
atitude, mas não chega, necessariamente, a retirar a platéia da inércia, não a levando a
ação, apesar de convencê-la pela lógica e pela razão.
O discurso convincente trabalha com argumentos irrefutáveis, racionais,
lógicos, provocando o assentimento na platéia, fazendo com que qualquer auditório
(universal) concorde com a tese que lhe é apresentada, pois o convencer se refere a
qualquer ser racional, dotado de uma mínima razoabilidade. Contudo, o podemos
dizer que o fato de a platéia estar convencida a respeito do que lhe foi proposto, faça
com que venha a sair da inércia e mude de atitude. Uma pessoa pode ser convencida de
que alimentar-se rapidamente traz malefícios à saúde e, ainda assim, continuar a fazer
suas refeições em tempo recorde, portanto o discurso racional, verdadeiro e lógico,
nesse caso, não teria sido suficiente para fazer com que essa pessoa viesse a mudar seus
hábitos alimentares em prol de sua saúde. Teria faltado algo mais, além de convencer
pela verdade, lógica e razão. É justamente aí que entra a persuasão.
41
O auditório é definido por Perelman como conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua
argumentação. Divide-se em particular e universal. O auditório particular relaciona-se com um tipo
específico de público, enquanto que o universal abarca a humanidade inteira, todo e qualquer tipo de
auditório.
75
A persuasão fa com que o interlocutor (auditório particular) saia da
inércia, levando-o a ação, motivando-o à tomada de atitude. Quando se pretende fazer
com que o interlocutor ou uma platéia venha a agir, aderindo ao que lhe é proposto de
forma proativa, deve-se argumentar de modo persuasivo. A argumentação persuasiva,
embora não trate do verdadeiro (lógico, racional), leva o auditório à tomada de atitude,
ainda que não esteja convencido racionalmente a respeito da tese que lhe é proposta,
mas ainda assim, a ação será observada na persuasão.
A explicação para isso seria o fato de a linguagem persuasiva lidar com a
emoção (pathos) e com as paixões de determinado auditório. A razão e a inteligência
são ofuscadas pela emotividade da persuasão, fazendo com que o ouvinte venha a agir
de acordo com a vontade do orador.
A persuasão é direcionada a um auditório particular, uma vez que não se
trata de uma verdade universal o é lógica e racional seria incapaz de abarcar todo
e qualquer tipo de auditório.
Na Arte Retórica de Aristóteles (s.d.: 33) temos que: “Obtém-se a persuasão
nos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma paixão, porque os juízos que
proferimos variam, consoante experimentamos aflição ou alegria, amizade ou ódio”.
O seu aspecto emocionante e apaixonante linguagem patêmica, pathos
aproxima a fala persuasiva da fala mágica, provocando o encantamento das platéias, o
que retirará o auditório da inércia, levando-o à ação e à tomada de atitude.
É interessante observarmos como a fala patêmica influencia e entorpece as
audiências, fazendo com que sejam conduzidas para os objetivos do orador, tendo suas
76
almas guiadas pelas palavras, ainda que o discurso não seja tão lógico e racional.
Sócrates não desenvolveu a sua defesa de modo retórico persuasivo e ao usar sua
dialética convincente diante do tribunal, pode ter se elevado demais, ficando
prejudicado em relação aos seus acusadores. Contudo, em muitas passagens, podemos
constatar uma oralidade mais contundente quando se refere aos seus acusadores,
expressa na fala patêmica:
O que vós, cidadãos atenienses, haveis sentido com o manejo dos
meus acusadores, não sei; o certo é que eu, devido a eles, quase me
esquecia de mim mesmo, tão persuasivos foram. Contudo, não
disseram nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que
divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual
disseram que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim,
como homem hábil no falar.
42
Tal manifestação encontra-se, aparentemente, desprovida do persuadir
empregado como uma estratégia retórica. No entanto, ao invocar, em sua fala, os
“cidadãos atenienses” como alvo de sua argumentação, podemos, admitir o emprego
patêmico como um provável recurso retórico usado às avessas, ou seja, não para
comprovar a sua inocência, mas para induzir a platéia a condenar a acusação injusta de
seus detratores. Essa configuração discursiva apresenta-se recorrente na Apologia,
quando aparece, principalmente, o vocativo “cidadãos atenienses” (ver anexo).
2.4.1 OS TIPOS DE ARGUMENTO
Aristóteles define três tipos de argumentos, conhecidos também por
provas
,
usados como ferramentas para produzir a persuasão. Esses argumentos foram
determinados como aqueles que necessitam da arte retórica, uma vez que a obtenção da
42
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 57).
77
persuasão dependerá deles. Contudo, existem as provas que não dependem da arte, pois
não são realizadas necessariamente pelo retor. A esse respeito Aristóteles esclareceu:
Dentre as provas, umas que não dependem da arte, ao passo que
outras dependem. Chamo provas independentes da arte todas as que
não foram fornecidas por nós, mas que preexistiam, por exemplo,
os testemunhos, as confissões obtidas pela tortura, as convenções
escritas e outras de igual espécie.
43
É das provas fornecidas pelo discurso, ou seja, pela arte retórica, as provas
que dependem da arte, que iremos nos ocupar. Essas são as provas que costumeiramente
chamamos de tipos de argumento, são eles: o ethos, pathos e logos. Estas provas são
argumentos criados pelo orador e dependem de sua capacidade e talento pessoal para
melhor empreendê-las.
O ethos compreende os discursos que manifestam o caráter daquele que faz
uso da palavra e se ocupa do discursar. A personalidade e as virtudes do orador são
fundamentais para que o orador tenha credibilidade perante sua platéia. O caráter do
orador pode ser algo pré-construído, um saber partilhado pela platéia a respeito do
orador, isso quando se tratar de pessoa ilustre e conhecida do público, mas mesmo
sendo um orador desconhecido, a persuasão será mais facilmente observada se o
discurso proceder de forma que deixe a impressão de o orador ser digno de confiança.
A retórica se ocupa dos temas onde não certeza total, e no terreno do
incerto, a confiança no orador se converte em relevante importância. Aristóteles chegou
a dizer que o caráter moral constitui a prova por excelência”. Por mais lógico e
racional que os argumentos sejam, não serão suficientes sem a devida confiança que
orador deve possuir de seus interlocutores. Um ethos enfraquecido poderá ser
43
ARISTÓTELES. Arte Retórica (s.d.: 33).
78
determinante para o insucesso do orador perante seu auditório. Note-se que Sócrates
possuía um ethos forte e era reconhecido pelos cidadãos como homem de caráter. A
imagem de si que o locutor construirá para influenciar sua platéia está intimamente
relacionado com a reputação e a autoridade individual do orador.
O pathos relaciona-se ao conjunto das emoções, paixões e sentimentos que
podem ser mobilizados na platéia pelo orador durante o seu discurso. Os ouvintes
precisam ser envolvidos de tal forma que sejam movidos por determinada paixão,
alegria, dor, amizade, ódio etc, a fim de serem persuadidos. Quando os ouvintes são
levados a sentir a violenta e súbita afetividade da fala patêmica, a persuasão será
observada. A força de um discurso patêmico aproxima-o da fala mágica, e é por essa
magia que possui o pathos, que se chegará ao encantamento das platéias. É certo que os
discursos retóricos são desprovidos de um conhecimento científico, de uma verdade
necessária e última, assim o discurso será tomado para suprir a falta de lógica e
coerência das proposições; daí entra a força do emocional que se constituirá o pathos.
O equivalente latino de pathos é passio, daí as indicações a que se referem
ao passional apontarem para questões que envolvem elevado estado emocional,
possíveis vítimas passivas desguarnecidas de qualquer defesa, provável situação dos
“cidadãos atenienses”. É como se fosse impossível não ser persuadido por um discurso
patêmico, pois mobilizaria algo que é mais forte do que nossa razão. Com a fala
patêmica, os que o submetidos ao discurso ficam entorpecidos e parece que nada
podem fazer, pois o enfeitiçamento encantador do pathos falará mais alto do que nossa
racionalidade interior.
79
Aristóteles chegou a afirmar que: “Assim como os olhos dos morcegos são
ofuscados pela luz do dia, a inteligência de nossa alma é ofuscada pelas coisas mais
naturalmente evidentes”.
44
A explicação para isso seria justamente o fato da razão e a inteligência serem
ofuscados pela emotividade e pela força da patemização. Podemos nos indagar em
relação a essa força que um desencadeamento discursivo patêmico tem sobre nós. Por
que isso acontece? Por que somos afetados tão persuasivamente pelo pathos?
Encontramos uma possível explicação para isso em Rousseau
45
que disse ter
o gesto nascido das necessidades físicas naturais, mas que a palavra nasceu da paixão,
do sentimento e, assim sendo, ele concluiu que o homem não começou raciocinando,
mas sentindo”. As paixões podem ter arrancado as primeiras vozes e ajudado a construir
os primeiros discursos. Isso pode nos ajudar a entender e explicar como somos afetados
por um discurso mais retórico a fala patêmica, gica e encantadora do que um
mais racional como o dialético. É como se os efeitos patêmicos remetessem-nos a algo
que se encontra nas entranhas do nosso ser, algo que nos remete às origens mais remotas
de nossa evolução e talvez seja por isso que o pathos tem tanta força e influência em
nós, pois o homem começou sentindo”. Pois bem, Sócrates abominava esse tipo de
estratégia, pois o seu discurso visa a esclarecer e convencer e não a mobilização de
recursos retóricos que poderiam fazer com que os juízes fossem levados a absolvê-lo,
era preciso explicar-se por meio de uma argumentação ria e compromissada com a
verdade, ou seja, um discurso dialético.
44
Apud PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA (1996: 424).
45
ROUSSEAU (2003: 105).
80
o logos relaciona-se com o próprio discurso no que diz respeito à sua
estrutura coerente e racional, no que ele demonstra ou pretende demonstrar de lógico,
verdadeiro e necessário. Enquanto o ethos relaciona-se com o orador, o pathos, no que
tange àquilo que será despertado e mobilizado no auditório, o logos diz respeito à
argumentação propriamente dita no discurso. É nesse tipo de argumentação, mais lógica
e assentada em uma racionalidade, que a retórica se mistura com a dialética. É nesse
ponto que as duas se cruzam.
Aristóteles chegou a dizer quea retórica é como que um rebento da
dialética”. Quando ele se referiu à retórica dessa forma, poderia ele estar indicando que
o logos retórico estaria próximo da dialética. A retórica condenada por Sócrates e
Platão seria o pathos, enquanto que a existência de uma boa retórica, raramente sugerida
por eles, seria uma retórica baseada na concepção aristotélica de logos retórico, ou seja,
uma lógica e coerência discursiva, tal como na dialética. E é dessa forma que Sócrates
se defendeu, usando uma lógica dialética praticamente incontestável, contudo a não
utilização dos recursos patêmicos podem ter prejudicado Sócrates, que se recusava a
mobilizar tais recursos no intuito de provocar emoção, sentimento e piedade na platéia.
Se podemos admitir, na Apologia, o emprego do recurso retórico, ele é devido ao
menosprezo com que se referia à acusação e aos acusadores.
81
2.4.2 ADEQUAÇÃO DO ORADOR AO AUDITÓRIO
Em Perelman, temos a indicação que todo o objeto da eloqüência deve ser
pensado em relação aos nossos ouvintes e é se ajustando às suas opiniões que os
discursos devem ser produzidos. Nesse caso, as crenças e posicionamentos do orador,
aquilo que ele considera como verdadeiro, não teriam muito valor, e sim qual seria o
parecer dos ouvintes, da platéia. Sócrates pode ter se empolgado demasiadamente com
suas verdades irrefutáveis, destinando ao auditório a lógica do raciocínio dialético, ao
invés da emotividade da argumentação retórica. Quando Perelman, no Tratado da
Argumentação, trata da questão entre o orador e seu auditório, deixa-nos o seguinte
comentário:
O homem apaixonado, enquanto argumenta, o faz sem levar em conta
o auditório a que se dirige: empolgado por seu entusiasmo, imagina o
auditório sensível aos mesmos argumentos que o persuadiu a ele
próprio.
46
Vale ressaltar que Perelman ainda observa que os oradores não devem
pensar tão somente na audiência, pois, neste caso, poderiam ser comparados a
cozinheiros, que desenvolvem a sua produção de acordo com o gosto do cliente, para
assim satisfazê-lo; e chega até a compará-los com parasitas que, para terem acesso a
boas mesas, empregam quase sempre uma linguagem contrária aos seus sentimentos,
crenças e valores. Então, o ideal seria um ajustamento das duas coisas. Pois bem, a
coerência de uma vida socrática jamais poderia permitir algo desse tipo, ser comparado
a parasita, e essa falta de ajustamento ao auditório pode ter contribuído para que algo
desse errado. Quando Perelman discorre a respeito do orador e seu auditório, ele elucida
46
PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA (1996: 27).
82
de forma brilhante essa questão e é impossível para nós, em nosso propósito, o nos
lembrarmos de Sócrates, vejamos:
Relatar certas experiências, mencionar certos fatos, enunciar certo
número de verdades, para suscitar infalivelmente o interesse de seus
eventuais ouvintes resulta de ilusão
, muito difundida em certos meios
racionalistas e científicos, de que os fatos falam por si sós e
imprimem uma marca indelével em todo o espírito humano, cuja
adesão forçam, sejam quais forem suas disposições.
