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Sueli Maria Coelho
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ORIZONTE
F
ACULDADE DE
L
ETRAS DA
UFMG
2006
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Sueli Maria Coelho
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Tese
apresentada ao Programa de Pós-
Graduação
em Estudos Lingüísticos da Faculdade de Letras da
UFMG, como um d
os
requisitos para obtenção do
Título de Doutor em Lingüística.
Área de c
oncentração: Lingüística
Orientador: Prof. Dr. Lorenzo Teixeira Vitral
B
ELO
H
ORIZONTE
F
ACULDADE DE
L
ETRAS DA
UFMG
2006
ads:
Sueli Maria Coelho
2
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de
Letras
Programa de Pós
-
Graduação em Letras: Estudos Lingüísticos
Tese intitulada Estudo diacrônico do processo de expansão gramatical e lexical dos itens TER, HAVER,
SER, ESTAR e IR na Língua Portuguesa, de autoria da doutoranda Sueli Maria Coelho, aprovada pela
banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
______________________________________________________
_______
Prof. Dr. Lorenzo Teixeira Vitral
FALE/
UFMG
Orientador
______________________________________________________
_______
P
rofª. Drª
.
Maria Antonieta Amarante de Mendonça Cohen
FALE/UFMG
______________________________________________________________
Profª.
Drª.
Evelyne Jeanne Andrée Angèle Madeleine Dogliani
FALE/UFMG
_____________________________________________________
_________
_
Prof. Dr
ª Ilza Maria de Oliveira Ribeiro
UFBA
________________________________________________________________
Pr
of. Dr. Luiz Carlos Travaglia
ILEEL/UFU
_______________________________________________
Prof. Dr. Fábio Alves
Coordenador do
Programa de Pós
-
Graduação em Letras: Estudos Lingüísticos
FALE/UFMG
Belo Horizonte,
de
junho
de 2006
Av. Antônio Carlos, 6627
Sala 4039
Belo Horizonte, MG
– 31270-
901
Brasil
tel.: (31) 3499
-
5492
fax: (31) 3499
-5113
Sueli Maria Coelho
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A Deus, que me concedeu
sabedoria
para conduzir esta pesquisa e
serenidade
para
enfrentar os desafios que a cada
passo
se postavam em meu percurso.
A
A minha família, que sempre me apoiou e me incentivou em todos os meus projetos,
fazendo-
me
acreditar nos
meus sonhos e na minha capacidade de superar obstáculos.
A
A
O
O meu orientador, Prof. Dr. Lorenzo Teixeira Vitral, pela forma sábia com que me
conduziu
para a consecução dos meus objetivos, mostrando-se sempre
indescritivelmente
disponível e amável.
A
A
O
O
S
S professores Maria Terezinha de Brito e Henrique Carivaldo de Miranda Neto e ao
Revmo.
Pe. Sebastião dos Reis Pereira, Magnífico Reitor do Seminário Maior “Dom José André
Coimbra” da Diocese de Patos de Minas, pelas
valiosas
discussões filosóficas que muito
co
ntribuíram para a elucidação de questões complexas e obscuras.
A
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O
O professor Ms. Ronaldo Pereira Caixeta e a Walter Antônio Caixeta, pela prestimosa
contribuição estatística, sem a qual não seria possível a análise quantitativa aqui empenhada.
À
À
professor
a Drª. Ângela Vaz Leão, por se mostrar tão solícita em compartilhar comigo
seu vasto conhecimento sobre a Língua Portuguesa, especialmente na leitura dos textos arcaicos.
À
À
amiga Mônica Soares de Araújo Guimar
ães, que jamais se mostrou impaciente frente à
s
intermináveis consultas acerca das vicissitudes da Língua Inglesa e cujos comentários mostraram-
se providenciais
na leitura dos textos teóricos.
A
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S
S professores Agenor Gonzaga dos Santos e Ricardo Rodrigues Marques cujas
lucubrações me despertaram para reflexões antes impensadas.
Sueli Maria Coelho
4
A
A todos os professores que se dispuseram a participar da minha banca avaliadora,
dividindo comigo sua experiência e conhecimento. Em especial, à Profª. Drª. Maria Antonieta
Amarante de Mendonça Cohen e ao Prof. Dr. Luiz Carlos Travaglia cujas indicações
bibliográfi
cas mostraram
-
se
muito pertinentes e preciosas.
À
À professora Drª. Jânia
Martins
Ramos
cujas considerações e sugestões apresentadas
durante o exame
de qualificação muito me enriqueceram e auxiliaram.
À
À
Fundação Educ
acional de Patos de Minas na pessoa de seu Pró
-Reitor
de Planejamento,
Administração
e Finanças, Prof. Ms. Milton Roberto de Castro Teixeira, pelo apoio financeiro
concedido aos meus deslocamentos em busca da qualificação.
À
À Diretora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Patos de Minas, Profª. Neusa
Helena de Queiroz Borges, pelo incentivo, pela compreensão e pelo apoio que me dispensou ao
longo desses quatro anos de curso.
À
Às minhas amigas Adriana de Lanna Malta Tredezini e Gisele Carvalho Araújo Caixeta,
pessoas com quem partilhei dúvidas e angústias.
A
A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização dest
e
trabalho e cujos nomes possam ter sido
, injustamente,
olvidados.
Sueli Maria Coelho
5
Fazer diacronia é confrontar falas de agora e
outrora, na continuidade tradicional. (...) É
configurar a imagem evolutiva da língua, feita de
moldes mentais, exibindo-lhe a sucessão
diacrônica dos estados sincrônicos.
(José Lourenço de Oliveira, 2002, p. 163)
Para entender a constância do modo, a direção
concreto abstrato, a marcha volitivo intelectivo,
cumpre admitir que a hominidade é um princípio
que cresce tanto no tempo individual de cada um,
dentro da sociedade, como no tempo social do
grupo, dentro da humanidade.
(José Lo
urenço de Oliveira, 2002, p. 199)
Sueli Maria Coelho
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Estudou
-
se
, numa perspectiva diacrônica, o processo de expansão gramatical dos itens
TER, HAVER, SER, ESTAR
e
IR
na Língua
Portuguesa.
A partir da proposição de uma
metodologia quantitativa de estudo da gramaticalização numa abordagem formalista, buscou-
se
estudar o processo pelo qual o
s
verbo
s plenos vão
, ao longo do tempo, assumindo gradativamente
funções gramaticais, o que lhes permite tramitar do léxico para a gramática
,
constituindo
perífrases verbais. Ana
lisou
-se ainda, paralelamente a esse fenômeno, o processo de
expansão
/restrição
semântica por que vão passando esses verbos ao longo de seu percurso
diacrônico, o que se relaciona não apenas ao processo de gramaticalização da forma, mas também
ao seu processo de
(des)
lexicalização. Para a consecução dos objetivos propostos, selecionaram-
se
corpora
compostos de doze textos de gêneros textuais distintos, sendo cada período da Língua
Portuguesa
arcaico, moderno e contemporâneo representado por quatro textos de tamanhos
aproximados.
Os critérios de análise
foram divididos em dois grupos interde
pendentes: (a) análise
da freqüência do item e (b) estudo de fatores semânticos, sintáticos e morfo
fonêmicos.
Inicialmente, c
omputou
-
se em cada texto a freqüência tota
l de ocorrência d
e cada uma das
forma
s
verbais
selecionadas para o estudo. A seguir, procedeu-se à tabulação de suas freqüências
lexica
is
, comparando-as com suas freqüências gramat
icais
ao longo dos três períodos, aplicando-
se
, para mensurar o grau de significância dos valores obtidos, o teste estatístico de aderência do
Qui-
Quadrado.
Empreendeu
-se, a seguir, a análise semântica das ocorrências
lexicais
registradas,
buscando identificar os semas de cada uma das formas verbais analisadas ao longo da história da
língua. O objetivo da análise de tais semas foi verificar o grau de abstração do verbo à medida
Sueli Maria Coelho
7
que
seu
processo de gramaticalização se expande. Vencida essa etapa, passou-se à análise dos
contextos sintáticos de ocorrências das formas, com vistas a identificar os principais fatores
responsáveis por gerir a seleção das formas passíveis de co-ocorrerem com os auxiliares
estudados
nas perífrases verbais. Por fim, teceram-se algumas considerações acerca da perda de
material fônico dos itens em processo de gramaticalização. Os resultados obtidos demonstraram
que
todos os cinco verbos analisados encontram-se gramaticalizados na Língua Portuguesa desde
o per
íodo arcaico e que muitos deles
ainda estão
em processo de franca expansão na língua. Além
disso, os dados coletados permitiram o entendimento de que a gramaticalização e a lexicalização
são processos lingüísticos paralelos e que, como tais, não se determinam. Assim, o fato de
determinada forma verbal se ter gramaticalizado não impede, tampouco favorece seu processo
de expansão e/ou restrição nos domínios do léxico. Outra generalização extraída da análise
empreendida refere-se ao fato de que as perífrases verbais resultam o apenas da tramitação de
itens do léxico para a gramática, mas também de um processo de acentuação da gramaticalidade
de itens que se movem de um estágio menos gramatical para outro mais gramatical.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
: Gramaticalização. Diacronia.
Forma lexical. Forma gramatical
. Perífrase
verbal.
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The grammatical expansion of the items TER, HAVER, SER, ESTAR
e
IR (HAVE, the
equivalent to English “there is/was”, BE, GO) in Portuguese was investigated from a diachronic
point of view. The process through which full verbs gradually take up grammatical functions,
which allow them to move from the Lexicon to Grammar by forming verbal phrases, was studied
from a quantitative methodology of grammaticalization within a formalist framework. At the
same time, the semantic expansion/restriction which these verbs undergo diachronically was also
analyzed. The later, not only relates to grammaticalization of the form, but also to its
(de)lexicalization process. To achieve the goals just mentioned, a
corpora
of twelve texts of
varying textual genres was selected, so that each distinguishable period of the Portuguese
language
archaic, modern and contemporary was represented by four texts of about the same
length. The criteria for analysis were divided into two interdependent groups: (a) an analysis of
the item’s frequency and (b) a study of
semantic, syntactic and morphophonemic factors. At first,
the global frequency of occurrence of each selected verbal form was computed in each text. Then,
their lexical frequency was tabulated, and contrasted to their grammatical frequency along the
three
periods, the statistical adherence test of
Square
-Qui having been used to measure the
significance of the values obtained. Next, a semantic analysis of the registered lexical
occurrences was carried on to identify the
semas
of each verbal form analyzed along the history
of the language. The aim of such an analysis was to check the abstractness of the verb as its
grammaticalization process evolves. After that, the syntactic contexts where the forms occurred
were raised, so that the main factors determining the choice of forms that can co-occur with the
Sueli Maria Coelho
9
auxiliary verbs in the verbal phrases were identified. Finally, some considerations were made on
the loss of phonic material in items under grammaticalization. The attained results demonstrated
that all five verbs analyzed are presently grammatical in Portuguese and so have been since the
archaic period; and that many of them are still in full expansion in the language. Moreover, the
collected data led to the understanding that grammaticalization and lexicalization are linguistic
processes that run parallel and, thus, do not define each other. Therefore, the fact that a certain
verbal form is already grammatical does not hinder, nor favor its expansion and/or restriction in
the domain of the Lexicon. Another generalization from the analysis undertaken is that verbal
phrases result, not only from migration of items from the Lexion to Grammar, but also from a
strengthening of the grammaticality of items that move on from a less grammatical stage to a
more grammatic
al one.
KEYWORDS
:
Grammaticalization. Diachrony. Lexical form. Grammatical form. Verbal phrase.
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ISTA
DE F
IGURAS
Figura 1
Caracterização estrutural das vozes verbais.................................................
94
Figura 2
Caracterização do
corpus
..............................................................................
109
Figura 3
Quadro sinóp
tico dos contextos sintáticos do verbo
ter
...............................
196
Figura 4
Quad
ro sinóptico dos contextos sintáticos
do ver
bo
haver
..........................
210
Figura 5
Quadro sinóp
tico dos contextos sintáticos do verbo
ser
...............................
224
Figura 6
Quadro sinóp
tico dos contextos sintáticos do verbo
estar
...........................
237
Figura 7
Qua
dro sinóp
tico dos contextos sintáticos do verbo
ir
.................................
244
Figura 8
Proposta de classificação dos verbos da Língua Portuguesa........................
274
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Gráfico 1
Freqüência diacr
ônica das formas lexicais
.................................................
140
Gráfico 2
Freqüência diacrônica das formas gramaticais
...........................................
140
Gráfico 3
– Análise comparativa entre os usos concretos e abstratos de
ter.................
187
Gráfico 4
– Análise comparativa entre os usos concretos e abstratos de
haver.............
189
Gráfico 5
– Análise comparativa entre os usos concretos e abstratos de
ser.................
190
Gráfico 6
Análise comparativa entre
os usos concretos e abstratos de estar..............
192
Gráfico 7
– Análise comparativa entre os usos concretos e abstratos de
ir
...................
194
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A
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B
B
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Tabela 1
Freqüência do verbo
ter
no período arcaico.................................................
121
Tabela 2
Freqüência do verbo
ter
no período moderno..............................................
122
Tabela 3
Freqüência do verbo
ter
no período contemporâneo....................................
123
Tabel
a 4
Freqüência do verbo
haver
no período arcaico
............................................
124
Tabela 5
Freqüência do verbo
haver
no período moderno.........................................
126
Tabela 6
Freqüência do verbo
haver
no período contem
porâneo...............................
127
Tabela 7
Freqüência do verbo
ser
no período arcaico
................................................
129
Tabela 8
Freqüência do verbo
ser
no período moderno..............................................
131
Tabela 9
Freqüência do verbo
ser
no período contemporâneo...................................
132
Tabela 10
Freqüência do verbo estar
no período arcaico
...........................................
134
Tabela 11
Freqüência do verbo estar
no período mo
derno.........................................
135
Tabela 12
Freqüência do verbo estar
no período contemporâneo.............................. 136
Tabela 13
Freqüência do verbo
ir
no período arcaico
.................................................
137
Tabela 14
Freqüência do verbo
ir
no período moderno..............................................
138
Tabela 15
Freqüência do verbo
ir
no período contemporâneo...................................
139
Tabela 16
Análise comparativa das freqüências l
exicais e gramaticais
......................
145
Tabela 17
Análise comparativa da freqüência dos verbos por período
......................
146
Tabela 18
Análise estatística da freqüência do verbo
ter
............................................
147
Tab
ela 19
Análise estatística da freqüência do verbo
haver
.......................................
148
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13
Tabela 20
Análise estatística da freqüência do verbo
ser
...........................................
150
Tabela 21
Análise estatística da freqüência
do verbo estar........................................
151
Tabela 22
Análise estatística da freqüência do verbo
ir
.............................................
152
Tabela 23
Valores semânticos de
ter
lexical no período arcaico
................................
155
Tabela 24
Valores semânticos de
ter
lexical no período moderno
.............................
157
Tabela 25
Valores semânticos de
ter
lexical no período contemporâneo...................
158
Tabela 26
Valores semânticos de
haver
lexical
no período arcaico
..........................
159
Tabela 27
Valores semânticos de
haver
lexical no período moderno........................
161
Tabela 28
Valores semânticos de
haver
lexical no período contemporâneo.............
163
Tabela 2
9 –
Valo
res semânticos de
ser
lexical no período arcaico
...............................
168
Tabela 30
Valores semânticos de
ser
lexical no período moderno
............................
170
Tabela 31
Valores semânticos de
ser
lexical no período contemporâneo.................
173
Tabela 32
Valores semânticos de estar
lexical no período arcaico
...........................
175
Tabela 33
Valores semânticos de estar
lexical no período moderno
.........................
176
Tabela 34
Valores semânticos de
e
star
lexical no período contemporâneo..............
177
Tabela 35
Valores semânticos de
ir
lexical no período arcaico
.................................
179
Tabela 36
Valores semânticos de
ir
lexical no período moderno
..............................
181
Tabela 37
Valores semânticos de
ir
lexical no período contemporâneo....................
182
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O
O
C
ONSIDERAÇÕES INICIAI
S: I
N PRINCIPIO ERAT VER
BUM
..................................................
19
C
APÍTULO
1:
O
FENÔMENO DA GRAMATIC
ALIZAÇÃO
.............................................
27
1.1 Os precursores da gramaticalização............................................................................
28
1.2 O conceito de gramaticalização
..................................................................................
34
1.2.1 Características da gramaticalização
.........................................................................
38
1.2.2 Ciclo
de gramaticalização
......................................................................................
41
1.2.3 As bases cognitivas da gramaticalização
.................................................................
42
1.2.3.1 Sobre as noções de concreto e de abstrato............................................................
43
1.2.3.2 Processos metafóricos
...........................................................................................
49
1.2.3.2.1 A analogia
...........................................................................................................
52
1.2.3.2.1.1 Mudança analógica
..........................................................................................
55
1.2.3.2.1.2 Criação analógica
.............................................................................................
56
1.2.
3.3 Processos metonímicos.........................................................................................
57
1.2.3.3.1 Reanálise
.............................................................................................................
58
1.2.
4 Estágios da gramaticalização
...................................................................................
64
C
APÍTULO
2:
A
UXILIARIZAÇÃO
:
UM COMPLEXO FENÔMENO
A SE DESVENDAR
..............
67
2.1 Classes de auxiliarização
............................................................................................
. 74
Sueli Maria Coelho
15
2.1.1
Auxiliarização
de temporalidade..............................................................................
75
2.1.2
Auxiliarização
de diátese
..........................................................................................
76
2.1.3
Auxiliarização
de modalidade
..................................................................................
78
2.2 Princípios da
auxiliarização
.........................................................................................
81
2.3 A função lingüística
da
auxiliarização
........................................................................
. 83
2.3.1 Flexão de tempo e de modo
....................................................................................
.. 84
2.3.1.1 Tempos compostos do modo indicativo
................................................................
86
2.3.1.1.1 Pretérito perfeito composto
................................................................................
86
2.3.1.1.2 Pretérito mais
-
que
-
perfeito composto................................................................
86
2.3.1.1.3 Futuro do presente composto.............................................................................
87
2.3
.1.1.4 Futuro do pretérito composto.............................................................................
88
2.3.1.2 Tempos compostos do modo subjuntivo
...............................................................
89
2.3.1.2.1 Pretérito perfeito
composto
................................................................................
89
2.3.1.2.2 Pretérito mais
-
que
-
perfeito composto................................................................
89
2.3.1.2.3 Futuro composto................................................................................................
90
2.3.2 Flexão de número e de pessoa
..................................................................................
91
2.3.3 Flexão de voz........................................................................................................... 93
2.3.4 A expressão do aspecto
............................................................................................
95
2.3.4.1 Tempo e aspecto: duas categorias que se intersec
cionam
.....................................
97
2.3.4.2 Revisitando os conceitos de perfectivo e de imperfectivo....................................
100
2.3.4.3 A expressão formal do aspecto
.............................................................................
102
2.3.4.3.1 Os mecanismos morfológicos............................................................................
103
2.3.4.3.2 Os mecanismos fonológicos...............................................................................
104
Sueli Maria Coelho
16
2.3.4.3.3 Os mecanismos sintáticos...................................................................................
105
C
APÍTULO
3:
D
ESCRIÇÃO DA METODOLO
GIA
..................................................................
107
3.1 A eleição dos
corpo
ra.................................................................................................
108
3.2 A eleição do objeto de análise
.....................................................................................
110
3.3 Definição dos critério
s de análise...............................................................................
111
3.3.1 Critério da freqüência
...............................................................................................
112
3.3.2 Critério semântico....................................................................................................
114
3.3.3 Critério sintático
.......................................................................................................
116
3.3.4 Critério morfofon
êmico
...........................................................................................
117
C
APÍTULO
4:
A
PRESENTAÇÃO E DISCUS
SÃO DOS RESULTADOS......................................
119
4.1 Análise da freqüência do
s itens
...................................................................................
120
4.1.1 Análise da freqüência do verbo “ter”........................................................................
120
4.1.2 Análise da freqüência do verbo “
have
r”...................................................................
124
4.1.3 Análise da freqüência do verbo “ser”.......................................................................
129
4.1.4 Análise da freqüência do verbo “estar”....................................................................
133
4.1.5 Análise da freqüência do verbo “ir”.........................................................................
136
4.1.6
Análise comparativa das freqüências lexical e gramatical.......................................
139
4.1.7
Análise comparativa das freqüências totais..............................................................
146
4.2. Análise de aspectos semânticos dos itens
..................................................................
154
4.2.1
Expansão semânti
ca.................................................................................................
154
4.2.1.
1 Análise da expansão semântica do verbo “ter”......................................................
155
Sueli Maria Coelho
17
4.2.1.2 Análise da expansão semântica d
o verbo “haver”.................................................
159
4.2.1.
3 Análise da expansão semântica do verbo “ser”.....................................................
164
4.2.1.
4 Análise da expansão semântica do verbo “estar”..................................................
175
4.2.1.
5 Análise da expansão semântica do verbo “ir”.......................................................
179
4.2.2 Perda de conteúdo nocional......................................................................................
185
4.3 Análise da distribuição dos itens
.................................................................................
195
4.3.1 Análise da distribuição do verbo “ter”......................................................................
196
4.3.2 Análise da distribuição do verbo “haver”.................................................................
210
4.3.3 Análise da distribuição do verbo “ser”.....................................................................
224
4.3.4 Análise da
distribuição do verbo “estar”..................................................................
237
4.3.5 Análise da distribuição do verbo “ir”.......................................................................
243
4.4 Análise da redução do material
fônico
........................................................................
254
C
APÍTULO
5:
I
MPLICAÇÕES TEÓRICAS............................................................................
260
C
ONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................
277
R
EFERÊNCIAS....................................................................................................................
289
A
PÊNDICES
.........................................................................................................................
298
Apêndice A
Valores semânticos de
ter
lexical...............................................................
298
Apêndice B
Valores semânticos de
haver
lexical
...........................................................
304
Apêndice C
Valores semânticos de
ser
lexical...............................................................
308
Sueli Maria Coelho
18
Apêndice D
Valores semânticos de
estar
lexical............................................................
315
Apêndice E
Valores semânticos de
ir
lexical.................................................................
318
Sueli Maria Coelho
19
C
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V
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B
B
U
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M
M
A epígrafe selecionada para intitular estas considerações iniciais traz latente o
prenúncio daquilo que constituiu o foco de interesse deste trabalho: no princípio, era o verbo
pleno; agora, é o verbo auxiliar. Assim, este estudo se dedicou a analisar o processo pelo qual os
verbos
TER, HAVER, SER, ESTAR e
IR
foram, ao longo da história da Língua Portuguesa,
destituindo
-se de conteúdo nocional e agregando-se a formas nominais de infinitivo, de gerúndio
e ou de particípio para expressar funções gramaticais, constituindo as denominadas
locuções
ve
rbais
ou
tempos compostos
. Na metalinguagem tradicional, a nomenclatura de
locuções verbais
é empregada para se referir à unidade morfológica constituída de verbos auxiliares + verbos
principais no infinitivo ou no gerúndio, reservando-se a terminologia de tempos compostos
apenas para as unidades cuja forma principal encontra-se flexionada no particípio. Outras vezes,
ainda, não se estabelece qualquer distinção entre os termos, tomando-os como sinônimos. Neste
estudo, porém, optou-se por empregar o termo forma perifrástica ou perífrase verbal para se
referir, indistintamente, às locuções verbais ou aos tempos compostos, por se considerá-lo mais
condizente com a natureza sintática da auxiliarização, aqui entendida como o processo sintático
por meio do qual uma forma verbal outrora de natureza meramente lexical passa, em um
determinado momento da história da língua, a desempenhar também funções gramaticais. Esse
Sueli Maria Coelho
20
processo que faculta a um item do léxico no caso, a forma verbal plena a propriedade de
tramita
r de categoria na língua, passando a integrar os domínios da gramática é denominado, na
literatura lingüística, de gramaticalização. Pode-se, pois, afirmar que, num sentido mais estrito, a
presente pesquisa se propôs a analisar o processo de gramaticalização que permitiu aos verbos
TER, HAVER, SER, ESTAR
e
IR
desempenhar também a função de auxiliares, marcando o tempo,
o número, o modo, a voz e o aspecto verbais.
Se a proposta inicial era a de ater-se apenas ao processo de gramaticalização dos
auxiliares,
o fluir da pesquisa impingiu agregar ao estudo também a análise do processo de
lexicalização dos verbos plenos que foram se gramaticalizando em verbos auxiliares. Isso se deu
porque as análises empreendidas demonstraram que os itens envolvidos no processo de
gramaticalização o se comportam como as demais formas em processo de variação e mudança
lingüística. Assim, não um período específico da história da língua em que um verbo deixa de
ser empregado como forma plena e passa a ser empregado como auxiliar. Não se verifica entre o
item menos gramatical e o mais gramatical uma concorrência de formas no sentido laboviano do
termo. O que ocorre é uma recategorização de itens, que os sentidos de uma forma lingüística
vão se abstraindo até que, num determinado momento, um de seus semas esvazia-se, fato que lhe
permite acoplar-se a outras formas lingüísticas e assumir funções gramaticais. Transmutado de
natureza, o item não mais se presta à função de referenciação que o estatuto de elemento lexical
lhe facultava. Faz-se necessário, portanto, uma recategorização, para que o “novo” item seja
interpretado em sua outra atribuição, qual seja, a de elemento gramatical. Essa recategorização de
itens promovida pela gramaticalização demonstra que ela é um fenômeno que age na difusão da
mudança lingüística e não em sua promoção, como intuído por alguns estudiosos de questões
variacionistas. Se, como afirmado, o verbo pleno não é substituído pelo verbo auxiliar
gramaticalizado, de se assumir que, ao mesmo tempo em que o verbo pleno perde alguns de
Sueli Maria Coelho
21
seus semas para se tornar uma categoria funcional, ele também incorpora outros, o que aumenta o
seu leque semântico e lhe assegura a sua permanência no léxico. A esse processo de expansão de
semas de um verbo que lhe permite aumentar as suas funções de referenciação no âmbito do
léxico, denominou-
se
lexicalização. Considerando-se o fato de que a gramaticalização resulta de
uma expansão lexical que parte de usos mais concretos na direção de usos mais abstratos, sentiu-
se a neces
sidade de se abordar, nesta pesquisa, os dois fenômenos lingüísticos, porque, ao mesmo
tempo em que um item vai incorporando novos semas, tornando-se mais consistente do ponto de
vista da possibilidade de referenciação lexical, ele também perde outros, o que lhe permite
assumir funções gramaticais. As reflexões aqui realizadas proveram o alcance de que a
gramaticalização e a lexicalização são fenômenos lingüísticos que se processam num
continuum
paralelo, porque se expandem em categorias distintas, mas que, de certa forma, relacionam-
se,
uma vez que
a gramaticalização é um subconjunto
originário
da polissemia do item.
Empreender uma pesquisa acerca da gramaticalização de auxiliares parece uma proposta
bastante ousada, principalmente se se considerar que este estudo deve resultar numa tese que, por
sua natureza, exige originalidade no tratamento do tema. Consciente do desafio, iniciou-se a
investigação visando a comprovar a hipótese defendida por inúmeros estudiosos de que os
verbos auxiliares são formas gramaticalizadas de verbos plenos. Os resultados obtidos
comprovaram parcialmente essa assertiva, porque demonstraram também que, em alguns casos,
as perífrases verbais resultam de uma gradação de gramaticalidade, ou seja, o verbo auxiliar o
tramita diretamente do léxico via gramática, mas de um estágio menos gramatical, para um
estágio mais gramatical. Vê-se, pois, que, a despeito de os estudos de gramaticalização e de
auxiliarização recorrerem em inúmeros trabalhos lingüísticos, seu entendimento ainda não se
encontra saturado, o que demanda novas investigações e, certamente, traz algumas contribuições.
Mesmo os estudiosos de vanguarda mostraram-se cônscios acerca da complexidade do tema e da
Sueli Maria Coelho
22
conseqüente necessidade de sua retomada para uma análise mais exaustiva, conforme atestam as
palavras de Pontes (1973) e de Ribeiro (1993):
Procuramos solucionar os problemas encontrados e acreditamos ter conseguido resolver
a maior parte deles. Os que não tiveram resposta definitiva terão sido, pelo menos,
suficiente
mente explicitados e poderão abrir caminho para estudos posteriores
.
(PONTES, 1973, p. 13) (grifo nosso)
As restrições observadas por Mattos e Silva quanto ao traço transitivo dos PtPs [
particípios passados] dos DSG [Diálogos de São Gregório] podem ser vistas como
ocasionais, características de determinados documentos, mas não de outros. Infelizmente
não temos dados que comprovem empiricamente esses fatos. Fica aberta a questão
para pesquisas futuras
. (RIBEIRO, 1993, p. 366) (grifo nosso)
Outro aspecto que justifica o empreendimento do estudo aqui proposto é o fato de boa
parte das pesquisas até então desenvolvidas centrarem sua atenção na análise de auxiliares que
co
-ocorrem apenas com o particípio passado. Pontes (1973) apresenta um estudo mais exausti
vo
que os demais autores consultados, chegando a separar os auxiliares em três grupos, conforme a
forma finita selecionada e esboçando, dessa forma, um primeiro trabalho sobre a distribuição de
alguns auxiliares. Contudo, ela se restringe a distribuí-los em grupos, mas não aponta as razões
que determinaram a seleção taxionômica. Ribeiro (1993) também se dedicou ao estudo das
formas t
er, haver
e
ser,
apoiando
-
se em estudos de Clark (1978), de Emonds (1978), de Mattos e
Silva (1981/1987/1989/1990), de Ramat (1987), de Pollock (1989) e de Roberts (1992). Pode-
se
considerar que seu estudo traz um certo avanço em relação ao proposto por Pontes (1973), que,
em virtude da tendência teórica da época, priorizou a sincronia. Ribeiro (op. cit.) inovou ao
estudar os três auxiliares numa perspectiva diacrônica, mas delimitou sua análise à co-
ocorrência
dessas formas com o particípio passado, os comumente chamados “tempos compost
os”
perfectivos. Campos (1998) foi mais uma autora que se dedicou ao estudo da auxiliarização,
Sueli Maria Coelho
23
contudo, optou por analisar a presença de elementos intervenientes entre o auxiliar e a forma
principal numa perífrase como um instrumento para aferir o grau de gramaticalização desses
auxiliares, não tecendo nenhum comentário acerca dos problemas levantados por este trabalho.
Nesse sentido, o que esta pesquisa propôs vem complementar os estudos até então empreendidos,
visando a contribuir com o conhecimento já construído. Acrescente-se a isso o fato de o estudo
ora proposto abordar o fenômeno da gramaticalização de auxiliares numa perspectiva diacrônica,
preocupando-se em delinear a regularidade do fenômeno. Cohen (1988) adverte para o fato de
que, embora haja consenso quanto à identificação da natureza diacrônica da gramaticalização,
nota
-se uma predominância de estudos desse fenômeno numa perspectiva sincrônica, dado o
“predomínio de uma atitude sincrônica dos lingüistas em relação à língua” (p. 43). Portanto, o
estudo proposto contribui não apenas para o avanço do conhecimento da estrutura gramatical da
linguagem, mas também para o aprimoramento dos trabalhos, principalmente de lingüística
histórica românica.
Além dos pontos de relevância já elencados, cumpre ainda considerar que as pesquisas
acerca da gramaticalização de itens na perspectiva aqui propost
a
são, relativamente, recentes e,
como tais, ainda carentes de investigação. Há
ainda
que se precisar uma metodologia
para estudá
-
los, pautando-se no fato de que os trabalhos até então desenvolvidos trouxeram-nos muitas
contribuições, mas, como seus própri
os
pesquisadores admitem, mostram-
se
incipientes frente à
extensão e à complexidade do fenômeno. Assim, mais uma contribuição que esta pesquisa agrega
é o aprimoramento de métodos para se estudar um fenômeno lingüístico bastante produtivo na
língua e até então pouco abordado numa perspectiva quantitativa. É recorrente entre os teóricos
clássicos da gramaticalização a afirmativa de que os itens em processo de tramitação do léxico
para a gramática ou de um estágio menos gramatical para outro mais gramatical
tornam
-se mais
abstratos, porque perdem conteúdo nocional. Contudo, não existe ainda uma metodologia precisa
Sueli Maria Coelho
24
para se distinguir o que são valores concretos de um item e o que são seus valores abstratos. A
necessidade de um tratamento mais científico aos dados obrigou este estudo a propor uma
alternativa para esse impasse que, acredita-
se, será providencial para os futuros pesquisadores.
Justificado o fato de se empreender um estudo sobre um tema relativamente explorado,
cumpre apresentar as questões que impulsionaram a pesquisa desenvolvida: (a) se a
auxiliarização é um processo diacrônico resultante da gramaticalização, como admitido por
inúmeros estudiosos, ela compreende estágios; em que estágio do processo de gramaticalização
se encontram os verbos auxiliares prototípicos da Língua Portuguesa? (b) numa perífrase verbal,
o auxiliar interfere na seleção da forma verbo-nominal com a qual ele co-ocorre ou é por ela
selecionado? (c) que fatores determinam essa seleção? (d) que relação existe entre o
processo de
gramaticalização de uma forma verbal e o seu processo de (des)lexicalização? (e) em que período
da história da Língua Portuguesa ocorreu a gramaticalização dos verbos auxiliares selecionados
para o estudo? (f) qual das formas auxiliares estudadas iniciou primeiramente seu processo de
gramaticalização na língua? (g) um percurso similar entre as formas lexicais que passam a
desempenhar funções gramaticais nas perífrases verbais ou o processo de gramaticalização dos
auxiliares não é regular? (h) o verbo relacional e o verbo de conteúdo nocional são igualmente
produtivos em termos de gramaticalização ou um se sobrepõe ao outro? (i) existe, em se tratando,
de verbos auxiliares, concorrência de formas? (j) caso se identifique concorrência entre as f
ormas
auxiliares, estas podem figurar nos mesmos contextos sintáticos, variando apenas o grau de
formalidade, ou se apresentam em distribuição complementar na língua?
Para a consecução da tarefa proposta, empreendeu
-
se uma pesquisa diacrônica de natureza
quantitativa, visando a precisar a freqüência das formas verbais TER, HAVER, SER, ESTAR e
IR,
nos períodos arcaico, moderno e contemporâneo da Língua Portuguesa. Tabulou-se também a
freqüência dos usos concretos e abstratos das formas verbais em estudo, re
lacionando
-os à
Sueli Maria Coelho
25
expansão do processo de gramaticalização e analisaram-se os contextos sintáticos de cada uma
das formas selecionadas para o estudo, com o intuito de averiguar o maior ou o menor grau de
fixidez das formas gramaticalizadas. Para tal, embasou-se na perspectiva teórica proposta por
Lehmann (1982), por Heine et al (1991), por Hopper e Traugott (1993), por Vianna (2000) e por
Vitral (1996, 2004). Por fim, confrontaram-se os dados obtidos com os aspectos teóricos
recorrentes na literatura acerca do fenômeno da gramaticalização e também da
auxiliarização
,
buscando identificar pontos de intersecção e também possíveis dissidências, apresentando-
se
ainda suas respectivas interpretações.
Os resultados da pesquisa empreendida foram organizados e descritos ao longo de cinco
capítulos. No primeiro deles, promoveu-se uma incursão pelo fenômeno da gramaticalização,
traçando
-se seu percurso histórico, definindo-se suas características e bases cognitivas e
delimitando
-se seus estágios. No segundo capítulo, apresentou-se uma resenha acerca do
fenômeno da auxiliarização, definindo-lhe as classes, os princípios, bem como a sua função
lingüística
. Nesse capítulo, discorreu-se também sobre as características formais e funcionais dos
tempos compostos do modo indicativo e do modo subjuntivo; confrontaram-se as categorias de
tempo e de aspecto na língua, apresentando-
se
seus pontos de intersecção e suas especificidades;
e descreveram-se os mecanismos formais de que a língua dispõe para expressar a categoria de
aspecto.
No terceiro capítulo, apresentou-se uma descrição minuciosa da metodologia adotad
a
para a realização da pesquisa, caracterizando-se os
corpora
e definindo-se os critérios adotados
para nortear a análise empreendida. Os resultados obtidos foram apresentados e discutidos no
quarto capítulo, obedecendo-se aos critérios propostos no capítulo terceiro. Tais resultados foram
confrontados com a literatura clássica referente ao fenômeno da gramaticalização, analisando-
se
a relação de pertinência entre os dados empíricos e o arsenal teórico construído, fato que
permitiu não a comprovação de teorias vigentes como também a elucidação de questões até
Sueli Maria Coelho
26
então
obscuras ou ainda não respondidas numa perspectiva diacrônica. Já as implicações teóricas
dos dados obtidos, bem como das análises realizadas foram pontuadas no quinto capítulo, espaço
em que o leitor irá se deparar com
a
condensação das principais questões teóricas construídas a
partir de uma acurada reflexão. de se adverti-
lo
para o fato de que enquanto algumas delas
endossam teorias vigentes, outras as refutam, não faltando aquelas que se apresentam como
contribuições inéditas para a área acadêmica.
Por fim, elaborou-se um apêndice com o intuito de fornecer ao leitor um contato, ainda
que limitado, com os
corpora
analisados. Nessa parte do trabalho, elencou-se um excerto
ilustrativo de cada um dos valores semânticos identificados para cada um dos itens verbais
analisados ao longo dos períodos arcaico, moderno e contemporâneo da língua. Com a adoç
ão
des
se procedimento, espera-
se
ter
facultado
ao leitor a possibilidade de atualizar o conjunto de
semas das formas verbais estudadas, o que vem contribuir também para os estudos semânticos da
língua(gem).
Sueli Maria Coelho
27
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O
O
Os trabalhos empreendidos por diversos lingüistas ao longo de toda a trajetória dos
estudo
s acerca
da lingua(gem), independente
mente da corrente teórica a que se filiam e a despeito
de enormes divergências, encontram um ponto de interseção no que tange a admitir o caráter
dinâmico das línguas vivas e seu constante processo de variação e mudança. Ainda que o pai da
Lingüística moderna, em virtude dos métodos disponíveis na época, tenha contemplado estudos
de natureza mais sincrônica, os trabalhos de cunho histórico têm se mostrado bastante eficientes
na tentativa de explicar os fenômenos variacionistas da lingua(gem). Desde os neogramáticos,
registra
-se uma preocupação dos estudiosos em desvendar os processos diacrônicos responsáveis
pela criação e ou alteração de funções dos vocábulos de uma língua. Naquela época, acreditava-
se que a analogia fosse o principal fenômeno responsável não pela criação de novas palavras,
mas também suficiente para explicar o fato de determinados itens passarem, com o tempo, a
desempenhar outras funções na língua. Contudo, a intuição de alguns lingüistas fê-los perceber
que apenas fatores analógicos mostravam-se insuficientes para explicar toda a complexidade da
mudança lingüística. Passou-se, dessa feita, a reflexões mais acuradas, visando a identificar um
outro fenômeno lingüístico que pudesse explicar empiricamente algumas questões variacionistas
para as quais a analogia não encontrava respostas. Nesse cenário, surgem as primeiras centelhas
da gramaticalização, cujo percurso h
istórico será sucintamente descrito a seguir.
Sueli Maria Coelho
28
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O
A despeito de os estudos sistematizados sobre o percurso de gramaticalização de formas
lingüísticas estarem bastante em voga na contemporaneidade, a preocupação com a tramitação de
itens de uma categoria a outra é bastante antiga entre os lingüistas e remonta ao século onze.
Heine
et al (1991) atribuem a estudiosos orientais o mérito por suscitarem os primeiros lastros de
gramaticalização. Segundo esses autores, “desde o século décimo, escritores chineses têm
estabelecido distinção entre símbolos lingüísticos plenos e vazios”.
1
(p. 5, tradução nossa)
Harbsmeier (1979) endossa essa informação e acrescenta que Zhou Bo-
qi
, representante da
dinastia Yuan (1271-
1368)
, defendia o postulado de que todos os símbolos vazios eram
historicamente oriundos dos símbolos plenos.
Heine
et al (op. cit.) advertem, contudo, que o
interesse pela gramaticalização, tal como é concebida hoje, surgiu no século XVIII, quando
eruditos como os filósofos franceses Etienne Bonnot de Condillac e Jean Jacques Rousseau
argumentaram que tanto a complexidade gramatical quanto a
abstração
vocabular são
diacronicamente
derivadas de lexemas concretos. A paternidade científica desse fenômeno
lingüístico é atribuída a um contemporâneo de Condillac, J. Horne Tooke, para quem
o
‘segredo’ das palavras encontra-se em sua etimologia”.
2
(HEINE et al, 1991, p. 5, tradução
nossa
) A noção chave para atribuir-lhe o pioneirismo nos estudos de gramaticalização apareceu
p
rimeiramente em estudos datados de 1786 e de 1805, os quais só foram publicados pela primeira
vez em 1857. Nesses estudos, Tooke considerava que os verbos e os nomes constituíam as classes
1
since the tenth century, Chinese writers have been distinguishing between
full
and
empty
linguistic symbols
(HEINE
et
al
, 1991, p. 5)
2
the ‘secret’ of words lies in their etymology” (HEINE
et al,
1991, p. 5)
Sueli Maria Coelho
29
do discurso por excelência, enquanto as demais classes resultavam, segundo ele, de uma
“mutilação” das palavras essenciais.
Hopper e Traugott (1993) não fazem referência aos estudiosos supramencionados. De acordo
com informações cotejadas em sua obra, as especulações mais elaboradas acerca das origens da
gramática e, conseqüentemente, da gênese das formas gramaticais são atribuídas a Humboldt
(1767
-
1835), um filósofo humanista alemão, que, em 1822, defendeu a seguinte tese: “
a estrutura
gramatical das línguas humanas era precedida por um
estágio evolucionário da linguagem
em que
apenas as idéias concretas poderiam ser expressas”.
3
(HOPPER E TRAUGOTT, 1993, p. 18
,
tradução nossa) Nesse postulado, percebe-se a sugestão de que “a gramática se desenvolveu
a
partir de estágios distintos de colocação das idéias concretas”.
4
(HUM
BOLDT, 1825
apud
HOPPER E TRAUGOTT, 1993, p. 18, tradução nossa). É possível
antev
er
, na tese de Humboldt,
a tradicional relação entre gramática e estruturas cognitivas, identificada em Aristóteles (384-
322 a.C.) e hoje sedimentada pelos estudos da área da cognição. Argumentando em favor de sua
tese, o autor em tela propõe a existência de quatro estágios, os quais estão intimamente
associados à tipologia de linguagem que imperava nas primeiras décadas do século XIX: (a) no
primeiro estágio, denominado de pragmático
termo
aqui concebido no sentido cunhado por
Givón (1979)
, apenas as coisas são denotadas; (b) no segundo estágio, registra
-
se a oscilação de
algumas palavras entre o sentido concreto e o gramatical, assumindo um valor funcional; (c)
num
terceiro momento, essas palavras funcionais buscam apoiar-se em palavras concretas,
correspondendo, modernamente, ao que se chama de cliticização; e, (d) num quarto momento,
verifica
-
se a fusão desses pares aglutinantes em um único vocábulo. Já é possí
vel vislumbrar, nos
3
the grammatical structure of human languages was preceded by an evolutionary stage of language in which only
concrete ideas could be expressed.”
(HOPPER E TRAUG
OTT, 1993, p. 18)
4
grammar (...) evolved through distinct stages out of the collocation of concrete ideas.” (HUMBOLDT, 1825 apud
HOPPER E TRAUGOTT, 1993, p. 18)
Sueli Maria Coelho
30
quatro estágios propostos por Humboldt, o ciclo de gramaticalização elaborado posteriorm
ente
por Lehmann (1982) e que será apresentado adiante. Semelhante raciocínio é também
identificado nas idéias de August Schleicher, um neogramático que, operando com idéias pré-
darwianistas,
concebia as línguas como “organismos naturais” dotados de vida.
Segundo
informações fornecidas por Bynon (1986),
ele
defendia o postulado de que a vida” das línguas
se dividia em duas fases sucessivas: “um período pré-histórico de
crescimento
durante o qual
elas desenvolviam estruturas cada vez mais complexas e uma fase histórica subseqüente durante a
qual essas estruturas complexas decaíam
5
.” (p. 131, tradução nossa) As idéias propostas por
Schleicher sofreram influência não apenas das ciências naturais, mas também dos filósofos
Humbolt e
Hegel.
Assim, ele defendia a existência de um sistema lingüístico natural baseado na
mesma ordem ascendente de complexidade das palavras proposto por Humboldt (1825). O que
havia de original na proposta de Schleicher era o fator inclusivo desse sistema, que, conforme
informação de Bynon (1986), “as transições entre os tipos adjacentes eram sistemáticas no
sentido de que cada classe mais alta inclui e substitui as estruturas das
classe
s subseqüentes a
ela
6
.’” (p. 133, tradução nossa)
Uma explicação genuína para a origem das formas gramaticais é ainda legado de outro
lingüista alemão, um neogramático chamado Georg von der Gabelentz (1891). Ele articulou
muitas das primeiras idéias acerca da gramaticalização, ao sugerir que ela é o resultado de duas
tendências rivais uma tendência que converge para a articulação e outra que converge para a
dispersão
e que tal fenômeno lingüístico não constitui um processo linear, mas cícli
co.
Gabelentz (apud HOPPER e TRAUGOTT, 1993) observa que o processo de recriação de formas
5
“(…) a prehistoric period of ‘growth’ during which they develop increasingly complex structures and a subsequent
historical phase during which these complex structures ‘decay’.” (BYNON, 1986, p. 131)
6
“(...) the transitions between adjacent types were systematic in the sense ‘that each higher class includes and
supersedes the structures of the
classes below it.’” (BYNON, 1986, p. 133)
Sueli Maria Coelho
31
gramaticais é reincidente na língua e que as condições para que esse ciclo recorra são inerentes à
linguagem.
Como se vê, no final do século XIX, uma clara tradição nos estudos acerca da
gramaticalização estava estabelecida, faltando apenas ser cunhado o nome para tal fenômeno.
Coube a um lingüista francês cujo nome é Antoine Meillet (1948 [1912]) o reconhecimento por
empregar, pela primeira vez, o termo
gramatical
ização
para designar a atribuição de um caráter
gramatical a um termo anteriormente autônomo, e também por ser o primeiro a atribuir a esse
fenômeno um papel central na teoria da mudança lingüística. Meillet reconheceu a importância
da primeira geração de lingüistas indo-europeístas ao afirmar que estes especularam bastante
sobre as origens das formas gramaticais, mas alertou para o fato de que os resultados por eles
obtidos são aleatórios e não confiáveis, já que o que está em questão numa perspectiva ling
üística
mais científica não são as origens das formas gramaticais, mas suas transformações. Segundo ele,
apenas a inovação analógica e a atribuição de caráter gramatical são capazes de constituir novas
formas gramaticais. Posteriormente, postulou o primado da gramaticalização sobre a analogia, ao
afirmar que esta apenas pode operar quando um núcleo de formas já tenha emergido, descartando
a possibilidade de ela constituir uma fonte primária de novas formas gramaticais.
O fenômeno da analogia, como venti
lado,
foi
bas
tante explorado e mereceu um lugar
central no âmbito dos estudos fonéticos empreendidos ao longo do culo XIX pelos
neogramáticos.
Tais estudiosos
formularam uma teoria na qual se assumiu que as mudanças fonéticas tinham um
caráter de absoluta regularidade e, portanto, deveriam ser entendidas como leis que não
admitiam exceções (as chamadas leis fonéticas
).
As aparentes exceções eram atribuídas
à intervenção de um processo gramatical denominado
analogia
, pelo qual elementos da
língua tenderiam a ser regularizados por força de paradigmas estruturais hegemônicos.
(FARACO, 2005, p. 51
-
52)
Sueli Maria Coelho
32
Nos trabalhos dedicados a compreender a estrutura sonora da lingua(gem), conforme se
depreende da citação acima, a analogia assumiu um papel retifi
cador
, uma vez que a ela coube a
atribuição
de
inter
ferir no plano fônico, visando a assegurar a regularidade das mudanças
lingüísticas desencadeadas, caso estas, por algum motivo,
tendessem
a romper determinados
padrões gramaticais.
Semelhante funç
ão coube
também
a ela
no processo de expansão das formas
gramaticais, fato que permitiu que os estudiosos do assunto a considerassem, ao lado da
gramaticalização, responsável pela mudança de itens lexicais em gramaticais. Era, pois, a
analogia que operava sobre os elementos de um determinado paradigma com vistas a fazer com
que todos exibissem os mesmos comportamentos estruturais.
Meillet
(1948 [1912]), contudo,
reconhece
u
a importância reguladora de tal fenômeno, mas não o considerou
capaz de criar novas
formas gramaticai
s, já que seu papel é de difusora da mudança e não de
desencadeadora. Por esse
motivo é que, na concepção desse lingüista francês, a gramaticalização se sobrepõe à analogia na
criação de novas formas gramaticais.
Após Meillet, foram principalmente os indo-europeístas que se dedicaram aos estudos da
gramaticalização. A tendência lingüística dominante foi fortemente influenciada por trabalhos de
natureza sincrônica, relegando os estudos de natureza histórica dentre eles a gramaticalização
a segundo plano. Provavelmente, os únicos estudos significativos a respeito do tema nesse
período foram conduzidos por Kurylowicz (1964 e 1965) e por Calvert Watkins (1964), que se
desviaram do paradigma teórico dominante. Contudo, seus trabalhos foram difundidos quas
e
que exclusivamente entre outros indo
-
europeístas.
Em 1968, um discípulo de Meillet, Émile Benveniste, julgou pertinente retomar o que seu
mestre tinha proposto acerca da gramaticalização de verbos auxiliares a partir de verbos plenos,
Sueli Maria Coelho
33
cunhando o termo a
uxiliarização
para se referir ao processo que constitui o objeto de estudo
deste trabalho.
Visando a contestar a autonomia da teoria sintática proposta pelos gerativistas na década de
setenta
, Givón (1971), influenciado pela linha teórica proposta por Humboldt (1822), contribuiu
para o crescimento do interesse em torno da pragmática, dispensando atenção especial às
mudanças previsíveis das línguas. Tratava-se de um estudo de natureza funcionalista, que
imputava as mudanças lingüísticas não a fatores inerentes ao sistema lingüístico, mas às pressões
do uso. Assim, sedimentava-se uma nova perspectiva para o estudo desse fenômeno, que passava
a ser analisado também do ponto de vista sincrônico. Contemporaneamente, a gramaticalização é
concebida e investigada, então, sob essas duas perspectivas, conforme atestam Hopper e Traugott
(1993):
A g
ramaticalizaç
ão tem sido estudada sob duas
perspectiva
s.
Uma
delas é histórica,
investigando
as fontes das formas gramaticais e o percurso típico de mudança que as
afeta. Dessa perspectiva, a gramaticalização é
normalmente
concebida como
um
subconjunto de mudanças lingüísticas por meio do qual um item lexical, em certos usos,
torna
-se um item gramatical, ou por meio do qual um item gramatical se torna mais
gramatical.
A outra perspectiva é mais sincrônica, considerando a gramaticalização
como um fenômeno
primariamente
sintático, discursivo e pragmático, a ser estudado a
partir do ponto de vista
dos
fluidos
padrões
do uso lingüístico
7
.
(p. 2, tradução nossa)
A despeito de a gênese da gramaticalização associar-se à perspectiva funcionalista de
conceber a lingua(gem), atualmente existe uma tentativa de estudá-la também sob a perspectiva
formalista, buscando-se precisar as (ir)regularidades do fenômeno do ponto de vista do siste
ma.
Nessa perspectiva, uma abordagem diacrônica faz-se necessária, para que a comparação entre o
7
Grammaticalization has been studied from two perspectives. One of these is historical, investigating the sources
of grammatical forms and the typical pathways of change that affect them. From this perspective,
grammaticalization
is usually thought of as that subset of linguistic changes through which a lexical item in certain uses becomes a
grammatical item, or through which a grammatical item becomes more grammatical. The other perspective is more
synchronic, seeing grammaticalization as primarily a syntactic, discourse pragmatic phenomenon, to be studied from
the point of view of fluid patterns of language use
.
(HOPPER e TRAUGOTT , 1993, p. 2)
Sueli Maria Coelho
34
comportamento do item em estudo ao longo do tempo permita o alcance de abstrações e de
generalizações acerca da permissividade e da previsibilidade do sistema. Cabe aqui mencionar os
trabalhos empreendidos por Lightfoot (1979, 1991), por Clark e Roberts (1993
apud
ROBERTS
(2001))
e também por Roberts (2001), que visam a estudar as mudanças sintáticas sob a égide da
teoria gerativa proposta por Chomsky (1995, 1998). No Brasil, Vitral (1996, 2004), Ramos
(1997)
e Vitral e Ramos (1999) também vêm se dedicando ao estudo desse fenômeno na linha
formalista de se conceber os fenômenos lingüísticos. Desde 2000, Vitral vem buscando, a partir
da análise de itens em processo de gramaticalização, estabelecer uma metodologia quantitativa
capaz de explicar
a sistematicidade do processo.
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(1)
João
tem
muitos amigos, mas, ainda assim,
tem
se
sentido
muito sozinho ultimamente.
Definir o estatuto de
ter
no enunciado acima constitui tarefa menos árdua que decidir se suas
duas ocorrências constituem termos homófonos ou polissêmicos, principalmente porque não
um consenso entre os lingüistas no que se refere a precisar a relação entre os vários sentidos de
uma mesma forma. Defender que dois termos quaisquer são homófonos significa admitir que
possuem etimologias diferentes, mas que, no percurso histórico, sofreram alterações fonéticas
responsáveis por assegurar a equivalência sonora e manter a diferença de significado. Apostar na
Sueli Maria Coelho
35
polissemia implica admitir a existência de vários semas que se atualizam em função do contexto.
Partindo do pressuposto de que a origem das formas verbais
destacadas
em (1) é a mesma,
acredita
-se, como será desenvolvido adiante, estar-
se
frente a um fenômeno de polissemia,
oriundo do processo de gramaticalização que originou a forma auxiliar a partir da forma plena do
verbo.
Essa divergência de concepção entre polissemia e homonímia, contudo, encontra um ponto
de articulação no que tange à promoção da ambigüidade da forma. Hopper e Traugott (1993)
ponderam que
é largamente reconhecido que uma forma pode ser amb
ígua
tanto porque possui dois ou
mais sentidos não relacionados associados a ela (homonímia) quanto porque possui dois
ou mais
sentidos afins
associados a ela (polissemia)
.
8
(p. 70, tradução nossa)
Segundo os autores supracitados, definir essa relação semântica se torna possível,
recorrendo
-se a estudos de cunho diacrônico. Assim, o critério recomendado para separar
a
homonímia da polissemia seria o fator histórico: “a ausência de relação histórica provém
evidências de que eles [os termos ambíguos] são homônimos”
9
, enquanto que “
a relação histórica
provém evidência de que eles são polissêmicos.”
10
(HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 71
,
tradução nossa)
Esboçada uma teoria que sustente a opção por considerar as formas em processo de
gramaticalização ou mesmo já gramaticalizadas como casos de polissemia, faz-se mister
definir o fenômeno da gramaticalização, tomando por sustentáculo a concepção de lingua(gem)
8
“it is now widely recognized that one form can be ambiguous eith
er because it has two or more unrelated meanings
associated with it (homonymy), or because it has two or more related meanings associated with it (polysemy)”
(HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 70)
9
“lack of historical relatedness provides evidences that they [ambiguous terms] are homonymous” (HOPPER e
TRAUGOTT, 1993, p. 71)
10
“historical relatedness provides evidence that they are polysemous”.
(HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 71)
Sueli Maria Coelho
36
que norteia o presente estudo. Ainda que Meillet (1948 [1912]) tenha pontuado que as
motivações para a gramaticalização são de cunho funcional, e muitos estudos contemporâneos
concebam
-na nessa perspectiva teórica, existe também, como mencionado, uma proposta de
estudá
-la no quadro teórico da sintaxe formal, buscando-se identificar as
(ir
)regularidades desse
fenômeno no sistema lingüístico (cf. Lightfoot (op. cit.), Clark (op. cit.), Roberts (op. cit.
),
Vitral
e Ramos (op. cit.)). No quadro teórico formalista, um dos critérios centrais para se distinguirem
as categorias é a (in)capacidade de atribuição de papel temático. Com base nesse critério,
distinguem
-se dois tipos de categorias: as lexicais e as funcionais. As categorias lexicais –
N(nome), V(verbo), A(adjetivo) e P(preposição) caracterizam-se por sua propriedade de
atribuir papel temático. as categorias funcionais C(complementizador), I(flexão),
D(determinante) e Aux (Auxiliar), embora os estudos gerativistas clássicos não concebam o
Auxiliar como uma categoria funcional, o presente estudo defende a pertinência de tal
categorização
são licenciadoras de sintagmas, mas não podem atribuir papel temático.
Essa
distinção adotada pela corrente formalista tem sua origem na observação de exemplos de
gramaticalização centrais e prototípicos, que são reconhecidos pela maioria dos lingüistas. É
habitualmente aceito que as palavras de todas as línguas podem ser subdivididas em dois grandes
grupos, quais sejam: (a) o das palavras de conteúdo, também chamadas de itens lexicais e (b) o
das palavras funcionais, denominadas de itens gramaticais. As palavras de conteúdo o aquelas
usadas para designar coisas, ações e qualidades. as palavras gramaticais desempenham um
pape
l estruturador na língua, estabelecendo relações entre palavras e entre orações ou referindo-
se aos participantes e entidades do discurso, posicionando-se em relação a eles. Estudos
históricos têm demonstrado que as palavras funcionais nada mais são que extensões das palavras
lexicais.
Sueli Maria Coelho
37
Apesar de bem delimitadas, essas categorias não são estanques, tampouco constituem um
sistema fechado na língua. Pode ocorrer de determinada forma lingüística, em virtude de fatores
pragmáticos e/ou funcionais que o quadro teórico formalista não desconsidera o caráter
funcionalista da gramaticalização –, vir a mudar de categoria na língua. A esse processo de
tramitação de categoria lexical em categoria funcional, Vitral (1996) e Roberts (
2001)
denominam
de gramaticalização
.
No estudo que ora se propõe, endossa-
se
a hipótese de que há,
no estágio inicial do processo, um verbo pleno capaz de atribuir papel temático e, portanto,
pertencente à categoria lexical e que começa a assumir, paulatinamente, usos mais abstratos n
a
língua até passar a funcionar como verbo auxiliar. Entretanto, a clássica distinção entre concreto
e abstrato constitui, de certa forma, um entrave para o desenvolvimento da teoria da
gramaticalização. Na verdade, tal impasse se deve à dificuldade em se estabelecer, de forma
precisa, as fronteiras entre concreto e abstrato, conceitos filosóficos que lidam com delicadas
questões semânticas. Considerando-se essa limitação teórica, será apresentada, adiante, uma
proposta de classificação de usos concretos e abstratos justificada pela existência de conceitos
conturbados e até mesmo contraditórios para c
aracterizar os referidos termos.
Como
sinaliza a hipótese apresentada
, o presente estudo apóia
-
se na tese de que um elemento
da categoria lexical V gramaticaliza-se em verbo auxiliar, tramitando para a categoria funcional,
argumento que justifica a proposta de se incluir o Auxiliar no rol da categoria funcional. Nem
sempre, contudo, os itens lexicais passam a desempenhar funções gramaticais. Pode ocorrer, por
ex
emplo, de tais palavras, em virtude de questões culturais e/ou pragmáticas, incorp
orarem novas
acepções lexicais. Nesse caso, registra-se uma expansão no léxico e diz-se que houve uma
lexicalização.
Segundo Marques (1999 [1990]), esse fenômeno decorre da transferência de
sentidos metafóricos proporcionada por semelhanças mentais que se estabelecem entre o sentido
de origem e o sentido novo. Assim, onda porção de água do mar, lago ou rio que se eleva’,
Sueli Maria Coelho
38
grande afluxo de líquido’, passa a ter novos significados associados: ‘grande quantidade’,
‘intensidade’, ‘confusão’, ‘agitação’, ‘simulação’ etc.” (MARQUES, 1999, p. 29)
Pode
ocorrer
também de um elemento outrora gramatical “perder suas restrições gramaticais, sobretudo de
ordenação vocabular, e assumir restrições de caráter pragmático e interativo.” (MARTELOTTA,
VOTRE e CAZARIO, 1996, p. 60) Nesse caso, está-se diante de um fenômeno denominado de
discursivização,
por referir-se à tramitação de um item da gramática para o discurso. É o que
ocorre, por exemplo, com o vocábulo
aqui
em enunciados como “Aqui, cê num conseguiu
arrumar o dinheiro não?”. Nesse contexto, o
aqui
não foi empregado para cumprir a função
gramatical de elemento dêitico que lhe é peculiar, mas para marcar uma estratégia interativa
empre
gada pelo enunciador com vias a se dirigir ao seu interlocutor.
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Ao se gramaticalizar, uma forma lingüística sofre algumas modificações, que passam a
constituir evidências empíricas de um processo de gramaticalização. A primeira delas é
concernente à alteração semântica. O item em processo de gramaticalização sofre uma perda
gradual de seu conteúdo nocional, o que se faz acompanhar por uma incorporação de conteúdo
gramatical. Assim, registra-se uma redução de seus usos concretos e uma conseqüente ampliação
de seus usos abstratos, o que acaba por provocar a polissemia do termo. Em (1), a forma plena do
verbo
ter
(
tem
muitos amigos)
denota
uma posse inalienável, que é um uso mais abstrato que
aquele que denota posse alienável. Já sua forma gramaticalizada de auxiliar do verbo
sentir
(
tem
-
Sueli Maria Coelho
39
se sentido muito sozinho) foi completamente esvaziada de seu valor semântico de posse,
incorporando valores gramaticais responsáveis por marcar o tempo, o número e o aspecto verbais.
Concomitantemente à ampliação de seus valores semânticos e conseqüente polissemia, o
termo em processo de gramaticalização torna-se mais freqüente, que passa, progressivamente,
a desempenhar funções tanto lexicais quanto gramaticais. Assim, o aumento da freqüência do
item constitui outra evidência empírica de que existe um processo de gramaticalização
instaurado. Bybee e Pagliuca (1985) observam que, ao contrário do que possa parecer, as formas
lingüísticas não são recrutadas pela gramaticalização por serem muito freqüentes e de usos mais
gerais, mas que seus usos tendem a crescer quando se submetem a esse processo. Assim, pode-
se
afirmar que a recorrência do item é uma conseqüência do processo e não um motivador para que
ele se instaure.
Outra evidência empírica da gramaticalização é a redução de material fônico. Existe uma
tendência lingüística que favorece a redução da carga sonora do item numa relação de
proporcionalidade com o aumento de sua freqüência. Segundo Bybee e Pagliuca (1985), “
à
medida que os sentidos se generalizam e os domínios dos usos se expandem, a freqüência
aumenta
e isso conduz automaticamente à redução fonológica e possível fusão
11
.” (p. 72,
tradução nossa) Cumpre ressaltar, entretanto, que nem todos os itens em processo de
gramati
calização sofrem redução fônica, pois esta é determinada não apenas pela freqüência do
uso, mas também pelas características fonéticas do item. Assim, se se trata de um item
monossilábico e tônico, é pouco provável que haja perda de material fônico. Alguns estudiosos
atribuem essa tendência da língua a um princípio de economia, segundo o qual o falante tende
a reduzir, naturalmente, o material fônico dos itens que emprega com mais freqüência.
Meillet
11
as the meaning generalizes and the range of uses widens, the frequency inc
reases and this leads automatically
to
phonological
reduction
and
perhaps
fusion.”
(BYBEE e PAGLIUCA, 1985, p. 72)
Sueli Maria Coelho
40
(1948 [1912]) atribuiu esse fenômeno da redução da carga sonora do item a um desgaste natural
do uso e o considerou um dos fatores desencadeadores do processo de gramaticalização, fato
contestado por estudiosos contemporâneos como Bybee e Pagliuca (1985), por exemplo.
Às evidências supracitadas, deve-
se
agregar
ainda
a redução dos contextos sintáticos em
que o item pode ocorrer. Esta evidência engloba duas outras: o aumento da previsibilidade de uso
e a fixidez da posição contextual em que o item pode figurar. Isso acontece porque, à medida que
o item vai se tornando mais gramatical, ele torna-se também mais regular, pois passa a sofrer as
restrições impostas pela gramática. Como sinalizara Humboldt (1822), as palavras gramaticais
possuem um paradigma mais restrito que as palavras lexicais porque estão sujeitas às pressões
cognitivas.
As características da gramaticalização aqui dispostas podem ser condensadas nas palavras
de Heine e Reh (1984), para quem
quanto mais uma unidade lingüística dada se submete ao processo de gramaticalizaç
ão,
a) mais ela perde em complexidade semântica, em significado funcional, e/ou em valor
expressivo; b) mais ela perde em significado pragmático e ganha em significado
sintático; c) mais reduzido se torna o número de membros pertencentes ao mesmo
paradigma morfossintático;
d) mais sua variabilidade sintática se reduz, isto é,
mais a sua
posição dentro da sentença se torna fixa; e) mais seu uso se torna obrigatório em certos
contextos e agramatical em outros; f) mais ela coalesce seman
ticamente,
morfossintaticamente, e fonologicamente com outras unidades; g) mais ela perde em
substância fonética
12
. (p. 67, tradução nossa)
12
the more grammaticalization processes a given linguistic unit undergoes, a) the more it loses in semantic
complexity, functional significance, and/or expressive value; b) the more it loses in pragmatic and gains in syntactic
significance; c) the more reduced is the number of members belonging to the same morphosyntactic paradigm; d) the
more its syntactic variability decreases, that is, the more its position within the clause becomes fixed; e) the more its
use become obligatory in certain contexts and ungrammatical in others; f) the more it coalesces semantically,
morphosyntactically, and phonetically with other units; g) the more it loses in phonetic substance. (HEINE e HEH,
1984,
p. 67)
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Como já pontuado (cf. 1.2.1), ao se gramaticalizar, um item passa por um processo crescente
de abstraticidade que compreende dois estágios: um nocional e outro formal. Isso porque, em sua
trajetória do léxico para a gramática, o item, que anteriormente possuía um conteúdo nocional, ao
adquirir características gramaticais, em virtude das coerções que essa aquisição implica, vai s
e
tornando menos referencial e mais formal, uma vez que perde referentes extralingüísticos para
adquirir significados pragmáticos ou gramaticais. Assim, ele deixa, progressivamente, de referir-
se a entidades do mundo empírico (+ concreto), para exprimir conteúdo gramatical (+ abstrato).
A partir dessas observações, muitos lingüistas, conforme atestam Hopper e Traugott (199
3),
defendem a existência de um ciclo que sintetiza o fenômeno da gramaticalização, esboçado da
seguinte forma:
item lexical > palavra g
ramatical > clítico > afixo flexional
Nessa perspectiva cíclica, a gramaticalização é entendida como um processo
unidirecional, que se desenvolve sempre da esquerda para a direita numa escala gradual de
abstração, que os itens
dispostos
à esquerda são mais concretos e menos gramaticais que os
itens
dispostos
à direita. Logo, quanto mais à esquerda o item é categorizado nesta escala, menos
gramatical ele é e menor também é a sua regularidade ou previsibilidade. Em contrapartida, à
medida que o processo avança e ele passa a ser categorizado mais à direita na escala, aumenta o
seu grau de gramaticalidade e, conseqüentemente, a sua regularidade. Pode-se dizer, então, que
Sueli Maria Coelho
42
os dois primeiros estágios definem a natureza do item, enquanto os dois últimos estabe
lecem
a
sua forma.
Comparando essa escala de gramaticalização aos estágios propostos por Humboldt
(1822), percebe-se uma grande semelhança entre eles: o primeiro estágio, em que apenas as
coisas são denotadas, corresponde às palavras de conteúdo nocional, aos itens lexicais
propriamente ditos; o segundo estágio corresponde à passagem de item lexical a gramatical; o
terceiro estágio retrata a fase da cliti
ci
zação, enquanto a fusão dos itens aglutinantes em um único
vocábulo, ocorrida no quarto estágio, representa a última etapa do processo, quando o item se
gramaticaliza em afixo flexional, tornando-se uma forma presa. Assim, como corroboram
Martelotta, Votre e Cazario (1996), a gramaticalização envolve a conversão de formas livres e
autônomas em formas pres
as e dependentes.
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Dentre as várias questões controversas no tocante à aquisição da linguagem, está aquela
que busca explicar o modo como o ser humano adquire as propriedades semânticas de sua língua,
sendo capaz de operar intuitivamente com as estruturas, visando a obter as diversas nuanças de
sentido. Para um grupo expressivo de semanticistas, o significado não é puramente lingüístico,
mas cognitivo, uma vez que a linguagem articulada é concebida como uma manifes
tação
superficial da nossa estruturação cognitiva. Esses estudiosos acreditam que, num estágio inicial, o
pensamento opera apenas com conceitos adquiridos pelo contato com o mundo concreto. À
Sueli Maria Coelho
43
medida que se desenvolve cognitivamente, o ser humano adquire a habilidade de lidar com
conceitos mais abstratos, cujo sentido é alcançado por um processo de extensão de significados
mais concretos. A esse processo cognitivo de extensão de significados mais concretos para usos
mais abstratos, dão o nome de metáfora, assim o definindo: “processo cognitivo que permite
mapearmos esquemas, aprendidos diretamente pelo nosso corpo, em domínios mais abstratos,
cuja experimentação é indireta.” (OLIVEIRA, 2001, p. 36)
Esse mesmo processo metafórico que sustenta as operações cognitivas encontra-
se,
segundo a maioria dos estudiosos do tema, na base da gramaticalização. São esses processos
metafóricos que constituem o tópico da próxima subseção. Antes, porém, de se discorrer sobre
eles, torna
-
se necessário tecer algumas consi
deraçõe
s acerca dos polêmicos
conceitos de concreto
e
de
abstrato, tão importantes não apenas para o entendimento dos processos metafóricos, mas
também do fenômeno da gramaticalização.
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O
A gênese da gramática tradiciona
l está radicada na Filosofia, berço comum das ciências, e
na Lógica. Segundo Mattos e Silva (2002),
foram os estóicos que começaram a delinear a fundamentação da gramática tradicional, a
partir do que chamaram etimologia. Procuraram não discutir o problema filosófico da
origem da linguagem, mas também das regularidades na ngua, ou, na metalinguagem
da época, da
analogia
. Entretanto ainda a gramática não se distinguia da filosofia e da
lógica. (MATTOS E SILVA, 2002, p. 17)
Sueli Maria Coelho
44
Também para Kristeva (1969), a gramática grega, que forneceu os princípios fundamentais
norteadores dos estudos lingüísticos até a contemporaneidade, não é senão uma ciência normativa
abstraída da Filosofia. De acordo com esta pesquisadora, “embora cada época e cada tendência
tenha
decifrado (
sic)
à sua maneira os modelos legados pelos Gregos, as conceptualizações
fundamentais da linguagem, tal como as classificações de base, permaneceram constantes.
(KRISTEVA, 1969, p. 149) Isso justifica o cunho filosófico impregnado à enorme gama dos
termos nucleares de nossas gramáticas normativas, dentre os quais se delimitam as noções de
concreto
e de
abstrato
por subsidiarem o
objeto de interesse do presente estudo.
Registra
-se, desde os gregos, uma tentativa de conceituar tais termos tomando por
parâmetro a noção de referência, concebida, naquela época, como exterior à linguagem, segundo
atestam estas palavras de Kristeva (1969): “o pensamento grego entende a linguagem como um
sistema formal, distinto de um exterior significado por ela (o real), e constituindo em si mesma
um domínio próprio, um objeto de conhecimento particular, sem se confundir com o seu exterior
material”. (p. 151-152) Tomando por princípio essa concepção de linguagem e de referenciação,
convencionou-se considerar concretos todos os nomes que apresentassem a capacidade de
remeter a um referente no mundo empírico, enquanto que aqueles que não dispusessem de tal
propriedade
seriam elencados no rol dos nomes abstratos.
A preocupação com tais conceitos é tão antiga que pode mesmo ser identificada
entre
os grandes pensadores clássicos. Platão (427 a.C) defendia a existência de dois mundos: o
mundo
sensível
, mundo no qual se vive, constituído de formas, e o mundo das idéias, constituído de
essências. Percebe-se nessa distinção proposta pelo filósofo as origens das clássicas distinções
aplicadas aos termos
concreto
e
abstrato
nas quais se associam comumente a concretude ao
sensível, ao experiencial e a abstração ao imaterial. Segundo Platão, as coisas do mundo sensível
eram imperfeitas e irreais e qualquer conhecimento baseado na experiência seria imperfeito,
Sueli Maria Coelho
45
incompleto. Assim, na visão desse idealista, apenas a razão possibilitaria o verdadeiro
conhecimento. Aristóteles (384-322 a.C), discípulo de Platão, apesar de manter os princ
ípios
universais de seu mestre, era defensor da tese de que o conhecimento pode ser alcançado pelo
exame das coisas concretas, presentes em nosso mundo.
Outro pensador que também discorreu sobre as questões de
concreto
e de
abstrato
foi o
filósofo medieval
13
Guilherme de Ockham (nascido entre 1280 e 1300 no vilarejo de Ockham, na
Inglaterra), para quem os universais propostos por Platão e preservados por Aristóteles não
passavam de palavras e definições. Segundo ele, o mais importante era o concreto, o palpável, o
passível de experimentação. O conhecimento deveria, pois, nascer dos sentidos, da experiência.
Em sua obra Lógica dos termos, escrita entre 1324 e 1328, o filósofo adverte o leitor para o fato
de que a discussão por ele proposta em torno dos termos
concreto
e
abstrato
não se pretende
exaustiva, tampouco
suficientemente
aprofundada a ponto de não suportar mais nenhum
acréscimo. é possível cotejar, nas explanações do pensador, uma infinitude de conceitos que,
por vezes, soam contraditórios, o que parece justificar a dificuldade que os próprios gramáticos e
lingüistas apresentam para conceituá
-
los.
A primeira tentativa de distinção entre os termos proposta por Ockham (1999 [1324-
1328]) apóia-se em critérios associados estritamente à forma dos vocábulos: “o concreto e o
abstrato são nomes que têm uma raiz comum, mas não uma terminação comum” (p. 127). “E
sempre ou freqüentemente o abstrato tem mais sílabas que o concreto (...). O concreto é também
freqüentemente adjetivo, e o abstrato, substantivo”. (p. 128) Cônscio de que o apoio apenas a
esses critérios não possibilitaria estabelecer, com clareza, uma distinção entre tais nomes, o
referido autor elenca um conjunto de três outras características que se propõem a diferenciá
-
los:
13
quem defenda que Ockham foi o último dos pensadores medievais e quem advogue que foi o primeiro da era
moderna.
Sueli Maria Coelho
46
-se a
primeira
, quando o abstrato supõe por um acidente ou por uma forma
qualquer, realmente inerente ao sujeito, e o concreto supõe pelo sujeito deste acidente ou
desta forma, ou conversamente. (...)
A
segunda
diferença de tais nomes dá-se, quando o concreto supõe pela parte e
o abstrato pelo todo, ou conversamente. (...)
A
terceira
diferença de tais nomes dá-se, quando o concreto e o abstrato
supõem por coisas distintas, das quais, todavia, nenhuma é sujeito, nem parte da outra. E
isto pode ocorrer de muitos modos, pois tais coisas às vezes se relacionam como causa e
efeito, (...) como signo e significado, (...) como local e localizado (...) (OCKHAM
, 1999,
pp. 128
-
129, grifos nossos
)
Mais uma vez, a proposta apresentada parece insuficiente para estabelecer, com
seguridade
, uma diferença entre tais termos. Diante da complexidade do assunto, o filósofo
pondera não ser “inconveniente que o mesmo nome com respeito a diversos seja concreto e
abstrato”. (op. cit., p. 129). Além das controvérsias apresentadas, Ockham (1999 [1324-1328]
)
comenta que, na visão aristotélica, “o nome concreto e o abstrato o às vezes sinônimos” (p.
130). Cumpre advertir, contudo, que a sinonímia proposta por Aristóteles refere-se ao aspecto de
serem cognatos, apresentando, como mencionado por Ockham, a mesma raiz. O pensador
“opinava que nenhuma coisa imaginável é importada pelo nome ‘homem’ que não seja do mesmo
modo importada pelo nome ‘humanidade’”. (OCKHAM, 1999, p. 134). Contrapondo-se à tese
aristotélica, os teólogos afirmam que “antes, esses nomes podem supor por coisas distintas, e um
nome significa ou co
-
significa uma coisa que o outro nome de modo algum significa”. (
ibidem, p.
136).
Desviando
-
se
o foco d
a análise para a óptica lingüística, constata
-
se que, com base em um
critério lógico formal, também os gramáticos e os lingüistas associam o caráter concreto ou
abstrato de um termo à sua capacidade de referenciação. Rocha Lima (1972), Cunha e Cintra
(1985) e Bechara (1999) definem como substantivos concretos aqueles que têm a propriedade de
se referir a algo que existe na realidade, ou seja, possuem existência independente. Como
Sueli Maria Coelho
47
substantivos abstratos classificam aqueles seres que não exibem a mesma propriedade dos
concretos, tendo sua existência subordinada a outro ser. Esse é também o critério adotado por
Said Ali (
2001
[1921]
). Segundo esse lingüista,
os atributos, posto que sejam inerentes aos seres, são considerados muitas vezes como se
existissem separados deles, como se fossem outras entidades. Os substantivos que os
representam
chamam
-se abstratos; são concretos os nomes de referência direta aos seres.
Alegria, tristeza, formosura, probidade são substantivos abstratos; casa, mulher, jardim,
homem
são nomes concretos. (SAID ALI, 2001, p. 47)
Assim como registrado no campo filosófico, também no campo dos estudos lingüísticos
encontram
-se visões dissidentes em relação à precisão do que seja concreto e do que seja
abstrato. Lyons (1967) emprega os termos para se referir ao caráter gramatical e não gramatical
da linguagem, respectivamente. Diehl (1975) propõe co-relacionar a idéia de abstração a um
contínuo de iticos locativos por ele denominado de
cont
ínuo
concreto
-abstrato”. Nesse
modelo, o autor propõe quatro tipos de espaços que vão se tornando mais abstratos a partir do
momento
que se distanciam do “ego”, ou seja, do falante.
Mesmo entre os lingüistas que dispensam à abstração um tratamento voltado
especificamente para o fenômeno da gramaticalização, notam-se divergências. Segundo Heine
et
al
(1993), entre todas as abordagens empreendidas para o termo “abstração,” três que
interessam particularmente aos estudiosos do fenômeno. A primeira “generalizing abstraction”
consiste em reduzir o número de traços distintivos de um conceito a suas características centrais
ou nucleares por meio de um raciocínio taxonômico. A segunda “isolating abstraction” pode
ser interpretada como um tipo especial da primeira e consiste em separar uma propriedade ou
traço particular que não constitui o âmago do conceito. Ambas são perceptíveis quando a
gramaticalização é concebida em termos de “descoramento semântico”, isto é, quando se admite
Sueli Maria Coelho
48
que os itens tornam-se mais abstratos em virtude de perdas em suas propriedades semânticas.
Nessa perspectiva, a abstração é concebida como uma relação de hiponímia entre a gramática e o
léxico, ou seja, o item gramaticalizado é, necessariamente, parte do léxico. Adotando-se uma
terminologia da semântica formal, diz-se que, ao se gramaticalizar, um item reduz a sua intensão
e aumenta a sua extensão, que perde algumas de suas propriedades semânticas para incorporar
propriedades gramaticais, estendendo categorias. O terceiro tipo de abordagem “methaforical
abstracting”
é, segundo os autores, mais complexo porque a passagem do concreto ao abstrato
compreend
e domínios conceituais. Esse tipo de abstração se processa via o processo cognitivo da
metáfora e será
mais bem
detalhado na próxima subseção.
Como se pôde perceber pelo exposto, tanto no campo filosófico quanto no lingüístico a
definição de
concreto
e de
abstrato
tem fomentado calorosas discussões, sem, contudo, chegar-
se
a um
denominador comum.
Em se tratand
o de conceitos cruciais para uma teoria, a
polissemia e
a
conseqüente
ambigüidade dos termos inviabiliza o caráter científico exigido para os fins a que se
propõe, fato que obrigou, no presente estudo, a constituição de uma proposta de classificação dos
usos concretos e abstratos baseada em um outro critério, que será definido posteriormente (cf.
capítulo terceiro). Por hora, serão abordados dois tipos de inferências que são apontadas na
literatura como as mais características dos estágios iniciais da gramaticalização, quais sejam: os
processos metafóricos e os processos metonímicos.
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Em se tratando de mudanças semânticas, os processos metafóricos são largamente
reconhecidos, pois, na grande maioria das ocorrências, essas mudanças são credenciadas à
possibilidade que a língua oferece ao falante de empregar um sentido em termos de outro. Assim,
com o tempo, aquela expansão metafórica se sagra, passando a incorporar o léxico, de tal forma
que os falantes não têm mais consciência de tratar-se de uma extensão de usos. Entretanto, ainda
que tradicionalmente os processos metafóricos sejam considerados fenômenos semânticos,
recentemen
te, inúmeros autores (cf. Levinson (1983), Sperber e Wilson (1986), Green (1989) e
Hopper e Traugott (1993)) defendem a melhor propriedade de se concebê-los como pragmáticos,
por serem desencadeados no uso, visando a suprir uma iminente necessidade comunic
ativa.
Argumentando em favor do caráter pragmático da metáfora, Green (1989) empreendeu uma
análise comparativa entre os processos metafóricos e as implicaturas conversacionais,
considerando como ponto de intersecção o fato de ambos serem frutos de operações inferenciais.
Segundo a autora, a diferença reside no fato de, num nível superficial, as
metáforas
envolverem,
geralmente, proposições elaboradas para serem reconhecidas, intencionalmente, como falsas. As
implicaturas conversacionais, por outro lado, induzem a um raciocínio que se sustenta na
interpretação denotativa das proposições envolvidas. Quando se diz, por exemplo, que
determinada pessoa é uma pedra, essa proposição é literalmente falsa, devendo, pois, ser
interpretada no âmbito do sentido conotativo. Por outro lado, se se diz que um determinado
objeto decorativo está quebrado e que as crianças estão mais comportadas que o habitual, está-
se
sugerindo uma relação de causa e conseqüência entre as duas proposições que deve ser entendida
Sueli Maria Coelho
50
no plano da de
notação. Caso contrário, a segunda proposição (as crianças estão mais comportadas
que o habitual) adquirirá um tom irônico, não pretendido pelo enunciador no referido contexto.
Independentemente da forma como é concebida semântica ou pragmaticamente –,
a
metáfora, como se sabe, é largamente explorada, quer no campo da Teoria Literária, quer no
âmbito dos estudos lingüísticos. Contudo, a despeito de suas inúmeras definições, alguns
conceitos que lhe são comuns: (a) o emprego de uma coisa em termos de outra e (b) a
transferência de um sentido de base concreta para um domínio mais abstrato. O presente estudo,
por ser de natureza lingüística, discorrerá sobre os processos metafóricos apenas nessa
perspectiva, priorizando sua relação com os estudos sobre a
gramaticalização
, que constitui o
objeto eleito para estudo. Para Hopper e Traugott (1993), “os processos metafóricos são
processos de inferência
através
de limites conceituais, e são tipicamente referidos em termos de
‘mapas’ ou ‘eixos associativos’, de um domínio para outro
14
.”
(p. 77
, tradução nossa). Advertem
os referidos autores que esse mapeamento não é aleatório, mas motivado por relações analógicas
e icônicas. Tais relações tendem a ser observáveis por meio do material lingüístico. Sweetser
(1988) pondera que algumas têm sido concebidas como imagens mentais (ou esquemas),
construídas a partir de experiências concretas, e mapeadas em um domínio de conceitos abstratos.
No que tange ao fenômeno da mudança lingüística, mais especificamente no caso da
gra
maticalização, os processos metafóricos têm sido evocados prioritariamente para explicar
fenômenos de mudança no âmbito lexical. Entretanto, alguns autores têm suscitado e defendido a
tese
de que não apenas no âmbito lexical, mas, desde os estágios iniciais, a gramaticalização é
fortemente motivada por processos metafóricos, que, segundo eles, são inerentes às línguas:
14
metaphorical processes are processes of inference across conceptual boundaries, and are typically referred to in
terms of ‘mappings’, or ‘associative leaps’, from one domain to another.”
(HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 77)
Sueli Maria Coelho
51
Antes de aceitar a idéia de que a evolução gramatical é comandada por necessidade
comunicativa, nós sugerimos que os usuários da linguagem humana têm uma propensão
natural para fazer extensões metafóricas que conduzem ao aumento do uso de certos
itens
15
.
(BYBEE e PAGLIUCA, 1985, p. 75, tradução nossa)
Em gramaticalização, entende-se por metáfora a operação cognitiva que viabiliza o
processo
de tramitação de um item do léxico (+ concreto) para a gramática (+ abstrata) ou a
intensificação do caráter gramatical de um item, que se desloca de uma posição menos gramatical
e, portanto, menos abstrata para uma posição mais gramatical, o que, cons
eqüentemente,
provocará
o aumento de seu grau de abstração. Segundo Heine et al (1991), a expansão
metafórica presente na gramaticalização é unidirecional e se processa numa escala crescente de
abstraticidade, assim sintetizada:
PESSOA > OBJETO > ATIVIDA
DE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE
Como se percebe pela escala acima, o fato de se empregarem partes do corpo humano
para se referir a partes de objetos (
de alface,
cabeça
de cebola, por exemplo), nomes de
objetos para se referir a atividades (acompanhar
a
linha
de raciocínio), localizações espaciais para
se
precisar o tempo (dois minutos
atrás
ele estava aqui), e marcas temporais para expressar
qualidade (estar
atrasado
) caracteriza a presença da metáfora, pois se recorre ao expediente de
empregar algo m
ais concreto e, portanto, mais fácil de ser conceptualizado, para se referir a outro
mais abstrato. Essas extensões metafóricas que operam no fenômeno da gramaticalização são
15
Rather than subscribe to the idea that grammatical evolution is driven by communicative necessity, we suggest
that
human language users have a natural propensity for making metaphorical extensions that lead to the increased
use of certain items
.
(BYBEE e PAGLIUCA, 1985, p. 75)
Sueli Maria Coelho
52
motivadas por uma operação
cognitiva
lógica de natureza inferencial: a analogia
,
cuja elucidação
compreende o cerne da subseção ulterior.
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A discussão acerca do conceito de analogia, bem como acerca do seu papel no âmbito dos
estudos lingüísticos compreende controversas questões que
vão
desde as primeiras especu
lações
sobre a origem da língua e
sobre
a relação entre as palavras e o seu significado,
empreendida
pelos filósofos gregos, perpassando pelos neogramáticos, até chegar aos estudiosos
contemporâneos.
Num primeiro momento da história da lingua(gem), “os filósofos gregos discutiam se o
que regia a língua era a ‘natureza’ ou a ‘convenção
’.”
(LYONS, 1979, p. 4) Assumir que tal
regência
era “
natural
equivalia a dizer
que
ela tinha sua origem em princípios eternos e imutáveis
fora do próprio homem, e era por isso inviolável” (
ibidem,
p. 4). Por outro lado, apostar no
caráter
convencional
da regência “equivalia a dizer que ela era o mero resultado do costume e da
tradição, isto é, de um acordo tácito, ou ‘contrato social’, entre os membros da comunidade
‘contrat
o’ que, por ter sido feito pelos homens, podia ser pelos homens violado.” (
ibidem
, p.4)
No
que tange à língua, a discussão entre natural e
convencional
centrava
-se, principalmente, sobre a
(in)existência de qualquer relação entre a forma de uma palavra e o seu respectivo significado.
De acordo com Lyons (1979), “reconheciam
-
se várias maneiras pelas quais a forma duma palavra
podia ser ‘naturalmente’ apropriada a seu significado.” (p. 4) Por outro lado, contudo, “depois de
Sueli Maria Coelho
53
examinar plenamente a onomatopéia e o simbolismo fonético, os etimologistas gregos tinham
ainda muitíssimas palavras a explicar.” (LYONS, 1979, p.5) Na tentativa de solucionar tal
impasse, esses estudiosos de questões lingüísticas “invocaram vários princípios segundo os quais
as palavras podiam derivar-se de outras ou relacionar-se a outras. Estes foram codificados com o
tempo como os princípios tradicionais da etimologia” (
ibidem
, p. 5) e categorizados em dois
tipos:
Em primeiro lugar, o significado de uma palavra podia estender-se em virtude de
alguma “conexão natural” entre o sentido original e a aplicação secundária: é o caso de
boca, embocadura ou
foz
[
lat.
fauce
-, “boca”] de um rio, o
gargalo
(cf.
garganta
) de
uma garrafa, etc. São exemplos de
metáfora
, que é um dos numerosos termo
s
introduzidos pelos gregos, incorporados na terminologia das gramáticas e das obras
tradicionais de estilística. Em segundo lugar, a forma duma palavra podia derivar-se da
de outra por adição, supressão, substituição e transposição de sons, admitida algum
a
conexão “natural” nos significados de duas palavras
. (LYONS, 1979, p. 5
-
6)
As calorosas discussões entre os “naturalistas” e os “convencionalistas” evoluíram, a
partir do séc
ulo II a.C., para questões concernentes à regularidade lingüística.
Assim, aqu
eles que
sustentavam a tese de que a língua é essencialmente regular e sistemática eram denominados de
analogistas
, enquanto os partidários da teoria oposta recebiam a denominação de
anomalistas.
Torna
-
se
pertinente elucidar que o termo
analogia
, em Lingüística, é empregado, conforme
Lyons (1979), “no sentido mais restrito de ‘proporção’ matemática de quarta proporcional (...).
Aliás, o termo
proporção
vem do lat.
proportio
, que é a tradução do gr.
analogia
.” (p. 6).
Tomando por paradigma a relação proporcional
estabelecida
entre
canto
:
cantei
, torna-
se
possível
conjugar analogicamente a primeira pessoa do presente do indicativo no pretérito
perfeito
desse mesmo modo para todos os verbos regulares de primeira conjugação. O apelo a
esse expediente analógico é responsável,
muitas
vezes, por conjugações irregulares, como, por
exemplo,
quando crianças em fase de aquisição de linguagem dizem “batei”, ao invés de “bati”.
Sueli Maria Coelho
54
Pode-se afirmar, pois, que a analogia se baseia em um tipo de raciocínio que visa à generaliz
ação
de regras preexistentes com vistas a atingir uma regularidade. Ela promove, dessa feita, uma
espécie de reengenharia de formas, pois opera no eixo paradigmático da língua, atraindo formas
existentes numa tentativa de expandir seus usos.
Diz
-se, por isso, que ela modifica as
manifestações superficiais, mas não acarreta mudança de regras.
O
raciocínio anal
ógico foi amplamente
aplicado por Platão e por Aristóteles no estudo das
ci
ências, sendo também estendido pelos lingüistas ao estudo dos fenômenos gramaticais da
lingua(gem).
No século XIX, os neogramáticos invocaram a analogia para explicar
cientificamente as exceções das leis fonéticas por eles propostas. De acordo com informações
extraídas de Bynon (1985 [1977]), a analogia interessa-
se
mais precisamente pela relação entre
estruturas fonológicas e gramaticais. “Ela é, de fato, o mesmo mecanismo que, quer modificando
formas lingüísticas existentes, quer criando novas, traz de volta ao alinhamento formas
fonológicas e funções gramaticais depois que a relação entre elas tenha sido perturbada pelas
mudanças
sonoras
16
.” (BYNON, 1985, p. 34, tradução nossa
).
De acordo com a referida autora,
de se considerar dois tipos distintos de formação analógica: (a) a criação analógica e (b) a
mudança analógica.
Convém tratá
-
las
como
fenômenos distintos porque
,
enquanto a mudança analógica efetua o realinhamento de expoentes em relação a
algumas categorias gramaticais ou semânticas e equivale a não mais que uma
redistribuição de seus expoentes, a criação analógica produz novas formas
pela
extensão de uma existente correlação de formas e funções além de seus domínios
originais
17
.
(BYNON, 1985, p. 34, tradução nossa)
16
“It is in fact the very mechanism which, either by modifying existing linguistic forms or by creating new ones,
brings back into alignment phonological forms and grammatical function after the relationship between these has
been disrupted by sound change.”
(BYNON, 1985, p. 34).
17
“… while analogical change effects the realignment of exponents in relation to some grammatical or semantic
category and amounts to no more than a redistribution of its exponents, analogical creation produces new forms by
extending correlation of form and function beyond its original domain.”
(BYNON, 1985, p. 34)
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De
acordo com a autora referenciada, há dois pré-requisitos para que uma mudança
analógica se processe. O primeiro deles diz respeito à existência de uma
identi
dade funcional no
que concerne às marcas de algumas categorias gramaticais ou semânticas particulares que são
formalmente muito diferentes. O segundo relaciona-se à estrutura do modelo, cuja exigência
subordina
-se à transparência de sua estrutura morfol
ógica
para o falante nativo
.
A mudança
consistirá, assim, na substituição da forma menos transparente por outra
funcionalmente
equivalen
te
cuja estrutura
refletirá
aquela do modelo.
Bynon (1985) adverte que a mudança analógica congrega duas faces: se, de um lado, “ela
pode ter um efeito regularizador sobre a gramática por eliminar as alternantes gramaticais
irregulares ou pelo menos por diminuir sua freqüência de
ocorrência,
por outro lado ela reduz o
número total de itens lexicais irregulares na língua
18
.”
(p. 36
-37
, tradução nossa
)
No que tange à produtividade, as mudanças analógicas não são igualmente produtivas
quer se trate de derivação, quer se refira à flexão. Segundo informações coletadas em Bynon (
op.
cit.
), tais mudanças
são
menos freqüentes
nos processos derivacionais que nos flexionais, porque
,
em virtude de seu papel primariamente lexical e de sua limitada participação na sintaxe, as regras
derivacionais
são muito menos susceptíveis à mudança analógica que as
regras
flexionais.
18
“i
t may have a regularizing effect on the
grammar
by eliminating irregular grammatical alternants or at least
decreasing their frequency of occurrence, on the other it reduces the total number of irregular lexical items in the
language.” (BYNON, 1985, p. 36
-
37)
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Bynon (1985) afirma que “enquanto a mudança analógica é o mecanismo fundamental por
meio do qual as regras morfológicas são atualizadas na lingua(gem), a criação analógica é aq
uele
por meio do qual os recursos lexicais e conceituais são renovados
19
.” (p. 40, tradução nossa)
Segundo a autora, a distinção entre a mudança e a criação analógica é, de certa forma, marginal.
Assim, se a lingua(gem) é considerada sob a perspectiva de seu aspecto criativo, que opera com
as regras da competência do falante, a divisão perde muito de seu sentido, uma vez que as
mesmas regras que geram formas existentes podem, igualmente, criar formas novas. É o que
ocorre,
por exemplo, com o sufixo
ude
, em palavras como
concret
ude
e finit
ude
. Recorrendo a
um tipo de raciocínio analógico, o falante que conhece o significado do substantivo concret
ude
pode formar também o substantivo finit
ude
, empregando o mesmo sufixo.
Valendo
-se ainda do
mesmo tipo de raciocínio, o falante pode criar um neologismo, ao acrescentar tal sufixo ao
substantivo completo, formando complet
ude
, porque o substantivo abstrato derivado dess
e
adjetivo é
complet
eza.
Em virtude de o raciocínio analógico
possibilitar
, não raras vezes, como já discutido e
exemplificado, uma generalização que foge aos padrões regulares, a analogia foi também
cons
iderada, segundo Lyons (1979), como um fator de “corrupção” da língua num momento de
decadência e de incultura. Co
ntudo,
19
“While analogical change is the fundamental mechanism whereby the morphological rules in a language are
updated, analogical creation is that by means of which the lexical and conceptual resources are renewed.” (BYNON,
1985, p. 40)
Sueli Maria Coelho
57
com o aumento da atenção dispensada ao desenvolvimento histórico e pré-histórico das
línguas clássicas e vernáculas da Europa durante o séc. XIX, notou-se afinal que a
analogia foi um fator importantíssimo no desenvolvimento das línguas em todas a
s
épocas, e não poderia ser atribuída simplesmente a épocas de declínio e corrupção. (
p.
31)
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Outra operação cognitiva presente no processo de gramaticalização é a metonímia. Da
mesma forma que a metáfora, ela também se baseia no princípio da extensão. Contudo, não se
trata de uma extensão de usos, mas de uma extensão de categorias, que se processa por
contigüidade, que envolve uma reinterpretação induzida pelo contexto sintático. Hopper e
Traugott (1993), citando Stern (1931), explicam que a metonímia “resulta de ‘um [ser] universal’
usado em uma frase em que a noção de algum modo conectada com seu sentido é suscetível de
formar
um elemento do contexto
20
.” (p. 81, tradução nossa) Com isso, pode-se inferir que os
processos
metonímicos são responsáveis pela ambigüidade de interpretação que se verifica num
determinado estágio do processo de gramaticalização, pois são eles que, no contexto, induzem o
falante a interpretar determinada estrutura de uma forma ou de outra.
Assim
como a metáfora é motivada pelo princípio da analogia, a metonímia susten
ta
-
se no
princ
ípio da reanálise, cuja definição e relação com o fenômeno da gramaticalização constituem o
escopo da próxima
subseção.
20
results from ‘a
world [being] used in a phrase where a notion in some way connected with its meaning is liable to
form an element of the context’”.(
STERN, 1931,
apud
HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p.
81)
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Langacker (1977), citado por Hopper e Traugott (1993), define a reanálise como uma
“mudança na estrutura de uma expressão ou classe de expressões que não envolve qualquer
modificação imediata ou intrínseca de sua manifestação superficial
21
(p. 40, tradução nossa
)
e
credita a tal fenômeno lingüístico o papel principal no processo que envolve as mudanças de
natureza sintática. Um exemplo clássico de reanálise no Português do Brasil é o dos períodos
compostos por subordinação cujo verbo encontra-
se
no infinitivo. Assim, um período como o
apr
esentado
em (2), a seguir, a despeito de preservar a sua manifestação superficial,
pode
apresentar duas e
struturas subjacentes distintas, como será explicitado adiante.
(2)
O juiz n
ão deixou
o réu permanecer na sala de audi
ências.
Tomando por parâme
tro
a análise
sintática
tradicional, em (2), o sintagma o réu tanto
pode ser interpretado como o objeto direto do verbo
deixar
, quanto pode ser analisado como o
sujeito do verbo
permanecer
. Essa diferença de interpretação dos constituintes da sentença não
promove alterações na estrutura de superfície do período, embora provoque alterações de base
subjacente.
O fenômeno da reanálise, que permite ao falante reinterpretar determinadas estruturas
com base em seu contexto de ocorrência, baseia-
se
num tipo de ra
ciocínio
lógico identificado
primeiramente por Pierce (1931) e relacionado com as mudanças lingüísticas por Andersen
(1973).
Esse raciocínio é denominado de
abdutivo
e, segundo Andersen (op. cit.), apesar de ser
freqüentemente confundido com o raciocínio i
ndutivo
tipo de raciocínio lógico que consiste em
21
“change in the structure of an expression or class of expressions that does not involve any immediate or intrinsic
modification of its surface manifestation.” (LANGACKER, 1977 apud HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 40)
Sueli Maria Coelho
59
estabelecer uma verdade maior, a partir da observação de proposições de menor generalidade
,
ele
se difere deste.
Para
o autor referenciado, “a
abduç
ão procede da observação de uma
proposição,
invoca
uma premissa maior, e infere que algo pode ser a premissa menor
22
.”
(ANDERSEN, 1973, p. 775, tradução nossa) Segundo um exemplo fornecido pelo
próprio
autor,
dado
que
Sócrates
esteja morto
, é poss
ível relacionar
este fato com a premissa maior de que todos
os
homens são mortais e, então, supor que Sócrates seja um homem. É por isso que se diz que a
conclusão alcançada por um raciocínio de natureza abdutiva é apenas plausível e, como tal,
imperfeita. Em (2), acima, o raciocínio abdutivo responsável pela reanálise processa-se da
seguinte forma: ao interpretar o sintagma nominal o réu como o objeto direto do verbo deixar, o
falante
apóia
-se no conhecimento internalizado de que o sintagma nominal que se pospõe ao
verbo transitivo direto é objeto direto e supõe, dada a distribuição sintática dos constituintes do
período,
que se trata de tal termo; por outro lado, ao interpretá-lo como sujeito do verbo
permanecer
, o falante apóia-se na premissa maior de que os sintagmas nominais que antepõem o
verbo mantendo com ele um
a relação de concordância exercem a função sint
ática de sujeito desse
verbo e o interpreta como tal, uma vez que o contexto sintático da segunda oração também
favorece essa conclusão.
De acordo com Hopper e Traugott (1993), que afirmam se apoiar na abordagem proposta
por Langacker (1977), a fusão é um dos tipos mais simples de reanálise e também o mais
freqüentemente encontrado no fenômeno da gramaticalização. Segundo os autores, um exemplo
tradicional de fusão é a composição, que consiste na combinação de duas ou mais palavras em
uma só, desencadeando, geralmente, conseqüências de ordem semântica, morfológica e
fonológica
. Apesar de a fusão ser mais facilmente identificada no âmbito da morfologia e da
22
“Abduction proceeds from an observed result, invokes a law, and infers that something may be the case.”
(ANDERS
EN, 1973, p. 775)
Sueli Maria Coelho
60
fonologia, ela, às vezes, também se manifesta nos domínios da sintaxe. Segundo informações
extraídas de Hopper e Traugott (op. cit.), a gramaticalização de verbos plenos em auxiliares
,
objeto de estudo deste trabalho,
resulta
de um processo de fusão, uma vez que o verbo
passa
de
principal
a ma
rcador temporal e
ou aspectual e
que
tal mudança funcio
nal afeta semanticamente o
verbo
, que, nesse processo, esvazia-
se
de seu conteúdo nocional para assumir funções
gramaticais.
Essas altera
ções semânticas que ocorrem
durante o processo de fusão podem, num estágio
mais i
nicial
do processo, gerar ambigüidade de interpretação em alguns contextos. Isso se deve à
interferência do fenômeno da reanálise que, como já apresentado, permite que uma mesma
estrutura de superfície evoque duas estruturas profundas distintas. Assim, num primeiro
momento, existe a possibilidade de coexistirem as duas análises: a da forma inicial e também
aquela resultante da reanálise.
No período arcaico, algumas ocorrências do
verbo
ter
identificadas
no
corpus
pesquisado parecem adequadas para ilustrar o fenômeno da ambigüidade de análise,
conforme demonstram os excertos que se seguem:
(3)
“Lançava as måos da barba, que
tiinha
mui longa e cåa, e messava-a toda e dava grandes
feridas em seu rostro.” (LINHAGENS,
p. 136, grifo nosso)
(4)
“... estas // Cousas senhor uos escreuo porque aJnda que uo
la
s
tenho ditas os outros do
uoso conselho me praz de ser sempre do conto dos que uos bem conselharem (...)
(
DOM DUARTE, p. 77, grifo nosso)
(5)
“Prymeiramente falando da Fortaleza per que os Reynos são defesos e acreçentados a
mym pareçe que no uoso nam
tem
dela cu
ydado
, mas antes hy muitos azos porque de
todo faleça (...)”
(DOM DUARTE, p. 31, grifo nosso)
(6)
“Senhor em almeirym foy falado desta liga, somente que fose a reposta de mosem garçia
/ ouuyda sobre o que lhe a uosa mercê Ja dantes tinha falado/ e a meu entender non
Sueli Maria Coelho
61
foro
m perguntados per uozes do que d
ela
pareç
ia (...)”(DOM DUARTE, p. 60, grifo
nosso)
Em (3), não pairam dúvidas de que o
ter
é um verbo principal dotado de seu conteúdo
nocional de
expressar posse.
Em (4),
observa
-
se uma semelhança contextual com a forma auxiliar
presente em (6), mas alguns estudiosos de questões diacrônicas consideram-no ainda um verbo
pleno, alegando que o
ditas
é um adjetivo. Contudo, de se considerar que, neste contexto,
ocorreu a alteração semântica, uma vez que o valor nocional do verbo não é mais o mesmo
apresentado em (3). Semelhante ambigüidade pode ser constatada
ainda
no excerto (5), em que a
palavra
cuidado
tanto pode ser interpretada como o particípio do verbo
cuidar
ou como um
substantivo. Em todos estes contextos, a mudança na estrutura profunda não acarreta alterações
de ordem superficial.
Enquanto a analogia opera no eixo paradigmático da língua, a
reanálise
opera no eixo
sintagmático, acarretando mudanças de regras. Considerada como o principal fator de mudança
lingüística, por vezes, a reanálise tende a ser identificada com a gramaticalização, o que constitui,
segundo alguns autores (cf. Heine and Reh (1984) e Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991a)), um
equívoco.
Tais pesquisadores consideram precipitada e inadequada essa generalização porque,
apesar de muitos casos de reanálise serem casos de gramaticalização, de se considerar que
nem todos o são. Dado que a reanálise se processa também no âmbito da morfologia, como
mencionado, é possível que ela resulte numa mudança que não apresenta efeitos gramaticais, mas
apenas lexicais. Nesse caso, está-se diante de um fenômeno de expansão no léxico ou
lexicalização.
Frente a tal impasse, seria “melhor, então, considerar a gramaticalização como um
Sueli Maria Coelho
62
subconjunto de mudanças envolvidas na reanálise que identificar as duas
23
.”
(HOPPER e
TRAUGOTT, 1993, p. 50, tradução nossa).
Como sinalizara Meillet (1912), apenas a reanálise permite a criação de novas
estruturas gramaticais, pois ela opera mediante uma reengenharia de formas, possibilitando o
desenvolvimento de novas formas a partir da reinterpretação de velhas estruturas. É por meio
dessa reengenharia que ela permite que um item tramite de uma categoria a outra. Esse fato tem
contr
ibuído para que, desde os tradicionais estudos de gramaticalização conduzidos por Meillet,
haja uma supervalorização da reanálise em detrimento da analogia. Entretanto, advertem Hopper
e Traugott (1993), o papel da analogia não deve ser subestimado no fenômeno da
gramaticalização, porque as extensões analógicas constituem a primeira evidência empírica de
uma mudança em curso. Além disso, é por meio dela que as inobserváveis mudanças operadas
pela reanálise tendem a se tornar observáveis.
Outro fato resultante da supervalorização da reanálise é o questionamento acerca da
importância da metáfora para o fenômeno da gramaticalização. Tal relevância parece ter sido
pontuada quando da importância atribuída à analogia, que constitui o principal difusor da
metáf
ora. Ainda assim, é comum a tentativa de se analisarem os fenômenos metafóricos e os
metonímicos, atribuindo-lhes uma escala valorativa de importância para o processo de
gramaticalização. Se, por um lado, aqueles que advogam em prol do caráter preponderante da
metáfora para o fenômeno da gramaticalização, por outro, existem aqueles que defendem a
supremacia da metonímia, tomando como principal argumento o fato de a reanálise ter sido
tradicionalme
nte reconhecida como o mais importante processo de criação de novas formas
gramaticais.
Contudo, faz
-
se necessário considerar que “
a reanálise e a analogia s
ão os principais
23
It is best, then, to regard gram
m
aticalization as a subset of changes involved in reanalysis, rather than to identify
the two
.
” (HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 50)
Sueli Maria Coelho
63
mecanismos na mudança lingüística
24
(HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 61, tradução nossa)
e
que “elas não definem a gramaticalização, nem são
co
extensivas
a ela, mas a gramaticalização
não ocorre sem elas
25
.”
(
ibidem
, p. 61-62, tradução nossa) Logo, pode-se afirmar que tanto a
metáfora
cujo princípio é a analogia quanto a metonímia que se baseia na reanálise são
igualmente importantes para o processo de gramaticalização. A supervalorização de uma em
detrimento da outra se deve tão somente ao critério priorizado para análise. Em termos de análise
da forma, relativamente independente de seu contexto de uso, a metáfora tende a ser considerada
m
ais importante. Assim, se, ao analisar o processo de gramaticalização do verto
ter
, por exemplo,
centra
-se a atenção na passagem de um item lexical a um item gramatical, atribuir-
se
maior
importância ao processo metafórico. Se, nessa mesma análise, prior
iza
-se o estudo da forma em
seu contexto de uso, atribuir-
se
maior relevância à metonímia. Por outro lado, se ao se analisar
a gramaticalização do verbo
ter
, prioriza-se o fato de que a extensão da categoria de verbo pleno
à de verbo auxiliar acontece em contigüidade com uma forma nominal de particípio, está-
se
dispensando maior atenção à metonímia. A submissão ao contexto sintático, determinada pelos
processos metonímicos, parece explicar o fato de algumas formas plenas virem a se
gramaticalizar com formas verbais de infinitivo, gerúndio e particípio, enquanto outras apenas o
fazem com alguma(s) dessas formas nominais.
24
reanalysis and analogy are the major mechanisms in language change” (HO
PPER e TRAUGOTT, 1993, p. 61)
25
they do not define grammaticalization, nor are they coextensive with it, but grammaticalization does not occur
without them.”
(
ibidem
, p. 61
-
62)
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Se se assume que a gramaticalização é um processo, de se admitir também que, como
tal, não acontece abruptamente, mas compreende fases. A pergunta que se coloca, então, é a
seguinte: onde começa e onde termina a gramaticalização de um item? Mais uma vez, a resposta
para uma questão aparentemente simples não pode ser facilmente identificada, tampouco é
unanimemente aceita por todos os estudiosos. Dessa forma, enquanto alguns buscam precisar o
início e o fim do processo, outros defendem o caráter cíclico e contínuo do fenômeno.
Lehmann (1982), retomando uma proposta de Givón (1979a
),
que defendia que, “no
processo de gramaticalização, um modo mais pragmático de comunicação prioridade a um
modo mais sintático
26
” (p. 208, tradução nossa),
propõe a seguinte escala para o processo:
Nós assumimos que a gramaticalização começa de uma colocação livre de lexema
s
isolados no discurso. Esta é convertida em uma construção sintática pela sintatização,
pela qual alguns dos lexemas assumem função gramatical, de modo que a construção
pode ser chamada analítica. A morfologização, que aqui significa o mesmo que
aglutina
ção, reduz a construção analítica a uma sintética de modo que os
constituintes
gramaticais
se tornem de aglutinados a flexionais. Esta transição da morfologia para a
morfofonêmica será aqui chamada de desmor
femização.
Givón a chama de
lexicalização, e este é o quarto sentido em que o termo aparece na literatura. (...) Nós
passamos por cima da fase final, na qual a expressão e o conteúdo da categoria
gramatical se tornam zero
27
.
(p. 14, tradução nossa)
26
“(…) in the process of grammaticalization, a more pragmatic mode of communication gives way to a more
syntactic one.” (GIVÓN, 1979a : 208)
27
We assume that grammaticalization starts from a free collocation of isolating lexemes in discourse. This is
converted into a syntactic construction by syntacticization, whereby some of the lexemes assume grammatical
functions, so that the construction may be called analytic. Morphologication, which here means the same as
agglutination, reduces the analytic construction to a synthetic one, so that grammatical formatives become
agglutinative to flexional. This transition from morphology to morphophonemics will here be called
demorphemicization. Givón calls it lexicalization, and this is the fourth sense in which the term appears in the
literature. (…) We pass over to the final phase, where expression and content of the grammatical category become
zero.
(LEHMANN, 1982, p. 14)
Sueli Maria Coelho
65
Nota
-se, pois, nas palavras de Lehmann (1982), a delimitação de quatro fases para a
gramaticalização: (a) sintatização, (b) morfologização, (c)
desmorfemização
e (d) estágio zero.
Contudo, o próprio autor adverte para a fragilidade dessa escala, argumentando que a
delimitação dessas fases suscita a idéia de que o processo de gramaticalização de uma forma tem
etapas bem definidas, o que não é verdade. Segundo ele, o início do processo não é pontualmente
identificável e o fato de
se
precisar se os itens afetados pela gramaticalização entraram no
processo
em determinado momento e o deixaram em outro não é relevante, que a obediência
estrita às fases apresentadas constitui uma raridade na língua. Isso induz à conclusão de que a
escala proposta constitui apenas uma tentativa de delimitar as possíveis fases do processo, o que
não significa que todos os itens em processo de gramaticalização passam por todas essas fases.
Pode ocorrer, por exemplo, de um item, em função de uma série de fatores tanto internos quanto
externos à língua, cristalizar-
se em um desses
estágios, não chegando a atingir o outro.
Outra generalização que se obtém das considerações de Lehmann (1982) não mais se
refere às fases do processo, mas a seus níveis técnicos.
Assim como Givón (1979a), e
le defende a
tese de que a gramaticalização pa
rte do discurso em direção à gramática.
A
partir do momento em
que os itens do discurso entram em processo de gramaticalização, eles caem, inicialmente, no
âmbito da sintaxe, cujas regras de combinação congregam os sintagmas, constituindo estruturas
analít
icas. O terceiro nível é, então, o da morfologia, quando as estruturas analíticas tornam-
se
sintéticas por meio da aglutinação das formas. Em seguida, as estruturas aglutinadas tornam-
se
estruturas flexionais, no âmbito da morfofonêmica e, no último estágio, por ele denominado de
estágio zero, verifica-se a exaustão máxima do processo, quando tudo se reinicia. Pode-se, pois,
esquematicamente assim delinear o percurso da gramaticalização proposto por Givón (1979a) e
adotado por Lehmann (1982)
:
Sueli Maria Coelho
66
DISCURSO > SI
NTAXE > MORFOLOGIA > MORFOFONÊMICA > ZERO
Confrontando-se as fases propostas por Givón (op. cit.) e por Lehmann (op. cit.) para
explicar o processo da gramaticalização com aquelas propostas por Humboldt (1822) para
explicar
a origem da gramática, é possível identificar alguma similaridade entre elas. O primeiro
estágio proposto por Humboldt (1822) é determinado por fatores pragmáticos, assim como a
cooptação de elementos do discurso pela sintaxe. No segundo estágio, ao entrar no âmbito da
sintaxe, em virtude da combinação dos constituintes no sintagma, os itens em processo de
gramaticalização passam a assumir valores funcionais, outrora não identificados. O terceiro
estágio postulado por Humboldt (1822) também se no âmbito da morfologia, culminando com
a aglutinação da estrutura, que se torna uma forma presa. Esta pode, em decorrência da
fossilização, vir a desaparecer, o que configura o estágio zero.
Sueli Maria Coelho
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O termo
auxiliar
não apenas integra a metalinguagem gramatical, como também é
bastante trivial para os falantes de línguas ocidentais, especialmente para aqueles que se
submeteram a um ensino tradicional de língua. Contudo, essa familiaridade metalingüística, de
certa forma, obscurece a complexidade e minimiza a importância do fenômeno da
auxiliarização,
que passa a ser percebido como um mero e corriqueiro artefato lingüístico. Escapa à percepção
do falante e também à de muitos gramáticos
embora a estes não se desculpe tal
desatenção, uma
vez que devem elaborar uma descrição mais cuidadosa possível dos fenômenos da linguagem
o
fato de que tal fenômeno, de natureza diacrô
nica,
é responsável por gerar formas verbais
perifrásticas a partir de formas verbais simples mediante um mecanismo sintático de
subordinação para expressar categorias distintas daquelas que expressariam caso permanecessem
como formas simples. Benveniste (1995 [1966]), ao descrever o processo pelo qual um verbo
pleno tramita para uma categoria funcional, assumindo funções gramaticais, realça a
singularidade desse fenômeno. Para o referido lingüista, o verbo auxiliar é
uma forma lingüística unitária que se realiza, através dos paradigmas inteiros, por meio
de dois elementos, cada um dos quais assume uma parte das funções gramaticais, sendo
esses elementos ao mesmo tempo ligados e autônomos, distintos e complementares.
(BENVENISTE, 1995
, p. 181)
Sueli Maria Coelho
68
Acredita
-se que a definição supracitada seja suficiente para ilustrar quão complexo é esse
fenômeno, que parece congregar aspectos até mesmo antagônicos. Contudo, se tal complexidade
escapa aos olhos de muitos, desperta também o interesse de vários, uma vez que, no campo da
lingüística histórica românica, a
auxiliarização
enamora muitos lingüistas, fato que lhe propic
ia
constituir
-
se o fito de inúmeros trabalhos.
Se, entre os lingüistas, esse fenômeno tem sido o desencadeador de densas e acuradas
reflexões, entre os gramáticos, contudo, ele o mereceu um tratamento tão exaustivo, a despeito
de ser mencionado em
quase
todas
, senão em todas, as gramáticas de Língua Portuguesa,
independente de terem sido editadas antes ou depois da uniformização e simplificação da
Nomenclatura Gramatical Brasileira (doravante NGB), ocorrida em 1958
28
. Além disso, não se
percebe, entre os autores desses compêndios, um consenso no que tange, principalmente, à
necessidade ou não de se distinguir entre locuções verbais e tempos compostos. Quando se opta
por distingui-los, também não se percebe uma identidade, tampouco uma densidade de
argument
ação. Enquanto alguns autores elegem a forma nominal que co-ocorre com o auxiliar
para constituir o critério determinante da classificação, considerando como tempo composto as
combinações com o particípio e, como locução verbal as combinações com o gerúndio e com o
infinitivo (cf. Brandão (1963) e Pereira (1909)), outros se apóiam no tipo de auxiliar para
proceder a semelhante classificação. Assim, uns consideram como tempo composto apenas as
seqüências constituídas de
ter
e
haver
+ particípio (cf. Epiphanio Dias (1959) e Júlio Ribeiro
(1885)); outros integram a esse rol também o verbo
ser (cf. Bechara (1966), Carlos Góes (1917) e
João Ribeiro (1926)); há também quem opte por excluir o verbo
ser
desse grupo, incluindo nele o
verbo
estar
(cf. Pereira (1909)). Gladstone Chaves de Melo (1968) recorre ainda a critérios
diferentes
o da conjugação e o da expressão do aspecto verbal:
28
A NBG consultada foi aquela disponível na obra de Kury (1967).
Sueli Maria Coelho
69
(...) os tempos compostos fazem parte da conjugação normal, têm cada qual seu nome
(...) dentro da conjugação, ao passo que as locuções verbais constituem cada uma sua
conjugação inteira e nascem das necessidades de expressão mais complexa, em que se
busca traduzir o “aspecto verbal”
.
(MELO, 1968, p. 166
-
167)
Como se vê, não entre os autores consultados uma identidade de opiniões no que se
refere a uma nomenclatura precisa para designar as formas verbais constituídas de verbo auxiliar
+ verbo principal. Em virtude não apenas dessa divergência de terminologia e de critérios para
justific
á-
la
, mas também por se acreditar que tal distinção não é relevante no sentido de não
contribuir para elucidar
as questões que congregam a
auxiliarização
, no presente estudo, optou
-
se
por empregar, indistintamente, o termo perífrase verbal ou forma perifrástica para se referir
tanto às locuções verbais quanto aos tempos compostos. Segundo Dubois (1997 [1973]), o termo
perífrase
era empregado, inicialmente, para denominar uma figura de retórica que consiste na
substituição de um termo único por uma seqüência de palavras que o parafraseia. Em virtude de
alguns
congregados de palavras prestarem-se a expressar, na língua, a mesma função que
determinadas classes, estendeu-se essa terminologia para os domínios morfológicos,
passando
-
se
a denominar a locução formada de verbo auxiliar + verbo principal de perífrase verbal.
Acredita
-
se
que a adoção dessa terminologia seja bastante pertinente, porque, além de evitar a confusão
terminológica que envolve os termos, a perífrase, conforme esclarece Dubois (1997 [1973]),
vincula
-se à sintaxe, enquanto a locução (verbal, adjetiva, nominal) vincula-se ao léxico.” (p.
464)
Além de não haver entre os autores dessas obras um acordo quanto ao uso da
terminologia, pode-se afirmar que o único ponto consensual que se identifica
é
cotejado
nas
entrelinhas das gramáticas e restringe-se ao fato de que parece haver entre eles um acordo tácito
Sueli Maria Coelho
70
no sentido de recorrerem a critérios semânticos para definir os verbos integrantes de uma
perífrase, conforme atest
am estas
palavras de Cunha (1990
[1972]
):
Quanto à função, o verbo pode ser principal ou auxiliar. Principal é o verbo de
significação plena, nuclear de uma oração. (...) Auxiliar é aquele que, desprovido total
ou parcialmente da acepção própria se junta a formas nominais de um verbo principal,
constituindo com elas locuções que apresentam matizes significativos particulares.
(CUNHA, 1990, p. 371)
Pontes (1973) adverte sobre as impropriedades desse tipo de classificação, argumentando
que
, se se admite o fato de que, numa perífrase, o auxiliar esvazia-se de seu significado em
detrimento das funções gramaticais que passa a desempenhar, cabendo-lhe a denominação de
verbo secundário, é, no mínimo, incoerente classificá-lo com base em um significado que se
reconheceu
não mais existir. Segundo ela, o critério preponderante para nortear a análise e a
classificação dos verbos de uma perífrase deve ser
seu
comportamento sint
ático
, pois “é muito
mais seguro analisar os verbos de acordo com seus acompanhantes na oração do que conforme
seu sentido”. (PONTES, 1973, p. 39) A autora reitera ainda sua preferência em favor do critério
formal
, ao afirmar que o estudo das formas perifrásticas toca num “problema claramente
sintático, pois além de implicar em grupos de palavras, envolve ‘o valor funcional das palavras na
oração’ e ‘relações de dependência das palavras’ e até de orações, quando se relaciona com
orações reduzidas.” (
i
bidem
, p. 41)
Perini (1989) também não considera o critério semântico eleito pelos gramáticos
adequado para o tratamento do
auxiliar
e sugere a combinação de critérios morfológicos em
virtude de sua flexão ser tipicamente verbal e de critérios sintáticos, considerando-se o fato de
os auxiliares desempenharem a função de núcleo do predicado. O autor referenciado elucida que,
embora a gramática tradicional defina o termo “núcleo do predicado” de uma forma semântica,
Sueli Maria Coelho
71
da forma como ele o concebe, trata-se de uma definição apenas sintática, uma vez que “o verbo
desempenha na oração uma função única à qual (...) [se dá] o rótulo tradicional de ‘núcleo do
predicado’”
(PER
INI, 1989, P. 72). Na co
mpreensão
desse autor, apenas o verbo pode exercer a
função de núcleo do predicado. Como se percebe, seu postulado afasta-se da concepção
tradicional, que considera a possibilidade de um adjetivo vir a ser núcleo do predicado quando
ocorre com verbo de ligação (predicado nominal) ou com verbo nocional (predicado
verbo
-
nominal).
Perini (op. cit.) defende ainda que “os auxiliares são verbos, segundo a maioria dos
pontos de vista, mas pertencem a uma subclasse especial, submetida a regras sintáticas
parcialmente distintas daquelas que regem o comportamento dos demais verbos.” (p. 237)
Outro critério que também costuma ser evocado para o tratamento da
auxiliarização
aproxima
-se bastante daquele proposto pelos gramáticos, mas avança em algum aspecto porque
considera questões diacrônicas imbricadas no processo. Trata-se do critério da evolução
semântica que se baseia, segundo Câmara Jr. (1964), no fenômeno da gramaticalização. Para
ess
e lingüista, a gramaticalização seria o fator primordial na distinção entre uma simples
seqüência de verbos e uma forma verbal
perifrástica:
AUXILIAR
Diz-se de qualquer vocábulo de significação gramatical (...), que forma
locução com um vocábulo de significação externa para situá-lo numa dada categoria
gra
matical, ou numa dada relação sintática; portanto, qualquer vocábulo que é morfema
categó
rico ou relacional (...). Muitas vezes trata-se de um vocábulo de significação
externa que sofreu gramaticalização (...) em todos ou alguns de seus empregos.
(CÂMARA J
R., 1964, p. 91)
Se as divergências no tocante ao critério para explicar o fenômeno da
auxiliarização
e
também para decidir sobre a (ir)relevância de se distinguir quanto à possibilidade de haver dois
tipos de perífrases verbais tempos compostos e locuções verbais são palpáveis, também no
que se refere a nomear os termos de uma perífrase e a definir suas funções elas se manifestam.
Sueli Maria Coelho
72
Mais uma vez, nota-se, entre os gramáticos, a adoção de uma nomenclatura comum:
verbo
auxiliar
e verbo principal. Contudo, entre os lingüistas, apesar de bastante recorrente, o emprego
de tal nomenclatura não é unânime. Benveniste (1995 [1966]), ao estudar esse fenômeno
lingüístico no Francês, optou por empregar a terminologia
forma auxiliante
e
forma auxiliada
, ou
mais suci
ntamente,
auxiliante
e
auxiliado
. Infere-se, pela nomenclatura adotada, a opção do
lingüista pelo critério sintático da subordinação entre as formas constituintes da perífrase. De
acordo com o autor, a “junção produz uma forma verbal de estrutura binômica (...), de ordem
invariável, cujos elementos podem ser dissociados por uma inserção.” (BENVENISTE, 1995, p.
183)
Essa assertiva de Benveniste (op. cit.
)
evoca uma reflexão, que a permissividade de
inserção de material lingüístico entre a forma
auxiliante
e a
auxiliad
a abre um precedente contra
o princípio da coesão da perífrase proposto pelos teóricos da gramaticalização. A ocorrência de
material interveniente entre os constituintes da perífrase pode indicar que a coesão entre os
elementos ainda não se consolidou o suficiente e que, portanto, o processo de gramaticalizaç
ão
ainda está instaurado.
Para o lingüista em foco, o engendramento do fenômeno da
auxiliarização
– ou da
auxiliação
, para adotar a terminologia do autor – nem sempre recebeu a devida atenção por parte
dos
estudiosos da língua. Na década de setenta,
Benveniste
enumera apenas dois estudos
consagrados a esse respeito: um datado de 1938 e outro empreendido em 1959. Guillaume
(1938), citado por Benveniste (1995 [1966]), dedicou-se a estudar a propriedade que torna os
auxiliares, entre todos os verbos, habilitados para desempenhar essa função. Segundo esse
estudioso, a seleção é determinada pelo mecanismo da
subductividade
, que os faz preexistirem
idealmente aos outros verbos.” (GUILLAUME, 1938,
apud
BENVENISTE, 1995
, p. 181)
Sueli Maria Coelho
73
Para ele, “os verbos auxiliares são verbos cuja gênese material interrompida por uma
conclusão mais rápida da gênese formal, fica em suspenso, não se completa e pede,
conseqüentemente, um complemento de matéria que estando encerrada a ontogênese
da palavra pode vir do exterior: de uma outra palavra.” (BENVENISTE, 1995
[1966]
, p. 182)
Também Tesnière (1959, apud BENVENISTE, 1974) dedicou-se a um estudo
pormenorizado dos tempos compostos. Na percepção de Benveniste,
excetuando
-se as
especificidades de terminologia, o estudo mostra-se muito próximo daquele apresentado por
Guillaume (1938). O escopo de Tesnière era postular um princípio geral regulador da formação
dos tempos compostos. Eis a sua lei, citada por Benveniste (1995 [1966], p. 182): “No momento
do desdobramento de um tempo simples em tempo composto, as características gramaticais são
expressas no auxiliar, e a raiz verbal no auxiliado.” Percebe-se no princípio postulado por
Tesnière o delineamento das funções dos termos constituintes das perífrases verbais: o auxiliar
carrega o morfema e o auxiliado (ou principal) carrega o semantema. Pode-se afirmar que a
maioria dos gramáticos de Língua Portuguesa partilha das postulações propostas por Tesnière no
que se refere ao papel dos verbos integrantes de uma perífrase verbal, conforme demonstram
estas palavras de Pontes (1973):
(...) a gramática tradicional prima em definir o auxiliar de um ponto de vista semântico
(...) o auxiliar é definido como um verbo semanticamente secundário, que apenas
auxilia o verbo principal. Sua função é tipicamente gramatical: a de carregar os
morfemas de pessoa-número e tempo
29
. O verbo principal é que conserva seu sentido
pleno. Acredita-se que o verbo principal tem um sentido léxico, enquanto o auxiliar
exerce a função gramatical. (PONTES, 1973, p. 63)
Benveniste (1995 [1966]), contudo, questiona essa consagrada e tradicional teoria
ponderando que, ao se agregarem os
auxiliantes
e
auxiliados
, ocorre na perífrase uma verdadeira
mutação
em termos aspectuais e temporais. Segundo ele, “como essa mutação é concebível se,
29
Reitera
-
se aqui a já mencionada desatenção que a maioria dos gramáticos dispensa à categoria verbal de aspec
to.
Sueli Maria Coelho
74
conforme se ensina, todas as funções morfológicas estão concentradas unicamente no auxiliante?
Por que magia a proximidade do auxiliado, se ele é apenas semantema, transforma o presente em
perfeito?” (BENVENISTE, 1995, p. 187) O autor em tela defende a tese de que o auxiliado não
contribui, de forma alguma, apenas com a carga semântica; “ele é também portador de uma parte
da fu
nção gramatical.
” (
i
bidem,
p. 188) E conclui:
parece, portanto, que o auxiliado deve ser reconhecido como bifuncional. Além de sua
função paradigmática, de assegurar a ligação semântica com o verbo, ele preenche uma
função sintagmática complementar à do auxiliante. Auxiliado e auxiliante são
mutuamente
adjuvantes n
esse processo. (BENVENISTE, 1995
, p. 188)
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De a
cordo
ainda
com
Benveniste (1995 [1966]), a forma verbal engendrada pelo processo
de
auxiliarização
se opõe à forma verbal simples, porque enquanto esta é não auxiliada e,
portanto, não marcada, aquela é a forma marcada. Assim, considerando-se o processo de criação
das formas verbais, pode
-
se dizer que, estruturalmente, existem dois tipos de formas verbais:
(a)
forma simples ou auxiliante [
-
marcada]
(b)
forma perifrást
ica ou auxiliada [+ marcada]
Ao estudar o fenômeno da
auxiliarização
na Língua Francesa, o autor detectou que
três formas distintas de se marcar a forma auxiliada, o que acarreta três classes de
auxiliarização,
as quais serão detalhadas na subseção ult
erio
r. Em Língua Portuguesa, encontram-
se
referências
anteriores ao trabalho de Benveniste para o
tema. Said Ali (1966 [1908])
, ao tratar do emprego do
Sueli Maria Coelho
75
infinitivo,
empregava a terminologia de auxiliares modais e Cláudio Brandão (1963), ao
discorrer sobre os verbos auxiliares, já mencionava dois tipos distintos de
auxiliarização
:
a
temporal e a de passividade.
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E
É o processo de
auxiliarização
que se constrói mediante a fusão da forma auxiliar com o
particípio passa
do e que tem por função formar os tempos verbais do perfeito. São, na verdade, as
perífrases que as gramáticas normativas denominam de tempos compostos. Denomina-
se
auxiliarização
de temporalidade porque, ao se fundir com o auxiliado, o auxiliante passa a
expressar um novo tempo, diferente daquele que, na condição de forma simples, ele expressava.
A análise do
s exemplos (7
) e (
8), a seguir, favorecerá o
entendimento do raciocínio proposto.
(7
) Os alunos secundaristas
têm
provas toda semana.
(8
) Os alunos
secundaristas
têm feito
provas toda semana.
Em (7), a forma verbal simples indica um tempo: o presente. em (8), ao se tornar
auxiliante do particípio, ela se funde com ele, constituindo uma forma perifrástica e, como tal,
passa a indicar um outro tempo
: o pretér
ito perfeito, que, em Português, contrariamente ao que se
verifica no Francês, não equivale semanticamente ao pretérito perfeito
simples.
Benveniste (1995
[1966
]) defende que esse processo de mutação funcional do presente em auxiliante do pretéri
to
perfeito é possível por meio do fenômeno da
auxiliarização
. Segundo ele, apenas a junção
sintagmática das duas formas é capaz de operar essa mutação de tempo, o que constitui mais um
Sueli Maria Coelho
76
argumento em favor do estatuto sintático das perífrases verbais.
“D
eve
-se admitir, então, que o
auxiliado (...) não é somente semantema; ele é também portador de uma parte da função
gramatical. Pois, afinal, o papel de semantema no sintagma não exigiria a forma específica do
parti
cípio passado.” (BENVENISTE, 1995 [1966], p. 188) É embasado nesse argumento que o
autor defende o caráter bifuncional do auxiliado, alegando que ele opera tanto no plano
paradigmático (coesão da perífrase) quanto no sintagmático (complemento do auxiliar), e propõe
uma distinção funcional entre os integrantes de uma perífrase: (a) a função própria de cada um
deles e (b) a função do conjunto.
O auxiliante (...) tem de próprio a
função de flexão
: ele traz, de algum modo, as
desinências e indica a pessoa, o número, o modo, a voz.
O auxiliado (particípio passado) tem de próprio a
função
de denotação: ele
identifica lexicalmente o verbo do qual ele traz, de algum modo, o radical.
Mas somente a soma do auxiliante e do auxiliado, associando o
sentido
específico do auxiliante à forma específica do
auxiliado
assegura a função de
temporalidade
e produz o valo
r de perfeito. (BENVENISTE, 1995 [1966]
, p. 188)
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Trata
-se sob o nome de
auxiliarização
de diátese aquela utilizada para formar a voz
passiva. No Português, corresponderia, estruturalmente, às seqüência
s
ser
+ particípio e estar +
particípio, cuja função não é, como no caso anterior, expressar um outro tempo verbal, mas
demarcar uma ação sofrida pelo sujeito. A despeito de haver, no Português, possibilidade de
se
expre
ssar a passividade do sujeito por meio de estruturas sintéticas
Descrevem
-se os fatos
lingüísticos em inúmeros trabalhos, por exem
plo
–, a preferência do falante parece ser pela
Sueli Maria Coelho
77
passiva analítica, recorrendo-se, para isso, ao recurso da
auxiliarização
. Funcionalmente, pode-
se
mesmo afirmar que o falante, pelo menos no estágio atual da língua, não identifica o valor
passivo das estruturas sintéticas, reanalisando o sintagma nominal posposto ao verbo como
seu
argumento interno e não efetuando a concordância
prescrita pela gramática.
O recurso da
auxiliarização
para expressar a passividade pode ser empregado, na Língua
Portuguesa, tanto em se tratando de formas verbais simples, como em se tratando de formas
compostas, con
forme ilustram os exemplos de (
9) a
(12
), a seguir:
(9
) Quando eu
vender
o carro, pagarei a dívida.
(10
) Quando o carro
for vendido
, a dívida
será paga.
(11
) Quando eu
tiver vendido
o carro,
poderei pagar
a dívida.
(12
) Quando o carro
tiver sido vendido
, a dívida
poderá ser paga.
A análise dos exemplos acima permite a identificação de um interessante aspecto
estrutural da
auxiliarização
de diátese em tempos compostos: assim como ocorre nas formas
simples,
salvo raras exceções que permitem ao auxiliar se pospor ao verbo principal (Quando o
carro
vendido for
, por exemplo)
,
também nas formas
compostas, o auxiliar de diátese
mantém um
lugar fixo na perífrase: antepõe-se à forma auxiliada de particípio. Partindo-se do pressuposto de
que, numa perífrase, as formas possuem uma ordem invariável, a fixidez da posição do auxiliar
ser
nas perífrases passivas compostas comprova o aspecto funcional da segunda
auxiliarização
.
Esse recurso de se sobrepor uma
auxiliarização
a outra é o que Benveniste (1995 [1966])
denominou, no Francês, de
auxiliarização
de
segundo grau ou
sobreauxiliação
.