47
(grifo nosso)
Esta passagem demonstra como um certo ajustamento ao auditório é
importante, pois até a enunciação de certo número de verdadeso seria suficiente,
por si só, para provocar a adesão. está Sócrates e seu discurso de defesa, com toda a
sua coerência e verdade. Uma argumentação efetiva deve conceber um auditório
presumido o mais próximo possível da realidade, pois uma imagem inadequada do
auditório, resultante de ignorância ou de imprevisão de circunstâncias, pode ter as mais
desagradáveis conseqüências.
Em retórica, o auditório se apresenta como o conjunto daqueles que o orador
vai influenciar com sua argumentação. Em dialética, o auditório é a humanidade inteira,
qualquer ser humano dotado de mínima racionalidade e senso para reconhecer a
razoabilidade e a lógica do que será exposto.
Todo orador que quer persuadir um auditório particular tem de se adaptar a
ele. Sócrates não falava para um auditório particular e sim para um auditório universal,
pois não buscava persuadir e sim convencer. O seu discurso lógico não era destinado
simplesmente para o julgamento em questão e sim para a posteridade, um discurso
filosófico e histórico destinado a humanidade inteira. Se o discurso fosse dirigido a um
47
PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA (1996: 20)
83
auditório particular, isso é uma característica do discurso retórico, seria produzido para
persuadir de acordo com as peculiaridades e necessidades de cada caso, portanto o
auditório do retórico deve e tem de ser particular. Vejamos o que disse Perelman a
respeito do auditório:
A argumentação que visa somente a um auditório particular oferece
um inconveniente, o de que o orador precisamente na medida em que
se adapta ao modo de ver de seus ouvintes, arrisca-se a apoiar-se em
teses que são estranhas, ou mesmo francamente opostas, ao que
admitem outras pessoas que não aquelas a que, naquele momento, ele
se dirige.
48
O discurso dialético socrático lida com verdades universais irrefutáveis, e as
asserções apresentadas a qualquer auditório, devido a coerência e racionalidade, deverão
ser reconhecidas como lógicas por qualquer audiência, produzindo o convencimento,
portanto o auditório é universal. Quando Perelman fala do auditório universal, indica-
nos o seguinte:
Uma argumentação dirigida a um auditório universal deve convencer
o leitor do caráter coercivo das razões fornecidas, de sua evidência,
de sua validade intemporal e absoluta
, independente das
contingências locais ou históricas.
49
(grifo nosso)
Assim, Sócrates desenvolvia um ‘debate universal’, a respeito de suas
verdades, contra a opinião de seus acusadores, que acaba por suscitar uma distinção
entre persuadir e convencer. Se a preocupação do orador é com o resultado do discurso,
persuadir é mais que convencer, mas se o foco é o caráter racional da adesão, convencer
é mais que persuadir. Certamente, Sócrates queria se defender, mas de forma
convincente; desta forma não conseguiu despertar os ânimos de seus ouvintes, sendo
condenado.
48
PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA (1996: 34)
49
PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA (1996: 35)
84
CAPÍTULO III ASPECTOS IDEOLÓGICOS NA
APOLOGIA DE SÓCRATES
85
3.1 COMBATENDO COM SOMBRAS
A Apologia nos remete a uma outra questão a respeito do motivo pelo qual
alguém pode ser condenado, mesmo diante de uma argumentação racional e lógica.
Além das considerações a respeito do convencimento e da persuasão; do auditório; da
ausência de um pathos retórico na fala de Sócrates; tem-se uma outra possibilidade de
análise, relacionando a morte de Sócrates a uma corrente contrária às suas idéias e ao
problema que sua instrução poderia causar.
As teorias que tratam da “ideologia” podem explicar a contradição latente na
condenação de Sócrates, pois o que estaria obscuro em todo aquele processo acusatório?
Teria havido uma conspiração contra Sócrates? Podemos perceber no fragmento
retirado da Apologia exposto logo abaixo em que Sócrates indicava a existência de
um grupo de pessoas que estava bastante incomodado com sua presença. Nesta
passagem, Sócrates disse:
Mais temíveis são aqueles que por inveja ou calúnia vos persuadiam
e os que convencidos procuravam persuadir outros, são por assim
dizer, inabordáveis, porque não é possível fazê-los comparecer aqui;
nem refutar nenhum deles, mas devo eu mesmo me defender, quase
combatendo com sombras. (...) Devo defender-me e empenhar-me em
eliminar da vossa mente, em tão breve hora, a opinião acolhida
por vós durante longo tempo.
50
(grifos nossos)
Nesse trecho, Sócrates diz que alguns espalham inverdades a seu respeito e
assim as calúnias foram se propagando. Ele começa a sua defesa, os primeiros trechos
da Apologia (ver anexo), explicando que gostaria de tratar inicialmente do ódio que
algum tempo muitos nutriam por ele e que essa aversão seria, de fato, a origem de
50
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 59).
86
toda acusação, uma vez que desse ódio, dizia ele, nasceram as últimas acusações que
acabaram por levá-lo a julgamento.
A origem de todo o ódio estaria relacionada ao fato de Sócrates, com
freqüência, procurar todos aqueles que se diziam sábios para ter com eles longas
discussões e debates um sujeito dialético por excelência. Ao final dos debates,
Sócrates sempre descobria que seu interlocutor, considerado sábio, não o era de fato,
mas apenas possuía uma sabedoria aparente. Ele disse na Apologia: isso me fez muitos
inimigos”. Vejamos um trecho a esse respeito:
Examinando um homem não importa o nome, mas era, cidadãos
atenienses, um dos políticos
e falando com ele, parecia ser um
verdadeiro sábio para muitos e principalmente a si mesmo, mas não
era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele era sábio sem o ser. (...)
Dessas investigações, cidadãos atenienses, me vieram muitas
inimizades e tão odiosas e graves que delas se originaram outras
tantas calúnias como também me foi atribuída a qualidade de sábio.
51
(grifo nosso)
Temos que refletir o porquê de um título de sábio representar um perigo, um
problema, uma ameaça a um certo grupo de pessoas. Sócrates poderia usar sua
sabedoria e lógica para fazer com que os notáveis da cidade viessem a parecer tolos e
ignorantes.
Sócrates, através de sua dialética maiêutica estava fazendo com que os
indivíduos atingissem o verdadeiro entendimento das coisas. Isso desenvolveria um
espírito crítico e contestador a dialética é a arte da controvérsia nos atenienses,
tornando-os indivíduos mais conscientes, ativos e questionadores a respeito das
questões da Pólis.
51
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 62).
87
O objetivo de Sócrates era argumentar com os cidadãos, levá-los a pensar.
Com isso, ele devia estar incomodando muita gente.
Uma possível ‘classe dominante’ formada, entre outros, pelos retores e
sofistas, que detinham o poder econômico e sempre eram os alvos preferidos de
Sócrates, parece ter feito de tudo para levar Sócrates a julgamento. Ele condenava os
retores (sofistas) de serem adeptos e praticantes do discurso empolado e sem
consistência; Górgias e outros chegaram a ficar ricos cobrando para ensinar a retórica,
considerada por Sócrates a arte do engodo, sendo esse um dos motivos pelos quais
Sócrates condenou tanto a retórica.
Como indicamos anteriormente, Sócrates procurou se defender de alguma
forma e, ao que tudo indica, produziu uma argumentação bem lógica, racional e
convincente, contudo, o seu discurso pode ter apresentado problemas no que diz
respeito aos modos persuasivos, mas pode o ter sido somente isso que seria o
bastante e é justamente nessa outra possibilidade, que apontamos para a derrocada
socrática, que entram os aspectos ideológicos.
Em Rocha (2001:155) temos:
A queixa-crime versava também sobre a atitude política de Sócrates,
pois, com suas doutrinas, ele ‘corrompia’ a juventude. Claro que não
se trata de uma corrupção no sentido moral, mas, no sentido político.
Sócrates era acusado de disseminar entre os jovens uma atitude
crítica em relação ao modo como os democratas exerciam o poder.
Anaxágoras o mestre de Sócrates chegou a ser perseguido e exilado de
Atenas. A filosofia tornara-se perigosa, tendo sido Sócrates alertado da seriedade a que
a filosofia chegara. Por ignorar a seriedade da filosofia, tornou-se uma das figuras mais
88
cativantes dentre os atenienses, e por desconsiderar o seu perigo, acabou encontrando a
morte.
Em Glotz (1980: 122) tem-se que:
Em Sócrates nada punha tanto gosto como em despertar os espíritos
nas lojas e no mercado; mas estava convicto de que mérito e
virtude no saber e assustava-se ao ver a cidade governada pela
ignorância. O sorteio dos magistrados parecia-lhe pura e
simplesmente uma aberração.
Aristóteles, na Política
52
, chega a comentar sobre o perigo da escolha dos
magistrados, uma vez que os candidatos eram previamente selecionados por eles
próprios antes do sorteio.
52
ARISTÓTELES. Politica (2006: 92).
89
3.2 FORMAÇÕES IDEOLÓGICAS E FORMAÇÕES
DISCURSIVAS
No século XIX, Napoleão fez a seguinte reflexão a respeito da ideologia:
Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser
atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica
que, buscando com
sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a
legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do
coração humano e às lições da história.
53
(grifo nosso)
Com essa ótica – tenebrosa metafísica – que está além do plano físico,
transcendental, temos a sutileza e o discorrer sobre idéias, com as quais relacionamos os
aspectos ideológicos em nosso corpus.
Uma formação ideológica está relacionada à visão de mundo que certa classe
social possui. Sendo assim, a linguagem passa a ter uma extrema valoração, pois a visão
de mundo não pode ser concebida desvinculada da linguagem, daí que em Fiorin (2003:
32) temos: a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva”. É na
formação discursiva que a visão de mundo, a ideologia, se materializa.
Numa dada formação social, tantas formações discursivas quantas forem
as formações ideológicas, contudo a ideologia dominante é a da classe dominante e,
conseqüentemente, o discurso dominante também será o da classe dominante. Sendo o
discurso o meio pelo qual as representações ideológicas são materializadas, a classe que
dominar esse discurso que veicula as representações, as visões de mundo, irá sobressair
sobre as outras. Apropriar-se do discurso como forma de dominação e de ocultamento
da realidade, mantendo, dessa forma, a grande maioria dos indivíduos numa espécie de
53
Napoleão Bonaparte (1769 - 1821). Essa reflexão foi pronunciada em 1812 em uma declaração de
Napoleão ao Conselho de Estado. Apud CHAUÍ (1984: 24).
90
superficialidade e de um mundo aparente (alienação) é o que se costuma entender por
ideologia. Ideologia seria um mascaramento da realidade. Para ratificar essas
considerações, observemos o que Chauí (1984:21) diz a respeito da ideologia:
Os homens produzem idéias ou representações pelas quais procuram
explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas
relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas idéias ou
representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo
real, como suas relações sociais de exploração econômica e de
dominação política. Esse ocultamento da realidade
social chama-se
ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições
sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam
verdadeiras e justas.
(grifo nosso)
Sócrates produzia um discurso combativo ao regime político democrático da
época. Ele considerava a democracia perniciosa no sentido de que qualquer um poderia
ser alçado a governante e nesse sentido até um despreparado poderia assumir, fazendo
muitos males à cidade. Assim sendo, Sócrates indicava que somente um sábio deveria
assumir tão nobre cargo, pois todas as suas decisões estariam pautadas no verdadeiro e
mais essencial entendimento a respeito de todo o estado de coisas.
A tirania é uma espécie de monarquia em que apenas se visa ao
interesse do monarca; a oligarquia é o governo no qual apenas se
considera os interesses dos ricos; democracia é o governo no qual se
tem em mira apenas o interesse da massa, e nenhuma dessas formas
governa para o interesse de toda a sociedade.
54
Sócrates considerava que qualquer um, feio, belo, rico ou pobre, poderia
governar, desde que fosse sábio. Um sábio, um filósofo, como amante do saber,
investigador incansável a respeito da profundidade e da verdade das coisas não
cometeria injustiças, por estar sempre atuando no campo da verdadeira essência das
coisas. Desta forma, não muitos poderiam governar, como na democracia, e também
não um único homem detentor de todas as posses e riquezas, dotado de grande poder
54
ARISTÓTELES. Política (2006: 124 - 125).
91
econômico, como na oligarquia, mas sim o amante do saber, possuidor de privilegiado
intelecto e dono da virtude maior, que iria atuar sempre na profundidade e na verdade
das questões, um tipo de aristocracia, governo dos melhores mas não no sentido de
melhor por ter mais posses, pois daí seria uma oligarquia, e sim no sentido de melhor
caráter e virtude. Assim, não muitos estariam aptos a assumir o posto de governante,
mas bem poucos e dentre estes é que o chefe supremo da cidade deveria ser escolhido.
Essas idéias socráticas, certamente, não estavam agradando aos democratas,
grupo que estava no poder na época da condenação de Sócrates. Tais considerações nos
orientam a fazer a devida correlação do que Sócrates diz, amiúde na Apologia,
contextualizando os seus dizeres e apontando e/ou relacionando o seu insucesso a uma
ideologia contrária (forças ocultas). A ideologia é determinada, em última instância,
pelo poder econômico.