Há ainda de se realçar um outro aspecto peculiar da
auxiliarização
de diátese: enquanto na
auxiliarização
de temporalidade, a forma auxiliante é de natureza variável e a auxiliada é
invariável, em se tratando da
auxilia
rização
de diátese, tanto o auxiliante quanto o auxiliado são
variáveis, já que ambos experimentam a flexão. Acredita-
se que isso se deva ao caráter relacional
Sueli Maria Coelho
78
dos verbos empregados
como auxiliares. Said Ali (2001
[1921]
) explica que os verbos relacionais
apagam ou modificam sua acepção própria ao se combinarem com um termo originariamente
apêndice
com o qual partilham ou ao qual delegam a predicação. Em se tratando da combinação
de verbos relacionais com o particípio, este se torna o
apêndice
predicativo, passando a exprimir,
em virtude de sua natureza genuinamente verbal, não uma qualidade, mas o resultado de uma
ação. As marcas de concordância que recebe devem-se à função predicativa que passa a assumir,
dividindo com o auxiliar a predicação.
Entre os au
xiliares
ser
e
estar
empregados para se construir a
auxiliarização
de diátese, a
despeito da identidade estrutural, verifica-se uma variação na forma de se referir à passividade
que, segundo Mattos e Silva (
2001
[1994]), radica-se em questões de cunho diacrônico já
delimitadas nas formas simples:
ser
exprime estados permanentes, enquanto estar
associa
-se a
estados transitórios. Ao empregar o verbo
ser
nas formas perifrásticas, imprime-se ao enunciado
uma passividade de ação, enquanto a opção pelo verbo
esta
r
denota uma passividade de estado.
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Como já pontuado anteriormente, Said Ali (1966 [1908]) já menciona esse tipo de
auxiliarização
, ao discorrer sobre o infinitivo pessoal, apoiando-se, segundo ele, em gramáticos
n
otáveis”, conforme demonstra o excerto transcrito a seguir:
Quando dizemos que o infinitivo ocorre, no discurso, unido a certos verbos sem
existência própria, acodem logo à nossa mente os verbos classificados por gramáticos
Sueli Maria Coelho
79
notáveis (WHITNEY, VERNALECKEN e outros) como auxiliares modais. Exercem
essa função em português os verbos poder, saber (significando “ter aptidão”, cf. inglês
can
),
dever, haver de, ter de, querer. Compêndios nossos são obscuros sôbre a matéria,
mas é bom lembrar que, quando um verbo, como os auxiliares modais, rege
habitualmente outro verbo (*), não devemos identificá-lo com os chamados transitivos,
que se constroem com substantivos ou pronomes. (SAID ALI, 1966, p. 63)
Percebe
-
se
, pelas palavras de Said Ali, a consciência a respeito da escassez de estudos
acerca do tema em nossas gramáticas. Por não constituir o objeto de sua atenção, o tema foi
apenas ventilado em sua obra, limitando-se a elencar os verbos que, no português, prestam-se a
essa função. Outro aspecto que pode ser inferido da explanação de Said Ali é de cunho formal e
restringe
-
se a
o fato de
tais verbos combina
re
m-
se sempre com o infinitivo.
Benveniste (1995 [1966]), que se propôs a empreender um estudo mais acurado sobre a
auxiliarização
tomando por parâmetro a Língua Francesa, explica que, “diferentemente da
temporalidade e da diátese, a modalidade não faz parte das categorias necessárias e constitutivas
do paradigma verbal. Ela é compatível tanto com a temporalidade como com a diátese em todas
as formas verbais.” (p. 193) Do ponto de vista estrutural, como ventilado por Said Ali (1966
[1908]), ela apresenta ainda uma restrição, que seleciona como auxiliado uma forma infinitiva
do verbo: “todo verbo que assume a função modalizante assume ao mesmo tempo um infinit
ivo
auxiliado.” (op. cit., p. 196) Assim, estruturalmente, ela é constituída de auxiliar flexionado +
(preposição) + infinitivo, conforme exemplos apresentados em (13
) e em
(14
):
(13
) Eles
hão de encontrar
o caminho de volta antes do anoitecer
.
(14
) Eles
têm de encontrar
o caminho de volta antes do anoitecer
.
Hopper e Traugott (1993), ao estudarem os auxiliares modais em Inglês, também
identificaram o mesmo contexto de ocorrência dos modais reconhecidos por Said Ali (1966
[1908]) e por Benveniste (1995 [1966]), qual seja, a construção perifrástica que expressa a
Sueli Maria Coelho
80
modalidade compõe-se de um verbo principal e de um complemento infinitivo. Hopper e
Traugott (op. cit.) atribuem a expressão perifrástica da
modalidade
a um processo de rean
álise
sintática e
se
mântica
. Segundo eles, o que ocorre é que um subconjunto de verbos principais são
reanalisados, a partir de um raciocínio abdutivo, como uma categoria separada: os modais.
Assim,
em alguns contextos, os processos abdutivos podem induzir o falante a interpretar um
conjunto de dados não como representando duas orações subjacentes, mas como apenas uma
estrutura superficial, co
mo
se fossem formas adjacentes. A partir do momento em que essa
reanálise ocorre, outras mudanças tornam-se possíveis, incluindo-se a fusão de morfemas, a
redução da carga sonora do item e a reanálise semântica, responsável pela mudança funcional do
item.
Adotando
-
se semelhante raciocínio para a L
íngua Portuguesa, pode
-
se associar
o que ocorre
com os exemplos (13) e (14) acima a uma reanálise semântica. Em (13), percebe-se o desejo do
enunciador de que seu enunciado se efetive
. Em (14
), o que se verifica é
o
tom de obrigatoriedade
que o enunciador impinge ao produto de sua enunciação. De acordo com o raciocínio proposto
por Hopper e Traugott (1993), o falante pode ter reanalisado a possibilidade expressa em (13)
c
omo uma obrigação, tamanho é o desejo de que ela se ef
etive, passando a interpretar construções
como aquela apresentada em (14) não mais como possíveis ou prováveis, mas como necess
árias.
Tratam
-se, pois, de modos diferenciados de o enunciador posicionar-
se
frente ao seu enunciado.
É exatamente esse modo de o enunciador julgar a ação expressa pelo verbo como necessária,
obrigatória, possível ou provável que, em Lingüística, recebe o nome de modalidade. Segundo
Benveniste (1995 [1966]), enquanto categoria lógica, a modalidade compreende três formas de
expressão: (1) a possibilidade, (2) a impossibilidade e (3) e a necessidade. Já, enquanto categoria
lingüística, esses “modos se reduzem a dois, pelo fato de que a impossibilidade não tem
expressão distinta, e se exprime pela negação da possibilidade.” (
op. cit.
, p. 192)
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81
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Benveniste (1995 [1966]) postula a existência de três princípios gerais que regem a
estrutura formal da
auxiliarização
, quais sejam: (1) princípio da não-reflexividade da função
auxiliante
, (2)
princípio da não
-
admissibilidade da
auxiliarização
de diátese pelo auxiliante
e (3)
princípio da não
-
reversibilidade da relação auxiliante/auxi
liado.
Segundo prevê o primeiro princípio, nenhum auxiliante pode se auxiliar. Isso explica o
fato de construções como (*) “foi sido”, (*) “estava estando”, (*) “há havido”, por exemplo, não
produzirem estruturas gramaticais na língua. Contudo, alguns contra-exemplos no Português e
estes não se restringem à
auxiliarização
de modalidade, como já previra Benveniste para o
Francês, embora pareçam ser mais abundantes nesta classe. A construção
te
m tido, por exemplo,
é não apenas aceitável como também bastante produtiva na língua, conforme ilustram os
exemplos (15) e (16) seguintes
:
(15
) Ela não
tem tido
tempo de se dedicar à educação dos filhos como gostaria.
(1
6) Muitos jovens não têm tido oportunidade de cursar uma graduação, porque não
podem arcar com os custos de uma instituição particular e não conseguem ingressar em uma
instituição pública.
Também em situações de informalidade ou mesmo na fala infantil é comum ouvirem-
se
const
ruções como a apresentada em (1
7
):
(1
7
) Eu já
vou indo
porque ainda estou c
heia de coisas para fazer.
No que tange à expressão da modalidade, os contra-exemplos, como no Francês, também
existem:
Sueli Maria Coelho
82
(18
) Eu
hei de haver
aquele prêmio
30
.
(19
) Vocês
têm de ter
mais responsabilidade.
Parece, portanto, que, na Língua Portuguesa, esse princípio é menos rígido que na Língua
Francesa, o que pode constituir campo de estudo para pesquisas futuras.
De acordo com o segundo princípio, nenhum auxiliante pode ser transposto para a
passiva. Isso, de certa forma, já foi demonstrado e corroborado
qua
ndo da análise dos enunciados
(11) e (12
), aqui repetidos apenas por comodidade para o leitor:
(11
) Quando eu
tiver vendido
o carro,
poderei pagar
a dívida.
(12
) Quando o carro
tiver sido vendido
, a dívida
poderá ser paga.
O fato de o auxiliante de diátese se interpor, nas formas perifrásticas, entre o auxiliante e
o auxiliado demonstra ser
o auxiliado que foi transposto para a passiva e não o auxiliante. Assim,
comprova
-
se o princípio de que um auxiliante não pode ser apassivado.
Segundo o terceiro princípio, “um auxiliante torna-se o auxiliado de um sobreauxiliante,
jamais o inverso.” (BENVENISTE, 1989, p. 198) Esse princípio é mais bem identificado
diacronicamente, embora possa também ser percebido na sincronia, dado que, como
mencionado por Hopper e Traugott (1993), verifica-se na língua uma tendência para a criação de
novas formas perifrásticas. Os enunciados apresentados em (20) e em (21) se propõem a ilustrar
esse princípio sincronicamente:
(20)
Quando a pesquisa for concluída, seus resultados poderão elucidar várias questões
controversas.
(21) Quando a pesquisa tiver sido concluída, seus resultados poderão elucidar várias
questões controversas.
30
Apesar de não ser muito produtiva na língua, essa perífrase é, às vezes, empregada para expressar um grande
desejo de que algo se realize.
Sueli Maria Coelho
83
Ao se apassivar uma forma perifrástica, o que se verifica é que o verbo outrora auxiliar,
embora mantenha o mesmo estatuto na nova perífrase, assume características formai
s
próprias do
verbo auxiliar, isto
é, pospõe
-
se ao novo auxiliar, passando
a ser flexionado no particípio, como o
verbo principal. É por isso que se diz que o auxiliante pode tornar-se o auxiliado de um outro
auxiliante
, mas jamais o contrário. Tal princípio endossa também a teoria defendida na literatura
clássica
acerca do fenômeno da gramaticalização de que este é um processo gradual e contínuo e
que, uma vez iniciado, não retrocede, nã
o podendo,
pois, haver desgramaticalização.
-
se, dessa
forma
, que não é permitido a um verbo auxiliar abdicar-se de sua função, tornando-se novamente
um verbo pleno.
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As categorias podem ser expressas, basicamente, por meio de dois mecanismos
lingüísticos: um morfológico e outro sintático. Os mecanismos morfológicos são os morfemas
flexionais empregados nas formas simples para precisar o tempo, o modo, o número e a pessoa
dos verbos. Já os mecanismos sintáticos são as formas perifrásticas que denotam, além do tempo,
do modo, do mero e da pessoa, a voz e o aspecto do verbo, embora este também possa ser
identificado semanticamente em formas simples. O fato é que não existe, na Língua Portuguesa,
um morfema de voz, tampouco de aspecto, o que faz com que tanto a flexão de voz quanto a
categoria de aspecto sejam identificadas por meio de mecanismos sintáticos e ou semânticos. Na
presente seção, discutir-
se
-ão as flexões verbais e a categoria que é originária do fe
nômeno
Sueli Maria Coelho
84
sintático da
auxiliarização
. Nesse sentido, não serão descritas as questões atinentes às formas
simples do verbo, mas tão somente aquelas relacionadas às perífrases verbais. Portanto, aquelas
que se manifestam sintaticamente.
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Nas palavras de Câmara Jr. (1998 [1970]), “a complexidade para a interpretação do
morfema flexional, propriamente verbal, em português, decorre, em primeiro lugar, da
cumulação, que nele se faz, das noções de tempo e de modo, além da noção suplementar de
aspecto que às vezes se inclui naquela primeira.” (CÂMARA JR., 1998, p. 98) Essa cumulação
que se verifica nos morfemas empregados para as formas simples também se estende
analogicamente às formas perifrásticas. Contudo, em se tratando da flexão modo-temporal, a
identificação é feita não a partir de um morfema, mas por meio de um mecanismo sintático, já
que ela se manifesta é na relação sintagmática entre auxiliante e auxiliado. Dessa feita, não
como dissociar o tempo e o modo verbais. De acordo com Câmara Jr. (op. cit.), “aquele se refere
ao momento da ocorrência do processo, visto do momento da comunicação. Este a um
julgamento implícito do falante a respeito da natureza, subjetiva ou não, da comunicação que
faz.” (p. 98) Assim, se o falante sinaliza seu posicionamento subjetivo em relação ao processo
verbal que comunica, têm-se os modos subjuntivo ou imperativo. Este se distingue daquele não
em virtude do maior ou menor teor de subjetividade, ou em virtude de nuanças semânticas como
alardei
am várias obras de natureza gramatical, mas em decorrência de questões estruturais, uma
Sueli Maria Coelho
85
vez que, conforme explica Câmara Jr., o subjuntivo tem a característica sintática de ser uma
forma verbal dependente de uma palavra que o domina, seja o advérbio
talve
z, preposto, seja um
verbo de oração principal.” (CÂMARA JR., 1998, p. 99) “o imperativo tem a sinalização
subjetiva, mas não a subordinação sintática.” (
ibidem
, p. 99) Pode-se dizer, então, que o
imperativo não é, senão, “um subjuntivo sem o elo da subordinação sintática” (CÂMARA JR.,
1998, p. 102), fato que muitas vezes desencadeia uma confusão formal entre esses dois modos.
Se, contrariamente aos dois modos apresentados, o falante não sinaliza seu posicionamento
subjetivo frente ao processo
embora
o fato de não estar marcado não assegu
re
a sua
inexistência
, está
-se diante do modo indicativo.
A noção gramatical de tempo que, como já mencionado, não se dissocia da noção
gramatical de modo, desdobra-se tanto no indicativo quanto no subjuntivo, embora apresente
especificidades de manifestações em cada um deles. Conforme demonstrou Benveniste (1995
[1966])
, a forma auxiliante, ao se combinar com a forma auxiliada, cria um outro tempo verbal
diferente daquele que expressava enquanto forma simples. Assim, a junção das formas
auxiliantes com as formas auxiliadas originou quatro tempos compostos para o modo indicativo e
três para o modo subjuntivo, os quais serão sucintamente descritos a seguir:
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Estruturalmente, é constituído da forma auxiliar flexionada no presente do indicativo e da
forma principal (ou auxiliada) no particípio passado:
tenho vendido,
têm estudado
, por exemplo.
Semanticamente
,
aspecto que será mais bem detalhado posteriormente, é empregado,
segundo Bechara (1999), para expressar a repetição (cf. enunciado (22)) ou o prolongamento de
um fato até o momento em que se fala (cf. enunciado (23)). Pode ainda denotar um fato habitual
(cf. enunciado (24
)) o
u m
esmo consumado (cf. enunciado (25
)):
(22
) Eu
tenho ido
à natação todas as terças e quintas.
(23
) Aqueles bolsistas não
têm demonstrado
interesse em continuar o trabalho.
(24
) As crianças
têm ido
à escola sozinhas.
(25
) “
Tenho dito
. (no fim dos dis
c
ursos)” (BECHARA, 1999, p. 278)
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É constituído da combinação do verbo auxiliar flexionado no pretérito imperfeito e do
verbo principal também no particípio passado,
conforme ilustra o enunciado (26
):
(26
)
Quando a polícia chegou, os bandidos já
haviam fugido
.
Sueli Maria Coelho
87
De acordo com Said Ali (2001 [1921]), o pretérito imperfeito, em virtude de seu aspecto
perfectivo, exibe uma significação muito próxima daquela expressa pelo pretérito-
mais
-
que
-
perfeito, fato que lh
e
permitiu substituí-lo, sobretudo na linguagem informal, se
gundo
demonstram os exemplos (27
) e
(2
8
), apresentados a seguir:
(2
7
) Quando chegamos à festa, ele já
tinha saído
.
(28
) Quando chegamos à festa, ele já
saíra
.
Provavelmente, nenhum falante do português contemporâneo titubearia em escolher o
enunciado (27) em detrimento do (28), no mesmo contexto. A maioria dos usuários da língua
contemporânea sequer conhece o fato de que uma forma pode ser empregada pela outra, que,
em termos semânticos, tanto a forma simples quanto a composta expressam uma ão anterior à
outra também passada. Assim, tanto no enuncia
do (27
) quanto no (2
8
), a ação de “sair” é anterior
à ação de “chegar”, também passada em relação ao momento da enunciação.
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Formado da junção do auxiliar flexionado no futuro do presente e do auxiliante no
particípio passado, o futuro do presente composto expressa uma ação anterior ao marco temporal
futuro
, conforme se percebe em (29), em que a ação de
ter
minar
é anterior em relação à
ão
de
chegar
:
(29
) Quando ela chegar, eu terei terminado todo o trabalho. não haverá mais o que
fazer.
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Assim como o futuro do presente, também o futuro do pretérito composto é empregado
para se referir a uma ação o realizada, mas concebida com certas restrições. Se, em se tratando
do futuro do presente, percebe-se um posicionamento confiante e otimista do enunciador no que
se refere à efetivação da ação verbal, em se tratando do futuro do pretérito, tal confiança não se
instaura. A perífrase constituída do auxiliar flexionado no futuro do pretérito + o particípio
passado do verbo principal é empregada para expressar uma modesta asseveração em relação ao
passad
o, conforme i
lustra o exemplo (30
), a seguir:
(30
) Nós o
teríamos ajudado
, se soubéssemos que estava em dificuldade.
Do ponto de vista das informações implícitas, o uso do futuro do pretérito denota que a
ação sobre a qual se enuncia não foi realizada. A leitura de (30) faz pressupor que o enunciador
desconhecia as dificuldades por que passava o sujeito objeto de sua enunciação e também que ele
(o enunciador) não o ajudou em suas necessidades.
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Forma
-se mediante a combinação sintagmática da forma auxiliante flexionada no presente
do subjuntivo com a forma auxiliada no particípio passado:
(31
) Espero que eles
tenham concluído
a tarefa que lhes pedi.
Além do aspecto estrutural já mencionado, cumpre acrescentar que tal tempo, como
explicou
Câmara Jr. (
1998
[1970]), ocorre sempre combinado com orações subordinadas cujo
fato expresso é concebido como incerto, duvidoso ou mesmo de realização impossível.
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Do ponto de vista estrutural, compõe-se da junção de uma forma auxiliar flexionada no
pretérito imperfeito do subjuntivo com uma forma principal flexionada no particípio passado,
como em (32
):
(32
) Se ele tivesse vendido o carro, como lhe sugeri, provavelmente, teria saldado a
dívida.
Sueli Maria Coelho
90
Assim como salientado para o pretérito perfeito composto, verifica-se também uma
correlação desse tempo com uma oração subordinada, fato recorrente em todos os tempos
compostos do modo subjuntivo, já que esse tempo subordina-se sintaticamente ao verbo da
oração principal, o chamado consentio temporum, da gramática latina (cf. Vitral (1987)). Outro
aspecto comum aos tempos desse modo é o fato de expressarem sempre ações prováveis cuja
realização també
m se subordina às ações explicitadas na oração principal.
Pode-se afirmar ainda que tal tempo constitui uma marca lingüística de pressuposição,
que, ao admitir que se tivesse vendido o carro, haveria uma chance de saldar a dívida,
o
enunciador instaur
a o pressuposto de que não o vendeu.
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O último tempo composto do modo subjuntivo é constituído da combinação do futuro do
subjuntivo com o particípio passado do verbo principal e expressa uma ação possível de se
realizar num tempo posterior ao momento da enunciação, conforme exemplifica o enunciado
(33
):
(33
) Quando eu
tiver concluído
o trabalho, eu lhe avisarei
.
Do ponto de vista das informações implícitas, pode-se inferir o propósito do enunciador
de que sua ação venha a s
e realizar.
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A despeito de a existência de morfemas flexionais de número e de pessoa nas formas
verbais constituir uma afirmação unânime entre os autores dos compêndios gramaticais de
Língua Portuguesa, no entender de Câmara Jr. (1998 [1970]), tais morfemas o são
propriamente verbais. Segundo esse estudioso, o morfema mero-pessoal “serve para assinalar,
apenas na forma verbal, a pessoa pronominal do sujeito, entendido como o ser de que parte o
processo verbal.” (p. 97) O autor argumenta que tais noções gramaticais radicam-se nos
pronomes e, portanto, não devem integrar o mecanismo flexional da língua, já que “são expressas
lexicalmente por mudança de vocábulo.” (CÂMARA JR., 1998, p. 85) Trata-
se, pois, na visão do
referido lingüista, de um mecanismo do léxico e não da gramática.
Os morfemas denominados número-pessoais nas formas verbais simples evocam, como
pontua Câmara Jr., um pronome que permite identificar se se trata do enunciador (1ª pessoa), do
enunciatário
(pessoa) ou do objeto da enunciação (3ª pessoa). Por extensão, a flexão da pessoa
gramatical permite, automaticamente, identificar o número
– singular ou plural –
do sujeito.
Além da especificidade pontuada por Câmara Jr. nas formas simples, em se tratando de
tempos compostos, a identificação do número e da pessoa também não se dá por meio de
mecanismos sintáticos, como ocorre com o tempo,
com
o número e
com
a voz verbais. A
manifestação dessas noções não é percebida na coesão da forma perifrástica, mas identificada tão
somente na desinência do auxiliar, conforme comprova a análise dos enunciados (34) e (35), a
seguir:
Sueli Maria Coelho
92
(34
) Os cães tinham procurado a onça pintada por dois dias, quando a encontraram
acuada perto dos filhotes famintos.
(35
) Todos
nós
estávamos procurando
o perigoso felino.
Tanto em (34), quanto em (35), é apenas na forma auxiliar que se manifesta a flexão de
número e de pessoa das formas perifrásticas. Assim, em (34), identifica-se a terceira pessoa do
plural pela desinência “-
m”
, da forma verbal “tinham”, e, em (35), a primeira pessoa do plural é
identificada pela desinência “-mos” da forma verbal “estávamos”. Vê-se, portanto, que o
expediente
a que o falante recorre para identificar tanto o número quanto a pessoa em que se
flexi
ona a perífrase é semelhante àquele aplicado para as formas simples. Tais exemplos
demonstram que, diferentemente do que ocorre com a identificação do tempo, por exemplo, que
se manifesta estruturalmente na combinação do auxiliante com o auxiliado, em se tratando da
flexão número-pessoal, a identificação é possível na forma auxiliante. É nesse fato que muitos
autores se apóiam para afirmar que o auxiliar carrega os morfemas flexionais da perífrase e que o
auxiliado carrega o semantema. Contudo, esse é um fato que se verifica no caso da flexão
número-pessoal, o que, de certa forma, caracteriza-o como esporádico, que em nenhuma outra
flexão pode ser verificado. Por esse motivo, não pode ser generalizado para a descrição do
auxiliar, pois configura uma
impropriedade de análise que não traduz a realidade da categoria.
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Como pontuado, não existe, em Língua Portuguesa, um morfema flexional para
expressar a voz, fato que a descaracteriza como um fenômeno morfológico. Ao descr
ever a classe
dos verbos no Português, Perini (1989) não o faz mencionando a flexão de voz, unanimemente
apresentada pelos demais estudiosos do tema. Segundo ele, “verbo é a palavra que pertence a um
lexema cujos membros se opõem quanto a número, pessoa e tempo.” (PERINI, 1989, p. 320) A
despeito de não explicitada, se antevê na descrição proposta pelo autor a consciência acerca do
fato de a flexão de voz não se manifestar morfologicamente, o que o exime de mencioná-la no
elenco de traços de identificaçã
o do lexema.
A observação dos critérios postulados por nossos gramáticos para se referir a essa flexão
induz à conclusão de que o tratamento dispensado a ela o é, de fato, morfológico, mas
semântico. Os enunciados de (36
) a (39
) propõem
-
se a exemplific
ar tal tratamento:
(36
) Os fortes temporais do final de semana destruíram muitas casas.
(37
) Muitas casas foram destruídas pelos fortes temporais do final de semana.
(38
) Destruíram
-
se muitas casas durante o
s
forte
s temporais
do final de semana.
(39
) A
lguns bombeiros se feriram durante a operação de salvamento das vítimas.
Segundo a maioria de nossos gramáticos, em
(36
), tem-se a voz ativa porque o fato
expresso pelo verbo é apresentado como praticado pelo sujeito; em (37) e em (38), tem-se a voz
passi
va, porque o fato expresso pelo verbo é apresentado como sofrido pelo sujeito; e, em (39
),
tem
-se a voz reflexiva porque o fato expresso pelo verbo é concomitantemente praticado e
sofrido pelo sujeito. Ao se deter à descrição estrutural de cada uma das três vozes verbais,
Sueli Maria Coelho
94
percebe
-se a intuição dos gramáticos de que essa flexão se manifesta por meio de mecanismos
sintáticos, principalmente em se tratando da voz passiva analítica. No presente estudo, defende
-
se
a tese de que a expressão das vozes verbais é um fenômeno que se processa no âmbito das
relações sintagmáticas, pertencendo, portanto, aos domínios da sintaxe. Nessa perspectiva, pode-
se assim caracterizar
estruturalmente as vozes verbais:
FIGURA
1:
Caracterização estrutural das vozes verbais
VOZ VERBA
L
ESTRUTURA
FORMAL
ESTRUTURA
LINGÜÍSTICA
ATIVA
Forma plena ou perifrástica do
verbo (excetuando
-
se as
perífrases constituídas de
verbo relacional + particípio
passado)
[-
marcada]
ANALÍTICA
Forma perifrástica (verbo
relacional + particí
pio passado)
[+ marcada]
PASSIVA
SINTÉTICA
Forma plena (verbo transitivo
direto) + SE
[+ marcada]
REFLEXIVA
Forma plena (verbo transitivo
direto) + pronome oblíquo de
pessoa igual à que o verbo se
refere
[+ marcada]
A análise do quadro acima evidencia uma distinção dicotômica entre a voz ativa [-
marcada]
e as demais vozes – [+ marcadas]. Essa distinção se deve ao fato de que, do ponto de
vista da relação sintagmática, a voz ativa, mostra-se neutra, que se manifesta prioritariamente
por meio de uma forma plena do verbo, podendo se manifestar também por meio de uma
Sueli Maria Coelho
95
perífrase, excetuando-se aquelas constituídas de verbo relacional + particípio passado, que, como
pontuado por Benveniste (1995 [1966]), destinam-se funcionalmente a expressar a passivid
ade.
Pode
-se dizer que, sintagmaticamente, verifica-se uma combinação da forma verbal com , o que
lhe rende o atributo de não-marcada. Do ponto de vista da relação sintagmática, todas as demais
vozes são marcadas: a voz passiva analítica é marcada pela
au
xiliarização
, a voz passiva sintética
é marcada pela combinação da forma plena com o pronome apassivador e a voz reflexiva é
marcada pela combinação da forma plena com o pronome reflexivo. Esse fato não será aqui
delongado por fugir ao escopo do presente estudo. Considerando-se o objeto aqui delimitado,
qual seja o da
auxiliarização
, interessa mais especificamente apenas a voz passiva analítica, que
se constrói exclusivamente por meio da relação sintagmática estabelecida entre auxiliante e
auxiliado.
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Como mencionado não raras vezes, nossas gramáticas tradicionais, salvo parcas
exceções, ao se proporem a estudar a classe dos verbos, não tratam da categoria de aspecto neles
manifesta. Quando o fazem, as referências podem ser agrupadas, conforme Travaglia (
1985
[1981]
), em dois tipos distintos: diretas e indiretas. As referências diretas são identificadas
quando o autor menciona explicitamente o termo, buscando conceituá-lo ou mesmo apresentar
um quadro aspectual capaz de de
screver as formas de expressão dessa categoria. Já as referências
indiretas são ditas descaracterizadas, pois não se manifestam explicitamente, podendo ser
Sueli Maria Coelho
96
inferidas a partir de descrições referentes ao emprego dos tempos e modos verbais ou mesmo
concernen
tes ao valor das formas verbais perifrásticas, mais especificamente quando se discute a
função dos verbos auxiliares.
Isso
ocorre porque, conforme admoesta Comrie (1976), “o aspecto tem sido apresentado
essencialmente em termos semânticos, com referência à estrutura interna da situação, sem
qualquer discussão sobre as expressões formais do aspecto
31
.”
(p. 6, tradução nossa) Para o
referido autor, verifica-se entre os estudiosos das línguas uma tendência a se combinar o aspecto
com outras categorias, mais especificamente com a categoria de tempo, o que não constitui uma
arbitrariedade e cuja opção será justificada adiante (c. subseção 2.3.4.1).
Adverte, contudo, que, a
despeito de haver uma proximidade entre as categorias de tempo e de aspecto, entre elas
t
ambém diferenças que tocam
em questões
formais
tênues.
Segundo o autor,
o aspecto não está desconectado do tempo, e o
leitor pode
,
por isso
,
ficar se perguntando
se isso não invalida a distinção persistente entre aspecto e tempo.
Entretanto,
apesar d
e
am
bos
, aspecto e tempo, ocuparem-se do tempo, eles se ocupam do tempo de formas
muito diferentes. (...) O aspecto não se ocupa em relatar o tempo da situação de uma
outra perspectiva temporal, mas antes com o círculo temporal interno de uma situação;
um pode
ria
exprimir a diferença como uma diferença entre tempo interno à situação
(aspecto) e tempo externo à situação (tempo)
32
. (p. 5, tradução nossa)
-se, pois, que a categoria de aspecto, por se prestar a funções diferenciadas daquela
temporal, não pode ser expressa pelos mesmos mecanismos. Se assim o fosse, não haveria entre
ambas qualquer diferença funcional. De acordo com Comrie (op. cit.), sendo o aspecto uma
categoria gramatical, assim como as demais
,
pode ser expresso
por meio de uma
morfologia
não
31
“aspect has been presented essentially in semantic terms, with reference to the internal structure of a situa
tion,
without any discussion of the formal expressions of aspect.”
(COMRIE, 1976, p. 6)
32
“aspect is not unconnected with time, and the reader may therefore wonder this does not vitiate the distinction
insisted on above between aspect and tense. However, although both aspect and tense are concerned with time, they
are concerned with time in very different ways. (…) Aspect is not concerned with relating the time of the situation to
any other time-point, but rather with the internal temporal constituency of the one situation; one could state the
difference as one between situation
-
internal time (aspect) and situation
-
external time (tense)
(COMRIE, 1976, p. 5)
Sueli Maria Coelho
97
f
lexional
33
(p. 9, tradução nossa) ou “pode também ser expresso por meio de uma perífrase
34
.”
(p. 9, tradução nossa) Cumpre, pois, ao lingüista investigar e detectar as marcas formais que
perm
item a sua expressão. No caso do presente estudo, a ênfase é nas formas perifrásticas de
expr
essão, que são engendradas
a partir do fenômeno da
auxiliarização
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A confusão geralmente observada entre as categorias de tempo e de aspecto decorre do
fato de ambas estarem relacionadas a uma noção mais abstrata de tempo, que não aquela
empregada para se referir à categoria verbal ou mesmo à flexão temporal. Tal abstração pode
constituir um indício de que a categoria aspectual resulta de uma gramaticalização da
categoria
temporal, já que no processo de gramaticalização os itens tramitam
num
continuum
, deslocando-
se
do [+ concreto] em direção ao [+ abstrato]. Considerando-se o fato de que a palavra
tempo
possui a propriedade de atualizar vários semas, sendo, portanto, polissêmica, convém explicitar
os sentidos que tal termo pode assumir no vocabulário lingüístico. Travaglia (1985 [1981]
),
apoiando
-se nas idéias disseminadas por Comrie (1976), propõe uma atualização triádica para o
termo:
1) Tempo 1 categoria verbal (correspondente às épocas: passado, presente, futuro).
(...)
2) Tempo 2 flexão temporal (...) flexões da conjugação verbal: pres. do ind., pret.
imp. do ind., fut. do pres., fut. do subj., etc. (...)
33
“may be expressed by means of the inflectional morphology” (
COMRIE, 1976,
p. 9)
34
“it may also be
expressed by means of a periphrasis” (COMRIE, 1976, p. 9)
Sueli Maria Coelho
98
3) Tempo 3 a idéia geral e abstrata de tempo sem consideração de sua indicação pelo
verbo ou qualquer outro elemento da frase.
(...)
(TRAVAGLIA, 1985, p. 51)
Tanto o aspecto quanto o tempo verbal são categorias que expressam o tempo em sua
terceira acepção. Travaglia (1985 [1981]), visando a uma maior clareza na referência às três
acepções supramencionadas, propõe referir-se à primeira, empregando o termo
tempo
; à segunda,
por meio da expressão tempos flexionais; e, à terceira, empregando todas as letras maiúsculas
(
TEMPO
), critério que também será adotado por este estudo. Comrie (1976) emprega o termo
tense
para se referir à primeira acepção e
time
para se referir à terceira.
Apesar de exibirem alguns pontos de intersecção, visto que ambas são categorias de
TEMPO, as categorias de tempo e de aspecto não são coincidentes, porque enquanto esta é uma
categoria dêitica, uma vez que situa a ação verbal em relação ao momento da enunciação, aquela
não o é, porque se refere metalingüisticamente à situação. De acordo com Comrie (1976), o
tempo é “um
TEMPO externo à situação” e o aspecto é “um TEMPO interno à situação” (cf.
citação do autor na p. 96). Expressam, portanto, perspectivas dicotômicas de se referir a uma
mesma categoria.
Delineados os domínios de cada uma das duas categorias, torna-se possível esbo
çar
algumas definições para aspecto. Comrie (1976) apresenta uma definição que se tornou clássica,
sendo subsidiária da maioria das demais definições cotejadas na literatura. Segundo ele, o aspecto
é uma categoria que se presta à expressão dos diversos mod
os
de se ver a constituição temporal
interna da situação, ou seja, sua duração. Travaglia (1985 [
1981
]) considera essa uma
definição limitada e alega que as noções arroladas como aspectuais demarcam, normalmente,
momentos pontuais da situação, podendo, portanto, ser tomadas de diferentes pontos de vista.
Para o autor, os dois blocos que são tradicionalmente empregados para descrever o aspecto, quais
sejam, concluído (perfectivo) e não-concluído (imperfectivo), são insuficientes para abranger
Sueli Maria Coelho
99
todas as possíveis fases de uma situação. Seus estudos identificaram três perspectivas de que a
situação pode ser descrita, as quais foram dispostas em três grupos: (a) desenvolvimento da
situação, (b)
completamento
da situação e (c) realização da situação. O primeiro grupo
compreend
e um subconjunto de três fases: início, meio e fim; o segundo compreende as duas
fases apontadas tradicionalmente para se referir ao aspecto: situação incompleta e situação
completa
; por fim, o terceiro grupo, assim como o primeiro, compreende três fases: situação por
iniciar, situação em curso e situação concluída. Eis a definição de aspecto proposta por esse
autor:
Aspecto
é uma categoria verbal de TEMPO, não dêitica, através da qual se marca a
duração da situação e/ou suas fases, sendo que estas podem ser consideradas sob
diferentes pontos de vista, a saber: o do desenvolvimento, o do completamento e o da
realização da situação. (
TRAVAGLIA, 1985,
p. 53)
Comparando
-se as duas definições apresentadas, identificam-se, inicialmente, dois pontos
de intersecção: o primeiro refere-se ao fato de as fases propostas por Travaglia (1985 [1981]
)
também caracterizarem o aspecto como uma categoria de TEMPO, uma vez que elas nada mais
são que pontos específicos delimitados no segmento de TEMPO no qual ocorre a situação; o
segundo diz respeito ao fato de o TEMPO envolvido na situação não ser concebido numa
perspectiva dêitica. A segunda definição, na verdade, parece constituir um desdobramento mais
sofisticado da primeira, na medida em que o autor considera as possíveis etapas em que uma
situação pode ser descrita, fato não explicitado por Comrie (1976).
Assim como alguns esclarecimentos referentes às categorias de tempo e de aspecto se
fizeram necessários para melhor defini-las, uma análise mais acurada das clássicas noções de
perfectivo e de imperfectivo também se mostra salutar, no sentido de melhor se entender essas
Sueli Maria Coelho
100
tradicionais formas de opor as categorias aspectuais. Essa discussão constitui o cerne da próxima
subseção.
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Comrie (1976) tece algumas críticas à forma tradicional de se conceber as oposições
aspectuais, que costuma, normalmente, associar as formas perfectivas a situações de curta
duração, enquanto as imperfectivas aparecem, geralmente, veiculadas a situações de longa
duração. Segundo o autor, essa é uma divisão bastante vulnerável, já que é muito fácil encontrar
exemplos que a contradigam, conforme demonstram
os enunciados transcritos em (40), em (41) e
em (42
), abaix
o:
(40
) João
concluiu o Doutorado em três anos.
(41
) Ao lon
go das duas últimas semanas, Maria
definhava a olhos vistos.
(42
) Aquele estudante
resolveu a prova em apenas vinte minutos.
Tanto em (40) quanto em (42), temos aspectos perfectivos. Contudo, a longa ou a curta
duração dessas situações é uma questão bastante subjetiva. Três anos pode representar pouco
tempo se comparado a dez, por exemplo, ou se o enunciatário detiver o conhecimento prévio de
que, normalmente, as pessoas concluem o Doutorado em quatro anos; porém, se comparado ao
s
vinte minutos do enunciado (42), que expressa também uma ação perfectiva, pode ser
considerado muito tempo. Três anos representa ainda muito tempo se comparado às duas
semanas do enunciado (41
), que expressa um aspecto
imperfectivo.
Sueli Maria Coelho
101
O autor mencionado defende que, na discussão do aspecto, “é importante compreender
que a diferença entre perfectividade e imperfectividade não é necessariamente uma diferença
objetiva entre situações, nem é necessariamente uma diferença q
ue
é apresentada pelo falante
como sendo objetiva
35
.”
(COMRIE, 1976, p. 4, tradução nossa) Ele prossegue em sua crítica,
afirmando que, em seu julgamento, tão inapropriado quanto associar o termo
perfectivo
a ações
pontuais é defini-lo como o resultado de uma ação concluída. Para sustentar sua tese, vale-se do
seguinte argumento:
É verdade que as formas perfectivas de certos verbos individuais
serv
em efetivamente
para indicar a realização plena de êxito de uma situação (...) Mas a resultatividade é
apenas um tipo possível da perfectividade, e o termo ‘resultativo’, assim como o termo
‘completo’
,
põe ênfase desnecessária mais no estágio final da situação que em sua
totalidade
36
.
(COMRIE, 1976, p. 20
-
21, tradução nossa)
Para o autor supracitado, seria mais apropriado considerar que o perfectivo expressa a
ação pura e simples, sem qualquer implicação adicional. Ele se caracteriza não por sua curta
duração, mas por apresentar a situação em sua totalidade, sem distinguir as várias fases que a
integram. De acordo com seu pensamento, uma maneira mais adequada de opor perfectivo e
imperfectivo
é dizer que o perfectivo olha para a situaç
ão
do exterior, sem
necessariamente distinguir
qualquer estrutura interna da situação, enquanto o imperfectivo olha para a situação do
interior,
uma vez que ambos podem olhar para trás na direção do início da situação, e
olhar para frente para o final da situação, e de fato é igualmente apropriado se a
35
“it is important to grasp that the difference between perfectivity and imperfectivity is not necessarily an objective
difference between situations, nor is it necessarily a difference that is presented by the speaker as being objective.”
(COMRIE, 1976, p. 4)
36
“It is true that perfective forms of certain individual verbs do effectively indicate the successful completion of a
situation (...). But resultativity is only one possible type of perfectivity, and the term ‘resultative’, like the term
‘completed’, puts unnecessary emphasis on the final stage of the situation rather than on its totality.
(COMRIE, 1976,
p. 20
-
21)
Sueli Maria Coelho
102
situação é uma que continua através de todo o tempo, sem qualquer começo e sem
qua
lquer fim
37
.
(COMRIE, 1976, p. 4, tradução nossa)
Assim, pode-se dizer que o imperfectivo, contrariamente ao perfectivo, apresenta a
situação como se ela fosse vista de uma perspectiva interna, enfocando não a sua totalidade, mas
as fases de seu desenvolvimento. Nessa acepção, perfectividade e imperfectividade não são
necessariamente incompatíveis, como pode parecer numa análise mais superficial ou mesmo
tradicional, já que amba
s podem expre
ssar tanto um intervalo maior quanto
menor de tempo.
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Conforme mencionado, Comrie (1976) advoga em prol da necessidade de se pesquisar
e de se identificar um conjunto de traços tanto morfológicos (formas sintéticas) quanto
sintáticos (formas analíticas) capazes de demarcar formalmente as oposições aspectuais nas
línguas. Considerando-se o objeto de estudo do presente trabalho, os traços morfológicos não
receberão um tratamento mais exaustivo, sendo aqui apenas mencionados. Travaglia (1985
[1981]
), que se propôs a empreender um estudo mais incisivo sobre a categoria de aspecto e sua
expressão na Língua Portuguesa, depois de cotejar informações em outros estudiosos do mesmo
37
“is to say that the perfective looks at the situation from outside, without necessarily distinguishing any of the
internal structure of the situation, whereas the imperfective looks at the situation from inside, since it can both look
backwards towards the start of the situation, and look forwards to the end of the situation, and indeed is equally
appropriate if the situation is one that lasts through all time, without any beginning and without any end.
(COMRIE,
1976, p. 4)
Sueli Maria Coelho
103
fenômeno, elenca alguns mecanismos morfológicos, fonológicos e sintáticos destinados a
exprimir essa c
ategoria lingüística, os quais serão
sucintamente descritos a seguir.
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Pautando
-se em estudos empreendidos por Comrie (1976) em relação a
algumas
línguas, Travaglia (
1985
[1981]) encontrou a corroboração de que, também no Português, não
apenas os verbos são denotadores de questões aspectuais, mas também alguns nomes prestam-
se
a essa função
38
. Em se tratando de marcas sintéticas ou morfológicas, na classe dos verbos, salvo
raras exceções, a maioria dos estudiosos c
oncorda que nas flexões verbais coexistem as noções de
tempo e de aspecto, embora aquela seja mais sobressalente. Além das já citadas flexões, também
o semantema contribui semanticamente com a expressão aspectual, que “o fato do (
sic
) verbo
ser télico ou atélico; ser um verbo de processo, de evento ou de estado (...); indicar uma situação
que aceita ou não descontinuidade afeta o processo expresso por uma dada flexão verbal ou
perífrase.” (TRAVAGLIA, 1985, p. 281)
Deslocando
-se o foco do âmbito da morfologia verbal, os advérbios também constituem
marcas formais de expressão do aspecto. Para o autor (
op. cit.
), eles exercem, sempre, uma destas
três funções:
a)
evitar ambigüidades;
b)
marcar o aspecto por si ou em combinação com outro elemento;
38
Considerando-se a delimitação do objeto de estudo da presente pesquisa, esse aspecto foi mencionado apenas a
título de informação. Caso o leitor tenha interesse em aprofundar-se nesse assunto, consultar Travaglia (1985
[1981]).
Sueli Maria Coelho
104
c)
reforçar um aspecto expresso por outro elemento, tornando-o mais patente.
(TRAVAGLIA, 1985, p. 291)
Outra classe gramatical que também costuma evocar a expressão de algumas noções
aspectuais ou mesmo permitir a sua atualização é a das preposições. Em se tratando da ex
pressão
da modalidade, a preposição possui relevante papel na atualização do posicionamento do
enunciador frente ao seu enunciado, conforme demonstram estes exemplos:
(43
) Muitas pessoas têm
de
trabalhar à noite para garantir o sustento da família.
(44
) Vo
cê ainda há
de
ser muito feliz.
Apesar de alguns autores defenderem o contrário, Travaglia (1985 [1981]) afirma que, na
Língua Portuguesa, não existe expressão aspectual por meio de afixos, como se verifica em
outras línguas, como a eslava, por exemplo. Segundo ele, a crença de que o prefixo
re
, assim
como os sufixos
ejar
e
itar
caracterizam o aspecto iterativo e de que o sufixo
ecer
caracteriza
o aspecto incoativo nada mais é que fruto de uma impropriedade de análise.
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Os mecanismos fonológicos que possibilitam a expressão do aspecto associam-se aos
traços supra-segmentais, que se subordinam à entonação que o enunciador atribui ao
enuncia
do. De acordo com Travaglia (1985
[1981]
), “os verbos estáticos (...)
e os verbos atélicos,
no pret. imp. do ind., marcam o aspecto acabado, quando, na língua falada, são enfatizados
Sueli Maria Coelho
105
entonacionalmente dentro da frase.” (p. 300) Assim, conforme a entonação que o enunciador
atribui ao enunc
iado (45
)
ele expressa um aspecto perfectivo ou imperfectivo.
(45
) Marcos
trabalhava
à noite.
Para o autor em tela, se pronunciada em entonação normal, a frase parece indicar uma
situação não concluída em um determinado momento do passado, fato que permite o acréscimo
de expressões como mas não sei se ainda trabalha”, por exemplo. Contudo, se pronunciada com
ênfase entonacional no verbo, passa a exprimir uma situação concluída, não admitindo mais o
acréscimo da
mesma
expressão.
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Os mecanismos sintáticos envolvidos na marcação aspectual, para adotar uma
metodologia taxionômica, podem ser elencados em três grupos: (a) tipo oracional, (b) repetição
de um item lexical e (c) perífrases verbais, objeto do presente estudo.
Travaglia (1985 [1981]) acredita que “as orações podem concorrer para a expressão,
alteração do aspecto ou para tornar mais patente o aspecto expresso.” (p. 295) Segundo ele, o tipo
oracional que mais efetivamente interfere na precisão do aspecto é o grupo das subordinadas
adverbiais temporais. Além dessas, as orações subordinadas adverbiais proporcionais, as orações
subordinadas adjetivas e as orações coordenadas alternativas expressam, respectivamente, o
aspecto durativo, o imperfectivo habitual e o iterativo.
Sueli Maria Coelho
106
Também a repetição do verbo flexionado em determinados tempos e modos constitui uma
possibilidade de se marcar formalmente o aspecto na Língua Portuguesa. Estudos empreendidos
pelo autor supracitado demonstram que a repetição da forma verbal flexionada no pretérito
perfeito do indicativo, no pretérito mais-
que
-perfeito do indicativo, no futuro do presente do
indicativo e no pretérito imperfeito do subjuntivo marca o aspecto durativo. A repetição do
mesmo item verbal flexionado no presente e no pretérito imperfeito do subjuntivo e,
principalmente, no presente do indicativo marca o aspecto habitual.
A terceira forma de se demarcar formalmente o aspecto verbal é por meio de perífrases
verbais, cujas principais funções podem ser assim sintetizadas: (a) marcar o aspecto, (b) marcar a
voz verbal, (c) marcar o tempo e (d) marcar a modalidade. Tais funções foram abordadas ao
longo desse capítulo (cf. subseção 2.1), fato que justifica serem aqui apenas mencionadas. Nos
próximos capítulos, a discussão acerca das perífrases constituídas dos auxiliares TER, HAVER,
SER, ESTAR e IR será aprofundada, buscando-se identificar e descrever seu processo de
gramaticalização. A metodologia adotada para a consecução desse objetivo constitui o tópico do
capítulo subseqüente.
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107
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Partindo
-se da premissa de que a gramaticalização é um processo diacrônico e de que o
fenômeno da
auxiliarização
resulta da gramaticalização de uma forma lexical em uma forma
gramatica
l
fato
atestado por inúmeros autores (cf. Mattos e Silva (1989), Ribeiro (1993),
Cohen (1988) e Vitral (200
4
))
–,
justifica
-
se a necessidade de que o processo de gramaticalização
dos itens TER, HAVER, SER, ESTAR
e
IR
seja estudado numa perspectiva diacrônica. Nesse
sentido, procedeu-se, inicialmente, à seleção dos textos produzidos em cada um dos três períodos
representativos da história da Língua Portuguesa. Adotou-se, no presente estudo, a cronologia
proposta por Mattos e Silva (1989) e também endossada por Ilari (1992) e por Maia (1995). Os
tr
ês períodos, então, ficaram assim delimitados: (a) período arcaico
:
representado pelo intervalo
de tempo que vai do século XIV ao século XVI; (b)
período
moderno: intervalo de tempo que
compreende os séculos XVII e XVIII; e (c)
período
contemporâneo
:
repre
sentado pelos séculos
XX e XXI. Os períodos
ora
delimitados não compreendem a fase do Romance e do G
alego
-
português
por constituírem estágios
lingüísticos
anteriores à Língua Portuguesa propriamente
dita
. Contudo, faz-se necessário delimitá-los cronologicamente, uma vez que os dados
analisados
remetem a algumas generalizações radicadas nesses períodos. Assim, de acordo com Teyssier
(1997),
a fase do R
omance
, que acelerou a deriva responsável por transformar o latim imperial
Sueli Maria Coelho
108
em latim vulgar, fazendo emergir certas fronteiras lingüísticas, não nos deixou qualquer
documento lingüístico e compreende os três séculos passados entre a chegada dos germanos à
Península (409) e a dos mulçumanos. (711)” (p. 13)
o G
alego
-
português
surgiu nos séculos IX
a XII
, mas
os
primeiros textos escritos apareceram somente no século XIII.
De acordo com a metodologia proposta por Vianna (2000) e adotada por este estudo, a
adoção da cronologia proposta por Mattos e Silva (1989)
mostra
-se mais pertinente por atender à
conveniência
de se manter uma distância temporal mínima de cento e cinqüenta anos para cada
período, intervalo de tempo recomendável para se aumentarem as chances de se flagrar uma
mudança lingüística. Há, contudo, de se observar que este é apenas um cuidado metodológico e
que não garantia
alguma
de que uma mudança se efetive neste intervalo. O fato é que, quanto
maior for a distância diacrônica percorrida, maiores são as chances de se identificar um processo
de gramaticalização.
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Os
cor
pora
representativos de cada um dos três períodos da Língua Portuguesa
constituem
-se de quatro textos cada um, totalizando um
corpus
de doze textos. Em sua seleção,
tomou
-se o cuidado de se privilegiar, conforme recomendação de Vianna (2000) e de Vitral
(2
004),
o maior número possível de gêneros textuais, a fim de se cuidar para que não houvesse o
favorecimento de um ambiente propício ao aparecimento dos itens selecionados para
estudo.
Além disso, obedecendo-se ainda às orientações dos autores supramenciona
dos,
na medida do
Sueli Maria Coelho
109
possível, zelou-se para que houvesse um certo equilíbrio de tamanho entre os
corpora
representativos de cada um dos três períodos, com vistas a minimizar a possibilidade de
ocorrência acentuada dos itens em um determinado período, o que poderia falsear os dados
obtidos. Cercou-se ainda de outro cuidado no sentido de assegurar a confiabilidade dos dados,
uma vez que, diante da iniqüidade do número de palavras entre um período e outro, procedeu-
se
ao cálculo estatístico dos pesos de cada período. No que tange ainda à cautela dedicada à seleção
dos textos, na representação dos períodos arcaicos e modernos, procurou-se incorporar apenas
edições diplomáticas ou leituras paleográficas, evitando-se os textos modernizados cuja sintaxe
não seria genuína. O quadro apresentado a seguir se propõe à caracterização pormenorizada dos
textos selecionados para o estudo:
FIGURA
2
:
Caracterização do
corpus
Texto/ Referência
Descrição
Datação
Total de
palavras
Livro de Linhag
ens. In:
MATTOSO (1983)
Trecho do Livro de
Linhagens
Meados do séc.
XIV
6907
Conselhos de D. Duarte.
In: DIAS (1982)
Cartas de D. Pedro e do
Conde de Arraiolos
1426 a 1434
9438
Crônica de D. João. In:
COHEN (1999)
Excerto da crônica do rei
D. João
1437
/1450
9723
PERÍODO
ARCAICO:
33969 palavras
Vereações do Funchal.
In: COSTA (1994)
Atas da Câmara de
Vereadores da cidade de
Funchal (Portugal)
1485 e 1486
7901
Aves Ilustradas. In:
FERREIRA (1981)
Texto moral e fábulas para
serem lidos pelas religiosa
s
nos mosteiros
1738 10967
Antonil. In: CEHA
(1994)
Tratado sobre a forma de
se conduzir um engenho de
cana
-
de
-
açúcar
1711 10378
Documentos de Barra
Longa. In: COHEN
et al
(1998)
Documentos cartoriais de
Barra Longa (MG)
1736-1786 6942
PERÍODO MODERNO:
36792 palavras
Garção. In:
GARÇÃO
(1982)
Pronunciamentos
proferidos na Arcádia
Lusitânia
1757-1763 8505
Sueli Maria Coelho
110
Texto/ Referência
Descrição
Datação
Total de
palavras
Sarapalha. In: ROSA
(1946)
Conto de Guimarães Rosa
1946 6169
Bulas de remédio.
In:
NELFE (1994)
Bulas de cinco
medicamentos: Tylenol,
Gardenal, Dienpax, Nisulid
e Voltaren
1990-1994 6630
Hoje em Dia. In:
JORNAL HOJE EM DIA
(2000)
Matérias crônicas
esportivas e políticas
2 a 4 de abril de
2000
9999
PERÍODO CONTEMPORÂNEO:
33532 palavras
A relativização da
verdade em
Herótodo. In:
MORELO (2000)
Introdução e os dois
primeiros capítulos de uma
dissertação
Fevereiro de
2000, mas com
citações de toda
a segunda
metade do séc.
XX
10734
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Delimitado e caracterizado o
corpus
do presente estudo, faz-se mister, neste espaço,
explicitar também o critério adotado para eleger os auxiliares que constituíram o objeto de análise
desta pesquisa. Em primeiro lugar, todo estudo científico carece de uma delimitação, tendo em
vista a necessidade de uma análise mais aprofundada. Em segundo lugar, optou-se por estudar
todas as formas verbais que, segundo Pontes (1973), figuram no elenco de um número
“reduzidíssimo de verbos a respeito dos quais quase não discordância sobre serem auxiliares:
ter, haver, ser, estar.” (p. 37) Pontua a referida autora que um senso comum entre os
gramáticos em admitir peremptoriamente o caráter auxiliar dos dois primeiros verbos elencados,
Sueli Maria Coelho
111
mas existe uma certa discordância no que se refere ao verbo “ser”, já que alguns e
studiosos não o
reconhecem como tal em construções passivas, e também no que se refere ao verbo “estar”, cujas
restrições se devem ao fato de “não ser formador de ‘tempo composto’” (
ibidem
, p. 37). A quinta
forma verbal selecionada para análise é a primeira representante do segundo grupo de auxiliares
proposto por Pontes (1973), também denominados de “auxiliares acidentais” ou de “semi-
auxiliares” por não entrarem, como o verbo estar
, na formação de “tempos compostos”. Acredita
-
se que o grupo selecionado contemple os auxiliares prototípicos da Língua Portuguesa, fato que
permite o esboço de um quadro teórico de gramaticalização capaz de descrever a categoria dos
auxiliares na língua.
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Embasando
-se nas evidências empíricas da gramaticalização apresentadas no capítulo
primeiro deste estudo e também na metodologia quantitativa desenvolvida por Vianna (2000) e
aperfeiçoada
por Vitral (2004), subdividiram-se os critérios de análise em dois grupos
interdependentes
. O primeiro deles visa a quantificar o processo de gramaticalização dos cinco
verbos eleitos pelo estudo, recorrendo
-
se, para isso, à análise da freqüência do item.
A opção pela
análise quantitativa justifica-se pela necessidade de se confirmar (ou não) a hipótese aventada
por outros pesquisadores e também norteadora deste estudo, segundo a qual os verbos auxiliares
são expansões categoriais de verbos plenos. Neste caso, espera-
se
detectar, diacronicamente,
um
aumento da freqüência da forma em análise, conside
rando
-se o fato de que ela passará a s
er
Sueli Maria Coelho
112
empregada tanto na categoria dos itens lexicais, como na categoria dos itens gramaticais.
Segundo Vitral (2005), apenas o apelo a uma metodologia quantitativa possibilita ao lingüista
pesquisador diagnosticar de forma precisa e segura processos de gramaticalização, “já que os
procedimentos usuais de identificação desses processos o dependentes da intuição do
falante/pesquisador e nem sempre são aplicáveis a fenômenos para os quais se suspeita estar
ocorrendo um pro
cesso desse tipo.” (p. 01)
O segundo
grupo
de critérios, que também foi analisado quantitativamente,
atém
-se ao
estudo de fatores semânticos, sintáticos e fonológicos envolvidos no processo de
gramaticalização dos auxiliares selecionados para estudo.
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O critério da freqüência do item, como antecipado acima,
propõe
-
se
a confirmar (ou a
refutar) a hipótese de que os auxiliares são formas gramaticalizadas a partir de formas plenas,
que se espera que o item em processo de gramaticalização (no caso deste estudo, os verbos
TER,
HAVER, SER, ESTAR
e
IR
), em virtude de sua expansão funcional, torne-se mais freqüente.
Assim, a partir do momento que se instaura o processo de gramaticalização, o item passa a ser
analisado, do ponto de vista lingüístico, tanto como forma lexical quanto como forma gramatical.
No caso específico deste estudo, considerou-
se
, a princípio, como forma lexical a forma simples
do verbo e, como forma gramatical, o auxiliar que co-ocorre com as formas nominais, formando
perífrases verbais. Contudo, de se advertir que o mero aumento da freqüência do item não é
Sueli Maria Coelho
113
suficiente para atestar a sua gramaticalização. Para tanto, faz-se necessário que esse aumento se
concentre em seus usos gramaticais, opondo-
se ao decr
éscimo de seus usos lexicais.
Visando a obter tais valores, procedeu-se, então, à contagem das formas verbais
TER,
HAVER, SER, ESTAR e
IR,
em todas as suas flexões. Essa contagem foi realizada em cada um
dos três períodos selecionados para o estudo, obtendo
-
se, assim, a freqüência total das formas por
período. Para encontrar a porcentagem dessas ocorrências em relação ao número total de palavras
representativas do período, recorreu-se a uma regra de três simples. Feito isso, passou-se à
separação de cada uma das ocorrências verbais cotejadas, selecionando-as em formas lexicais e
em formas gramaticais. Mais uma vez, recorreu-se à regra de três simples para identificar a
porcentagem de ocorrência de cada uma dessas formas.
Considerando-se o fato de que, a despeito da tentativa de aproximação do número total de
palavras constantes em cada período, registrou-se, entre eles, uma pequena variação de tamanho
(cf. figura 02), optou-se por calcular estatisticamente o peso de cada período. Esse cálculo foi
efetuado
ta
mbém
por meio de regra de três simples, considerando-se a equivalência entre o
número total de palavras do
s
corpora
e o peso máximo atribuído, qual seja, um. A partir de então,
visando a comprovar se as diferenças de freqüência encontradas entre cada período eram
estatist
icamente significativas, optou-
se
por
aplicar o teste de aderência do Qui-Quadrado. Para a
realização desse teste, utilizou-se um programa de computador destinado à tabulação de dados
em Ciências Sociais. Esse programa é denominado SPSS, sigla formada a partir de seu nome
original
Statistical Package for Social Sciences. A versão adotada foi a 13.1, editada em 2004.
Com a aplicação do teste de aderência do Qui-Quadrado, obteve-se a freqüência esperada das
formas, caso os
corpora
possuíssem a mesma dimensão. A partir de então, foi possível comparar
as freqüências esperadas com aquelas verificadas no
corpus
, o que permitiu identificar
Sueli Maria Coelho
114
estatisticamente
o aumento ou a redução não da freqüência total, como também das
freqüências lexical e grama
tical.
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Esse é, sem dúvida, o critério que maior empecilho oferece à análise quantitativa
proposta, dada a dificuldade de se quantificar, de maneira precisa, as várias nuanças semânticas
que um item passa a assumir não apenas em um mesmo período, como também em períodos
diversos. Segundo prevê a literatura, à medida que o item entra em processo de gramaticalização,
ele sofre alterações semânticas, pois existe uma tendência de seus usos irem se tornando cada vez
mais abstratos até atingirem um grau máximo de abstração, esvaziando-se de seu sentido original
para assumir funções gramaticais. Os teóricos da gramaticalização acreditam que, num estágio
conso
lidado do processo, uma sobreposição dos usos abstratos em relação aos usos
concretos,
porque o processo metafórico envolvido no fenômeno da gramaticalização prevê a tramitação do
item do [+ concreto] para o [+ abstrato], à medida que este se distancia de suas funções lexicais
para incorporar funções gramaticais.
Aliada à dificuldade de se precisar o conjunto de semas de um item, surge a não menos
tortuosa tarefa de decidir quais os semas serão considerados concretos e quais integrarão o rol dos
semas abstratos. Em função das nebulosas e imprecisas definições até então atribuídas
aos termos
concreto
e
abstrato
(cf. resenha apresentada em 1.2.3.1), julgou-se conveniente, neste estudo,
estabelecer um critério mais científico para delimitar fronteiras tão tênues. Acredita-se que
a
delimitação desse critério constitua um avanço na proposta de uma metodologia quantitativa até
Sueli Maria Coelho
115
então empreendida para se estudar o fenômeno por dois motivos principais, quais sejam: (a)
constitui uma forma de delimitação baseada em critérios científicos e não apenas intuitivos e (b)
atende ao processo metafórico da abstração, que permite a difusão do processo. Assim sendo,
considerou
-se como concreto o sentido etimológico do item, ou seja, seu sentido primeiro. Para
delimitá
-lo, recorreu-se a um dicionário etimológico da Língua Portuguesa neste estudo, a obr
a
consultada foi a de Antônio Geraldo da Cunha, editada pela Nova Fronteira em 1997 – e
procedeu
-se à consulta dos cinco verbos selecionados para estudo. Como sentidos abstratos,
consideraram
-se todos os demais, ou seja, aqueles que foram surgindo mediante a incorporação
de acepções culturais ao longo do tempo. Para se identificá
-
los, recorreu
-
se a obras lexicográficas
da Língua Portuguesa (não apenas as editadas mais recentemente, mas também aquelas mais
antigas, que se mostraram providenciais na identificação dos semas nos períodos arcaico e
moderno) e também à intuição de falante. Assim, após o levantamento do conjunto de semas dos
itens em estudo, buscou-se identificá-los nos contextos em que o item tinha sido selecionado.
Esse procedimento, de certa for
ma,
contribui para acentuar as limitaç
ões
advindas da adoção
do
critério semântico
, uma vez que tanto o texto arcaico quanto o moderno foram analisados à luz do
conhecimento
lingüístico
contemporâneo.
De acordo com Kroch (1989), especialmente nos
domínios
da sintaxe histórica, esse
procedimento
, apesar de indispensável, impõe problemas
particularmente
perspicaz
es,
“uma vez que a análise gramatical depende de evidência negativa, o
conhecimento de que certos tipos de sentenças são inaceitáveis
39
.”
(p. 199, tradução nossa)
Contudo,
a despeito da consciência de suas limitações e em virtude da impossibilidade de se
proceder
de outra forma, adotou
-se a metodologia
que
Labov (1975a)
caracteriza como o
“uso do
presente para explicar o passado”
.
Identificados os semas
, p
ara se calcular a porcentagem de cada
39
“... since grammatical analysis depends on negative evidence, the knowledge that certain sentence types are
unacceptable.”
(
KROCH, 198
9, p. 199)
Sueli Maria Coelho
116
um deles, recorreu-se, mais uma vez, a uma regra de três simples. Computaram-se, então, todos
os semas do elenco de acepções concretas e todos aqueles das acepções abstratas, para comparar
seus comportamentos nos três períodos, verificando-se sua relação com o processo de
gramaticalização das formas auxiliares.
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Com base na distribuição sintática do item, buscou-se analisar o comportamento dos
verbos em processo de gramaticalização enquanto formas lexicais e enquanto formas gramaticais.
Segundo prevê a literatura, o avanço do processo de gramaticalização acarreta a redução d
os
contextos sintáticos e determina a sua maior previsibilidade, que as formas tendem a se tornar
mais fixas à medida que tramitam do xico para a gramática ou de uma posição menos
gramatical para outra mais gramatical. A adoção desse critério visava a alcançar dois fitos
principais
: (a) mensurar a veracidade dessa assertiva e (b) tentar identificar quais as formas
nominais são passíveis de co-ocorrência com cada uma das formas auxiliares estudadas, que
essa era uma das questões geratrizes da pesquisa. Buscou-se também identificar quais são os
fatores determinantes na seleção da forma nominal pelo verbo auxiliar.
Além dos fatores mencionados, a análise da distribuição sintática dos verbos
integrantes de uma perífrase verbal buscou verificar a (im)possibilidade de ocorrência de
qualquer tipo de material interveniente entre a forma auxiliar e a forma principal. A
literatura
afirma ainda que, quanto maior o grau de gramaticalização de uma forma perifrástica, maior a sua
Sueli Maria Coelho
117
coesão e, conseqüentemente, menor a possibilidade de se intercalar qualquer tipo de material
entre os elementos constituintes da perífrase. Mais uma vez, buscou-se julgar a pertinência desse
postulado em se
tratando de perífrases verbais, que constituem, conforme se defende aqui, formas
gramaticalizadas de verbos pleno
s.
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Assim como o critério semântico, o critério mo
rfofonêmico
também oferece algumas
dificuldades para o pesquisador, principalmente no caso deste estudo, em que se optou por
trabalhar apenas com textos escritos, uma vez que a possibilidade de acesso ao texto falado se
restringe
ao período contemporâneo da língua. É fato que a redução de material fônico já
me
ncionada por Meillet (1948 [
1912
])
faz
-
se
perceber de forma mais sensível no âmbito da
modalidade falada da língua. Em se tratando da modalidade escrita, essa redução é perceptível
quando já se tornou tão expressiva a ponto de congregar as formas, transformando o item
gramaticalizado numa forma presa. A despeito da consciência em relação a tais empecilhos,
optou
-se por esse critério porque, se no período arcaico nem no moderno existem fontes de
pesqu
isa oral, no português contemporâneo essas fontes existem em abundância. Assim, mesmo
não se trabalhando com a modalidade falada da língua, a intuição de falante pode ser útil no
sentido de esclarecer algumas dúvidas ou mesmo suscitar alguns questionamentos acerca dessa
redução fonética. Contudo, em virtude das limitações descritas, de todos os quatro critérios
selecionados, esse foi o que recebeu um tratamento menos exaustivo.
Sueli Maria Coelho
118
Desc
rita a metodologia adotada por este estudo, o capítulo subseqüente se desti
na
à
apresentação e à discussão dos resultados obtidos pelo estudo, confrontando-se os dados
coletados, tabulados e analisados com as referências teóricas presentes na literatura.
As
considerações tecidas contribuirão, certamente, para elucidar muitas questões ainda não
respondidas sobre o engendramento da
auxiliarização
na Língua Portuguesa.
Sueli Maria Coelho
119
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Obedecendo aos critérios de gramaticalização dispost
os anteriormente (cf. subseção 1.2.1
)
e
tam
bém à metodologia adotada pelo estudo (cf. capítulo 3), a análise e a discussão dos dados
obtidos serão apresentadas levando-se em consideração esses critérios. Assim, inicialmente, se
analisada a freqüê
ncia
de cada uma das cinco formas verbais em estudo, comparando-se a
freqüência total do item, bem como sua freqüência enquanto forma lexical e enquanto forma
gramatical, ao longo dos três períodos lingüísticos. Em seguida, proceder-
se
à comparação da
freqüência total dos itens analisados, visando a precisar o estágio de gramaticalização de cada um
deles. A seguir, adotar-
se
-ão critérios semânticos de análise: (a) expansão de sentidos do item
(polissemia) e (b) perda gradual de usos concretos e incorporação de usos abstratos. Num
terceiro
momento, será adotado um critério sintático, com o qual se visa a observar a distribuição dos
itens em estudo, ou seja, seus contextos sintáticos e também a (im)possibilidade da ocorrência de
material interveniente entre o auxiliar e a forma principal. Por fim, será tecido um breve
comentário acerca da redução de material fônico das formas auxiliares, o que configura a adoção
de um critério morfofonêmico.
Sueli Maria Coelho
120
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Como apresentado (cf. descrição da metodologia), o
corpus
do período arcaico totaliza
um universo de trinta e três mil, novecentas e sessenta e nove (33969) palavras; o do período
moderno compreende trinta e seis mil, setecentas e noventa e duas (36792) palavras; e o do
período contemporâneo compõe-se de trinta e três mil, quinhentas e trinta e duas (33532)
palavras.
Computou
-
se, inicialmente, a freqüência total de cada uma das cinco formas eleitas para
constituir o objeto deste estudo e, em seguida, procedeu-se à separação das ocorrências lexicais e
das ocorrências gramaticais. Os dados obtidos foram tabulados, analisados
e
as ocorrências de
cada uma das cinco formas estudadas serão individualmente
apresentada
s e exemplificadas
a
seguir:
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A primeira forma a ser analisada será o ve
rbo
ter
. Conforme se pode visualizar na tabela
1,
a seguir
, no período arcaico, seus usos lexicais se sobrepunham aos seus usos gramaticais.
Sueli Maria Coelho
121
TABELA 1
: Freqüência do verbo
ter
no período arcaico
Formas lexicais
Formas g
ramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Linhagens
6907
17
100,00
- -
17
100
D. Duarte
9438
64
92,75
05
7,25
69
100
D. João
9723
39
84,78
07
15,22
46
100
Vereações
7901
24
77,42
07
22,58
31
100
Total geral
33
969
144
88,34
19
11,66
163
100
A
ocorrência de 88,34% de formas lexicais em oposição à presença de 11,66% de formas
gramaticais
demonstra que, no período arcaico, essa forma verbal se encontrava
gramaticalizada; contudo, trata-se de um estágio mais inicial do processo, uma vez que a
ocorrência da forma plena é bastante superior à da forma gramatical. Os excertos transcritos a
seguir visam a ilustrar uma ocorrência da forma lexical (cf. (46)) e uma ocorrência da forma
gramatical (cf. (47)):
(46) “El filhou desto gram sanha, e, daqueles cavaleiros que
tiinha
pera viir sobre la
Espanha, apartou deles cinquenta mil dos melhores, e foi-se a el.” (LINHAGENS, p. 140, grifo
nosso)
(47) “POIS do que aconteceo ao Mestre na morte do conde Joham Fernandez e do al que
se depois ssegujo, mostrando cada huma cousa per hordem dhuu ouue seu primeiro principio e
começo ataa o tempo que foy alçado por Rey, como teendes ouuydo, vos servyo nosso razoado
(...)” (DOM JOÃO, p. 1, grifo nosso)
No período posterior (cf. tabela 2), registrou-se uma expansão do processo de
gramaticalização instaurado no período arcaico, dado que se verificou uma redução no
emprego das formas lexicais de 88,34%, no período arcaico, para 76,96%, na era moderna. Em
Sueli Maria Coelho
122
contrapartida, o emprego da forma gramatical aumentou de 11,66%, no período arcaico, para
23,04%, no moderno.
TABELA 2
: Freqüência do verbo
ter
no período moderno
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por texto
Ocorrência
%
Oco
rrência
%
Ocorrência
%
Aves
10967
49
81,66
11
18,34
60
100
Antonil
10378
76
90,48
08
9,52
84
100
Barra Longa
6942
13
59,09
09
40,91
22
100
Garção
8505
19
50,00
19
50,00
38
100
Total geral
36792
157
76,96
47
23,04
204
100
(48) “Ao purgador de quatro mil pães de açúcar dá-se soldada de cinqüenta mil réis. Aos
que
têm
menos trabalho dá-se também menos, com a devida proporção.” (ANTONIL, cap. VII,
grifos nossos) (forma lexical)
(49) “Lembra-me a mim que as Vestais por conservarem o fogo, a que chamav
am
eterno, inútil, porque nem alumiava a Deus, nem ainda aos deuses, antes o tinham subterrado
debaixo de uma lagem (....)” (AVES, p. 373, grifos nossos) (forma gramatical)
No período contemporâneo, o emprego da forma gramatical mostra-se mais impregnado
(cf. tabela 3). Novamente, os dados coletados acusam uma redução da freqüência da forma plena
(61,24%) e uma conseqüente ampliação da forma gramatical (38,76%), o que denota, mais uma
vez, a expansão do processo.
Sueli Maria Coelho
123
TABELA 3
: Freqüência do verbo
ter no p
eríodo contemporâneo
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Rosa
6169
47
55,29
38
44,71
85
100
Bulas
6630
12
66,66
06
33,34
18
100
Hoje em dia
9999
46
63,88
26
36,12
72
100
Herótodo
10734
23
67,65
11
32,35
34
100
Total geral
33532
128
61,24
81
38,76
209
100
(50) “Sobre a primeira perspectiva
tem
-se que, ao relatar costumes diferentes dos seus,
Herótodo procura manter uma certa neutralidade, no sen
tido de não emitir juízo de valor referente
ao que lhe é diferente.” (HERÓTODO,
grifos nossos) (forma lexical)
(51)
“Nos minutos finais da partida, Palhinha teria dado
uma cotovelada em Jackson,
dando início a uma confusão entre os jogadores.” (HOJE EM DI
A,
Reação
, 02/04/2000, grifos
nossos) (forma gramatical)
Os dados computados nos três períodos lingüísticos revelam que a redução da freqüência
da forma plena
passou de 88,34% no período arcaico para 61,24% no português contemporâneo
– fez-se acompanhar pelo aumento da freqüência da forma gramatical, que teve seus usos
ampliados de 11,66%, no período arcaico, para 38,76%, no período contemporâneo. Assim,
considerando
-se o critério da freqüência das formas plenas e gramaticais, é lícito afirmar que a
muda
nça detectada no período arcaico se difundiu ao longo dos períodos clássico e
contemporâneo. O aumento da freqüência registrado nos índices referentes ao emprego da forma
gramatical do verbo
ter
, que se encontrava gramaticalizado na L
íngua
P
ortuguesa
desde o
período arca
ico, atesta a expansão gramatical
dessa forma verbal
.
Sueli Maria Coelho
124
4
4
.
.
1
1
.
.
2
2
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
F
F
R
R
E
E
Q
Q
Ü
Ü
Ê
Ê
N
N
C
C
I
I
A
A
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
H
H
A
A
V
V
E
E
R
R
A segunda forma a ser analisada será o verbo
haver
. Este parece ter iniciado seu processo
de gramaticalização num período anterior ao do verbo
ter
, porque, comparando-se seus usos
gramaticais no período arcaico, percebe-se que a freqüência de
haver
gramatical é superior à de
ter
gramatical (cf. tabela
s 1 e
4).
TABELA 4
: Freqüência do verbo
haver
no período arcaico
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de pal
avras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Linhagens
6907
46
69,67
20
30,33
66
100
D. Duarte
9438
59
75,64
19
24,36
78
100
D. João
9723
53
66,25
27
33,75
80
100
Vereações
7901
23
52,27
21
47,73
44
100
Total geral
33969
181
67,54
87
32,46
268
100
Os dados tabulados acima demonstram uma ocorrência de 67,54% de formas lexicais do
verbo no período arcaico (cf. excerto (52)), contrapondo-se a uma freqüência de 32,46% de usos
gramaticais (cf. excerto (53)).
(52) “Os reis criståos
houverom
seu acordo que fossem partidos em duas partes: el rei de
Castela pela riba do mar, el rei de Portugual per antre as montanhas e o campo.” (LINHAGENS,
p. 130, grifo nosso) (forma lexical)
(53)
“... e ajnda senhor me pareçe// que o trabalho que lhes he mandado que eles aJão de
filhar
se fose per constrangimento razoado que lhe seria de pouqua pena...” (DOM DUARTE, p.
33, grifos nossos) (forma gramatical)
Sueli Maria Coelho
125
Os índices
relativamente
expressivos de freqüência gramatical demonstram que o
processo de gramaticalização do verbo
haver
ocorreu num estágio lingüístico anterior ao período
arcaico. Resta, pois, tentar precisar se o registro histórico desse fenômeno encontra-se no L
atim
Vulgar
, no L
atim
Clássic
o, no R
omance ou
mesmo
no G
alego
-
português.
Considerando
-se o fato
de que nem no Latim Clássico empregado pelos literatos, tampouco nas gramáticas de ngu
a
Latina registros de ocorrência do verbo
haver
empregado
como forma auxiliar, deduz-se que
seu processo de gramaticalização tenha ocorrido num estágio posterior ao L
atim
C
lássico
,
expandindo
-se no período arcaico. Informações cotejadas em Vicent (1982) permitem precisar a
gram
aticalização desse auxiliar no Romance, período intermediário entre o L
atim
imperial
e o
G
alego
-
português:
a substituição das formas flexionadas por perífrases é uma característica notável da
evolução do Latim para o Romance, dois exemplos disso comumente citados são o
desenvolvimento de
haver
+ particípio passado em formas do R
omance
diversamente
etiquetadas como compostos ou perfeitos, e a expansão de
ser
+ particípio passado de
seu papel limitado nas línguas clássicas para o estatuto de um expoente geral de
passiva
40
.
(p. 71
, tradução nossa
)
A mesma cronologia é apresentada po
r
Mattos e Silva (2001
[1994]
), ao explicar que,
perdidos os futuros perfectivo e imperfectivo do latim, formou-se, no romance, uma
locução verbal para a expressão da futuridade. Foi constituída do infinitivo de qualquer
verbo seguido de
habere
, no indicativo presente ou no pretérito imperfeito (do tipo:
amare + habeo/ amare + habebam) que, por processos fonológicos regulares,
resultaram nas formas gramaticalizadas do futuro do presente/futuro do pretérito
(
amarei/amaria
)
(MATTOS E SILVA,
2001, p. 38)
Confrontando-se os índices percentuais obtidos para os verbos
ter
e
haver
, nota-se ainda
que, neste período, havia uma preferência pela forma gramaticalizada de
haver
em detrimento de
40
“The replacement of inflected forms by periphrases is a notable characteristic of the evolution of Latin into
romance, two commonly cited examples of which are the development of
habere
+ past participle into Romance
forms variously labeled as compound or perfect, and the expansion of
esse
+ past participle from its limited role in
the classical language to the status of a general exponent of passive.”
(VICENT, 1982, p. 71)
Sueli Maria Coelho
126
t
er
, considerando-se o dado de que a porcentagem obtida de formas gramaticais de
haver
supera
aquela registrada com o
ter
(11,66%) em quase três vezes. Tal fato era, de certa forma, previsível
e até mesmo esperado, já que o processo de gramaticalização do verbo
haver
é anterior ao de
ter.
Assim sendo, espera-
se
, pois, que a freqüência gramatical da forma que iniciou primeiramente
seu processo de gramaticalização seja mais alta.
O processo de gramaticalização de
haver
continua se expandindo no período moderno da
língua, quando se registrou um percentual de 43,51% de formas plenas e de 56,49% de formas
gramaticais, conforme se pode verificar na tabela que se segue.
TABELA 5
: Freqüência do verbo
haver
no período moderno
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das f
ormas
Texto
Total de palavras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Aves
10967
33
39,29
51
60,71
84
100
Antonil
10378
33
28,95
81
71,05
114
100
Barra Longa
6942
30
85,71
05
14,29
35
100
Garção
8505
18
62,07
11
37,93
29
100
Total geral
36792
114
43,51
148
56,49
262
100
Comparando
-se a freqüência das formas gramaticais de
haver
no período arcaico
(32,46%) e no período moderno (56,49%), observa-se um aumento bastante significativo. Neste
período, o emprego da forma gramatical (cf.
excerto
(55
))
chega a sobrepor-se ao uso da forma
lexical
(cf.
excerto
(54
))
, o que suscita a crença de que foi durante o período moderno que a
gramaticalização do verbo
haver
se cristalizou na língua.
(54) “Vede agora, senhora, se
havendo
tanto em que falar no preciso, tem desculpa a
religiosa e
m falar o escusado, e daí passar ao proibido.” (AVES, p. 366, grifo nosso)
Sueli Maria Coelho
127
(55)
“Ainda que seja esta a natureza da tragédia, o é ela tão austeramente rigorosa que
haja de expor
aos olhos de todos o que a humanidade não poderia sofrer sem indignação...”
(
GARÇÃO, p. 109, grifos nossos)
a comparação dos percentuais de formas gramaticais e de formas lexicais entre o
período moderno e o período contemporâneo (cf. tabela 6) revela uma significativa queda no
emprego da forma gramatical apenas 27,78% de ocor
rências
–, o que se faz
acompanha
r de um
crescimento na o
corrência de formas lexicais, as quais
passa
ra
m de 43,51%, no período moderno,
para 72,22%, no período contemporâneo.
TABELA 6
: Freqüência do verbo
haver
no período contemporâneo
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de pal
avras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Rosa
6169
09
47,37
10
52,63
19
100
Bulas
6630
06
100,00
- -
06
100
Hoje em dia
9999
18
85,71
03
14,29
21
100
Herótodo
10734
06
7
5,00
02
25,00
08
100
Total geral
33532
39
72,22
15
27,78
54
100
(56) “Jogadores que não participaram da partida contra o América, ou que jogaram
poucos minutos, treinam hoje, pela manhã. Juntam-se aos demais à tarde, quando
haverá
treino
com bola.” (HOJE EM DIA, Ricardinho atribui empate à desatenção, 03/04/2000, grifo nosso)
(forma lexical)
(57) “Quando chegou na máfia dos inseticidas, Lacorte foi desautorizado pelo então
ministro Célio Borja e desacreditado pelo jornal O Globo, que
havia levantado
a le
bre na Saúde.”
(HOJE EM DIA,
Pragmatismo e moralidade
, 03/04/2000, grifos nossos) (forma gramatical)
Sueli Maria Coelho
128
Esses dados, analisados individualmente,
pode
m induzir à conclusão de que, contrariando
a literatura lingüística a respeito do fenômeno da gramaticalização, o verbo
haver
está se
desgramaticalizando, uma vez que a ocorrência de formas gramaticais no período contemporâneo
(27,78%) foi inferior àquela registrada no período arcaico (32,46%). Contudo, conforme j
á
postulav
a
o pai da Lingüística moderna, de se considerar que a língua é um sistema solidário
de valores e, como tal, não deve ser analisada isoladamente. Assim, o hipotético processo d
e
desgramaticalização do verbo
haver
deve ser estudado, confrontando-
se
também a freqüência de
ter
, pois essas duas formas verbais ainda são concorrentes lingüísticas em alguns contextos no
portuguê
s contemporâneo. Os ex
emplos (58
)
e (59
) abaixo comprovam
essa assertiva:
(58
) Ele
havia
chegado mais cedo que ela.
(59
) Ele
tinha
chegado mais cedo que ela.
Assim, pode-se afirmar que o que está acontecendo com o verbo
haver
não é uma
desgramaticalização, mas uma redução de usos – fato que será aprofundado durante a análise dos
valores semânticos das formas em estudo
, uma vez que, no estágio atual da Língua Portuguesa,
ess
a forma verbal enfrenta, em alguns contextos, a concorrência do verbo t
er
. Tal fato explica
também o expressivo aumento da freqüência de t
er
gramatical, comparando-se o primeiro e o
terceiro períodos em estudo.
-se, pois, que a desgramaticalizalização de itens é um fenômeno complexo que não é
determinado apenas por fatores inerentes à recategorização dos itens que tramitam da categoria
lexical para a categoria gramatical. Outros fatores como a concorrência de formas, a perda e ou
a
expansão de semas e o aumento da freqüência do item também interferem na análise, devendo,
portanto, ser considerados com vistas a
se
evitar uma conclusão
equivocada.
Sueli Maria Coelho
129
4
4
.
.
1
1
.
.
3
3
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
F
F
R
R
E
E
Q
Q
Ü
Ü
Ê
Ê
N
N
C
C
I
I
A
A
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
S
S
E
E
R
R
A terceira forma a ter sua freqüência analisada será o verbo
ser
. De todas as cinco formas
verbais analisadas, esta é a que parece exib
ir
um histórico mais pregresso de gramaticalizaç
ão,
dado que, no período arcaico, reg
istrou
-se um percentual de apenas 28,61% de formas lexicais
em oposição aos 71,39% de formas gramaticais, conforme demonstram os dados dispostos na
tabela seguinte:
TABELA 7
: Freqüência do verbo
ser
no período arcaico
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
%
Ocorrên
cia
%
Linhagens
6907
40
30,53
91
69,47
131
100
D. Duarte
9438
89
26,41
248
73,59
337
100
D. João
9723
88
39,82
133
60,18
221
100
Vereações
7901
23
15,33
127
84,67
150
100
Total geral
33969
240
28,61
599
71,39
839
100
A análise desses dados evidencia que o estágio inicial do processo de gramaticalização do
verbo
ser
antecede o período arcaico, podendo estar radicado no
Galego
-português, no R
omance
ou mesmo no Latim, língua da qual se originou a Língua Portuguesa. Essa tese fundamenta-se na
identifica
ção
de uma freqüência bastante alta de usos gramaticais nesse período, qual se
ja
,
71,39%, o que demonstra que, no período arcaico, o verbo
ser
era empregado majoritariamente
como forma gramatical (cf. excerto (60
))
. As formas lexicais (cf. excerto (61)) re
stringiam
-se a
um
índice de apenas 28,61 pontos percentuais, fato não identificado para nenhuma das demais
formas estudadas.
Sueli Maria Coelho
130
(60) “E ainda mais, sabede que, como aquel cavaleiro pareceu com aquela grande hasta
en’o cabeço que estava acima donde lidavades a vista dos vossos, que logo a essa hora
forom
vençudos
.” (
LINHAGENS, p. 139, grifos nossos)
(61
) “E mais lhe deu por termo Tores Vedras e Allamquer com todas suas aldeas, e jsso
mesmo Mafara e Collares e a Eyriçeira e Villa Verde e todallas outras villas e logares que
som
des o termo dAllamquer atta a dita cidade assy como vay o rio do Tejo, e des o termo de Sintra e
de Torres Vedras assy como vay a ribeira do mar, saluo Aaruda e Villa Framca que
eram
de
meestrados.” (
DOM JOÃO, p. 10, grifos nossos)
Uma
consulta às gramáticas latinas (cf. COMBA, 1991 [1957]) comprova a tese aqui
levant
ada e permite precisar que, no L
atim
C
lássico
, o verbo
ser
era empregado como
forma
auxiliar dos tempos compostos da voz passiva, em expressões como amatus sum (= fui ama
do),
estando já, portanto, gramaticalizado. As informações fornecidas por Vicent (1982) (cf. nota 40)
também endossam esse dado, que o autor afirma que, no Romance, deu-se a expansão do
estatuto de auxiliar de passividade do verbo
ser,
antes empregado nessa função apenas nas
línguas clássicas.
Vê-
se, então
, que o processo de gramaticalização do verbo
ser
foi se expandindo
ao longo do Romance e do G
alego
-português e que, no período arcaico, se encontrava bastante
cristalizado, o que pode ser
corroborado
pelos índices expressivos de
sua
freqüência gramatical.
No
período moderno, detectou-se uma tímida redução de seus usos lexicais, que passaram
de 28,61%, no período arcaico, para 28,28% e, proporcionalmente, uma ampliação da sua
freqü
ência gramatical, que aumentou de 71,39%, na era arcaica, para 71,72%, na moderna, fato
comprovado pela
comparação dos
dados dispostos nas tabelas 7 e 8.
Sueli Maria Coelho
131
TABELA 8
: Freqüência do verbo
ser
no período moderno
Formas lexicais
Formas gramatica
is
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Aves
10967
69
26,44
192
73,56
261
100
Antonil
10378
63
30,73
142
69,27
205
100
Barra Longa
6942
23
33,33
46
66,67
69
100
Garção
8505
52
26,40
145
73,60
197
100
Total geral
36792
207
28,28
525
71,72
732
100
Apesar de a análise quantitativa dos dados acusar uma expansão do processo de
gramaticalização do verbo
ser
ao longo do período moderno, de se considerar que esta foi, de
certa forma, modesta e
que
o
verbo ainda continu
a, ao longo desse período, a ser empregado tanto
como
forma lexical, quanto como forma gramatical, conforme ilustram os excertos (62) e (63
),
transcritos a seguir:
(6
2
)
“E porque comumente
são
de nações diversas e uns mais boçais que outros e de
forças muito diferentes, se há-de fazer a repartição com reparo e escolha e não às cegas.”
(
ANTONIL, cap. IX, grifo nosso) (forma lexical)
(63
) “Não falo da imitação da Natureza, mas da imitação dos bons autores, daquela
imitação à qual deve a Arcádia sua grande reputação e não pequena parte dos honrados elogios
com que foi recebida
de nossos mais prudentes e doutos patrícios, e que há-de espalhar seu nome
pelas nações estrangeiras.” (GARÇÃO, p. 131, grifos nossos) (forma gramatical)
O fato de o estágio de gramaticalização do verbo
ser
se encontrar bastante cristalizado
no período arcaico constitui
uma justificat
iva para a moderada ampliação desse
processo ao longo
do período moderno e também cria uma expectativa de que, no período contemporâneo, a
ampliação não seja tão expressiva, que a mudança lingüística tende a apresentar um padrão de
propagação característico: a denominada curva em S. Assim, sua velocidade de difusão tende a
ser mais lenta no início, acentuar-se na metade e voltar a ficar mais lenta no f
inal.
Provavelmente
Sueli Maria Coelho
132
uma comparação entre o Latim, o Romance e o G
alego
-
português
acusaria
uma maior oscilação
de índices percentuais entre um período e outro, atestando a propagação de um processo ainda
emergente ou não tão consolidado.
Os dados obtidos no
período contemporâneo (cf. tabela 9), comparados àqueles obtidos no
período moderno (cf. tabela 8), acenam para a expansão gramatical do verbo
ser
, uma vez que
seus usos lexicais (cf. excerto (64)) se reduziram, passando de 28,28% para 22,16%, e seu
empre
go como forma gramati
cal
(cf. excerto (65))
se ampliou, passando de 71,72
% pa
ra 77,84
%.
TABELA 9
: Freqüência do verbo
ser
no período contemporâneo
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por texto
Ocor
rência
%
Ocorrência
% Ocorrência
%
Rosa
6169
65
38,69
103
61,31
168
100
Bulas
6630
05
2,99
162
97,01
167
100
Hoje em dia
9999
32
15,76
171
84,24
203
100
Herótodo
10734
83
27,95
214
72,05
297
100
Total geral
33532
185
22,16
650
77,84
835
100
(64)
“O
técnico e a diretoria do Democrata ainda reclamam da arbitragem de Marco
Antônio Lima no jogo contra o Ipatinga, no último domingo, quando o time perdeu por 1 a 0, em
Ipatinga.
Foram
oito cartões amarelos, além da expulsão de José Ângelo.” (HOJE EM DIA,
D
emocrata aposta na juventude
, 02/04/2000, grifo nosso)
(65)
_
Fui picado
de cobra ... Fui picado
de cobra... Ô mundo!” (ROSA,
Sarapalha,
grifos nossos)
Como esperado, não se registrou uma expansão muito significativa, que os valores
percentuais entre um período e outro não apresentam índices muito diferenciados. Isso é mais
uma evidência empírica de que o processo de gramaticalização do verbo
ser
encontra-se em fase
já bastante avançada de consolidação.
Sueli Maria Coelho
133
4
4
.
.
1
1
.
.
4
4
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
F
F
R
R
E
E
Q
Q
Ü
Ü
Ê
Ê
N
N
C
C
I
I
A
A
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
E
E
S
S
T
T
A
A
R
R
A penúltima forma a ser analisada será o verbo
estar
. No período arcaico (cf. tabela 10)
,
co
nstatou
-se um percentual de 62,07% de usos lexicais (cf. excerto (66)), opondo-se a um
percentual de 37,93
% de usos gr
amaticais
(cf. excerto (67)).
(66) “E disse el-Rey que lhe prazia que a corte
esteuesse
em Lixboa, e que os pubricos
seellos nom daria a outrem saluo a pessoa que fosse naturall della, e os da puridade a quaesquer
outros que guardassem seu seruiço.” (LINHAGENS, p. 6, grifo nosso)
(67) “
E a(a) Porta
de Miragaya, homde o
estauom atemdemdo
como disemos, sayo el
-
Rey
em terra per huuma larga e espaçossa pramcha, homde o beijar da maåo e
Mantenha
-uos Deus,
Senhor
era tanto que nom podiam auer vez de comprir suas vomtades.” (LINHAGENS, p. 19,
grifos nossos)
de se considerar, no entanto, que esses índices de ocorrência devem ser analisados à
luz
da freqüência de
ser
, pois, nesse período, havia uma interface semântica entre os verbos
ser
e
estar
, fato registrado desde o Latim. Ronai (1986 [1943]) e Comba (1991 [1957]), ao
apresentarem a conjugação do verbo
esse
, já o traduzem como
ser
ou
estar
.
Essa interface
semântica
fazia com que um fosse empregado pelo outro em alguns contextos, c
onforme
i
lustram os exemplos (68
) e (6
9) transcritos a seguir:
(6
8
)
“O
s criståos
eram
tam fora de força por o gram trabalho que receberom aquel dia e
por o muito sangue que perderom, que os nembros nom podiam reger.” (LINHAGENS, p. 134,
grifo nosso
)
Sueli Maria Coelho
134
(6
9
)
“... pois não era senhor da terra em que se criava; andou o tempo, e a poucos voos se
fez Alexandre senhor das Arábias, logo mandou a Leónidas um navio carregado do dito aroma,
dizendo
-lhe gastasse sem dó, pois
estava
senhor das terras que o produziam.” (AVES, p. 376,
grifo nosso
).
Assim, em textos nos quais a freqüência
de
estar
mostrou-se irrisória, a freqüência de
ser
foi relativamente alta. Essa interface semântica perdurou, ainda que em menor escala, a o
período moderno, fato que será corroborado com a análise semântica apresentada posteriormente
(cf. item 4.2.1.4
).
TABELA
10
: Freqüência do verbo estar
no período arcaico
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Linhagens
6907
29
63,04
17
36,96
46
100
D. Duarte
9438
06
60,00
04
40,00
10
100
D. João
9723
17
73,91
06
26,09
23
100
Vereações
7901
02
25,00
06
75,00
08
100
Total geral
33969
54
62,07
33
37,93
87
100
No período moderno (cf. tabela 11), mesmo sob a égide do verbo
ser
, como
mencionado, a freqüência das ocorrências gramaticais (cf. excerto (70)) de estar aumentou,
passando de 37,93%, no período arcaico (cf. tabela 10), para 55,06%, no período moderno. Em
contrapartida, a freqüência das formas lexicais (cf. excerto (71)) reduziu-se de 62,07% (período
a
rcaico)
para 44,94
%
(período moderno).
(70) “
Oh, quantos católicos se poderão confundir com esta memória, pois à vista de tantas
Igrejas pobres e arruinadas estão levantando
palácios à soberba do alheio (...)” (AVES, p. 377,
grifos nossos)
Sueli Maria Coelho
135
(71)
Sucedeu
estar
nesta um religioso chamado Fr. Diogo do Espírito Santo; este com
sua doutrina e exemplo havia feito por aquela costa grandes serviços a Deus (...)” (AVES, p. 374,
grifo nosso)
Acredita
-se que a ampliação dos valores gramaticais se deva não somente à estabilização
de estar
, que passou a assumir seus próprios valores semânticos, desvinculando-se dos valores
semânticos de
ser
, mas também ao avan
ço do processo de
gramaticalização da forma
. E
m virtude
de sua freqüência gramatical inferior à de
ser
no período arcaico, conclui-se que o processo de
gramaticalização
de
estar
encontre
-
se
em
um
est
ágio menos adiantado, o que, conforme já
mencionado
, interfere na velocidade de propagação da mudança. Assim, enquanto a propagação
da mudança do verbo
ser
de item lexical para item gramatical tende a ocorrer de forma mais
lenta, espera
-
se que, em se tratando de
estar
, tal propagação se p
rocesse de forma mais acelerada,
o que pode ser comprovado pelos dados analisados.
TABELA
11
: Freqüência do verbo estar
no período mo
derno
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Aves
10967
24
52,17
22
47,83
46
100
Antonil
10378
10
47,62
11
52,38
21
100
Barra Longa
6942
03
27,27
08
7
2,73
11
100
Garção
8505
03
27,27
08
72,73
11
100
Total geral
36792
40
44,94
49
55,06
89
100
O marco da consolidação do processo de gramaticalização do verbo estar parece ser o
período contemporâneo. Conforme demonstram os dados dispostos na tabela 12, a seguir, nesse
período
,
registrou
-
se um percentual de 83,58
% de usos g
ramaticais
(cf. excerto (72))
em oposição
a apenas 16,42% de empregos lexicais
(cf. excerto (73)).
Sueli Maria Coelho
136
TABELA
12
: Freqüência do verbo estar
no período contemporâneo
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palav
ras
por texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Rosa
6169
12
18,18
54
81,82
66
100
Bulas
6630
01
10,00
09
90,00
10
100
Hoje em dia
9999
12
14,29
72
85,71
84
100
Herótodo
10734
08
19,51
33
80,49
41
100
Total geral
33532
33
16,42
168
83,58
201
100
(72) “O paciente não deve tomar outros medicamentos juntamente com Voltaren sem
orientação
ou conhecimento do médico; portanto, antes do início do tratamento, o paciente deve
informar
ao médico se
está tomando
outro medicamento.” (BULAS
, grifos nossos)
(73) “Palhinha e Pintado, que recebeu o terceiro cartão amarelo, estão
fora da próxima
partida do América pelo Estadual, contra o Ipatinga, domingo que vem, em Ipatinga.” (HOJE EM
DIA,
R
eação
, 02/04/2000, grifo nosso)
O aumento do índice percentual de 37,93%, no período arcaico, para 83,58%, no período
contemporâneo, demonstra, além da expansão e da consolidação do processo de
gramaticalização, a estabilização semântica de
estar,
que, nos
dois períodos anteriores, em muitas
ocorrências, como já mencionado, confundia-
se com o verbo
ser.
4
4
.
.
1
1
.
.
5
5
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
F
F
R
R
E
E
Q
Q
Ü
Ü
Ê
Ê
N
N
C
C
I
I
A
A
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
I
I
R
R
A última forma a ter sua freqüência diacrônica analisada será o verbo
ir
. A observância
dos dados tabulados na tabela 13, abaixo, permite identificar um percentual de 78,76% de
Sueli Maria Coelho
137
ocorrência de formas lexicais (cf. excerto (74)) e de 21,24% de formas gramaticais (cf. excerto
(75)).
TABELA
13
: Freqüência do verbo
ir
no período arcaico
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por t
exto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Linhagens
6907
20
62,5
12
37,5
32
100
D. Duarte
9438
15
83,33
03
16,67
18
100
D. João
9723
41
82,00
09
18,00
50
100
Vereações
7901
08
61,54
05
38,46
13
100
Total geral
33969
84
78,76
29
21,24
113
100
(74) “Per vos me foy mandado em hu uosso regymento que despois que
fose
em esta terra
uos fizese hu escrito d aujsamento tal como o outro que me vos destes/ e a mym pareçe senhor
que prjnçipalmente por três embargos eu são muyto toruado de o fazer.” (DOM DUARTE, p. 27,
grifo nosso)
(75) “Estes jngreses que neelles veerom reçeberom logo per mandado Del-Rey soldo, e
foram
-sse pera Euora, homde auiam dauer bestas pera serem emcaualgados e hirem se
uir
homde
os mandassem.” (
DOM JOÃO, p. 12, grifos nossos)
O índice relativamente alto de empregos gramaticais atesta que, no período arcaico, o
processo de gramaticalização da forma não se encontrava em estágio inicial, o que levanta a
hipótese de que o processo de gramaticalização desse verbo tenha se iniciado em um período
anterior ao arcaico, quando se falava ainda o G
alego
-português ou mesmo o Romance ou o
Latim. Paiva (1988), ao comentar acerca da irregularidade de alguns verbos arcaicos, discorre
sobre o verbo
ir
, informando que este é originário de “três verbos latinos: ire, vadere (ir),
esse
(ser)” (PAIVA, 1988, p. 50). A coincidência fonética entre algumas formas dos verbos
ser
e
ir
no
estágio atual da língua pode ser explicada pela origem comum das duas formas. Além disso, é
Sueli Maria Coelho
138
possível que, em pelo menos uma dessas formas, o verbo fosse empregado em sua função
gramatical, fato que explicaria sua alta freqüência gramatical já no período arcaico.
A análise dos dados referentes ao período moderno (cf. tabela 14) demonstra uma
expansão do processo de gramaticalização já registrado no período arcaico
(cf. tabela 13)
, pois os
usos gramaticais (cf. excerto (76)) aumentaram de 21,24% para 39,29% e os índices de f
ormas
lexicais
obtidos
(cf. excerto (77)) acusaram uma redução de usos no percentual de 22,92%,
que passaram de 78,76% para 60,71%.
TABELA
14
: Freqüência do verbo
ir
no período moderno
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de palavras
por texto
Oc
orrência
%
Ocorrência
% Ocorrência
%
Aves
10967
06
60,00
04
40,00
10
100
Antonil
10378
08
57,14
06
42,86
14
100
Barra Longa
6942
03
75,00
01
25,00
04
100
Garção
8505
- - - - -
100
Total geral
36792
17
60,71
11
39,29
28
100
(76) “... para que saibam o que lhes pertence e possam evitar demandas e pleitos, que são
uma contínua desinquietação da alma e um contínuo sangrador de rios de dinheiro que vai entrar
na casa dos advogados...” (ANTONIL,
cap. II, grifos nossos)
(77) “...Declaro que quando estes (meus ossos) chegarem á dita Egreja (dos Anjos) se
collocarão no caixão em que
forem
sobre uma urna ou eça levantada no
meio da Egreja, e perante
elles se me farão pelas minha Alma nove Officios cantadas com Missa...” (BARRA LONGA,
Excerto do Testamento do
Cel. Mathias Barbosa,
linha 31,
grifo nosso)
No período contemporâneo, a expansão do processo aconteceu de forma bastante
acentuada e a ocorrência de formas gramaticais (cf, excerto (78)) superou a de formas lexicais
(cf. excerto (79)).
Sueli Maria Coelho
139
(78) “Quem sabe se ele não vai morrer
mesmo? Primo Argemiro tem medo de silêncio.”
(ROSA,
Sarapalha,
grifos nossos)
(79) “_ Mas, então, não fala em morte, Primo Ribeiro!... Eu, por nada que não queria ver
o senhor
se ir
primeiro do que eu...”
(ROSA,
Sarapalha
, grifos nos
sos)
A análise dos dados da tabela 15 demonstra um índice percentual de 53,25% de usos
gramaticais e de 46,75% de usos lexicais. Isso significa que, no estágio atual da língua, o verbo
ir
é empregado muito mais como
verbo
auxiliar que como verbo pleno.
TABELA
15
: Freqüência do verbo
ir
no período contemporâneo
Formas lexicais
Formas gramaticais
Total da freqüência
das formas
Texto
Total de
palavras por
texto
Ocorrência
% Ocorrência
% Ocorrência
%
Rosa
6169
33
58,93%
23
41,07%
56
100
Bulas
6630
- - - - -
100
Hoje em dia
9999
02
12,50
14
87,50
16
100
Herótodo
10734
01
20,00
04
80,00
05
100
Total geral
33532
36
46,75
41
53,25
77
100
4
4
.
.
1
1
.
.
6
6
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
C
C
O
O
M
M
P
P
A
A
R
R
A
A
T
T
I
I
V
V
A
A
D
D
A
A
S
S
F
F
R
R
E
E
Q
Q
Ü
Ü
Ê
Ê
N
N
C
C
I
I
A
A
S
S
L
L
E
E
X
X
I
I
C
C
A
A
L
L
E
E
G
G
R
R
A
A
M
M
A
A
T
T
I
I
C
C
A
A
L
L
Concluída a análise da freqüência das formas gramaticais e lexicais dos verbos eleitos
para objeto desse estudo nos períodos arcaico, moderno e contemporâneo, resta proceder a um
estudo comparativo dessas freqüências, visando a precisar a cronologia de gramaticalização
Sueli Maria Coelho
140
dessas formas verbais
. A análise dos gráficos 1 e 2, a seguir, permite uma visualização mais clara
dos resultados obtidos:
G
RÁFICO 1:
Freqüência diacrônica das formas lexicais
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
Arcaico
Moderno
Contemporâneo
TER
HAVER
SER
ESTAR
IR
G
RÁFICO 2
: Freqüência diacrônica das formas
gramaticais
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
Arcaico
Moderno
Contemporâneo
TER
HAVER
SER
ESTAR
IR
Sueli Maria Coelho
141
Das cinco formas analisadas, a que apresentou uma freqüência gramatical mais alta no
período arcaico foi o verbo
ser
(71,39%). O fato de tal forma verbal exibir uma freqüência
gramatical superior a setenta por cento induz à conclusão de qu
e foi a primeira das cinco formas a
iniciar seu processo de gramaticalização e de que, no período arcaico, seu processo de
gramaticalização se encontrava bastante cristalizado, sendo empregada, majoritariamente,
como item gramatical.
O segundo maior índice de freqüência gramatical desse período foi obtido por uma forma
verbal que, como discutido anteriormente, apresentou uma interface semântica com o verbo
ser
. Trata-se do verbo
estar
(37,93%), que, durante os períodos arcaico e moderno, exibia
algun
s
semas comuns com o verbo
ser
, fato que lhe permitiu figurar em alguns contextos semelhantes,
provocando uma certa concorrência entre as formas. Dessa feita, essa freqüência gramatical
elevada
deve ser analisada considerando-
se
também
a intervenção de outras variáveis que não
apenas a expansão do processo de gramaticalização do item. Tais índices podem
congregar
reflexos da concorrência entre as formas
ser
e
estar
, que o verbo
ser
, como discutido,
em
virtude de seu avançado estágio de gramaticalizaç
ão,
era empregado mais como item gramatical
que
como item
lexical.
Com o intuito de se precaver contra conclusões precipitadas e que não
condigam com a realidade hist
órica
dos fatos lingüísticos, é necessário considerar a hipótese de
que alguns desses usos gramaticais ocorreram em contextos em que as duas formas verbais
apresentavam semas comuns e, portanto, expressavam o mesmo valor de verdade. C
onsiderando
-
se
o fato de se estar trabalhando com uma amostragem da língua do período arcaico e
também
de
o estudo ter sido empreendido à luz da competência lingüística contemporânea, de se cogitar
sobre a possibilidade de essa ocorrência não retratar fielmente os fatos lingüísticos e representar
ape
nas uma tendência da amostragem ou mesmo uma impropriedade de an
álise.
Sueli Maria Coelho
142
O terceiro maior índice de ocorrências gramaticais foi obtido pelo verbo
haver
(32,63%)
e, quantitativamente, não se verifica entre as formas
estar
e
haver
uma diferença percentual tão
significativa a ponto de se assegurar com exatidão que o verbo estar, no período arcaico, era
mais gramatical que o verbo
haver.
Considerando-se as limitações supramencion
adas
, torna-
se
precipitado e até mesmo
invi
ável, do ponto de vista científico, afirmar que o verbo
estar
se
gramaticalizou primeiro que o verbo
haver
, até mesmo porque registros de outros estudiosos
que atestam o fato de o verbo
haver
ter se gramaticalizado na fase do Romance. Na escassez de
registros referentes ao verbo
estar
e também de material lingüístico que viabilize tal consulta, o
mais
sensato parece ser afirmar que, em virtude da alta freqüência de suas formas gramaticais, o
processo de gramaticalização desses
dois
verbos remonta ao período arcaico da língua.
O verbo
ir
, que, segundo informações extraídas de Paiva (1988), possui uma or
igem
comum com o verbo
ser
, o que explica a coincidência fonética entre algumas de suas formas em
determinados tempos e modos, ocupou a quarta posição no
ranking
das freqüências gramaticais
no período arcaico (21,24%). Partindo-se da premissa de que tais usos podem, assim como
considerado para o verbo
estar
, relacionarem-se aos usos de
ser,
pode
-se cogitar a respeito do
fato de o processo de gramaticalização desse verbo estar ainda em fase inicial, já que era
empregado, majoritariamente,
como forma lexical.
Contudo, os altos índices de freqüência lexical
também devem ser analisados, considerando-
se
, também nessa categoria, a possibilidade de
intersecç
ão com
ser
, uma vez que o léxico é aberto e, como tal, mais susceptível às escolhas do
falante.
A quinta posição coube, portanto, ao verbo
ter
(11,65%), que obteve a menor freqüência
gramatical do período. Seus índices relativamente baixos de ocorrência gramatical,
principalmente se comparados àqueles alcançados por
ser
, sinalizam que seu processo de
gramatical
ização encontra
-se ainda em estágio inicial.
Sueli Maria Coelho
143
Dadas as altas freqüências gramaticais dos verbos
ser
, estar e
haver
no período arcaico,
esperava
-se que tais formas expandissem seu processo de gramaticalização e que exibissem, na
contemporaneidade, os maiores índices de ocorrência gramatical. Entretanto, as mudanças
lingüísticas, ainda que parcialmente previsíveis, em virtude de fatores não apenas lingüísticos,
mas também extralingüísticos, não seguem um curso
sistematicamente
regular e essa hipótese
não se confirmou no estágio atual da língua. Devido à concorrência da forma verbal
haver
com a
forma verbal
ter
que, pelo percentual de freqüência obtido no portugu
ês arcaico
, parece ter sido a
última forma a iniciar seu processo de gramaticalização, o verbo
haver
sofreu uma redução em
seus usos. No estágio atual da língua, é empregado preferencialmente em contextos de maior
formalidade e com um valor semântico bastante restrito, o que fez com que seu percentual de
freqüência gramatical fosse o mais baixo das cinco formas estudadas (27,78%). Isso, contudo,
como mencionado anteriormente, não significa que tal verbo tenha se desgramaticalizado, pois
ele não deixou de ocorrer em contextos sintáticos gramaticais. Não se registrou uma queda na sua
freqüência gramatical acompanhada de uma expansão lexical, o que poderia levantar a hipótese
de uma tramitação da gramática para o léxico. Na verdade, os contextos de ocorrência da forma
plena também se reduziram, comprovando a tese acima proposta de que houve uma subjugação
aos contextos de uso, em virtude de uma concorrência de formas. Em alguns contextos, a forma
concorrente
ter
vem sendo preferida pelo falante tanto em situações de informalidade quanto de
maior grau de formalidade, o que explica o fato de tal item exibir, na contemporaneidade,
o
quarto
maior índice de ocorrências gramaticais, isto é, 38,76%.
Diferentemente do que se verificou com o verbo
haver
, os verbos
ser
e
estar
mantiveram
a liderança de freqüência gramatical no período contemporâneo. Na verdade, o que se verificou
foi uma inversão de ordem, já que o verbo estar, na contemporaneidade, passou a ocupar a
primeira posição (83,58%), relegando a segunda ao verbo
ser
(77,84%). O fato de os dois verbos
Sueli Maria Coelho
144
permanecerem com altos índices de usos gramaticais demonstra a solidez de seu processo de
gramaticalização. Contudo, enquanto o verbo
ser
apresentou uma redução pouco expressiva em
seus usos lexicais 28,61% no período arcaico e 22,16% no contemporâneo –, o verbo
estar
redu
ziu significativamente sua freqüência lexical, baixando seus índices percentuais de 62,07%
,
no período arcaico, para apenas 16,42%, no período contemporâneo. Acredita-se que essa
redução
brusca esteja relacionada à estabilização semântica de
estar
, que deixou de ser
empregad
o nos mesmos contextos que o verbo
ser
, reduzindo, portanto, suas possibilidades no
léxico
e também à
expansão de seu processo de gramaticalização.
A terceira maior freqüência gramatical no período contemporâneo foi alcançada pelo
verbo
ir
, que obteve um índice percentual supe
rior a cinqüenta por cento (53,25%).
A despeito de
exibir um alto índice de ocorrência gramatical no período arcaico, induzindo à conclusão de
que seu processo de gramaticalização antecede tal período, continuou expandindo esses usos
tanto no período moderno (39,29%), quanto no período contemporâneo, quando passou a ser
empregada mais com valor gramatical que com valor lexical.
Por fim, resta analisar as freqüências diacrônicas das formas verbais analisadas à luz da
teoria da gramaticalização. Conforme mencionado neste estudo (cf. capítulo 1), o processo de
tramitação
de itens do léxico para a gramática compreende um movimento proporcional entre
suas freqüências lexicais e gramaticais. Assim, espera-se que, com o passar do tempo e
com
o
conseqüente a
va
nçar do processo, o item tenha sua freqüência lexical
reduzida
e amplie a sua
freqüência gramatical. A análise dos gráficos 1 e 2, bem como da tabela 16, a seguir,
demonstra
que os
dados obtidos
estão
em conformidade com o quadro teórico apresentado.
Sueli Maria Coelho
145
TABELA
16:
Análise comparativa das freqüências lexicais e gramaticais
TER
HAVER
SER
ESTAR
IR
PERÍODO
FL
(%)
FG
(%)
FL
(%)
FG
(%)
FL
(%)
FG
(%)
FL
(%)
FG
(%)
FL
(%)
FG
(%)
ARCAICO
88,34
11,66
67,54
32,46
28,61
71,39
62,07
37,93
78,76
21,24
MODERNO
7
6,96
23,04
43,51
56,49
28,28
71,72
44,94
55,06
60,71
39,29
CONTEMPORÂNEO
61,24
38,76
72,22
27,78
22,16
77,84
16,42
83,58
46,75
53,25
De todas as cinco formas estudadas, a única que não se comportou regularmente foi o
verbo
haver
. Este não apenas
apresen
tou uma redução de freqüência gramatical, como também
ampliou a sua freqüência lexical. Contudo, essa ampliação da freqüência lexical, como ser
á
demonstrado
quando da análise dos valores semânticos do item (cf. subseção 4.2.1.2), não traduz
uma expansão no léxico, dado que seus semas também se restringiram.
Tal
irregularidade
de
comportamento
é atribuída, como discutido, à concorrência entre os verbos t
er
e
haver.
Em
virtude de uma forma ter suplantado a outra em alguns contextos, a freqüência gramatical do
verbo
haver
reduziu
-
se sensivelmente, j
á que esse verbo
está
tendo seus usos reduzidos na língua,
tanto no âmbito da gramática, quanto no âmbito do léxico.
Excetuando
-
se o verbo
haver
, todos os
demais apresentaram um comportamento previsível e regular, ampliando linearmente a sua
freqüência gramatical ao longo dos três períodos lingüísticos estudados, o que demonstra a
expansão do processo de gramaticalização. A análise de tais dados demonstra ainda que, quanto
mais alta a freqüência gramatical no período arcaico, mais lento é o processo de expansão, que
a mudança lingüística se propaga em S, isto é, a sua velocidade de expansão é mais acentuada no
mei
o do processo e menos acelerada
nas extremidades.
Sueli Maria Coelho
146
4
4
.
.
1
1
.
.
7
7
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
C
C
O
O
M
M
P
P
A
A
R
R
A
A
T
T
I
I
V
V
A
A
D
D
A
A
S
S
F
F
R
R
E
E
Q
Q
Ü
Ü
Ê
Ê
N
N
C
C
I
I
A
A
S
S
T
T
O
O
T
T
A
A
I
I
S
S
Apresentadas e discutidas as freqüências diacrônicas de cada uma das cinco formas
verbais que constituem o objeto deste estudo, resta, em se tratando da freqüência do item, a
análise da freqüência total dos verbos. Conforme metodologia quantitativa proposta por Vianna
(2000) e por Vitral (2004), e
spera
-se que, à medida que o processo se expandindo, os itens se
tornem mais freqüentes, porque passam a ser empregados tanto na categoria de item
lexical
quanto na categoria de item
funcional.
A análise da tabela 17, a seguir, auxiliará na comprovação
ou não dessa hipótese.
TABELA
17
:
Análise compa
rativa da freqüência dos verbos
por período.
Período arcaico
Período moderno
Período contemporâneo
Total geral: 33969
Total geral: 36792
To
tal geral: 33532
Teste
Qui
-
Quadrado
Ocorrência
Porcentagem
Ocorrência
Porcentagem
Ocorrência
Porcentagem
P
*
TER
163
0,48%
204
0,55%
209
0,62%
0,044
HAVER
268
0,79%
262
0,71%
54
0,16%
< 0,001
SER
839
2,47%
732
1,99%
835
2,49%
< 0,001
ESTAR
87
0,26%
89
0,24%
168
0,50%
<
0,001
IR
113
0,33%
28
0,08%
77
0,23%
< 0,001
O verbo
ter
, mais uma vez, parece se comportar de forma bastante regular. A comparação
da freqüência do item
ter
em suas formas lexical e gramatical ao longo dos três períodos
demonstra que ele foi tornando-se mais freqüente: teve sua freqüência total aumentada de 0,48%,
no período arcaico, para 0,55%, no período moderno, e para 0,62%, no período contemporâneo.
Contudo, para uma maior seguridade da análise quantitativa proposta, necessário se faz dispensar
*
Significativo quando o valor de P for igual ou inferior a 0,05.
Sueli Maria Coelho
147
um tratamento estatístico às freqüências observadas, com o intuito de
se
verificar se o
cresciment
o detectado é também significativo sob a óptica matemática. A tabela 18, a seguir,
propõe
-
se a esclarecer tal questionamento:
TABELA 18
:
Análise
estatística da freqüência do verbo
ter
PERÍODO
FREQÜÊNCIA
OBSERVADA
FREQÜÊNCIA
ESPERADA
ARCAICO
163
187,6
MODERNO
204
203,1
CONTEMPORÂNEO
209
185,3
Considerando-se o fato de que os
corpora
possuem tamanhos aproximados, calculou-
se
estatisticamente
o peso de cada período e procedeu-se à comparação das freqüências observadas
com as que se esperavam obter no universo, caso os
corpora
fossem de tamanhos equivalentes.
Assim, partindo-se da premissa de que em pelo menos um dos períodos registrar-
se
-ia um
crescimento significativo, optou-
se por aplicar o teste de aderência do Qui
-
Quadrado.
A análise da tabela 18 demonstra que apenas no período arcaico a freqüência observada
foi inferior à freqüência esperada. No período moderno, a freqüência observada praticamente se
igualou à freqüência esperada e, no período contemporâneo, a freqüência observada superou a
esperada. Aplicando-se o teste de aderência do Qui-Quadrado sobre tais valores, obtém-se o
resultado de P = 0,044. Isso significa que, estatisticamente, registrou-
se
uma diferença
significativa entre os períodos, o que atesta, com uma margem de erro inferior a 5%, o
crescimento da freqüência do item.
O verbo
haver
, como se previa, teve a sua freqüência reduzida de 0,79%, no período
arcaico, para 0,16%, no período contemporâneo. Essa queda na freqüência do item subordina-
se
ao aumento de 29,16% alcançado pelo
ter
, que passou a substituir o
haver
no período
Sueli Maria Coelho
148
contemporâneo em alguns de seus contextos. A tabela 19 exibe os valores estatísticos
encontrados
para o auxiliar
haver:
TABELA
19
:
Análise estatística da freqüência do verbo
haver
PERÍODO
FREQÜÊNCIA
OBSERVADA
FREQÜÊNCIA
ESPERADA
ARCAICO
268
190,2
MODERNO
262
205,9
CONTEMPORÂNEO
54
187,9
A análise estatística empreendida demonstra que, tanto no período arcaico quanto no
período moderno, a freqüência observada foi superior à freqüência esperada, caso os
corpora
apresentassem o mesmo número de palavras. Entretanto, no período contemporâneo, a freqüência
esperada superou a observada em mais de três vezes. Isso significa que a maior queda de
freqüência da forma concentra-se no período contemporâneo. O resultado do teste de aderência
do Qui-Quadrado (cf. tabela 17) comprova o índice de significância dos dados obtidos. O valor
encontrado para P (menor que 0,01) comprova, com uma margem de erro inferior a 1%, a
redução da freqüência d
e
haver.
O verbo
ser
manteve a liderança de freqüência em todos os três períodos da língua. A
queda de freqüência registrada no período moderno pode estar associada à concorrência com o
verbo
estar
e também à normalização da língua. Levando-se em consideração o fato de que a
maioria das formas verbais analisadas
n
ão se comportou
previsivelmente
na passagem do período
arcaico para o moderno, de se analisar tal irregularidade à luz de questões não meramente
lingüísticas, mas também extralingüísticas, como os fatores de cunho histórico, por exemplo. Se
no período arcaico não existia uma regularidade nos registros lingüísticos, no período moderno
aconteceu a normalização da língua portuguesa, o que contribuiu para limitar certas
Sueli Maria Coelho
149
arbitrariedades não apenas ortográficas, mas também gramaticais. A esse respeito, Paiva (1988)
atesta que
as primeiras gramáticas a de Fernão de Oliveira, em 1536, e a de João de Barro, em
1540
procederam à sistematização de algumas normas que, por sua vez, manejadas e
enriquecidas pelo trabalho artístico dos escritores renascentistas, eliminaram grande
parte das variantes.
(p. 42, grifos nossos
)
Spina (1987) chega a falar que o surgimento das primeiras gramáticas e dos primeiros
dicionários disciplinou as estruturas lingüísticas, embora “ao lado das formas eruditas, literárias,
continuaram fluentes na sua realidade fônica e morfológica as formas da tradição medieval”.
(SPINA, 1987, p. 16) Explica ainda o autor que existia “um movimento em prol da ordem
doutrinária na sistematização e aprimoramento da língua” (
ibidem
) que visava a evitar que a
linguagem popular e viva fosse reproduzida nas obras literárias sob a alegação de qual tal
modalidade
lingüística constituía um português ‘velho’ e relho’” (op. cit, p. 16). Ainda assim,
não foi possível tolher toda a expressão do caráter arcaizante e popular da língua daquela época, o
que justifica a identificação de tais usos.
Superada a questão normativa e também a concorrência das formas, no período
contemporâneo, o verbo
ser
continua
mantendo a liderança na freqüência, alcançando um índice
percentual de freqüência total de 2,49%. A tabela 20, apresentada abaixo, presta-se a exibir os
valores do teste estatístico aplicado para verificar a relação entre a freqüência observada e a
esperada, caso houvesse uma eqüidade entre os
corpora
.
Sueli Maria Coelho
150
TABELA 20
:
Análise estatística da freqüência do verbo
ser
PERÍODO
FREQÜÊNCIA
OBSERVADA
FREQÜÊNCIA
ESPERADA
A
RCAICO
839
783,6
MODERNO
732
848,5
CONTEMPORÂNEO
835
774,0
Os dados obtidos com o teste estatístico
aplicado
revelam que, no período arcaico, a
freqüência observada foi superior à freqüência esperada. No período moderno, contudo, em
virtude dos fatores mencionados, a freqüência observada foi inferior à freqüência esperada,
embora, estatisticamente, houvesse a probabilidade de se registrar, nesse período, um pico de
freqüência. Na era contemporânea, como sinalizara a porcentagem obtida, a freqüência voltou
a crescer e os índices observados superaram os esperados. O índice de P < 0,01, obtido com o
teste Qui-Quadrado sobre os valores de freqüência encontrados, revelam, mais uma vez, com
uma margem ínfima de erros, o grau de confiabilidade dos resulta
dos obtidos.
O verbo
estar
, que exibiu uma freqüência lexical e gramatical regulares, não manteve essa
regularidade ao ter concluído o cômputo de sua freqüência total. No período moderno, ao invés
de se registrar um aumento de sua freqüência, registrou-
se
uma queda de 7,69%, que no
período arcaico alcançou um índice percentual de 0,26%, que se reduziu para 0,24%, na era
moderna. Acredita-se que essa queda esteja associada principalmente à concorrência entre as
formas
ser
e
estar e também ao processo de
normalização da língua, como já mencionado quando
da análise proposta para a forma concorrente.
Finda
a concorrência semântica com o
ser
, no
período contemporâneo, o verbo estar aumentou significativamente a sua freqüência, chegando
ao percentual de 0,50%. Os dados dispostos na tabela 21, a seguir, relacionam as freqüências
obtidas com aquelas esperadas:
Sueli Maria Coelho
151
TABELA 21
:
Análise estatística da freqüência do verbo
estar
PERÍODO
FREQÜÊNCIA
OBSERVADA
FREQÜÊNCIA
ESPERADA
ARCAICO
87
112,0
MODERNO
89
121,3
C
ONTEMPORÂNEO
168
110,7
Com base nos dados estatísticos apresentados na tabela 21, pode-se afirmar que, tanto no
período arcaico quanto no moderno, a freqüência observada foi inferior à esperada. Já, no período
contemporâneo, os índices observados superaram os esperados. O índice de P < 0,01 obtido com
o teste Qui-Quadrado significa que, com um grau de confiabilidade equivalente a 99%, a forma
tornou
-
se mais freqüente com o passar dos anos, o q
ue corrobora a expansão gramatical do item
.
Outra forma verbal que apresentou regularidade diacrônica, expandindo suas ocorrências
gramaticais, sem aumentar, contudo, a sua freqüência total foi o verbo
ir
. Constatou-se uma
redução expressiva de sua freqüência do período arcaico (0,33%) para o período moderno
(0,08%).
Embora tenha voltado a se tornar relativamente freqüente no período contemporâneo,
não chegou a alcançar a mesma freqüência registrada no período arcaico, obtendo um índice
percentual de 0,23%. Mais uma vez, recorre
-
se à análise dos valores semânticos na
tentativa de se
explicar como um item que ampliou significativamente sua freqüência gramatical, passando a ser
empregado majoritariamente nesta categoria, pode ter sua freqüência total reduzida. O fato é que,
como ocorreu com outros verbos analisados, o verbo
ir
também se deslexicalizou na língua
portuguesa. Como ele deixou de ser empregado em algumas acepções outrora registradas (cf.
subseção 4.2.1.5), é natural que sua freqüência total restrinja-se, ainda que seus empregos
gramaticais expandam-se. Além disso, de se considerar o fato de que tal auxiliar está sendo
empregado para expressar a futuridade no idioma e, nessa função, enfrenta a concorrência com a
desinência modo-temporal de futuro, o que acaba inibindo o aumento de sua freqüência. A
análise
da tabela 22
auxiliará na verificação dos valores obtidos:
Sueli Maria Coelho
152
TABELA 22
: Análise estatística da freqüência do verbo
ir
PERÍODO
FREQÜÊNCIA
OBSERVADA
FREQÜÊNCIA
ESPERADA
ARCAICO
113
71,0
MODERNO
28
76,9
CONTEMPORÂNEO
77
70,1
Os resultados do teste estatístico aplicado e dispostos na tabela 22 demonstram que
apenas no período arcaico a freqüência observada superou a freqüência esperada. No período
moderno, como ocorrera com as outras formas analisadas, registrou-se o menor índice de
freqüência da forma, que não alcançou o percentual de 50% da freqüência esperada. No período
contemporâneo, mesmo retomando o crescimento, a freqüência observada apenas se aproximou
da esperada. O índice obtido com o teste Qui-Quadrado (P < 0,01) vem comprovar que também
sob
a óptica estatística não houve um aumento na freqüência da forma, mesmo esta sendo
prioritariamente empregada na contemporaneidade com valor gramatical.
A análise empreendida revelou que a gramaticalização das formas lexicais em formas
gramaticais remonta ao período arcaico da Língua Portuguesa. Os dados obtidos permitem
esboçar
uma cronologia de gramaticalização para as cinco formas estudadas, qual seja: (a) o
primeiro verbo a assumir características funcionais foi o verbo
ser
, que era empregado como
verbo auxiliar de passiva no Latim, língua-mãe do Português; (b) o segundo verbo a incorporar
tais funções foi o verbo
haver
, cujo emprego como item gramatical data do Romance;
(c)
o
terceiro verbo a integrar o rol das categorias gramaticais foi, provavelme
nte,
o verbo estar que,
na época, ainda era um concorrente semântico do verbo
ser
;
(d
) o próximo verbo a se tornar
auxiliar foi, possivelmente, o verbo
ir
, cujo processo de gramaticalização iniciou-se também num
estágio lingüístico anterior ao período arca
ico
, seguido pelo verbo
ter.
A análise das freqüências
das formas verbais revela ainda que, sagrada a mudança do verbo pleno em auxiliar, iniciou-se o
Sueli Maria Coelho
153
pr
ocesso de difusão dessa mudança, ou seja, a expansão gramatical das formas auxiliares.
Cumpre e
sclarece
r, contudo, que a gramaticalização do verbo pleno em verbo auxiliar, a despeito
de ser o resultado de uma mudança de categoria, não constitui uma mudança lingüística no
sentido laboviano do termo. Para Labov (1972), a mudança lingüística pressupõe a concor
rência
de formas. No caso da gramaticalização de verbos plenos em auxiliares, não se verifica
concorrência entre a forma lexical e a gramati
cal, mas uma co
-
ocorrência das duas formas, já que
elas não expressam o mesmo valor de verdade, nem cumprem as mesma
s funções
na língua
.
Por fim, resta considerar que, desde o período arcaico, pode-se perceber a expansão do
processo de gramaticalização das formas auxiliares na língua e essa expansão, segundo previsto
na literatura concernente ao fenômeno, deverá se pro
longar até que as formas auxiliares venham a
se tornar formas presas, agregando-se às formas principais. Contudo, a comprovação ou não de
semelhante previsão o tempo poderá revelar, que diversos fatores entram em jogo em se
tratando da difusão de uma mudança lingüística e também, como adverte Lehmann (1982), as
fases da gramaticalização não são obrigatoriamente seguidas por todos os itens, podendo ocorrer
a
sua
cristalização em um dos estágios.
Finda a análise da freqüência dos itens, cumpre proceder à observação de questões
semânticas envolvidas no processo de gramaticalização, assunto que constitui o tema da próxima
sub
seção.
Sueli Maria Coelho
154
4
4
.
.
2
2
.
.
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
E
E
A
A
S
S
P
P
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C
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T
T
O
O
S
S
S
S
E
E
M
M
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N
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T
T
I
I
C
C
O
O
S
S
D
D
O
O
S
S
I
I
T
T
E
E
N
N
S
S
4
4
.
.
2
2
.
.
1
1
E
E
X
X
P
P
A
A
N
N
S
S
Ã
Ã
O
O
S
S
E
E
M
M
Â
Â
N
N
T
T
I
I
C
C
A
A
Durante a expansão do processo de gramaticalização, os itens tornam-se mais freqüentes,
perdem conteúdo nocional e também alteram
-
se semanticamente, na medida em que passam a ser
empregados em novas acepções. A incorporação de novos semas concorre para a polissemia do
item, que, ao longo do processo de gramaticalização, passa a ser empregado não apenas em seu
sentido etimológico, mas também em acepções que representam expansões abstratas de seus
sentidos etimológicos. A análise dos semas das cinco formas verbais analisadas será detalhada a
seguir, mas, antes, cumpre ressaltar, conforme já mencionado na descrição da metodologia, que a
identificação das acepções semânticas foi empreendida à luz da competência lingü
ística
contemporânea.
Visando a elucidar para o leitor os semas identificados, organi
zou
-se uma amostragem do
elenco semântico de cada uma das formas verbais, acompanhada de um fragmento ilustrativo, e
apresentou
-a em apêndice (cf. p. 298). Tal procedimento se deve a uma tentativa de evitar a
fragment
ação do raciocínio que a
incursão d
o exemp
lo na tessitura textual poderia acarretar.
Sueli Maria Coelho
155
4
4
.
.
2
2
.
.
1
1
.
.
1
1
A
A
N
N
Á
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L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
E
E
X
X
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O
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S
S
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M
M
Â
Â
N
N
T
T
I
I
C
C
A
A
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
T
T
E
E
R
R
A tabela 23, a seguir, exibe os valores semânticos do item
ter
lexical no período arcaico.
Conforme consulta realizada em Cunha (1997), este verbo possuía apenas um sentido
etimológico, qual seja:
ter
:
vb
. ‘estar na posse de’ ‘possuir, haver’” (p. 764). A expressão da
posse alienável constitui, pois, considerando-se o critério adotado no presente estudo, o sentido
concreto do verbo
ter
; os demais sentidos registrados constituem expansões semânticas do verbo,
as quais tendem a se tornar, diacronicamente, mais abstratas.
TABELA
23
:
Valores semânticos de
ter
lexical no período arcaico
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores s
emânticos
Ocorrência
(%)
estar na posse de, possuir
35,17
haver, existir
17,24
apresentar, mostrar
15,17
alcançar, conseguir, obter
11,03
dispor de
8,97
a
creditar
4,14
m
anter
2,07
gozar, desfrutar
1,38
considerar, julgar
1,38
adota
r, proceder
1,38
e
star
0,69
dispensar, despender
0,69
encontrar
-
se com
0,69
Total
35,17
Total
64,83
Pode-se afirmar que, no período arcaico, o verbo
ter
já era empregado polissemicamente,
pois, além da acepção etimológica da posse alienável,
registraram
-se mais doze semas
Sueli Maria Coelho
156
relacionados a essa forma verbal. O sema que obteve a maior freqüência foi o relacionado à
expressão da posse (35,17%). Em segundo lugar, registrou-se, em 17,24% das ocorrências, o
emprego do verbo ter na acepção de “haver, existir”. A acepção de “apresentar, mostrar”
ocorreu em 15,17% dos usos, seguida da acepção de “alcançar, conseguir, obter”, cuja freqüência
perfez um índice percentual de 11,03%. O sentido de “dispor de”, ainda usual na
contemporaneidade, foi recorrente em 8,97% das ocorrências. O sentido de “acreditar” foi
reg
istrado em 4,14% dos contextos analisados e o sentido de “manter”, em 2,07% d
eles
. os
semas gozar, desfrutar”; “considerar, julgar” e “adotar, proceder” obtiveram um índice
percentual equivalente de ocorrências, qual seja, 1,38%. As ocorrências semânticas mais baixas
no período arcaico referem
-
se à expressão dos sentidos de
“estar”, de “dispensar, despender”
e de
“encontrar
-
se com”, registrando
-
se, nos três
casos, uma ocorrência de
apenas
0,69%.
No período moderno, conforme demonstra a análise da tabela 24, a seguir, registrou-
se
uma redução dos valores semânticos do verbo
ter
, identificando-se apenas doze acepções
semânticas. Tal redução, como mencionado, deve ser entendida também à luz do processo de
normalização por que passou a Língua Portuguesa nesse período principalmente se se
considerar que a pesquisa tomou como
corpora
textos escritos – e não apenas como uma
conseqüência da expansão do caráter gramatical da forma.
Sueli Maria Coelho
157
TABELA
24
:
Valores semânticos de
ter
lexical no período moderno
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
estar na posse de, possuir
39,35
dispor de
12,90
manter
12,90
apresentar, mostrar
12,26
haver, existir
9,03
sentir, experimentar
6,45
alcançar, conseguir, obter
3,23
produzir, efetuar
1,28
gozar, desfrutar
0,65
considerar, julgar
0,65
acolher, abrigar, hospedar
0,65
encontrar
-
se com
0,65
Total
39,35
Total
60,65
Ver
ificou
-se, nesse período, uma ampliação do sentido etimológico, que passou a ser
empregado em 39,35% das ocorrências, e também dos sentidos de “dispor de” e de “manter”, que
figuraram, ambos, em 12,90% das ocorrências. os sentidos de “apresentar, mostrar” , “haver,
existir”
e de “alcançar, obter” tiveram suas freqüências reduzidas, respectivamente, para
12,26% ,
9,03%, e 3,23%. Os valores semânticos de “gozar, desfrutar”, de “considerar, julgar” e de
“encontrar
-se com” também apresentaram uma freqüência praticamente residual neste período,
alcançando um índice de apenas 0,65% das ocorrências. Outros três semas não registrados no
período arcaico foram identificados no período moderno: “sentir, experimentar (6,45%),
“produzir, efetuar”(1,28) e “acolher, abrigar, hospedar”(0,65%). Apesar de terem surgido, nesse
período, três novas acepções, quatro acepções registradas no período arcaico desapareceram no
moderno, a saber: “acr
editar”, “estar”, “dispensar, de
spender” e “adotar, proceder”.