Num momento em que Atenas busca sair de uma grande crise
material e ideológica
e a reavivar suas tradições, fortalecendo as
mesmas como base para um renascimento político, a presença de
Sócrates passa a ser profundamente incômoda e indesejável.
55
(grifo
nosso)
É importante ressaltar que as acusações impostas a Sócrates: “não crer em
Deuses e corromper a juventude”, podem ser vistas como ateísmo e subversão, ou seja,
Sócrates era uma “pedra no sapato” e estava incomodando, ele estava despertando as
consciências e era preciso livrar-se dele.
55
NAVARRO (1987: 35).
92
Na verdade, em Atenas ninguém fazia caso da religiosidade dos
outros, mas qualquer desculpa era válida para livrar-se de um
adversário político ou de alguém como crates que, com a sua
dialética
inexorável
, ameaçava todos os dias o poder constituído.
56
(grifo nosso)
Sócrates pode ter sido morto por um regime político, sendo assim, podemos
perceber que a opressão do pensamento já existia há 24 séculos.
Sócrates atuava nesse terreno, nesse lugar de difícil acesso, quase
inacessível, que é a essência das coisas, daí que pode não ter sido compreendido por
atuar no campo do convencimento, do conhecimento e da lógica (que é o menos
provável) ou pode ter sido muito bem compreendido e por isso ser reconhecido como
um perigo iminente devido ao fato de estar ‘desalienando’ as pessoas e as retirando do
mundo das sombras, conduzindo-as à luz (que é o mais provável). Na Apologia,
Sócrates indica uma possível alienação do povo quando diz:
É possível que vós, irritados como aqueles que são despertados
quando no melhor do sono, repelindo-me para condescender com
Anito, levianamente me condeneis à morte, para dormirdes o resto da
vida.
57
(grifo nosso)
Parece-nos bem razoável afirmar que se a Sócrates fosse colocado o motivo
real de ter sido levado a julgamento, muito provavelmente teria conseguido sua
absolvição, mas um possível discurso no plano da superficialidade, de acordo com a
ideologia da época, era tudo o que a elite queria, pois os reais motivos ficaram ocultos,
mas ainda assim Sócrates nos sugere outras questões, até mais importantes do que as
que estão colocadas, para o verdadeiro motivo pelo qual era levado a julgamento.
56
CRESCENZO (2005: 19).
57
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 74).
93
Na Apologia, Sócrates chegou a proferir:
Os jovens com maior disponibilidade de tempo, os filhos dos ricos,
seguindo-me espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os
homens, e muitas vezes me imitam, por sua própria conta, e se
decidem também a examinar os outros; e então, imagino, encontram
grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma coisa, mas
pouco ou nada sabem. (...) Nunca fui mestre de ninguém, se, pois
alguém se mostrou desejoso de minha presença quando eu falava , e
acudiam a minha procura jovens e velhos, nunca me recusei a
ninguém.
58
Sócrates pode ter arriscado em continuar filosofando, mesmo quando foi
alertado por seu mestre Anaxágoras
59
de que a filosofia se tornara uma prática perigosa,
vindo a pagar o preço por isso, mas dizer que ele não se empenhou ou mesmo que não
quis se defender não nos parece uma afirmação segura e completa.
58
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 64 - 76).
59
STRATHERN (1998: 12).
94
CONCLUSÃO
95
A pesquisa procurou dirigir suas lentes para a concepção de discurso
convincente e persuasivo (argumentação). Qual a magia existente na arte de encantar,
seduzir e persuadir públicos? Por que Sócrates não conseguiu a sua absolvição, mesmo
obtendo êxito ao refutar as acusações de seus algozes?
Outros aspectos ainda foram considerados, tais como a receptividade do
auditório e a vontade do orador em se adequar a sua platéia, além das questões
ideológicas. Sócrates pode ter encontrado um público com julgamentos prontos e
cristalizados a respeito de sua pessoa, dificultando ou até impossibilitando qualquer tipo
de argumentação, dando-nos mostras de que a opinião (julgamento pré-concebido)
estaria também entre os grandes obstáculos de qualquer tipo de argumentação ou
tentativa de persuasão. A respeito dessas possibilidades, Glotz (1980: 206) nos diz:
Não era difícil para litigantes espertos, para logógrafos hábeis em
torcer as coisas, desviar o argumento para fora do assunto, citar os
textos capciosamente, permitir-se interpretações falaciosas. (...) Um
litigante esmiuçava a vida do adversário, para lançar-lhe em rosto os
piores insultos, as calúnias mais vis. No momento em que um assunto
apresentava aspectos políticos, o tribunal transformava-se em
assembléia pública: os juízes não sofreavam as inclinações
partidárias, a parcialidade colocava a máscara da justiça. (grifo
nosso)
O filósofo norte-americano Paul Strathern afirma que Sócrates não se
defendeu
60
e ainda temos a brasileira Marilena Chauí, que também deixa bem clara essa
posição quando diz: A crermos nos relatos de Platão, Sócrates não se defendeu nem
aceitou plano de fuga
61
.
60
STRATHERN (1998: 44 - 45).
61
CHAUÍ (2002: 179).
96
Tentando esclarecer a problemática central da pesquisa, perguntamos:
afinal
de contas, Sócrates se defendeu ou não?
Baseando a análise em seu discurso de defesa a Apologia podemos
elencar alguns pontos:
1) Apesar de ser um discurso de defesa, não poder-se-ia afirmar, a priori, que
ali uma defesa. Alguém que fosse chamado a apresentar uma defesa, poderia
perfeitamente o fazê-la e, portanto, seríamos coerentes em dizer que determinada
pessoa não se defendeu. Esse não foi o caso de Sócrates, pois, pelo texto da Apologia,
percebemos que ele procurou se defender.
2) Os resultados de um julgamento não são determinantes para dizer se
alguém se defendeu ou não, mas tão somente para apontar aquele que foi mais eficaz ou
competente naquilo que se propôs acusar no caso da acusação; e defender no caso da
defesa. O fato de Sócrates ter sido condenado não significa dizer que ele não se
defendeu. Se acaso tentarmos uma defesa, mas não obtivermos a absolvição, não
podemos ser acusados de não fazê-la.
3) Podemos fazer uma defesa e ter um dos dois resultados: a) não sermos
persuasivos ou convincentes o suficiente para provarmos a inocência e sermos
condenados, ou, b) desempenharmos uma defesa que nos faça chegar a absolvição.
Após apontarmos essas premissas, que entendemos serem bem razoáveis
para o nosso propósito, consideramos que Sócrates em seu discurso de defesa
procurou se defender, embora poderia, perfeitamente, não tê-lo feito.
97
Ele refutou com muita competência todas acusações que lhe foram impostas
e passou toda a parte da Apologia se defendendo. Aliás a 1ª parte da Apologia, como
já foi dito, é quase toda a obra. Considerando que a Apologia, em média possui cerca de
30 páginas, 25 páginas seriam para a parte, 3 páginas para a parte e 2 páginas para
a parte, justificando, desta forma, a nossa afirmação de que a parte é praticamente
toda a obra. Pois bem, a defesa de Sócrates fica evidenciada em toda a parte que, em
seu final, tem-se a decisão dos jurados pela condenação. Após a decisão, que significa o
início da parte, não que se falar em discurso de defesa e tão somente na revolta de
um homem que toda a sua tentativa de defesa ser em vão, pois mesmo refutando as
acusações de forma lógica e racional, não obteve o resultado que almejava.
A sua defesa foi lógica e racional, mas não devidamente patêmica e mágica
para persuadir a maioria dos juízes a votarem pela sua absolvição. Se Sócrates tivesse
usado dos expedientes do retor Górgias, certamente teria sido absolvido ou ao menos,
teria chances bem maiores, pois o discurso patêmico é o que produz a magia e o
encantamento das platéias e conseqüentemente conduz as almas através das palavras
conforme a vontade do orador. Mas Sócrates, antes mesmo de começar a se defender, já
se desculpava com a platéia, dizendo que a ele era estranho o modo como se falava ali,
esclarecendo que produziria um discurso a seu modo, ou seja, convencendo pela lógica
e razão (dialética), mas não persuadindo (retórica). Vejamos esse trecho.
Pela primeira vez depois de mais de setenta anos, me apresento diante
de um tribunal. Por isso, sou quase estranho ao modo de falar aqui.
Assim também agora vos peço algo que me parece justo: permiti-me,
em primeiro lugar, a minha linguagem, depois, considerai se o que
digo é justo ou não.
62
62
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 58).
98
O discurso perfeito, considerando que o objetivo é persuadir, seria aquele
que reuniria os três tipos de provas, quais sejam, um ethos forte, um logos retórico
discursivo e um pathos como a porção mágica que entorpece, encanta e cativa a platéia.
Pois bem, desse trio, podemos dizer que Sócrates era reconhecido por todos como
homem sincero e verdadeiro e, por mais defeitos que pudesse ter, jamais poderia ser
acusado de charlatão, que pudesse enganar ou prejudicar as pessoas. Em relação a
Sócrates, pode-se dizer que era homem sério, justo e gozava de prestígio junto aos
atenienses, portanto o seu ethos era forte e bem construído. Do seu logos discursivo
podemos dizer que é quase redundância falar de logos em Sócrates, considerando a sua
dialética como ferramenta para o alcance do conhecimento seguro, a discursividade de
Sócrates é levada a um nível de certeza quase que absoluta a respeito de um dado
assunto; isso devido ao exame cuidadoso e muito apurado que visava esgotar ao
máximo todas as possibilidades do tema objeto de estudo. A própria lógica formal de
Aristóteles buscou na racionalidade da dialética de Sócrates as bases de sua
constituição.
Então, podemos perceber que faltou apenas um elo do trio para que Sócrates
chegasse ao discurso perfeito e desta forma conseguisse a sua absolvição. O que ficou
relegado no discurso de Sócrates foi o pathos, considerado por alguns a técnica retórica
por excelência. E isso é naturalmente explicado pelo fato de Sócrates não ser um
indivíduo ligado a patemização, pois era exatamente essa característica que ele mais
combatia nos sofistas (retores).
99
Na Arte Retórica, Aristóteles fornece uma divisão da retórica em três
gêneros. Estes gêneros retóricos, ou gêneros de discursos oratórios, são: o gênero
deliberativo
, o gênero
epidíctico
(demonstrativo) e o gênero
judiciário
.
O gênero
deliberativo
é aquele utilizado nas assembléias, praças públicas,
quando intenciona-se aconselhar ou desaconselhar, deliberando sobre questões de
interesse particular ou público, determinando o que convém ou não fazer, como declarar
guerra, construir um canal etc. A finalidade do gênero deliberativo é o útil e o
prejudicial, pois o conselho será, como disse Aristóteles, algo que seja vantajoso ou
funesto”. É importante ressaltar que a deliberação é feita sobre assuntos que estão no
terreno da instabilidade, no campo da possibilidade ou não dos acontecimentos, pois o
que inevitavelmente ocorrerá como diz Aristóteles: aquilo que acontecerá
necessariamentenão pode ser matéria de deliberação. Esse ponto é interessante uma
vez que nos mostra ser a retórica do domínio da probabilidade, ela não pretende
determinar proposições irrefutáveis ou a verdade mais segura sobre as coisas, e sim,
pertence ao campo da verossimilhança e do provável. A probabilidade constitui-se em
terreno fértil para o surgimento da argumentação e do debate. O gênero deliberativo é
associado ao tempo futuro, uma vez que delibera-se sobre ações futuras que deverão ser
empreendidas. Como visam aconselhar ou dissuadir estarão focados na idéia do útil e do
nocivo.
No gênero
epidíctico
(demonstrativo) tem-se todo o tipo de elogio ou
censura em solenidades, festas, enterros e reuniões. Quando se louva ou se censura diz-
se a respeito do honrado, do célebre ou do desonrado, insensato e vil. Sempre estarão
100
associados com os elogios, celebrações e reprimendas. O elogio é um discurso que
mostra em todo seu esplendor a grandeza da virtude. A amplificação, a hipérbole são
características dos discursos epidícticos, porque neles o orador toma os fatos como
aceites e reveste-os de grandeza e beleza. O tempo do gênero epidíctico é o presente,
uma vez que louvando ou censurando destaca-se sempre o momento presente das
coisas, de como elas se apresentam no momento do desencadeamento discursivo,
devido ao objetivo do discurso; se numa condenação, o contrato do discurso é o de
censurar; se num enterro, o contrato será o de um discurso fúnebre enaltecedor. Uma
vez que esses discursos visam louvar ou censurar, determinarão as categorias do belo e
do feio. É o discurso encontrado nas festas, solenidades e lutos.
O gênero
judiciário
tem o seu local privilegiado como sendo o tribunal.
Uma ação judiciária comporta a acusação e a defesa, então este gênero determinará o
justo e o injusto; o seu tempo será o passado, pois julga-se as ações passadas e são elas
que cumprem esclarecer e julgar. O acusador deve examinar com cuidado quais são as
proposições que podem ser sustentadas no intuito de prejudicar o acusado. Este deverá
se empenhar em determinar o número e a quantidade de qualidades e proposições que
lhes serão favoráveis, além de refutar as que não são.
Resumindo, podemos perceber que relativamente aos três gêneros, quando se
aconselha ou desaconselha, quando se louva ou se censura e quando se acusa ou se
defende, ninguém se empenha só em mostrar o que afirmou, mas também indicar a
importância grande ou pequena do bem e do mal, do belo e do feio, do justo e do
injusto. Fica assim, então, determinado os três gêneros discursivos:
deliberativos
, onde
101
as pessoas, na assembléia, decidirão sobre temas futuros, referentes à cidade, tais como
declaração de guerra, impostos, importações e legislação; o
epidíctico
em que o
espectador será envolvido por grande habilidade do orador em festas, solenidades e
enterros; e o
judiciário
que acusa ou defende o passado perante um auditório seleto, o
tribunal.
No caso da Apologia de Sócrates, percebe-se o uso de uma retórica do
gênero judiciário, aquela que tem como seu local privilegiado o tribunal, desenvolvida
para persuadir os julgadores a condenarem Sócrates à morte. Pois bem, o embate entre
retórica e dialética é colocado, uma vez que Sócrates tenta combater a retórica judiciária
da acusação com sua lógica dialética. O discurso da persuasão contra o discurso da
razão.
Além de Sócrates ter feito sua defesa de forma mais racional e lógica
(dialética), portanto menos persuasiva (retórica) e isso tê-lo prejudicado quanto ao
sucesso da defesa, tem-se as questões ideológicas imbricadas em todo aquele processo
acusatório. Fica claro, até mesmo pelas palavras de Sócrates quando se refere a um
combate com sombras que havia algo por detrás daquelas acusações. Numa outra
passagem, Sócrates diz:
Se acreditais, matando os homens, iludir alguns dos vossos críticos,
não pensais justo; esse modo de vos livrardes não é decerto eficaz
nem belo, mas belíssimo e facílimo é não contrariar os outros, mas
aplicar-se a se tornar, quanto se puder, melhor.
63
63
PLATÃO. Apologia de Sócrates (2003: 87).
102
Havia um desejo de calar Sócrates, aquela voz não poderia, de maneira
alguma, continuar instruindo na àgora, pois a sua instrução se apresentava como uma
ameaça para determinado grupo.
A prova mais cabal de como Sócrates desmontou a acusação ao fazer sua
defesa, é que pouco tempo depois da sua morte, os atenienses perceberam a dimensão
do erro que haviam cometido ao condená-lo à morte. Um período de luto foi declarado
em sua homenagem; os ginásios, teatros e escolas foram fechados. Meleto foi
condenado à morte, Lícon suicidou-se de desespero, relegado por todos, e Ânito, o
homem por traz de toda conspiração, foi exilado em Heracléia, onde acabou apedrejado
pelo povo. Uma estátua em bronze foi esculpida em memória de Sócrates na Praça de
Atenas.
É justamente o fato de ter desenvolvido uma defesa calcada na lógica e na
racionalidade, de que é revestido o discurso dialético, diferentemente do retórico e do
sofístico, e ainda assim ter sido condenado à morte, é que estamos, passados 24 séculos,
lendo, pesquisando e tratando a seu respeito. Sócrates poderia ser uma figura
inexistente, apagada pelo tempo, como, certamente, ocorreu com tantos outros
condenados à morte em tempos remotos de nossa história. A sua posteridade é devida
ao reconhecimento de suas palavras como sendo verdadeiras, e pela injustiça que sofreu
pagando com a própria vida.
*
* *
103
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108
ANEXO: Apologia de Sócrates
Tradução: Jean Melville
109
PRIMEIRA PARTE
I
Não sei, cidadãos atenienses, o que haveis sentido, pela influência dos meus
acusadores; o fato de eles discursarem com tanta convicção fez-me esquecer de mim
mesmo. Posso garantir, porém, que nada disseram de verdadeiro.
Apenas uma, entre tantas mentiras que propalaram, eu acato: a de que deveis ficar
alertas para não serdes enganados pela minha habilidade de orador.
No entanto, não se envergonham com a possibilidade de que logo seriam
desmentidos por mim, concretamente, quando eu me apresentasse diante de vós, de
nenhum modo hábil orador? Essa é, na verdade, a sua maior imprudência, se, todavia,
não denominam “hábil no falar” aquele que diz a verdade. Porque, se dizem exatamente
isso, então devo me considerar um bom orador, mas não no sentido que quiseram me
atribuir.
Dessa forma, portanto, como acabei de dizer, pouco ou absolutamente nada
disseram de verdade; mas, ao contrário, eu vo-la direi com toda clareza. Contudo,
cidadãos atenienses, por Zeus, não ouvireis discursos repletos de expressões ou palavras
vazias, ou adornados como os deles, mas coisas ditas simplesmente de maneira
espontânea; pois estou certo de que é justo o que digo, e nenhum de vós espera outra
coisa. Em verdade, nem conviria que eu, nesta idade, me apresentasse diante de vós,
senhores, como um jovenzinho que prepara os seus discursos. E todavia, cidadãos
atenienses, faço-vos um pedido, uma súplica: se sentirdes que me defendo com os
mesmos discursos com os quais costumo falar nas feiras, na praça perto dos bancos,
110
onde muitos de vós me tendes ouvido, em outros lugares, não estranheis por isso, nem
provoqueis tumulto.
É que, pela primeira vez depois de mais de setenta anos, me apresento diante de
um tribunal.
Por isso, sou quase estranho ao modo de falar aqui. Se eu fosse realmente um
estrangeiro, sem dúvida me perdoaríeis se eu falasse na língua e maneira pelas quais
tivesse sido educado; assim também agora vos peço algo que me parece justo: permiti-
me, em primeiro lugar, a minha linguagem e podeser pior ou mesmo melhor
depois, considerai se o que digo é justo ou não. Essa, de fato, é a virtude do juiz; do
orador, o mérito é dizer a verdade.
II
Cidadãos atenienses, é necessário, portanto, que, em primeiro lugar, eu me
defenda das primeiras e falsas acusações que me foram apresentadas, e dos primeiros
acusadores; em seguida, me defenderei das últimas e dos últimos. Porque muitos dos
meus acusadores têm vindo avós bastante tempo, talvez anos, e sem jamais
dizerem a verdade; e esses eu temo mais do que Anito e seus companheiros, embora
também sejam temíveis os últimos. Mais temíveis porém são os primeiros, senhores, os
quais tomando a maior parte de vós, desde crianças, vos persuadiam e me acusavam
falsamente, dizendo-vos que um tal Sócrates, homem douto, especulador das coisas
celestes e investigador das subterrâneas e que torna mais forte a razão mais fraca. Esses
cidadãos atenienses, que divulgaram tais coisas, são os acusadores mais temíveis; pois
aqueles que os escutam julgam que os investigadores de tais coisas não acreditam nem
mesmo nos deuses. Pois esses acusadores são muitos e me acusam muito tempo; e,
111
além disso, vos falavam naquela idade em que mais facilmente podíeis dar crédito,
quando éreis crianças e alguns de vós muitos jovens, acusando-me com pertinaz
tenacidade, sem que houvesse alguém para me defender. E o que é mais absurdo é que
não se pode saber nem dizer os seus nomes, exceto, talvez, algum autor de comédias.
Por isso, quantos, por inveja ou calúnia, vos persuadiam, e os, que, convencidos,
procuravam persuadir os outros, são todos, por assim dizer, inabordáveis; porque não é
possível fa-los comparecer aqui, nem refutar nenhum deles, mas devo eu mesmo me
defender, quase combatendo com sombras e destruir, sem que ninguém responda.
Admiti, também vós, como eu digo, que os meus acusadores são de duas espécies:
uns, que me acusaram recentemente, outros, mais tempo, dos quais estou falando e
de quem devo defender primeiramente, porque também vós os ouvistes acusar-me em
primeiro lugar e durante muito mais tempo que os outros.
Ora bem, cidadãos atenienses, devo defender-me e empenhar-me em eliminar da
vossa mente, em tão breve hora, a má opinião acolhida por vós durante longo tempo.
Eu desejaria consegui-lo, e seria o melhor, para vós e para mim, se, defendendo-
me, obtivesse algum proveito; mas vejo que é muito difícil, e bem percebo por quê.
De resto, seja com Deus quiser: agora é preciso obedecer à lei e me defender.
III
Prossigamos, então, e recapitulemos, de início, qual é a acusação, de onde nasce a
calúnia contra mim, baseado na qual Meleto me moveu este processo.
Vejamos o que diziam os caluniadores ao caluniar-me. É necessário ler a ata da
acusação jurada por estes acusadores: - Sócrates comete crime, investigando
indiscriminadamente as coisas terrenas e as celestes, e tornando mais forte a razão
112
mais débil, e ensinando aos outros. Tal é, mais ou menos, a acusação: e isso vistes,
vós mesmos, na comédia de Aristófanes, onde aparece, aqui e ali, um Sócrates que diz
caminhar pelos ares e exibe muitas outras tolices, das quais não entendo nem muito,
nem pouco.
E não digo isso por desprezar tal ciência, se é que sapiência nela, mas o fato é,
cidadãos atenienses, que, de maneira alguma, me ocupo de semelhantes coisas. E
apresento testemunhas: vós mesmos, e peço vos informeis reciprocamente, mutuamente
vos interrogueis, quantos de vós me ouviram discursar algum dia; e muitos dentre vós
são desses. Perguntai-vos uns aos outros se qualquer de vós jamais me ouviu tocar
nesses assuntos, por pouco que fosse, e então reconhecereis que tais são, do mesmo
modo, as outras mentiras que dizem de mim.
IV
Na realidade, nada disso tem fundamento, e, se tendes ouvido de alguém que eu
instruo e ganho dinheiro com isso, também não é verdade. Embora, em realidade, isso
mesmo me pareça bela coisa: que alguém seja capaz de instruir os homens, como
Górgias de Leontine, Pródico de Côo, e Hípias de Elide. Porquanto, cada um desses,
senhores, passando de cidade em cidade, é capaz de persuadir os jovens, os quais
poderiam conversar gratuitamente com todos os cidadãos que quisessem; é capaz de os
convencer a estar com eles, deixando as outras conversações, compensando-os com
dinheiro e proporcionando-lhes prazer.
Aqui, porém, outro erudito de Paros, o qual eu soube que veio para junto de
nós, porque encontrei casualmente um que despendeu com os sofistas mais dinheiro que
todos os outros juntos: Cálias de Hipônico. Tem dois filhos e eu o interroguei: “Cálias,
113
se os teus filhinhos fossem potrinhos ou bezerros, deveríamos escolher e pagar para eles
um treinador, o qual os deveria aperfeiçoar nas suas qualidades inerentes; seria uma
pessoa que entendesse de cavalos e agricultura. No entanto, como são homens, qual é o
mestre que deves tomar para eles? Qual é o que sabe ensinar tais virtudes, a humana e a
civil? Creio bem que tens pensado nisso uma vez que tens dois filhos. Haverá alguém
ou o?” Certamente!” responde. E eu pergunto: Quem é, de onde e por quanto
ensinar?”. “Éveno”, respondeu, “de Paros, por cinco minas”.
E eu suponho que Éveno se sentiria muito feliz, se verdadeiramente possui essa
arte e a ensina com tal garbo. No entanto o que é certo é que também eu me sentiria
altivo e orgulhoso, se soubesse tais coisas; entretanto, o fato é, cidadãos atenienses, que
não sei.
V
Algum de nós, aqui, poderia talvez se opor a mim: “Enfim, Sócrates, que é que
fazes? De onde nasceram essas calúnias? Se não tivesses te ocupado em coisa alguma
diversa das coisas que fazem os outros, na verdade não terias ganho tal fama e na teriam
nascido acusações. Dize, pois, o que é isso, a fim de que não julguem a esmo”.
Quem diz assim, parece-me que fala com razão; procurarei demonstrar-vos que
jamais foi essa a causa da origem de tal fama e de tal calúnia. Ouvi-me. Talvez possa
parecer a alguns de vós que eu esteja gracejando; entretanto, não tenhais dúvida, eu vos
direi toda a verdade. Porque eu, cidadãos atenienses, se conquistei esse nome, foi por
alguma sabedoria.
Que sabedoria é essa? Aquela que é talvez, propriamente, a sabedoria humana. É,
em realidade, arriscado ser bio nela: mas aqueles de quem falávamos ainda pouco
114
seriam sábios de uma sabedoria mais que humana, ou não sei que dizer, pois certamente
a desconheço. Não façais rumor, cidadãos atenienses, não fiqueis contra mim, mesmo
que vos pareça que eu diga qualquer absurdo; pois que não é meu o discurso que estou
por proferir, mas refiro-me a outro que é digno da vossa confiança.
Apresento-vos, de fato, o deus de Delfos, como testemunha de minha sabedoria, se
eu a tivesse, e qualquer que fosse. Conheceis bem Xenofonte.
Era meu amigo de infância, também amigo do vosso partido democrático, e
participou do vosso exílio e convosco repatriou-se. E sabeis também como era
Xenofonte, veemente em tudo aquilo que empreendesse. Uma vez, de fato, indo a
Delfos, ousou interrogar o oráculo a respeito disso e perguntou-lhe, pois, se havia
alguém mais sábio que eu. Ora, a pitonisa respondeu que não havia ninguém mais sábio.