No período contempor
âneo, o verbo
ter
experimentou, novamente, uma expansão em seus
valores semân
ticos, conforme revelam os semas dispostos
na tabela 25
:
Sueli Maria Coelho
158
TABELA
25
:
Valores semânticos de
ter
lexical no período contemporâneo
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
estar na posse de, possuir
7,50
dispor de
21,67
apresentar, mostrar
18,33
alcançar, conseguir, obter
11,67
haver, existir
10,83
gozar, desfrutar
10,00
manter
5,83
sentir, experimentar
5,0
0
tomar por parâmetro
3,34
sofrer ou padecer de
2,50
acontecer, suceder
1,67
considerar, julgar
0,83
receber, ser punido com
0,83
Total
7,50
Total
92,50
Nesse período, registrou-se uma redução do uso etimológico, que foi cotejado em apen
as
7,50% das ocorrências. os semas “dispor de”, “apresentar, mostrar”, “alcançar, conseguir,
obter”
e “gozar, desfrutar”
ex
pandiram
-se significativamente, obtendo, respectivamente, os
índices percentuais de 21,67%, 18,33%, 11,67% e 10,00% do total das ocorrências registradas.
Pode-se considerar que a acepção semântica de “haver, existir” permaneceu estável, que na
passagem de um período a outro a sua expansão alcançou índices praticamente residuais. O sema
“considerar, julgar”, que ocorria em baixa freqüência no período arcaico, manteve um índice
de 0,83%, igualando-se, em termos de ocorrência, a um sema que emergiu no período
contemporâneo, a saber: “receber, ser punido com”. Das acepções semânticas surgidas no período
moderno, a única que permaneceu no período contemporâneo foi aquela relacionada à expressão
do sentido de “sentir, experimentar”, que ocor
reu em 5,00% dos usos identificados.
A análise das acepções semânticas do período contemporâneo demonstra que o verbo
ter
continua em processo de expansão lexical, pois surgiram quatro novos semas não identificados
nos dois períodos anteriores: “tomar por parâmetro”, que obteve uma freqüência de 3,34% das
Sueli Maria Coelho
159
ocorrências; “acontecer, suceder”, cuja freqüência foi de 1,67%; “sofrer ou padecer de”, cujos
usos alcançaram uma freqüência de 2,50% e “receber, ser punido com” já mencionado com
uma ocorrência de 0,83%.
4
4
.
.
2
2
.
.
1
1
.
.
2
2
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
E
E
X
X
P
P
A
A
N
N
S
S
Ã
Ã
O
O
S
S
E
E
M
M
Â
Â
N
N
T
T
I
I
C
C
A
A
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
H
H
A
A
V
V
E
E
R
R
A forma verbal
haver
, que contemporaneamente tem sido substituída pelo verbo
te
r em
alguns contextos, apresentava um estágio avançado de gramaticalização no período arcaico,
considerando
-se a alta freqüência de formas gramaticais nesse período. Espera-se, pois, que, em
virtude desse processo de gramaticalização instaurado, o item apresente uma expansão
semântica em seus usos, realizando-se polissemicamente. A análise da tabela 26, a seguir,
corrobora essa hipótese:
TABELA
26
:
Valores semânticos de
haver
lexical no período arcaico
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semântico
s
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
ter, possuir
32,74
obter, conseguir
19,00
e
xistir
25,60
fazer, realizar
4,18
considerar, julgar
10,12
ter transcorrido tempo
2,98
dar, conceder
1,79
travar, empreender
1,19
permanecer, ficar
0,60
vencer, alcançar êxito
0,60
sentir, experimentar
0,60
suceder, acontecer, ocorrer
0,60
Total
68,46
Total
31,54
Sueli Maria Coelho
160
Uma consulta a Cunha (1997) atesta a existência de três (ou quatro, se não se considerar
pertinente incluir a acepção de “alcançar” no mesmo campo semântico de “ter”,“possuir”)
sentidos etimológicos para o verbo:
haver
vb
. ‘ter, possuir, alcançar, considerar, existir’” (p.
404).
Embora
a inclusão do sema “existir” no elenco das acepções concretas do item
possa
parecer um procedimento incoerente admitindo-se o fato de que em se tratando do verbo
ter
tal
sema foi considerado um uso abstrato, cumpre advertir o leitor de que não se trata de um recorte
arbitrário, mas de uma obediência a um critério diacrônico postulado por este estudo. S
egundo
esse critério, concebem
-
se como concretos os usos mais antigos do item e como abstratos aqueles
que lhe são posteriores.
A análise das acepções arcaicas sinaliza uma expansão semântica, que foram
encontradas, neste período, doze possibilidades distintas de usos semânticos do verbo. Ao
analisar a tabela dos valores semânticos arcaicos, o primeiro fato instigante é a alta ocorrência do
sema “ter, possuir”, que alcançou um índice percentual de 32,74%. Na contemporaneidade, essa
forma verbal tem conquistado a preferência do falante, que passa a preterir o verbo “haver”,
reservando
-o para contextos mais formais. Outro sema bastante recorrente nesse período
relaciona
-
se semanticamente ao verbo “ter”, já que representa um de seus usos abstratos. Trata
-
se
do sentido de “obter, conseguir”, registrado em 19,00 % das ocorrências. O segundo índice
percentual mais recorrente no período arcaico foi um sema ainda empregado na
contemporaneidade
para expressar a impessoalidade. Trata-se do sema “existir”, que foi co
tejado
em 25,60% das ocorrências. Das acepções etimológicas do verbo, a que foi empregada em menor
escala foi a relacionada à expressão do sentido de “considerar, julgar”, cujo índice percentual foi
de 10,12% do total das ocorrências.
Deslocando
-se o foco da análise para as acepções abstratas do item, percebe-se que,
excetuando
-se os semas “obter, conseguir” comentado –; “fazer, realizar”, que foi registrado
Sueli Maria Coelho
161
em 4,18% das ocorrências; “ter transcorrido tempo”, cuja freqüência foi de 2,98%; “dar,
conced
er”, empregado em 1,79% das ocorrências; e “travar, empreender”, que alcançou um
índice percentual de 1,19%, todos os demais apresentaram uma freqüência residual neste período.
A baixa freqüência dos semas “permanecer, ficar” (0,60%), “vencer, alcançar êxito” (0,60%),
“sentir, experimentar” (0,60%) e “suceder, acontecer, ocorrer” (0,60%) suscita duas hipóteses: (a)
tais semas estão emergindo no período arcaico ou (b) estão deixando de ser empregados pelo
falante
, caindo, portanto, em desuso na língua. A opção por uma delas será feita de forma mais
segura se se analisarem também os valores semânticos do verbo no período moderno. Assim, se
houver um aumento na freqüência desses sememas em tal período, pode-se afirmar que eles
estavam surgindo na língua; caso contrário, constatar-
se
que eles estavam desaparecendo do
idioma.
TABELA
27
:
Valores semânticos de
haver
lexical no período moderno
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
e
xistir
65,60
ter tr
ato com, lidar
4,90
ter, possuir
11,80
ter transcorrido tempo
4,90
considerar, julgar
8,80
obter, conseguir
2,00
proceder, portar
-
se, comportar
-
se
1,00
levar, conduzir
1,00
Total
86,20
Total
13,80
O conjunto de semas encontrado no período moderno e disposto na tabela 27, acima,
comprova a segunda hipótese anteriormente aventada, ou seja, as acepções semânticas que
apresentaram um uso residual no período arcaico estavam caindo em desuso e desapareceram do
idioma, uma vez que não foram identificadas no período moderno. Outra conclusão extraída da
análise da tabela acima é que o verbo
haver
, em concorrência com o verbo
ter
, está se
deslexicalizando, isto é, está sofrendo uma redução de seus valores semânticos. Se, no período
Sueli Maria Coelho
162
arcaico, o campo semântico do verbo compreendia doze acepções, no período moderno, essas
acepções restringiram-se a oito. Essa restrição semântica, no entanto, não se relaciona ao
processo de gramaticalização do item, pois, nesse período, conforme análise de freqü
ência
desenvolvi
da em 4.1.2, registrou-
se
um aumento de sua freqüência gramatical, o que comprova
que tal item não está se desgramaticalizando. O que ocorre, como visto, é que, em virtude da
concorrência de formas, o verbo
haver
passa a ser substituído, em alguns contextos, por seu
concorrente
ter
. Ma
ttos e Silva (2001
[1994]
) explica que
no período arcaico (
h)aver
e
teer
não estavam, no princípio, em variação livre nas
estruturas de posse:
(h)aver
ocorria com complemento de qualquer valor semântico
bens materiais a
dquiríveis
(a
), qualidades imateriais adquiríveis
(b)
, qualidades
intrínsecas ao sujeito
(c
). Do século XIV para o XV (...), se pode observar que t
eer
ocorria comutando com
(h)aver
com atributos do tipo a e, menos freqüentemente, do
tipo
b; na primeira metade do século XV aparece t
eer/teer
nos três “tipos de posse”,
sendo ainda
(h)aver
mais freqüente; já na segunda metade do mesmo século se evide
ncia
o recesso de
(h)aver
e o avanço de
teer
com os três tipos de atributo. (MATTOS E
SILVA, 2001
, p. 78)
A análise da tabela 27 demonstra, ainda, que a redução semântica limita-se às extensões
abstratas, pois os três sentidos etimológicos identificados no período arcaico permaneceram no
período moderno. A variação detectada em relação a esses sentidos refere-se ao índice de
ocorrência. No período moderno, registrou-se uma queda na ocorrência do sema considerar,
julgar”, que obteve uma freqüência de 8,80%, e uma inversão dos semas “ter, possuir” que
sofreu uma redução de 32,74%, no período arcaico, para 11,80%, no período moderno –, e
“existir”, que estendeu seus usos de 25,60%, no arcaico, para 65,60%, no moderno. No que tange
às acepções abstratas, a
penas dois semas registrados no período arcaico puderam ser identificados
também no período moderno: “obter, conseguir” e “ter transcorrido tempo”. A análise dos índices
percentuais dos dois semas prenuncia comportamentos lingüísticos diferenciados para cada um
Sueli Maria Coelho
163
deles. Assim, à medida que o verbo
ter
foi expandindo-se na língua, o sema “obter, conseguir”
foi sendo incorporado ao seu campo semântico abstrato e sua ocorrência reduziu de 19,00% para
2,00%. o sema “ter transcorrido tempo” foi se estendendo e sua ocorrência aumentou de
2,98%, no período arcaico, para 4,90%, no período moderno. Isso induz à expectativa de que, no
período contemporâneo, o sema que teve seu uso reduzido venha a desaparecer do idioma e o
outro se torne mais recorrente.
Se, por um lado, no período moderno, algumas acepções semânticas reduziram ou mesmo
desapareceram, por outro, novos semas também foram identificados: “ter trato com, lidar” foi
registrado em 4,90% das ocorrências abstratas; proceder, portar-se, comportar-se” e “lev
ar,
conduzir” obtiveram um índice percentual de ocorrência de 1,00% cada. Mais uma vez, faz-
se
mister recorrer à análise dos sentidos semânticos presentes no período contemporâneo, para
identificar se tais semas expandiram
-
se ou se desapareceram do idioma.
TABELA
28
:
Valores semânticos de
haver
lexical no período contemporâneo
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
e
xistir
70,30
ter transcorrido tempo
29,70
Total
70,30
Total
29,70
Os dados dispostos na tabela 28, acima, m corroborar a assertiva da deslexicalização,
ou seja, da redução de usos nos domínios do léxico, por que passa o
verbo
haver
no português do
Brasil. Nos
corpora
representativos do período contemporâneo, as acepções semântic
as
identificadas restringiram-se a apenas duas: uma etimológica e outra abstrata. A acepção
semântica que se expandiu no período moderno sobrepôs-se às outras duas, aumentando seu
Sueli Maria Coelho
164
percentual de ocorrência no período contemporâneo (70,30%). Também no campo das acepções
abstratas, o sema “ter transcorrido tempo”, que aumentou sua ocorrência no período moderno,
continuou seu processo de expansão, impondo-se sobre os demais e alcançando um índice
percentual de 29,70% das ocorrências. Com isso, pode-se afirmar que, no período
contemporâneo, o verbo
haver
encontra-se gramaticalizado, mas que, em virtude de sua
concorrência com o verbo
ter
, seus usos estão bastante restritos, o que explica a redução de sua
freqüência e também de seu campo semântico.
4
4
.
.
2
2
.
.
1
1
.
.
3
3
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
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E
X
X
P
P
A
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O
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S
S
E
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M
M
Â
Â
N
N
T
T
I
I
C
C
A
A
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
S
S
E
E
R
R
Dentre as cinco formas analisadas, a que apresentou a maior freqüência total e também o
maior número de acepções semânticas foi o verbo
ser
. Mesmo no período arcaico (cf. tabela 29
)
sua polissemia
era bastante acentuada. Isso pode ser atribuído, basicamente, a dois fatores
principais
: (a) ao estágio
bastante
avançado de seu processo de gramaticalização, mensurado pela
alta freqüência de formas gramaticais (71,39%) e (b) ao expressivo número de acepções
etimológ
icas, ou sentidos concretos, se comparado às demais formas analisadas. A consulta ao
autor Cunha (1997) revela a existência de quatro acepções etimológicas para esse verbo, quais
sejam:
ser
vb
. ‘estar, ficar, existir, tornar-se’”(p. 716). Um aspecto intrigante é que, dentre essas
acepções, não se registra aquela que traduziria a expressão dos
atributos e que é
a mais recorrente
Sueli Maria Coelho
165
na conte
mporaneidade.
Na tentativa de se explicar a origem da função atributiva, recorreu-se a
Benveniste (1966), que tece o segui
nte comentário:
Na base da análise, tanto histórica quanto descritiva, é preciso propor dois termos
distintos, que se confundem quando se fala de ser’; um é a ‘cópula’, marca gramatical
de identidade; o outro, um verbo de exercício pleno. Os dois coexist
iram
e podem
sempre coexistir, sendo completamente diferentes. Em muitas línguas, porém,
fusionaram
-
se. (p. 204
-
205)
Tal interpretação justifica o fato de a acepção copulativa “atribuir a algo ou a alguém
uma qualidade” não integrar o rol das acepções etimológicas do verbo. Na verdade, a acepção
mais recorrente na contemporaneidade e também a primeira a ser evocada, quando se menciona
tal verbo, é, segundo Benveniste (1966), um uso
gramaticalizado da forma verbal e não um de
seus exercícios lexicais. Essa concepção sobre o aporte semântico do verbo
ser
é
debitaria
da
contribuição de Kant (1980 [1781]) na sua obra maior, isto é, A Crítica da Razão Pura. De
acordo com Heidegger, no texto A Tese de Kant sobre o Ser (1979), “de um lado, Kant deu, na
discussão do ser, um passo de grandes conseqüências. De outro, este passo de Kant resulta da
fidelidade à tradição, isto quer, ao mesmo tempo, dizer, num confronto com ela, através do qual
se mostrou numa nova luz.” (p. 235)
A tese de Kant se enuncia da s
eguinte maneira:
Ser
evidentemente não é um predicado real, quer dizer, um conceito de algo que se
pudesse acrescentar ao conceito de uma coisa. É simplesmente a posição de uma coisa
ou de certas determinações em si mesmas. No seu uso lógico, é apenas a cópula de um
juízo. A proposição: Deus é todo-
poderoso
contém dois conceitos que possuem seus
objetos:
Deus
e a onipotência; a palavrinha é não é mais um predicado, mas somente
aquilo que põe o predicado em relação com o sujeito
41
. (KANT, 1980 [1781], p. 598
,
tradução nossa)
41
“Êt
re n’est manifestement pas um prédicat réel, c’est-à-dire um concept de quelque chose qui puísse s’ajouter au
concept d’une chose. C’est simplement la position d’une chose ou de certaines déterminations em soi. Dans l’usage
logique il n’est que la copule d’un jugement. La proposition: Dieu et toute-
puissant
, contient deux concepts qui ont
leurs objects:
Dieu
et toute
-
puissance;
le petit mot
est
n’est point un prédicat de plus, mais seulement ce qui pose le
prédicat en relation avec le subject.” (KANT, 1980
[1781], p. 598)
Sueli Maria Coelho
166
E
o filósofo continua:
Se eu considero o sujeito (Deus) com todos os seus predicados (aos quais também
pertence a onipotência) e digo: Deus é... não acrescento um novo predicado ao conceito
de Deus, mas coloco somente o sujeito nele mesmo com todos os seus predicados, e, ao
mesmo tempo, seguramente, o objeto que corresponde a meu
conceito
42
. (KANT, 1980
[1781], p. 626, tradução nossa)
Como se vê, Kant (1980, [1781]) distingue dois usos de
ser
: um uso
lógico
e um uso que
Heidegger chama de
deo
ôntico
. Nos dois casos,
ser
não é visto como um predicado real, isto é,
nada acrescenta ao sujeito: no primeiro uso, ele é apenas a cópula de um juízo; e, no outro uso, ou
seja, em Deus é, o se diz sobre o sujeito algum predicado real, mas, antes, o próprio sujeito
Deus, com todos os predicados, que “é posto ‘em si mesmo’” (HEIDEGGER, 1979, p. 240).
O significado da contribuição original de Kant transcende o que
aqui
se expôs. Para
Heidegger (op. cit.), exprime-se no verbo
ser
a ligação do sujeito e do predicado como uma
propriedade do pensar do próprio sujeito que pensa, ou seja, é o sujeito pensante que faz, por
meio do verbo, a unificação do sujeito e do predicado. É no desenvolvimento dessa idéia que
Heidegger (
ibidem
) localiza o que difere a visão de Kant das contribuições dos filósofos
precedentes. Não parece, contudo, necessário, em relação aos objetivos deste estudo, prosseguir
no comentário do texto kantiano. Aqui importa
apenas
considerar que é possível, de acordo com
a
metalinguagem
adot
ada, afirmar que o verbo
ser
, por não constituir
um predicado real”, deve ser
classificado como um item gramatical e não lexical. Essa visão dos fatos é compatível com a
contribuição de lingüistas que se ocuparam do tema, como Benveniste (1966) menci
onado
e Travaglia (2003)
, para quem “o verbo ser se poligramaticalizou de tal forma que hoje parece ser
42
“Si je prends le sujet (Dieu) avec tous ses prédicats (auxquels appartient également la toute-puissance), et que je
dise:
Dieu est...
je n’ajoute pás um nouveau prédicat au concept de Dieu, mas je pose seulement le sujet em lui
-
même
avec
tous sés prédicats, et em même temps assurément l’
objet
qui correspond à mon concept.” (KANT, 1980 [1781],
p. 626)
Sueli Maria Coelho
167
irreversivelmente um verbo mais gramatical do que lexical.” (p. 8) O autor ora referenciado
defende que os verbos gramaticais apresentariam o
status
de
marcador
, de
indicador
ou de
item
funcional
, os quais traduziriam graus diferenciados do processo de tramitação de uma c
ategoria
lexical a uma gramatical ou de um item menos gramatical e um item mais gramatical. O
marcador
, grau mais avançado de gramaticalização em relação aos demais, “marca alguma
categoria gramatical do verbo ou outra classe, expressando-a” (op. cit. p. 1); o
indicador
“expressa uma noção semântica muito geral e passível de se tornar categorias gramaticais,
embora isso ainda não tenha ocorrido (op. cit. p. 1); por fim, o
status
de
item funcional cabe
àquele que “desempenha, nos textos e outras seqüências lingüísticas, um papel nitidamente
gramatical, ou seja, de significação interna à língua, mas não é um marcador de categorias
gramat
icais.” (op. cit. p. 1
).
Para Travaglia (op. cit.), o uso de
ser
como um verbo de ligação é
“um misto de indicador, porque indica a noção geral e abstrata (a característica ou estado é
permanente ou tem uma duração que se percebe como ilimitada) e de item funcional, que
funciona como conectivo.” (p. 5)
Esclarecido o critério que norteou a opção de
se
considerar o verbo
ser
em sua função
copulativa como um item gramatical, resta proceder à análise dos valores semânticos desse verbo
no período arcaico
. Os
semas identificados foram
disposto
s
na tabela 29, apresentada a seguir:
Sueli Maria Coelho
168
TABELA
29
:
Valores semânticos de
ser
lexical no período arcaico
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
estar,
achar
-se em um
determinado tempo ou
espaço
25,22
acontecer, transcorrer
9,13
existir, haver
19,14
constituir, ser a essência de
8,26
ficar
7,40
pertencer a
6,06
tornar
-
se
3,92
estar na posse de, possuir
4,79
distar, ficar a certa distância de
3,05
proporcionar
2,18
manter
-
se
1,72
precisar um momento no tempo
1,72
exercer o cargo de
1,72
estabelecer, chegar a um consenso
1,31
obter, conseguir
1,31
provir, originar
-
se de
1,31
equivaler a
1,31
custar, ter o preço taxado em
0,4
5
Total
55,68
Total
44,32
Tomando
-se como escopo inicial da análise os usos etimológicos do verbo, a freqüência
mais alta de
stina
-se à expressão do estado e encontra-se representada pelo sema “estar, achar-
se
em um determinado tempo ou espaço”, que
obt
eve um índice percentual de 25,22% do total de
todas as ocorrências. Esse sema, apesar de permitir a introdução de um atributo, como o faz
aquele destinado à expressão da cópula, que é, como discutido anteriormente, um uso
gramatical,
introduz
, no conte
xto,
uma diferença
aspectual
em relação
àquele
. Assim, enquanto o
sema destinado a “atribuir a algo ou a alguém uma qualidade”
expre
ssa um atributo permanente
do sujeito, o sema relativo à expressão do estado instaura a cópula, relacionando um estado
tempo
rário ou passageiro do sujeito.
Pautando
-se pelo critério de ocorrência, a segunda m
aior
freqüência do período (19,14% das ocorrências) foi obtida por um sema
que
o se digna a
intermediar atributos, mas relaciona-se à expressão do sentido de existência: “existir, haver”.
os
outros dois semas etimológicos
cotejados
também se prestam à mediação de atributos: “ficar”
Sueli Maria Coelho
169
(7,40%
das ocorrências) e “tornar-se” (3,92% das ocorrências).
-se, pela análise empreendida,
que o verbo
ser
traz latente em sua etimologia a função copulativa, uma vez que dos quatro
semas etimológicos, apenas um n
ão se presta à intermediação de atributos.
Deslocando
-se o foco da análise para o campo das acepções abstratas do item, percebe-
se
que a maioria delas apresenta uma o
corrênc
ia residual: das quatorze acepções identificadas n
o
campo dos usos abstratos, oito apresentaram um índice percentual inferior a 2,00
%.
A maior
ocorrência foi do sema “acontecer, transcorrer” (9,13%), acompanhada dos semas “constituir, ser
a essência de” (8,26%), “estabelecer, chegar a um consenso” (6,06%), “estar na posse de,
possuir” (4,79
%),
distar, ficar a certa distância de” (3,05
%)
e proporcionar (2,18%). Já os semas
“manter
-se”, “precisar um momento no tempo” e “exercer o cargo de” exibiram o mesmo í
ndice
percentual, a saber: 1,72% das ocorrências. Outro conjunto de semas apresentou similaridade de
valor percentual fixado em 1,31% das ocorrências: “estabelecer, chegar a um consenso”, “obter,
conseguir”, “provir, originar-se de” e “equivaler a”. Por fim, resta registrar o menor índice
percentual do período arcaico, 0,45% das ocorrências computadas, e que foi alcançado pelo sema
“custar, ter o preço fixado em”. Para se verificar quais dessas acepções permaneceram na língua e
quais se expandiram, faz-se necessário empreender uma análise comparativa com os semas
computados no período moderno da língua. Tais semas enc
ontram
-se dispostos na tabela 30, a
seguir:
Sueli Maria Coelho
170
TABELA
30
:
Valores semânticos de
ser
lexical no período moderno
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
estar, achar-se em um
determinado tempo ou
espaço
7,43
constituir, ser a essência de
40,06
existir, haver
6,44
pertencer a
18,63
tornar
-
se
1,48
acontecer, transcorrer
7,34
significar
, ter o sentido de
3,96
provocar, ser causa dia
2,83
exercer o cargo de
2,27
precisar um momento no tempo
1,69
provir, originar
-
se de
1,69
fazer, executar uma tarefa
1,14
mostrar
-
se simpático com
1,14
excetuar, excluir
1,14
estar na
posse de, possuir
1,14
assemelhar
-
se a, ser parecido com
0,54
expressar ou imprimir dúvida
0,54
seguir, adotar
0,54
Total
15,35
Total
84,65
A julgar pelo número de acepções semânticas identificadas no período moderno, pode-
se
afirmar que o ve
rbo
ser
passou por um processo de lexicalização, uma vez que o conjunto de
seus
semas ampliou-se para dezoito. Isso significa que, na era moderna, tornou-se mais polissêmico
que no período arcaico.
Tomando
-se como objeto de análise, inicialmente, as acepções etimológicas, percebe-
se
que, nesse período, o sema responsável pela expressão do sentido de “ficar”, que exibiu um
índice percentual de 7,40
% das ocorrências no período arcaico,
parece ter caído
em desuso, vindo
a desaparecer dos
corp
ora
. Também o sema “tornar-se”, do qual se registrou a menor ocorrência
na fase arcaica, parece caminhar para o desuso, pois a sua freqüência reduziu-se para apenas
1,48%, suscitando a expectativa de que venha a desaparecer na era contemporânea. Os semas
“estar, achar-se em um determinado tempo ou espaço” e “existir, haver” também sofreram uma
Sueli Maria Coelho
171
restrição de uso no período moderno, reduzindo seus índices de ocorrências, respectivamente,
para
7,43% e 6,44
%.
No que tange às acepções abstratas do verbo, registrou-se a entrada de oito semas não
identificados no período arcaico e o desaparecimento de sete de suas acepções. A maior
ocorrência registrada foi do sema “constituir, ser a essência de
”, que obteve um índice de 40,06
%
das ocorrências, seguido do sema “pertencer a”, cujo percentual foi de 18,63%, ambos
identificados no período arcaico. O próximo maior índice de freqüência foi alcançado por um
sema
que, assim como os demais anteriormente analisados,
se fazia presente no período
arcaico: “acontecer, transcorrer”, que r
eduziu
su
a freqüência para 7,34%. A quarta posição
pertence a um sema que emergiu no período moderno, sendo encontrado também no período
contemporâneo: “significar, ter o sentido de” (3,96%). Todos os outros onze semas identificados
apresentaram um índice
percentua
l inferior a 3,0
0%, o que significa uma ocorrência
praticamente
residual. Por ordem decrescente de freqüência, registra-se a ocorrência dos seguintes semas
:
“provocar, ser causa de” (2,83%); “exercer o cargo de” (2,27%); “precisar um momento no
te
mpo” e “provir, originar-se de”, ambos com um percentual de ocorrência de 1,69%; “fazer,
executar uma tarefa”, “mostrar-se simpático com”, “excetuar, excluir” e “estar na posse de,
possuir”,
perfazendo, cada um deles, 1,14% do total das ocorrências; “assem
elhar
-se a, ser
parecido com”, expressar ou imprimir dúvida” e “seguir, adotar”, que
obtiver
am uma
freqüência de apenas 0,54% cada.
Encontrou
-se nos
corpora,
ainda
, um outro uso do verbo
ser
registrado pelos dicionários consultados. Tal uso, apesar de não identificado nos
corp
ora
representativos do período arcaico, é bastante recorrente na contemporaneidade. Trata-se da
função expletiva do item também denominada de realce por alguns de nossos gramáticos (cf.
Bechara, 1999) cujo atributo não consiste em exercer qualquer função gramatical, mas em
Sueli Maria Coelho
172
“imprimir energia à frase”, segundo definição apresentada pelos autores das obras lexicográficas
consultadas. Esse uso alcançou um índice percentual de 10,39% das ocorrências abstratas do
período
e pode ilustrar aquilo que os autores clássicos da gramaticalização pontuam acerca do
esvaziamento semântico de itens em estágios já
bastante
avançados do processo, fato que justifica
não elencá-lo no rol dos valores lexicais abstratos. Embora a teoria do esvaziamento
semântico
do item não seja endossada por todos os estudiosos do fenômeno, há quem defenda que o grau de
abstração do item pode culminar com a perda
total
de seus valores semânticos. É essa a
abordagem que as partículas expletivas ou de realce têm recebido
por parte de nossos gramáticos.
A freqüência relativamente baixa desse uso no período ora analisado e a sua ausência na era
arcaica, mesmo em vista das limitações dos
corp
ora
, suscitam a hipótese de que seu surgimento
na língua date do período moderno
, emb
ora as evidências empíricas para essa precisão
exijam
um
estudo mais deta
lhado, o que foge ao escopo dest
e trabalho
.
Esse fato foi registrado apenas por se
acreditar que constitui uma evidência em favor do alto grau de gramaticalização do verbo
ser
,
que já
passa, em alguns contextos, a esvaziar
-
se de seu conteúdo semântico.
Retomando
-se os índices residuais do período arcaico e analisando-os em relação às
acepções semânticas da era moderna, nota-se que os semas “manter-se”, “estabelecer, chegar a
um consenso”, “obter, conseguir”, “proporcionar”, “equivaler a”, “distar, ficar a certa distância
de” e “custar, ter o preço taxado em
43
não foram cotejados no período moderno, levando à
hipótese
de que tenham desa
parecido
do idioma. os semas “provir, originar-se de”, “precisar
um momento no tempo” e “exercer o cargo”, apesar de
exibirem
uma ocorrência residual no
período arcaico, mantiveram-se no período moderno, apresentando, um índice percentual de
43
Embora não se tenha encontrado, nos
corpora,
registro desse valor nem na era moderna, nem na contemporânea, a
intuição de falante permite afirmar que ainda hoje esse sentido é muito recorrente na modalidade oral da língua: “O
livro é R$35,00.”
Sueli Maria Coelho
173
ocorrência inferior a 3
,00
%. Mais uma vez, o destino de tais semas poderá ser precisado,
analisando
-
se os dados do período conte
mporâneo, dispostos na tabela 31
, apresentada a seguir:
TABELA
31
:
Valores semânticos de
ser
lexical no período contemporâneo
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrên
cia
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
estar, achar-se em um
determinado tempo ou
espaço
14,06
acontecer, transcorrer
21,32
tornar
-
se
3,79
constituir, ser a essência de
16,46
existir, haver
2,71
precisar um momento no tempo
8,75
pertencer a
7,78
provocar, ser causa de
6,80
significar, ter sentido de
4,86
expressar aquiescência
3,89
assemelhar
-
se a, ser parecido com
3,82
expressar ou imprimir dúvida
3,82
provir, originar
-
se de
1,94
Total
20,56
Total
79,44
A mera contagem do mero de semas registrados no período contemporâneo demonstra
uma redução de acepções semânticas em relação ao período anterior. Isso suscita a hipótese de
deslexicalização do item. Contudo, uma análise mais cuidadosa revela que apenas oito, dos treze
semas
identificados, são oriundos do período arcaico; quatro são legados do período moderno;
além do mais, emergiu, na era contemporânea, uma acepção não registrada em nenhum dos dois
períodos anteriores. Logo, percebe-se que o verbo
ser
continua seu processo de expansão
semântica na língua, o que demonstra que tal item continua a se lexicalizar.
Volvendo
-se o olhar para os sentidos etimológicos, percebe-se que as três acepções
presentes no período anterior se mantiveram, apresentando apenas algumas oscilações de
freqüência. Assim, o “estar, achar-se em um determinado tempo ou espaço” continua sendo o
mais recorrente, além de ter tido sua freqüência aumentada de 7,43%%, no período moderno,
Sueli Maria Coelho
174
para 14,06%, no período contemporâneo. O sema “tornar-se”, que apresentou a freqüência
etimológica mais baixa do período moderno, suscitando a possibilidade de que pudesse
desaparecer
no período contemporâneo, ampliou a sua freqüência, alcançando um percentual de
3,79% do total das ocorrências. A menor freqüência reg
istrada
nesse período foi a do sema
destinado à expressão do sentido de “existir, haver”, que
obteve um índice de apenas 2,71
%.
A maior freqüência no campo das acepções abstratas foi computada em um sema já
presente nos períodos moderno e arcaico: “acontecer, transcorrer” (21,32
%),
assim como a
segunda
, detectada no sema
“cons
tituir, ser a essência de” (16,46
%).
A terceira maior freqüência
foi também identificada em um sema presente no período arcaico
“precisa
r um momento no
tempo”
–,
que exi
biu um ín
dice percentual de 8,75
%, assim como a quarta
“pertencer a”
–,
qu
e
alcançou um percentual de 7,78
%
do total de ocorrências. A quinta maior freqüência foi
registrada com um sema que surgiu no período moderno “provocar, ser causa de” o qual
recorreu e
m 6,80% das ocorrências, sendo o último que apresentou um índice percentual superior
a 5
,00%. Os demais semas manifestaram uma freqüência residual
ou mesmo próxima desse uso
, a
saber: “significar, ter sentido de” (4,86
%)
; “expressar aquiescência” (3,89
%);
“assemelhar
-se a,
ser parecido com” e “expressar ou imprimir dúvida” (3,82% cada uma); “provir, originar-se de”
(1,94
%).
A ocorrência dos expletivos foi tão alta nesse período
que
correspondeu quase à met
ad
e
do percentual de todas as demais acepções
abstra
tas
. Assim, enc
ontrou
-se um percentual de
35,14
% de
expletivos em relação aos 79,44
% de usos abstratos.
Comprova
-
se, dessa forma
, o alto
índice de gramaticalização do verbo
ser
, que já apresenta um índice superior a 30,00% de
esvaziamento semântico.
Sueli Maria Coelho
175
4
4
.
.
2
2
.
.
1
1
.
.
4
4
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
E
E
X
X
P
P
A
A
N
N
S
S
Ã
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O
O
S
S
E
E
M
M
Â
Â
N
N
T
T
I
I
C
C
A
A
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
E
E
S
S
T
T
A
A
R
R
A próxima forma verbal a ter seus usos semânticos analisados concorreu com o verbo
ser
por um período da história da língua. Essa concorrência existia desde o Latim, podendo ser
percebida tanto nas acepções etimológicas do verbo
ser
quanto nas do verbo estar, conforme
dados extraídos de Cunha (1997):
estar
vb
‘ser em um dado momento, ficar’” (p. 328). A
despeito de haver registro de duas acepções etimológicas, nos
corpora
deste estudo, identificou-
se, no período arcaico, apenas a primeira acepção, conforme dados dispostos na tabela 32, a
seguir. Segundo informações cotejadas em outros autores (cf. Mendes (1999)), o verbo estar
possuía ainda a acepção etimológica de “estar de pé”, o que configuraria um uso concreto,
segundo os critérios aqui propostos. Tal acepção, contudo, não foi identificada nos
corpora
dest
e
estudo.
Acredita-se que isso se deva ao recorte temporal feito, que, conforme Mattos e Silva
(2001
[1994]
), essa acepção foi documentada
apenas até o final do séc. XIV.
TABELA 3
2
:
Valores semânticos de
estar
lexical no período arcaico
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
encontrar
-se em um dado
momento ou lugar
96,36
ser
1,82
haver, existir
1,82
Total
96,36
Total
3,64
Sueli Maria Coelho
176
Como se percebe, no período arcaico, a polissemia do verbo
estar
não era muito gran
de:
registraram
-se apenas três valores semânticos, sendo um concreto e dois abstratos. De todas as
cinco formas analisadas, foi a que se mostrou menos polissêmica no período arcaico.
Considerando-se que, nesse período, tal forma enfrentava a concorrência semântica do verbo
ser
,
pode
-se atribuir a esse fator semelhante restrição semântica. O valor etimológico de “ser
(encontra
r-se) em um dado momento” foi o mais recorrente no período, registrando um índice
percentual de 96,36% do total das ocorrências. Os outros dois semas identificados apresentaram
uma ocorrência próxima do residual: 1,82%. Trata-se da expressão de “ser” e de “haver, existir”.
A análise dos semas identificados no período moderno será providencial no sentido de se
verificar se os semas com índices próximos da ocorrência residual estão caindo em desuso ou
emergindo no idioma.
Os dados dispostos na tabela 33, a
seguir
, apontam para uma expansão polissêmica do
verbo estar
, o que demonstra que tal forma verbal também está se lexicalizando, ou seja, está
ampliando o elenco de seus semas, o que favorece a sua ocorrência nos domínios do léxico
.
TABELA 3
3
:
Valores
semânticos de
estar
lexical no período moderno
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
encontrar
-se em um dado
momento ou lugar
71,42
ser
14,29
permanecer, conservar
-
se
9,53
localizar
-
se
2,3
8
haver, existir
2,38
Total
71,42
Total
28,58
O primeiro dado digno de atenção na análise dos semas do período moderno é a redução
do valor etimológico
que passou de 96,36%, no período arcaico, para 71,42%, na era moderna
Sueli Maria Coelho
177
e a
conseqüente
expansã
o do
s usos abstratos.
Estes não apenas ampliaram a sua freqüência, como
também
expandiram seu elenco. Os semas que apresentaram uma ocorrência residual no período
arcaico recorreram no período moderno. O sema “ser” ampliou significativamente a sua
freqüênc
ia, atingindo o índice de 14,29%. o sema “haver, existir”, apesar de ainda ter sido
identificado na língua,
preservou
uma ocorrência pouco significativa, qual seja, 2,38%.
Emergiram, neste período, dois novos semas não identificados no período anterior: o sema
“localizar
-
se”, que obte
ve uma ocorrência de apenas 2,38% e o sema “permanecer, conservar
-
se”,
que obteve
um índice de 9,53
% entre as ocorrências.
O processo de expansão polissêmica do verbo estar continua no período contemporâneo,
fato comp
rovad
o pela análise da tabela 34
, apresentada a seguir:
TABELA
34
:
Valores semânticos de
estar
lexical no período contemporâneo
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
encontrar
-se em um dado
momento
ou lugar
56,26
apresentar-
se, comparecer
12,48
atuar, exercer (cargo)
12,48
ter, possuir
6,26
permanecer, conservar
-
se
3,13
haver, existir
3,13
intensificador (
muito, bastante
)
3,13
apoiar
3,13
Total
56,26
Total
43,74
Segundo os dados obtidos nos
corpora,
pode
-se afirmar que o verbo
estar
expandiu
-
se
semanticamente, que, neste período,
seu
semema passou a compor-
se
de oito semas. O
fenômeno de redução do uso etimológico e de expansão dos semas abstratos, constatado no
período moderno, foi recorrente
também
na contemporaneidade. Mais uma vez, o sema
“encontrar
-se em um dado momento ou lugar” teve seus usos reduzidos de 71,42% (período
Sueli Maria Coelho
178
mod
erno) para 56,26% (período contemporâneo), confirmando a perda de conteúdo nocional do
item.
O sema “localizar-se”, que exibiu uma baixa ocorrência no período moderno, não foi
identificado no período contemporâneo, o que suscita a hipótese de que tenha desaparecido do
idioma. Também o sema “ser”, que exibiu uma ocorrência quase residual na era arcaica (1,82
%),
aumentando
consideravelmente
sua ocorrência no período moderno (14,29%), não foi registrado
no período contemporâneo. Contudo, os índices computados mostram-se parcos para propiciar
um posicionamento seguro quanto ao surgimento ou à desaparição de tais acepções semânticas.
o sema “haver, existir”, que apresentou uma ocorrência próxima do residual tanto no período
arcaico quanto no moderno, o desapareceu do idioma. Mesmo com uma baixa ocorrência, sua
pr
esença foi registrada em 3,13% das ocorrências. Cinco novos semas emergiram no período
contemporâneo: “apresentar, comparecer” (12,48
%),
“atuar, exercer (cargo)”, (12,48%), “ter,
possuir” (6,29%), “intensificador” (3,13
%)
e “apoiar” (3,13%). Frente à análise realizada, vê-
se
que o verbo
estar
e
xpandiu
-se semanticamente ao longo de seu processo de gramaticalização, ao
mesmo tempo em que foi perdendo conteúdo nocional e aumentando seus usos abstratos, o que
corrobora
, também sob a perspectiva semântica, a hipótese de sua gramaticalização como verb
o
auxiliar.
Tais dados, contudo,
vão de encontro à teoria proposta por Pountain (1982), para quem o
verbo
estar
seguiu três diferentes destinos nas línguas rom
ânicas:
(a) manutenção da cópula e
redução de seus sentidos lexicais plenos (Castelhano e Português); (b) manutenção e ampliação
de seus sentidos lexicais plenos e desenvolvimento da função copulativa e auxiliar (Italiano e
Romeno) e (c) total desaparecimento (Francês). Os dados identificados e analisados por esse
estudo permitem elencar taxionomicamente o verbo
estar
no segundo e não no primeiro grupo,
como o fez o autor. O que se verifica no Português é o desenvolvimento da função copulativa do
verbo e também da
auxiliarização
, a despeito de se conservar, em alguns contextos, seus sentidos
lexicais p
lenos.
Sueli Maria Coelho
179
4
4
.
.
2
2
.
.
1
1
.
.
5
5
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
E
E
X
X
P
P
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O
O
S
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M
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N
N
T
T
I
I
C
C
A
A
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
I
I
R
R
De todas as formas analisadas, o verbo
ir
foi o que exibiu mais particularidades
semânticas. O elenco de semas dessa forma verbal praticamente não recorre entre um período e
outro, o que demonstra que tal verbo está passando por um constante processo de
deslexicalização. Ao contrário das demais formas, que restringiram seus usos etimológicos e
ampliaram seus usos abstratos, o verbo
ir
apresentou um comportamento semântico diferenciado,
encorpando
suas acepções etimológicas e perdendo, diacronicamente, nuanças abstratas. A mera
observação de seus usos lexicais no período arcaico (cf. tabela 35) demonstra que o verbo não
era tão polissêmico quanto
a maioria dos demais analisados.
TABELA
35
:
Valo
res semânticos de
ir
lexical no período arcaico
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
deslocar
-
se, mover
-
se
35,29
seguir, percorrer
12,94
partir, retirar
-
se
21,18
comparecer, apresentar
-
se
10,59
seguir adiante, prosseguir
8,24
opor
-
se, posicionar
-
se contra
7,06
caminhar para uma desgraça
3,53
perseguir
1,18
Total
56,47
Total
43,53
Segundo dados extraídos de Cunha (1997), esse verbo possui três acepções etimológicas:
ir
vb
. ‘passar de um lugar para outro, partir, decorrer’” (p. 445). Entretanto, nos
corpora
selecionados para este estudo, identificaram-se, em todos os três períodos, apenas dois de seus
Sueli Maria Coelho
180
sentidos etimológicos: um destinado à expressão do deslocamento e o outro destinado à
expressão da partida. Em virtude dos fatores supramencionados, verificou-se uma redução na
freqüência do item e também um aumento de seus usos concretos. Conforme se pode observar na
tabela acima, as acepções etimológicas foram as mais recorrentes. Os dados tabulados
demonstram que o sema destinado a exprimir o sentido de “deslocar-se, mover” foi o mais
empregado, recorrendo em 35,29% das ocorrências; em segundo lugar, apresenta-se o sema
“partir, retirar
-
se”, cujo índice percentual foi de 21,18%.
Deslocando
-se o foco da análise para o campo dos usos abstratos do verbo, nota-se, mais
uma vez, a recorrência da acepção ligada ao movimento. O sema que obteve o maior índice de
ocorrência foi o destinado à expressão de “seguir, percorrer”, cujo registro
foi de 12,94% do total
das ocorrências. Em segundo lugar, computou-se um percentual de 10,59% para o sema
“comparecer, apresentar
-
se”, seguido do sema “seguir adiante, prosseguir”, cujo percentual foi de
8,24%. Em quarto lugar, registrou
-
se o índice de 7,0
6%, obtido pelo sema “opor
-
se, posicionar
-
se
contra”. Outro sema que exibiu uma ocorrência relativamente expressiva na era arcaica foi aquele
destinado à expressão de “caminhar para uma desgraça
44
”, apresentando um percentual de 3,53%
do total das ocorrências. De todo o elenco de semas abstratos, o que exibiu o menor índice de
ocorrência, aproximando-se de valores residuais, foi o sema “perseguir”, cuja ocorrência
restringiu
-
se a 1,18% do total.
Os dados computados no período moderno vêm corroborar a tese
de que o verbo
ir
está se
deslexic
alizando, que se registrou uma redução no elenco de seus semas. Conforme dados
44
A referência a esse sema não consta de nenhum dos glossários medievais que pudemos consultar. Tal valor
semântico nos foi fornecido pela Profª. Drª. Ângela Vaz Leão, a quem agradecemos a valiosa contribuição e a
disponibilidade e
a
presteza com que nos atendeu.
Sueli Maria Coelho
181
dispostos na tabela 36, a seguir, nenhum dos semas presentes no período arcaico recorreu no
período moderno, fato até então não registrado q
uando da análise de nenhum outro verbo.
TABELA
36
:
Valores semânticos de
ir
lexical no período moderno
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
deslocar
-
se, mover
42,86
procurar por, recorrer a
14
,29
partir, retirar
-
se
14,29
freqüentar
ser transportado
14,29
7,14
parecer
7,14
Total
57,15
Total
42,85
Ainda que em pequena escala, registrou-se uma ampliação dos usos etimológicos do
verbo, que perfizeram um total de 57,15% das ocorrências. Entretanto, o sema destinado à
expressão do movimento apresentou uma expansão significativa, passando de 35,29%, no
período arcaico, para 42,86%, no período moderno. Em contrapartida, o sema destinado à
expressão de “partir, retirar-se” experimentou uma redução de 6,89%, passando de 21,18%, na
era arcaica, para 14,29%, na moderna.
As acepções abstratas restringiram-se a um conjunto de apenas quatro semas, os quais
apresentaram uma ocorrência parcialmente equiparada: os semas “procurar por, recorrer a” e
“freqüentar” exibiram, cada um deles, um índice percentual de 14,29% das ocorrências; os semas
“ser transportado” e “parecer” também apresentaram o mesmo índice percentual, qual seja,
7,14%. Vê-se, pois, que nenhum dos semas identificados nesse período foram detectados no
período arcaico, o que conduz à crença de que, em virtude do processo de deslexicalização por
que passa o verbo, suas acepções semânticas são muito oscilantes, surgindo e desaparecendo do
idioma em um pe
ríodo
relativamente
restrito de tempo.
Sueli Maria Coelho
182
Essa assertiva pode ser comprovada com a análise dos dados computados no período
contemporâneo e dispostos na tabela 37
, a seguir:
TABELA
37
:
Valores semânticos de
ir
lexical no período contemporâneo
Usos concretos
Usos Abstratos
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
Valores semânticos
Ocorrência
(%)
partir, retirar
-
se
59,46
comparecer, apresentar
-
se
2,70
deslocar
-
se, mover
-
se
27,03
atacar
2,70
morrer
2,70
ser transportado
2,70
espalhar, atingir
2,70
Total
86,49
Total
13,51
Neste período, a consistência dos usos etimológicos sobrepôs-se aos outros dois
anteriormente analisados: 86,49% das ocorrências. Mais uma vez, constatou-se uma oscilação
entre os índices percentuais dos dois semas etimológicos. Na contemporaneidade, o sema “partir,
retirar
-se” foi preferido pelo falante em 59,46% do total de ocorrências, enquanto o sema
“deslocar
-
se, mover
-se” foi empregado em apenas 27,03% das ocorrências.
No que tange ao emprego das acepções não etimológicas, verificou-se uma
homogeneidade de emprego, que todos os cinco semas obtiveram um índice percentual de
2,70% do total de ocorrências. Um fato digno de observação é a recorrência de um sema presente
no período arcaico “comparecer, apresentar-
se”
e de outro identificado no período
moderno: “ser transportado”. O sema identificado no período arcaico reduziu seu percentual de
ocorrência, passando de 10,59% para 2,70%. O fato de o mesmo sema não ter sido identifi
cado
na era moderna não comprova
que tal sema
tenha desaparecido, principalmente considerando
-
se a
sua alta freqüência entre as ocorrências registradas. Um dos fatores que podem ter contribuído
para que o mesmo não fosse identificado são os
corp
ora
selecionados para estudo. Como
Sueli Maria Coelho
183
mencionado, trata
-
se de uma amostragem de uso da língua em um determinado
período histórico.
A não identificação desse sema suscita a hipótese de seu desaparecimento, mas não a comprova.
Assim, a presença do sema no período contemporâneo leva-nos a crer que ele não tenha
de
saparecido no período moderno, mas não tenha ocorrido nos
corp
ora
em estudo. Já, no que se
refere ao sema “ser transportado”, considerando-se os dados obtidos nos
corp
ora
, foi o primeiro
sema a recorrer entre um período e outro, uma vez que em se tratando dos demais semas
semelhante fato
não
se manifestou.
De posse dos valores semânticos do verbo
ir
, pode-se afirmar que a redução de sua
freqüência total (cf. tabela 17) não se relaciona ao seu processo de gramaticalização, mas a um
outro processo lingü
ísti
co que está ocorrendo nos domínios do léxico. Trata-se da
deslexicalização. O que se verificou com a análise semântica empreendida é que, ao longo de seu
percurso diacrônico, o verbo
ir
foi perdendo muitos de seus semas abstratos, embora emergissem
outros.
Essa rotatividade
identificada
no âmbito das acepções abstratas acabou fortalecendo
os
usos etimológicos do item, o que determinou tamb
ém
o aumento de seus usos concretos. Diante
dos dados obtidos, não se pode afirmar que o verbo
ir
ganhou conteúdo nocional, embora a sua
freqüência
no âmbito dos usos concretos tenha aumentado. Tal aumento subordina-se também ao
processo de deslexicalização, que provocou a coesão dos usos etimológicos. Para se atribuir a
redução da freqüência total e o aumento dos índices de conteúdo nocional ao fenômeno da
gramaticalização, seria necessário que se identificasse, proporcionalmente à redução da
freqüência total e o aumento dos usos concretos, uma redução do item nos domínios da
gramática.
Na verdade, a ocorrência de
ir
é, contemporaneamente, muito maior no âmbito da
gramática do que n
os domínios do léxico. A julgar pelos dados obtidos, pode
-
se cogitar a respeito
de uma mudança lingüíst
ica no sentido de o verbo esvair
-
se de
seu conteúdo nocional, passando a
Sueli Maria Coelho
184
desempenhar
, no futu
ro,
apenas funções gramaticais, o que comprova o fortalecimento de seu
processo de gramaticalização. Nesse caso, poder-
se
-ia entender a mudança lingüística no sentido
laboviano do termo, já que a forma gramatical viria a substituir a lexical.
A julgar pelo critério da ampliação semântica dos itens em fase de expansão do processo
de gramaticalização, a análise dos dados coletados por este estudo não corrobora o que a
literatura clássica prevê acerca da polissemia dos itens. A análise empreendida demonstra que tal
polissemia não se subordina tão somente ao processo de gramaticalização, podendo associar-
se
também
ao fenômeno da lexicalização. Pode ocorrer, por exemplo, de determinado item em
processo de gramaticalização experimentar uma abstração em seus sentidos e tal abstração
resultar em apenas uma expansão na mesma categoria geralmente lexical –, não sendo
suficiente para fazê-lo tramitar de uma categoria lexical para uma categoria gramatical. Nesse
caso, considerando-se a perspectiva formalista aqui adotada, não se estaria diante de um
fenômeno de gramaticalização, que a expansão e
a
sua conseqüente polissemia não
determinaram o esvaziamento da propriedade de referenciação do item, o que o obrigaria a uma
nova categorização, passando a assumir características próprias de um
item
gramatical.
O que
ocorreu foi uma expansão que se deu tão somente nos domínios do léxico, ou seja, o item
permaneceu na mesma categoria lexical, ampliando apenas seus valores semânticos, ou mesmo
experimentou uma mobilidade de classe, permanecendo ainda nos domínios do léxico. Trata-
se,
pois, de uma lexicalização. Assim, não se pode afirmar aqui que, à medida que se torna mais
gramatical, um item torna-se também mais ou menos polissêmico. Na realidade, trata-se de
fenômenos independentes e pouco previsíveis, porque o verbo
ir
, que apresentou a maior
freqüência gramatical na contemporaneidade, sofreu uma redução de seus usos lexicais. Em
contrapartida, o verbo estar, que do ponto de vista da freqüência gramatical ocupa a segunda
Sueli Maria Coelho
185
posição, está em expansão no léxico, o que contribui para que suas acepções semânticas se
ampliem. Logo, percebe-se que não se pode endossar a tese proposta por Lehmann (1982) de que
“a maior parte dos traços semânticos originais são perdidos na gramaticaliz
ação
45
.
(p. 129,
tradução nossa) O que os dados demonstram é que o fato de um item ter se gramaticalizado não
impede, tampouco favorece que esse item continue a se expandir no léxico. Todas as cinco
formas verbais analisadas encontram-se gramaticalizadas no estágio atual da Língua Portuguesa;
contudo, enquanto os verbos
ter,
ser
e estar estão expandindo tanto suas funções gramaticais,
quanto suas propriedades de referenciação, os verbos
haver
e
ir
estão expandindo suas funções
gramaticais ao mesmo tempo em que estão restringindo suas acepções semânticas, o que limita a
sua propriedade de referenciação. Essa ampliação ou redução no léxico influenciará a
previsibilidade dos contextos de ocorrência dos itens, conforme demonstrará a análise dos
contextos sintáti
cos
a ser empreendida no item 4.3
.
4
4
.
.
2
2
.
.
2
2
P
P
E
E
R
R
D
D
A
A
D
D
E
E
C
C
O
O
N
N
T
T
E
E
Ú
Ú
D
D
O
O
N
N
O
O
C
C
I
I
O
O
N
N
A
A
L
L
A perda de conteúdo nocional do item em processo de gramaticalização é, segundo a
literatura clássica, inerente ao fenômeno, porque, ao tramitar do léxico para a gramática, a forma
gramaticalizada tende a se tornar mais abstrata. Assim, registra-se uma perda de seu conteúdo
nocional
– relacionado aos seus usos mais concretos – e uma ampliação de sentidos mais
abstratos, próprios do aspecto gramatical que, paulatinamente, passa a incorporar.
45
most of the original semantic features are lost in grammaticalization”. (LEHMANN, 1982, p. 129)
Sueli Maria Coelho
186
Conforme já argumentado no capítulo primeiro desse estudo (cf. item 1.2.3.1), a discussão
acerca das noções de concreto e de abstrato na língua é não antiga, como também controversa.
Precisar os limites dessas noções semânticas é uma tarefa árdua, porque passível de falhas em
virtude dos fatores subjetivos que tal tarefa pressupõe. Faz-se necessário, pois, estabelecerem-
se
critérios para nortear esta análise, visando a conferir-lhe um caráter mais empírico, consoante
com a natureza dos trabalhos científicos. No presente estudo, optou-se por considerar como
uso(s) concreto(s) aquele(s) que representasse(m) a acepção semântica primeira do item, isto é,
como mencionado quando da descrição da metodologia adotada (cf. capítulo 3), recorrendo-
se
a um dicionário de etimologia no caso desta pesquisa, elegeu-se para tal consulta a obra de
Antônio Geraldo da Cunha (1997), editado pela Nova Fronteira – procedeu-se a um estudo
etimológico de cada uma das cinco formas verbais selecionadas para estudo e co
nsideraram
-
se
como concretos aqueles usos apresentados pelo autor, ou seja, os primeiros sentidos do verbete.
A opção por esse critério deve-se ao fato de que, segundo a literatura clássica a respeito do
fenômeno da gramaticalização, este é um processo metafórico que se expande do [+ concreto]
para o [+ abstrato]. Assim, os sentidos primeiros do item seus sentidos etimológicos
representam seus valores concretos e, à medida que o processo avança, vão surgindo novas
acepções mais abstratas, conforme atest
am estas palavras de Comrie (1976):
Onde se diz que uma forma tem mais de um sentido, é sempre o caso que um desses
sentidos pareça mais central, mais típico que os outros. Em tais casos, é comum falar
desse sentido central como o sentido básico. Em certos casos a existência de ambos os
sentidos, básico e secundário, pode ser mostrada como sendo o resultado de um processo
histórico onde o sentido básico é o sentido original, enquanto os sentidos secundários
têm sido adquiridos como extensões deste sentido original, sempre levando no final a
uma mesma forma adquirindo um novo sentido básico muito mais vasto que o sentido
original básico, e incorporando um número de usos que eram originariamente usos
secundários
46
.
(COMRIE, 1976, p. 11
, tradução nossa
)
46
“Where a form is said to have more than one meaning, it is often the case that one of these meanings seems more
central, more typical than the others. In such cases, it is usual to speak of this central meaning as the basic meaning.
In certain cases the existence of both basic and secondary meanings can be shown to be the result of a historical
Sueli Maria Coelho
187
De po
sse das acepções etimológicas de cada item, passou
-
se à consulta das formas verbais
em outros dicionários de Língua Portuguesa na tentativa de se identificarem as diversas acepções
semânticas registradas para as formas em estudo. Então, apoiando-se nos sentidos elencados e
na própria intuição de falante, procedeu-se à análise de cada verbo, nos três períodos da língua,
delimitando
-se seus valores semânticos e separando-os em concretos e abstratos, conforme
critério estabelecido pelo estudo, qual seja, o da recorrência à etimologia para determinar os usos
concretos. Os índices percentuais obtidos foram tabulados em gráficos, visando a facilitar a
visualização dos resultados. O gráfico 03, a seguir, apresenta uma análise comparativa entre os
usos concretos
e abstratos do verbo
ter
nos três períodos
estudados
:
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
100,00%
Arcaico
Moderno
Contemporâneo
Concreto
Abstrato
GRÁFICO 3:
Análise comparativa entre os usos concretos e abstratos de
ter
Registrou
-se, no período arcaico, uma ocorrência de 35,17% de usos concretos e de
64,83% de usos abstratos. Tais resultados demonstram que, naquele período, os usos abstratos
process where the basic meaning is the original meaning, while secondary meanings have been acquired as
extensions of this original meaning, often leading ultimately to the same form acquiring a new basic meaning much
wider than the original basic meaning, and incorporating a number of uses that were originally secondary meanings.
(COMRIE, 1976, p. 11)
Sueli Maria Coelho
188
sobrepunham
-se aos usos concretos (cf. gráfico 3). Ainda que, a princípio, tais dados pareçam
constituir um entrave para a metodologia quantitativa aqui proposta, pois se esperava, num
estágio inicial, uma freqüência maior de usos concretos, deve-se considerar que, conforme
descrito em 4.1.1, a freqüência gramatical de
ter
nesse período já era alta. Logo, a forma já estava
gramaticalizada, fato que explica a sobreposição dos usos abstratos. No período moderno, a
despeito de ainda haver uma sobreposição dos usos abstratos sobre os concretos, registrou-se, em
relação ao período arcaico, uma pequena redução no emprego dos usos abstratos, que
apresentaram um índice de ocorrência de 60,65%. Em contrapartida, os usos concretos também
aumentaram para 39,35%. No período contemporâneo, a ocorrência de usos abstratos aumentou
significativamente, perfazendo um índice percentual de 92,05%, em oposição a 7,50% de usos
concretos.
Uma comparação entre as ocorrências registradas no período arcaico e no período
contemporâneo demonstra que o verbo
ter
, indubitavelmente, perdeu conteúdo nocional, pois
seus usos concretos reduziram de 35,17% para 7,50%. Por outro lado, o emprego das acepções
abstratas ampliou de 64,83% para 92,50%, demonstrando que, também pelo critério da perda de
conteúdo nocional, pode-se atestar que o verbo
ter
encontra-se gramaticalizado no português
brasileiro.
Em se tratando do verbo
haver
, diferentemente do que ocorreu com o
ter,
em todos os três
períodos,
registrou-se uma sobreposição dos usos concretos sobre os abstratos, conforme se
observa no gráfico 4, a seguir
:
Sueli Maria Coelho
189
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
Arcaico
Moderno
Contemporâneo
Concreto Abstrato
GRÁFICO 4:
Análise comparativa entre os usos concretos e abstratos de
haver
A despeito de exibir uma alta freqüência de formas gramaticais no período arcaico, o que
sinaliza um processo avançado de gramaticalização, o verbo
haver
apresentou, no mesmo
período, um percentual de 68,46% de usos concretos e de 31,54% de usos abstratos.
Considerando-
se o fato de a gramaticalização de tal v
erbo radicar
-
se no Romance, remontando ao
período arcaico, não se pode afirmar acerca da redução ou da ampliação de seu conteúdo
nocional naquela época. Essa consideração pode ser feita, tomando-se os valores encontrados
no período arcaico e no período clássico: 86,70% de ocorrências concretas e 13,80% de
ocorrências abstratas. Nesse período, pode-se, seguramente, afirmar que, contrariando o
esperado, ocorreu uma redução de usos abstratos e uma ampliação dos usos concretos. No
período contemporâneo, registrou-se um percentual de 70,30% de usos concretos e de 29,70% de
usos abstratos. Considerando-se os valores encontrados no período moderno, houve uma redução
de usos concretos e uma ampliação de usos abstratos, mas, tomando-se como parâmetro os dados
do período arcaico, está-se ainda diante de um aumento dos usos concretos, ainda que em
Sueli Maria Coelho
190
pequena escala. A explicação para tal fato, como mencionado quando da discussão da
freqüência do item, reside na concorrência entre as formas
ter
e
haver
na língua e também na
deslexicalização por que passou o verbo
haver
. Este teve seus valores semânticos reduzidos de
doze acepções, no período arcaico, para apenas duas, no período contemporâneo, conforme
discussão apresentada na subseção
4.2.1.2.
Em se tratando do verbo
ser
, esperava-se identificar, desde o período arcaico, um índice
bastante alto de abstração, considerando-se o fato de que, nesse período, sua ocorrência como
item gramatical ultrapassava o índice percentual de setenta por cento. Contudo, a análise do
grá
fico 5, a seguir, demonstra que, na era arcaica, os usos concretos ainda se sobrepunham aos
usos abstratos.
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
Arcaico
Moderno
Contemporâneo
Concreto Abstrato
GRÁFICO 5:
Análise comparativa entre os usos concretos e abstratos de
ser
No período arcaico, computou-se uma ocorrência de 44,32% de usos abstratos e de
55,68% de usos concretos. Numa primeira análise, tais valores parecem incoerentes se
comparados ao percentual de 71,39% de ocorrências gramaticais identificadas nesse período.
Sueli Maria Coelho
191
Dois fatos, contudo, podem ser invocados para justificar essa aparente incoerência. O primeiro e
mais consistente deles refere-se à polissemia etimológica do item em estudo. A consulta ao
dicionário etimológico revelou que o verbo
ser
é portador de uma abundância de semas o
registrada para nenhuma das outras cinco formas analisadas. Cunha (1997) elenca quatro valores
etimológicos para esse verbo, fato que explica a alta ocorrência de seus usos concretos, embora já
seja avançado o seu processo de gramaticalização. Outro fator que também interfere na perda de
conteúdo nocion
al do item é a concorrência com o verbo estar
, o que acaba por interferir nos dois
itens. Dado que as duas formas verbais exibiam semas comuns e que, no período arcaico, o
emprego de uma forma pela outra era bastante comum, há-de se cogitar a possibilidade de as
ocorrências identificadas relacionarem-se a contextos em que o emprego de
estar
também fosse
lícito. Nesse sentido, os dados obtidos sinalizam uma seleção aleatória do falante, facultada pela
concorrências semântica entre as formas.
Na era moderna
, a perda de conteúdo nocional do item se acentuou bastante e o seu índice
de abstraticidade chegou a 84,65%, em oposição aos 15,35% indicativos de seus usos concretos.
Mais uma vez, esses índices devem ser analisados à luz da concorrência de formas e também da
normalização da Língua Portuguesa. Como foi nesse período que ocorreu a normalização da
língua, conseqüentemente a liberdade do falante em relação às suas escolhas tornou-se mais
limitada. Logo, os semas comuns aos verbos ser e estar caminharam para uma estabilização,
contribuindo para que os contextos se tornassem mais fixos.
Na
contemporaneidade, o grau de
abstração da forma, apesar de ter sofrido uma leve redução em relação aos valores obtidos no
período anterior, ainda continua alto, indicando uma ocorrência de 79,44% de usos abstratos e de
apenas 20,56% de usos concretos. Mais uma vez, a observação dos valores semânticos torna-
se
providencial para justificar por que uma forma que se encontra em um estágio bastante avançado
de gramaticalização ainda possui um percentual de 20,56% de conteúdo nocional. A explicação
Sueli Maria Coelho
192
para tal fato é que o verbo
ser
não perdeu nenhuma de suas acepções atimológicas registradas
no período arcaico. Comparando-se os índices detectados neste período com aqueles
identifica
dos no período contemporâneo, percebe-se que, também pelo critério semântico, o
verbo
ser
expandiu o seu processo de gramaticalização, perdendo conteúdo nocional e
es
tendendo sua função gramatical. Entretanto, o aumento desses índices de abstraticidade não
devem ser atribuídos tão somente ao processo de gramaticalização da forma, mas também ao
processo de lexicalização por que ainda passa o verbo
ser
na contemporaneidade.
O verbo
estar
, concorrente semântico do verbo
ser
em alguns períodos lingüísticos, n
o
que tange à perda de conteúdo nocional, comportou-se segundo o disposto pela literatura
referente ao fenômeno da gramaticalização, expandindo linearmente seus usos abstratos nos três
períodos estudados, segundo se percebe pela análise do gráfico 6, a seg
uir:
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
100,00%
Arcaico
Moderno
Contemporâneo
Concreto Abstrato
GRÁFICO 6:
Análise comparativa entre os usos concretos e abstratos de
estar
No período arcaico, a sobreposição dos usos concretos sobre os abstratos é massacrante:
96,36% de ocorrências concretas e apenas 3,64% de ocorrências abstratas. Apesar de exibir uma
alta freqüência gramatical no período arcaico (37,93%), tal verbo era empregado
Sueli Maria Coelho
193
prioritariamente em suas acepções etimológicas. Como mencionado quando da análise
empreendida para o verbo
ser
, há-de se considerar que a intersecção semântica entre as duas
formas era não significativa, como também muito comum no período, o que interfere nos
valores obtidos tanto para o
ser
quanto para o
estar
. À medida que foi se registrando uma
ampliação de seus usos gramaticais, isto é, à medida que seu processo de gramaticalização foi se
expandindo, e também foi ocorrendo a sua estabilização semântica, verificou-se uma redução de
seus usos concretos e uma ampliação dos usos abstratos, como previsto na literatura. Assim, no
período moderno, os usos concretos reduziram-se para 71,42% e os usos abstratos estenderam-
se
para 28,58%. Foi, contudo, no período contemporâneo, quando o verbo estar
deixou efetivamente
de concorrer semanticamente com o
ser
, que a expansão dos usos abstratos mostrou-se mais
acentuada, atingindo um índice percentual de 43,74% e quase se equiparando aos usos concretos,
cujo percentual foi de 56,26%. Vê-se, portanto, que, no tocante à perda de conteúdo nocional, o
verbo
estar
registrou uma queda de 41,62%, já que, no período arcaico, a ocor
rência de seus usos
concretos foi de 96,36% e, no período contemporâneo, de 56,26%.
Inversamente ao esperado, o verbo
ir
demonstrou um aumento significativo de sua
freqüência gramatical, passando, no período contemporâneo, a ser empregado majoritariamente
como verbo auxiliar, mas não estendeu seus usos abstratos, conforme se pode perceber com a
análise do gráfico 7, que se segue:
Sueli Maria Coelho
194
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
90,00%
Arcaico
Moderno
Contemporâneo
Concreto Abstrato
GRÁFICO 7:
Análise comparativa entre os usos concretos e abstratos de
ir
Em todos os três períodos analisados, os usos concretos se sobrepuseram aos usos
abstratos. Na era arcaica, registrou-se uma ocorrência de 56,47% de usos concretos e de 43,53%
de usos abstratos. No período moderno, a ocorrência dos usos concretos aumentou 1,20%,
passando a 57,15%, e a ocorrência dos usos abstratos foi de 42,85%. Essa redução dos usos
abstratos está associada à perda de valores semânticos que ocorreu neste período, conforme se
verificou na descrição apresentada no item 4.2.1.5. No período contemporâneo, ocorreu um
aumento na freqüência dos usos concretos, que atingiram um índice percentual de 86,49%. No
mesmo período, os usos abstratos foram de 13,51%. Comparando-se os valores percentuais
obtidos no período arcaico com aqueles registrados no período contemporâneo, pode-se presumir
que não houve perda de conteúdo nocional, porque os usos concretos aumentaram em 53,16%,
passando de 56,47% para 86,49%. Entretanto, a análise desses índices deve considerar também as
acepções semânticas do item ao longo dos três períodos. Os dados obtidos com essa análise
apontam para uma deslexicalização do verbo, uma vez que se identificou uma redução de seus
Sueli Maria Coelho
195
valores semânticos. Essa perda, entretanto, o se no âmbito dos usos concretos, mas no
âmbito das acepções abstratas. Assim, a redução dos usos abstratos não se liga à
(des)gramaticalização do item, mas ao fenômeno da dessemantização. A análise dos valores
semânticos do item
revelou
que o verbo
ir
perdeu, ao longo de seu percurso diacrônico, alguns de
seus semas abstratos, o que demonstra que a forma está enfrentando, paralelamente ao seu
processo de expansão gramatical, um processo de restrição nos domínios do léxico. Essa
restrição, contudo, não pode ser atribuída ao seu processo de gramaticalização, uma vez que ela
não se dá no âmbito dos semas concr
etos.
4
4
.
.
3
3
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
D
D
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S
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R
I
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B
B
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Ç
Ç
Ã
Ã
O
O
D
D
O
O
S
S
I
I
T
T
E
E
N
N
S
S
O terceiro critério selecionado para aferir a gramaticalização de um item é de cunho
sintátic
o.
A adoção de um critério de
ssa natureza se justifica, dado que
, s
egundo prevê a literatura
disponível sobre o fenômeno da gramaticalização (cf. Lehmann (1982), Heine e Reh (1984) e
Vianna (
2000)
), à medida que o item torna-se mais gramatical, ocorre uma redução em seus
contextos sintáticos, porque a sua distribuição torna-se mais fixa, em virtude das res
trições
imp
ostas pela gramática, o que faz com que ele se torne obrigatório em certos contextos e
agramatical em outros. O presente estudo também se propôs a verificar a adequação de tal
assertiva, analisando a distribuição das cinco formas verbais em estudo nos três períodos.
Além
disso, a partir da análise da distribuição dos itens, buscou-se resposta para algumas das questões
Sueli Maria Coelho
196
problemas motivadoras dessa investigação, quais sejam: (a) que fatores determinam a seleção da
forma verbo-nominal em uma perífrase verbal? (b) verbos copulativos e verbos nocionais são
igualmente produtivos em termos de gramaticalização e (c) existe concorrência de formas
auxiliares na língua
?
4
4
.
.
3
3
.
.
1
1
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
D
D
I
I
S
S
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T
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B
B
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Ç
Ç
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O
O
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
T
T
E
E
R
R
A primeira das cinco formas verbais a ter sua distribuição analisada será o verbo “ter”.
Em todas as cinco formas verbais estudadas, o
ptou
-se por apresentar os contextos em quadros
sinópticos, por se acreditar que esse procedimento facilita a análise para o leitor.
FIGURA
3
: Quadro sinóptico dos
contextos
sintáticos
do verbo TER
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODERNO
PERÍODO
CONTEMPORÂNEO
PRESENTE DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (tendes
dado)
X X X
PRESENTE DO
INDICATIVO +
PREPOSIÇÃO +
INFINITIVO (tem que
agradecer-
vos)
X X
PRETÉRITO
PERFEITO DO
INDICATIVO +
PREPOSIÇÃO +
INFINITIVO (teve que
entrar)
X
Sueli Maria Coelho
197
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODERNO
PERÍODO
CONTEMPORÂNEO
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (tiinha
alçada)
X X X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
INDICATIVO +
PREPOSIÇÃO +
INFINITIVO (tínhamos
de partir)
X
FUTURO DO
PRETÉRITO DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (teria
dado)
X
PRESENTE DO
SUBJUNTIVO +
PREPOSIÇÃO +
INFINITIVO (tenha que
dar)
X X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
SUBJUNTIVO +
PARTICÍPIO (tivesse
visto)
X X X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
SUBJUNTIVO +
PREPOSIÇÃO +
INFINITIVO (tivesse,
por fim, a perecer)
X
FUTURO DO
SUBJUNTIVO +
PARTICÍPIO (tiver
inspirado)
X
INFINITIVO +
PARTICÍPIO (haver
criado)
X X
GERÚNDIO +
PARTICÍPIO (tendo (ao
Padre) apresentado
)
X X
A mera observação do quadro apresentado já demonstra que, em se tratando do verbo ter,
a máxima da redução dos contextos não foi comprovada. Ao contrário do que prevê a literatura,
registrou
-se uma expansão dos contextos de uso do verbo, à medida que seu processo de
gramaticalização foi-se expandindo. Contudo, se se tomar como parâmetro de expansão de
Sueli Maria Coelho
198
contextos sintáticos
apenas as formas verbais com as quais o auxiliar
ter
co-ocorre, não houve
ampliação de contextos, considerando-se o fato de que, nos três períodos analisados, registra-se a
co
-ocorrência com o particípio e com o infinitivo. Entretanto, os tempos e modos verbais em que
o auxiliar é empregado expandiram-se diacronicamente. A hipótese aventada por este estudo é a
de que a expansão
e
ou redução dos contextos de uso da forma subordina-
se
não apenas ao
processo de
sua
tr
amitação de categoria lexical a gramatical, mas
também
ao fenômeno da
lexicalização, que, segundo aqui se defende, desenvolve-
se
paralelamente ao fenômeno da
gramatical
ização, conforme i
lustra o esquema que
se
segue:
LEXICALIZAÇÃO
VERBO
S
PLENO
S
VERBO PLENO
GRAMATICALIZAÇÃO
VERBO AUXILIAR
A análise comparativa dos valores semânticos do verbo e
de seus contexto
s de ocorrência
induz ao raciocínio de que estes se expandem proporcionalmente à expansão lexical do item. Tal
raciocínio
parece lógic
o
, uma vez que uma expansão na entrada lexical faculta ao item uma maior
possibilidade de ser empregado
pe
lo falante em contextos diversos. Cumpre advertir, contudo,
que os dados aqui encontrados, de forma alguma, contradizem ou refutam os estudos
empreendidos acerca da distribuição dos itens em processo de gramaticalização; ao contrário,
vêm contribuir com tais estudos no sentido de se alertar para o fato de que, como advertira
Saussure (1997 [1916]), a língua é um sistema solidário de valores e uma alteração em um nível
acarreta alterações em outros níveis. Assim, o fenômeno da gramaticalização não deve ser
analisado isoladamente, mas de forma paralela ao fenômeno da lexicalização, que seus efeitos
Sueli Maria Coelho
199
podem não apenas determinar como também ser igualmente determinados pela ampliação do
léxico.
Além da redução (ou expansão) dos contextos sintáticos, outro fato que chama atenção no
que se refere ao estudo do processo de gramaticalização dos auxiliares envolve uma questão
bastante complexa e ainda não respondida numa perspectiva sincrônica. Trata-se da identificação
do fator que determina a seleção da forma nominal que vai co-ocorrer com o verbo auxiliar. Os
dados coletados por esse estudo induzem à conclusão de que tal seleção é determinada, num
primeiro momento, pela transitividade do verbo que tramita da categoria de pleno a auxiliar.
Sabe
-se, porém, que a transitividade de uma forma verbal é determinada por seu contexto, o que
parece inviabilizar a hipótese supramencionada. Contudo, supõe-
se
haver um “gatilho” de
gramaticalização, ou seja,
acredita
-se que não sejam todas as expansões semânticas do item
que
se
convergem em usos gramaticais; algumas delas apenas aumentam o leque de escolhas
disponibilizadas ao falante no âmbito do léxico. Diante dos dados analisados, defende-se que
apenas
uma das acepções semânticas do verbo é que lhe faculta, a partir de um estágio
determinado, assumir funções gramaticais que não lhe eram, outrora, peculiares. Isso faz com que
determinada forma verbal selecione formas nominais de infinitivo, de gerúndio ou de particípio
para com ela co-ocorrerem. Tal raciocínio e
xplica
ria também o fato de nem todos os auxiliares
selecionarem a mesma forma nominal. Em face desse raciocínio, pode-se afirmar que o processo
cognitivo envolvido na seleção da forma nominal pelo auxiliar é a metonímia, já que é a
contigüidade das formas que determ
inará a operação de regência q
ue se estabelece entre elas.
A despeito de os dados atestarem a co-ocorrência de
ter
tanto com as formas nominais de
particípio quanto de infinitivo, em todos os três períodos analisados, a freqüência da perífrase
com o particípio foi superior àquela verificada com o infinitivo, fato que
permite
aventa
r a
Sueli Maria Coelho
200
hipótese de que a freqüência com o particípio se sobrepõe em virtude do fato de ele expressar
tempo e aspecto, categorias mais recorrentes na língua que a modalidade, expressa pelo
infinitivo.
Resta, pois, tentar explicar por que o verbo
ter
seleciona apenas o particípio e o
infinitivo para com ele co-ocorrerem nas perífrases verbais, não admitindo a perífrase com o
gerúndio. Considerando a acepção primeira de
ter
(=posse), vê-se que se trata de um verbo pleno
cuja transitividade exige um sintagma de natureza nominal (SN). Sabe-se que o particípio, em
virtude de seu valor adjetivo, integra a categoria dos nomes na língua. Câmara Júnior (1998
[1969]
) adverte que “em princípio, não entre as duas subdivisões [substantivos e adjetivos]
uma distinção de forma. Muitos podem ser, conforme o contexto, substantivos ou adjetivos” (p.
87). Assim, o fato de o verbo ter selecionar um SN favorece a co-ocorrência com o particípio,
que partilha tanto da natureza do nome quanto da do verbo. Em algumas ocorrências do período
arcaico, o particípio flexionava-se em gênero e em número, podendo, inclusive, anteceder o
substantivo, conforme atestam os exemp
los de (80) a (83
), transcritos abaixo:
(80
) “estas// Cousas senhor uos escreuo porque aJnda que uo las tenho ditas
os outros
(...)” (DOM DUARTE, p. 77,
grifo nosso
)
(81
) “ssegundo dicto tijnam
em ssua rreposta” (VEREAÇÕES, 1485-86, f. 04,
grifo
nosso
)
(82
) “(...) nom satisfazia(m) a seu deseio os priuillegios e liberdades que lhe dados tinha
,
pareçemdo
-lhe muy singello gallardom em respeito do que ella era merecedor.” (DOM JOÃO,
cap. III, p. 09,
grifo nosso
)
(83) “e mais lhe ssera logo leuado em cheo todo o que a pipa ou tonell ou quarto avia de
rre
nder pera a dicta rrenda Titulo dos que abaixo quesserem ho vinho despois de o
terem aberto
a
héu preHo Herto ou o quisser Harrar Todollos dos aquelles que abaixarem ou carrar quesserem
Sueli Maria Coelho
201
pipa de vinho ou tonell ou quarto que aberto teuerem
a Herto preHo sserram hobrjgados ho
ffazerem saber ao dicto espriuam e varejador pera o dicto espriuam assentar em sseu livro ho
presso (...)” (VEREAÇÕES, 1485
-
86, f. 04v1, grifos meus)
A análise dos exemplos (80) e (82) demonstra que, nesse período, ainda se marcava a
con
cordância também no particípio, o que atesta, além do caráter mais nominal que verbal da
forma, um estágio inicial do processo de gramaticalização, quando o auxiliar
ter
ainda não tinha
incorporado plenamente suas funções gramatic
ais.
Harris (1982), ao discorrer sobre a formação
do presente perfeito nas línguas românicas, afirma que a criação, no latim vulgar, de uma gama
de paradigmas compostos formados com o verbo
haver
+ um particípio passado constitui uma
das mais bem conhecidas inovações do sistema verbal do Romance. De acordo com o autor, as
orige
ns dessa estrutura radicam
-
se no Latim,
onde o verbo aparenta ainda seu valor pleno como um marcador de posse (...) e onde o
particípio passado está em efeito adjetival, com a concordância apropriada com a
re
levância nominal. Desse ponto de partida, duas importantes mudanças ocorrem: o
valor semântico pleno de HAVER diminui gradualmente (...) e o grau de união entre as
duas partes do sintagma lentamente torna
-
se maior
47
.
(p. 47, tradução nossa
)
Assim, à medida que
haver
muda seu estatuto de verbo pleno a auxiliar e o particípio se
torna parte integrante da perífrase verbal, a relação de concordância se desfaz. O referido autor
afirma ainda haver uma correlação entre as formas derivadas de
haver
e aquelas oriundas de
ter
.
Segundo ele, as estruturas perifrásticas constituídas de
ter
também conservam, em seu estágio
inicial,
o valor de posse e, conseqüentemente, mantêm a concordância do particípio passado, que
funciona como um predicativo adjetivo: “tenho escrita a carta” (op. cit., p. 59, tradução nossa).
47
“(...) where the verb appears still to have its full value as a marker of possession (…) and where the past participle
is in effect adjectival, with appropriate concord with the relevant nominal. From this starting point, two important
changes take place: the full semantic value of HABERE gradually diminishes (…) and the degree of union between
the two parts
of the syntagm slowly becomes greater.” (HARRIS, 1982, p. 47)
Sueli Maria Coelho
202
Na perspectiva gerativista,
o particípio
empregado no contexto exemplificado cumpre
a função de
um núcleo nominal selecionado pelo verbo
ter
e não a de um verbo principal, já que as marcas de
concordância no
minal
encontram-
se
assinaladas
nele
. A teoria de que o verbo
ter
subcategoriza o
núcleo
escrita
é endossada por Stowell (1981
apud
RAPOSO,
1992) para quem os complem
entos
são projeções máximas e “a subcategorização é na realidade uma relação entre núcleos lexic
ais,
de núcleo lexical subcategorizador a núcleo lexical subcategorizado” (RAPOSO, 1992, p. 183). A
possibilidade de se empregar o núcleo subcategorizado (
escrita
) anteposto ao núcleo
subcategorizador (verbo
ter
), conforme contextos presentes em (81
),
em
(82) e em (83), endossa
a importância da carga semântica de tais nomes para a perífrase verbal
.
Mattos e Silva (2001
[1994]
) também atesta a concordância dos auxiliares
ter
e
haver
com
seu complemento
e atribui ao desaparecimento da concordância o marco
da
formação da perífrase
verbal:
os “tempos compostos” com
haver/ter
generalizam no português a partir do momento
em que o PP deixa de ser flexionado, em concordância com o seu complemento direto,
portanto ainda o PP com função adjetiva. Enquanto essa concordância ocorrer uma
construção frasal que põe em evidência um estado de posse, expressa por
haver/ter
,
conteúdo semântico próprio tanto a
haver
e a
ter
no período arcaico e herdado do latim.
(p. 64)
Enquanto havia ainda a marcação da concordância, em alguns momentos (cf. ex. (83)), o
falante empregava o nome particípio ora anteposto ao verbo ter, ora posposto a ele, o que conduz
ao raciocínio dedutivo de que, no período arcaico, tais usos eram intercambiáveis. Hopper e
Traugott (1993), ao discorrerem sobre o fenômeno de mudança da ordem dos elementos no
sintagma
como um possível desencadeador de gramaticalização, recorrem ao verbo
haver
para
argumentar em favor de sua tese. Segundo os autores, no Latim antigo, o futuro e o perfeito
Sueli Maria Coelho
203
ocorriam tanto na posição p
-verbal quanto na posição pós-verbal, conforme exemplos a seguir,
transcritos de sua obra: “a. cantare habeo ~ habeo cantare (OV ~ VO); b. probatum habeo ~
habeo probatum (OV ~ VO).” (p. 53) Posteriormente, contudo, o verbo
haver
que figurava e
m
posição pós-verbal foi reanalisado como um marcador flexional de futuro, passando a ter uma
posição fixa.
Adotando
-
se semelhante raciocínio para o
s contextos envolvendo o
verbo
ter
,
pode
-
se admitir que, no período arcaico, a ordem das formas na per
ífrase
verbal era intercambi
ável
,
mas
que, com o passar dos anos, o falante foi reanalisando o SN subcategorizado pelo verbo não
mais como um complemento, mas como uma forma verbal adjunta, até que as duas se tornaram
uma perífrase verbal. Cohen (1988) defende que “houve uma reorganização sintática dos
constituintes: o Particípio Passado, de um constituinte do SN na fase antiga da língua, passa a ser
um constituinte do SV, na fase moderna.” (p. 50) À medida que o processo de gramaticalização
de
ter
foi se instaurando e se solidificando, o particípio foi se destituindo da sua função
gramatical, que passou a ser incorporada pelo auxiliar, e assumindo apenas a sua função
semânti
ca. Segundo Câmara Júnior (1998 [1969]), o particípio é “um nome adjetivo, que
semanticame
nte expressa, em vez da qualidade de um ser, um processo que nele se passa.” (p.
103) Essa versatilidade de expressar o processo faculta ao particípio a harmonia com o auxiliar
no sentido de, juntamente com este, contribuir para a precisão do aspecto verbal, que é, segundo
Harris (1982), a mola propulsora da formação das perífrases do perfeito. P
ode
-
se
, então, dizer
que o particípio assume, na perífrase verbal, uma função cumulativa, qual seja a de marcar o
valor semântico da forma verbal e também a de auxi
liar na marcação aspectual. Ao esvaziar
-
se de
suas funções nominais e assumir suas funções verbais, o particípio passou a ocupar a segunda
posição na perífrase verbal. Nesse caso, pode-se afirmar que aumentaram as suas restrições
quanto ao contexto de ocorrência e também a sua previsibilidade, que sua posição tornou-
se
mais fixa, não lhe sendo facultada, na contemporaneidade, a ocorrência anteposta ao auxiliar,
Sueli Maria Coelho
204
como o fora no período arcaico. Caso figure nesse contexto, a distinção semântica é facilmente
perceptível:
(84)
Tenho escritas
as cartas.
(85) Tenho as cartas escritas.
(86) Tenho escrito as cartas
.
Em (84) e em (85), o verbo
ter
ainda conserva o seu estatuto de verbo pleno, preservando
tamb
ém a acepção semântica de posse, fato não verificado em (86), em que tal verbo se
gramaticalizou em auxiliar. Segundo informações extraídas de Cohen (1988), a ordem
“Sujeito/ter/PP/OD”, na qual “OD e PP estejam ambos no masculino singular” (p. 49) constitui
um ambiente
não só
propício
, como também
necess
ário
para promover a
reanálise de
ter
de verbo
nocional
a auxiliar.
No que tange à seleção do infinitivo, o critério parece ser semelhante àquele empregado
para o particípio. O infinitivo, sendo a forma mais indefinida do verbo, pode desempenhar, não
raras vezes, o papel de um substantivo. Logo, presta-se à função do núcleo nominal
subcategorizado pelo verbo
ter
. O gerúndio, por seu turno, não se presta a essa função, que,
embora possa desempenhar a função de um adjetivo, seu valor é prioritariamente adverbi
al.
Segundo Bechara (1999), sua função adjetiva é etimologicamente oriunda do particípio presente,
que desapareceu do quadro
verbal
português
para integrar o quadro nominal, e seu uso tem
sido
apontado como um galicismo, fato que justifica a supremacia do valor adverbial da forma.
Esse
valor de advérbio que lhe parece mais inerente é o que lhe facultará a seleção por verbos
intransitivos ou por verbos cuja transitividade associa-se ao deslocamento, como é o caso, por
exemplo, do verbo
ir.
Sueli Maria Coelho
205
Resta ainda refletir sobre a presença da preposição nas perífrases constituídas de
ter
+
infinitivo. Para que tal reflexão se realize a contento, necessário se faz discutir sobre o papel dos
elementos estruturais constituintes de uma perífrase verbal, bem como da função de tais
construções na língua. Como mencionado anteriormente, a contribuição do verbo principal para a
perífrase não se restringe apenas à carga semântica, embora essa seja muito importante,
considerando
-se o fato de o verbo auxiliar ter-se esvaziado de seu valor lexical para assumir
valores gramaticais. Comrie (1976) assim distribui as funções verbais em uma perífrase:
o
primeiro verbo o segundo plano para algum evento, enquanto que o evento mesmo é
introduzido pelo segundo verbo. O segundo verbo a totalidade da situação referida (...) sem
referência
a seu círculo temporal interno
48
.”
(p. 3, tradução nossa) Pode-se, então, sintetizar as
funções das categorias integrantes de uma perífrase verbal da seguinte forma: ao auxiliar é
delegada a função de demarcar o tempo, o número, a pessoa, o modo, a voz e o aspecto
verbais;
ao verbo principal compete a expressão da carga semântica da forma verbal, conforme postulam
nossos gramáticos, embora muitos deles não mencionem a categoria aspectual do verbo,
procedimen
to que os exime de dispensar um tratamento mais exaustivo ao tema .
Entretanto,
diante das evidências empíricas fornecidas pelos dados coletados e também das reflexões
suscitadas por alguns lingüistas, neste estudo, defende-se a tese de que ao verbo principal não
compete apenas a expressão da carga semântica da perífrase, mas também a função de auxiliar na
pr
ecisão da categoria aspectual. Assim, acredita-se que, nas perífrases verbais, a categoria de
aspecto é determinada pela integração harmoniosa do auxiliar e do verbo principal, conforme j
á
defendido por Benveniste (1995 [1966]). Dessa feita, entende-se que não apenas a transitividade
seja determinante para a seleção da forma nominal, mas também a expressão do aspecto a que
48
“the first verb presents the background to some event, while that the event itself is introduced by the second verb.
The second verb presents the totality of the situation referred to (...) without reference to its internal temporal
constituency.”
(COMRIE, 1976, p. 3)
Sueli Maria Coelho
206
esta se presta. Mais que isso: as conclusões aqui postuladas sugerem que a marcação aspectual
constitui o “gatilho” para o surgimento das perífrases verbais. Não fosse o fato de o aspecto ser
expresso pela coesão entre o auxiliar e a forma nominal, não seria necessário o emprego de
perífrases verbais em contextos em que estas se prestam a esse fim. Embora se reconheça a
importância da
auxiliarização
para expressar tempo e também passividade, advoga-se em favor
de sua importante função para demarcar o aspecto verbal. Essa intuição é também partilhada por
Harris (1982), para quem “o valor primário original dos paradigmas do perfeito surge para ser
aspectual, especificamente (...) para referir a eventos que foram, são ou serão completados no
momento temporal em questão
49
.” (HARRIS, 1982,
p. 47, tradução nossa).
A categoria aspectual é tão importante nas línguas que, segundo Câmara Júnior (1998
[1969]
), a oposição entre as formas nominais do verbo não é, como muitos gramáticos defendem,
de natureza temporal, mas aspectual. O infinitivo é a
forma que de maneira mais ampla e mais vaga resume a sua significação, sem aplicação
das noções gramaticais de tempo, aspecto ou modo. Entre o gerúndio e o particípio
essencialmente uma oposição de aspecto: o gerúndio é ‘imperfeito’ (processo
inconclus
o), ao passo que o particípio é de aspecto concluso ou perfeito. (pp. 102
-
103)
O
referido autor estabelece ainda a diferença entre o particípio e o gerúndio, tomando por
parâmetro a morfologia verbal. Segundo ele, o particípio afasta-se, sob a óptica mórfica, da
natureza verbal, constituindo,
no fundo, um adjetivo com as marcas nominais de feminino e de número plural em /S/
(...) O gerúndio, ao contrário, é morfologicamente uma forma verbal. Mesmo como
49
“(...) the original primary value of the paradigms of the perfectum appears to have been aspectual, specifically (...)
to refer to events that were, are or will be complete at
the moment of time in question.” (HARRIS, 1982, p. 47)
Sueli Maria Coelho
207
determinante de um substantivo (para indicar um processo que nele se passa) não
concorda com ele nem em número nem em gênero.
(ibidem
, p. 103)
As considerações de Câmara Jr. mostram-se providenciais na tentativa de se explicar a
presença da preposição nas perífrases verbais de infinitivo. Uma vez que, como
argumentado, cabe à forma nominal o papel de também auxiliar na expressão da categoria de
aspecto e que o infinitivo é destituído de tal função, defende-se, neste estudo, que a preposição
junta
-se à perífrase para cumprir esse atributo. Kayne (1981) argumenta em favor do estatuto de
complementizador assumido pelas preposições “de” no Francês e “di” no Italiano. Segundo
o autor, essas preposições equivalem a complementizadores para o infinitivo. Adotando-se o
mesmo raciocínio para o Português, a preposição seria introduzida nas perífrases de infinitivo
para precisar o tempo e o aspecto, uma vez que essa forma nominal é destituída de tais funções
gramaticais. A análise dos enunciados (87) e (88), a seguir, contribuirá para a melhor
compreensã
o das idéias aqui propostas:
(87
)
a.
Maria
tem de fazer
o bolo de chocolate antes do almoço.
b. Maria
tem que fazer
o bolo de chocolate antes do almoço.
(8
8
) Maria
sabe fazer
bolo de chocolate muito bem.
Em (87), a presença da preposição entre o verbo auxiliar e a forma nominal de infinitivo
introduz a idéia aspectual de necessidade imin
ente,
semelhante, do ponto de vista pragmático, a
uma obrigatoriedade, fato não verificado em (88
),
contexto
em que a preposição está ausente.
Além d
a diferença aspectual, a
ausência da preposição em (
88
) permite ainda a abstração de outra
regra: a inexistência da preposição, nesse contexto sintático, não legitima a perífrase verbal. Em
(8
8), têm-
se
duas formas verbais justapostas, o que evidencia a existência de duas orações. em
(87),
as duas formas verbais estabeleceram uma relação de coesão, fundindo-se em uma
única
Sueli Maria Coelho
208
unidade morfológica a perífrase verbal –, o que caracteriza uma única oração. Diante de tais
evidências, pode-se afirmar que a preposição é o elemento aglutinador e legitimador
da
s
perífra
se
s constituídas de
ter
+ infinitivo
.
A partir da observação de (
87
), pode
-
se ainda cogitar a
respeito de um processo de reanálise
sintática
em que o falante amalgama o verbo
ter
e a
preposição (
de
ou
que
) em um único constituinte, formando uma nova forma verbal. Nenhum
falante do português titubearia em admitir que
ter
e que ter que
(de)
constituem entradas lexicais
diferentes na língua. A identificação do caráter de obrigatoriedade ou
de
urgência
que a
preposição agregada ao
verbo
ter
impinge à ação expressa pela forma infinitiva
é inerente à
competência lingüística
do falante. Tal conhecimento parece já
t
er
sido
adquirido juntamente com
o significado das formas verbais. Assim, acredita-
se
que o falante adquire as duas formas verbais
e suas respectivas restrições sintáticas e semânticas como se elas constituíssem entradas lexicais
distintas:
ter
(=possuir) e ter de (que) (=necessitar, ser obrigado a).
Travaglia
(1985 [1981])
tamb
ém reconhece a imp
ortância
das preposições na constituição de perífrases verbais, alegando
que são elas as responsáveis por evocar a expressão de algumas noções aspectuais ou m
esmo
por
permitir a sua atualização. Outro fato comprobatório da tese de que as perífrases de
ter
+
infinitivo só se atualizam mediante a presença da preposição são os dados encontrados por
Mattos
e Silva (2001 [1994]). Ela registra a presença da preposição entre o infinitivo e o auxiliar
ter
desde o período arcaico para indicar a obrigatoriedade de uma ação, considerando-o um dos
verbos mais gramaticalizados da língua por ter perdido plenamente, nesse contexto sintático,
seu sentido de verbo pleno.
Said Ali (
2001
[1921]) também parece partilhar da intuição discutida acima, pois,
segundo ele, nas perífrases em que se emprega o verbo principal no infinitivo, a preposição
integra a
auxiliarização
, isto é, o elemento auxiliar é não apenas o verbo flexionado, mas
também
Sueli Maria Coelho
209
o conjunto formado pelo verbo flexionado mais a preposição. É exatamente a combinação do
auxiliar com a preposição que atribui a idéia aspectual de obrigatoriedade, verificada no exemplo
(8
9
), transcrito abaixo:
(8
9) “(...) nem dando tanto hu dia que per todo o ano non tenha que dar
(...)” (DOM
DUARTE, p. 75)
O fato de o infinitivo requerer a presença de uma categoria preposicional para auxiliar na
expressão do aspecto da perífrase verbal vem reforçar a
tese
aqui proposta de que tal função não
compete apenas ao auxiliar, como mencionam a maioria de nossos gramáticos, mas também à
forma nominal que co-ocorre com o auxiliar, conforme defendido por Benveniste (1995 [1966]).
Outro argumento com o qual se pode advogar em favor dessa tese é o fato de não se
ter identificado, nos
corpora,
perífrases constituídas de pretérito perfeito + particípio. Ta
l
combinação torna-se agramatical, considerando-se que tanto o particípio quanto o pretérito
perfeito prestam-se à expressão de um fato concluído. Essa observação conduz ainda à
delimitação de um outro critério determinante na seleção do auxiliar: (in)compatibilidades
semânticas aspectuais entre os elementos de uma perífrase também viabilizam ou excluem
determinadas combinações.
Propostos os critérios de seleção da forma nominal pelo auxiliar
ter
, resta analisar a
(im)possibilidade de ocorrência de material interveniente entre o auxiliar e o verbo principal nas
perífrases em estudo. Prevê a literatura que quanto maior a coesão entre as formas verbais
integrantes de uma perífrase verbal, maior é seu grau de gramaticalização. Os dados
coletados
demonstram que a possibilidade de ocorrência de material interveniente entre o auxiliar e o verbo
principal, além de reduzida, é bastante previsível. Nas perífrases formadas com o particípio,
existe a possibilidade de se intercalarem os complementos do verbo principal, podendo os
Sueli Maria Coelho
210
mesmos ser sintagmas (tendo ao Padre
apresentado) ou formas átonas (tem
nos
ajudado). Já, nas
perífrases com o infinitivo, verificou-se a ocorrência de modalizadores interpostos ao auxiliar e à
forma principal: tivesse, por fim, a perecer. Provavelmente, constate-se a redução de material
interveniente entre as perífrases quando se comparam os períodos, mas esse aspecto não foi
desenvolvido por este estudo, estando aberto para pesquisas futuras.
4
4
.
.
3
3
.
.
2
2
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
D
D
I
I
S
S
T
T
R
R
I
I
B
B
U
U
I
I
Ç
Ç
Ã
Ã
O
O
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
H
H
A
A
V
V
E
E
R
R
A próxima forma verbal a ter sua distribuição analisada é um concorrente do auxiliar
ter
desde o período arcaico: trata-se do auxiliar
haver
, cujos contextos encontram-se descritos no
quadro seguinte:
FIGURA
4
: Quadro sinóptico do
s contextos de ocorrência do verbo HAVER
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODERNO
PERÍODO
CONTEMPORÂNEO
PRESENTE DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (hei
mostrado)
X X
PRESENTE DO
INDICATIVO +
(PREPOSIÇÃO) +
INFINITIVO (ham
-
de
viver; havemos
semelhar)
X X X
PRETÉRITO
PERFEITO DO
INDICATIVO +
PREPOSIÇÃO +
PARTICÍPIO (ouuerom
por metido)
X
Sueli Maria Coelho
211
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODERNO
PERÍODO
CONTEMPORÂNEO
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (havia
tomado)
X X
PRETÉRITO
IMP
ERFEITO DO
INDICATIVO
+(PREPOSIÇÃO) +
INFINITIVO (haviam
d’haver; havia de perder)
X X X
FUTURO DO
PRESENTE DO
INDICATIVO +
GERÚNDIO ((como se)
haverão despejando)
X
PRESENTE DO
SUBJUNTIVO +
PREPOSIÇÃO +
INFINITIVO (aja de
tirar)
X
P
RESENTE DO
SUBJUNTIVO +
PARTICÍPIO (haja
chegado)
X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
SUBJUNTIVO +
(PREPOSIÇÃO) +
INFINITIVO
(houvessem contar;
ouuessem de ter)
X
FUTURO DO
SUBJUNTIVO +
INFINITIVO (ouver de
serujir)
X
INFINITIVO +
PREPOSIÇÃO +
INFI
NITIVO (haver de
viir)
X
INFINITIVO +
PARTICÍPIO (haver
criado)
X X
GERÚNDIO +
PARTICÍPIO (havendo
dado)
X
Sueli Maria Coelho
212
A análise a ser empreendida para o auxiliar
haver
assemelha-
se àquela proposta para o
ter
,
que ambos são etimologicamente derivados de “possuir”, apresentando, portanto, a mesma
transitividade. Assim sendo, é previsível que, tal como
ter
, o auxiliar
haver
também selecione as
formas nominais de particípio e de infinitivo para co-ocorrerem com ele nas perífrases verbais,
não admitindo a co-ocorrência com o gerúndio. O que diferencia, inicialmente, o comportamento
dos dois auxiliares é que, ao contrário do que se verificou com o
ter
, não se registrou uma
ampliação nos contextos de ocorrência do auxiliar
haver
, mas uma redução, que os tempos em
que a forma auxiliar se flexionou sofreram uma restrição. Observando-se o quadro acima,
percebe
-se que, no período arcaico, o auxiliar
haver
ocorria em um número superior de contextos
aos que ocorre contemporaneamente. Também aqui, a explicação para tal fato centra-se no
fenômeno da lexicalização: registrou-se uma redução de contextos porque houve uma
deslexicalização da forma, ou seja, enquanto o verbo
ter
expandiu-se no léxico, o verbo
haver
passou por um processo de dessemantização, perdendo muitos de seus semas outrora
identificados.
Assim, não apenas os tempos e modos em que é empregado restringiram-se, mas
também suas acepções semânticas reduziram-se consideravelmente do período arcaico para o
moderno, conforme já demonstrado quando da análi
se semântica dos itens.
A análise da freqüência das formas verbais empreendida na subseção
4.1.2
sugere que
o verbo
haver
iniciou seu processo de gramaticalização num período anterior ao do
ter,
porque
seus usos gramaticais foram, no período arcaico, significativamente superiores aos usos
gramaticais de
ter
. Entretanto, contrariando as expectativas, também foram encontrados, neste
período, registros de perífrases com o auxiliar
haver
nas quais o particípio sofreu flexão de
gênero e número, à semelhança do que ocorrera com o auxiliar
ter
. Isso, como foi comentado,
indica um estágio mais inicial de gramaticalização, no qual o verbo principal ainda não tinha
Sueli Maria Coelho
213
abdicado
plenamente
de suas funções nominais em favor das funções verbais. Tal uso pode ser
comprovado nos excertos transcritos a seguir:
(90
) “Estas e outras muytas cousas que nom fazem myngua de se aquy scpreuer outorgou
el
-Rey com boom desejo e vomtade aa cidade de Lixboa, promentendo e juramdo de os manter
em dereito e justiça e lhe guardar todallas graças e priuillegios que lhe dados auia
e seus boons
foros e costumes que ouuerom em tempo dos outros reis (...)” (DOM JOÃO, cap. II, p. 07,
grifo
nosso
)
(91
) “A quantos esta carta virem fazemos saber que nos, comsirando os gramdes e
estremados
seruiços que a muy nobre e leal cidade de Lixboa a feitos
a estes regnos, dos quaaes
nos Deus deu emcarego de regimento (...)” (DOM JOÃO, cap. II, p. 07,
grifo nosso
)
Em (90), a forma nominal de particípio antecede o verbo
haver
como também ocorrera
com o verbo
ter
, exibindo as marcas de concordância nominal, o que atesta seu caráter adjetivo.
Também em (91), mesmo ocupando a segunda posição na perífrase, o particípio ainda recebeu
morfemas nominais. Logo, pode-se concluir que, apesar de apresentar uma freqüência gramatical
relativamente alta no período arcaico, o verbo
haver
passou a comportar
-
se
efetivamente
como
auxiliar
de temporalidade nas perífrases com particípio no período moderno. Na era arcaica,
assim como o verbo
ter
, ainda não tinha incorporado de forma plena a função gramatical d
e
marcar o número verbal, embora ocorresse em contextos perifrásticos no Latim. Green (1982)
apresenta
um dado sobre a gramaticalização de
haver
que se mostra relevante para se entender o
fato de, mesmo estando gramaticalizado, tal verbo
ainda
exibir as marcas de concordância.
Segundo esse autor, o uso
de
haver
como um auxiliar de temporalidade
é
o resultado de
uma
reanálise de seu emprego originalmente passivo. Assim, as perífrases de
haver
+ particípio são
Sueli Maria Coelho
214
estágios mais gramaticalizados dessas perífrases empregadas para marcar a
auxiliarização
. Nas
palavras de Green (1982),
essencialmente, e com muito poucas exceções, a concordância mostra que o particípio
passado é passivo. Dessa forma, a presença da conco
rd
ância sistematicamente marca o
particípio de passividade enquanto sua ausência marca a completa gramaticalização de
haver
+ particípio, em que o particípio é interpretado como [+ perfectivo, - passivo]; ao
mesmo tempo, a concordância obrigatória do objeto de alguns verbos (...) serve como
um
lembrete patente de que nessas construções os verbos não estão plenamente
gramaticalizados e retêm uma parte dos seus sentidos lexicais normais
50
.
(p.110,
tradução nossa)
Vincent (1982), ao discorrer sobre a gramaticalização dos verbos
haver
e
ser
no
Romance, observa que ambas as formas eram empregadas, neste período da história da língua,
como auxiliares de passiva. Acrescenta, ainda, que, nesse período, o verbo
haver
passou a
incorporar a função de auxiliar de di
átese
, enquanto o verbo
ser
apenas a expandiu, uma vez que
era assim empregado nas línguas clássicas. Segundo o autor referenciado, o verbo
haver
lexical requer dois argumentos: um locativo (sintagma preposicional) e um neutro (objeto)
.
O
neutro
consti
tui
o “gatilho” entre
haver
e o seu verbo acompanhante na forma de particípio. N
a
maioria dos casos
,
as circunstâncias é que determinam a identificação do locativo
de
haver
com o
neutro
do verbo particípio e é essa identificação a responsável por promover a gramaticalização
da forma. Nas palavras do autor,
haver
não mais seleciona seu próprio locativo, mas preenche
aquela posição em sua estrutura pela promoção de um agente não expresso do verbo ao qual ele
50
“Essentially, and with very few exceptions, concord shows that the past participle is passive. Thus, presence of
concord systematically marks the participle for passivity while its absence marks the complete grammaticalization of
haber + participle, in which the participle is interpreted as [+ perfective, - passive]; at the same time, obligatory
con
cord on the objects of some transitive verbs (…) serves as an overt reminder that in these constructions the verbs
are not fully grammaticalised and retain a part of their normal lexical meaning.”
(GREEN, 1982, p. 110)
Sueli Maria Coelho
215
se liga pelo “gatilho” neutro
51
.” (p. 84, tradução nossa) Assim, pode-se afirmar que “a
gramaticalização de
haver
envolve a retenção de seus papéis gramaticais sujeito e objeto mas
a perda de
seu independente papel semântico de locativo
52
.” (
op. cit
, p. 85, tradução nossa)
Além do fato de a gramaticalização de
haver
ser precedente à de
ter
, ainda um outro
fator que diferencia o comportamento desses
dois
auxiliares: enquanto as perífrases de
ter,
em
todos os três períodos analisados, ocorreram prioritariamente com o particípio, as perífrases de
haver
, nos períodos arcaico e moderno, eram majoritariamente compostas pelo infinitivo. Apenas
no período contemporâneo as perífrases com o particípio torna
ra
m-se mais freqüentes na língua,
embora ainda sejam muito recorrentes as perífrases com o infinitivo.
Con
siderando
-se a tese de
Vincent (1982), endossada por Green (1982), pode-se cogitar a respeito de a sobreposição das
perífrases de infinitivo sobre as de particípio ter ocorrido no período em que se processava a
gramaticalização de diátese para a de tempora
lidade.
Assim, no período contemporâneo, quando
o auxiliar
haver
havia se gramaticalizado
efetivamente
como marcador de temporalidade,
passou a ocorrer mais na língua, aumentando, dessa forma, a sua freqüência. Em contrapartida,
enquanto a sua função de marcador de diátese esvaía-se para incorporar a função de marcador de
tempo, as ocorrências eram mais modestas.
Como ventilado, o aspecto verbal é marcado, nas perífrases verbais, por um trabalho
conjunto do auxiliar com a forma nominal. No caso do particípio, sua função é a de expressar,
juntamente com o auxiliar, uma ação conclusa ou perfectiva:
51
“(...)
habere
no longer selects its own LOC but fills that position in its structure by promotion of the unexpressed
AG of the verb to which it is attached by the NEUT ‘hinge’.”
(VINCENT, 1982, p. 84)
52
“(...) the grammaticalisation of
habere
involves the retention of its grammatical roles
subject and object
– but the
loss of its independent semantic role of LOC.”
(VINCENT, 1982, p. 85
)
Sueli Maria Coelho
216
(92
) “Os IIII mogotes dos IIII mil cavaleiros que estavam folgados pera prender os
criståos, como vos ja hei mostrado, virom que os criståos iam pera mal, e que a az da coinha
andava destroindo en’eles.” (LINHAGENS, p. 135,
grifo nosso
)
(93
) “A noite seguinte, como o mouro afirmou, lhe tornou a aparecer a mesma visão
repetindo
-lhe o que havia dito, acrescentando tornasse a chamar o português, porque se o não
havia baptizado
, fôra por não dar
-
lhe crédito, mas que se instasse o faria cristão.” (AVES, p. 375,
grifos meus)
Em (92
), registra
-
se a ocorrência do pretérito perfeito composto, forma hoje em desuso na
língua, pelo menos em se tratando das perífrases com o verbo
haver
. O falante contemporâneo,
para veicular a mesma idéia, optaria, no contexto, pelo pretérito perfeito simples do verbo
mostrar
mostrei –, que, além de mais reduzido, cumpre a mesma função aspectual de expressar
um
a ação concluída. Em (93), em ambas as ocorrências destacadas, tem-se o pretérito mais-
que
-perfeito composto cuja função aspectual consiste em assinalar a conclusão de uma ação
anterior à outra. No caso da perífrase verbal, compete à forma nominal de particípio a expressão
da perfectividade e, ao auxiliar, a expressão da anterioridade. No estágio atual da língua,
entretanto, conf
orme pontua Câmara Júnior (
1998
[1969]
),
o pretérito mais-
que
-perfeito é de rendimento mínimo na língua oral, mesmo de registro
formalizado de dialeto
social culto; ou se emprega, em seu lugar, o pretérito perfeito, que
não está formalmente marcado, como sucede com ele; ou se substitui por uma locução
de particípio com o verbo auxiliar
ter
no pretérito imperfeito (tinha cantado em vez de
cantara
). (p. 10
0)
Assiste
-se, pois, à redução de mais um dos contextos de ocorrência do auxiliar
haver,
porque, ainda que na expressão do pretérito mais-
que
-perfeito a preferência do falante seja pela
forma composta, não se emprega o auxiliar
haver
; prioriza-se, para fl
exionar
-se no pretérito
Sueli Maria Coelho
217
imperfeito, o auxiliar
ter
, apesar de o emprego de
haver
traduzir aproximadamente a mesma
carga semântica. Esse é certamente o contexto de maior concorrência entre os auxiliares
ter
e
haver
na língua. Cumpre advertir, contudo, que, embora a assertiva de que os auxiliares
ter
e
haver
podem ser empregados nos mesmos contextos na língua contemporânea, variando apenas o
grau de formalidade faça parte do senso comum, ela não se comprova empiricamente. Os
contextos de ocorrência desses auxiliares são, em alguns tempos e modos, semelhantes, mas não
a ponto de assegurar
em
uma equivalência entre as formas. Além do maior ou menor grau de
formalidade atribuído pelo enunciador ao produto de sua enunciação, o tempo verbal em que se
flexiona
o auxiliar também constitui um critério determinante na seleção das formas verbais.
Quando o auxiliar encontra-se flexionado no pretérito imperfeito do indicativo, tais verbos até se
mostram
intercambiáveis,
c
onforme atestam os exemplos (94
) e (95
) abaixo:
(94
) Maria Eduarda
havia freqüentado
os melhores colégios da Suíça.
(95
) Maria Eduarda
tinha freqüentado
os melhores colégios da Suíça.
Tanto na perífrase de (94) quanto na de (95), nota-se a expressão de uma ação passada
anterior ao ato enunci
ativo, ainda q
ue
se identifique n
o enunciado (94
) um estilo
mais formal que
no enunciado (95), que, geralmente, é o preferido pelo enunciador, provavelmente em virtude de
seu teor mais coloquial. Contudo, caso os enunciados (94) e (95) sejam transpostos para o
presente, verificar
-
se
-
á uma impropriedade de uso
do enunciado apresentado em (96
), abaixo:
(96
) * Maria Eduarda há freqüentado
os melhores colégios da Suíça.
(97
) Maria Eduarda
tem freqüentado
os melhores colégios da Suíça.
Nenhum falante do português atual hes
itar
ia em considerar o enunciado (96) agramatical.
A idéia de repetição ou de prolongamento de um fato até o momento de sua enunciação é
Sueli Maria Coelho
218
traduzida
pela perífrase destacada em (97), mas não por aquela empregada em (96). Apenas nos
períodos arcaico e moderno registra
ra
m-se ocorrências de perífrases constituídas de verbo
haver
flexionado no presente do indicativo mais particípio. Ainda assim, as ocorrências foram todas
com a primeira pessoa; jamais com a segunda ou com a terceira. No paradigma flexional dos
ve
rbos, em se tratando da variante o-padrão, ainda na contemporaneidade é recorrente a
presença de apenas duas pessoas gramaticais: a primeira e as demais. Segundo Bagno (1997),
esse critério de concordância é motivado por aspectos de cunho psicológico e
reflete
“a
necessidade que todo ser humano tem de distinguir o
eu,
o indivíduo, do não
-
eu,
do coletivo.” (p.
63)
Como
no per
íodo arcaico
não havia ainda ocorrido a normalização da Língua Portuguesa e os
textos, ainda que escritos, exibiam características inerentes à linguagem oral,
pode
-se creditar
essas poucas ocorrências à adoção do critério proposto por Bagno (1997).
Já, em se tratando dos tempos do subjuntivo, os auxiliares
haver
e
ter
parecem se
equi
valer em todos os tempos, como demonstram os enunciados de (98) a (103), apresentados a
seguir
:
(98
) Espero que Maria Eduarda
haja freqüentado
os melhores colégios da Suíça.
(99
) Espero que Maria Eduarda
tenha freqüentado
os melhores colégios da Suíça.
(100
) Se Maria Eduarda houvesse freqüentado
os melhores colégios, certamente não
estaria enfrentando tal situação.
(101
) Se Maria Eduarda tivesse freqüentado
os melhores colégios, certamente não estaria
enfrentando tal situação.
(102
) Quando Maria Eduarda houver concluído
o curso superior, conseguirá um ótimo
emprego.
Sueli Maria Coelho
219
(103
) Quando Maria Eduarda tiver concluído
o curso superior, conseguirá um ótimo
emprego.
Uma possível explicação para o fato de, no modo subjuntivo, os auxiliares
haver
e
ter
ocorrerem nos mesmos contextos sem provocar alteração semântica ou aspectual pode
estar
associada
à freqüência do uso. Ao contrário do modo indicativo, o modo subjuntivo o é tão
recorrente na língua e seu uso é preterido, principalmente por falantes de menor escolaridade.
Assim, por serem menos empregados nas situações de uso lingüístico, os tempos do subju
ntivo
sofrem menos restrições e ou alterações semânticas, que, como largamente difundido, é o uso
que desencadeia as variações e mudanças lingüísticas.
Diante dos contextos ora analisados, não se pode, pois, admitir que os auxiliares
haver
e
ter
possuem valores equivalentes e que a seleção de um deles é determinada exclusivamente pelo
grau de formalidade que se deseja atribuir ao discurso. contextos em que tais auxiliares
encontram
-se em distribuição complementar na língua, já que a seleção de um assegura a
gramaticalidade
da sentença
, enquanto a seleção do outro a compromete ou mesmo a inviabiliza.
Nas perífrases com o infinitivo, as restrições gramaticais quanto à seleção dos auxiliares
são
ainda maior
es
, pois parece não haver equivalência de sentido em nenhum dos tempos,
seg
u
ndo ilustram os exemplos de (104) a (107
):
(104
) Maria Eduarda
há de estudar
nos melhores colégios da Suíça.
(105
) Maria Eduarda
tem de estudar nos melhores colégios da Suíça.
(106
) Maria Ed
uarda
tinha de estudar
nos melhores colégios da Suíça.
(107
) Maria Eduarda
havia de estudar
nos melhores colégios da Suíça.
Sueli Maria Coelho
220
Quando os auxiliares
haver
e
ter
agregam-se às formas nominais de infinitivo, a permuta
do presente pelo pretérito imperfeito não produz enunciados agramaticais, como ocorre quando a
perífrase é constituída com o particípio. Isso ocorre porque a combinação do auxiliar com o
particípio não altera a transitividade da primeira forma verbal integrante da perífrase. Por outro
lado, nas combinações com o infinitivo, o auxiliar, “de nocional, passa a funcionar c
omo
relacional” (SAID ALI, 2001 [1921], p. 124). É em virtude dessa modificação que o processo
opera na transitividade do auxiliar que, ao contrário do que se verifica com as perífrases de
particípio, o valor semântico das formas verbais não se aproxima. Em (104), identifica-se o
desejo do enunciador de que
a ação verbal se efetive; em (105
), a modalidade não é optativa, mas
necessitativa, ou seja, a forma perifrástica traduz uma necessidade da qual não se abd
ica,
chegando a se impor como uma obrigatoriedade. Em (106), a modalização do enunciador soa
mais como um lamento por algo que
n
ão se efetivou, enquanto em (107
) percebe
-
se um
certo
tom
de predestinação, indicando que a ação expressa pela perífrase verbal independe da vontade do
sujeito do enunciado. Na contemporaneidade, contudo, em alguns contextos, essa modalidade
expressa pelos dois auxiliares
ter
e
haver
parece não ser mais tão dicotômica como se
verifica nos contextos ora analisados, o que sinaliza a existência de um
outro
processo de
variação e mudança lingüística
, cuja gênese se radica no período arcaico da língua.
Mattos e Silva
(2001 [1994]), ao comentar acerca do caráter de obrigatoriedade atribuído pela expressão
ter
de
+
infinitivo, explica que, na era arcaica, a expressão aver de correspondia
semanticamente
a
ter de
,
pod
endo variar com aver a. Assim, em
virtude
não apenas dessa equivalência semântica, mas
também do fato de, em algumas situações, as duas formas serem intercambiáveis, parece estar
se
processando, no estágio atual da língua, uma reanálise semântica, ou seja, o falante, valendo-
se
de um raciocínio abdutivo, está começando a interpretar o caráter até então optativo da
Sueli Maria Coelho
221
modalidade
expressa por haver de
como
uma obrigatoriedade, conforme ilustram os exemplos
abaixo arrolados
:
(108
)
Há de se considerar
a possibilidade de uma reanálise semântica.
(109
)
Tem de se considerar
a possibilidade de uma reanálise semântica.
Tanto em (108) como em (109
),
não se nota um desejo de que a ação expressa pelo
infinitivo venha a se efetivar, mas existe um alerta para o caráter imperativo de se considerar a
possibilidade de uma reanálise semântica. Em contextos menos formais, tal reanálise também
se deixa perceber, como e
m (110) e em (111
) seguintes:
(110
) Ele
há de conseguir
aquele emprego; afinal se esforçou tanto!
(111
) Ele
tem de conseguir
aquele emprego; afinal se esforçou tanto!
Nesse contexto, a reanálise se dá de forma inversa àquela observada em (108) e em (109
).
Tanto
o enunciado (110
)
quanto o (111) constituem contextos pragmaticamente optativos
.
Portanto,
na contemporaneidade, não se verifica o emprego de
ter
de
apenas para instaurar uma
modalidade necessitativa, embora seja esse o seu emprego mais recorrente, nem o de haver de
para demarcar a volição de que algo se efetive. A julgar pelo que sinalizam os dados aqui
analisados
, no período contemporâneo, em alguns contextos, está se processando uma reanálise
semântica da modalidade expressa por esses dois auxil
iares.
Diante das considerações tecidas acerca da distribuição do auxiliar
haver
, pode-
se
concluir que, apesar de ter seus contextos reduzidos em virtude do processo de dessemantização
por que vem passando, tal auxiliar não desapareceu da língua e, provavelmente, não o fará,
porque existem contextos em que se encontra em distribuição complementar com seu concorrente
ter
, o que inviabiliza a possibilidade de uma forma vir a substituir a outra. Corroborando as
Sueli Maria Coelho
222
previsões da literatura, o auxiliar
haver
reduziu significativamente seus contextos, tornando-
se,
com isso, mais previsível. Seus contextos de ocorrência podem, no estágio atual da língua, ser
assim delineados:
(a)
Quando a perífrase for constituída de auxiliar no pretérito imperfeito do
indicativo + particípio, a probabilidade de esse auxiliar ser o verbo
haver
é
bastante reduzida, pois, nesse contexto, a preferência é pelo auxiliar
ter
. Não
se descarta, portanto, a possibilidade de que, nesse contexto distribucional, o
auxiliar
haver
desapareça da língua, mesmo nos contextos de maior
formalidade.
(b)
Quando a perífrase for constituída de auxiliar no presente do indicativo +
particípio, esse auxiliar jamais será o haver, pois, nesse contexto, o auxiliar
ter
já o substituiu.
(c)
Quando o auxiliar estiver flexionado em um dos tempos do modo subjuntivo +
particípio, existe a possibilidade de o auxiliar ser tanto o
haver
quanto o
ter
,
pois, nesse contexto, os dois auxiliares parecem se equivaler, o que os torna
intercambiáveis
.
(d)
Em se tratando de perífrases com o infinitivo, em qualquer tempo e modo, a
probabilidade de se encontrar ora o auxiliar
ter
ora o
haver
é a mesma, tendo
em vista que ambos
ainda
traduzem expressões diferenciadas de aspecto,
apesar da possibilidade que se vislumbra de uma reanálise semântica.
Os
dados coletados acenam na direção de que é justamente a perífrase de infinitivo
preferida nos períodos arcaico e moderno que mantém o auxiliar
haver
no sistema lingüístico do
Sueli Maria Coelho
223
português contemporâneo. Não fosse a diversidade aspectual encontrada nas perífrases com o
infinitivo, provavelmente, tal forma verbal não estaria mais desempenhando a função de auxiliar.
Há ainda outro fato a se considerar no que se refere às perífrases de
haver
+ infinitivo: nos
períodos arcaico e moderno, ainda que em freqüência muito reduzida, registrou-se a ocorrência
de perífrases de infinitivo constituídas sem o intermédio da preposição (havemos semelhar e
houvessem contar). Além da baixa freqüência, de se considerar ainda que o contexto era
recorrente
o verbo principal era sempre “semelhar” e que, naquela época, não havia ainda
uma regularidade lingüística, que o idioma ainda não estava normalizado e que os produtores
dos textos muitas vezes meros copistas não mantinham uma regularidade ortográfica. Esse
fato pode ter motivado o uso da preposição em uma perífrase e não em outras. No período
contemporâneo, à semelhança do que ocorre com as demais perífrases de infinitivo, todas eram
preposicionadas, que, conforme aqui se defende, a preposição integra a
auxiliariz
ação
nas
construções perifrásticas em que a forma nominal é infinitiva.
Em se tratando da presença de material interveniente entre o auxiliar e a forma nominal,
não se registrou, em nenhuma das perífrases com o auxiliar
haver
, a interposição de qualquer
estrutura lingüística, o que demonstra a coesão bastante consolidada da forma verbal. Desse
ponto de vista, pode-se afirmar que as perífrases com o auxiliar
haver
mostram-se mais
gramaticalizadas que aquelas constituídas com o auxiliar
ter
.
Sueli Maria Coelho
224
4
4
.
.
3
3
.
.
3
3
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
E
E
D
D
A
A
D
D
I
I
S
S
T
T
R
R
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I
B
B
U
U
I
I
Ç
Ç
Ã
Ã
O
O
D
D
O
O
V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
S
S
E
E
R
R
O terceiro auxiliar a ter sua distribuição analisada é o verbo
ser
. Considerando o primeiro
critério proposto para a seleção da forma nominal de uma perífrase o da transitividade –, não é
de se esperar que esse auxiliar se comporte da mesma forma que os dois anteriormente
analisados, pois não se está diante de um verbo nocional, como
ter
e
haver
. O verbo
ser
é o verbo
relacional por excelência, cuja principal função é a de mediar a cópula entre o sujeito e o seu
atributo
. Assim sendo, espera-se que, em virtude de sua natureza adjetiva, o particípio seja
bastante recorrente nas perífrases constituídas com o auxiliar
ser
, pois suas propriedades mórficas
atendem aos pré-requisitos da predicação do verbo relacional. A distribuição do auxiliar
ser
nos
três períodos estudados encontra
-
se sintetizada no quadro que se segue:
F
IGURA
5
: Quadro sinóptico dos contextos de ocorrência do verbo SER
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODERNO
PERÍODO
CONTEMPORÂNEO
PRESENTE DO
INDICATIV
O +
PARTICÍPIO (som
ensinado)
X
X
X
PRETÉRITO
PERFEITO DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (foi
estragado)
X X
X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (era
semeado)
X X X
Sueli Maria Coelho
225
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODERNO
PERÍODO
CONTE
MPORÂNEO
PRETÉRITO MAIS
QUE PERFEITO DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (fora
mandado)
X
FUTURO DO
PRESENTE DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (seeram
salvos e nomeados;
será avaliado)
X X X
FUTURO DO
PRETÉRITO DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (seria
ordenado)
X X
PRESENTE DO
SUBJUNTIVO +
PARTICÍPIO (seja
melhorado)
X X X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
SUBJUNTIVO +
PARTICÍPIO (fosem
mantheudos; fossem
contrabalançadas)
X X X
FUTURO DO
SUBJUNTIVO +
PARTICÍPIO (ffor
vendido; forem
chamadas)
X X X
INFINITIVO +
PARTICÍPIO (serdes
auysado e nembrado;
ser citado)
X X X
GERÚNDIO +
PARTICÍPIO (sendo
formado)
X
X
MODAL + SER +
PARTICÍPIO (devem
ser tratadas)
X X X
A análise das perífrases de
ser
nos três períodos confirmou a hipótese da supremacia do
particípio em relação às outras formas nominais na composição da forma perifrástica. Os dados
Sueli Maria Coelho
226
coletados
comp
rovaram
que as perífrases de
ser
são, de fato, constituída
s
exclusivamente com o
particípio, já que não se registrou, em nenhum dos três períodos analisados, ocorrência de
perífrase
s
constituídas de
ser
+ gerúndio ou infinitivo.
Isso se deve, como já discutido, à natureza
adjetiva dessa forma nominal que expressa, nas palavras de Câmara Júnior (1998 [1969]), “em
vez da qualidade de um ser, um processo que nele se passa” (p. 103). Cabe, contudo, esclarecer
que, embora em número bastante escasso, registraram-
se
, nos
corpora
selecionados para o
estudo,
algumas ocorrências em que o auxiliar
ser
figurava justaposto ao infinitivo, como em
(112), e ao gerúndio, conforme (113
):
(112
) “AJnda que as çerimonjas non sejam de engeytar
nas cousas que o requerem, e
sobre esto deueis uos senhor ser lembrado que asy como soçedes a erança, sois obrigado a suas
diujdas (...)” (DOM DUARTE, p. 76, grifo
s meus)
(113
) “E quando Primo Argemiro estende a mão, é pedindo
o cornimboque.” (ROSA,
Sarampalha
, grifos meus)
Uma análise mais superficial das ocorrências aqui registradas pode induzir à crença de
que tanto em (112) quanto em (113) está-se diante de formas perifrásticas constituídas de
ser
+
infinitivo ou gerúndio, respectivamente, o que inviabilizaria a tese
proposta
de
que
a
transitividade verbal constitui o primeiro critério de seleção da forma nominal pelo auxiliar.
Travaglia (1985 [1981]) defende a ocorrência de uma perífrase constituída de SER + DE +
INFINITIVO, alegando que ela “marca o aspecto habitual para a situação narrada indicada pelo
infinitivo e o aspecto indeterminado, para a situação referencial indicada pelo todo da perífrase,
com todas as flexões verbais” (p. 276). Segundo o autor, “o verbo ‘ser’ mantém seu status de
verbo de estado” (
op. cit
., p. 276) e “as frases construídas com esta perífrase têm sempre a função
de caracterizar seres e coisas (...), onde ‘de + infinitivo’ tem valor adjetivo, indicando a
Sueli Maria Coelho
227
característica do sujeito criada pelo hábito de realizar a situação expressa pelo infinitivo.” (op.
cit
., p. 276) Entretanto, o presente estudo, contrariando a tese supramencionada, defende que, em
ambos os casos, não ocorrem formas perifrásticas, mas simples. Acredita-se que, em (112), a
expres
são “non sejam de engeytar” não constitui uma forma perifrástica. Defende-se a tese de
que se está diante de uma forma simples do verbo
ser
acompanhada de uma oração reduzida de
infinitivo
que desempenha a função predicativa exigida pelo verbo relacional. Se se admite que a
expressão “de engeytar” constitui uma oração predicativa reduzida, aceita-se também que esta
possui valor de um adjetivo, podendo ser substituída, em termos semânticos, por “d
esprez
ível” ou
“recusável”: “não sejam desprezíveis (ou recusáveis)”. Tal análise parece plausível se comparada
àquela atribuída aos enunciados (114) e (115) apresentados a seguir:
(114) Meu sonho
é ser
feliz.
(115) Seu
maior
desejo
era ver
o filho formado.
Nos enunciados acima arrolados, não pairam dúvidas de que as expressões “é ser”, em
(114) e “é ver”, em (115), estão apenas justapostas, não constituindo, portanto, uma perífrase
verbal. Trata-se, pois, de orações substantivas predicativas reduzidas de infinitivo. Pode-
se
objetar que o contexto sintático descrito em (112) não é semelhante aos de (114) e de (115),
porque aquele exibe uma preposição, enquanto estes não o fazem. Contudo, de se observar
que, em alguns contextos lingüísticos, a presença da preposição nas orações predicativas
reduzidas é facultativa, conforme ilustram os enunciados (116) e (117):
(116) a.
Meu único medo
é de perder
tudo que consegui.
b. Meu único medo
é perder
tudo que consegui.
Sueli Maria Coelho
228
(117) a.
A vontade de João
é d
e largar
tudo,
de desistir
dos seus sonhos.
b. A vontade de João
é largar
tudo,
desistir
dos seus sonhos.
Tanto em (116) quanto em (117), a presença da preposição ou a sua ausência não
produziram sentenças agramaticais, tampouco
contribuíram
para a constituição de formas
perifrásticas. Em ambos os contextos, têm-se períodos compostos e orações reduzidas
desempenhando a função adjetiva exigida pela predicação verbal. Travaglia (1985 [1981]
)
também reconhece o caráter adjetivo da expressão constituída pela preposição mais a
forma
nominal de infinitivo, embora aposte na existência da perífrase verbal. Em estudos posteriores
(cf. Travaglia (2003)), o autor parece partilhar da tese aqui defendida de que, em tal contexto, o
verbo
ser
não
forma uma perífrase, mas não o considera ainda um uso gramaticalizado da
forma lexical
, elencando
-
o en
tre os valores lexicais do item
. Para o autor em voga, nesse contexto
(“Antônio não é de mentir”;
Joaquim
é de briga”), o verbo expressa semanticamente a posse de
uma inclinação ou de uma capacidade. O autor
ainda
questiona sobre a possibilidade de se
interpretá
-
lo
como uma variante do verbo de ligação. No presente estudo, defende-se que se
trata de uma variante da cópula, sendo, portanto, um uso já gramaticalizado
da forma.
A teoria de
que esse uso constitui uma variação da c
ópul
a parece bastante defensável, que, espelhando-
se
nas idéias postuladas por Nascimento e Dillinger (2003), é plausível defender a ocorrência, no
português do Brasil, de expressões predicativas introduzidas por preposições –
prepositional
small clauses, na teoria dos autores. Os lingüistas ora mencionados estudam a legitimidade de
sentenças como “(a) João não é de brincadeira; (b) Isso é de madeira; (c) João está de licença”,
que se aproxim
am, em termos estruturais,
do enunciado apresentad
o em (112
).
Em (113), a expressão “é pedindo” também não constitui uma locução, mas duas formas
verbais geradoras de duas orações, conforme se percebe
n
o desdobramento proposto em (118
):
Sueli Maria Coelho
229
(118
) E quando Pri
mo Argemiro estende a mão, é para pedir o cornimboque.
O enunciado acima elucida o argumento de que a forma nominal de gerúndio introduz
uma oração reduzida final, não integrando, com o verbo
ser
, uma perífrase verbal. O enunciado
(113
) poderia ai
nda ser
parafr
aseado como em (119) ou em (120
):
(119
) Primo Argemiro estende a mão, pedindo o cornimboque.
(120
) Primo Argemiro só estende a mão para pedir o cornimboque.
No enunciado (119), identifica-se o valor expletivo de
ser
em (118), uma vez que a forma
red
uzida de gerúndio encarrega
-
se de traduzir a finalidade de o sujeito do enunciado ter estendido
a m
ã
o. A paráfrase expressa em (120
) preserva a idé
i
a de finalidade presente em (113), em (118)
e em (119), demonstrando, mais uma vez, não se tratar de uma perífrase formada de
ser
+
gerúndio.
Ainda que tais usos não tenham sido cotejados nos
corp
ora
representativos do período
contemporâneo, eles são bastante recorrentes no estágio atual da língua, conforme atestam os
exemplos de (121) a (126
), arrolados a seg
uir:
(121
) Tira isso da boca, menino, que isso não é de comer.
(122
) Essa teoria não é de se jogar fora.
(123
) Essa criança não é de chorar.
(124
) “É dando que se recebe.”
(12
5
) É se esforçando e se dedicando que você alcançará seus objetivos.
(126
)
Não é se desesperando que você resolverá o problema.
Sueli Maria Coelho
230
Analogamente ao que se propôs para a ocorrência do infinitivo em (112), defende-se que
nos contextos de (121) a (123) não se tem uma perífrase de
ser
+ infinitivo, mas duas formas
verbais distintas, o que determina a existência de duas orações: uma principal e uma substantiva
predicativa reduzida de infinitivo.
Apoiando
-se nas evidências empíricas aqui apresentadas
,
pode
-se assim descrever o contexto de
ser
+ infinitivo: os infinitivos que se locam depois do
verbo
ser
vêm geralmente porque, em alguns contextos, a presença da preposição é facultativa
– acompanhados de preposição, desempenhando o papel de uma expressão adjetiva e constituem,
portanto, uma oração substantiva predicativa reduzida
. Cabe ain
da uma outra consideração acerca
do infinitivo que se loca após o verbo
ser
: também nesse caso, a transitividade constitui um
critério de seleção, que apenas verbos transitivos diretos ou intransitivos podem ocorrer neste
contexto e, conseqüentemente, compor orações reduzidas. Um outro argumento em favor da tese
de que os contextos de
ser
+ infinitivo não constituem perífrases, mas orações reduzidas pode ser
identificado na an
álise do
enunciado (127
):
(127)
Larga
esse bombom, menino, que isso não é de co
mer
agora. lhe falei que doce
só após o almoço.
Em (127), a despeito de o contexto de ocorrência ser bastante semelhante àquele dos
enunciados de (121) a (123), não se tem uma oração predicativa reduzida, mas uma oração
adverbial final
que pode ser dese
nvolvida
conforme
(128
):
(128)
Larga esse bombom, menino, que isso não é para ser comigo agora. lhe falei
que doce só após o almoço.
A idéia de finalidade presente em “não é de comer” to
rna
-se bastante evidente em (128
),
atestando
, mais uma vez, não se tratar de uma forma perifrástica, como uma primeira análise
parece sinalizar. Tanto em (127) quanto em (128), não se está diante de uma perífrase constituída
Sueli Maria Coelho
231
com o verbo
ser
, mas de duas formas simples, o que acarreta a existência de duas orações.