E a testemunha disso é o irmão dele que aqui está.
VI
Avaliai bem a razão por que digo isso: estou para demonstrar-vos de onde nasceu
a calúnia. Em verdade, ao ouvir isso, pensei: “Que queria dizer o deus e qual é o sentido
das suas palavras obscuras? Sei bem que não sou sábio, nem muito nem pouco: que quer
dizer, pois, afirmando que eu sou o mais sábio? Sem dúvida, não mente, não é
possível”. E fiquei por muito tempo sem saber o verdadeiro sentido de suas palavras;
depois de grande fadiga, resolvi investigar a significação do seguinte modo. Fui a um
daqueles detentores da sabedoria, com a intenção de refutar, por meio deles, sem
dúvida, o oráculo, e, com tais provas, opor-lhe a minha resposta: “Este é mais sábio que
eu, enquanto tu dizias que sou eu o mais sábio”. Examinando esse homem – não
importa o nome, mas era, cidadãos atenienses, um dos políticos, este de quem eu
115
experimentava esta impressão – e falando com ele, parecia ser um verdadeiro sábio para
muitos e principalmente a si mesmo, mas não era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele
parecia sábio sem o ser.
Daí veio o ódio dele e de muitos dos presentes contra mim. Então, pus-me a
considerar, comigo mesmo, que eu sou mais sábio do que esse homem, pois que, ao
contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e de bom, mas aquele homem acredita saber
alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não
saber. Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso ainda que seja pouco
coisa: não acredito saber aquilo que não sei.
Em seguida, fui a outro daqueles que possuem ainda mais sabedoria que esse, e
me pareceu que todos são a mesma coisa.
Daí veio o ódio também a este e a muitos outros.
VII
Depois prossegui sem mais me deter, embora vendo, amargurado e temeroso, que
estava sendo odiado; mas, também, me parecia dever dar mais valor à resposta do deus.
Para procurar, pois, o que queria dizer o oráculo, eu devia ir a todos aqueles que diziam
saber qualquer coisa. E então, cidadãos atenienses, já que é preciso dizer a verdade, me
aconteceu o seguinte: procurando segundo o critério do deus, pareceu-me que os que
tinham mais reputação eram os mais desprovidos, e que, ao contrário, os outros,
considerados ineptos, eram homens mais capazes, quanto à sabedoria.
Ora, é necessário que eu vos descreva os meus passos, como de quem se cansava
para que o oráculo se tornasse acessível a mim. Depois dos políticos, fui aos poetas
trágicos, e dos ditirâmbicos fui aos outros, convencido de que, entre esses, eu me
116
classificaria como mais ignorante do que eles. Tomando, portanto, os seus poemas,
dentre os que me pareciam os mais bem-feitos, eu lhes perguntava o que queriam dizer,
para aprender também eu alguma coisa com eles.
Agora, cidadãos atenienses, eu me envergonho de vos dizer a verdade; mas,
também, devo manifestá-la. Pois que estou para afirmar que todos os presentes teriam
discorrido sobre tais versos, quase melhor do que aqueles que os haviam feito.
Em poucas palavras direi ainda, em relação aos trágicos, que nada daquilo que
faziam era por sabedoria, mas por certa natural inclinação, e intuição, assim como os
adivinhos e os vates; e em verdade, embora digam muitas e belas coisas, não sabem
nada daquilo que dizem.
O mesmo se poderia dizer dos outros poetas: e também me recordo de que eles,
por causa das suas poesias, julgavam-se homens sapientíssimos ainda em outras coisas,
nas quais não eram. Por essa razão, pois, andei pensando que, nisso, eu os superava,
pela mesma razão que superava os políticos.
VIII
Finalmente, também procurei os artífices, porque estava persuadido de que por
assim dizer nada sabiam, e, ao contrário, devo dizer que os achei instruídos em muitas e
belas coisas.
Em verdade, nisso me enganei; eles, realmente, eram dotados de conhecimentos
que eu não tinha e eram muito mais sábios do que eu. Contudo, cidadãos atenienses,
parece-me que também os bons artífices tinham o mesmo defeito dos poetas; pelo fato
de exercitar bem a própria arte, cada um pretendia ser sapientíssimo também nas outras
coisas de maior importância, e esse erro obscurecia o seu saber.
117
Assim, eu ia interrogando a mim mesmo, a respeito do que disse o oráculo, se
devia mesmo permanecer como sou, nem bio, nem ignorante como eles, ou ter ambas
as coisas, como eles têm.
Em verdade, respondo a mim e ao oráculo que me convém ficar como sou.
IX
Dessa investigação, cidadãos atenienses, me vieram muitas inimizades e tão
odiosas e graves que delas se originaram outras tantas calúnias como também me foi
atribuída a qualidade de sábio; pois que, a cada instante, os presentes acreditam que eu
seja sábio naquilo que refuto aos outros. Do contrário, ó cidadãos, o deus é que poderia
ser sábio de verdade, ao dizer, no oráculo, que a sabedoria humana é de pouco ou
nenhum preço; e parece que não tenha querido dizer isso de Sócrates, mas que se tenha
servido do meu nome, tomando-me por exemplo, como se dissesse: “São considerados
sapientíssimos dentre vós, ó homens, aqueles que, como Sócrates, tenham reconhecido
que em realidade sua sabedoria não tem nenhum mérito”.
Por isso, até agora procuro e investigo segundo a vontade do deus, se algum dos
cidadãos e dos forasteiros me parece sábio; e, quando não, indo em auxílio do adeus,
demonstro-lhe que não é sábio. E, totalmente empenhado em tal investigação, não tenho
tido tempo de fazer nada de apreciável, nem nos negócios públicos, nem nos privados,
mas encontro-me em extrema pobreza, por causa do serviço do deus.
Além disso, os jovens com maior disponibilidade de tempo, os filhos dos ricos,
seguindo-me espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens, e muitas
vezes me imitam, por sua própria conta, e se decidem também a examinar os outros; e
então, imagino, encontram grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma
118
coisa, mas pouco ou nada sabem. Daí, aqueles que o examinados por eles
encolerizam-se comigo assim como com eles e, por essa razão, dizem que um tal
Sócrates, perfidíssimo, que corrompe os jovens. E quando alguém lhes pergunta o que é
que ele faz e ensina, não sabem responder, pois ignoram. Para não parecerem
embaraçados, repetem aquela acusação comum, a qual é movida a todos os filósofos:
que ensina as coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos deuses, e a tornar mais forte
a razão mais débil. Sim, porque não querem, a meu ver, dizer a verdade, ou seja, que
descobriram a sua presunção de saber, quando não sabem nada. Assim suponho, sendo
eles ambiciosos e resolutos e em grande número, e falando de mim concordemente e
persuasivamente, vos encheram os ouvidos caluniando-me de muito tempo e com
persistência. Entre estes, insurgiram-se contra mim Meleto, Anito e Lícon: Meleto pelos
poetas, Anito pelos artífices, Lícon pelos oradores. De modo que, como eu dizia no
princípio, ficaria maravilhado se conseguisse, rapidamente, eliminar de vossa mente a
força dessa calúnia, tornada tão grande. Eis a verdade, cidadãos atenienses, e eu falo
sem esconder nem dissimular nada de muita ou pouca importância. Saibam, quantos o
queiram, que por esse motivo sou odiado; e que digo a verdade, e que tal é a calúnia
contra mim e tais são as causas. E tanto agora como mais tarde ou em qualquer tempo,
podereis considerar estas coisas: serão como digo.
X
Creio ser suficiente, pois, esta minha defesa diante de vós, contra a acusação
movida a mim pelos primeiros acusadores.
Agora procurarei defender-me de Meleto, tido como homem de bem e amante da
pátria, e um dos últimos acusadores.
119
Voltemos, portanto, ao ato de acusação, jurado por ele, como por outros
acusadores. Consta mais ou menos assim:
- Sócrates comete crime corrompendo a juventude e não considerando como
deuses aqueles em que todo povo acredita, porém outras divindades novas. Esta é a
acusação.
Examinemo-la agora em todos os seus vários pontos. Diz que cometo crime,
corrompendo a juventude. Ao contrário, eu digo, cidadãos atenienses, Meleto é quem
comete crime, porque brinca com coisas sérias.
Conduzindo com facilidade os homens ao tribunal, dissimulando ter cuidado e
interesse por coisas em que de fato nunca pensou. Procurarei mostrar-vos que é bem
assim.
XI
- Agora, dize-me Meleto: não é verdade que te preocupas muito que os jovens se
tornem cada vez melhores, tanto quanto possível?
- Sim, é certo.
- Vamos, pois, dizer a estes senhores quem os torna melhores: é evidente que tu o
deves saber, coisa que te preocupas, tendo de fato encontrado quem os corrompe, como
afirmas, já que me trouxeste aqui e me acusas. Continua, fala e indica-lhes quem os
torna melhores. Vê, Meleto, calas e não sabes o que dizer. Portanto, não te parece
vergonhoso e suficiente prova do que justamente eu digo, que nunca pensaste em nada
disso? Mas, dize, homem de bem, quem os torna melhores?
- As leis.
120
- A pergunta que faço não é essa, ótimo homem, mas qual o homem que sabe, em
primeiro lugar, isso exatamente, as leis.
- Aquelas pessoas, Sócrates, os juízes.
- Como, Meleto? Essas pessoas são capazes de educar os jovens e os tornar
melhores?
- Certamente.
- Todos, ou alguns sim, outros não?
- Todos.
- Muito bem respondido, por Juno: Vê quanta abundância de pessoas úteis! Como?
Também estes, que nos escutam, tornam melhores os jovens ou não?
- Também estes.
- E os senadores?
- Também os senadores.
- É assim, Meleto. Não corrompem os jovens os cidadãos da assembléia, ou
também todos esses os tornam melhores?
- Também esses.
- Assim, pois; todos os homens, como parece, tornam melhores os jovens, exceto
eu, só eu corrompo os jovens. Não é isso?
- É exatamente isso que afirmo.
- Oh! Que grande desgraça descobriste em mim! E responde-me: será assim
também para os cavalos? Todos os homens os tornam melhores e um os corrompe?
Ou será o contrário, que um só é capaz de os tornar melhores, e bem poucos aqueles que
entendem de cavalos; e os mais, quando querem manejá-los e usá-los, os estragam? Não
é assim, Meleto, para os cavalos como para todos os animais? Sim, certamente, ainda
121
que tu e Anito o neguem ou afirmem. Pois seria ótimo para os jovens que um só
corrompesse e os outros lhes fossem todos úteis. Na realidade, porém, Meleto, mostraste
o suficiente que jamais te preocupaste com os jovens, e claramente revelaste o teu
desprezo, que nenhum pensamento te passou pela mente, disso de que me está
acusando.
XII
- Por Zeus, Meleto, diz-me ainda: que é melhor, viver entre virtuosos cidadãos ou
entre malvados? Responde, meu caro, o te pergunto uma coisa difícil. Não fazem os
malvados alguma maldade aos que são seus vizinhos, e alguns benefícios os bons?
- Certamente.
- E haverá quem prefira receber malefícios a ser auxiliado por aqueles que estão
com ele? Responde, porque também a lei manda responder. os que prefiram ser
prejudicados?
- É claro que não.
- Vamos, pois, tu me acusas como pessoa que corrompe os jovens e os torna
piores, voluntariamente ou involuntariamente?
- Para mim, voluntariamente.
- Como, Meleto? Tu, nesta idade, és mais sábio do que eu, tão velho, sabendo que
os maus fazem sempre mal aos mais próximos e os bons fazem bem. Eu, no entanto, sou
tão ignorante que não sei nem isso; que, se tornasse maus alguns daqueles que estavam
comigo, correria o risco de receber dano, se é que faço um tão grande mal, como dizes.
Não me convences, Meleto, quanto a isso, e ninguém te dá crédito, penso.
122
No entanto, ou não os corrompo, ou, se os corrompo, é sem querer, e em ambos os
casos mentiste. E, se os corrompo involuntariamente, não leis que mandem trazer
aqui alguém, por tais fatos involuntários, mas as que mandam conduzi-lo em
particular, instruindo-o, advertindo-o; é evidente que, se me convencer, cessarei de fazer
o que estava fazendo sem querer. Tu, em vez de orientar-me com teus ensinamentos,
evitaste encontrar-me e instruir-me, não o quiseste; e me conduzes aqui, onde a lei
ordena trazer os que precisam de castigo e não de instrução.
XIII
Contudo, cidadãos atenienses, os fatos evidenciaram o que eu sempre disse.
Jamais Meleto prestou atenção a tais coisas, nem muita nem pouca. Todavia, explica,
Meleto, o que significa a tua expressão, dizendo que corrompo a juventude. É claro,
segundo a acusação escrita por ti mesmo, que ensino a não respeitar os deuses que a
cidade respeita, porém outras divindades novas. Não dizes que os corrompo, ensinando
tais coisas?
- Sim, é isso mesmo que eu digo, sempre que posso.