A
duplicida
de de interpretação presente em alguns contextos (cf. “Isso não é de comer”, por
exemplo
, em que a expressão “é de comer” pode ser interpretada tanto como um adjetivo
“comestível”
, quanto como um advérbio
“para ser comido”
)
parece constituir mais um
indício
de que tais contextos são, de fato, orações reduzidas. De acordo com Gama Kury (1990), muitas
vezes, a oração reduzida “se presta a mais de uma classificação, e nem sempre é possível fixar-
se
numa delas como sendo a melhor”. (p. 109)
Os contextos ilustrados em (124), em (125) e em (126) também não podem ser
interpretados como perífrases constituídas de
ser
+ gerúndio. Na verdade, esses usos tão
recorrentes tanto na modalidade oral quanto escrita da língua podem ser analisados como
estruturas clivadas construídas com o auxílio do verbo
ser
mais a partícula
que.
A idéia de
condiçã
o latente em (124) também poderia ser expressa pela reduzida apresentada em (129) ou
pe
la desenvolvida expressa em (130
):
(129
) Dando, recebe
-
se.
(130
) Se você der, você re
ceberá.
Também nos exemplos (125) e (126) o alcance dos objetivos pretendidos e a resolução do
problema mencionado condicionam-se, respectivamente, ao esforço e dedicação e à manutenção
da calma. O apelo ao emprego do verbo
ser
mais
que
e a anteposição do termo clivado no caso
a oração reduzida de gerúndio constitui um recurso muito recorrente na língua para se
colocarem termos em realce ou em evidência. No que tange à alta produtividade das estruturas
clivadas na língua, Perini (1998)
explica
que,
“ap
esar da evidente complexidade da relação, as
orações clivadas são de uso muito corrente tanto na fala quanto na escrita.” (op. cit
., p. 215)
Sueli Maria Coelho
232
Justificado o fato de o verbo
ser
constituir perífrases com o particípio, resta ainda
discutir algumas peculiaridades de tais perífrases. Antes, porém, cumpre esclarecer que, a
despeito de a maioria dos autores interpretarem a seqüência de SER + PARTICÍPIO como uma
forma perifrástica, Mattos e Silva (2001 [1994]) mostra-se cautelosa em relação a isso,
ponderando a respeito da concordância marcada também no particípio presente. Segundo a
autora, a ausência de concordância é critério para demarcar o estágio inicial de gramaticalização
de outros auxiliares como
haver
e
ter,
por exemplo, e não
o é para o verbo
ser.
Adv
erte a referida
estudiosa
de
que esse tipo de interpretação constitui uma concessão de critério, o que abre
precedentes para tratamentos diferenciados ou mesmo para o surgimento de exceções na
descrição dos fatos lingüísticos.
Partind
o-se do pressuposto
defendido
por este estudo de que tanto o verbo auxiliar quanto
a forma nominal contribuem para a marcação aspectual no tempo composto, faz-se necessário
analisar como isso ocorre nas perífrases de
ser.
Admitindo-se tratar de um verbo relacional, um
uso gramaticalizado da forma, cuja função é mediar a cópula do sujeito com seu atributo,
parece impróprio esperar que tal verbo, a exemplo do que se verificou com os verbos nocionais,
contribua com nuanças de aspecto nas formas compostas. Contudo, as perífrase
s constituídas com
o relacional
ser
têm um aspecto funcional bem definido: formar a voz passiva de ação. Não fosse
a expressão da idéia passiva da ação expressa pelo particípio, não seria necessário o uso de
tais
perífrases, pois apenas o verbo de ligação e o adjetivo cumpririam a expressão da cópula. Os
ex
emplos (131) e (132
) mediarão a apresentação de evidências a favor do que
se está propondo:
(131
) O cachorro está morto.
(132
) O cachorro foi morto.
Sueli Maria Coelho
233
Em (131), o verbo
estar
estabelece a cópula entre o nome
cachorro
e o adjetivo
morto,
atribuindo ao ser sobre o qual se enuncia um estado inerte. Não se pode cogitar, nesse contexto,
se a morte do cachorro foi natural ou provocada. Já, em (132), o auxiliar
ser,
combinado com o
particípio do verbo
morrer,
forma uma perífrase verbal cuja função é exprimir o aspecto passivo
do ser sobre o qual se enuncia. Nesse contexto, não dúvida de que a morte do cachorro tenha
sido provocada. Logo, pode-se afirmar que, assim como os verbos nocionais, os verbos
relacio
nais também contribuem para a marcação do aspecto nas formas compostas. No caso das
perífrases com o verbo relacional
ser
, cumpre ao particípio a marcação do aspecto perfectivo e,
ao auxiliar, a tradução da passividade da ação expressa pelo verbo principal, além, é claro, da
atribuição desse aspecto ao sujeito.
Outra peculiaridade referente às perífrases com verbo relacional é aquela concernente à
marcação do número. Enquanto nas perífrases introduzidas por auxiliares nocionais a marcação
do número verbal é assinalada apenas no auxiliar, nas perífrases introduzidas por verbo
relacional, a marcação do número, tal como ocorre na concordância nominal, é redundante:
assinala
-se o plural tanto no verbo auxiliar quanto na forma nominal de particípio.
Uma
interpre
tação possível para tal particularidade seria atribuir a necessidade de concordância
ao
valor adjetivo assumido pelo verbo principal que, necessariamente, deve concordar com o núcleo
nominal com o qual copula. Palmer (1954) atesta a natureza adjetiva do pa
rticípio
e argumenta
em favor de seu papel temático neutro, o que favorece
a combinação com os auxiliares de diátese:
“o particípio perfectivo passivo do Latim é na origem um adjetivo em -
to
- que era tão neutro
quanto a voz
53
.” (p. 280, tradução nossa)
Gre
en
(1982),
contudo, ao
analisar o
status
da
auxiliarização
de diátese no Romance, credita, como anteriormente mencionado, a presença da
53
“The perfect participle passive of Latin is in origin an adjective in -
to
- which was neutral as to voice.”
(PALMER,
1954, p. 280)
Sueli Maria Coelho
234
concordância
ao caráter passivo do partic
ípio
. Esse autor acredita que os auxiliares passivos são
estágios menos gramaticais dos auxiliares de temporalidade. Tal intuição explica o fato de as
marcas de concordância serem assinaladas apenas nas passivas e não o serem nas perífrases que
se
prestam à marcação do tempo ou mesmo da modalidade. Vincent (1982) também partilha do
m
esmo raciocínio de Green
(
op. cit.)
e explica que, no Latim clássico, tanto o verbo
ser
quanto o
verbo
haver
eram empregados como auxiliares de passiva, exibindo ambos as marcas de
concordância no particípio. Essa similaridade funcional entre os dois verbos devia-
se
a um
para
lelismo estrutural entre as
formas
, assim esquematizado
pelo autor
:
Categoria
Caso do
Auxiliar
m
orfossintática
sujeito
AGENTE
HABERE
PERFEITO
NEUTRO
ESSERE
PASSIVA
(VIN
CENT, 1982, p. 82, tradução nossa)
Em virtude de outras mudanças lingüísticas que foram se encaixando, no Português, o
sobreviveram usos do verbo
ser
empregado como um auxiliar de temporalidade. Este
se
estabilizou
apenas como auxiliar de passiva, enquanto o verbo
haver
seguiu a direção contrária,
estabelecendo
-
se
apenas
como um
marcador de temporalidade.
Sueli Maria Coelho
235
No que tange à redução e ou ampliação de contextos, os dados do quadro sinóptico
apresentado na figura 05 acenam para uma estabilização das formas. A análise comparativa dos
contextos de ocorrência do verbo ser com o seu processo de expansão lexical não acusa uma
relação de determinismo explícito entre a expansão dos contextos e a expansão no léxico. Isso
pode ser justificado pelo fato de que, ainda no período arcaico, o verbo
ser
, provavelmente em
virtude de sua alta freqüência, já era flexionado em todos os tempos do modo indicativo e
também do modo subjuntivo, além do infinitivo. Assim, ainda que tenha passado por um
processo de expansão lexical ao longo dos períodos moderno e contemporâneo, como
demonstram os valores semânticos analisados, não se registrou uma ampliação dos seus
contextos, dada a impossibilidade de isso ocorrer, considerando-se os tempos e modos
registrados na era arcaica.
Por fim, resta verificar a presença ou não de material interveniente entre o auxiliar e o
particípio nas perífrases passivas. No período arcaico, não se registrou a presença de nenhum
material entre o auxiliar e a forma principal. Já, no período moderno, verificou-se a possibilidade
de o sujeito se interpor entre o auxiliar
ser
e a forma nominal de particípio, conforme
demonstram os exemplos
(133) e (134
),
relacionados
a seguir:
(133
) “Lembra-me a mim que as Vestais por conservarem o fogo, a que chamavam
eterno
, inútil, porque nem alumiava a Deus, nem ainda aos deuses, antes o tinham subterrado
debaixo de uma lagem,
eram
por esta conservação tão
veneradas
, que quando por alguma ocasião
importante à sua mesma autoridade saíam da sua clausura, se na rua as topava a justiça com
algum delinqüente caminhando ao suplício, ficava o condenado absolto do crime (...)” (AVES, p.
373, grifos meus)
Sueli Maria Coelho
236
(134
) “... e para a dita trasladação dos meus ossos
serão
meus Testamenteiros
obrigados
a
pedirem as licenças necessarias com o t
empo ao Prelado de sorte que não haja mais demora em se
executar esta minha disposição do que a precisa para se consumir o Corpo (...)” (BARRA
LONGA,
Excerto do Testamento do Cel. Mathias Barbosa, linha 08
e seguintes, grifos meus)
Também no período contemporâneo registraram-se interposições; contudo, neste período,
apenas expressões adverbiais foram identificadas entre o auxiliar e o particípio, co
nforme se pode
comprovar em (135
) e em (136
):
(135
) “Itamar ofereceu ao ex-secretário uma manobra que permitiria a volta de Costa à
Câmara, proposta levada pelo secretário Ronaldo Perim, que
foi
veementemente
rechaçada,
detonando a crise”. (HOJE EM DIA,
Pragmatismo e moralidade
, 03/04/00
, grifos meus)
(13
6) “A campanha de fato
será
mesmo
deslanchada
quando houver a definição dos
atuais prefeitos sobre a reeleição.” (HOJE EM DIA,
Sul de Minas aguarda definição de prefeitos,
03/04/00
, grifos meus)
Tais interposições parecem ser possíveis em virtude do caráter adjetivo do particípio, o
que permite a relação com expressões adverbiais as quais têm por função precisar alguma
circunstância relativa à expressão do aspecto perfectivo da forma principal.
Sueli Maria Coelho
237
4
4
.
.
3
3
.
.
4
4
A
A
N
N
Á
Á
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V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
E
E
S
S
T
T
A
A
R
R
Outro auxiliar que, aparentemente, comporta-se de maneira análoga à forma verbal ora
analisada é o
estar
, que, por um período da história da língua, apresentou acepções semânticas
muito semelhantes às de
ser,
o que permitiu, em alguns contextos, a concorrência entre as duas
formas. A análise diacrônica dos contextos de ocorrência de
estar
, disposta na figura 6 a seguir,
possibilitará a comparação entre os contextos de ocorrência dos dois auxiliares concorrentes.
FIGURA
6
: Quadro sinóptico dos contextos de ocorrência do verbo ESTAR
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODE
RNO
PERÍODO
CONTEMPORÂNEO
PRESENTE DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (estam
folgados; está
dedicada)
X
X X
PRESENTE DO
INDICATIVO +
GERÚNDIO (estão
levantando)
X X
PRESENTE DO
INDICATIVO +
GERÚNDIO +
INFINITIVO (estão
procurando aprimorar)
X
PRES
ENTE DO
INDICATIVO +
GERÚNDIO +
PARTICÍPIO (estão
sendo apuradas)
X
PRETÉRITO
PERFEITO DO
INDICATIVO +
PREPOSIÇÃO +
INFINITIVO
(esteuerom a praticar)
X
Sueli Maria Coelho
238
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODERNO
PERÍODO
CONTEMPORÂNEO
PRETÉRITO
PERFEITO DO
IN
DICATIVO +
PARTICÍPIO (esteve
desguarnecido)
X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO
(estavam folgados)
X X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
INDICATIVO +
GERÚNDIO (estaua
aguardando)
X X
FUTURO DO
PRETÉRITO DO
INDICATIVO +
GERÚNDIO (est
aria
apenas cumprindo)
X
PRESENTE DO
SUBJUNTIVO +
GERÚNDIO (esteja
mantendo)
X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
SUBJUNTIVO +
GERÚNDIO
(estivessem pintando)
X
FUTURO DO
SUBJUNTIVO +
PARTICÍPIO (estiver
reduzido)
X
GERÚNDIO +
PARTICÍPIO (estando
purgado)
X X
INFINITIVO +
PARTICÍPIO (estar
amancebado)
X X
O mero percorrer de olhos pelos contextos distribucionais de
estar
já evoca a atenção para
um aspecto peculiar dessa forma verbal em relação ao
ser
: a co-ocorrência com o gerúndio. Isso
suscita imediatamente algumas questões: (a) por que um verbo relacional selecionaria uma forma
Sueli Maria Coelho
239
nominal de gerúndio para com ele co-ocorrer? (b) em virtude de sua transitividade, não deveria,
assim como
ser
, selecionar apenas a forma nominal de particípio?
A resposta para tais i
nquisições
não pode ser identificada de forma tão imediata
, quanto possa parecer a princípio, e ancora
-
se não
apenas nas funções das formas nominais, mas também nas propriedades aspectuais do próprio
auxiliar. No tocante às questões funcionais das formas nominais, Bechara (1999) pontua que “o
particípio pode valer por um adjetivo (homem sabido) e o gerúndio por um advérbio ou adjetivo
(amanhecendo, sairemos = logo pela manhã sairemos; água fervendo = água fervente)”
(BECHARA, 1999, p. 224). Logo, a função adjetiva do gerúndio licencia a sua co-
ocorrência
com o verbo relacional, atendendo às exigências de sua predicação. Resta, pois, entender por que
o verbo relacional estar pode combinar
-
se com o gerúndio e o
ser
não admite tal combinaç
ão sob
pena de se produzirem construções agramaticais. Costa (1997) atribui a incompatibilidade entre o
auxiliar
ser
e a forma nominal de gerúndio a propriedades aspectuais distintas entre as duas
formas constituintes da perífrase verbal: enquanto o verbo
ser
é de natureza perfectiva, o
gerúndio é uma forma verbal essencialmente imperfectiva, o que inviabiliza uma harmonia
perifrástica, já que um aspecto exclui o outro. Por outro lado,
o verbo
estar
coloca automaticamente o fato verbal referido num fragmento de tempo,
ou seja, recorta a temporalidade, atribuindo ao fato verbal um período de vigência, ao
tempo em que refere a estrutura temporal interna desse fato como em curso
.
(COSTA,
1997, p. 54)
É, portanto, essa referência aspectual imperfectiva que faculta ao verbo
estar
e a todos os
demais verbos relacionais, com exceção de
ser
a co-ocorrência também com o gerúndio,
conforme ilustram os exemplos arrolados a seguir:
Sueli Maria Coelho
240
(137
) A mãe
ficou velando
o sono do filho doente a noite toda.
(138
)
Andam falando que vão consertar as estradas, mas, por enquanto, não fatos
concretos.
(139
) Os brasileiros
continuam arcando
com altas taxas tributárias.
(140
) O parlamentar permaneceu falando por muito tempo, embora ninguém se ativesse
ao seu discurso.
Centrando
-se a atenção em questões que aproximam os auxiliares relacionais
ser
e
estar
,
registra
-
se o fato de
as perífrases constituídas de
estar
+ particípio também forma
re
m construções
passivas, diferenciando-se daquelas constituídas de
ser
+ particípio, segundo Cunha e Cintra
(1985), apenas por questões aspectuais: “a oposição ser/estar corresponde a dois tipos de
passividade.
Ser
forma a passiva de ação; estar, a passiva de estado” (CUNHA; CINTRA, 1985,
p. 371), conforme exemplos apresentados em (141
) e em (14
2
):
(141
) Todos os testes foram corrigidos em tempo hábil.
(14
2
) Alguns alunos estavam aborrecidos pelo fracasso no teste.
Costa (1997) também ressalta as diferenças aspectuais dos dois auxiliares, ao afirmar que
“o
ser
e o estar seriam como que um mesmo verbo, assim como são em outras línguas indo-
européias. Para determinados efeitos, sobretudo para expressar diferenças aspectuais ocorrentes
com os estados, se desdobram.” (p. 79) Mattos e Silva (2001 [1994]) atribui as diferenças
aspectuais existentes entre os auxiliares
ser
e estar a questões diacrônicas que envolvem as duas
formas verbais. Segundo a autora,
Sueli Maria Coelho
241
na sua história pregressa,
estar
tem como étimo stare ‘estar de pé’. Nessa acepção está
documentado no português até fins do século XIV, enquanto
ser
tem uma história
complexa de convergência dos verbos latinos
sedere
, ‘estar sentado’ nessa acepção
ainda em uso, pelo menos, até fins do século XIV e, esse ‘ser’. Esse fato permite
inferir que o traço [+ transitório] é o próprio, desde a sua origem, a
estar
, enquanto em
ser
confluem o [+ transitório] de
sedere
e o [+ permanente] de
esse
. Não é sem razão
histórica, portanto, que, definida a oposição
ser/estar
no português, foi estar o verbo
escolhido para expressar a transitoriedade. (MATTOS E SILVA, 2001, p. 77)
A explicação da autora sobre a diacronia de
estar
faz emergir uma hipótese que merece
ser cogitada
.
Considerando-
se
o fato de que, em sua etimologia, o verbo
estar
apresenta mais de
um
étimo, dada a sua confluência com os étimos de
sedere,
é possível intuir que as perífrases
constituídas de gerúndio e aquelas constituídas de particípio s
ejam
oriundas de étimos distintos.
Pountain (1982) afirma que o fato de o verbo
estar
ter se despojado de seus valores lexicais
plenos para incorporar um
stat
us
de cópula não é o único aspecto relevante na história desse
verbo no Castelhano e no Português. “No Latim Clássico, o leque semântico de
STARE
é
razoavelmente
circunscrito; três sentidos plenos podem ser estabelecidos: (...)
“estar
1
” (com
sujeitos animados, oposto a “sentar-
se”)
, “estar
2
(com sujeitos inanimados, no sentido geral de
“estar situado”) e
“estar,
ficar
54
”.” (POUNTAIN, 1982, p. 144, tradução nossa) Os sentidos 1 e 2
são relativos à natureza nocional do verbo, enquanto o sentido 3 associa-se à sua natureza
relacional.
Ainda segundo Pountain (1982), nos textos mais antigos do Castelhano e do
Português, nota-se uma preferência por associar-se o verbo
estar
a complementos locativos
adverbiais. Assim, é plausível cogitar a respeito do fato de o
est
ar
que se combina com o
gerúndio não ser o mesmo
estar
que se combina com o particípio. Pode-se, pois, suscitar a idéia
de que o
estar
que constitui as perífrases de particípio é o sentido 3 acima descrito por Pountain
(op. cit.). Essa idéia parece bastante defensável, uma vez que, como defendido por Vincent
54
“In Classical Latin, the semantic range of STARE is fairly circumscribed; three full meaning can be established,
(…)
‘stand
1
(with animate subject, opposed to ‘sit’), ‘stand
2
(with inanimate subject, in the general sense of ‘be
situated’) and ‘stay’.
(POUNTAIN, 1982, p. 144
)
Sueli Maria Coelho
242
(1982), nesse sentido, ele seleciona um argumento neutro, o que favorece a expressão da passiva.
os sentidos 1 e 2, que selecionam argumentos agentes e locativos, formaram as perífrases de
ger
úndio,
que não se prestam à expressão da voz.
A análise das perífrases cujo verbo auxiliar é relacional permite ainda a identificação de
outro traço comum entre elas. Trata-se de uma coincidência de ordem estrutural não verificada
nas perífrases constituídas de auxiliares nocionais: em todas as perífrases, registra-se a
concordância tanto do verbo que ocupa a posição e a função do auxiliar quanto daquele que
assume as funções da forma principal nas perífrases constituídas com o particípio. Já, quando a
perífrase
é constituída com o gerúndio, em virtude de suas propriedades morfológicas, apenas o
auxiliar sofre a flexão. Em se tratando de perífrases constituídas com verbos nocionais,
independentemente da forma nominal com a qual o auxiliar co-ocorre, apenas este sofre as
flexões de modo, tempo, número e pessoa.
Resta ainda pontuar um último aspecto referente às formas nominais passíveis de co-
ocorrência com o auxiliar
estar
. A despeito de Cunha e Cintra (1985), ao abordarem os empregos
dos auxiliares, afirmarem que “estar emprega-se com o gerúndio ou com infinitivo do verbo
principal antecedido da preposição a, para indicar uma ão durativa, continuada” (CUNHA;
CINTRA, 1985, p. 384), tal característica aplica-se ao português europeu, mas não ao brasileiro.
Segundo esses autores, a construção com o gerúndio é anterior à construída com o infinitivo,
sendo também recorrente em algumas regiões de Portugal, nos Açores e em alguns países
africanos. a construção com o infinitivo, presente apenas em alguns textos modernos de
autores brasileiros e identificada, nesta pesquisa, somente no período arcaico, é preferida na
variedade padrão do português europeu falado na região setentrional da pátria de Camões.
Sueli Maria Coelho
243
Quanto à ampliação e ou redução dos contextos de ocorrência do au
xiliar
estar
, a mera
observação das ocorrências encontradas nos
corpora
parece conduzir na direção contrária daquilo
que se a respeito das formas em processo de gramaticalização, que, a cada período, registra-
se a expansão dos contextos de uso. Entretanto, como postulado, o fenômeno da
gramaticalização não deve ser analisado isoladamente, mas em consonância com o fenômeno da
lexicalização. Assim sendo, a explicação para o número diminuto de contextos da forma
perifrástica deve-se ao fato de que, em virtude de sua concorrência com o verbo
ser
, neste
período, o verbo estar era muito pouco polissêmico, apresentando apenas quatro acepções
semânticas. Nos períodos moderno e contemporâneo, à medida que a forma foi-
se expandindo no
léxico e se estabelecend
o na língua, registrou
-
se uma expansão proporcional nos contextos de uso
da forma perifrástica.
No que concerne à ocorrência de material interveniente entre o auxiliar e a forma
principal da perífrase, os dados coletados apontam uma certa regularidade: ocorrem apenas
expressões de cunho adverbial. Isso se explica, como nas perífrases constituídas com o verbo
ser,
pelo caráter adjetivo da forma nominal.
4
4
.
.
3
3
.
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5
5
A
A
N
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Á
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V
V
E
E
R
R
B
B
O
O
I
I
R
R
O último auxiliar a ser objeto de análise é também um verbo nocional, contudo de
transitividade diferente dos dois anteriormente analisados. Logo, espera-se um comportamento
Sueli Maria Coelho
244
diferenciado entre eles. A sinopse dos contextos registrados com o auxiliar
ir
está apresentada na
figura
7
, a seguir
:
FIGURA
7
: Quadro
sinóptico dos contextos de ocorrência do verbo IR
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODERNO
PERÍODO
CONTEMPORÂNEO
PRESENTE DO
INDICATIVO +
INFINITIVO (vai
escalar)
X X
PRESENTE DO
INDICATIVO +
GERÚNDIO (vai
crescendo)
X X
PRETÉRITO
PERFEITO DO
INDICATIVO +
GERÚNDIO (forom
durando; fui vindo)
X X
PRETÉRITO
PERFEITO DO
INDICATIVO +
INFINITIVO (foram
pastar)
X X X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
INDICATIVO +
GERÚNDIO (iam
ferindo)
X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
INDICATIVO +
INFINITIVO (hia
fazer)
X X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
INDICATIVO +
PARTICÍPIO (ia
prevenido)
X
FUTURO DO
PRESENTE DO
INDICATIVO +
INFINITIVO (irá
contar)
X
Sueli Maria Coelho
245
CONSTRUÇÃO
PERÍODO
ARCAICO
PERÍODO
MODERNO
PERÍODO
CONTEMPORÂNEO
FUTURO DO
PRETÉRITO DO
INDICATIVO +
I
NFINITIVO (hiria
pellejar)
X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
SUBJUNTIVO +
INFINITIVO (fossem
ferir)
X
PRETÉRITO
IMPERFEITO DO
SUBJUNTIVO +
GERÚNDIO (fossem
indo)
X
FUTURO DO
SUBJUNTIVO +
GERÚNDIO (for
prazendo)
X
INFINITIVO +
INFINITIVO (hiir
c
omçertar; ir gozar)
X X
INFINITIVO +
GERÚNDIO (ir
deixando)
X
Considerando-se os critérios propostos por este estudo para a seleção da forma nominal
pelo auxiliar, espera-se, num primeiro momento, a co-ocorrência do verbo ir, de natureza
intransit
iva, com a forma nominal de gerúndio, que é de natureza adverbial. Os dados obtidos
comprovam essa tese, que as perífrases constituídas de
ir
+ gerúndio foram mais recorrentes
que aquelas em que esse auxiliar co-
ocorre
u com o infinitivo. Atendo-se aos dois tipos de
perífrases registrados aquelas constituídas com o gerúndio e aquelas constituídas com o
infinitivo
nota-se, entre eles, uma particularidade de cunho mórfico na natureza da forma
auxiliar. Enquanto nas perífrases constituídas com o gerúndio o verbo ir preserva, ainda que
parcialmente, seu valor etimológico de forma plena, em se tratando das perífrases constituídas
com o infinitivo, como observa Costa (1997), ele tem “valor apenas gramatical de marca de
Sueli Maria Coelho
246
Tempo, não guardando o seu valor semânt
ico
-
lexical” (p. 76). Assim, infere
-
se que o processo de
gramaticalização do auxiliar ir com a forma nominal de infinitivo encontra-se em estágio mais
avançado que com a forma nominal de gerúndio, que com esta não se processou ainda a perda
do conteúdo nocional da forma auxiliar. Esse dado constitui mais uma evidência em favor da
teoria geral sobre a gramaticalização a qual defende que esse processo envolve a perda de
significado nocional do item, que passa a assumir apenas funções gramaticais.
Confirmad
a a hipótese da ocorrência de perífrases constituídas com a forma nominal de
gerúndio
, resta discutir a possibilidade de ocorrência de perífrases constituídas também com o
infinitivo e a agramaticalidade de perífrases construídas com o auxiliar
ir
+ particípio. As
perífrases com o infinitivo são previsíveis, porque, em virtude de seu valor substantivo, tal forma
nominal pode, combinada com uma preposição, desempenhar, no período simples, a função
adverbial, como se verifica no enunciado (143), em que a expr
essão
sem chorar expressa uma
circunstância modal, funcionando como um adjunto adverbial de modo:
(143
) A criança saiu
sem chorar
.
Entretanto, em se tratando da forma perifrástica, o infinitivo não se presta à expressão de
uma circunstância adverbial, como o gerúndio o faz. Então, além da versatilidade da forma
nominal de infinitivo que lhe permite assumir funções não apenas de substantivo, mas também de
advérbio, há de se
considerarem ainda
questões de ordem aspectual responsáveis por determinar a
(in)com
patibilidade entre o auxiliar e a forma nominal. As perífrases de
ir
+ infinitivo são
perfeitamente gramaticais na língua e constituem um recurso muito produtivo para a exp
ressão da
futuridade. (cf. NEVES, 2000) Combinado com as formas nominais de infinitivo, o verbo
ir
destitui
-se de seus semas de forma plena e passa a expressar “o curso de fatos a partir de um
ponto locativo/temporal qualquer” (COSTA, 1997, p. 75). Segundo Ilari (2001), as perífrases
Sueli Maria Coelho
247
constituídas com o auxiliar
ir
+ infinitivo assemelham-se a uma forma verbal simples acrescida
de morfemas, que, como nestas, o momento da referência localiza-se em relação ao momento
da fala. É provável que seja essa semelhança funcional com a forma simples de futuro que tem
contribuído para que, na contemporaneidade, registre-se uma preferência por se expressar o
tempo futuro por meio de expressões perifrásticas. Esse processo de reanálise lingüística por que
vem passando o verbo
ir
que passa a ser interpretado pelo falante não
mais
como um verbo de
movi
mento, mas como um marcador de futuro endossa a teoria de Hopper e Traugott (1993)
segundo a qual, diacronicamente, uma tendência de as formas perifrásticas virem a substituir
as formas simples.
São também as restrições aspectuais que inviabilizam a gramaticalidade de perífrases
constituídas de
ir
+ particípio. Costa (1997) explica que,
sendo o Particípio a expressão de um estado, permite a imperfectização relativa à
expressão do curso desse estado. O verbo
ir
, como auxiliar imperfectivo, expressa
geralmente a fase intermediária de um processo que, para ter suas fases referidas de per
si, deve sofrer uma parcialização. Os estados parecem rejeitar a fragmentação de seu
curso. (COSTA, 1997, p. 76
-
77)
Por esse motivo, então, não ocorrem perífrases constituídas de
ir
+ particípio, uma vez
que a incompatibilidade de ordem aspectual não permite a produção de sentenças gramaticais.
Cumpre advertir, contudo, que, em alguns contextos bastante específicos, em que o verbo
ir
comporta
-se como um verbo relacional, é possível que ele se agregue ao particípio para com ele
constituir uma perífrase, conforme se verifica em
(144):
(144) Ele
ia dividido
entre ficar ou abdicar de seus ideais.
Sueli Maria Coelho
248
No contexto ora apresentado, o verbo
ir
, auxiliar da perífrase de particípio, não é um
verbo nocional, como aqueles descritos por Costa (1997), mas um verbo relacional que, como
discutido, seleciona prioritariamente um particípio para com ele co
-
ocorrer.
Discutida a distribuição do auxiliar
ir
no que se refere às formas nominais passíveis de
com ele co-ocorrerem, faz-se mister analisar seus contextos de ocorrência, com vistas a detectar
sua redução ou ampliação. A observação da figura 07 acena para uma redução de seus contextos
sintáticos, comparando-se o período arcaico com o moderno e com o contemporâneo. Como
argumentado neste estudo, tal processo deve ser
sempre
analisado considerando-se também o
processo de lexicalização da forma. A análise semântica empreendida prenuncia uma
deslexicalização diacrônica da forma plena. Isso significa que, ao iniciar seu processo de
gramaticalização, o verbo
ir
, diferentemente dos demais analisados, não se expandiu no léxico.
Ao contrário, sofreu uma redução de seus semas e preservou, na forma plena, o sentido
etimológico de deslocamento.
Ess
e fato constitui mais uma evidência em favor da tese aqui
defendida de que os processos de lexicalização e de gramaticalização são paralelos na língua.
Portanto, não um ponto de intersecção entre ambos capaz de determinar que a
gramaticalização de um item afete sua abrangência nos domínios do léxico. Diante da redução
experimentada pelo verbo
ir
no âmbito lexical, torna-se previsível a redução de seus contextos,
porque as possibilidades semânticas também se tornam mais restritas. Aliada a essa redução
se
mântica
, registrou-se uma expansão nos usos gramaticais do
item
. Esse é mais um fator que
concorre para a redução dos contextos, uma vez que, segundo prevê a literatura disponível sobre
o fenômeno da gramaticalização, à medida que o item torna-se mais gramatical, aumentam-se as
suas restrições e, conseqüentemente, reduz-se a sua distribuição. Logo, pode-se afirmar que, do
ponto de vista da distribuição, o verbo
ir
comporta-se de forma regular, comprovando o que
Sueli Maria Coelho
249
prevê a literatura disponível. Os dados coletados induzem à hipótese de que possivelmente a
forma plena do verbo ir torne-
se
tão restrita no idioma a ponto de assumir apenas a função
gramatical de expressar
a
futuridade.
Se, no tocante à redução de contextos, o verbo ir comporta-se de forma regular, em se
tratando da possibilidade de se interporem materiais lingüísticos entre a forma auxiliar e a
principal nas perífrases, tal regularidade não se confirma de forma tão transparente. Segun
do
prevê a literatura vigente sobre o fenômeno da gramaticalização, um dos critérios para se definir
se um conjunto de verbos constitui uma expressão perifrástica é a impossibilidade de se interpor
material interveniente entre as formas constituintes da perífrase. Assim, quanto maior o grau de
gramaticaliza
ção da forma, maior o seu grau de coalescência e, conseqüentemente, menor a
possibilidade de ocorrer qualquer material lingüístico entre os verbos. Além dos pronomes
reflexivos, foi identificada, nas perífrases presentes nos
corpora,
a interposição do sujeito entre o
au
xiliar e a sua forma principa
l, conforme
atesta o exemplo (145
), transcrito a seguir:
(145
) “
Foi
Jacob
furtar
a bênção a Isaac em traje de Esaú.” (AVES, p. 396, grifos meus)
É relevante esclarecer que a interposição aqui verificada difere daquela realizada com os
advérbios, pois enquanto as interposições adverbiais realizam-se na estrutura de base, as
interposições do sujeito resultam de um movimento do verbo. No caso de (145), o verbo moveu-
se para COMP, uma categoria que, segundo Raposo (1992), encontra-se “sempre sintaticamente
presente, embora possa não ser preenchida por um complementador realizado foneticamente.” (p.
87)
. O fato de o verbo mover-se para a posição de COMP ilustra o fenômeno denominado de V1
ou VSO, ou seja, o verbo ocupa a primeira pos
ição
da sentença. Embora tal uso tenha sido
identificado apenas no período moderno, parece não soar agramatical no período contemporâneo,
embora não deixe
de ser estranho, considerando
-
se o fato de
não ser essa a preferência do falante.
Sueli Maria Coelho
250
Nos
corpora
, não se encontrou, no período contemporâneo, qualquer tipo de interposição, mas a
intuição de falante permite identificá-la, principalmente no que diz respeito aos
pronomes
oblíquos, conforme (146) e (147
):
(146
) Pedro certamente
vai
-
me
ajudar
a encontrar a soluç
ão para esse impasse.
(147
) O cachorro
foi
-
me
seguindo
até o acampamento.
Até mesmo as gramáticas normativas reconhecem como lícito o uso do pronome oblíquo
entre o auxiliar e a forma principal admitindo ainda, na variedade-padrão, seu uso anteposto ao
aux
iliar ou posposto ao verbo principal. Além dos pronomes oblíquos, as expressões adverbiais
também podem figurar entre o auxiliar e a forma principal sem qualquer prejuízo de sentido para
a perífrase:
(148
) Aquela criança insegura
vai
sempre
procurar
pela mãe, quando estiver em
dificuldade.
Contudo, não são todas as expressões adverbiais que asseguram a coesão e a
gramaticalidade das perífrases. As expressões que precisam negativamente um intervalo de
tempo e também os advérbios de negação geram perífrases
agramaticais:
(149
) * Aquela criança
vai
nunca
procurar
pela mãe.
(150
) * Aquela criança insegura
vai
não
procurar
pela mãe.
-se, pois, que, em se tratando de expressões adverbiais, não é possível estabelecer uma
categorização das expressões que podem ser interpostas entre a forma auxiliar e a principal.
Contudo, parece haver uma resistência em relação às circunstâncias de negação estas devem
preceder o auxiliar e de lugar. No que tange às negativas, Vitral (1999) defende a teoria de que
a agramat
ica
lidade de sentenças como (149) e (150
), por exemplo, deve
-
se ao fato de a expressão
Sueli Maria Coelho
251
negativa (NEG) tomar o VP como complemento. Esse fato foi apenas mencionado no intuito de
se alertar o leitor para reflexões dessa natureza, mas a precisão desses aspectos
semânticos
transcende as fronteiras desse estudo, dev
endo constituir o escopo de
outra
s
pesquisa
s.
A análise da distribuição dos contextos de ocorrência dos auxiliares teve como objetivo
principal obter respostas para uma pergunta relativamente complexa e ainda não respondida
numa perspectiva sincrônica, embora as indagações acerca do processo de
auxiliarização
na
língua tenham constituído, ao longo dos anos, objeto de inúmeras pesquisas lingüísticas.
Como já
mencionado, b
uscou
-se, a partir da observação das perífrases identificadas nos
corpora,
responder às seguintes indagações: (a) por que os auxiliares selecionam formas verbo-
nominais
específicas para com eles co-ocorrerem?; (b) quais seriam as questões subjacentes a esse
processo de seleção? A análise empreendida permitiu a precisão de critérios básicos responsáveis
por balizar as questões subjacentes ao processo de seleção da forma nominal pelo verbo auxiliar,
além de suscitar outras questões dignas de menção. A primeira conclusão a que se chegou
apa
rentemente óbvia, mas ainda pouco discutida é a de que a seleção das formas é determinada
por uma relação de regência que se estabelece
entre
os termos constituintes da forma perifrástica.
Mattoso Câmara (1959), ao tentar definir as locuções verbais, pro
põe
-se a fazê-lo numa
perspectiva sintática e afirma que estas se diferenciam das seqüências verbais por um princípio de
subordinação. Assim, entre os membros de uma perífrase existe uma relação de subordinação,
enquanto entre os membros de uma
mera
seqüên
cia verbal justaposta a relação que se instaura é
de coordenação. Percebe-se, portanto, nas intuições do lingüista, a relação de regência aqui
identificada, embora não tenha sido esse o termo
por ele
empregado. Outra generalização também
obtida a partir da
observação dos dados é a de que o termo regente da perífrase é o auxiliar, já que
é ele que seleciona a forma nominal que vai co-ocorrer com ele. Assim, pode-se afirmar que
Sueli Maria Coelho
252
enquanto o auxiliar é o regente, a forma nominal (ou principal, se se preferir adotar uma
nomenclatura tradicional) é o termo regido. Essas considerações demonstram que a nomenclatura
de
auxiliar
e de
principal
dispensada aos termos de uma perífrase verbal não obedece ao critério
sintático da subordinação, que a constitui, mas a um critério semântico, que o atributo de
principal
é conferido à forma que empresta o sema à perífrase
.
As demais conclusões alcançadas re
lacionam
-se mais estritamente às questões (a) e (b)
apre
sentadas acima. Os dados analisados oferecem evidências para se afirmar que a
especificidade da forma nominal selecionada para co-ocorrer com o verbo auxiliar obedece,
basicamente, a dois critérios, quais sejam: (a) o da transitividade e (b) o da (in)compatibilidade de
expressão aspectual entre o verbo auxiliar e a forma nominal. Assim, num primeiro momento, o
verbo auxiliar seleciona uma das formas nominais que atenda às exigências de sua transitividade.
Não é previsível, por exemplo, a ocorrência de perífrases constituídas de
ser
+ gerúndio, porque
o verbo auxiliar, de natureza relacional, seleciona uma forma nominal de natureza adjetiva e não
adverbial, como é o caso do gerúndio. Nesse sentido, a previsibilidade é para a seleção de um
particípio, que se presta à função adjetiva exigida pelo critério de obediência à tr
ansitividade.
Esse critério, ainda que não explicitado, já pode ser identificado nas intuições de Cláudio
Brandão (1963), conforme denota este fragmento, em que o gramático discorre acerca das
locuções verbais: “Nelas [perífrases verbais] um dos verbos enfraquece ou esvazia o seu sentido,
assumindo a função de auxiliar, e o outro, que, a princípio,
era um complemento
, perde, pouco a
pouco, tal caracter e em si concentra a idéia principal da perífrase.” (BRANDÃO, 1963, p. 530,
grifos nossos) O fato de o autor pontuar que, num primeiro momento, o verbo principal de uma
perífrase era complemento do verbo auxiliar endossa não apenas a relação de subordinação
existente entre eles, como também a assertiva de que a seleção da forma nominal é feita pela
Sueli Maria Coelho
253
forma auxili
ar
, para atender às exigências de
sua transitividade.
Nesse sentido, pode
-
se considerar
que o verbo principal de uma perífrase verbal é subcategorizado pelo verbo auxiliar.
Satisfeita a exigência da transitividade, a seleção é ainda determinada por express
ões
aspectuais a que as duas formas se prestam. Partindo-se do princípio aqui defendido de que a
expressão do aspecto é o produto da coesão entre as formas verbais constitui
ntes da perífrase, não
se admite a existência de perífrases constituídas de verbos cujas marcas aspectuais não sejam
compatíveis. Assim, não ocorrem, na língua, perífrases constituídas de
ir
+ particípio, por
exemplo, porque enquanto o verbo auxiliar presta-se à expressão de uma ação ainda por realizar,
o particípio é de natureza perfectiva, ou seja, expressa uma ação concluída. Essa combinação,
portanto, é abortada na língua em virtude da incompatibilidade de harmonia entre as duas formas.
Como salientado, essa construção apenas é possível se o verbo
ir
estiver empregado em uma
ace
pção semântica que não aquela destinada à expressão do movimento. Caso este verbo
comporte
-se como um verbo relacional, a perífrase com o particípio é licenciada em virtude da
compatibilidade entre as duas formas. Ainda assim, tais construções são pouco produtivas na
língua.
Por fim, outra generalização que pode ser abstraída da análise aqui empreendida e, de
certa forma, já sinalizada no parágrafo antecedente, é referente à expressão do aspecto. Partindo-
se do pressuposto de que, conform
e afirma Mattos e S
ilva (
2001
[
1994]
), o aspecto não é marcado
morfologicamente, defende-se neste estudo a tese de que a expressão aspectual se
prioritariamente
mediante o emprego de perífrases verbais, ou seja, é a necessidade funcional de
precisar o aspecto verbal uma das principais molas propulsoras para o fenômeno de
auxiliarização
na língua. Outra generalização referente à categoria de aspecto é o fato de que esta
não é expressa individualmente por uma das formas verbais constituintes da perífrase, mas é no
Sueli Maria Coelho
254
conjunto que ela se manifesta; é a partir da coalescência entre os membros da perífrase que se
torna manifesta a expressão das marcas aspectuais.
Analisada a freqüência total e gramatical das formas em processo de gramaticalização, o
rol de suas acepções semânticas e também seus contextos sintáticos, resta verificar a ocorrência
(ou não) da redução de material fônico nas formas auxiliares, assunto que constitui o objeto de
estudo da próxima subseção.
4
4
.
.
4
4
.
.
A
A
N
N
Á
Á
L
L
I
I
S
S
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A
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L
F
F
Ô
Ô
N
N
I
I
C
C
O
O
A literatura disponí
vel acerca do fenômeno da gramaticalização elenca a redução da carga
sonora do item também denominada perda de material fônico como um dos indícios da
expansão do fenômeno. Um dos exemplos clássicos de redução da carga sonora do item é a
formação da de
sin
ência de futuro do presente e de futuro do pretérito na Língua Portuguesa.
Segundo Mattos e Silva (2001 [1994]), tais desinências resultam do encontro do infinitivo de
qualquer verbo seguido, respectivamente, do indicativo presente de
habere
(amare + ha
beo
amarei
) ou de seu pretérito imperfeito: amare + habebam amaria.
Um processo de reanálise
sint
ática e a ação de “processos fonológicos regulares resultaram nas formas gramaticalizadas do
futuro do presente e do futuro do pretérito.” (op. cit., p. 38
)
A despeito de ser um dos requisitos
pioneiros da gramaticalização, haja vista que Meillet (1912) já lhe fizera menção, ao associá
-
la ao
desgaste natural do uso, a redução do material fônico será o último indício a ser aqui discutido
Sueli Maria Coelho
255
por ocorrer, geralmente, quando o processo se encontra em fase bastante avançada. Isso se
justifica em virtude de sua ocorrência envolver, além de propriedades fonéticas, um intervalo
maior de tempo, que o item, de acordo com Hopper e Traugott (1993), tem que se tornar
primeiramente um clítico para, posteriormente, converter-se em um morfema, que caracteriza o
pen
último estágio do processo de gramaticalização.
Há de se considerar também que seus efeitos
não são tão perceptíveis na modalidade escrita da língua, embora o sejam na modalidade oral,
tampouco podem ser mensurados de forma tão sensível quanto os demais indícios
mencionados. É sabido que a perda de material fônico se faz sentir, num primeiro momento, na
fala e que seu trâmite para a modalidade escrita envolve uma série de fatores que compreende
desde aspectos sócio-culturais até o grau maior ou menor de formalidade. A exemplo do que
geralmente
ocorre com a grande maioria dos fatos lingüísticos, a
s mudanças
se desencadeiam e se
expandem no âmbito da modalidade falada da língua, mas demoram um certo tempo para
conquistar a simpatia dos falantes e sagrar-se na escrita. Considerando-se o fato de os
corpora
analisados serem representativos da modalidade escrita do idioma, já era previsível que tal
indício não pudesse ser constatado empiricamente, a menos que o processo de gramaticalização
de determinada forma verbal se encontrasse em um estágio já bastante avançado, compreen
dendo
as fases
da
“desmorfemização” ou
mesmo do estágio zero, proposta
s
por
Lehmann (1982).
Os
dados cotejados nos
corpora
não acusaram, como esperado, a perda de material
fônico em nenhuma das cinco formas verbais em estudo. A intuição de falante, contudo, permite
a identificação de algumas reduções em certas formas, mas tais reduções ilustram antes traç
os
prototípicos da fonética do Português B
rasileiro que evidências de que um dos auxiliares esteja se
convertendo em morfema flexional, como registros diacrônicos da desinência modo-
temporal
do futuro do presente e do futuro do pretérito, pouco ilustradas. Relacionando-se a redução ao
Sueli Maria Coelho
256
desgaste natural do uso, como propusera Meillet (1912), se conjetura a possibilidade remota
de se encontrar redução fônica nas perífrases constituídas com o auxiliar
haver
, considerando-
se
a sua baixa freqüência no idioma e também o grau mais elevado de formalidade em que,
normalmente, tal forma verbal tende a ser empregada. Mesmo não se recorrendo apenas aos
corpora
, mas também se apoiando na intuição de falante, não foi possível detectar qualquer
redução fônica com essa forma auxiliar. Além da baixa freqüência e do maior ou menor grau de
formalidade do uso, acredita-se que as leis do sistema fonético também sejam inibidoras de
redução, pois o verbo haver é uma forma oxítona e sua sílaba átona não apresenta, em outros
contextos fonéticos, propensão ao desaparecimento, como se verifica com o verbo
estar,
que será
analisado à frente. Outro fato que cerceia a redução fônica do auxiliar
haver
é o fato de,
principalmente no presente do indicativo, as formas flexionadas serem monossilábicas. Isso
impede a redução de material fônico, considerando-se o fato de que a carga sonora já se encontra
bastante condensada.
Outra forma auxiliar que não exibiu quase nenhum traço de redução fônica foi o verbo
ter.
Ta
is traços pod
em ser identificados apenas na
diacronia, quando o verbo
tenere
do latim originou
o verbo
ter
. A explicação para a ausência sincrônica de perda de material fônico parece
assemelhar
-
se àquela apresentada para o verbo
haver
. Aqui, a forma primitiva já é mono
ssilábica,
o que gera um grande número de flexões também monossilábicas. As flexões que possuem um
número de sílabas superior a um ou são pouco empregadas (
tendes
, por exemplo) ou apresentam
possibilidades fonéticas de redução compatíveis com outras formas verbais plenas. Assim, ao
suprimir a desinência de futuro da forma verbal
tiver
, por exemplo, o falante estende
analogicamente uma tendência fonética do português, que é a supressão da desinência de
infinitivo, procedimento também adotado em
cantar,
em
fa
zer
e em
partir
, por exemplo. Logo,
Sueli Maria Coelho
257
não se trata de uma redução provocada pela gramaticalização da forma plena em auxiliar, mas de
uma possibilidade fonética
típica
do idioma. O mesmo se verifica com a supressão do fonema /s/
na desinência de número da primeira pessoa do plural em expressões como temo procurado, por
exemplo.
Também o auxiliar
ser
quase não sofre redução fônica ao combinar-se com as formas
nominais para compor perífrases verbais. Assim como o auxiliar
ter
, trata-se de uma forma
monossilábic
a, o que, de certa forma, limita as possibilidades de redução, considerando-se, como
pontuado, tratar-se de uma forma bastante condensada. Ainda assim, a intuição de falante
permite a identificação de reduções nas desinências número-pessoais nas perífrases constituídas
com o
ser.
As
reduções parecem restringir-se ao âmbito do fenômeno da monotongação, c
omo
ilustram
os enunciados (15
1)
e (15
2)
, a seguir:
(157
) Eu tenho a sensação de que
sô observado
durante 24h.
(158) As casas foro destruída
(s)
pelas chuvas em poucos minutos, tamanho era o volume
de águas.
De todas as cinco formas analisadas, o verbo
estar
é a que apresenta, na modalidade oral,
uma redução de material fônico. Nesse caso, não se trata apenas da redução de um fonema, como
até agora analisado, mas da supressão de uma sílaba. A intuição de falante demonstra que, no
estágio atual da língua, existe uma tendência a se suprimir a primeira sílaba desse verbo em
algumas de suas flexões. Assim, é comum ouvirem
-
se constr
u
ções como as transcritas em
(153) e
em (154
).
(15
3
)
Tô falano
com você.
(154
)
Tá quereno
chovê.
Sueli Maria Coelho
258
Acredita
-se que a supressão da primeira laba é possibilitada por questões de ordem
fonética e não gramaticais, conforme defende Mendes (1999). As possibilidades fonéticas são
favorecid
as, primeiramente, porque não se trata de uma sílaba tônica. Além de átona, a sílaba
suprimida sustenta-se no fonema vocálico /e/, comumente passível de sofrer o fenômeno da
neutralização em contextos semelhantes na língua, o que acaba por favorecer a sua
supressão.
Uma evidência empírica de que a redução fônica não é determinada por fatores gramaticais é o
fato de ela ocorrer também na forma plena, conforme atestam os enunciados transcritos em (155)
e em (156
) e de uso bastante recorrente na língua:
(155
)
num medo danado de isso não dar certo.
(156
) Num
tão
nem um pouco preocupados com a prova.
O auxiliar
ir
, que do ponto de vista da distribuição parece estar em um estágio mais
avançado de gramaticalização, também não exibe indícios fonológicos de que esteja se
convertendo em um morfema gramatical. A intuição de falante permite identificar, na modalidade
oral, o fenômeno da monotongação, como se verifica no enunciado (157), ou mesmo a supressão
do fonema /s/ constituinte da desinência de primeira pessoa do plural, conforme atesta o
enunciado (158
), ambos apresentados a seguir:
(157
) Eu
vô andano
na frente e nós nos encontramos por lá.
(158
) Nós num
vamo discuti
isso agora, não é mesmo?
Em ambos os casos, trata-se de reduções prototipicamente fonéticas e não de reduções
resultantes da gramaticalização do auxiliar. Tais reduções não comprovam, portanto, que os
auxiliares analisados estejam perdendo material sonoro e tornando-se clíticos para, num estágio
posterior, converterem
-
se em morfemas gramaticais.
Sueli Maria Coelho
259
Com
o mencionado, a redução fonética não se deixa perceber na modalidade escrita, a
menos que se encontre em um estágio bastante avançado. Assim, os comentários aqui tecidos
no que tange a esse aspecto restringem-se tão somente à intuição de falante e constituem um
manancial para futuras pesquisas fonéticas e fonológicas, o que foge ao escopo do presente
estudo. Tal questão foi mencionada apenas por constituir, segundo os estudiosos do fenômeno da
gramaticalização, um dos indícios de que a forma está se transformando em um morfema
flexional e um dos propósitos dessa pesquisa, como mencionado, é mensurar a adequação da
metodologia proposta para estudar itens em processo de gramaticalização.
Analisada a freqüência das cinco formas verbais eleitas para constituírem o objeto de
estudo da presente pesquisa, suas acepções semânticas, seus contextos distribucionais e também a
sua carga fônica, resta tecer algumas considerações acerca das implicações teóricas dos dados
aqui
coletados, tema que constitui o escopo do próximo capítulo.
Sueli Maria Coelho
260
C
C
A
A
P
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5
5
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Ó
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R
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A
A
S
S
Frente à análise empreendida, torna-se pertinente, neste espaço, refletir um pouco
acerca
das
conseqüências teóricas advindas dos resultados obtidos por este estudo. Será que os dados
aqui encontrados endossam as teorias vigentes ou as refutam? As análises aqui realizadas trazem
alguma contribuição
inédita
para os estudos acerca da gramaticalização e também da
auxiliarização
?
O primeiro aspecto
sobre
o qual se propõe uma reflexão
relaciona
-
se
ao ciclo de
gramaticalização tradicionalmente proposto por inúmeros teóricos (cf. Lehmann (1982), Heine
et
al
(
1991)
Hopper e Traugott (1993)).
Os dados aqui levantados corroboram as intuições de alguns
desses lingüistas os quais defendem que tais ciclos co
ntemplam
a potencialidade do processo,
mas não o definem. Isso significa que, caso o processo de gramaticalizaç
ão
dos verbos auxiliares
continue expandindo-se na língua, a tendência é que
ele
siga alguns estágios pré-
definidos:
da
sintaxe para a morfologia, desta para a morfofonêmica, até atingir o ápice do processo, que se
consolida no estágio zero. Contudo, o fato de determinado item não passar por todas essas fases
não significa que ele não se encontre gramaticalizado
na língua
ou mesmo que se encontre e
m um
est
ágio pouco gramatical. Os dados aqui coletados não permitem afirmar que um elemento que
esteja no âmbito da sintaxe encontre-
se
menos gramaticalizado que aquele que pertence ao
Sueli Maria Coelho
261
âmbito da morfologia, ou mais gramaticalizado que aquele que se encontra ainda nos domínios
do discurso, que é o primeiro nível de gramaticalização, conforme postulações de Lehmann
(1982).
Uma evidência disso é a expressão marcada da futuridade na língua. As formas
perifrásticas constituídas de
ir
+ infinitivo prestam-se a marcar o futuro por meio de um recurso
sintático cujo índice de gramaticalidade parece equiparar-se ao de sua forma concorrente, qual
seja, o morfema modo-temporal, que constitui uma forma presa e, como tal, integrante dos
domínios da morfologia. Como se vê, esses parecem níveis de mensuração muito difícil
.
Que
critério poderia precisar,
com
certa margem de
segurança
, o estágio de gramaticalidade de cada
um desses níveis lingüísticos, se, como se sabe, todos eles sofrem algum tipo de restrição do
sistema?
No
que se refere à gramaticalização dos verbos auxiliares, os dados aqui ob
tidos
demonstram que seu estágio de gramaticalização localiza-se precisamente no âmbito da sintaxe,
conforme escala proposta por Lehmann (1982). Caso haja uma tramitação de nível, isto é, caso
uma das formas da perífrase venha a se agregar à outra, passando para o
s níveis
subseqüentes
– o
da morfologia e o da morfofonêmica , não mais se estará diante de uma forma auxiliar, mas de
uma forma plena ou lexical do verbo. Portanto, em se tratando do fenômeno da
auxiliarização
, o
que os dados sinalizam é uma cristalização das formas
verbais
no segundo nível do processo, j
á
que sua expans
ão
na direção de seu percurso
potencial
desfaz a perífrase verbal, transformando-
a
em uma forma simples. Se nos estágios de gramaticalização propostos por Lehmann (1982) os
verbos auxiliares posicionam-se no segundo nível o da sintaxe –, também na escala proposta
por Hopper e Traugott (1993) esses itens mantêm-se no segundo estágio, constituindo, portanto,
pa
lavras gramaticais. Como supramencionado, caso haja uma expansão do processo na direção
do terceiro estágio, será desfeito o fenômeno da
auxiliarização
, cujos aspectos funcionais terão
Sueli Maria Coelho
262
que
ser desempenhados por morfemas ou mesmo por outros recursos de que a língua dispõe para
tal fim. A identificação do fenômeno da
auxiliarização
no segundo estágio da gramaticalização
corrobora
a tese defendida por Pontes (1973) e por Perini (1989) de
que
a
auxiliarização
n
ão d
eve
ser concebida em termos semânticos, como faz a maioria dos gramáticos tradicionais, mas em
termos formais, que seu processo de gramaticalização e, portanto, de gênese é fruto de um
mecanismo
de natureza sintática
.
Outra questão relevante
que
também
merece uma reflexão no âmbito deste estudo é a
inda
concernente
ao caráter cíclico do fenômeno da gramaticalização
e
diz respeito à
unidirecionalidade do processo. É consenso
entre
a maioria dos autores o fato de
a
gramaticalização constituir um processo irreversível, não podendo haver, pois, a
desgram
aticalização
de uma forma. Kurylowicz (1965), entretanto, não partilha dessa máxima
consensual e sustenta a existência de um processo inverso à gramaticalização, ao qual ele
denomina de lexicalização. Segundo o autor, a estrutura desse fenômeno pode ser assim descrita:
categorias derivacionais gramaticalizam-se em categorias flexionais e novamente se lexicalizam
em categorias derivacionais. Pela caracterização do fenômeno proposta pelo autor, percebe-
se
que seu conceito de lexicalização é diverso
daquele
adotado por esse estudo, que entende por
lexicalização o processo por meio do qual um item tramita de classe, permanecendo ainda nos
domínios do léxico, ou mesmo es
tende
seus semas, ampliando, conseqüentemente, sua
abrangência no léxico. Kurylowicz (op. ci
t.
) argumenta que os verbos modais do inglês, por
exemplo, são genuinamente formas perfectivas e que, enquanto o perfeito mudou seu sentido na
língua, essas formas não o fizeram, já que ainda expressam a presentificação de um estado.
Os
dados levantados por este estudo, porém, não identificaram nenhum exemplo de
desgramaticalização
no que tange aos auxiliares
e
conduzem
à conclusão de que a lexicalização,
Sueli Maria Coelho
263
da forma como foi aqui concebida, é um fenômeno paralelo ao da gramaticalização e não reverso
a ela. Como sustentado (cf. capítulo 4),
trata
-se de dois processos independentes que podem se
expandir simultaneamente na língua. Como um item apresenta vários semas, um desses semas
aqui
tratado metalingüisticamente como um
“gatilho” de gramaticalização
– p
ode
vir a
atingir um
nível
muito
alto de abstração, chegando mesmo a perder seu conteúdo nocional em benefício da
incorporação de funções gramaticais que passa a assumir. Nesse sentido, pode-se entender a
gramaticalização como um subconjunto da polissemia, que ela atinge os valores mais abstratos
do item. Já os demais semas que não entraram em processo de gramaticalização podem se
expandir
na língua, incorporando usos mais abstratos e alargando seu leque semântico, o que
acarreta a expansão lexical do item. Pode ocorrer também de, por fatores vários, alguns semas
irem se perdendo no percurso histórico da língua, o que provocará a restrição do item nos
domínios do léxico ou a sua des
lexicalização, para empregar o
termo técnico
aqui adotado
.
O fato
de determinado item entrar em processo de gramaticalização na língua não implica que ele
passar
também por um processo de lexicalização ou de deslexicalização, que um processo não
interfere no outro, pois acontecem em categorias lingüísticas distintas: um, na categoria lexical e
o
outro
, na categoria gramatical. A relação que se estabelece, neste estudo, entre lexicalização e
gramaticalização é apenas de cunho metodológico, uma vez que, quanto maior o número de
semas de um item, maior é sua possibilidade de
uso e, portanto, maior a sua freqüência. F
oi nesse
sentido que se advogou em prol de uma análise conjunta dos processos de gramaticalização e de
lexicalização. O fato de um item estar em expansão no léxico favorece o aumento de sua
freqü
ência
da mesma form
a que seu processo de expansão gramatical
, o que deve ser c
onsiderado
durante a análise de seu processo de gramaticalização para não se obter uma conclu
são
equivocada
frente aos dados de que se dispõe.
Sueli Maria Coelho
264
No que tange aos processos cognitivos envolvidos na gramaticalização dos auxiliares, os
dados
coletados e analisados acenam, como defendido por Hopper e Traugott (1993), para a
relevância
tanto da metáfora, quanto da metonímia na expansão do processo.
Assim
, enquanto a
metáfora
se dissemina por meio da analogia, estendendo as formas de domínios semânticos mais
concretos para usos mais abstratos o que pode favorecer tanto o fenômeno da gramaticalização
quanto
o da lexicalização –, a metonímia opera por contigüidade, ou seja, por meio de
um
princípio de reaná
lise
, criam-se novas formas a partir de uma reinterpretação induzida pelo
contexto
o que favorece apenas a gramaticalização. São os processos metonímicos que
entram
em cena na determinação dos critérios de seleção da forma nominal pelo verbo auxiliar. Como
demonstrado na análise dos dados,
estabelece
-
se
, entre os elementos de uma perífrase, uma
relação de regência, na qual o auxiliar é o termo regente e a forma nominal é o termo regido
.
Dessa forma, é o auxiliar que seleciona a forma nominal que com ele co-ocorre. Esse processo
seletivo
não se aleatoriamente, mas com base em critérios
pré
-definidos: (a) transitividade do
próprio
auxiliar, que subcategoriza o tipo de forma nominal que atende às suas exigências
formais e (b) compatibilidade de expressão aspectual entre os constituintes da perífrase, que
compete
a amb
os
a marcação do aspecto verbal. A delimitação dos crit
érios
de seleção da forma
principal pelo auxiliar, bem como a viabilidade metodológica de se analisar a lexicalização do
item em concomitância com seu processo de gramaticalização apresentam-se como contribuições
desta pesquisa para os estudos até então empreendidos. Agregue-se a essas questões o
entendimento de que a gramaticalização constitui um subconjunto da polissemia pelo fato de os
itens cooptados pelo processo serem apenas aqueles cujo percurso semântico tenha alcançado
um grau extremo de abstração.
Sueli Maria Coelho
265
Um terceiro aspecto
também
digno de reflexão refere-se ao tipo de
auxiliarização
expresso pelos verbos em estudo. Segundo
Ben
veniste (1995 [1966]), a
auxiliarização
de
temporalidade é formalmente constituída de
auxiliar + particípio passado e destina
-
se à expressão
de um tempo diverso daquele expresso pela forma simples. Assim, as perífrases constituídas de
ter
+ particípio e
de
haver
+ particípio, assim como o p
roposto
por Benveniste para o Francês,
também constituem, no Português, perífrases temporais. Entretanto, os dados obtidos por este
estudo demonstram que, em se tratando do auxiliar
ir
, a perífrase constituída com o infin
itivo
também se presta a marcar o tempo futuro, sendo bastante produtiva no estágio atual da língua.
Assim, caso a intenção seja a de
se
esboçar um quadro da
auxiliarização
na Língua P
ortuguesa,
torna
-se necessário acrescentar ao grupo dos auxiliares tempo
rais
elencados
também
a
perífrase constituída de
ir
+ infinitivo, embora Benveniste (1995 [1966]) restrinja essa forma
nominal à marcação da modalidade. No Português atual, o uso dessa perífrase parece
congregar
uma ambigüidade, conseqüência natural da expansão de seu processo de gramaticalização. Os
enunciados (159) e (160
)
ilustram os dois contextos por ela expressos
na contemporaneidade
:
(159
) O Presidente
vai viajar
amanhã pela segunda vez apenas nesta semana.
(160
) Ah, mas ele
vai estudar
!
Ele n
ão p
ode perder est
e ano!
Em (159), a perífrase marca futuridade, podendo ser substituída pela forma
correspondente
do futuro do presente simples. O emprego do auxiliar
ir
para expressar futuridade
na Língua Portuguesa parece estar-se assemelhando ao da expressão “going to” para o Inglês.
Emprega-se o auxiliar
ir
quando se quer projetar uma ação para um futuro próximo. Isso explica
a ocorrência de expressões adverbiais normalmente adjuntas à perífrase. Assim, pode-se dizer
que alguém vai viajar hoje à tarde, amanhã de manhã, amanhã à noite, na próxima semana.
Contudo
,
n
ão se costuma recorrer ao
mesmo expediente
quando se deseja
projetar para um futuro
Sueli Maria Coelho
266
mais
distante. Nesse caso, opta-
se
, geralmente, pela forma simples do futuro do presente.
O
enunciado (161), embo
ra
de ocorrência possível
,
principalmente em virtude da alta produtividade
de
e
ssa forma auxiliar para expressar ações futuras,
parece não ser tão produtivo na língua q
uanto
o (159
):
(16
1
)
Maurício
vai viajar para a Europa daqui a vinte anos, quando est
iver
independente financeiramente.
Nesse caso, a opção pela forma sintética do futuro parece ser mais adequada, tendo em
vista a possibilidade de que o fato nem venha a se efetivar, dada a distância da ação projetada em
relação a
o
momento em que foi planej
ada
.
Uma segunda função assumida pelo auxiliar
ir
na língua é aquela ilustrada em (160) e
assinalada
por
Benveniste (1995 [1966])
para o Francês
. Nesse caso, embora a realização da ação
enunciada também seja posterior ao momento da enunciação, a função mais incisiva da perífrase
não é
a de
marcar
a futuridade, mas
a de
modalizar a ação sobre a qual se enuncia.
Percebe
-
se, no
enunciado, um tom de obrigatoriedade impingido pelo enunciador: ele vai estudar, no contexto
em questão, significa que o sujeito do enunciado não tem outra escolha senão estudar.
Cumpre
observar que, neste caso, como pontuara Travaglia (1985[1981]), a identificação do aspecto
modal da
auxiliarização
se por meio de um recurso supra-segmental, ou seja,
-
se
no âmbito
da entonação. É a forma como o enunciador profere o enunciado, o tom que emprega que vai
determinar, no contexto, se a perífrase marca
apenas
tempo futuro ou se marca também (e
principalmente)
uma obrigatoriedade.
As perífrases constituídas de
ser
+ particípio passado e de
estar
+ particípio passado,
assim como
já discutido
(cf. capítulo 2)
, constroem
a
auxiliarização
de diátese, ou seja,
assinalam
a passividade do sujeito em relação à ação expressa pelo verbo. Também as perífrases
Sueli Maria Coelho
267
constituídas de
ter
+ preposição + infinitivo e
de
haver
+ preposição + infinitivo não se
comport
aram diferentemente do que previu Benveniste (1995 [1966]), prestando-
se
, também no
Português,
à expressão da modalidade. Já a perífrase constituída de estar + gerúndio, bastante
produtiva
nos
co
rpora
, não aparece na literatura integrando nenhum dos três tipos de
auxiliarização
propostos por Benveniste (1995 [1966]). Os dados aqui encontrados parecem
indicar a melhor propriedade de se concebê-la como temporal, uma vez que, ao se agregar à
forma nominal de gerúndio, o auxiliar
estar
passa a expressar uma ação em curso, fato não
expresso enquanto forma simples apenas. de se assinalar, contudo, que não se trata de uma
temporalidade delimitada
somente
pelo auxiliar, como as demais já discutidas, mas
de uma
noção
de tempo que
se
faz
percebe
r no conjunto, o que, de certa forma, torna-a um subtipo da
auxiliarização
de tempo.
Uma outra possibilidade
que visa a evitar a abertura de precedentes para
determinado grupo seria propor um quarto tipo de
auxiliar
ização
a
auxiliarização
de aspecto,
que seria formalmente constituída de auxiliar + gerúndio e elencar a perífrase de estar +
gerúndio nesse grupo, já que, como propõe
Benveniste (1995 [1966])
, a marcação aspectual não é
determinada apenas por um dos
integrantes da perífrase, mas manifesta no conjunto.
Um quarto aspecto a ser aqui discutido refere-se à concorrência de formas. Faz parte do
senso comum a afirmação de que o verbo
haver
está desaparecendo da língua, sendo substituído
por seu concorrente
te
r
.
Alguns
entusiastas mais precipitados chegam mesmo a afirmar que o
verbo
haver
é um arcaísmo lingüístico. Ribeiro (1993), citando Said Ali (1967), endossa a tese
defendida
por esse lingüista de que “são as formas compostas com o verbo
ter
as mais usadas; a
combinação do auxiliar
haver
com o PtP [particípio passado], empregada com moderação, à
linguagem feição mais solene; empregada sistematicamente, torna-a rebuscada e pedante.”
(RIBEIRO, 1993, p. 344-
345).
Os dados
cotejados
e as discussões aqui levantadas demonstram,
Sueli Maria Coelho
268
porém, que a seleção dos auxiliares
ter
e
haver
não é determinada meramente por fatores de
natureza
situacional. Não se está aqui
contesta
ndo
que o
haver
, quando combinado com a forma
nominal de particípio, impinge um tom mais formal ao enunciado que o auxiliar
ter
. Entretanto,
de se considerar que a substituição de uma forma pela outra não é lícita em todos os tempos e
modos
do perfeito, tampouco obedece ao mesmo critério, caso a perífrase seja constituída pe
la
forma nominal de infinitivo, donde se pode concluir que, em se tratando da
auxiliarização
de
temporalidade, existe a restrição situacional, mas esta não se estende analogicamente à
auxiliarização
de modalidade, conf
orme ilustram os enunciados (162
) e (16
3
), a seguir:
(162
)
Mar
ia
tem de conseguir
este prêmio.
(16
3
) Maria
há de conseguir
este prêmio.
As perífrases de (162) e de (163) não possuem o mesmo valor de verdade. Isso evidencia
que,
quando empregados para expressar a modalidade, os auxiliares
ter
e
haver
, longe de ser
fo
rmas variantes, estão em distribuição complementar na língua. Logo, não se pode, baseando-
se
apenas
em um
crit
ério
, afirmar que os auxiliares
ter
e
haver
são formas concorrentes em todos os
contextos
lingüísticos
e que a seleção de uma
forma
em detrimento da outra obedece
apenas
a
crit
érios
discursivos situacionais. Os dados cotejados nos
corpora
desta pesquisa demonstram
que, em se tratando da
auxiliarização
de modalidade (cf. (162) e (163
)),
ter
e
haver
não são
formas variantes, que não são intercambiáveis em todos os contextos. Contudo, dado que a
língua é dinâmica e essempre sujeita à interferência do falante, na contemporaneidade, mesmo
nos contextos em que tais auxiliares marcam a modalidade, está emergindo uma concorrência
entre as formas. A referida concorrência ainda se mostra discreta e limitada a alguns contextos
bastante
seletos, entretanto, se o objetivo é traçar um quadro de operacionalização da
auxiliarização
na Língua Portuguesa, não se pode deixar de considerá-
la.
Se, em alguns
Sueli Maria Coelho
269
momen
tos, os auxiliares
ter
e
haver
se mostram em distribuição complementar, em outros,
porém, comportam-se como variantes, já que expressam o mesmo valor de verdade, como
demonstram os enunciados de (164) a (167
), apresentados a seguir:
(164
)
Há de se admitir
que em nem todos os contextos esses auxiliares são excludentes.
(165
)
Tem de se admitir
que em nem todos os contextos esses auxiliares são excludentes.
(166
) Aquela criança abandona
da
na Lagoa da Pampulha de encontrar quem a queira
adotar.
(167
) Aquela criança abandonada na Lagoa da Pampulha tem de encontrar quem a queira
adotar.
A análise pragmática dos enunciados (164) e (165) demonstra que, independentemente da
fo
rma auxiliar empregada,
nos dois contextos, o enunciado
r
impinge ao seu enunciado um tom
de
obrigatoriedade em relação à ação expressa. Da mesma forma, em se tratando dos enunciados
(166) e (167), verifica-se a volição do enunciador de que a ação expressa pelo verbo na forma
infinitiva venha a se concretizar. o se trata, portanto, de uma o
brigação
como se verifica nos
dois enunciados anteriormente analisados –, mas do desejo de que algo se efetive.
Esses
enunciados constituem evidências em favor da tese aqui proposta de que o falante está
reanalisando semanticamente as perífrases constituídas de
ter/haver
+ infinitivo. Assim,
em
contextos nos quais o verbo
haver
deveria ser interpretado como um instaurador de desejo em
relação à ação expressa pela forma infinitiva, ele passa a ser interpretado como uma marca de
forte necessidade, como a expressão de uma ação da qual não se pode abdicar. Em contrapartida,
o verbo
ter
, que usualmente se presta à função de instaurar a obrigatoriedade de que a ação verbal
venha a se efetivar, em alguns contextos, está sendo interpretado como um marcador de voli
ção.
Sueli Maria Coelho
270
Identificado o fato lingüístico, resta tentar descrever em que contextos essa reanálise semântica
está se processando. Os exemplos arrolados também se mostram úteis nessa tarefa: a reanálise do
haver
como um marcador de obrigatoriedade, de forte necessidade, acontece em contextos
argumentativos, geralmente com o sujeito apassivado; a reanálise do
ter
como um marcador de
desejo ou volição acontece quando a ação expressa pelo verbo independe da vontade ou mesmo
da iniciativa do sujeito do enunciado. Al
ém
dessa distinção de ordem estrutural, os traços supra-
segmentais
também
exercem importante papel no processo de reanálise semântica. A forma como
o enunciador profere o enunciado auxilia na identificação da forma como ele deve ser
interpretado.
Desvinculad
o de seu contexto de produção, o enunciado (162), aqui repetido apenas
por co
modidade para o leitor, pode soar
ambíguo:
(16
2
) Maria
tem de conseguir
este prêmio.
Se o enunciador profere
esse
enunciado com um tom de voz mais áspero, mais impositivo,
o enunciatário vai interpretá-lo como a expressão de uma obrigatoriedade, mas se,
contrariamente, o tom de voz empregado pelo enunciador for mais meigo, próprio de contextos
optativos, o enunciatário irá processá-lo como sendo a manifestação do desejo de que Mari
a
consiga o prêmio. A ambigüidade de interpretação desse enunciado é mais um indício em favor
do argumento de que está havendo na língua um processo de reanálise semântica, o que poderá
ou não neutralizar essa diferença de modalidade que ainda existe entre as duas formas
auxiliares. Caso isso venha a acontecer, elas deixarão, também nesse contexto, de ser formas
excludentes para se tornarem variantes. Caso contrário, esse será um contexto em que as duas
formas assumem valores funcionais distintos. A despeito da existência de uma reanálise
semântica em curso, esses fatos comprovam que, mesmo tendo enfrentado a concorrência com o
auxiliar
ter
em alguns contextos, o auxiliar
haver
apresenta ainda contextos de exclusividade e,
Sueli Maria Coelho
271
portanto, não está condenado a desaparecer do idioma tão rapidamente, como professa a voz do
senso comum. A definição do verdadeiro estatuto do auxiliar
haver
desponta como mais uma
contribuição da pesquisa
ora
empreendida para
elucidar
os estudos lingüísticos
contemporâneos
do
Portuguê
s do Brasil.
Ainda no que se refere à concorrência de formas, a análise semântica e a análise dos
contextos de ocorrência das formas auxiliares aqui efetivadas
perm
item
estabelecer
uma analogia
entre
o processo de expansão da gramaticalização das formas auxiliares e o processo de variação
lingüística proposto por Labov (1972). Os dados lingüísticos identificados por este
estudo
acenam para a possibilidade de, conforme proposto pelo pai da sociolingüística variacionista,
haver,
em determinados contextos ling
üísticos
, uma identidade referencial entre algumas formas
auxiliares.
Por certo, essa
equiva
lência referencial em
contextos
pré
-
determinados
não
é
arbitrária, tampouco
se deve a um acidente diacrônico, mas, como men
cionado por Labov (1972),
é facultada por uma identidade de significação, conferida pela existência de algum(ns) sema(s)
comum(ns).
Assim, o fato de, num dado momento histór
ico,
tanto o verbo
haver
quanto o verbo
ter
exibirem semas destinados à expressão da posse fez com que, em determinados contextos, até
hoje, um pudesse substituir o outro sem prejuízo de sentido. É o que se verifica com o pretérito
mais
-
que
-perfeito composto, por exemplo, em que tais auxiliares se mostram intercambiáveis
do
ponto de vista de seu valor de verdade, mas
se
opõem em termos estilísticos. Outras duas
vari
antes que mantiveram uma concorrência por um intervalo de tempo na história do Português
são os auxiliares
ser
e estar. Se, na Língua Portuguesa contemporânea, tal concorrência é fato
superad
o, o mesmo não se pode afirmar em relação aos períodos arcaico e moderno. A análise
semântica realizada demonstra que, na etimologia, essas formas verbais exibiam semas
comuns,
fato que permitiu o intercâmbio de uma forma pela outra tanto no período arcaico,
Sueli Maria Coelho
272
quanto no moderno. Em outras línguas, como no Inglês, por exemplo, o verbo to be congrega a
carga semântica dos dois verbos portugueses, atualizando-se ora como
ser
, ora como
estar
, em
função
do contexto. Na Língua Portuguesa, a despeito de as duas formas verbais apresentare
m
comportamentos funcionais semelhantes, que ambas expressam a
auxiliarização
de diátese,
estabelece
-se entre elas uma oposição semântica aspectual: enquanto o verbo
ser
é não marcado
do ponto de vista da transitoriedade, o verbo estar o é.
Essa
oposição de aspecto permanente
versus
aspecto transitório tem, segundo Mattos e Silva (
2001
[1994]
),
explicações históricas, as
quais foram discutidas no capítulo quarto deste estudo. Se, em se tratando da concorrência de
algumas
formas auxiliares,
nota
-se uma semelhança com a proposta laboviana, o mesmo não se
identifica durante o processo de tramitação do item do léxico para a gramática. A variação
lingüística envolvida no processo de gramaticalização difere dos demais tipos de variação e
mudança lingüística porque não supõe substituição de formas. Se, nos demais casos, identifica-
se
a existência de formas concorrentes até que uma venha a suplantar a outra, em se tratando da
gramaticalização, a forma lexical não é substituída pela forma gramatical. As duas continuam a
existir na língua e em momento algum do processo elas enfrentam um processo de concorrência
,
já que pe
rtencem a categorias distintas.
Outro
aspecto
aqui desenvolvido e cujas implicações apresentam uma maior abrangência
,
podendo
at
é mesmo evocar algumas controvérsias, que rompem com um arsenal sagrado
pela tradição gramatical, diz respeito ao fato de se considerar
em
os verbos relacionais não como
formas plenas, mas como usos gramaticalizados. Nesse sentido, as perífrases envolvendo tais
aux
iliares envolvem a tramitação não de itens da categoria lexical para a gramatical, como as
perífrases constituídas de verbos nocionais, mas de itens menos gramaticais para estágios mais
gramaticais. A primeira intuição de que os verbos relacionais não eram verbos plenos ou pelo
Sueli Maria Coelho
273
menos não se comportavam como tais surgiu durante a análise semântica empreendida para o
verbo
ser.
O fato de a expressão da cópula não integrar o rol dos étimos do verbo obrigou a uma
reflexão no sentido de se buscar explicar por que um dos usos mais recorrentes do verbo não era
sequer mencionado pelos lexicógrafos que se dedicaram aos estudos etimológicos. Uma consulta
a filósofos e a lingüistas elucidou o fato de o verbo
ser
, na função copulativa, ter se esvaziado
de seu sentido pleno, assumindo a função gramatical de mediar atributos. Cumpre esclarecer aqui
que, a despeito da dificuldade de se precisar o valor semântico de
ser
enquanto verbo de ligação,
de se admitir que tal verbo ainda preserva traços de seus semas etimológicos, fato responsável
por lhe permitir estabelecer diferenças de estados, quando em oposição com o verbo
estar
, por
exemplo, conforme i
lustram os enunciados (168) e (169
), seguintes:
(168
) Aquela criança
é
doente.
(169
) Aquela criança
está
doente.
Nenhum falante da língua titubearia em admitir que, em se tratando do enunciado (168), a
doença é inerente à criança, enquanto, em se tratando de (169), ela não o é. Estabelece-
se,
portanto, entre as duas formas verbais uma oposição que se fundamenta no traço [+ t
ransitório]
do verbo estar e [- transitório] do verbo
ser.
Não se pode contestar que, ao
se
expandir
em
semanticamente
, os verbos
ser
e
estar
foram
-se impregnando de abstraticidade a ponto de
perderem conteúdo nocional, passando a incorporar funções gramaticais, mas também o se
pode afirmar que tais verbos
esvaziaram
-se plenamente de sua carga semântica, como acontece
com os verbos que formam perífrases verbais. Na verdade, a função copulativa é apenas um
estágio mais inicial da gramaticalização
desses ver
bos
e, como tal, admite ainda
algumas nuanças
do seu valor nocional. Expandindo-se analogicamente a interpretação dada ao verbo
ser
para o
verbo estar
, chegou-se à conclusão de que o raciocínio de considerar os verbos relacionais como
Sueli Maria Coelho
274
usos gramaticalizados pode ser aplicado não apenas aos dois verbos analisados por esse estudo,
mas também aos demais verbos relacionais da língua, como ficar, permanecer, continuar e
andar,
por exemplo,
conforme ilustram os enunciados arrolados a seguir:
(170
) Aquele menino m
anhoso
ficou em
b
urrado
a festa toda.
(171
) Aquele menino manhoso
permaneceu
em
b
urrado
a festa toda.
(172
) Os brasileiros
continuam desiludidos
em relação à ética na política.
(17
3
)
Os brasileiros
andam
desiludidos
em relação à ética na política
.
Os verbos relacionais que integram as perífrases de particípio ilustradas acima
representam expansões mais abstratas de suas formas plenas, já que o mais preservam o seu
valor nocional. Porém, uma análise mais aprofundada do processo de gramaticalização desses
ve
rbos plenos
foge ao escopo desse estudo e abre precedente para pesquisas futuras.
Frente às generalizações aqui alcançadas, torna-se possível propor uma
nova
classificação
para os verbos da Língua Portuguesa com base em seus traços de auxiliarização:
F
IGU
RA 8
: Proposta de classificação dos verbos da Língua Portuguesa
D
ESCRIÇÃO
ESTRUTURAL
CLASSIFICAÇÃO
EXEMPLIFICAÇÃO
[+ lexicais
auxiliares]
Verbos plenos
Pedro
tem
um carro bom.
[- lexicais + auxiliares]
Verbos auxiliares
Pedro
tem trabalhado
muito.
[+ lexicais + auxiliares]
55
Verbos modais
Pedro não
quer vender
o carro.
[-
lexicais
-
auxiliares]
Verbos relacionais
Pedro
é
trabalhador.
55
A classificação desses verbos foi apenas identificada no âmbito desse estudo, mas a sua descrição não foi feita por
fugir ao objeto de análise aqui delimitado, estando, portanto, o espaço aberto para pesquisas futuras.
Sueli Maria Coelho
275
O quadro apresentado propõe uma classificação verbal que contempla os quatro tipos de
verbos existentes na Língua Portuguesa com base em um feixe de traços que se pauta pelo
critério
da auxiliarização. Assim, há a possibilidade de se encontrarem formas verbais que
integram a categoria do léxico, prestando-se à função de referenciação: são os verbos plenos ou
nocionais,
numa metalinguagem tradicional. Por outro lado, formas verbais que se
destituíram de sua capacidade de referenciação e assumiram funções gramaticais: são os verbos
auxiliares, que passam a demarcar modo, tempo, número, pessoa, voz e aspecto. Há, ain
da,
formas verbais que, a despeito de terem assumido funções gramaticais, preservam ainda traços
nocionais que lhes permitem exercer a referenciação: são os verbos modais. Por fim, existem
aquelas formas verbais que se destituíram de suas funções referenciais e assumiram parte de
sua
função gram
atical
, mas ainda
não se
congregaram sintaticamente a outras formas verbais para
constituir as perífrases: trata-se dos verbos relacionais ou de ligação, conforme os classificam os
gramáticos tradicionais.
A
class
ificação
ora
proposta
desponta como
mais uma contribuição deste
estudo para uma descrição operacional do sistema verbal da Língua Portuguesa.
Um último aspecto que evoca reflex
ões
em face das análises efetuadas diz respeito
ao
marco histórico em que ocorre
u
a gramaticalização dos auxiliares na Língua Portuguesa.
Para
empregar as palavras de Mattos e Silva (2001[1994]), “a questão do AUX [auxiliar] recobre
diversificadas e atuais discussões teóricas que, transpostas para uma sincronia pretérita, novos e
diferentes problemas levantam.” (p. 37).
Segundo
afirma
essa estudiosa de questões diacrônicas
da Língua Portuguesa, “os tempos compostos (...) ainda estavam em processo de
gramaticalização do século XIV para o XV” (op. cit., p. 40) e a difusão da estrutura própria do
tempo composto só se efetivou na primeira metade do século XV. Contudo, c
onsiderando
-se a
análise diacrônica empreendida por este estudo e a metodologia adotada para conduzi-la, pode-
se
Sueli Maria Coelho
276
afirmar que, em virtude da existência de registros de freqüência gramatical de todas as cinco
formas analisadas no período arcaico, desde esse período os verbos auxiliares em estudo
haviam se gramaticalizado na Língua Portuguesa.
Logo, a gramaticalização dos
verbos
ter, haver,
ser, estar e
ir
como auxiliares no Português do Brasil não se consolidou somente na era
moderna, como defende Mattos e Silva. Os índices de freqüência gramatical identificados para
essas formas verbais nos
corpora
desse estudo constituem
uma
evidência empírica para a
afirmativa de que tais verbos estavam gramaticalizados como
auxiliares
na língua desde o
período arcaico. Na verdade, com a normalização da Língua Portuguesa, no século XV, o que
ocorreu foi a estabilização das formas para obedecer aos paradigmas do sistema lingüístico e n
ão
a efetivação do processo de gramaticalização dos verbos auxiliares. Este ocorreu num estágio
anterior da história da língua e se encontrava, nos séculos XIV e XV, em processo de franca
expansão.
Elucidadas as implicações teóricas advindas da pesquisa aqui realizada, é chegado o
momento de se tecerem algumas considerações finais, o que constitui a essência da próxima
seção.
Sueli Maria Coelho
277
C
C
O
O
N
N
S
S
I
I
D
D
E
E
R
R
A
A
Ç
Ç
Õ
Õ
E
E
S
S
F
F
I
I
N
N
A
A
I
I
S
S
O fito para o qual se direcionou este estudo foi a análise do fenômeno da
auxiliarização
na
Líng
ua
Portuguesa. Endossou-se a hipótese aventada por alguns estudiosos de que os
verbos
auxiliares resultam de um processo de gramaticalização de verbos plenos que, ao longo da
história da língua,
exoneram
-se de algumas de
sua
s funções lexicais em favor de
funç
ões
gramaticais que passa
ra
m
a desempenhar.
Para verificar a autenticidade da hipótese aventada, selecion
aram
-se cinco formas
verbais
prototípicas da Língua Portuguesa sobre as quais quase não pairam dissidências quanto
à
admissão de que constituem verbos auxiliares: TER, HAVER, SER, ESTAR
e
IR
.
Selecionado
s os
objeto
s do estudo, optou-se por desenvolver uma pesquisa diacr
ônica
de caráter quantitativo que
buscasse
determinar não apenas a freqüência total das formas, mas também seus índices
percentuais
enquanto formas lexicais e enquanto formas gramaticais. O objetivo dessa
quantificação foi
o de
avaliar
a autenticidade
da
cl
ássica
afirmativa
de que
as formas em processo
de gramaticalização tendem a se tornar mais freqüentes no idioma. Além da quantificação da
freqü
ência, empreendeu
-
se
ainda
a árdua tarefa de
mensurar estatisticamente a ocorrência de usos
concretos e de usos abstratos dos itens em processo de gramaticalização, para verificar a
existência de um processo metafórico de expansão do mais concreto para o mais abstrato,
conforme
ostentado
pela literatura acerca do fenômeno da gramaticalização. Para a consecução
dessa proposta, frente à imprecisão das controversas definições dos termos
concreto
e
abstrato,
foi imprescindível o estabelecimento de um critério de delimitação de concretude e de abstração
Sueli Maria Coelho
278
de valores semânticos pautado por bases etimológicas. Outro aspecto comumente reconhecido
como um indício de um processo de gramaticalização é a fixidez das formas, que também foi
analisada com base no estudo da distribuição sintática das perífrases verbais.
Teceu
-se ainda um
sucinto comentário acerca da possibilidade de se registrar
a
perda de material fônico no processo
de gramaticalização de verbos plenos em verbos auxiliares.
Os
dados analisados e
os
resultados obtidos comprovaram parcialmente a hipótese
aventada inicialmente: o recurso da
auxiliarização
tem sua gênese associada ao processo de
gramaticalização de verbos plenos. Assim, na maioria das perífrases, no estágio inicial do
processo, tem-
se
um verbo pleno de natureza
polissêmic
a
que
, no percurso histórico da língua,
esvazia
-se de um de seus semas e seleciona uma forma nominal de outro verbo com a qual
estabelece
uma relação sintática de subordinação, formando uma forma perifrástica.
Nessa no
va
relação de regência que se instaura entre os constituintes da perífrase, o verbo outrora de
significação plena abdica-se de algumas de suas funções lexicais enfraquecidas e assume
funç
ões gramaticais, passando a
de
marcar, em sua nova função, tempo, modo, número,
pessoa,
voz e aspecto. A despeito de esse ser o percurso mais comum da auxiliarização, há de se
considerar, contudo, que algumas perífrases são formadas a partir de uma gradação de
gramaticalidade, ou seja, o verbo auxiliar, um item já gramat
ical,
acentua o seu índice de
gramaticalidade ao se juntar à forma nominal e com ela constituir uma forma perifr
ástica,
passando de um estágio menos gramatical para outro mais gramatical. É o que se verifica com as
perífrases em que os verbos auxiliares são de natureza relacional. Assim, enquanto os ver
bos
nocionais se gramaticalizam para constituir formas perifrásticas, tramitando de uma categoria
lexical para uma categoria gramatical, os verbos relacionais acentuam o seu grau de
gramaticalidade, tramitand
o de um estágio menos gramatical para um estágio mais gramatical.
Sueli Maria Coelho
279
Constatada
a autenticidade
parcial
da hip
ótese
endossada e comprovado o caráter
diacrônico da
auxiliarização
, confirmou-
se
também, como já conjeturado, a tese de que o
fenômeno da gramatical
izaç
ão dos auxiliares compreende estágios. A primeira questão para a
qual se buscou uma resposta se propunha a investigar o estágio de gramaticalização dos
auxiliares na Língua Portuguesa. Os dados cotejados
demonstra
ra
m que a
auxiliarização
localiza-
se no segundo nível proposto por Lehmann (1982), ou seja, constitui-se no âmbito da sintaxe. A
despeito de a literatura prever um ciclo hierárquico para a expansão do fenômeno da
gramaticalização, a análise empreendida evidencia que o fenômeno da
auxiliarização
, em si, não
comporta o desenrolar do processo. Caso isso venha a ocorrer, as formas integrantes da perífrase
terão que se aglutinar, passando para o nível da morfologia. Nesse caso, será desfeita a
auxiliarização
e uma das formas integrantes da perífrase se tornará presa à outra. A conseqüência
teórica dessa constatação é o esclarecimento de que a
auxiliarização
é apenas um dos primeiros
estágio
s de gramaticalização de um verbo pleno, o qual poderá
seguir
seu curso até tornar-se um
cl
ítico, ou
mesmo
um
a forma presa, como ocorreu com o verbo
haver
, que, por questões
diacrônicas,
transformou-se no morfema de futuro do presente do indicativo. Diante das
generalizações aqui postuladas, p
ode
-se, então, assim caracterizar o processo de gramaticalizaç
ão
dos ve
rbos plenos na L
íngua
P
ortuguesa:
verbo pleno >
(
verbo
relacional
)
> verbo
auxiliar >
clítico >
morfema flexional > zero
É lícito afirmar que a escala apresentada acima endossa a cadeia de gramaticalização
proposta por Hopper e Traugott (1
993): o verbo
pleno, que ocupa o
ponto de partida do processo,
constitui
o item lexical proposto por Hopper e Traugott; o verbo relacional e o verbo auxiliar
Sueli Maria Coelho
280
constituem
palavras gramaticais que podem vir a se tornar um clítico ou um afixo flexional
,
chegando mesmo, num estágio já bastante avançado de gramaticalização, a desaparecer do
idioma, conforme previsão de Lehmann (1982).
A
resposta à segunda e à terceira questão
suscitadas
pelo estudo
radica
-se no processo de
subordinação e
de
regência que congrega as formas integrantes da perífrase.
Como
supramencionado, ao perder traços semânticos, o verbo pleno que se gramaticaliza em auxiliar
subcategoriza uma forma nominal para com ele co-ocorrer. Portanto, em uma perífrase verbal, o
auxiliar
ou auxiliante, para adotar a nomenclatura proposta por Benveniste (1995 [1966])
interfere diretamente na seleção da forma auxiliada. A análise realizada fomentou a delimitaç
ão
de dois fatores intervenientes no processo de seleção da forma nominal pelo verbo auxiliar:
primeiramente,
obedece-se à transitividade da forma auxiliar e, em segundo lugar, atende-se à
compatibilidade de expressão aspectual entre os integrantes da perífrase. Assim, não se
constituem
, por exemplo, perífrases com o auxiliar
ser,
que é de natureza perfectiva, com o
gerúndio, cuja natureza é imperfectiva. Considerando-se que tanto a forma auxiliante quanto a
forma auxiliada contribuem para a expressão da categoria gramatical da perífrase, há de se
estabelecer entre elas uma harmonia; caso contrário, a estrutura to
rna
-se agramatical e é abortada
pelo sistema.
A quarta pergunta desencadeadora da p
esquisa
buscou
evoca
r questões referentes a uma
provável
relação
entre o processo de gramaticalização de uma forma e o seu possível processo de
restrição
no âmbito do léxico. Numa primeira reflexão, é admissível cogitar-se a respeito d
a
possibilidade de se estabelecer entre os dois fenômenos
lingüísticos
uma relação de
proporcionalidade. Como a gramaticalização é tradicionalmente definida como a tramitação de
um item do léxico para a gramática, é plausível a hipótese de que, à medida que o processo de
Sueli Maria Coelho
281
gramaticalização se tornando mais consistente, ocorra também um processo de
deslexicalização do item, que perde suas funções de elemento lexical para incorporar funções
gramat
icais. Entretanto, a análise semântica das cinco formas verbais ao longo dos três períodos
lingüísticos
revelou que os dois fenômenos acontecem paralelamente na língua, não exibindo
pontos de interferência. Esse paralelismo se deve à polissemia dos itens. Como o verbo pleno
possui, geralmente, mais de um sema, enquanto um de seus semas vai-se esvaziando de suas
atribuições lexicais para assumir funções gramaticais, os demais semas podem continuar seu
processo de expansão no âmbito do léxico, o que não constitui, evidentemente, uma regra. Pode
acontecer de, em decorrência de fatores tanto lingüísticos quanto extralingüísticos, um item
restringir seu conjunto de semas, tornando-se menos preferido pelo falante. Essa restrição, na
realidade, independe do seu processo de gramaticalização e é determinada por fatores
pragmáticos, como
postulado por Meillet (1912). Se, por qualquer motivo, o usuário do
sistema lingüístico entende que determinado item não mais cumpre suas funções
comunicativas
a contento, ele o
pretere
em detrimento de outro que se presta ao exercício de tais
funç
ões, o que acarreta seu processo de deslexicalização.
-se, pois, que o fenômeno da
gramaticalização resulta de uma recategorização de itens cujos semas tornaram-se tão abstratos a
pont
o de não mais cumprirem a função referencial exigida pela categoria lexical na qual
até então
se enquadravam, o que os obriga a se transladarem para uma nova categoria, cuja função é
demarcar funções gramaticais. Nessa acepção, pode-se conceber a gramaticalização como um
subconjunto da polissemia, constituído pelos semas que atingiram o ápice da abstração, o que os
impediu
de cumprir a atribuição referencial que lhe era outrora peculiar.
O quinto e o sexto problemas cujas soluções foram buscadas nos domínios dessa pesquisa
procura
ra
m estabelecer uma espécie de cronologia da
auxiliarização
na Língua Portuguesa.
A
Sueli Maria Coelho
282
princípio, acreditava-se que a primeira das cinco formas verbais a se gramaticalizar fosse o verbo
haver
. Essa crença foi determinada pela unanimidade com que todos os gramáticos consultados
atestam
o estatuto auxiliar desse verbo. Contudo, os dados levantados nos
corpora
, bem como as
reflexões desenvolvidas demonstraram que a primeira das cinco formas verbais a se
gramaticalizar foi o auxiliar
ser
. Este já era empregado como auxiliar da
voz
passiva na L
íngua
Latina, função que desempenha ainda hoje. Portanto, quando passou a integrar a Língua
Portuguesa
, apresentava tanto o caráter lexical quanto o gramatical. Dando seqüência a esta
cronologia,
sur
ge o verbo
haver
que, segundo informações obtidas em Vincent (1982) e em
Mattos e Silva (2001 [1994]),
gramaticalizou
-se como auxiliar
ainda
na fase do R
omance,
quando
, com a decadência do domínio romano, a Língua Latina vulgarizou-se, passando a ser
falad
a em diversas
regiões européias
.
Embora ainda figure em alguns contextos lingüísticos como
verbo auxiliar na contemporaneidade, o verbo
haver
não é hoje de uso tão recorrente quanto o
fora no período arcaico, que, conforme demonstrou a análise semântica
empreendi
da, esse
verbo está enfrentando um processo de deslexicalização cujo início data do período moderno. A
terceira forma verbal a se gramaticalizar como auxiliar foi, provavelmente,
considerando
-
se
o
critério da freqüência, o
verbo estar
, cuja gram
aticalizaç
ão
remonta ao século XIV, quando se
falava
ainda
o G
alego
-
português.
Superada a concorrência semântica com o verbo
ser,
que se
identificou tanto no período arcaico quanto no período moderno, esse verbo expandiu
significativamente o seu processo de gramaticalização, sendo empregado, na contemporaneidade,
majoritariamente como item gramatical, assim como o verbo
ser
e também o verbo
ir
, que,
possivelmente, foi a quarta forma verbal a se tornar
um
item gramatical. O fato de ter-
se
gramaticalizado tanto tempo e de não ter enfrentado a concorrência de nenhum outro auxiliar,
como foi o caso do verbo
haver
, pode constituir um argumento para justificar o fato de, no
estágio atual da língua, o verbo
ir
ser empregado mais como forma gramatical que como fo
rma
Sueli Maria Coelho
283
lexical.
A despeito de constituir perífrases tanto com o infinitivo quanto com o gerúndio, aquelas
parecem ser mais gramaticais que estas, uma vez que, quando se combina com o infinitivo, o
auxiliar presta
-
se à expressão do tempo futuro, não exibindo m
ais qualquer resquício de seu valor
etimológico. Em contrapartida, quando se combina com o gerúndio, o auxiliar mantém ainda seu
valor etimol
ógico, conforme
demonstram os enunciados
(174) e (175
) seguintes:
(174
)
Muitas pessoas não vão viajar durante o período de férias em virtude das péssimas
condições das estradas brasileiras.
(175
)
Enquanto vários deputados envolvem-se em escândalos por desvios de quantias
vultosas de dinheiro, a maioria da população
vai
vivendo
na
mais profunda
miséria.
, em se tratando do auxiliar
ter
, os dados coletados nos
corpora
acusaram
apenas que,
no período arcaico, tal verbo era empregado em sua função gramatical, o que demonstra que
o
início de seu processo de gramaticalização também remonta ao período arcaico da Língua
P
ortuguesa
. Contudo, os baixos índices de sua freqüência enquanto forma gramatical induz à
crença de que seu processo de gramaticalização encontrava-se ainda em um estágio mais inicial,
expandindo
-se e consolidando-se ao longo dos períodos moderno e contemp
orâneo.
-se, pois,
que o processo de gramaticalização dessas cinco formas auxiliares é bastante longevo na língua,
que antec
ede o período arcaico do Português. Logo, pode-se afirmar que as cinco formas
auxiliares prototípicas da Língua Portuguesa são um legado histórico românico, que todas elas
se gramaticalizaram antes da constituição da língua.
A sétima questão se reveste de um aspecto funcional bastante relevante, que se buscou
investigar a regularidade do processo de
auxiliarização
na língua, com vistas a empreender um
quadro de operacionalização dos auxiliares no Português do Brasil. Essa parece uma proposta um
tanto
quanto
ousada, porque, c
omo já mencionado nas considerações iniciais deste estudo,
Pontes
Sueli Maria Coelho
284
(1973, p. 39-40) acredita que “não é possível afirmar que todos os chamados auxiliares tiveram
evolução semelhante.”
Ess
a autora defende o estudo da
auxiliarização
numa perspectiva
meramente sincr
ônica
, em virtude da perspectiva teórica vigente na época; entretanto, não
pairando dúvidas de que este é um processo de natureza diacrônica, advoga-se em favor da
melhor propriedade de se concebê-lo nessa perspectiva. Os dados analisados acena
ra
m para uma
certa
regularidade
diacrônica
no processo
lingüístico
que faz de um verbo pleno um verbo
auxilia
r.
Como descrito quando se respondia à primeira questão proposta por este estudo, os
verbos auxiliares são, na sua maioria, palavras gramaticais que se originaram de palavras lexicais
mediante
um processo de gramaticalização. Além disso, estabelece-se entre os constituintes da
perífrase verbal uma relação de regência que determina a seleção de uma forma pela outra.
A
despeito de o fenômeno se efetivar em momentos distintos da história da língua e também de o
processo de lexicalização de cada uma das form
as
analisadas seguir um trajeto próprio, acredita-
se que o processo da
auxiliarização
seja regular na Língua Portuguesa, apresentando um percurso
claramente definido: verbo pleno > (verbo relacional) > verbo auxiliar. A tese de Pontes (1973)
apenas pode ser endossada se se considerar que o processo de gramaticalização de auxiliares
nocionais se difere daquele em que as perífrases são constituídas por verbos relacionais. Ainda
assim, é possível identificar entre o grupo uma regularidade: enquanto, em se tratando de
perífrases constituídas de verbos nocionais, a tramitação do auxiliar se diretamente do léxico
para os domínios da gramática, em se tratando de verbos relacionais, a tramitação se de um
estágio menos gramatical para outro mais gramatical, uma vez que, como aqui defendido, os
verbos relacionais já constituem usos gramaticalizados de verbos plenos.
A oitava questão investigada buscou comparar o nível de produtividade dos verbos
relacionais
e dos verbos nocionais para o processo de
auxiliarizaçã
o e sua resposta, de certa
Sueli Maria Coelho
285
forma, relaciona-se à sétima questão acima apresentada. A seleção das formas para estudo
contemplou três verbos nocionais e dois verbos relacionais e os dados analisados induzem à
conclusão de que ambos são igualmente produtivos em termos de
auxiliarização
. A diferença
semântica
qu
e se estabelece entre esses dois tipos de verbo é tributária de seu processo de
gramaticalização. Assim, enquanto os verbos nocionais exibem conte
údo nocional na condição de
formas simples, os verbos relacionais não o fazem porque, na função copulativa que ora se
apresentam
, são itens gramaticalizados. Entretanto, em termos de produtividade, o tipo de
verbo
não in
terfere no percurso do processo que, como já demonstrado, é de natureza sintática
. O
que se observa de diferente entre esses dois tipos de verbo, além da mencionada
recategorização
gramatical, é o fato de, em virtude de sua transitividade, os auxiliares relacionais
selecionarem apenas formas nominais de natureza adjetiva
para co
-
ocorrere
m com eles
e também
o fato de serem os únicos a constituírem perífrases cuja concordância se marca tanto na forma
auxiliar quanto na forma auxiliada. As perífrases constituídas de auxiliares oriundos de verbos
nocionais apenas exibem as marcas de concordância na forma auxiliar, mantendo invariável a
forma auxiliada. As perífrases constituídas de estar + gerúndio, como aqui defendido, não são
,
portanto,
originárias da gramaticalização de um verbo relacional, mas de um verbo nocional. O
fato de o verbo auxiliar subcategorizar, nesse contexto, uma forma nominal de natureza [-
particípio] e também de as flexões serem marcadas apenas na forma auxiliar comprovam essa
teoria. Assim, apenas as perífrases constituídas de estar + particípio são oriundas de verbo
relacional.
As duas últimas questões problematizadas por este estudo se inter-
relacionam,
uma vez
que visaram a analisar a possibilidade de se registrar uma
concorr
ência entre formas auxiliares
em processo de expansão gramatical. A análise desenvolvida
comprov
a a possibilidade de uma
Sueli Maria Coelho
286
concorrência nos termos labovianos a
penas
entre determinadas formas plenas e entre suas
respectivas
formas auxiliares; jamais entre as formas plenas e as formas auxiliares. A existência
de semas comuns entre determinadas formas verbais permite uma interseção entre elas em algum
ponto do processo, o que faculta a possibilidade da confluência, tornando-as variantes
lingüísticas.
de se assinalar, porém, que, em se tratando de formas auxiliares, pode ocorrer de
uma forma lingüística não vir a suplantar a outra. Foi o que ocorreu, por exemplo, com os
auxiliares
ser
e estar que, por um longo período da história da língua, figuraram nos mesmos
contextos lingüísticos, exibindo, portanto, o mesmo valor de verdade. As duas formas verbais
ap
resentavam comportamentos tão imbricados que chegaram a assumir atribuições funcionais
bastante semelhantes: ambas são auxiliares de di
átese, diferindo
-
se
apenas
por
funções aspe
ctuais
determinadas por questões diacrônicas específicas. A partir do período contemporâneo, contudo,
essas formas se estabilizaram semanticamente, não exibindo mais contextos comuns. Essa
delimitação de contextos, entretanto, não provocou o desaparecimento de uma das formas.
Além
dos auxiliares
ser
e estar, registrou-se também uma concorrência entre as formas
ter
e
haver
.
Essa concorrência foi mais acirrada que aquela verificada com os dois auxiliares anteriormente
mencionados e provocou, em alguns contextos, a suplantação de uma das formas. No estágio
atual da Língua Portuguesa, o auxiliar
haver
exibe índices de freqüência residual nos tempos
compostos do perfeito. Nesse contexto, a preferência do falante é pelo auxiliar
ter
, relegando a
forma
haver
para aqueles contextos em que o nível de formalidade exigido para o discurso é
basta
nte elevado. Contudo, essa concorrência estilística não se comprova em todos os contextos
sintáticos
. Em se tratando da
auxiliarização
de modalidade, os auxiliares
ter
e
haver
não exibem o
mesmo valor de verdade e, por isso, apresentam-se em distribuição complementar na Língua
Portuguesa do Brasil, embora já seja possível identificar entre ambas as formas uma reanálise
semântica que, em alguns contextos específicos, neutraliza a oposiç
ão modal de obrigatoriedade e
Sueli Maria Coelho
287
de volição.
Acredita
-se que, em virtude das especificidades semânticas que cada uma das formas
impõe ao enunciado em determinados contextos, não a possibilidade de uma forma vir a
suplantar a outra também na auxiliarização de modalidade. Isso prenuncia a permanência do
verbo
haver
no idioma brasileiro, ainda que em contextos mais reduzidos que aqueles outrora
apresentados. No que concerne ainda à concorrência de formas, a pesquisa realizada identificou
uma peculiaridade da gramaticalização em relação aos demais processos de variação e mudança
lingüística.
Durante o processo de tramitação de um item da categoria lexical para a categoria
lexical, não se verifica uma concorr
ência entre as formas
no sentido laboviano do termo, uma vez
que tanto a forma lexical, quanto a gramatical continuam a existir na língua. Não existe, pois, em
se tratando da gramaticalização, uma substituição de formas. Diante de tais constatações, pode-
se
entender o fenômeno da gramaticalização não como um processo desencadeador da mudança
lingüístic
a, mas como um processo que age em sua difusão, permitindo que os itens cooptados se
expandam analogicamente na língua.
Além das respostas apresentadas para as questões geratrizes da pesquisa, os dados
encontrados permitiram, por fim, a proposição de uma classificação dos verbos da
Língua
Portuguesa com base em seu traço de auxiliarização e, conseqüentemente, em seu processo de
gramaticalização. Assim, acredita-se que o elenco de verbos da Língua Portuguesa pode ser
distribu
ído
em quatro grupos: (a) aquele constituído por verbos que conservam seus traços de
forma plena e ainda não assumiram traços gramaticais – os classificados de nocionais pela
tradição gramatical; (b) aquele formado por verbos que perderam sua propriedade de
referenciação e assumiram traços gramaticais os verbos auxiliares; (c) aquele composto pelos
verbos que perderam sua propriedade de referenciação, assumindo a função gramatical de mediar
a cópula, mas não se agregaram ainda a uma forma nominal para constituir uma perífrase os
Sueli Maria Coelho
288
verbos
classificados de relaciona
is ou de ligação pela tradição gramatical; e (d) aquele constituído
por verbos que, apesar de conservarem a sua propriedade de referenciação, se agregaram a
formas nominais para constituir as perífrases verbais
os
denominados
verbos modais.
Acredita
-se que as generalizações aqui apresentadas possam contribuir, de alguma forma,
para a elucidação de questões referentes ao paradigma de
auxiliarização
da Língua Portuguesa do
Brasil. Contudo, como assinalado por Mattos e Silva (2001[1994]), os problemas tocantes aos
verbos auxiliares são complexos e instigantes e, como tais, prototípicos para suscitar sempre
novas investigações e, provavelmente, novas conclusões, o que tem a contribuir para a melhor
descrição dos fatos lingüísticos do Português, uma vez que a dinamicidade de uma língua não se
esgota em um trabalho de pesquisa, por mais exaustivo que este se proponha.
Sueli Maria Coelho
289
R
R
E
E
F
F
E
E
R
R
Ê
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N
N
C
C
I
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Estar na posse de, possuir
“Estando en’esto, veerom-lhi messejeiros que Aboemar, rei de Tunice e da Berberia lhe
filhara vilas e castelos, e que profaçava del porque fora vençudo de tam poucos cristãos. El
fillhou desto gram sanha, e daqueles cavaleiros que
tiinha
pera viir sobre la Espanha, apartou
deles cinquenta mil dos melhores, e foi
-
se a
el.” (LINHAGENS, p. 140,
grifo nosso
)
Haver, existir
“(...) entre os criadores de sua casa
tinha
um moço natural da terra, que pela conversaç
ão
sabia a língua; (...)” ( AVES
, p. 374, grifo nosso)
Sueli Maria Coelho
299
Apresentar, mostrar
“Senhor de muytas destas cousas eu bem creyo que attes agora fuy grande parte aJudador
mas prouuese a deus que todos
tyuessem
tal vontade de ser emendado qual eu
tenho
, e com a
sua aJuda entendo que o seria
em breue tempo(...)” (DOM DUARTE
, p. 38, grifos meus)
Alcançar, conseguir, obter
“(...) e aJnda que eu bem seu que por azo da mjnha partida o senhor rey e u
os
tendes
agora
mais encarreguos, se me deus encamjnhar bem, e mjnha ujda aqua ou ala tornar d aseseguo eu
espero nele de uos escusar daqueles que por meu azo
tendes
de presente, e aJudar em toda
outra cousa que eu sentir que he uoso seruiço e emenda
daque
stes empaçhos.” (DOM
DUARTE
, p. 55, grifo nosso)
Dispor de
“Pareçe me senhor que pois por autorjdade do poderio que uos deu/ uos tendes poder de
dardes administração de muytas albergarias e capelas que as deueis de dar a tais pesoas que as
minjstrasem a s
er
uigo de deus, (...)” (DOM DUARTE
, p. 30, grifo nosso)
Acreditar
“senhor este liuio que uos enuia o prio de Sam Jorge reprende tanto a luuamynha que se eu
non entendesse que aquele nome significa louuor mentideyro ou louuor uerdadeyro com
tenção maliçiosa eu non fora ousado tal Carta escrever// mas porque eu
tenho
que aquelo
sinifica e que o que em esta he contheudo em uoso louuor eu o creo per coração e em todo
lugar o afy
rmo pola boca (...)” (DOM DUARTE, p. 89,
grifo nosso
)
Sueli Maria Coelho
300
Manter
“El
-Rey, em quanto el esto disse,
teue
as maåos na asta della, dizendo que assy era elle
prestes pera defemder a uida e corpo por homra e defemssom delles (...)” (DOM JOÃO, p.
19, grifo nosso)
Gozar, desfrutar
“Senhor, se tu a mim talhas a cabeça, eu nom recebo gram perda, porque a mea vilhice é
grande, e
tenho
pouco de viver”. (LINHAGENS
, p. 138,
grifo nosso
)
Considerar, julgar
“(...) e os que tomaseis por escudeiros fosem homens fidalgos e de bom linhaJem/ e da outra
somenos nan fose posta em este grao nenhu, saluo por algu estremado serujço que fizese, e
asy se
teria
cada hu por contente de serujr o que lhe pertençese.” (DOM DUARTE, p. 37,
grifo nosso
)
Adotar, proceder
“E porque em começo de cada huum reyando costumamos de poer parte das bomdades de
cada huum rey, nom desuyando da hordem primeira tal modo quiseramos
teer
com este.”
(DOM JOÃO
, p. 01, grifo nosso)
Sueli Maria Coelho
301
Estar
“E nom dultedes que, pela sua vertude e por os boos fidalgos vossos naturaes que aqui
teedes
,
havedes de vencer estas lides, e vós havede
s de vencer prim
ero”. (LINHAGENS
, p. 131, grifo
nosso)
Dispensar, despender
“(...) deixando senhor de mais escrever sobre os geraeis conselhos que a todo tempo pertençe
torno a este de começo de uoso reynado e pareçe me que deues em ele
ter
çertos cuydados e
auy
samentos.
” (DOM DUARTE
, p. 76,
grifo nosso
)
Encontrar
-
se com
“(...) Joham Rodriguez, vemdo que lhe nom compria meter-se soo a cauallo emtrelles, deçeo-
sse logo a pee, e com a lamça darmas nas maåos os leuaua todos amte ssy, em guissa que se
nom ousauom de
teer
com
elle.” (DOM JOÃO
, p. 23, grifo nosso)
Sentir, experimentar
“Certo de que tal comunicação, se os anjos vos não ajudaram invisíveis, vos
tiveram
inveja
declarados; (...) ( AVES
, p. 373, grifo nosso)
Produzir, efetuar
“(...) sou servido ordenar ao Provedor da minha Real fazenda das Minas Geraes ponha tão
bem a lanços o Retabulo da Capella mor e sachristia da Igreja da frequezia de S. Joze da
Barra Longa novamente erecta e porque para ter
o seu devido efeito necessitava de Provisão
Sueli Maria Coelho
302
do me Tribunal (...)” (BARRA LONGA, Registro de duas ordens régias a favor dos
moradores do Ribeyrão Freguezia de S. Joze da Barra sobre o retabulo e sancrestia da
mesma igreja
, linha 05,
grifo nosso)
Acolher, abrigar, hospedar
“Também não convém que o mestre do açúcar, o caixeiro e os feitores
tenham
em suas casas,
por tempo notável, pessoas da cidade ou de outras partes, (...)” (ANTONIL, cap. XI, grifo
nosso)
Encontrar
-
se com
“(...) Joham Rodriguez, vemdo que lhe nom compria meter-se soo a cauallo emtrelles, deçeo-
sse logo a pee, e com a lamça darmas nas maåos os leuaua todos amte ssy, em guissa que se
nom ousauom de
teer
com elle.” (DOM JOÃO
, p. 23, grifo nosso)
Tomar por parâmetro
“No entanto, a operação de reconhecimento das diferenças se realiza
tendo
como
ponto de
vista ref
erencial
sua própria cultura.” (HERÓTODO
, 2000, grifo nosso)
Sofrer, padecer de
“(...) voltaren é também contra-indicado a pacientes que
têm
crise de asma, urticária e rinite
agud
a (...)”(BULA
, Voltaren, grifo nosso)
Sueli Maria Coelho
303
Acontecer, suceder
“Não
teve
nada, Primo!... Juro!... Por esta luz!... Nem ela nunca ficou sabendo... Por alma de
minha mãe!” (ROSA,
Sarapalha,
1946,
grifo nosso
)
Receber, ser punido com
Foi montada em nome do filho do Sr. Altineu Coutinho, dono da Brasvit e da Hallen Ellitot
que
teve
a prisão preventiva decretada quando o delegado federal Nício Lacorte investigou a
gestão Alceni Guerra. (
HOJE EM DIA,
Pragmatismo e moralidade
, 03/04/00, grifo nosso)
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Ter, possuir
E gaanhou a rainha dona Beatriz d’el rei Dom Pedro todalas vilas e logares da
Estremadura, salvo Lixboa e Santarem e Leirea, e gaanhou todolos os outros que ela
havia
em tempo de seu marido, por as quaes terras ela viveo muito honradamente.”
(LINHAGENS, p. 128,
grifo nosso
)
E
xistir
“E os que morrêremos hoje seeremos com el no seu reino celestial, u
ha
moradas tam
nobres que se nom podem dizer por línguas.” (LINHAGENS, p. 133, grifo nosso)
Considerar, julgar
“E recebeu grande honra do gram meestre e de toda a cavalaria, porque se
houveram
d
el
por bem servidos.” (LINHAGENS
, p. 142, grifo nosso)
Sueli Maria Coelho
305
Obter, conseguir
“(...) .s. o Casamento de vosa filha, fazer se a vosa vontade, e o senhor Jfante dom
anrrique
auer
o reyno de grada ou grande parte de castela (...) .” (DOM DUARTE, p. 58,
grifo nosso)
Fazer, realizar
“E, em outro dia,
houveram
os cavaleiros acordo antre si, que se nom matassem ûus a
outros; (...).” (LINHAGENS, p. 126, grifo nosso)
Ter transcorrido tempo, fazer (impessoal)
“Nem Meem Rodrijguez nem Ruy Mendez, seus filhos, que tempo
auia
que amdauom
com el Rey, nom fezerom disto grande conta (...)” (DOM JOÃO, p. 12¸
grifo nosso)
Dar, conceder
“A essa hora saio a alma a el rei do corpo, e Deus lhe
haja
perdoamento, ca foi boo rei.”
(LINHAGENS, p. 128, grifo nosso)
Tra
var, empreender
“Este rei Dom Denis
houve
guerra com seu filho Dom Afonso, que era ifante, por razom
que queria que reinasse Afonso Sanchez seu filho de barregãa”. (LINHAGENS, p. 126,
grifo nosso
)
Sueli Maria Coelho
306
Permanecer, ficar
“O alcayde em se defemdemdo, deram-
lhe
com huum viratam pello rostro; e semtindo-
se
ferido e as portas da uilla que ardiam, emtendeo que nom
auia
em elle comselho se
nom seer emtrado per força.
” (
DOM JOÃO, p. 16,
grifo nosso
)
Vencer, alcançar êxito
“(...) ca o priol Dom Alvaro, como entregou a vila a seu senhor el rei, começou d’andar
em preitesias antre el e seu padre, e
aveo
-
os, e fez
-
lhe dar as contia de maravediis que lhe
seu padre
tiinha alçada (...).”(LINHAGENS
, p. 129,
grifo nosso
)
Sentir, experimentar
“Quem poderia contar quanto mal sofrerom e
houveram
aquela hora
criståos!”(LINHAGENS
, p. 134¸
grifo nosso
)
Suceder, acontecer, ocorrer
“E dizem que logo em esse dia
aveo
assy que açerca daquella porta, homde a azemella
moreo, o spiritu malino tomou huum homeem (...).” (DOM
JOÃO
, cap. VI, p. 14¸
grifo
nosso
)
Sueli Maria Coelho
307
Ter trato com, lidar
“O único remédio, pois, para atalhar pesados desgostos é
haver
-
se
com toda a urbanidade
e primor, pedindo licença para tudo, cada vez que for necessário valer-se do que têm os
vizinhos e persuadi
r-
se que
se negam o que se pede será porque a necessidade os obriga.”
(ANTONIL,
cap. III, grifo nosso)
Proceder, portar
-
se, comportar
-
se
Eu não digo que se não dê autoridade aos feitores; digo que esta há
-
de ser bem ordenada
e dependente, não absoluta, d
e sorte que os menores se
hajam
com subordinação ao maior
e todos ao senhor a quem servem.” (ANTONIL, cap. IV, grifo nosso)
Levar, conduzir
“(...) mandamos que esta nossa Sentença e Autos de Justificação se goardem no Cartorio
da nossa Camara
, lançando
-
se
nos livros della a que pertencer, para servir a todo o tempo
de titulo e constarem as Justissimas causas que nos
hoverão
a esta detriminação (...)”
(BARRA LONGA, Documento de criação da Paróquia de Barra Longa, linha 97, grifo
nosso)
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Estar, achar
-
se em um determinado tempo ou espaço
“[Ali caíram cavaleiros e cavalos mortos da ua e da outra parte, ali [veeri]ades cavalos
sem senhores andar soltos, e os cavaleiros que
eram
em terra filhavam-se pelos lazes das
capelinas e dos bacinetes, e davam-se das brochas, que as poinham da outra parte.]”
(LINHAGENS, p. 132,
grifo nosso
)
Existir, haver
“Dos frayres, mandar que nenhu frayre não coma em camara, se não
for
por notavel
neçesidade, nem durma senam em comum dormjtorio, e asy doutras cousas das quaes
algus poderião J
nformar uosa merçe.” (DOM DUARTE
, p. 30, grifo nosso)
Ficar
“El rei e aqueles que com ele estavom
forom
mui ledos e esforçados destas palavras do
priol Dom Alvaro, e dixerom: ‘Assi o compra J
esu
s Christo”.” (LINHAGENS, p. 131,
grifo nosso
)
Sueli Maria Coelho
309
Tornar
-
se
“(...) e eles temendo sse do que poderja aconteçer serujrião melhor e com mais diligençia
e destes uerião bons benefiçiados que
serião
bons electores, (...)” (DOM DUARTE, p. 29,
grifo nosso
)
Acont
ecer, transcorrer
“(...) esto
foi
no mês d’Agosto da era de mil CCCXLII annos. E por quanto
foi
, tanto
endereçou, e veo pera seu reino com grandes vitorias.” (LINHAGENS, p. 126,
grifo
nosso
)
Constituir, ser a essência de
“(...) sempre açhares quem uos ame mais do que uos amardes e quem se lembre de uosas
boas obras e conheça e conheça [sic] quanto são ben feitas e uos galardoe mais
grandemente do que requerem uosos merecymentos, e estes me pareçe que
são
dos mais
prinçipaes
fruytos d amizade.” (DOM DUARTE
,
p. 88, grifo nosso)
Pertencer a
“Sabedes que a Espanha
foi
de vossos avoos.” (LINHAGENS
, p. 137, grifo nosso)
Estar na posse de, possuir
“As gallees, como virom a barcha que vinha deante, forom
-
na todos reçeber e combatiam
-
na de toda parte, creemdo o qu
e
eram
razom de cuidar, que ja aquella era sua.” (DOM
JOÃO
, p. 11,
grifo nosso
)
Sueli Maria Coelho
310
Distar, ficar a certa distância de
“(...) seendo aquel dya festa da Pascoa da Resurreiçom do Senhor, pareceron dous navios
da parte de Sam Giam-
per
-ademtro, que
som
tres l
egoas
da çidade, (...)”(DOM JOÃO, p.
11, grifo nosso)
Proporcionar
“(...) eu ouuy dizer que por minguoa// de non estar nenhu fidalguo na uosa rolação hua
uez em montemor se ordenou tal cousa que se pasara fora
bem grande agrauo aos fidalgos
contra suas
liberda
des antigas.” (DOM DUARTE
, p. 38, grifo nosso)
Manter
-
se
“Senhor, porque entraste no ventre da Virgem Maria e naciste dela, e
foi
virgem ante
p
arto e depois parto?” (LINHAGENS, p. 133,
grifo nosso
)
Precisar um momento no tempo
“E mandou que nenhuum nom roubasse nem tomasse nenhuuma cousa aos moradores da
uilla, saluo os que eram dAyras Gomez; dos quaaes, porque
era
oras que ajnda todos
jaziam quamdo el-Rey emtrou, muytos forom presos e roubados de cauallos e armas e d
e
quamto lhe achauom.” (DOM JOÃO, p. 2
3, grifo nosso)
Exercer o cargo de, desempenhar a função de
“Item ffezerom almotaHe Jo o Adam este mes de ssatembro que
ffoy
vereador o ano
passado” (VEREAÇÕES
, fl. 16v, grifo nosso)
Sueli Maria Coelho
311
Estabelecer acordo, chegar a um consenso
“Logo en’aquela hora houve conselho com os seus altos homees que lhi ficarom, e
forom
todos em acordo que se passasse alem mar a demandar cavalarias, e se viir em elas outra
vez sobre a Espanha, por se vingar.
” (LINHAGENS, p. 14
0,
grifo nosso
)
Obter, conseguir
“E a maneira em breue senhor como me pareçe que se ysto poderia emendar serya
primeiramente a despouoração da terra escusando os perigos e os encarregos e trabalhos
em que são postas as gentes dela sem neçesidade e com grande dano e tyrando alguas
outras leis ou ordenações que a eles agrauão que não
seja
grande proueito da terra nem
muyto serujço do
senhor rey e uoso.” (DOM DUARTE
, p. 32,
grifo nosso
)
Provir, originar
-
se de
“E porque comumente
são
de nações diversas e uns mais boçais que outros e de forças
muito diferentes, se há-de fazer a repartição com reparo e escolha e não às cegas.”
(ANTONIL
, cap. IX,
grifo nosso
)
Fazer, executar uma tarefa
“(...) se as castigardes,
seja
com brandura; se as favorecerdes,
seja
com moderação,
porque aqui o desvanecimento as não faça altivas, e a demasia as não deixe irritadas
(...)” (AVES, p. 368, grifos nossos)
Sueli Maria Coelho
312
Equivaler a
“(...) o dicto concelho auera o ser terHo e por juramento que rreHebeo cada tres meses
entregara ao dicto conHelho a sua dicta parte que
he
ho dicto terHo quall ordenanca da
di
cta empossjsom (...)” (VEREAÇÕES
, fl.6,
grifo nosso
)
Custar, ter o preço taxado em
“E visto sseu juramento mandarom que pagase enpossjsom// [fl. 18v1] de quatro almudes
que
ssom
a xij rrs
de cada héa [ca]nada” (VEREAÇÕES
, fl. 18v1,
grifo nosso
)
Fazer, executar uma tarefa
“(...) se as castigardes,
seja
com brandura; se as favorecerdes,
seja
com moderação,
porque aqui o desvanecimento a
s não faça altivas, (...)” (AVES, p. 368,
grifo nosso
)
Significar, ter o sentido de
“Comparar a pagamentos é
dar logo de contado alguma parte do preço e depois pagar por
quartéis, ou tanto por cada ano, conforme o concerto até se inteirar de tudo.” (ANTONIL
,
cap. XII, grifo nosso)
Provocar, ser causa de
“E claro está que uns com a ruim vida desagradarão a Deus e aos homens, e
serão
causa
de muitos e bem pesados desgostos, e outros com a ineptidão causarão dano nã
o ordinário
à fazenda.” (ANTONIL
, cap. IV, grifo nosso)
Sueli Maria Coelho
313
Mostrar
-
se simpático com
“(...) antes que por mal, as leveis por bem, que o rigor faz servos inimigos, e o agrado
escravos voluntários;
sede
para todas, e todas
serão
para vós; (...)” (AVES, p. 368,
grifo
nosso
)
Excetuar, excluir
“(...) e esta merce que faço ao suplicante
he
salvo o direito regio e prejuizo de terceiro que
haja povoado cultivado ou occupado a dita fasenda (...)” (BARRA LONGA, Carta de
sesmaria ao Coronel Mathias Barbosa da Silva, linha 15,
grifo nosso
)
Asseme
lhar
-
se a, ser parecido com
“Um mosteiro sem união é
como um relógio desconcertado, tudo é tempo confuso, horas
perdidas
, cordas quebradas; (...)” (AVES
, p. 370,
grifo nosso
)
Expressar ou imprimir dúvida
“_
Será
que chove, Primo?
_ Capaz.
_ Ind’hoje?
Será
?” (ROSA,
Sarapalha, 1946,
grifo nosso
)
Sueli Maria Coelho
314
Seguir, adotar
“Mas nunca terá força para subir tão alto se não
for
pela estrada q
ue trilharam os ant
igos
poetas e oradores.” (GARÇÃO,
Dissertação Terceira
, p. 132,
grifo nosso
)
Expressar acordo, aquiescência
_ Não sei não... Só sei é que se ela, por um falar, desse de chegar aqui de repente,
até a febre sumia...
_
É
... Se ela chegasse, até a febre sumia...” (ROSA,
Sarapalha,
1946,
grifo
nosso
)
Sueli Maria Coelho
315
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A
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L
Encontrar
-se em um dado momento ou lugar
“Este priol Dom Alvaro foi o que pôs os pendÆes por muro,
estando
na vila do Porto pe
ra
a aguardar, per mandado deste rei dom Afonso, o quarto, (...)” (LINHAGENS, p. 128,
grifo nosso
)
Ser
(...) logo mandou a Leónidas um navio carregado do dito aroma, dizendo-lhe gastasse
sem dó, pois já
estava
senhor da
s terras que o produziam.” (AVES,
p. 376,
grifo nosso
)
Haver, existir
“(...) vede vós em Sião se estão
filhas de Babilónia; não vos fieis em as verdes espertas,
nem ainda bem inclinadas, que se lhe
s faltou a doutrina (...)” (AVES
, p. 370,
grifo nosso
)
Sueli Maria Coelho
316
Permanecer, conservar-
se
“Criou
o açucar em as canas para crédito da natureza e não para sustento dos homens, que
a ser assim, não
estivera
tantos séculos ignoto.” (AVES
, p. 389, grifo nosso)
Localizar
-
se
“(...) sucedeu na mesma manhã, em que entrou, levá-lo ao senhor com outros a
acom
panhá
-lo a uma igreja, que
estava
fora da cidade, aonde se fazia festa (...)” (AVES
,
p. 369,
grifo nosso
)
Apresentar
-
se, comparecer
“O ‘namoro’ entre o governador e esses dois partidos começou cerca de duas semanas,
quando a CPI do Narcotráfico, presidida pelo líder da bancada do PDT, Marcelo
Gonçalves,
esteve
no Palácio da Liberdade.” (HOJE EM DIA, PDT e PL pressionam
governador,
03/04/00,
grifo nosso
)
Atuar, exercer o cargo de
“No sábado, em Juiz de Fora o governador Itamar Franco confirmou o seu ‘ro
mpimento
definitivo’ com o PMDB até o momento em que Armando Costa
estiver
na presidência.”
(HOJE EM DIA,
PMDB deve apoiar Itamar e afastar Costa,
03/04/00,
grifo nosso
)
Ter, possuir
“Contudo, segundo o desembargador, o prefeito Marcelo Cecé não colocou, até agora,
qualquer obstáculo para a apuração dos fatos,
estando
com seus bens indisponíveis e com
Sueli Maria Coelho
317
seu sigilo bancário quebrado.” (HOJE EM DIA, Cecé retorna à prefeitura e acusa
promotor
, 04/04/2000,
grifo nosso
)
Intensificador (muito, bastante)
“_ E aí?...
_ O senhor
está
56
cansado de saber... ‘Aí a canoinha sumiu na volta rio... (...)” (ROSA,
Sarapalha
, 1946, grifo nosso)
Apoiar
“Trata
-se de uma pessoa que tem nos ajudado muito, e o grupo
está
com ele.” (HOJE EM
DIA,
Velloso pede calma à torcida
, 02/04
/2000,
grifo nosso
)
56
Acredita
-
se que o valor semânti
co ora atribuído é próprio da expressão idiomática
estar cansado de
, que representa
um uso já bastante abstrato da forma perifrástica.
Sueli Maria Coelho
318
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Deslocar
-
se, mover
-
se
“Este rei dom Denis
foi
a Castela e chegou a Aragom a ~ua vila que dizem Taraçona com
a rainha dona Isab
el, sa molher, (...)” (LINHAGENS
, p. 126,
grifo nosso
)
Partir, retirar
-
se
“E
foi
-
se
e tomou a Feira e o castelo de Gaia e a torre da menagem do Porto, e foi-
se
deitar sobre
a vila de Guimarães.” (LINHAGENS, p. 126,
grifo nosso
)
Seguir, percorrer
“E
himdo
assy seu caminho, chegarom huum dia a oras de uespera a par dhuum logar que
chama Neiua, que som (dez) legoas do Porto (...)” (DOM JOÃO, p. 15, grifo nosso)
Comparecer, apresentar
-
se
“Itamar chegou ao velório do amigo às 15 horas, e acompanhou a missa de corpo presente
celebrada pelo Monsenhor Miguel Falabela, mas não
foi
ao enterro.” (HOJE EM DIA,
Governador volta a JF para velório
, 03/04/00, grifo nosso)
Sueli Maria Coelho
319
Seguir adiante, prosseguir
“E alguuns leuarom estas nouas ao Condestabre ao caminho homde hia, dizemdo-lhe que
por aquello nom era (bem)
hir
mais adeamte, e que se tornasse em toda guissa.” (DOM
JOÃO, p. 14, grifo nosso)
Opor
-
se, posicionar
-se contra
“Pareçe me senhor que deueis ordenar aos cudeis do uoso ou do conçelho çerto
mantymento que fose tal que eles ouuesem uontade de seujr os offiçios ajnda que
deles
naom ouuesem outro proueyto que
fose
contra uoso seujço, qa uos senhor sabeis bem que
o que em tal Carrego ouuer de serujr que tem asas de grande trabalho asy do corpo como
do entendymento(...)” (LINHAGENS, p. 32,
grifo nosso
)
Caminhar para uma desg
raça
“Os IIII mogotes dos IIII mil cavaleiros que estavam folgados pera prender os criståos,
como vos ja hei mostrado, virom que os criståos
iam
pera mal, e que a az da coinha
andava destroindo en’eles.” (LINHAGENS, p. 135, grifo nosso)
Perseguir
“Esta [hora] foi mazelada de coita de door e de pressa d’escor[i]dÆe a todas vossas
gentes, ca em como nos foi mostrada, essa hora
forom
os Portugueeses em toda as força, e
seguirom aquel
cavaleiro por u ia.” (LINHAGENS, p. 139,
grifo nosso
)
Sueli Maria Coelho
320
Procurar por, reco
rrer a
“Como não conhecia nenhum daqueles defeitos mais notáveis, a que corresponde aquele
castigo,
foi
-
se
ao seu confessor com esta aflição a dar
-
lh
e conta da novidade; (...)”(AVES
,
p. 366,
grifo nosso
)
Freqüentar
“Outros são tão pouco cuidadosos do que pertence à salvação dos seus escravos que os
têm por muito tempo no canavial ou no engenho sem baptismo, e dos baptizados muitos
não sabem quem é o seu Criador, o que hão-de crer, que lei hão-de guardar, como se hão-
de encomendar a Deus, a que
vão
os crist
ãos à igreja, por que adoram a hóstia consagrada,
(...)” (ANTONIL, cap. IX, grifo nosso)
Ser transportado
“... Declaro que quando estes (meus ossos) chegarem à dita Egreja (dos Anjos) se
collocarão no caixão em que
forem
sobre uma urna ou eça levantada no meio da Egreja, e
perante elles se me farão pela minha Alma nove Officios cantados com Missa, (...)”
(BARRA LONGA, Excerto do Testamento do Cel. Mathias Barbosa, l
inha
31, grifo
nosso)
Parecer
“Também seria sinal de ter ruim coração fazer vizinhança aos que moem a cana livre
em outros engenhos, porque a não moem no seu, nem ter boa correspondência com os
senhores de outros engenhos, porque cada qual folga de moer tanto como outro, ou
Sueli Maria Coelho
321
porque a algum deles lhe
vai
melhor, com menos gasto e sem perdas.” (ANTONIL, cap.
III,
grifo nosso
)
Atacar
“Eu vi os jogos do Rio Branco e sabia de suas falhas e potenciais. Então, mandei o time
ir
57
para cima do lado esquerdo da defesa deles e marcar o lado direito (...)” (HOJE EM
DIA,
Vitória do Vila não agrada Osm
ar
, 03/04/2000,
grifo nosso
)
Morrer, falecer
“_ Mas, então, não fala em morte, Primo Ribeiro!... Eu, por nada que não queria ver os
senhor
se ir
primeiro do que eu...” (ROSA,
Sarapalha, 1946,
grifo nosso
)
Espalhar, atingir
“Ai! que o frio cai entre os ombros, e
vai
pelas costas, e escorre das costas para o corpo
todo
, como fios de água fina.” (ROSA,
Sarapalha, 1946, grifo nosso
)
57
Acredita-
se
que
o valor semântico atribuído não é manifesto apenas pelo verbo
ir
, mas é uma cristalização da
forma
ir p
ara cima
, que constitui uma expressão idiomática, cujo sentido é atacar.
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