- Então, Meleto, por estes mesmos deuses, de que agora estás falando, fala ainda
com mais clareza, a mim e aos outros. Não consigo entender se dizes que eu ensino a
acreditar que existem certos deuses – e em verdade creio que existem deuses, e o sou
de todo ateu, nem sou culpado de tal erro mas não o os da cidade, porém outros e é
disso que exatamente me acusas, dizendo que eu creio em outros deuses. Ou afirma que
eu mesmo não creio inteiramente nos deuses e que ensino isso aos outros?
- Eu afirmo que não acreditais inteiramente nos deuses.
123
- Admirável Meleto, a quem disse eu isso? Não creio, pois, do mesmo modo que
os outros homens, que o sol e a lua são deuses?
- Não, por Zeus, ó juízes: ele disse de fato que o sol é uma pedra, e a lua, terra.
- Tu acreditas estar acusando Anaxágoras, caro Meleto; e me desprezas tanto e me
consideras tão sem instrução a ponto de não saber que os livros de Anaxágoras
Clazomênio estão cheios de tais raciocínios? De modo que os jovens aprendem coisas
de mim, pelas quais podem talvez, pagando todos no máximo uma dracma, rir-se de
Sócrates, quando se lhe atribui arrogância, embora isso pareça estranho. Mas, por Zeus,
assim te parece, que eu creio que não exista nenhum deus?
- Nenhum, por Zeus, nenhum mesmo.
- És, decerto, indigno de fé, Meleto, e também a ti mesmo, me parece, tais coisas
são inacreditáveis. Porque este homem, cidadãos atenienses, me parece a própria
arrogância e imprudência, e certamente escreveu essa acusação por medo, intemperança
e leviandade juvenil. De fato, ele, para mim, se assemelha a alguém que proponha um
enigma e diga, interrogando-se a si mesmo: Perceberá Sócrates, o bio, que eu estou
zombando dele e me contradigo, ou conseguirei enganá-lo e aos outros que me ouvem?”
E, ao contrário, penso que, no ato da acusação, se contradiz de propósito, como se
dissesse: Sócrates comete crime, não acreditando nos deuses, mas acreditando nos
deuses”. E isso, na verdade, é fazer zombaria.
XIV
Considerai, pois, comigo, ó cidadãos, de que modo me parece que ele diz isso.
Responde-nos, tu, Meleto, e vós, senhores, como pedi a princípio, não façais rumor
contra mim, se conduzo o raciocínio deste modo. Existem entre os homens, Meleto, os
124
que acreditam que coisas humanas, mas que não homens? Que responda ele, ó
juízes, sem resmungar ora uma coisa ora outra. os que afirmam que não cavalos,
ao mesmo tempo acreditam que existem coisas relacionadas aos cavalos? Ou acreditam
que não flautista, mas apenas coisas relativas às flautas? Não há? Ótimo homem, se
não queres responder, digo-o eu, aqui, a ti e aos outros presentes. Ao menos, responde a
isto: Há quem acredite que há coisas demoníacas, e demônios não?
- Não há.
- Oh! Como estou contente que tenhas respondido de vontade, constrangido
por outros! Tu afirmas, pois, que eu creio e ensino coisas demoníacas, sejam novas,
sejam antigas; portanto, segundo o teu raciocínio, eu creio que há coisas demoníacas e o
juraste na tua acusação. Ora, se creio que há coisas demoníacas, é absolutamente
necessário que eu creia também na existência dos demônios. Não é assim?Assim é:
estou certo de que o admites, porque não respondes. E não consideramos os demônios
como deuses ou filhos dos deuses? Sim, ou não?
- Sim, é verdade.
- Se, então, creio na existência dos demônios, como dizes, se os demônios são uma
espécie de deuses, isso seria propor que não acredito nos deuses, e depois, que, ao
contrário, creio nos deuses, porque ao menos creio na existência dos demônios. Se,
ainda, os demônios são filhos bastardos dos deuses com as ninfas, ou outras mulheres,
das quais somente se dizem nascidos, quem jamais poderia ter a certeza de que são
filhos dos deuses se não existem os deuses? Seria do mesmo modo absurdo que alguém
acreditasse nas mulas, filhas dos cavalos e das jumentas, e acreditasse não existirem
cavalos e asnos. Mas, Meleto, a tua acusação foi feita para me tentar, ou também por
não saber a verdadeira culpa que me pudesses atribuir: por que, pois, te arriscas a
125
persuadir um homem, mesmo de mente restrita, de que pode a mesma pessoa acreditar
na existência das coisas demoníacas e divinas, e, de outro lado, essa pessoa não admite
demônios, nem deuses, nem heróis? Isso não é possível.
XV
Portanto, cidadãos atenienses, para demonstrar que não sou réu, segundo a
acusação de Meleto, não me parece ser necessária longa defesa, mas isso basta. Aquilo,
pois, que eu dizia no princípio, que muito ódio contra mim, e muito acumulado, bem
sabeis que é verdade. E isso é o que vai me vencer, se eu for condenado... e não Meleto,
ou Anito, mas a calúnia e a insídia do povo: pela mesma razão se perderam muitos
outros homens virtuosos e outros ainda, creio, serão derrotados, pois esse mal não
termina comigo. Mas talvez alguém pudesse dizer: “Não te envergonhas, Sócrates, de te
aplicares a tais ocupações, pelas quais agora estás arriscado a morrer?” A isso
responderei com justo raciocínio: “Não estás falando bem, meu caro, se acreditas que
um homem, de qualquer utilidade, por menor que seja, deve fazer caso dos riscos de
viver ou de morrer, e, ao contrário, só deve considerar o seguinte: ao executar qualquer
tarefa, deve avaliar apenas se está procedendo de maneira justa ou injusta, se está
agindo como homem virtuoso ou desonesto”. Porquanto, segundo a tua opinião, seriam
desprezíveis todos aqueles semideuses que morreram em Tróia. E, com eles, o filho de
Tétis, o qual para não sobreviver à vergonha, desprezou de tal modo o perigo que,
desejoso de matar Heitor, o ouviu as palavras de sua mãe, que era uma deus, e a qual
lhe deve ter dito mais ou menos isto: “Filho, se vingares a morte de teu amigo Pátroclo e
matares Heitor, tu mesmo morrerás, porque, imediatamente depois de Heitor, o teu
destino está terminado”. Ouviu tais palavras, fez pouco caso da morte e dos perigos, e,
126
temendo muito mais o viver ignóbil e não vingar os amigos, disse: “Morra eu
imediatamente depois de ter punido o culpado, para que não permaneça aqui como
objeto de riso, junto das minhas naus recurvas, inútil fardo da terra”. Crês que tenha
feito caso dos perigos e da morte? Porque em verdade assim é, cidadãos atenienses:
onde quer que alguém se tenha colocado, considerando-o o melhor posto, ou se for ali
colocado pelo comandante, tem necessidade, a meu ver, de enfrentar os perigos, sem se
importar com a morte ou com coisa alguma, a não ser com as torpezas.
XVI
Cometeria erro grave, cidadãos atenienses, quando os comandantes, por vós
eleitos para me dirigirem, me designaram um posto em Potidéia, am Anfípole, em
Délio, e eu não tivesse ficado onde me colocaram como qualquer outro e correndo
perigo de morte. Quando, pois, o deus me ordenava, como penso e estou convencido,
que eu devia viver filosofando e examinando a mim mesmo e aos outros, então eu, se
temendo a morte ou qualquer outra coisa, tivesse abandonado o meu posto, isso seria
deveras intolerável. Nesse caso, com razão, alguém poderia conduzir-me ao tribunal, e
acusar-me de não acreditar na existência dos deuses, desobedecendo ao oráculo, e
temendo a morte, e reputando-me sábio sem o ser.
Pois que, senhores, o temer a morte não é outra coisa que parece ter sabedoria, não
tendo. É, de fato, parecer saber o que não se sabe. Ninguém sabe, se por acaso a morte
não é o maior de todos os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se
soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas
a mais reprovável, acreditar saber o que não se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos, talvez
nisso seja diferente da maioria dos homens, e diria isto: não sabendo bastante das coisas
127
do Hades, delas não fugirei. No entanto fazer injustiça, desobedecer a quem é melhor e
sabe mais do que nós, seja deus, seja homem, é mau e vergonhoso. Não temerei nem
fugirei das coisas que não sei se, por acaso, não são boas, em confronto com as más, que
sei que são más. Anito disse que, ou não se devia, desde o princípio, trazer-me aqui, ou,
uma vez que me trouxeram, não é possível deixarem de me condenar à morte,
afirmando que, se eu me salvasse, imediatamente os vossos filhos, seguindo os
ensinamentos de Sócrates, estariam de fato corrompidos. Mesmo se me dissésseis:
“Sócrates, agora não damos crédito a Anito, mas te absolveremos, contando que não te
ocupes mais dessas tais pesquisas e de filosofar, porque, se fores apanhado ainda a fezer
isso, morrerás”; se, pois, me absolvêsseis sob tal condição, eu vos diria:
“Cidadãos atenienses, eu vos respeito e vos amo, mas obedecerei aos deuses em
vez de obedecer a vós e, enquanto eu respirar e estiver na posse de minhas faculdades,
não deixarei de filosofar e de vos exortar ou de instruir cada um, quem quer que seja
que vier à minha presença, dizendo-lhe, como é meu costume: ‘Caro cidadão de Atenas,
tu que pertences à maior cidade e mais famosa pelo saber e pelo poder, não te
envergonhas de fazer caso das riquezas, para guardares quanto mais puderes e da glória
e das honrarias, e, depois, não fazer caso e nada te importares da sabedoria, da verdade e
da alma, para tê-la cada vez melhor?’”.
E, se algum de vós protestar e prometer cuidar disso, não o abandonarei, nem irei
embora, mas o interrogarei e o examinarei e o convencerei, e, em qualquer momento
que me pareça que não possui virtude, convencido de que a possui, o reprovarei, porque
faz pouquíssimo caso das coisas de grandíssima importância e grande caso das que têm
pouco valor. E isso certamente o farei com quem quer que seja, jovem ou velho,
128
forasteiro ou cidadão, tanto mais com os cidadãos quanto mais me sejam vizinhos por
nascimento.
Isso justamente é o que me manda o deus, e vós o sabeis, e creio que nenhum bem
maior tendes na cidade, maior do que este meu serviço do deus.
Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a o se preocuparem
exclusivamente, e nem tão ardentemente, com o corpo e com as riquezas, como devem
preocupar-se com a alma, para que ela seja o melhor possível, e vou dizendo que a
virtude não nasce da riqueza, mas da virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os
outros bens, tanto públicos como privados.
Se eu corrompo os jovens com esses discursos, tais raciocínios são prejudiciais;
mas se alguém disser que digo outras coisas que não essas, não diz a verdade. Por isso
vos direi, cidadãos atenienses, que secundando Anito ou não, absolvendo-me ou não,
não farei outra coisa, nem que tenha de morrer muitas vezes.
XVII
Não façais rumor, cidadãos atenienses, mas perseverai no que vos estou dizendo,
isto é, não vocifereis pelas coisas que digo, mas ouvi-me; pois, escutando-me, penso
que tirareis proveito.
Aqui estou para vos dizer algumas outras coisas, e talvez, por isso, levantareis a
voz, mas não o deveis fazer. Ficai com a certeza de uma coisa: se me condenais a
morrer, a mim que sou tal como eu digo, não causareis maior dano a mim que a vós
mesmos. E, de tato, nem Meleto, nem Anito me poderiam fazer mal em coisa alguma:
isso jamais seria possível, pois que não pode acontecer que um homem melhor sofra
dano de um pior. É possível que me mandem matar, ou me exilem, ou me privem dos
129
direitos civis; mas talvez eles ou quaisquer outros julguem tais coisas como grandes
males, ao passo que eu não considero assim, e, ao contrário, considero muito maior mal
fazer o que agora estão eles fazendo, procurando matar injustamente um homem.
Ora, pois, cidadãos atenienses, estou bem longe de me defender por amor a mim a
mesmo, como poderiam supor, mas por amor a vós, impedindo que, com a minha
condenação, cometais o erro de repelir o dom que de mim vos fez o deus. Pois que, se
me matardes, não encontrareis facilmente outro igual, que (pode parecer ridículo di-
lo) tenha sido adaptado pelo deus à cidade, do mesmo modo como a um cavalo grande e
de pura raça, mas um pouco lerdo pela sua gordura, é aplicada a necessária esporada
para sacudi-lo. Dessa forma, parece que o deus me designou à cidade com a tarefa de
despertar, persuadir e repreender cada um de vós, por toda parte, durante todo o dia.
E outro parecido, não tereis tão facilmente, cidadãos. Contudo, se me ouvísseis me
pouparíeis. É possível que vós, irritados como aqueles que são despertados quando no
melhor do sono, repelindo-me para condescender com Anito, levianamente me
condeneis à morte, para dormirdes o resto da vida, salvo se o deus, pensando em vós,
não vos mandar algum outro.
Que eu seja um homem cuja qualidade é a de ser um dom feito pelo deus à cidade,
podereis deduzir do seguinte: não é natural do homem eu ter descuidado das minhas
coisas, resignando-me por tantos anos a me descuidar dos negócios domésticos para
acudir sempre aos vossos, aproximando-me sempre de cada um de vós em particular
como um pai ou um irmão mais velho, persuadindo-vos a vos preocupardes com a
virtude? Se, de fato, disso eu obtivesse qualquer coisa e recebesse compensação de tais
advertências, teria uma razão. Agora, porém, vós mesmos vedes que os acusadores,
tendo acusado a mim, com tanta impudência, de tantas outras coisas, não foram capazes
130
de apresentar uma testemunha de que eu tenha contratado ou pedido, então, alguma
recompensa.
Apresento, enfim, um testemunho suficiente da verdade do que digo: a mina
pobreza.
XVIII
Poderia talvez parecer estranho que eu, andando daqui para lá, me cansasse dando
em particular esses conselhos, e depois, em público, não ousasse, subindo diante do
vosso povo, aconselhar a cidade. A causa disso é a que em várias circunstâncias eu vos
disse muitas vezes: a mim me acontece qualquer coisa de divino e demoníaco; isso
justamente Meleto escreveu também no ato da acusação, zombando de mim. E tal fato
começou comigo em criança. Ouço uma voz, e toda vez que isso acontece ela me desvia
do que estou a ponto de fazer, mas nunca me leva à ação. Ora, é isso que me impede de
me ocupar dos negócios do Estado. E ame parece que muito a propósito mo impede,
porquanto, sabei-o bem, cidadãos atenienses, se eu, muito tempo tivesse me
empenhado com os negócios da Estado, muito tempo estaria morto, e não teria
sido útil em nada, nem a vós, nem a mim mesmo.
E não vos encolerizeis comigo, porque digo a verdade; não nenhum homem
que se salve, se quer opor-se, com franqueza, a vós ou a qualquer outro povo, e impedir
que muitos atos contrários à justiça e às leis se pratiquem na cidade. E não outro
caminho: quem combate verdadeiramente pelo que é justo, se quer ser salvo por algum
tempo, deve viver a vida privada, nunca meter-se nos negócios públicos.
Disso vos poderei dar grandes provas, não palavras, mas o que mais desejais:
fatos. Ouvi, pois, de mim mesmo o que me aconteceu, para que saibais que não
131
ninguém a quem eu tenha feito concessões com desprezo da justiça e por medo da
morte; e que, ao mesmo tempo, por essa recusa de toda concessão, deverei morrer. Dir-
vos-ei talvez coisas simples e banais, mas verdadeiras. De fato, cidadãos atenienses, não
tenho mais nenhum cargo público na cidade, mas fui senador, e à nossa tribo Antióquia
coube por sorte a pritania, quando quisestes que aqueles dez estrategistas, que não
haviam recolhido os mortos e os náufragos da batalha naval, fossem julgados
coletivamente, contra a lei, no que todos vós conviestes. Então somente eu, dos
pritânios, me opus a vós, não querendo agir em oposição à lei, e votei contra. E, embora
os oradores estivessem prontos a me acusar e me prender, e vós os encorajásseis
vociferando, mesmo assim achei que me convinha mais correr perigo a favor da lei e
com o que era justo, do que, por medo do cárcere e da morte, estar convosco numa
decisão injusta.
Isso acontecia quando a cidade era ainda governada por um regime democrático.
Quando veio a oligarquia, os Trinta, novamente tendo-me chamado, em quinto lugar, ao
Tolo, ordenaram-me que fosse a Salamina buscar o Leão Salamínio, para que fosse
morto. Muitos fatos desse gênero tinham sido ordenados a muitas outras pessoas, com o
fim de cobrir de infâmia quantos mais pudessem. Também naquele momento, não com
palavras mas com fatos, demonstrei que a morte não me importava, ou me importava
menos que um figo, eu diria se não fosse indelicado dizê-lo. Não fazer nada de injusto e
de ímpio, isso sim me importa acima de tudo. Pois aquele governo, embora tão violento,
não me intimidou, para que eu fizesse alguma injustiça; mas quando saímos do Tolo, os
outros quatro seguiram para Salamina e trouxeram o Leão. Eu, porém, afastei-me deles
e fui para casa. Naquela ocasião, eu teria sido morto, se o governo o fosse derrubado
pouco depois. Tendes muitas testemunhas desses acontecimentos.
132
XIX
Ora, julgais que eu teria vivido tantos anos, se tivesse me dedicado à política e,
procedendo como homem de bem, tivesse defendido as coisas justas, e, como deve ser,
tivesse dado a isso a maior importância? Muito longe disso, cidadãos atenienses, na
verdade, também nenhum outro se teria salvo!
Eu, porém, durante toda a minha vida, se fiz alguma coisa, em público como em
particular, vos apareço sempre o mesmo; jamais concordando com coisa alguma contra
a justiça nem com algum daqueles que os meus caluniadores chamam de meus
discípulos.
Nunca fui mestre de ninguém: se, pois, alguém se mostrou desejoso da minha
presença quando eu falava, e acudiam à minha procura jovens ou velhos, nunca me
recusei a ninguém. Nunca, ao menos, falei de dinheiro; mas igualmente me presto a
interrogar os ricos e os pobres, quando alguém, respondendo, quer ouvir o que digo. E
se algum daqueles se torna melhor, ou não se torna, não posso ser responsável, pois que
não o prometi, nem dei, nesse sentido, nenhum ensinamento. E, se alguém afirmar que
aprendeu ou ouviu de mim, em particular, qualquer coisa de diverso do que disse a
todos os outros, sabei bem que não diz a verdade.
XX
Contudo, por que será que alguns gostam de passar muito tempo em minha
companhia? Já ouvistes, cidadãos atenienses, eu vos disse toda a verdade: é porque
tomam gosto em ouvir analisar aqueles que acreditam ser sábio e não o são; não é de
fato coisa desagradável. E, como disse, foi o deus que me ordenou fazê-lo, com
133
oráculos, com sonhos e com outros meios, pelos quais algumas vezes a divina vontade
ordena a um homem que faça o que quer que seja.
Tudo isso, cidadão atenienses, é verdade e fácil de se provar. Com efeito,
suponhamos que, entre a juventude, alguns que estou corrompendo e outros que já
corrompi: seria aparentemente inevitável que alguns destes, quando tiveram mais idade,
compreendessem que eu lhes tinha alguma vez aconselhado uma ação e hoje
deveriam estar aqui para me acusar e vingar-se de mim. Imaginemos ainda que eles não
tenham querido vir pessoalmente: mesmo assim, alguns dos seus parentes, pais, irmãos
ou pessoas da família, se algum dia receberam danos da minha parte, agora se deveriam
recordar e querer vingança.
Mas eis que vejo aqui presentes muitos desses: primeiro, Críton, meu
contemporâneo e do mesmo demos, pai de Critóbulo; depois, Lisânias Sfécio, pai de
Esquines; e, ainda, Antifonte de Cefísia, pai de Epígenes, além destes outros cujos
irmãos estiveram comigo na intimidade: Nicostrato, filho de Teozótides e irmão de
Teodoto (e Teodoto, que é falecido, não poderia impedir Nicostrato de falar contra
mim!). E há, ainda, Paralo de Demódoco, irmão de Teageto, e Adimanto de Aríston, do
qual é irmão Platão, e Aiantádoro, de que é irmão Apolodoro. E muitos outros eu
poderia citar, alguns dos quais especialmente deveriam ter sido apresentados por Meleto
como testemunhas, no seu discurso. Mas se agora se esquivam, aos presentes aqui eu
lhes permito dizer se há qualquer coisa dessa natureza. No entanto, vós, ó juízes, sois de
parecer contrário, pensareis que todos estão prontos a me ajudar. Em verdade, os
próprios corrompidos por mim talvez tivessem razão de me ajudar; mas os que não
corrompi já de idade avançada, parentes daqueles, que razão teriam para me ajudar
senão por estarem convencidos de que Meleto mente e que eu digo a verdade?
134
XXI
É mais ou menos isso, cidadãos atenienses, que eu poderei dizer em minha defesa
ou qualquer coisa semelhante. Certamente, porém, algum de vós poderá ficar
encolerizado, recordando-se de si mesmo. Se sustentou uma contenda embora em
menores proporções do que essa minha, pediu e suplicou aos juízes, com muitas
lágrimas, trazendo aqui os seus filhos, e muitos outros parentes e amigos, a fim de
mover a piedade a seu favor. Eu não farei certamente nada disso, embora enfrente,
como se pode acreditar, o extremo perigo. É possível que qualquer um, considerando
isso, pudesse irritar-se contra mim, e, encolerizado por isso mesmo, desse o voto com
ira. Se, de fato, algum de vós está em tal estado de alma, a mim me parece que poderei
dizer-lhe o seguinte: Também eu, meu caro, tenho uma família”, e bem posso, como
Homero, dizer que não nasci “de um carvalho nem de um rochedo”, pois eu também
tenho parentes e filhinhos, ó cidadãos atenienses: três, um jovenzinho e duas
meninas; contudo não farei vir aqui nenhum deles para vos rogar a minha absolvição.
Por que razão não farei nada disso? Não é por soberbia, ó atenienses, nem por
desprezo por vós; mas que eu seja corajoso ao menos defronte à morte, isto é outra
coisa. Tratando-se de honra, não me parece belo, nem para mim nem para vós, para toda
a cidade, que eu faça tal, na idade em que estou, e com este nome de sábio que me dão,
seja ele merecido ou não.
O fato é que me foi criada a fama de ser esse Sócrates em que alguma coisa
pela qual se torna superior à maioria dos homens. Ora, se aqueles que, entre nós, têm a
reputação de ser superiores aos demais, pela sabedoria, pela coragem ou por qualquer
outro mérito, procedessem de tal modo, seria bem-feito.
135
Freqüentemente já notei essas atitudes, quando são elas julgadas, em pessoas que,
malgrado a fama de homens de valor que têm, se entregam a extraordinárias
manifestações, inspiradas pela idéia de que será coisa terrível ter de morrer: como se, no
caso em que vós não os mandásseis à morte, devessem eles ser imortais.
São esses homens que, a meu ver, envergonham a cidade e que poderiam suscitar
entre os estrangeiros a convicção de que aqueles que os próprios atenienses escolheram,
de preferência, para ser os seus magistrados e para as demais dignidades, não se
diferenciam das mulheres!
É um procedimento, atenienses, que não deverá ser o vosso, quando possuirdes
reputação em qualquer gênero de valor que seja; e que o deveis permitir seja o meu,
caso eu tenha alguma reputação, pois o que deveis fazer é justamente que se
compreenda isto: que aquele que se apresenta no tribunal com esses dramas lamentáveis
será mais certamente condenado por vós do que o que permanece tranqüilo.
XXII
Mesmo não fazendo caso da reputação, ó cidadãos, não me parece também justo
suplicar aos juízes e evitar a condenação com rogos, mas esclarecê-los e persuadi-los.
Que o juiz não ceda já por isso, não dispense sentença a favor, mas a pronuncie
retamente e jure o condescender com quem lhe agrada, mas proceder segundo as leis.
Por isso, nem nós devemos habituar-vos a proceder contra o vosso juramento, nem vos
deveis permitir que nos habituemos a fazê-lo.
Não espereis, cidadãos atenienses, que eu pratique, diante de vós, coisas que não
considero nem belas, nem justas, nem santas, especialmente nesse momento, por Zeus,
que sou acusado de impiedade por Meleto.
136
É evidente que, se, com todo o vosso juramento, eu vos persuadisse e com
palavras vos forçasse, eu vos ensinaria a considerar que não existem deuses, e assim,
enquanto me defendo, em realidade me acusaria, só pelo fato de não crer nos deuses.
Mas a coisa está bem longe de ser assim: porquanto, cidadãos atenienses, creio
neles, como nenhum dos meus acusadores, e encarrego a vós e ao deus de julgar a mim,
do modo que puder ser o melhor para mim e para vós.
SEGUNDA PARTE
XXIII
Minha impassibilidade, cidadãos atenienses, diante da minha condenação, entre
muitas razões, deriva também desta: eu contava com isso, e até, antes, me espanto do
número de votos dos dois partidos. Por mim, não acreditava que a diferença fosse assim
pequena: pois se somente trinta fossem da outra parte, eu estaria salvo.
De Meleto, ao contrário, estou livre, me parece ainda, agora, e isso é evidente a
todos: se Anito e Lícon não viessem aqui acusar-me, Meleto teria sido multado em mil
dracmas, não tendo obtido o quinto dos votos.
XXIV
Eles pedem, pois, para mim, a pena de morte. Pois bem, atenienses, que
contraproposta vos farei eu? A que mereço: não é assim? Qual, pois? Que pena ou multa
mereço eu, sem descansar sequer um momento em toda a vida, apenas não me
interessando por aquilo que todos têm em grande conta, a aquisição das riquezas e os
negócios particulares, postos militares, funções públicas, tribunais, altas magistraturas,
137
conspirações, e os partidos que surgem na cidade; usei de muito bom senso para que
pudesse, fugindo de tais intrigas, livrar-me delas, o indo aonde a minha presença não
fosse de nenhuma vantagem nem para vós nem para mim mesmo? Voltava-me, ao
contrário, para os lados aonde eu poderia levar, a cada um em particular, os maiores
benefícios, procurando persuadir cada um de vós a não se preocupar demasiadamente
com as suas próprias coisas, antes que de si mesmo, para se tornar quanto mais honesto
e bio fosse possível; a não cuidar dos negócios da cidade antes que da própria cidade;
e preocupar-se, assim, do mesmo modo, com outras coisas. De que sou digno eu, tendo
assim procedido? De um bem, cidadãos atenienses, se devo fazer uma proposta
conforme o rito; e um bem tal, que me possa convir. E que convém a um pobre
benemérito que tem necessidade de estar em paz, para vos poder exortar ao caminho
reto? Não coisa que melhor convenha, cidadãos atenienses, que nutrir um tal homem
a expensas do Estado, no Pritaneu; merece-o bem mais que um de vós que tenha sido
vencedor nos Jogos Olímpicos, na corrida de cavalos, de bigas ou de quadrigas! Esse
homem faz com que vos sintais felizes; eu, porém, faço com que o sejais; ele, homem
rico, não tem necessidade de que se cuide de sua subsistência, mas eu tenho
necessidade. Portanto, se devo fazer uma proposta segundo a justiça, eis o que indico
para mim: ser, a expensas do Estado, nutrido no Pritaneu.
XXV
Ao contrário, talvez vos pareça que eu, ainda falando disso, o faça com arrogância,
pouco mais ou menos como quando falava da consideração e dos rogos; mas não é
assim, cidadãos atenienses, antes e deste modo: estou persuadido de que não ofendo
ninguém por minha vontade, mas não vos posso convencer também disso, porque o
138
tempo em que estamos raciocinando juntos é brevíssimo; e eu creio que, se as vossas
leis, como as de outros povos, não decidissem um juízo capital em um dia, mas em
muitos, vos persuadiria: ora, não é fácil, em pouco tempo, destruir grandes calúnias.
Estando, portanto, convencido de não ter feito injustiça a ninguém, estou bem
longe de fazê-la a mim mesmo e dizer, em meu dano, que mereço um mal, e me propor
um de tal sorte. Que devo temer? É possível que eu não tenha de sofrer a pena que me
assinala Meleto e que eu digo ignorar se será um bem ou mal? E, ao contrário disso,
deverei escolher uma daquelas que sei bem ser um mal, e propor-me essa pena? O
cárcere? E por que devo viver no rcere, escravo do magistrado que o preside, escravo
dos Onze? Ou uma multa, ficando preso enquanto o acabe de pagá-la? Seria, pois, o
exílio que deveria propor como pena para mim? É possível que vós me indiqueis essa
pena. Ah! Eu teria verdadeiramente um amor excessivo à vida se fosse irrefletido a
ponto de não ser capaz de pensar nisto: vós que sois meus concidadãos acabastes por
não achar meios de suportar meus sermões; estes se tornaram para vós um fardo
bastante pesado e detestável para que procureis hoje livrar-vos dele; serão os meus
sermões mais fáceis de suportar para os outros? Muito longe disso, atenienses!
Bela vida, em verdade, seria a minha, nesta idade, viver fora da pátria, passando
de uma cidade a outra, expulso em degredo.
Sei que, por onde for, os jovens ouvirão os meus discursos como aqui: se eu os
repelir, eles mesmos me mandarão embora, convencendo os velhos a fazê-lo; e, se não
os repelir, os seus pais e parentes me mandarão embora igualmente, com qualquer
pretexto.
139
XXVI
Ora, é possível que alguém pergunte: Sócrates, não poderias tu viver longe da
pátria, calado e em paz?” Eis justamente o que é mais difícil fazer aceitar a alguns
dentre vós: se digo que seria desobedecer ao deus e que, por essa razão, eu o poderia
ficar tranqüilo, não me acreditaríeis, supondo que tal afirmação é, de minha parte, uma
fingida candura. Se, porém, digo que o maior bem para um homem é justamente este,
discorrer todos os dias sobre a virtude e os outros argumentos sobre os quais me
ouvistes raciocinar, examinando a mim mesmo e aos outros, e, que uma vida sem esse
exame não é digna de um ser humano, ainda menos acreditaríeis no que digo.
Entretanto, esta é pura verdade, ó cidadãos, mas o fácil convencer-vos. E, por outro
lado, não estou habituado a julgar-me digno de nenhum mal. De fato, se tivesse
dinheiro, me multaria em uma soma que pudesse pagar, porque não teria prejuízo
algum; mas o fato é que não tenho. Só se quiserdes multar-me em tanto quanto eu possa
pagar. Talvez eu vos pudesse pagar uma mina de prata; multo-me, pois, em tanto. Mas
Platão, cidadãos atenienses, Críton, Cristóbolo e Apolodoro me obrigam a multar-me
em trinta minas, e oferecem fiança: multo-me, pois, em tanto, e eles vos serão fiadores
dignos de crédito.
XXVII
Por não terdes esperado um pouco mais, atenienses, ireis obter, da parte dos que
desejam lançar o opróbrio sobre a nossa cidade, a fama e a acusação de haverdes sido os
assassinos de um sábio, de Sócrates. Porque quem vos quiser desaprovar me chamará,
certamente, de bio, embora eu o o seja. Pois bem, tivésseis esperado um pouco de
tempo, a coisa seria resolvida por si: vós vedes, de fato, a minha idade. E digo isso não a
140
vós todos, mas àqueles que me condenaram à morte. Acrescento, além disso, mais o
seguinte a esses mesmos: É possível que tenhais acreditado, ó cidadãos, que eu tenha
sido condenado por pobreza de raciocínio, com os quais eu poderia vos convencer, se eu
tivesse acreditado que era preciso dizer e fazer tudo, para evitar a condenação.
Entretanto não é assim. Perdi por falta, não de raciocínios, mas de audácia e
impudência, e por não querer dizer-vos coisas tais que vos teriam sido gratíssimas de
ouvir, choramingando, lamentando-me e fazendo e dizendo muitas outras coisas
indignas, as quais estais habituados a ouvir de outros.
Nem mesmo agora, na hora do perigo, eu faria nada de inconveniente, nem mesmo
agora me arrependo de me ter defendido como o fiz, antes prefiro mesmo morrer, tendo-
me defendido desse modo a viver daquele outro.
Nem nos tribunais, nem no campo, nem a mim, nem a ninguém convém tentar
todos os meios escapar à morte. Até mesmo nas batalhas, de fato, é bastante evidente
que se poderia evitar de morrer, jogando fora as armas, e suplicando aos perseguidores:
e muitos outros meios há, nos perigos individuais, para evitar a morte se se ousa dizer e
fazer alguma coisa.
No entanto, senhores, talvez o difícil não seja isso: fugir da morte. Bem mais
difícil é fugir da maldade, que corre mais veloz que a morte. Neste momento eu,
preguiçoso como sou e velho, fui apanhado pela mais lenta, enquanto os meus
acusadores, válidos e leves, foram apanhados pela mais veloz: a maldade.
Assim, eu me vejo condenado à morte por vós; vós, condenados de verdade,
criminosos de improbidade e de injustiça.
Eu estou dentro da minha pena, vós dentro da vossa.
Essas coisas, por certo, devessem acontecer mesmo assim.
141
E creio que cada qual foi tratado adequadamente.
TERCEIRA PARTE
XXVIII
Agora, pois, quero vaticinar-vos o que se seguirá, ó vós que me condenastes,
porque já estou no ponto em que os homens vaticinam, melhor quando estão para
morrer. Digo-vos, de fato, ó cidadãos que me condenastes, que logo depois da minha
morte vos virá uma vingança muito mais severa, por Zeus, do que aquela pela qual me
tendes sacrificado. Fizestes isso acreditando livrar-vos ao aborrecimento de terdes de
dar conta da vossa vida, mas eu vos asseguro que tudo sairá ao contrário.
Os vossos censores serão numerosos, que eu até agora contive e vós o
reparastes. E tanto mais vos atacarão quanto mais jovens forem e disso tereis maiores
aborrecimentos. Se acreditais, matando os homens, iludir alguns dos vossos críticos, não
pensais justo; esse modo de vos livrardes não é decerto eficaz nem belo, mas belíssimo
e facílimo é não contrariar os outros, mas aplicar-se a se tornar, quanto se puder,
melhor. Faço, pois, este vaticínio a vós que me condenastes. Chego ao fim.
XXIX
Quanto àqueles cujos votos me absolveram, eu teria prazer de conversar com eles
sobre este caso que acaba de ocorrer enquanto os magistrados estão ocupados, enquanto
não chega o momento de seguir para o lugar onde terei de morrer. Ficai, pois, comigo
este pouco de tempo, ó cidadãos, porque nada nos impede de conversarmos todos
juntos, enquanto se pode. É que a vós, como meus amigos, quero mostrar que não
142
desejo falar do meu caso presente. A mim, de fato, ó juízes uma vez que, chamando-
vos juízes, vos dou o nome que vos convém – aconteceu qualquer coisa de maravilhoso.
Aquela minha voz habitual do demônio em todos os tempos passados me era sempre
freqüente e se opunha ainda nos mais pequeninos casos, cada vez que fosse para fazer
algo que não estivesse muito bem. Ora, ocorreram-me estas coisas, que vós mesmos
estais vendo e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o maior dos males; pois
bem, o sinal do deus não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de casa, nem quando vim
aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso. Em todo esse processo, não se opôs uma
só vez, nem a uma ação, nem a palavra alguma.
Qual suponho que seja a causa? Eu vo-la direi: em verdade este meu caso arrisca
ser um bem, e estamos longe de julgar retamente, quando pensamos que a morte é um
mal. E disso tenho uma grande prova: que, por muito menos, o habitual signo, o meu
demônio, se me teria oposto, se não fosse para fazer alguma boa ação.
Passemos a refletir sobre a questão em si mesma, de como grande esperança de
que isso seja um bem.
Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas: ou o morto não tem
absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja, ou,
como se costuma dizer, a morte é precisamente uma mudança de existência e, para a
alma, uma migração deste lugar para um outro. Se, de fato, não sensação alguma,
mas é como um sono, a morte seria um maravilhoso presente. Creio que, se alguém
escolhesse a noite na qual tivesse dormido sem ter nenhum sonho, e comparasse essa
noite às outras noites e dias de sua vida e tivesse de dizer quantos dias e noites na sua
vida havia vivido melhor, e mais docemente que naquela noite, creio que não somente
qualquer indivíduo, mas até um grande rei acharia fácil escolher a esse respeito,
143
lamentando todos os outros dias e noites. Assim, se a morte é isso, eu por mim a
considero um presente, porquanto, desse modo, todo o tempo se resume em uma única
noite.
Se a morte, porém, é como uma passagem deste para outro lugar, e, se é verdade o
que se diz que lá se encontram todos os mortos, qual o bem que poderia existir, ó juízes,
maior do que este? Porque, se chegarmos ao Hades, libertando-nos destes que se
vangloriam de serem juízes, havemos de encontrar os verdadeiros juízes, os quais nos
diriam que fazem justiça acolá: Minos e Radamante, Éaco e Triptolemo, e tantos outros
deuses e semideuses que foram justos na vida; então essa viagem o valeria a pena?
Que preço não seríeis capazes de pagar, para conversar com Orfeo, Museo, Hesíodo e
Homero?
Quero morrer muitas vezes, se isso é verdade, pois para mim, especialmente, a
conversação acolá seria maravilhosa, quando eu encontrasse Palamedes e Ájax
Telamônio e qualquer um dos antigos mortos por injusto julgamento. E não seria
desagradável, me parece, confrontar com os seus os meus casos, e, o que é melhor,
passar o tempo analisando e comparando os de com os de cá, os últimos dos quais
têm a pretensão de conhecer a sabedoria dos outros, e acreditam ser sábios e não são. A
que preço, ó juízes, não se consentiria em examinar aquele que guiou o grande exército
a Tróia, Ulisses, Sísifo, ou infindos outros? Isso constituiria indescritível felicidade.
Com certeza aqueles de mandam a morte por isso, porque, além do mais, são
mais felizes do que os de cá, mesmo porque são imortais, se é que o que dizem é
verdade.
144
XXX
Vós, também, ó juízes, deveis ter boa esperança em relação à morte, e considerar
esta única verdade: que o é possível haver algum mal para um homem de bem, nem
durante a sua vida, nem depois de morto; que os deuses não se desinteressam do que a
ele concerne; e que, por isso mesmo, o que hoje aconteceu, no que se refere a mim, não
é devido ao acaso, mas é a prova de que para mim era melhor morrer agora e ser
libertado das coisas deste mundo. Eis também a razão por que a divina voz não me
dissuadiu, e por que, de minha parte, não estou zangado com aqueles que votaram
contra mim, nem contra meus acusadores.
Não foi com esse pensamento, entretanto, que eles me acusaram e me
condenaram, pois acreditavam causar-me um mal.
Por isto é justo que sejam censurados. No entanto tudo o que lhes peço é o
seguinte: Quando os meus filhinhos ficarem adultos, puni-os, ó cidadãos, atormentai-os
do mesmo modo que eu vos atormentei, quando vos parecer que eles cuidam mais das
riquezas ou de outras coisas que da virtude. E, se considerarem que o alguma coisa e
não são nada, reprovai-os, como eu a vós: não vos preocupeis com aquilo que não lhes é
devido.
E, se fizerdes isso, terei de vós o que é justo, eu e os meus filhos.
Mas, é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas, quem vai para
melhor sorte, isso é segredo, exceto para Deus.
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